O jogo das águas transfronteiriças no contexto da integração regional

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O jogo das águas transfronteiriças no contexto da integração regional


© 2007, INESC

SCS, Q. 8, bloco B-50, sala 441 Ed. Venâncio 2.000, Brasília/DF – Brasil Cep: 70.333-970 (61) 3212.0200 www.inesc.org.br Editora responsável Luciana Costa Programação visual AV Comunicação Tradução Dermeval Aires Jr. Conselho Diretor Armando Martinho Bardou Raggio Caetano Ernesto Pereira de Araújo Fernando Oliveira Paulino Guacira César de Oliveira Jean Pierre René Joseph Leroy Jurema Pinto Werneck Luiz Gonzaga de Araújo Neide Viana Castanha Pastor Ervino Schmidt Colegiado de Gestão Atila Roque Iara Pietricovsky José Antônio Moroni Assessoria Alessandra Cardoso Edélcio Vigna Eliana Graça Francisco Sadeck Jair Barbosa Júnior Luciana Costa Ricardo Verdum Assistentes Álvaro Gerin Ana Paula Felipe Lucídio Bicalho Instituições que apóiam o Inesc: Action Aid, CCFD, Christian Aid, EED, Embaixada do Canadá - Fundo Canadá, Fastenopfer, Fundação Avina, Fundação Ford, Fundação Heinrich Boll, KNH, Norwegian Church Aid, Novib, Oxfam, Save the Children Fund e Wemos Foundation


SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Organizar a luta em defesa do futuro ............................................................................................. 7

CAPÍTULO I ÁGUAS TRANSFRONTEIRIÇAS DO AQÜÍFERO GUARANI: dilemas e perspectivas no Brasil ................................................................................................... 11

CAPÍTULO II ÁGUAS TRANSFRONTEIRIÇAS: a situação na Argentina .................................................................................................................. 33

CAPÍTULO III RECURSOS HIDRELÉTRICOS E GEOPOLÍTICA NO PARAGUAI: os casos de Itaipu e Yacyretá ......................................................................................................... 71



APRESENTAÇÃO

Organizar a luta em defesa do futuro O objetivo desta publicação que trata da complexa questão das águas transfronteiriças é apresentar o contexto regional no qual se coloca o problema da água doce na América do Sul. Cientistas caracterizaram o século XX como a era dos conflitos1, mas, num breve olhar, verifica-se que, no século XXI, os conflitos continuam com mais intensidade. Luta-se por petróleo, por espaço geopolítico e por água. Elza Bruzzone, uma das especialistas que participam desta publicação, afirma que “a água potável tem se transformado no recurso estratégico do século XXI. Tem sido, é e continuará sendo, sem dúvida, fonte permanente de conflitos”. “A água é vida”, declara Elza: “sem ela, o planeta e os seres não existiriam. Portanto, quem tem o controle da água potável, controlará a vida e a economia do mundo”. Essa preocupação com as gerações futuras perpassa e enriquece todo o texto. Ao falar sobre as águas no contexto argentino, Elza nos dá uma tradução militante da questão da água e da luta necessária na América do Sul. “Lentamente nossos países estão aprendendo a superar desconfianças, temores e receios. Palavras como integração e cooperação adquirem cada vez mais sentido, porque os problemas que enfrentamos são os mesmo para todos”, diz ela. Elza faz um chamamento cuja razoabilidade ecoa em todas as organizações e pessoas que partilham dos princípios da democracia: “fazse necessário a articulação e a coordenação das organizações intergovernamentais, governamentais e da sociedade civil com responsabilidade e interesses na gestação, no uso e na proteção dos recursos hídricos. Isso nos leva a buscar um planejamento integrado e participativo da água”. A questão da água está circundada pelo debate sobre os projetos de integração que estão na pauta prioritária dos governos sul-americanos. O projeto Iniciativa de Integração da Infra-estrutura Regional Sul-americana2 (IIRSA), que está sendo executado nos vários países com nomes diversos3, está sofrendo uma série de críticas. Uma das principais é a de que não há nada na idéia de integração que seja favorável ao futuro dos povos do continente4. Outro debate diz respeito aos conceitos de desenvolvimento e crescimento. O primeiro é entendido como pleno de possibilidades de efetiva integração dos povos. O segundo é carregado de um viés economicista, de uma visão mercantilista da vida. Os atuais programas de integração nacional e regional, da forma como estão sendo projetados, sem participação social, terão impactos negativos profundos nas populações rurais e urbanas. As rodovias e as ferrovias projetadas, vistas como corredores de exportação – que represen-

1 Eric Hobsbawm prefere falar da Era dos Extremos, o breve século XX. Companhia das Letras, 1995. 2 A IIRSA é a iniciativa de um processo multisetorial que pretende desenvolver e integrar as áreas de transporte, energia e telecomunicações da América do Sul, no período de dez anos. 3 No Brasil, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) é a versão nacional complementar do IIRSA. 4 Lander, Edgardo. Modelos alternativos de integração? Projetos neoliberais e resistências populares. Revista Observatório Social da América Latina, nº.15, janeiro/2005, Buenos Aires. Site: www.caf.com/view/ index.asp?ms=8&pageMs=10180, visitado em 17/03/2007.


tam modelo de crescimento para fora –, vão recompor a geopolítica do país, incluindo no mercado internacional áreas antes semi-isoladas. Áreas de proteção ambiental, parques nacionais, terras indígenas, imóveis rurais de pequenos e médios produtores terão que conviver com a ameaça das motoniveladoras, das colheitadeiras e das fumigações aéreas de agrotóxicos pesados. As usinas hidroelétricas irão modificar ainda mais a vida cultural das populações ribeirinhas, que provavelmente serão removidas do seu habitat natural. A proliferação de mosquitos e as doenças transmissíveis por diversos insetos e bichos caracterizam a pósconstrução das barragens. Essas populações invisíveis irão, como outras que foram atingidas pelas barragens, se transformar em comunidades errantes. O governo está com um déficit social de décadas com diversas populações removidas devido à construção de barragens e ainda não assentadas. O debate da integração está se fortalecendo nas organizações da sociedade civil do espectro democrático continental. Os/as analistas indicam que somente a capacidade das forças populares, a mobilização, a resistência e as lutas sociais e políticas poderão reverter a tendência hegemônica de mercantilização das riquezas naturais do continente. O encaminhamento do processo, pela sociedade civil, é no sentido de fazer do projeto de integração uma oportunidade para uma interação favorável aos interesses populares. Elza Bruzzone nos lembra que “estamos vivendo novos tempos. A integração regional avança sem pausa e a sociedade civil se envolve e participa cada vez mais ativamente de temas que lhes competem”. O tema da integração que emoldura nossas vidas – somos parte da fita querendo ou não – é cíclico, pois nos absorve sem nos afastar dos temas específicos. Não se pode debater sobre o regime jurídico das águas sem falar em integração. Não se pode integrar um povo sem considerar o elemento principal da vida que é a água. Assim, ao examinar o tema das águas transversais, Christian Caubet, o especialista que trata do caso brasileiro nesta publicação, recorda que, apesar de marcados pelos ciclos das águas, falta muito para que os países do Mercosul tenham soluções normativas à altura de seus desafios. Ele afirma: “as soluções puramente nacionais têm variado ao sabor das evoluções políticas internas, mais acentuadas, re-

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centemente, no Uruguai e na Argentina. Os desafios da gestão da água continuam imensos. O atraso de nossas sociedades, em relação à adoção de soluções estruturais, requer uma conscientização urgente das instâncias de elaboração normativa e das de decisão e de implementação de políticas públicas”. A Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9433/97) completa dez anos: uma década de ambigüidades e conseqüências contraproducentes. Christian ressalta que a “falta de participação efetiva da população continua sendo o principal óbice à implementação eficaz de normas que inovaram, porém não tiveram o necessário respaldo de políticas públicas instrumentais”. As normas de execução e decisão estimulam a mercantilização e a privatização da água. Os critérios de participação nos Comitês de Bacias são risíveis. “Quem participa é o usuário (leia-se empresas exploradoras das fontes naturais), agente econômico e pressão majoritária no processo. O cidadão, agente político da sociedade civil, é minoritário. O ambientalista, agente perturbador, é excluído. A presença nominal do cidadão e do ambientalista, entretanto, está garantida: sem ela, não haveria como fazer marketing político ou ambiental”, declara Christian. As sociedades civis brasileira e de outros países sulamericanos, com exceção da boliviana, ainda não promoveram um enfrentamento qualitativo com as empresas privadas do setor. Ainda não ocuparam o espaço gerencial que pode garantir as decisões em favor das populações consumidoras de água. Se ainda as organizações brasileiras não fizeram o dever de casa com a aplicação necessária, as organizações latino-americanas também estão em débito. Seria irresponsabilidade não trabalhar no sentido de abrir canais de comunicação que possibilitem possíveis articulações. Elza pondera que é preciso ampliar o conhecimento existente sobre os recursos naturais: “devemos estudar em detalhe, conhecer profundamente sua variabilidade geográfica e sazonal, suas relações funcionais com os recursos naturais e ambientais em termos de equilíbrio ecológico e produtividade”. As organizações devem ser, em última instância, pro-ativas e propositivas. Nesse sentido já existe um trabalho que vem sendo desenvolvido objetivando a criação de um grupo formado por parlamentares e organizações da sociedade civil, para encaminhar


questões comuns aos países sul-americanos. A Frente Interamericana de Parlamentares e Sociedade Civil5 se reuniu em três ocasiões (Argentina, Venezuela e Bolívia) e definiu uma pauta de atividades. No Brasil, essa articulação está vinculada à Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), à Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais e ao Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (FBOMS). Organizações e redes latino-americanas estão também integradas à Frente, assim como parlamentares de quase todos os países sul-americanos. Uma das preocupações desse coletivo é a forma como os governos dos países do Mercosul e da América Latina irão equacionar a questão das assimetrias econômicas, sociais e culturais. Como expressou a pesquisadora Mercedes Canese6, é fundamental que o Paraguai possa dispor de sua energia livre e soberanamente; que a dívida promovida pelas hidrelétricas de Itaipu e Yacyretá seja perdoada; que, se após uma auditoria, restar ainda alguma dívida, a taxa de juros seja reduzida a preços de mercado como os da Organização dos Países Exploradores de Petróleo (OPEP); e que a gestão das hidrelétricas seja executada binacionalmente. O cenário atual, pelos riscos e ameaças que estão em jogo, representa, por si só, uma convocação para a luta política. Para o Inesc, esta publicação cumpre o objetivo de provocar, estimular e instigar o sentimento de mobilização política existente em cada militante, em cada liderança de organização social e em cada partido político. Para isso, convém lembrar as palavras originais de Elza: “Tenemos que crecer como países y pueblos. Dejar atrás la adolescencia. Ser capaces de elaborar nosotros mismos los planes de prospectiva, explotación racional y preservación de los recursos naturales, que son nuestros patrimonios nacionales, en especial de aquellos que compartimos. Esto es indispensable para mantener nuestra supervivencia como pueblos y naciones y nuestra identidad y lograr una integración real en todos los aspectos: político, social, económico, cultural, educativo y de defensa. A ese objetivo aspiramos. De nosotros depende”.

Edélcio Vigna Assessor de Políticas de Soberania Alimentar e Reforma Agrária do Inesc

5 Maiores referências e informações, consultar o site www.inesc.org.br. 6 Nesta publicação, responsável pelo artigo “Recursos hidrelétricos e a geopolítica no Paraguai: os casos de Itaipu e Yacyretá”, 2006.

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CAPÍTULO I

ÁGUAS TRANSFRONTEIRIÇAS DO AQÜÍFERO GUARANI: dilemas e perspectivas no Brasil Pesquisador responsável: Christian Guy Caubet Departamento de Direito e Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Pesquisador IA do CNPq

Equipe de pesquisa: Ana Carolina Casagrande Nogueira Mestre em Direito pela UFSC Lígia Dutra Silva Advogada Maíra Luísa Milani de Lima Mestre em Direito, Professora na Faculdade Baiana de Ciências (FABAC) e nas Faculdades Jorge Amado Maria Lúcia Navarro Lins Brzezinski Mestre em direito e Professora das Faculdades Integradas Curitiba Secretária: Júlia Lorenzetti

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SUMÁRIO 1. Introdução ................................................................................................................................... 13 2. A área internacional e seus dois modelos de referência ......................................................... 14 2.1. Parâmetros essenciais das normas internacionais ............................................................... 14 2.2. O referente ultraliberal é privatizante e promove mercados abertos ............................... 14 2.3. O referente nacionalista é publicizante e objetiva mercados preservados ....................... 16 3. O contexto normativo brasileiro ............................................................................................... 17 3.1. As águas subterrâneas na legislação brasileira .................................................................... 18 3.2. Domínio das águas subterrâneas ........................................................................................... 18 3.3. Política Nacional de Recursos Hídricos ................................................................................ 19 3.4. Águas minerais versus águas subterrâneas .......................................................................... 20 3.5. Um estatuto internacional para o Aqüífero Guarani ........................................................... 21 4. As instituições brasileiras e a participação na gestão das águas ........................................... 22 4.1. Definições e ambigüidades ...................................................................................................... 22 4.2. Os aspectos legais no Brasil ................................................................................................... 24 4.2.1. Parâmetros de participação ................................................................................................. 24 4.2.2. Usuário e consumidor .......................................................................................................... 25 4.2.3. O Comitê de Bacia Hidrográfica (CBH) .............................................................................. 26 4.2.3.1. A composição do CBH ....................................................................................................... 26 4.2.3.2. Os trâmites para a proposta de instituição de um CBH ................................................ 27 4.2.3.3. Os requisitos relativos ao conteúdo da proposta ........................................................... 27 4.2.3.4. A operacionalização da proposta ..................................................................................... 28 4.2.3.5. A área geográfica e as competências do CBH .................................................................. 28 5. Considerações finais ................................................................................................................... 30 6. Bibliografia .................................................................................................................................. 32

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1. Introdução Este estudo objetiva contribuir com o conhecimento do estatuto das águas transfronteiriças que circulam nos territórios e no subsolo dos quatro países – Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai - situados no âmbito espacial do Aqüífero Guarani, do ponto de vista das normas jurídicas aplicáveis e da adequação dessas normas à resolução dos problemas que se apresentam. O acervo de normas jurídicas relativas à gestão da água, nos países partícipes do espaço geográfico do Aqüífero Guarani, inclui uma grande quantidade de soluções para os numerosos problemas existentes. Entretanto, uma análise atenta desse acervo revela algumas de suas importantes limitações. O Brasil tomou a dianteira na elaboração de uma legislação interna específica, ao adotar, em 1997, a Lei Federal nº 9.433/97, da Política Nacional de Recursos Hídricos. Os países vizinhos também possuem normas específicas ou enfrentam os desafios de adotá-las e de implementá-las. Entretanto, o assunto não se resume a estudos paralelos e eventualmente comparativos de legislações nacionais. O objetivo precípuo do estudo é de buscar estabelecer o que as normas existentes significam para o espaço geográfico de referência no seu conjunto, uma vez que existem inúmeras relações simbióticas entre os quatro países, por causa da circulação dos recursos hídricos. Apesar de marcados pelos ciclos das águas, falta muito para que os quatro parceiros tenham soluções normativas à altura de seus desafios. As soluções puramente nacionais têm variado ao sabor das evoluções políticas internas, mais acentuadas, em época recente, no Uruguai e na Argentina. Por outro lado, o mosaico das normas puramente internas é distinto do conjunto de normas que poderiam ser aplicadas pelos quatro países em conjunto: o Direito Internacional Público não espelha necessariamente o conteúdo das normas nacionais, mesmo que estas sejam idênticas em quatro Estados diferentes; o que não é o caso. Parece necessário, portanto, estudar os pormenores específicos do Direito Internacional para verificar se parecem melhores as perspectivas de harmonia a partir desse enfoque. A realização dessas análises também pressupõe que se assinalem as distintas possibilidades de intervenção dos órgãos legislativos nos diversos Estados em relação à elaboração ou adoção de eventuais tratados, que acabariam se tornando normas nacionais de seus signatários. Esse assunto apresenta numerosas dificuldades de teoria jurídica e de prática política, que também dependem de tradições jurídico-políticas diferentes, as quais devem somar-se o estudo das contribuições atuais da Comissão de Direito Internacional da Organização das Nações Unidas (ONU), que objetiva dar sua contribuição especial na elaboração de normas relativas à exploração de jazidas minerais líquidas: água, petróleo e gás. A apresentação da problemática está dividida em três partes. Na primeira, apresentam-se a área internacional e os modelos que servem de referência para a elaboração das normas: o referente ultraliberal privatizante e o referente nacionalista publicizante, dentro do quadro específico do Direito Internacional Público. A segunda parte está dedicada aos contextos normativos brasileiros: as águas subterrâneas na legislação; o domínio das águas subterrâneas; a Política Nacional de Recursos Hídricos; a dicotomia entre águas minerais e águas subterrâneas e uma indagação sobre um eventual estatuto internacional para o Aqüífero Guarani. Na terceira parte, analisam-se algumas das instituições brasi-

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leiras voltadas para a gestão da água e caracterizam-se importantes problemas de participação no processo de gestão.

2. A área internacional e seus dois modelos de referência 2.1. Parâmetros essenciais das normas internacionais Do ponto de vista da elaboração dos tratados, esbarra-se na competência dicotômica prática entre os Poderes Executivo e Legislativo. Aquele “celebra” tratados (Art. 84, Inciso VIII da Constituição Federal - CF). Este possui a competência exclusiva da aprovação em último recurso (Art. 49, I da CF), porém não costuma estar aparelhado para fazer a avaliação adequada dos princípios e das normas de Direito Internacional embutidos nos tratados que ele passa a aprovar ao “resolver definitivamente” sobre os textos jurídicos, no intuito de confirmá-los como normas válidas no território nacional. Ocorre que nossa capacidade de decidir normas internas sobre assuntos como o estatuto dos recursos hídricos está sobremaneira condicionada por opções estruturais elaboradas no âmbito dos organismos internacionais políticos, econômicos e comerciais do sistema das Nações Unidas e da Organização Mundial do Comércio (OMC). Os recursos hídricos internacionais devem ser considerados em função de um contexto clássico criado no Congresso de Viena de 1815, mas também dentro de parâmetros muito mais recentes que se constituíram a partir dos anos 1980 e que serão objeto de maior atenção. De 1815 a 1921, a liberdade de navegação comercial ocupa toda a atenção. A partir da primeira Guerra Mundial, a produção de energia hidrelétrica passa a constituir um novo uso, porém sem introduzir fator de concorrência. Mas, no novo contexto ultraliberal dos anos 1980, a situação se altera de maneira muito sensível. A demanda por água de qualidade aumenta significativamente, porém a quantidade disponível tende a diminuir, em termos relativos e absolutos, por causa do crescimento populacional e do aumento das necessidades de cosumo, particularmente na agricultura para produzir alimentos, mas também na indústria. A deslocalização1 de parte significativa do parque industrial poluente, dos países do hemisfério norte para os do “terceiro” mundo, contribui para piorar o balanço global.

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Do ponto de vista do Direito Internacional Público, os rios são sucessivos ou contíguos. Os Estados ribeirinhos dispõem de maior autonomia para usar as águas dos rios sucessivos, mesmo que devam observar comportamentos mínimos, como evidenciaram os ajustes realizados em torno da construção de Itaipu, entre 1962 e 1982. Já nos rios contíguos, os problemas podem ensejar polêmica com mais facilidade, como veio lembrar a recente (março de 2006) decisão uruguaia de construir fábricas de celulose que, segundo a Argentina, poderiam no futuro produzir impacto ambiental relevante. Ainda é necessário evocar o novo contexto dos usos mais recentes da água para entender a gravidade dos problemas. Aos problemas antigos de garantia de navegação ou de repartição de cotas para produzir energia, somam-se as questões da escassez de água quando os usos são consuntivos e da exploração predadora em contínua expansão, que desconsidera os impactos ambientais e agrava as conseqüências nocivas de todas as utilizações. Nesse contexto, existem hoje em dia duas correntes essenciais em relação à adoção de regimes jurídicos nacionais relativos aos recursos hídricos: o “modelo” ultraliberal e a opção nacionalista. 2.2. O referente ultraliberal é privatizante e promove mercados abertos O conceito de água virtual apareceu recentemente na literatura especializada. O Brasil, segundo maior detentor de recursos de água doce do mundo (depois do Canadá), é o 10° produtor de água virtual do planeta. Os estudiosos consideram água virtual toda a água usada para se fabricar um bem. Pode ser uma fruta produzida no Baixo São Francisco, uma roupa do pólo têxtil de Blumenau, um quilo de carne do Mato Grosso. Nessa percepção, um quilo de pão usa 150 litros de água, enquanto um quilo de batata consome dois mil. Um quilo de carne, do nascimento do boi até o prato do consumidor, gasta de 10 mil a 13 mil litros de água. Nesse cálculo, entra não só a água consumida diretamente pelo animal, que varia de 50 a 60 litros por dia, como também a água utilizada para produzir a alimentação do gado. Em média, cada quilo de soja exige dois mil litros de água para ser produzido. A água que corre no vale do rio São Francisco é um bom exemplo de água que não parece internacionalizada; porém é. De um lado, têmse os problemas tradicionais de usos múltiplos:


a produção de energia e a irrigação são, hoje em dia, os dois usos econômicos mais importantes das águas do rio São Francisco. A navegação, outrora primeiro uso econômico, está hoje como uma lembrança ou um sonho: ela é saudade, para quem olha o último dos vapores fluviais, o Benjamin Constant, praticamente imobilizado em Pirapora (MG), onde as águas tendem a tornar-se rasas demais, mesmo para seu insignificante calado. Mas a navegação é o sonho dos que gostariam de dispor de um meio seguro e barato de escoar a safra de grãos que toma conta de regiões imensas, como o oeste da Bahia. A irrigação, entretanto, é a que recebe maior ênfase, seja para aumentar as áreas já existentes na bacia do São Francisco, seja para reivindicar a transferência de volumes d’água para outras regiões. Parte significativa da água usada na irrigação está internacionalizada pelo fato de que a produção agrícola local é exportada. Pode-se dizer que as populações européias, e outras, que importam as frutas produzidas no vale do São Francisco, matam sua fome com a água disponível no Brasil que é incorporada às frutas exportadas. Se for necessário usar 10 mil litros d’água para obter uma espiga de milho, o país que importa milho deixa de usar sua própria água e a importa, por enquanto a preço vil, embutida no produto comprado no exterior. Esses mecanismos mal começaram a ser levados em consideração, mas ninguém duvida de que eles deverão transtornar vários aspectos de diversos fenômenos geopolíticos mundiais. Em primeiro lugar, feito commodity, a água terá seu próprio mercado como substância bruta a ser transportada e consumida fora dos lugares de produção-captação, em quantidades que, hoje em dia, ultrapassam os limites da imaginação. Além da exportação da água, a internacionalização estará implícita em todo projeto de grandes obras que venham viabilizar a navegabilidade dos rios, como no caso da Hidrovia Paraná–Paraguai. As infra-estruturas gigantescas drenam os recursos de todos/as os/as contribuintes para a construção de obras que beneficiam a exportação de insumos e barateiam seu custo para consumidores/as estrangeiros/as. É uma nova perspectiva estratégica, geopolítica e comercial: o consumo de água de boa qualidade nos leva a considerar um novo aspecto do seu aproveitamento internacional. Trata-se da retirada de grandes quantidades de água, potável ou simplesmente doce, de um determinado lugar, para finalidades de exportação. Podem ser evocadas as informações, periodicamente veiculadas pela imprensa, relativas ao aproveitamento de geleiras dos pólos, a serem rebocadas para os lugares de consumo; ou a venda da água de certos países, onde os recursos hídricos são abundantes e, portanto, sobram para os países com agudas carências. Deve-se sublinhar a percepção incuravelmente antropocêntrica embutida nessa consideração simplória, diretamente inspirada pela obsessão de que a solução está no mercado. É corriqueira, na literatura dita científica, a afirmação segundo a qual a água está mal distribuída, em função das necessidades das populações. Essa perspectiva postula implicitamente que o crescimento populacional e o aumento das necessidades de consumo de toda ordem estão corretos. O que está errado é a distribuição mundial dos recursos, em particular da água. É a água que está nos lugares errados, onde não se necessita dela. Não é a população que está errada, por crescer em excesso ou por encontrar-se em lugares nos quais não há a água necessária à sua sobrevivência, ou por poluir a água de tal maneira que a única solução parece ser importar a água de outros lugares.

1 A deslocalização, segundo o professor da Universidade Estadual de Maringá, Hugo Agudelo, “torna o território cada vez menos importante como elemento fundamental da produção de bens [...] Isto significa que tanto o Estado, quanto a fronteira e o território, perdem a importância que até aqui mantiveram, devendo modificar-se profundamente para responder às exigências que a nova divisão internacional do trabalho e, a nova organização do processo produtivo reclamam”. Ver http://www.dge.uem.br// geonotas/vol1-2/ geopol1.html, acessado em 19 de abril de 2007.

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Assim, parece natural transpor a água do rio São Francisco para o Nordeste; vender a água do Canadá para a Califórnia ou desviar a água do Ródano (França) para alimentar Barcelona (Espanha). Mas deve-se enfatizar que esse tipo de solução apenas reproduz as atitudes errôneas atuais, ampliando os problemas em vez de enfrentá-los. Esse tipo de atitude promove a idéia de que o que falta em um lugar e existe em abundância noutro pode ser objeto de compra e venda; que basta que uns queiram comprar para que outros tenham que vender, pois é óbvio que ninguém pode querer reter o que está abundante, desnecessário e com baixo ou nenhum valor econômico. O elemento natural que está escasso em um lugar e abundante em outro é um recurso. O dia em que alguém avalia que esse recurso pode ser pedido e adquirido, ele passa a ser um bem; com estatuto eventual de mercadoria. O mundo inteiro, na atual fase ultraliberal, passou a promover a mercantilização da água como um fenômeno normal, como um postulado perfeitamente inevitável. A água do rio São Francisco que vai para o oceano é reputada como perdida. Não é considerada necessária à contenção da violência do mar, que já iniciou sua obra de destruição da área estuarina do São Francisco, em razão da “regularização da vazão” do rio promovida pela operação de cascata de barragens da Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF). A água do Canadá está infinitamente disponível para alimentar a agricultura da Califórnia, pois, no Canadá, ela não serve para nada. As ocorrências e tendências descritas ilustram a tendência ultraliberal: a água de qualidade, vista como recurso-bem-mercadoriacommodity, passa a ser objeto de transações comerciais, como qualquer bem-recurso escasso, com a óbvia conseqüência de que quem pode paga, e quem não pode pagar, fica sem. Conseqüência óbvia, porém não assumida explicitamente. A Organização Mundial do Comércio (OMC), no âmbito da Rodada de Doha, desde dezembro de 2001, tenta promover a água ao estatuto de bem objeto de serviços: captação, tratamento, transporte, distribuição e disposição final das águas servidas são serviços que devem ser liberalizados e deixados a quem se dispõe a oferecer as melhores condições contratuais de atendimento, em função da indicação objetiva dos parâmetros do serviço a ser prestado. Essa postura já vem ensejando protestos e busca de alternativas há anos.

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2.3. O referente nacionalista é publicizante e objetiva mercados preservados Contra a inclusão total, nos mercados, de bens e serviços considerados essenciais ou particularmente sensíveis, nasceram conceitos-de-resistência e outras decisões políticas caracterizadas. Um conceito-de-resistência de grande utilidade prática foi o de exceção cultural, nascido na França, na década de 1990, para obstar a liberalização de mercado do conjunto de bens culturais ligados à comunicação e à informação de toda ordem: a produção, transmissão, estocagem e aquisição de bens da indústria da comunicação, do disco ao vídeo, da fotografia aos programas de computadores, do cinema aos direitos autorais ligados a todas essas atividades. Em abril de 2006, a Bolívia passou a pedir que os serviços de água fossem retirados das negociações entabuladas pela OMC, pouco tempo após o Fórum Social Mundial ter recomendado que tal decisão fosse adotada pelos países participantes. Além disso, a Bolívia manifestou à OMC que pretende retirar as propostas de liberalização manifestadas no período de 2003 a 2005, no sentido de abrir seu mercado nacional às “demandas de mercado” de toda origem. No mesmo momento, o governador do Estado norte-americano de Oregon, também pedia que seu Estado fosse isento de certas conseqüências da aplicação do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços (AGCS), por meio do qual a OMC regulariza a liberalização dos serviços de água. O referente nacionalista é publicizante, no sentido de voltar a promover a gestão públicas das águas. Isso ocorre por diversos motivos: má qualidade do atendimento e redução da população atendida pelas companhias concessionárias; custos e preços cobrados ampliados em proporções astronômicas; exportação dos lucros; insuficiência dos investimentos para garantir a continuidade dos serviços; falta de manutenção dos equipamentos recebidos. Nos últimos dez anos, os contratos e concessões assinados entre Estados e companhias de serviços de água, como Suez Véolia (França), Lyonnaise des Eaux (França), Bechtel (Estados Unidos), Thames Waters (Inglaterra) foram desrespeitados pelas companhias. O objetivo dessas empresas é o lucro e não a garantia de funcionamento de um serviço público universal, indispensável à totalidade da população. Surgiram contenciosos graves, às vezes depois de violentas manifestações populares, como ocorreu em Cochabamba (Bolívia), em março de


2001, ou na África do Sul. Ásperas discussões com os governos dos países interessados levaram companhias a se retirarem de diversos países, como Argentina, África do Sul, Bolívia e Índia. Em conseqüência das crises, nascem decisões políticas no intuito de preservar e de reservar os serviços públicos internos de água, exatamente na contramão dos esforços da OMC no sentido de exigir a abertura de “mercado” dos serviços essenciais à concorrência internacional. A Bolívia retirou os serviços de água da pauta negociável pela OMC. A Argentina marcou posições extremamente firmes contra as pretensões de certas concessionárias. Disso nasceu pelo menos um contencioso internacional à iniciativa da Compañia de Águas del Aconquija contra o Governo nacional, atualmente (desde outubro de 2006) em andamento no âmbito do Centro Internacional de Controvérsias sobre Investimentos (CIRDI). A própria existência desse tipo de contencioso constitui poderoso motivo de restrição ao acesso aos mercados nacionais: além do péssimo serviço oferecido, as companhias estrangeiras buscam compensações, de impossível logro nos sistemas jurisdicionais dos países de sua atuação, junto a entidades cuja competência implica deslocalizar a jurisdição competente, em óbvio prejuízo ao respeito às decisões e finanças nacionais. No Uruguai, as eleições de outubro de 2004, que levaram ao Poder Executivo o presidente Tabaré Vasquez, foram realizadas simultaneamente a um referendo popular de iniciativa da sociedade civil, cuja aprovação significava a re-publicização dos serviços de água no país e a proibição de toda privatização futura. Em fevereiro de 2006, o governo fechou acordo com a empresa Águas de Barcelon (AgBar), subsidiária do grupo francês Suez, comprando sua participação acionária no grupo Aguas de la Costa. Simultaneamente, anunciou a criação de uma empresa mista (público-privada) para continuar a prestação do serviço. A Comisión Nacional en Defensa del Agua y de la Vida (CNDAV), que promoveu a reforma constitucional referendada em 2004, manifestou imediatamente sua opinião de que a solução adotada pelo governo contradizia a nova redação constitucional, não só em relação à forma de indenização da Suez, como também à fórmula jurídica encontrada para a continuidade da prestação de serviço. No caso, verifica-se que a possibilidade de conflito passa de um eixo internacional para uma contenda interna: um governo triunfalmente eleito começa a perder legitimidade em função de suas tergiversações na política nacional de recursos hídricos. Esses contextos ilustram a grande diversidade de situações entre os quatro países detentores de partes das reservas do Aqüífero Guarani. Não só suas legislações internas são diferentes - ou até incompatíveis, se consideradas as modalidades de gestão, posse ou propriedade; participação dos grupos sociais e econômicos nas tomadas de decisão; e os objetivos oficiais das políticas públicas -, como não há motivo de pensar que usariam as mesmas referências normativas de direito internacional. Essa situação nos leva a fundados receios em relação ao Aqüífero Guarani.

3. O contexto normativo brasileiro Uma reunião realizada em Foz do Iguaçu, no Paraná, em janeiro de 2000, foi o marco inicial das discussões entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai em torno de um projeto comum de pesquisa, para avaliação de potencial e de exploração do Aqüífero Guarani. O Banco Mundial (BIRD) aprovou a proposta que lhe foi submetida. O projeto, iniciado em março de 2003, está em fase de execução e tem a conclusão prevista para fevereiro de 2009. O seu objetivo é apoiar os quatro países na elaboração e implementação coordena-

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3.1. As águas subterrâneas na legislação brasileira No Brasil, a tutela das águas subterrâneas é extremamente frágil, do ponto de vista legal. A legislação federal carece de normas específicas sobre águas subterrâneas e, nos Estados, são poucos os que editaram leis nesse sentido. A ausência de legislação específica sobre o tema não deveria ser um grande problema, posto que existem diplomas (normas e tratados aprovados pelo país) que tratam de recursos hídricos em geral, tanto em âmbito federal quanto estadual. No entanto, as legislações existentes são confusas, chegando, em muitos casos, a ser contraditórias quando consideram as águas subterrâneas ora como recurso hídrico, ora como recurso mineral. No caso do Aqüífero Guarani, que é transfronteiriço, a complexidade para identificar a legislação aplicável à sua exploração aumenta muito, a começar pela questão da dominialidade.

disposto no art. 526 do Código Civil (1916) e no art. 96 do Código de Águas, permitindo que o proprietário delas usufruísse desde que não prejudicasse outros aproveitamentos existentes. Assim, como no caso das águas superficiais, a transferência do domínio das águas subterrâneas para os Estados fez com que os antigos proprietários pudessem valer-se do direito de uso, porém sempre sujeitos à outorga concedida pelo Poder Público. A questão do domínio das águas subterrâneas pode tornar-se controvertida quando se analisam grandes aqüíferos, como o Guarani, que abrange o território de vários Estados brasileiros e estende-se além das fronteiras nacionais. A possibilidade de que cada Estado tenha uma legislação distinta sobre águas subterrâneas e, portanto, uma política diferente e sem nenhuma coordenação de utilização do Aqüífero, pode levar à má utilização e, conseqüentemente, à exaustão dos recursos. De acordo com publicação elaborada pela Secretaria de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente, para a divulgação da Lei n° 9.433, de 8 de janeiro de 1997, a determinação do domínio das águas subterrâneas dependeria da seguinte análise (trata-se de um análise errônea, por desrespeitar exigências hermenêuticas elementares e estabelecer presunções verossímeis, porém descabidas): “No caso das águas subterrâneas, os aqüíferos, entendidos como estruturas que retêm águas infiltradas, podem ter prolongamentos além das fronteiras estaduais, passando, portanto, a ser de domínio federal. Essas águas, assim, podem ser federais ou estaduais, diferente do que se popularizou como titularidade dos Estados. A caracterização vai depender das direções dos fluxos subterrâneos e das áreas de recarga (alimentação) e se as obras para a sua captação foram contratadas pelo poder público federal.”2

3.2. Domínio das águas subterrâneas A Constituição Federal de 1988, no seu art. 26, inciso I, define como bens dos Estados “as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União”. Antes da Carta Constitucional, as águas subterrâneas eram consideradas do dono do terreno em que se encontravam por acessão, como

Com efeito, basta observar, como faz Freitas, que: “não é possível concluir que tal circunstância (de um aqüífero se estender pelo território de mais de um Estado) torne as águas subterrâneas bens da União, pois inexiste qualquer dispositivo na Carta Magna que disponha de tal forma. E não é possível falar-se em analogia com a situação das águas superficiais, ou seja, os rios que dividem ou atravessam dois ou mais Estados.”3

da de uma proposta de modelo institucional, legal e técnico comum para a preservação e o gerenciamento do Sistema Aqüífero Guarani (SAG) para as gerações atuais e futuras. O Banco Mundial, através do Global Environment Facility (GEF), fundo para o meio ambiente mundial, viabilizou a maior parte dos recursos internacionais. Coube à Organização dos Estados Americanos (OEA) ser a agência executora do projeto, por usar a justificativa de que já possui experiência em coordenar grandes projetos internacionais que envolvam mais de um país. A Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) irá colaborar com os estudos relativos à energia geotérmica existente no Guarani. O Programa de Recursos Hídricos do Banco Mundial e do Governo do Reino dos Países Baixos (BNWPP) e o Programa de Cooperação do Paraguai e Serviço Geológico da Alemanha (BGR/PY) também participam do projeto com recursos financeiros.

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No caso do Aqüífero Guarani, tanto pela sua extensão como pela quantidade e qualidade de água nele armazenada, deve ser defendida sempre uma gestão integrada dos seus recursos. Os Estados brasileiros devem utilizar-se desse bem considerando suas características gerais e a União deve estimular a cooperação visando à sua utilização sustentada, tanto internamente quanto com relação aos demais países que também abrigam partes do Guarani. A divergência existente sobre o domínio de grandes aqüíferos tem um caráter muito mais formal e não pode servir de empecilho para a elaboração de programas conjuntos de uso sustentado das águas subterrâneas. Até porque a preservação e o uso racional dos recursos naturais (inclusive a água) são uma obrigação de todos. A rigor, só faltaria enfrentar com boa fé o problema da “articulação” entre a União e os Estados, prevista pela Constituição Federal. 3.3. Política Nacional de Recursos Hídricos Uma primeira distinção fundamental deve ser efetuada entre águas subterrâneas e águas minerais. Essas duas expressões se referem a dois conceitos jurídicos diferentes, apesar da aparente identidade material entre as duas. A legislação federal carece de texto específico sobre águas subterrâneas, apesar da existência da Lei n° 9.433/97, que trata da Política Nacional de Recursos Hídricos, e que deveria suprir essa necessidade, visto que a água subterrânea também é um recurso hídrico. No âmbito do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, existe um grupo de trabalho que objetiva produzir um texto para legitimar a transferência da dominialidade das águas subterrâneas dos Estados-Membros à União. O ciclo hidrológico demonstra a ligação e dependência das águas superficiais com as subterrâneas, o que sugere a prática de gerenciamento integrado. Como a própria Lei estabelece como um de seus objetivos “a utilização racional e integrada dos recursos hídricos” (art. 2°, inc. II), pode parecer lógico atribuir a dominialidade a uma única instância nacional, de âmbito federal. Essa não é a opinião dos poderes executivos de diversos Estados, que advogam pela “articulação” de competências entre a União e as unidades federadas. Tal articulação está prevista pelo texto constitucional federal, porém nunca foi objeto de qualquer tipo de negociação entre os diversos interessados. No que tange à proteção das águas subterrâneas, a Lei n° 9.433/97 trouxe um grande avanço, qual seja, a implantação da outorga do direito de uso de recursos hídricos (artigos 11 ao 18), objetivando “assegurar o controle quantitativo e qualitativo dos usos da água e o efetivo exercício dos direitos de acesso à água”. A outorga não implica alienação parcial das águas, que são inalienáveis, mas o simples direito de seu uso. Pode ser suspenso nos seguintes casos: não cumprimento pelo outorgado dos termos da outorga; não uso por três anos consecutivos; necessidade de utilização da água para atender a situações de calamidades, para prevenir ou reverter grave degradação ambiental; ou atender a usos prioritários, de interesse coletivo, para os quais não existam fontes alternativas, ou ainda, para manter as características de navegabilidade do corpo de água. A outorga de direito de uso deve ser pedida tanto para a exploração dos recursos hídricos superficiais como subterrâneos, permitindo maior controle sobre as quantidades de água utilizadas. A questão da outorga tem um valor especial para o controle do uso das águas subterrâneas porque obrigará o poder público a: formar um cadastro de todos os poços

2 GRAF, Ana Claudia Bento. Águas: aspectos jurídicos e ambientais. Curitiba: Juruá, 1999, p. 65. 3 Freitas, Vladimir Passos. Águas: Aspectos Jurídicos Ambientais. Curitiba: Juruá, 1999, p. 24.

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existentes; outorgar a quantidade de água que está sendo retirada, exceto em casos de usos insignificantes que, mesmo assim, devem ser cadastrados; fiscalizar melhor a manutenção dos poços; e evitar que novos poços sejam feitos fora dos padrões técnicos ou abandonados sem o devido tamponamento, o que gera riscos de contaminação do subsolo. 3.4. Águas minerais versus águas subterrâneas Ao se enfocar o tema de águas subterrâneas, é fundamental a análise do regime jurídico diferenciado das águas minerais e das águas potáveis de mesa, já que são tratadas como recursos minerais, e não como recursos hídricos. A Constituição Federal de 1988, no seu art. 20, inc IX, dispõe que “os recursos minerais, inclusive os do subsolo, são considerados bens da União”. As jazidas, em lavra ou não, e os demais recursos minerais, constituem propriedade distinta do solo para efeito de exploração ou aproveitamento, pertencente à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra. No mesmo sentido, afirma o Código de Mineração (Decreto-Lei n° 227/67), no seu art. 84: ”A jazida é bem imóvel, distinto do solo onde se encontra, não abrangendo a propriedade deste o minério ou a substância mineral útil que a constitui”. Apesar de considerar a propriedade da jazida distinta da propriedade do solo, a Constituição Federal e o Código de Mineração garantem ao proprietário do solo uma participação nos resultados da lavra4, pois, com a exploração do minério, ocorre a impossibilidade de utilização do solo. No caso de lavra de águas minerais, essa restrição de utilização do solo é ainda maior, tendo em vista que é necessária uma zona de proteção ao redor do poço donde se extrai a água, sendo proibido o exercício de atividades potencialmente poluidoras do subsolo para garantir a qualidade da jazida de água explorada. Segundo o art. 4º do Código de Mineração, jazida é “toda massa individualizada de substância mineral ou fóssil, aflorando à superfície ou existente no interior da terra e que tenha valor econômico”. Lavra, segundo o art. 36 do mesmo diploma, pode ser entendida como “o conjunto de operações coordenadas objetivando o aproveitamento industrial da jazida, desde a extração das substâncias minerais úteis que contiver até o beneficiamento das mesmas”.

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O Código de Mineração dispõe (art. 10) que as jazidas de água mineral em fase de lavra e as de águas subterrâneas deverão obedecer à legislação especial, no caso o Decreto-Lei n° 7.841/ 45, denominado Código de Águas Minerais, o qual estabelece que: Art. 1º - “Águas minerais” são aquelas provenientes de fontes naturais ou de fontes artificialmente captadas que possuam composição química ou propriedades físicas ou físico-químicas distintas das águas comuns, com características que lhes confiram uma ação medicamentosa. Art. 3°- Serão denominadas “águas potáveis de mesa” as águas de composição normal provenientes de fontes naturais ou de fontes artificialmente captadas que preencham tão-somente as condições de potabilidade para a região. Na prática, é muito difícil verificar, no caso das águas minerais, o que são características “distintas das águas comuns” e o que é “ação medicamentosa”, já que, “a rigor, toda água natural, por mais pura que seja, tem um certo conteúdo de sais.”5 Isso acontece porque as águas superficiais em contato com o solo dissolvem minerais existentes nas rochas. No caso das águas subterrâneas, o processo de mineralização das águas é acentuado. A infiltração ocorre lentamente, havendo, portanto, grande contato com o solo. A elevação da temperatura geotérmica aumenta a capacidade da água de dissolver minerais e incorporar solutos. Logo, quanto maior a profundidade do reservatório subterrâneo, maior a possibilidade de a água ser enriquecida com sais. Assim, conclui-se que toda água subterrânea, desde que tenha boa condição de potabilidade, pode ser explorada e comercializada como água mineral ou potável de mesa, demonstrando a incoerência legal no tratamento da matéria. Dessa forma, as águas minerais, que são águas subterrâneas, enquanto recurso mineral estão sujeitas às normas do direito minerário, como também estão sujeitas às normas ambientais por força de sua natureza de bem ambiental. Contudo, não estão sujeitas às normas relativas à gestão de recursos hídricos para o controle quantitativo e qualitativo de seu uso. Segundo os critérios do Decreto-Lei nº 7.841/45, denominado Código de Águas Minerais, fica estabelecido: “O aproveitamento comercial das fontes de águas minerais ou de mesa, quer situ-


adas em terrenos de domínio público, quer de domínio particular, far-se-á pelo regime de autorizações sucessivas de pesquisa e lavra instituído pelo Código de Minas, observadas as disposições especiais da presente lei.” Esse regime de autorizações e concessões abrange tanto as águas destinadas ao consumo humano como também as destinadas a fins balneários, como as estâncias termais. As autorizações e concessões podem ser obtidas através de requerimento ao Ministério de Minas e Energia. O Departamento Nacional de Produção Mineral é o responsável pela fiscalização, com a atuação suplementar das autoridades sanitárias e administrativas federais, estaduais e municipais (Ministério da Saúde e Secretarias da Saúde). Para tornar mais complexo o fato de existirem duas legislações sobre a mesma água, existe ainda a questão da dominialidade. Como já dito, a Constituição Federal determina que os recursos minerais são bens da União e que as águas subterrâneas são bens dos Estados. No caso das águas minerais, que são recursos minerais e águas subterrâneas, a quem pertencem? Pela sistemática brasileira, as águas subterrâneas pertencem à União quando a finalidade da exploração é a venda da água como produto, isto é, o envasamento de água mineral para comercialização, sendo considerada, neste caso, recurso mineral. No entanto, as águas subterrâneas podem pertencer aos Estados sempre que tiverem outras destinações (abastecimento público, irrigação, incorporação ao processo produtivo, etc.). Esses intrincados problemas ajudam a entender qual poderá ser a polêmica internacional, em caso de adoção de normas internas diferentes pelos quatro países interessados na exploração do Aqüífero. Isso explica porque houve esforços internacionais e regionais de adoção de normas comuns. 3.5. Um estatuto internacional para o Aqüífero Guarani Em âmbito internacional, verificam-se dois tipos de esforços para encontrar soluções normativas para a exploração dos recursos do Aqüífero Guarani. De um lado, foram empreendidos estudos na Comissão de Direito Internacional (CDI) da ONU; de outro, os quatro países implicados na posse de partes do domínio do Aqüífero trataram de negociar um regime jurídico comum, que pudesse inclusive ser proposto como modelo à CDI. Se esta não o referendasse, poderia mesmo assim ser considerado como solução válida em âmbito regional. A CDI foi encarregada de elaborar um novo texto sobre um assunto específico de relações interestatais: os recursos líquidos compartilhados entre Estados. O tema faz parte do estudo encomendado à CDI sobre os recursos naturais líquidos transfronteiriços, petróleo, gás e água. Já se chegou ao esboço de um texto6, cuja versão definitiva ainda poderá demorar anos e, eventualmente, nunca ser ratificado por um número suficiente de Estados para tornar-se tratado internacional, com disposições juridicamente obrigatórias. Essa desventura ocorreu com a Convenção sobre o direito relativo aos usos dos cursos de água internacionais para fins diversos da navegação, dita Convenção de Nova Iorque (1997)7. Esse texto foi reputado impróprio para os problemas específicos das jazidas líquidas. A observação está tecnicamente acertada e politicamente fora do contexto. A Convenção de Nova Iorque exigiu mais de um quarto de século de esforços e está aguardando as 35 ratificações que a tornariam tratado efetivo; mal chegou a 13, em uma década de espera. Num contexto em que a água passou

4 BRASIL. Constituição Federal, Art 176 e incisos. Ed. RT. São Paulo, 2000. 5 Ver www.meioambiente.pro.br/ agua/guia/aguamineral.htm 6 Trabalhos da 58ª Sessão da CDI (junho de 2006). Títulos e textos dos rascunhos de artigos adotados pelo Comitê de Redação em primeira leitura: U.N. Doc. A/CN.4/ L.688, 7 junho de 2006. 7 Versão em francês: Nations Unies. Assemblée Générale. A/ RES/51/229, 8 juillet 1997. Convention sur le droit relatif aux utilisations des cours d’eau internationaux à des fins autres que la navigation. Resolução adotada pela AG da ONU em 21/5/1997. Texto em português: CAUBET, Christian Guy. A água doce nas relações internacionais. Bauru (SP): Manole. p. 195-213.

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a ser considerada um recurso econômico, os Estados não ratificam um texto que traria obrigações que eles não querem assumir, mormente se estão a montante dos cursos d’água internacionais: posição hidropolítica em que eles controlam a situação e praticamente todas as demandas de água, inclusive em relação aos Estados situados a jusante. É provável que as obrigações introduzidas no projeto de artigos elaborado pela CDI tornem o texto repulsivo para os membros da ONU que possuem interesses hídricos subterrâneos “compartilhados” com outros Estados. A noção de interesses hídricos compartilhados já ensejara importante polêmica entre os países ribeirinhos da Bacia do Prata, na oportunidade da construção da barragem de Itaipu. As interpretações acertadas na região, ao cabo de muitas negociações, consolidaram percepções pragmáticas em relação a noções como informação prévia e prejuízo sensível, que polarizaram as distintas posições dos Estados envolvidos. É provável que a definição de interesses nacionais, em relação ao problema específico dos recursos subterrâneos, levaria a adotar idênticas posições de prudência. Informações disponíveis a respeito do esboço de um texto comum dos quatro países interessados no Aqüífero Guarani indicam que os eixos principais de negociação giram em torno dos princípios mais tradicionais possíveis: respeito às respectivas soberanias, uso nacional liberado sob condição de não provocar prejuízo sensível, informações prévias reduzidas para preservar a liberdade de iniciativa. Globalmente, os quatro países concordam (Decisão do Conselho do Mercosul de 07/07/ 04, de criar um Grupo sobre o Sistema Aqüífero Guarani) em considerar como nova a problemática que envolve o Aqüífero; portanto, devese elaborar um regime jurídico diferente do que existe para outros tipos de recursos hídricos, numa atitude de respeito às normas internacionais pertinentes já em vigor. Nesse contexto, os representantes dos Estados envolvidos preconizaram a adoção de considerações ou princípios objetivando realizar o consenso em torno das seguintes referências: os recursos hídricos transfronteiriços integram os domínios nacionais respectivos dos Estados Partes; cada um usa as águas para si, sem causar prejuízo para os demais, sem provocar contaminações, em função de considerações de razoabilidade; os quatro colaboram para melho-

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rar e alcançar a sustentabilidade; os países também deverão manter um nível apropriado de informação entre eles, em particular considerando a eventual participação de instituições internacionais que estiverem envolvidas; áreas críticas específicas poderão receber tratamento especial; eventuais atividades de conservação e monitoramento seriam definidas conjuntamente, sem que, em princípio, se acatasse a priori a idéia de um condomínio entre os quatro ou se preconizasse mais uma burocracia internacional específica. O fio condutor do raciocínio é o de preservar o aqüífero, reservando-o para usos decididos nos respectivos âmbitos nacionais dos Estados participantes. Essa é a solução mais tradicional possível e não dá garantia alguma de que haverá empenho em resolver problemas “bi” ou multilaterais com base nas exigências do Direito Internacional voltado para a preservação do meio ambiente em âmbito regional. Em outras palavras, as conseqüências mais prováveis das considerações citadas são de encaminhar as condições regionais para o tipo de contexto que se verifica concretamente no caso das fábricas de celulose que trouxeram o relacionamento bilateral entre Argentina e Uruguai (na oportunidade da 26ª Cúpula Ibero-americana, no início de novembro de 2006) a um ponto de elevada tensão8. Isso dá uma idéia do que poderá surgir de conflitos, pois se estes aparecem mesmo quando há instituições e normas, sua solução depende excessivamente da pura política bilateral quando as instituições não existem e a participação dos envolvidos não está objetivamente organizada.

4. As instituições brasileiras e a participação na gestão das águas 4.1. Definições e ambiguidades As carências de participação nas opções de uso da água, a começar pela definição dos/as gestores/as, podem ser melhor apreendidas a partir das reivindicações formuladas no Fórum Social Mundial. No âmbito das reuniões e dos esforços contínuos dos/as participantes do Fórum, a água é um problema de cidadania e de democracia: a gestão integrada sustentável e solidária da água é domínio das democracias participativa, representativa e direta. A complexidade do assunto ultrapassa as competências e os conhecimentos dos/as técnicos/as, dos/ as engenheiros/as ou dos/as banqueiros/as. O/a


consumidor/a (pagador/a e não-pagador/a) tem um papel importante a desempenhar em função de suas opções, dentro de práticas norteadas pelos princípios de uma economia e de uma sociedade sustentáveis. Os requisitos de gestão descentralizada e transparente devem ser aplicados em todos os âmbitos de tomada de decisão: aldeias, cidades, aqüíferos, bacias, regiões. As práticas locais e tradicionais devem ser respeitadas e resgatadas. A noção de parceria é fundamental para realizar a gestão de maneira eficaz e amistosa. A prevalecer uma parceria meramente formal, submetida aos interesses dos atores privados motivados pela competição voltada para a conquista de mercado, seria inevitável que a água fosse reconhecida como um bem econômico e comercial. Isso prejudicaria os objetivos de acesso à água para todos e de sua gestão integrada. Garantir o acesso à água para a satisfação das necessidades elementares da vida de toda pessoa e das comunidades humanas é uma obrigação da sociedade no seu conjunto. É a sociedade que deve assumir coletivamente, por meio de uma tarifa justa para o consumo, o conjunto dos custos relativos à coleta, ao tratamento, à distribuição, à conservação, à estocagem, à utilização, ao re-aproveitamento da água e à disposição final dos resíduos, bem como determinar quais são as quantias e a qualidade indispensáveis para os integrantes da comunidade. O conjunto dos custos inclui as externalidades negativas, que não são consideradas pelos preços de mercado. Esses custos são sociais e coletivos e devem ser divididos entre todos/as os/as integrantes da coletividade. Os mecanismos de tarifação individual e a progressividade eventual dos preços só podem ser determinados para quantidades de água que ultrapassem o mínimo vital indispensável à sadia manutenção das condições de vida. Para efeito da preservação das condições de sobrevivência humana, deve-se considerar a quantidade mínima de 50 litros de água potável gratuita por dia e por pessoa, colocados à disposição no lugar do consumo, como indicam estudos fidedignos da Organização das Nações Unidas: “Suficiência: o abastecimento de água para cada pessoa deve ser suficiente e regular para as necessidades individuais diárias. Uma quantidade suficiente de água deveria normalmente chegar a 50 litros, ou ao nível mínimo essencial (cerca de 20 litros)”.9 Também devem ser lembrados os solenes engajamentos da Agenda 21, quando houve, em 1992, no Rio de Janeiro, um apelo universal para providenciar água para as populações humanas do mundo inteiro: “18.58. Todos os Estados, segundo sua capacidade e recursos disponíveis, e por meio da cooperação bilateral ou multilateral, inclusive com as Nações Unidas e outras organizações pertinentes, quando apropriado, podem estabelecer as seguintes metas: (a) Até o ano 2000, garantir que todos os residentes em zonas urbanas tenham acesso a pelo menos 40 litros per capita por dia de água potável e que 75 por cento da população urbana disponha de serviços de saneamento próprios ou comunitários; (b) Até o ano 2000, estabelecer e aplicar normas quantitativas e qualitativas para o despejo de efluentes municipais e industriais; (c) Até o ano 2000, garantir que 75 por cento dos resíduos sólidos gerados nas zonas urbanas sejam recolhidos e reciclados ou eliminados de forma ambientalmente segura. Além do mínimo vital, as tabelas de preço devem ser progressivas e

8 Para o contexto do problema: ARBUET-VIGNALI, Heber; BARRIOS, Luis. Chimeneas en Fray Bentos. De un ámbito local a una proyección globalizada. Investigación realizada en el marco de la Red Alfa Latino Americana Europea para el Gobierno de los Riesgos. Montevideo: arca. 2006. p. 189 9 UNITED NATIONS. Economic and Social Council. Committee on Economic, Social and Cultural Rights. 29th Session. Geneva, 11-29 November 2002, p. 2

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considerar a quantidade utilizada. Os excessos e abusos de consumo ou de outra utilização devem ser devidamente penalizados.” É dentro desses parâmetros que se pode evocar um direito à água. Entretanto, para que esse direito não seja mais um “direito a” 10, para enfeite e declarações voltadas para marketing político ou como um direito fadado a permanecer letra morta, ele só pode existir se nascer com as garantias de que os poderes públicos devem assumir suas obrigações de respeito, de proteção e de implementação. Assim, não há reivindicação de um “direito a”, na mesma perspectiva dos tradicionais (e ainda irrealizados) direitos à saúde, ao emprego, à segurança pessoal, ao trabalho, etc. Pretende-se exigir a garantia de fornecimento da quantidade de água necessária à subsistência dos seres humanos. Com esse escopo, a sociedade organizada exige que o Estado assuma três obrigações precisas: A obrigação de respeito - os Estados-Partes devem deixar de interferir na fruição do direito de beber água. Isso determina que não pode haver práticas ou atividades que limitem o acesso igual à água, que contribuam para sua poluição ou a diminuição dos estoques, inclusive como medida punitiva. A obrigação de proteção - requer do Estado que ele impeça outras Partes de interferir no gozo da água potável. As autoridades devem controlar todas as atividades, públicas ou privadas, que poderiam ter o efeito de negar o acesso à água ou de poluir águas por motivo de atividades industriais ou pela sua extração. A obrigação de implementação - obriga o Estado a adotar todas as medidas necessárias para garantir a plena realização do direito de se beneficiar com água potável. O direito à água deve ser objeto de adoção das necessárias normas legais e de planos de ação que objetivem promover o direito, em condições econômicas suportáveis por todas as pessoas. Essas concepções e exigências relativas à água são diametralmente opostas às da reforma ultraliberal, que serviu de modelo ao conjunto de normas elaboradas, no Brasil, a partir da Lei 9.433/97. A mercantilização (fazer da água mercadoria ou commodity), a privatização, a desregulamentação e a renormatização, bem como diversas modalidades de deslocalização, são as características da política preconizada sob a égide dos grandes estados-maiores mun-

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diais da água: as firmas privadas e os lobbies, geralmente patrocinados por políticas públicas. A atuação desses grupos de pressão é tão marcante e seu entrosamento ideológico tão acentuado, que seus documentos chegam a ser diretamente aproveitados como referências-padrão em diversos países, como é o caso da Tool Box., lançada pela Global Water Partnership que se tornou documento de trabalho do Ministério do Meio Ambiente do Brasil.11 A Global Water Partnership (GWP) autodefine-se como uma: “rede internacional aberta a todas as organizações envolvidas com a gestão dos recursos hídricos: organizações governamentais, agências das Nações Unidas, bancos de desenvolvimento bilaterais e multilaterais, associações profissionais, instituições de pesquisa, organizações não-governamentais e o setor privado.”12 Entretanto, as organizações não-governamentais foram excluídas de suas reuniões e esforços. 4.2. Os aspectos legais no Brasil 4.2.1. Parâmetros de participação É preciso identificar, no texto da lei, as condições de participação de diversos segmentos da sociedade na gestão da água. O enfoque é relativo ao significado político das condições estabelecidas pelos textos legais que lidam especificamente com a definição da participação. Eles promovem a cidadania? Incentivam o entrosamento entre diversos setores da sociedade? Quais são os/as parceiros/as que são apontados/as como capacitados/as para tomar decisões em matéria de recursos hídricos? A análise deve privilegiar a designação de agentes e insistir sobre a legitimidade – ou não das representações. Deve-se evocar a representatividade dos segmentos que participam nos Comitês de bacia. Faz-se necessário realizar uma indagação pormenorizada sobre esse assunto, em razão de vários equívocos específicos constantemente encontrados em relação às modalidades de participação nas decisões ou à própria noção ou concepção de participação. Diante do quadro global desfavorável em relação às questões de qualidade e de quantidade de recursos hídricos disponíveis, muitas pessoas pensam que, em função da alegada incapacidade do setor públi-


co de providenciar o que deve à população, haverá em breve grandes oportunidades de mancomunar os esforços de todos/as os/as interessados/as no âmbito de uma instituição única e especializada. Tudo poderia ser resolvido pela participação de todos/as em um Comitê de Bacia Hidrográfica (CBH). Essa impressão está reforçada pelo argumento segundo o qual a criação dos CBH inspirou-se em um modelo evocado como democrático, tão democrático que está geralmente referido como “Parlamento da Água”. Essa é a expressão que se costuma usar para qualificar a natureza reputada “participativa” dos CBH franceses. Entretanto, a análise pormenorizada dos textos que regulamentam os CBH indica que a participação não deverá ser de todos/as, a não ser de maneira nominal. No Brasil, as categorias de participantes são taxativamente enumeradas e verifica-se que a lei garante 80% do espaço para duas categorias de representantes: a) os dos poderes públicos que emanam do poder político executivo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios (40 % do total); b) os das atividades econômicas (outros 40%) que correspondem aos usos reputados dominantes e são chamados de usuários. Os que pensam que a sociedade civil deverá ter alguma influência associada a um poder de decisão real, haverão de constatar que o conceito de sociedade civil recebe uma aplicação numérica mais do que modesta (20% do total de participantes), nas definições da lei. O aspecto quantitativo deve ser complementado por uma análise qualitativa: as ONGs e outras entidades deverão ter características de Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP)? Cabe mais uma pergunta: quem está identificado com a sociedade civil teve alguma possibilidade de opinar, já nas definições das instituições que deverão gerir as águas brasileiras? Quem decide sobre o fato de pertencer à sociedade civil? As categorias de usuários são imanentes: sua existência pode ser comprovada por leis físicas? Neste último caso, a própria prática ensinou que a resposta é negativa. A lei criou seis categorias de usuários, mas a pressão de interesses econômicos particulares tratou de incluir mais uma: a dos mineradores. Essa inclusão parece acertada: o impacto da mineração sobre os recursos hídricos certamente justifica a criação dessa categoria de usuários. Mas isso comprova, se houver necessidade, que a definição dos usuários é um processo de natureza política. Ocorre que o assunto não foi objeto de nenhum debate político compatível com sua relevância. A Resolução nº 5 e outras normas elaboradas pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) não podem indicar solução para os rios de domínio dos Estados, pois a competência de indicação dos critérios, para estes rios, é dos Estados, e não do CNRH. Entretanto, a Resolução nº 5 configura uma série de disposições que deverão ser seguidas em várias legislações estaduais. Isso poderá acontecer, mesmo que algumas normas estaduais já incluam dispositivos mais democráticos que a Resolução nº 5. 4.2.2. Usuário e consumidor Duas palavras chamam a atenção: usuários/as e consumidores/as. No sistema francês, qualquer pessoa física ou jurídica que usa a água para qualquer finalidade é uma usuária. Portanto, a qualidade de usuário/a não identifica apenas um agente econômico, à diferença do sistema brasileiro. Por outro lado, a palavra consumidor/a não foi utilizada, uma

10 UNITED NATIONS. Economic and Social Council. Committee on Economic, Social and Cultural Rights. 29th Session. Geneva, 11-29 November 2002, p. 5 11 GLOBAL WATER PARTNERSHIP – GWP. Tool Box: gestão integrada de recursos hídricos. Tradução de Debra Ann Hochstetler de Mesquita sob a responsabilidade da Secretaria de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente e do Comitê Organizador Nacional do IV Diálogo Interamericano de Gerenciament de Águas. Brasília: Secretaria de Recursos Hídricos – MMA, 2002. p. 199 12 Idem, p. 12

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vez sequer, em nenhum dos textos que regem o regime jurídico da água a partir da Lei 9.433. No Brasil, do ponto de vista jurídico, o/a consumidor/a direto/a de água potável distribuída por intermediário/a não existe. A pessoa que consome a água, captada na torneira de sua pia, não é consumidora do ponto de vista da legislação específica de recursos hídricos. A lei nunca cita essa pessoa, nem como agente econômico, nem como utilizadora ou usuária da água, nem como consumidora. A pessoa jurídica que capta, trata e distribui a água é um usuário, no sentido da lei e das categorias que ela cria. Quem bebe água da torneira deverá recorrer ao Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8078/ 90) se for lesado nos seus interesses específicos de cliente de uma distribuidora. 4.2.3. O Comitê de Bacia Hidrográfica 4.2.3.1. A composição do CBH A composição dos CBH integra cinco categorias de representantes (art.39 da Lei 9.433), que são os: I - da União; II - do Distrito Federal e dos estados cujos territórios se situem, ainda que parcialmente, em suas respectivas áreas de atuação; III - dos municípios situados, no todo ou em parte, em sua área de atuação; IV- dos usuários das águas de sua área de atuação; V das entidades civis de recursos hídricos com atuação comprovada na bacia. A representação do conjunto dos representantes dos poderes executivos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios (categorias I a III) está limitada à metade do total de membros (art. 39, § 1º) e deverá obedecer ao limite de 40% do total de votos no CBH (art. 8º, I, da Resolução nº 5 do CNRH, de 10 de abril de 2000). As categorias IV e V são constituídas pelos seguintes elementos: Categoria IV - com 40% do total de votos no CBH, abrange os usuários - são pessoas físicas ou jurídicas que, no intuito de realizarem suas atividades, dependem da outorga de um direito de uso de recursos hídricos. Os “setores usuários”, definidos pelo art. 14 da Resolução nº 5, sem emenda, neste caso, no art. 8º da Resolução nº 24 do CNRH, de 24 de maio de 2002 13, são os de: a) abastecimento urbano, inclusive diluição de efluentes urbanos; b) indústria, captação e diluição de efluentes industriais;

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c) irrigação e uso agropecuário; d) hidroeletricidade; e) hidroviário; f) pesca, turismo, lazer e outros usos não consuntivos. Categoria V - com um mínimo de 20% do total dos votos do CBH, são as entidades civis de recursos hídricos com atuação comprovada na bacia. São evocadas no art. 47 da Lei 9.433, que considera as entidades civis “legalmente constituídas” (art. 48) na seguinte forma: I consórcios e associações intermunicipais de bacias hidrográficas; II - associações regionais, locais ou setoriais de usuários de recursos hídricos, inclusive as que representam “usuários de águas que demandam vazões ou volumes de águas considerados insignificantes” (art. 15º da Resolução nº 5); III - organizações técnicas e de ensino e pesquisa com interesse na área de recursos hídricos; IV - organizações não-governamentais com objetivos de defesa de interesses difusos e coletivos da sociedade; V - outras organizações reconhecidas pelo Conselho Nacional ou pelos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos. A repartição definitiva das categorias de membros e de votos, uma vez juntados os/as representantes dos poderes executivos das três instâncias da federação, que compõem uma categoria única para efeito de representação e de votação no CBH, efetua-se da maneira seguinte: a) os membros dos poderes executivos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios podem somar até a metade dos membros e ter até 40% dos votos; b) os/as representantes de entidades civis, em número proporcional à população residente no território de cada estado e do Distrito Federal, com pelo menos 20% do total de votos; c) os/as representantes dos/as usuários/as dos recursos hídricos, cujos usos dependem de outorga, obedecido o percentual de 40% do total de votos. Ainda vale a pena assinalar que as representações definitivas, nos CBH de rios de domínio da União, dependerão de “articulação” en-


tre a União, os estados e, eventualmente, do Distrito Federal, sob a égide do presidente interino (provisório) do CBH, para designar seus respectivos representantes. Também deverá realizar-se o processo de escolha, entre pares, dos/as representantes de outras duas categorias: municípios e entidades civis de recursos hídricos com atuação comprovada na bacia. Finalmente, serão credenciados/as os/as representantes das categorias de usuários. Todas essas operações serão realizadas em processo público, com ampla e prévia divulgação (art. 11 da Res. 05), podendo as entidades civis referenciadas serem qualificadas como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs). 4.2.3.2. Os trâmites para a proposta de instituição de um CBH Deve-se apresentar as pessoas que têm legitimidade para encaminhar a proposta, antes de referir as condições a serem preenchidas e, finalmente, as modalidades práticas de operacionalização do CBH. As pessoas legitimadas para apresentar proposta, conforme estipula o artigo 9º da Resolução 05, são: A proposta poderá ser encaminhada ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos se subscrita por representantes de pelo menos três das seguintes categorias: I - Secretários de Estado responsáveis pelo gerenciamento de recursos hídricos de, pelo menos, dois terços dos Estados contidos na bacia hidrográfica respectiva, considerado, quando for o caso, o Distrito Federal; II- Prefeitos Municipais cujos municípios tenham território na bacia hidrográfica no percentual de pelo menos quarenta por cento; III- entidades representativas de usuários, legalmente constituídas, de pelo menos três dos usos indicados nas letras “a” a “f”, do art 14o desta Resolução, com no mínimo cinco entidades; e IV- entidades civis de recursos hídricos, com atuação comprovada na bacia, que poderão ser qualificadas como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, legalmente constituídas, com no mínimo dez entidades, podendo este número ser reduzido, a critério do Conselho, em função das características locais e justificativas elaboradas por pelo menos três entidades civis. Resumindo, as condições e exigências expostas, pode-se dizer que, para pleitear a instituição de um CBH ao CNRH, deve-se reunir: 2/3 dos Secretários de Recursos Hídricos dos estados da Bacia; 40% dos prefeitos municipais da bacia; entidades de usuários, representando pelo menos três dos usos indicados no art. 14º da Res. 05 e pelo menos 10 entidades civis com atuação comprovada na bacia, legalmente constituídas, mas podendo este número ser reduzido, desde que haja justificativa e anuência do CNRH. 4.2.3.3. Os requisitos relativos ao conteúdo da proposta Não deverá ser muito fácil reunir, e sobretudo unir, as pessoas listadas pela norma legal. Depois de reunidas, ainda deverão cumprir requisitos materiais relativos à bacia e definidos pelo art. 10º da Resolução 05: “Constará, obrigatoriamente da proposta a ser encaminhada ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos, de que trata o art. anterior, a seguinte documentação: I - justificativa circunstanciada da necessidade e oportunidade de criação do Comitê, com diagnóstico da situação dos recursos

13 BRASIL. MMA/SRH. Recursos hídricos. Conjunto de normas legais. Brasília: Secretaria de Recursos Hídricos. 2002. p 110.

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hídricos na bacia hidrográfica, e quando couber identificação dos conflitos entre usos e usuários, dos riscos de racionamento dos recursos hídricos ou de sua poluição e de degradação ambiental em razão da má utilização desses recursos; II - caracterização da bacia hidrográfica que permita propor a composição do respectivo Comitê de Bacia Hidrográfica e identificação dos setores usuários de recursos hídricos[...]; III- indicação da Diretoria Provisória; e IV - a proposta [formal, endereçada ao CNRH].” A formulação do inciso I apresenta uma espécie de inversão do ônus da prova, em relação à necessidade de criar um CBH. Com efeito, está muito difundida, em todo o país, a sensação de que há urgência em implementar a política nacional de recursos hídricos, em função da degradação generalizada que caracteriza parte significativa do território nacional. Dever-se-ia, portanto, incentivar e facilitar a tramitação dos pedidos, a partir de uma presunção legal generalizada de situação preocupante, deixando-se como possíveis exceções os casos/bacias em que não houvesse necessidade de organizar um CBH. Ainda mais por que, a priori, não haverá nenhum motivo para que “os felizes habitantes de uma bacia sem problema” apresentem um pedido de criação de um CBH, de que eles podem prescindir. Entretanto, a Resolução 05, pelas exigências que formula, tornará difícil a superação dos passos iniciais. No contexto político-cultural nacional, poderá não ser fácil reunir os/as responsáveis e formular um diagnóstico mínimo, do qual dependem diversas dimensões do êxito futuro das instituições a serem criadas. Mas deve-se convir que o objetivo pode ser justamente o de favorecer a iniciativa de autoridades públicas e não de outras categorias de participantes eventuais. 4.2.3.4. A operacionalização da proposta Depois de examinada pelo CNRH, e se for aprovada, a proposta será efetivada mediante decreto do presidente da República. Caberá ao Secretário-Executivo do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, no prazo de 30 dias, dar posse aos respectivos presidente e secretários interinos, com mandato de até seis meses, com incumbência exclusiva de coordenar a organi-

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zação e instalação do Comitê. Em até cinco meses, contados a partir da data de sua nomeação, o presidente interino deverá realizar, conforme o artigo 11 da Resolução 5: • a articulação com os Poderes Públicos, para indicação de seus respectivos representantes; • a escolha, por seus pares, dos/as representantes dos municípios e dos/as representantes das entidades civis de recursos hídricos com atuação comprovada na bacia; e • o credenciamento dos/as representantes dos usuários de recursos hídricos. Em até seis meses, contados a partir da data de sua nomeação, o presidente interino deverá realizar (art. 12 da Resolução 05): • a aprovação do regimento do Comitê; e • a eleição e posse do presidente e do secretário do Comitê. O presidente eleito do Comitê de Bacia deve registrar seu regimento no prazo máximo de 60 dias, contados a partir de sua aprovação. O estatuto legal dos CBH foi examinado. Do conjunto de suas disposições, não há como inferir a existência de um princípio de subsidiariedade que constituiria um fio condutor democrático para a ação política. Essa avaliação está confirmada quando se examina o conjunto de disposições mais democráticas que foram retiradas do texto original da Lei, mercê de 13 vetos oriundos da Presidência da República. 4.2.3.5. A área geográfica e as competências do CBH Pelo artigo 37 da Lei 9.433, os Comitês de Bacia Hidrográfica terão como área de atuação: I - a totalidade de uma bacia hidrográfica; II – a sub-bacia hidrográfica de tributário do curso de água principal da bacia, ou de tributário desse tributário; ou III – o grupo de bacias ou sub-bacias hidrográficas contíguas. Parágrafo único. A instituição de Comitês de Bacia Hidrográfica em rios de domínio da União será efetivada por ato do presidente da República. Os imperativos operacionais de gestão poderão levar as autoridades administrativas a efetuar recortes espaciais não-coincidentes com a área da bacia stricto sensu, unindo-se áreas de drena-


gem de afluentes de rios principais. Mesmo assim, as referências territoriais continuam sendo as dos divisores de águas, em função de áreas de drenagem que circundam os rios principais, ou os rios principais e seus afluentes principais e secundários. A Resolução CNRH nº 30, de 11/12/2002, resolveu “adotar, para efeito de codificação de bacias hidrográficas no âmbito nacional, a metodologia descrita no Anexo I” da própria Resolução. O Anexo I apresenta o método de subdivisão e de codificação de bacias hidrográficas, desenvolvido pelo Engenheiro Otto Pfaffstetter. 14 Conforme o artigo 38 da Lei 9.433, compete aos Comitês de Bacia Hidrográfica, no âmbito de sua área de atuação: “I - promover o debate das questões relacionadas a recursos hídricos e articular a atuação das entidades intervenientes;” O CBH tem um papel genérico, de ordem política, de fomento de debates e de integração entre as entidades que possuem competências em matéria de recursos hídricos. A noção de “articulação”, cujas conotações imprecisas já foram assinaladas, parece mais viável no âmbito de um órgão que teria de intervir para organizar as atividades ou distribuir atribuições a seus próprios membros. “II - arbitrar, em primeira instância administrativa, os conflitos relacionados aos recursos hídricos;” A função de arbitragem enseja muitas dúvidas. Como a Lei 9.433/97 não poderia criar um novo grau de jurisdição, essa competência “em primeira instância administrativa”, do Comitê, só resultará em decisões de caráter efetivo na medida de seu aceite pelos próprios membros. Caso uma das partes não esteja satisfeita com a solução indicada pelo CBH, ela poderá recorrer ao Conselho superior, se houver, ou iniciar um processo na justiça comum. As modalidades dessa arbitragem serão objeto de disposições regimentais dos CBH, já que são medidas de ordem administrativa. A efetividade dessa instituição é uma importante incógnita na equação de resolução de conflitos. “III - aprovar o Plano de Recursos Hídricos da bacia;” Essa é uma prerrogativa importante e uma das poucas que, no rol de competências do CBH, parecem ter um caráter realmente deliberativo. O conteúdo dos Planos de Recursos Hídricos envolve muitas decisões relevantes. “IV - acompanhar a execução do Plano de Recursos Hídricos da bacia e sugerir as providências necessárias ao cumprimento de suas metas;” Essa redação é ambígua e restritiva. Parece relativizar a competência formulada no inciso anterior. Se o CBH possui competência para aprovar o Plano de Recursos Hídricos, seria lógico estatuir sua competência para acompanhar a execução desses Planos não apenas com sugestões de providências, mas com o mesmo poder de decisão em casos de desvios na execução. Entretanto, é o agente de implementação (a Agência de Água) que deverá efetivar os Planos. O motivo para justificar essa dicotomia de competência é o fato de que, com a reforma administrativa empreendida até o final de 2002, a competência para a execução haveria de estar em

14 BRASIL. MMA/SRH. Recursos hídricos. Conjunto de normas legais. Brasília: Secretaria de Recursos Hídricos. 2002. p. 119-124.

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mãos distintas da competência de concepção e de deliberação (Ver veto presidencial ao inciso III do § 4º, infra). “V - propor ao Conselho Nacional e aos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos as acumulações, derivações, captações e lançamentos de pouca expressão, para efeito de isenção da obrigatoriedade de outorga de direitos de uso de recursos hídricos, de acordo com os domínios destes;” Os usos das águas que o CBH considerar insignificantes, em matéria de estocagem, consumo e poluição dos recursos hídricos, ainda serão considerados pelos órgãos hierarquicamente superiores, que deverão confirmar sua existência. Evocar, nesse caso, uma isenção de obrigatoriedade de outorga não é uma expressão feliz, pois poderá ser interpretada como a constituição de um direito adquirido. Ocorre que, num futuro pouco distante, um conjunto de usos outrora reputados insignificantes poderá constituir-se em uso relevante, a ser considerado para estabelecer um Plano de Recursos Hídricos. Mas os/as titulares de tais direitos de usos insignificantes poderão alegar que obtiveram isenções concedidas por dois órgãos administrativos distintos, um dos quais superior ao que pretende eventualmente revogar a isenção de outorga. “VI - estabelecer os mecanismos de cobrança pelo uso de recursos hídricos e sugerir os valores a serem cobrados;” O CBH deverá estabelecer mecanismos de cobrança, em função de padrões ou tabelas já definidos em diversas instâncias. Só poderá sugerir os valores de cobrança, fato que diminui seriamente, outra vez, sua autonomia. “VII e VIII - (VETADOS) IX - estabelecer critérios e promover o rateio de custo das obras de uso múltiplo, de interesse comum ou coletivo.” Caberá ao CBH calcular como distribuir os custos de investimentos de obras que tenham uso múltiplo, isto é, que sirvam para mais de uma categoria de usuários. “Parágrafo único. Das decisões dos Comitês de Bacia Hidrográfica caberá recurso ao Conselho Nacional ou aos Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos, de acordo com sua esfera de competência.”

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Essa disposição é importante, pois ela explicita que o CBH não é um órgão deliberativo, no sentido de tomar decisões definitivas. Nem a decisão de aprovar o Plano de Bacia constitui prerrogativa exclusiva dos Comitês. Isso significa que os Comitês deverão curvar-se a muitas pressões externas ou internas, de setores que tentarão induzir tratamentos privilegiados de suas demandas e que poderão conseguir intervenções recursais, por parte de diversas autoridades.

5. Considerações finais A gestão das águas transfronteiriças, quer sejam de superfície ou subterrâneas, requer um esforço especial por parte dos/as integrantes do Poder Legislativo. Com efeito, constitucionalmente responsável de maneira exclusiva pela adoção final das normas internacionais, o Poder Legislativo depende do Poder Executivo para sua celebração. Ora, são excessivas as possibilidades de encaminhamento de normas que consolidem as iniciativas unilaterais, numa área que necessita de cooperação para superar notável potencial de conflitos. Se os grandes princípios são proclamados e constantemente evocados, as pressões indevidas e os conflitos também se manifestam com freqüência. Aliás, não haveria necessidade de proclamar princípios, se não fosse pela existência de conflitos. Essa característica é comum a todos os usos da água doce. A evolução, de 1815 a 2006, tende, no entanto, a revelar a exacerbação de conflitos. O direito de usar um rio para navegar ou para produzir energia não possuía tanto impacto para a vida das pessoas como os usos das águas para a irrigação ou o consumo doméstico direto. A água se tornou uma substância tão vital que, sobre ela, incidem fatores nunca dantes pensados, e possibilidades de conflitos da maior gravidade. O fator de escassez absoluta, e não apenas relativa, surge por causa de um elemento cuja relevância só é levada em consideração a partir da década de 1960: o meio ambiente. De fator gratuito de produção e externalidade econômica, os recursos hídricos passam a ser objeto de competição e de concorrência. Isso se dá tanto no que diz respeito aos usos entre si, como no que tange à prioridade da dessedentação e da alimentação humana. Por outro lado, existem visíveis discrepâncias entre as soluções jurídicas adotadas pelos quatro países interessados no Sistema Aqüífero


Guarani (SAG) – Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai - quando se consideram as opções nacionais, internas. Essas opções revelam atitudes que poderão chegar a ser incompatíveis entre si. A lei brasileira afirmou a dominialidade pública da água como recurso escasso com valor econômico, cuja importância social não foi afirmada com a mesma determinação. A Bolívia, inconformada com a maneira como as forças do mercado deixaram de trazer soluções, reafirmou objetivos de gestão no âmbito de princípios de serviço público universal. A participação dos/as usuários/ as ou dos/as consumidores/as, sempre proclamada na retórica, não costuma se traduzir em disposições legais efetivamente implementadas. Finalmente, existem problemas estruturais não resolvidos, que tendem a avolumar os desafios futuros. A Lei federal brasileira nº 9.433/97, cujo décimo aniversário corresponde à data de 8/1/07, parece trazer os elementos da solução da crise da água, ao promulgar fundamentos e diretrizes adequados para lidar com os problemas acumulados. As normas de implementação e decisões operacionais adotadas após a aprovação da lei, entretanto, promovem prioritariamente os parâmetros da mercantilização e da privatização da água, num quadro global de centralização das decisões em âmbito federal. A outorga de direitos de uso ofusca outros aspectos da política nacional que deveriam ter uma prioridade absoluta para surtir efeitos a médio e longo prazos. É o caso dos cadastros, dos programas de formação de quadros administrativos ou de uma polícia administrativa especializada e condizente com os desafios da temática. A Lei 9.433/97 não é o Código Ambiental dos Recursos Hídricos. Deste a sociedade brasileira já precisava desesperadamente quando a lei foi adotada. Sua preocupação essencial é tratar, com visão economicista, as questões da gestão e da apropriação das funções da água, através do controle do acesso aos recursos. A gestão, numa época proclamada de “dever de abstenção econômica do Estado”, está entregue ao Estado, sob cuja batuta se organizam os usuários, agentes econômicos que disputam, entre si, as funções da água-insumo-de-produção: dessedentação; produção de energia; navegação; insumo para consumo na indústria; corpo receptor de resíduos e sobras de toda natureza. O fato de a questão ambiental ser considerada de maneira apenas adjetiva explica que já sejam operacionais os mecanismos de gestão para consumo, sem que existam as correspondentes salvaguardas institucionais a garantirem, simultaneamente, o desenvolvimento sustentável desta geração e das gerações futuras. Nessas condições, várias disposições legais estabelecem condições objetivas de um confisco dos recursos hídricos, em favor da gestão economicista dos problemas. Esse parti pris explica amplamente que a noção de participação, várias vezes proclamada como uma característica da nova lei, se traduza, na realidade das relações criadas, por diversas modalidades de exclusão. Estar presente não significa participar. Quem participa é o usuário, agente econômico que exerce a pressão majoritária no processo. A/o cidadã/o, agente político da sociedade civil, é minoritário/a. O/a ambientalista, agente perturbador, é excluído/a. A presença nominal da/o cidadã/o e do/a ambientalista, entretanto está garantida: sem ela, não haveria como fazer marketing político ou ambiental. No âmbito dos recursos hídricos transfronteiriços, a situação tende a piorar, pois não existem mecanismos específicos para levar em consideração as necessidades locais, que geralmente precisam de soluções localmente integradas, enquanto as práticas burocráticas e políticas costumam remeter para as autoridades centrais. A análise dos textos adotados evi-

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dencia um conjunto de ambigüidades na dimensão política dos Comitês de Bacia Hidrográfica; mais ainda se estes forem dedicados à gestão de um curso d´água de domínio da União. A lei criou novas entidades, de caráter administrativo, abertas à presença de representantes de associações civis de recursos hídricos e de usuários/as. Usa-se a palavra presença, não participação, a partir de um ponto de vista que considera a possibilidade de influir efetivamente na tomada de decisão. Apesar da aritmética muitas vezes usada para demonstrar, retoricamente, que os CBH são democráticos (40% de membros dos poderes executivos + 20% de representantes da sociedade civil = 60% do poder de decisão, em relação aos 40% dos usuários), deve-se refletir para indagar o que poderão fazer os 20 % da sociedade civil, no CBH, face aos 80% de representantes dos poderes políticos executivos e dos agentes econômicos. Em certos Estados, como o Paraná, a legislação transformou as possibilidades de participar em simples caricatura de debate; além do que ela isentou os criadores de gado da obrigação de pagar pela água que usam como insumo de sua produção, gerando assim uma quebra de isonomia que evidencia o potencial de inconstitucionalidade das decisões estaduais. Sem dúvida alguma, os desafios da gestão da água, transfronteiriça ou não, continuam imensos. O atraso de nossas sociedades em relação à adoção de soluções estruturais requer uma conscientização urgente das instâncias de elaboração normativa e das de decisão e de implementação de políticas públicas.

6. Bibliografia ARBUET-VIGNALI, Heber; BARRIOS, Luis. Chimeneas en Fray Bentos.de un ámbito local a una proyección globalizada. Investigación realizada en el marco de la Red Alfa Latino Americana Europea para el Gobierno de los Riesgos. Montevideo: arca. 2006. 189 p. CAUBET, Christian Guy. A água, a lei, a política... e o meio ambiente? Curitiba: Juruá. 2004. 66-77p. e 305 p. ——————. A água doce nas relações internacionais. Bauru (SP): Manole. 2006. 223 p. —————. Domínio da água ou direito à água? Rivalidades nas relações internacionais do século XXI. In NASSER, Salem Hikmat;

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REI, Fernando. Direito Internacional do Meio Ambiente. Ensaios em homenagem ao Professor Guido Fernando Silva Soares. São Paulo: Editora Atlas. 2006. 165-183 p. NOGUEIRA, Ana Carolina Casagrande. Comissão de direito internacional – ONU- Trabalhos da CDI sobre jazidas minerais transfronteiriças (Petróleo, gás e água). Florianópolis, SC. Out. 2006. Texto datilografado. 7 p. SILVA, Lígia Dutra. O Sistema Aqüífero Guarani. Florianópolis, SC. Out. 2006. Texto datilografado. 9 p.


CAPÍTULO II

ÁGUAS TRANSFRONTEIRIÇAS: a situação na Argentina Pesquisadora responsável: Elsa M. Bruzzone Historiadora; Especialista em Geopolítica, Estratégia e Defesa Assessora do Congresso da Argentina sobre Recursos Naturais

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SUMÁRIO 1. Introdução ................................................................................................................................... 35 2. Breve panorama dos recursos hídricos na Argentina ............................................................. 36 2.1. Bacia do Prata .......................................................................................................................... 36 2.2. Bacias da Vertente Atlântica ................................................................................................... 37 2.3. Bacias da Vertente do Pacífico ................................................................................................ 37 2.4. Bacias sem Foz Oceânica ......................................................................................................... 37 2.5. Recursos hídricos subterrâneos ............................................................................................. 37 3. Aspectos Jurídicos ...................................................................................................................... 38 3.1. Âmbito nacional ....................................................................................................................... 38 3.2. Âmbito provincial .................................................................................................................... 40 3.2.1. Província de Buenos Aires ................................................................................................... 41 3.2.2. Província de Corrientes ........................................................................................................ 42 3.2.3. Província do Chaco ............................................................................................................... 43 3.2.4. Província de Entre Ríos ........................................................................................................ 44 3.2.5. Província de Formosa ........................................................................................................... 46 3.2.6. Província de Misiones .......................................................................................................... 48 3.2.7. Província de Santa Fé ........................................................................................................... 48 3.2.8. Cidade autônoma de Buenos Aires ...................................................................................... 50 3.2.9. Província de Catamarca ....................................................................................................... 52 3.2.10. Província de Córdoba ......................................................................................................... 52 3.2.11. Província de Chubut ........................................................................................................... 52 3.2.12. Província de Jujuy ............................................................................................................... 53 3.2.13. Província de La Pampa ....................................................................................................... 54 3.2.14. Província de La Rioja .......................................................................................................... 54 3.2.15. Província de Mendoza ........................................................................................................ 55 3.2.16. Província de Neuquén ........................................................................................................ 55 3.2.17. Província de Rio Negro ....................................................................................................... 56 3.2.18. Província de Salta ............................................................................................................... 56 3.2.19. Província de San Juan ........................................................................................................ 56 3.2.20. Província de San Luis ......................................................................................................... 57 3.2.21. Província de Santa Cruz ..................................................................................................... 57 3.2.22. Província de Santiago del Estero ....................................................................................... 58 3.2.23. Terra do Fogo, Antártida e Ilhas do Atlântico Sul ........................................................... 58 3.2.24. Província de Tucumán ........................................................................................................ 58 4. A gestão dos recursos hídricos .................................................................................................. 60 4.1. Âmbito nacional ....................................................................................................................... 60 4.1.1. A Política Hídrica ................................................................................................................. 61 4.2. Âmbito provincial .................................................................................................................... 63 4.3. Âmbito das Bacias ................................................................................................................... 63 4.3.1. Organismos Interjurisdicionais .......................................................................................... 63 4.3.2. Organismos Provinciais ....................................................................................................... 64 4.3.3. Organismos internacionais ou transfronteiriços .............................................................. 64 5. Desenvolvimento da problemática hídrica no Parlamento e na sociedade civil .................. 65 6. Reflexões e propostas .................................................................................................................. 68

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1. Introdução A água potável se transformou no recurso estratégico do século XXI. Ela tem sido, é e continuará sendo, sem dúvida, uma fonte permanente de conflitos. A Carta Mundial da Natureza, aprovada e adotada pelas Nações Unidas na 48ª Sessão Plenária da Assembléia Geral de 28 de outubro de 1982, adverte: “a competência pela posse de recursos escassos é causa de conflitos”. E a água potável é um bem escasso, posto que constitui apenas 3% do total da água no mundo, ao passo que os 97% restantes se encontram nos mares e nos oceanos. A tecnologia para dessalinizar a água do mar existe, mas apresenta problemas: é cara porque requer muita energia, e ainda não se encontrou uma maneira de eliminar a salmoura restante do processo, bem como os elementos químicos usados para o funcionamento da sua indústria, sem que se afete o meio ambiente. A água é vida; sem ela, o planeta e os seres que o habitam não existiriam. Por isso, aqueles que controlarem a água potável controlarão a vida e a economia do mundo. Os países mais ricos do planeta estão em vias de esgotar os seus recursos hídricos, especialmente os subterrâneos, por excesso de exploração. Esses recursos também foram muito contaminados por desenvolvimentos industriais e agrícolas, realizados sem o cuidado com o meio ambiente. Seus recursos naturais foram amplamente depredados e são agora buscados naqueles países que ainda conservam os seus. O Informe das Nações Unidas sobre a Situação dos Recursos Hídricos Mundiais, divulgado em 2003, foi ratificado por um novo Informe apresentado em março de 2006, no México, durante o IV Fórum Mundial da Água. Nele, se adverte que, apenas em função de mudanças climáticas, cerca de 20% dos recursos hídricos do planeta foram afetados. O prognóstico mais pessimista estima que, para os anos 2020/2030, em meio a uma população esperada de 8 bilhões de pessoas, 7 bilhões , que representam 87,5% do total de habitantes do mundo, não terão acesso a água potável, ou seja, a água boa, doce, saudável, limpa. Assim, terão que beber água contaminada ou morrer de sede. Esses dados nos trazem às portas de uma catástrofe humanitária jamais vivida nos 7 milhões de anos de evolução humana sobre o planeta. O Informe apresentado pelo Pentágono ao Congresso e ao Governo dos EUA no fim de fevereiro de 2004, e divulgado pelos periódicos britânico “The Guardian” e pelo norte-americano “The New York Times”, adverte para as conseqüências da mudança climática para os recursos hídricos do planeta e sugere explicitamente o emprego das forças armadas norte-americanas pelo mundo para assumir o controle desses recursos onde quer que se encontrem - vale recordar que os EUA são responsáveis por 30% das emissões de gases tóxicos na atmosfera. Como vemos, o panorama não é nada confortante. A Carta Mundial da Natureza afirma: “A conservação da natureza e dos recursos naturais contribui à justiça e à manutenção da paz, mas não estará assegurada enquanto a humanidade não aprender a viver em paz e a renunciar à guerra e aos armamentos”. A América do Sul conta com 30% dos recursos hídricos mundiais. Às bacias dos rios Orenoco, Amazonas e da Prata, deve ser acrescentado um dos mais importantes reservatórios subterrâneos de água doce do mundo, o Aqüífero Guarani, compartilhado entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, todos países integrantes do Mercosul. Lentamente, nossos países aprendem a superar desconfianças, temores e receios. Palavras como integração e cooperação adquirem cada vez um sentido maior, uma

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vez que os problemas enfrentados são os mesmos para todos nós. Em 21 de junho de 2001, foi assinado em Assunção, no Paraguai, o “Acordo-Marco pelo Meio Ambiente do Mercosul”, com os objetivos de “cooperar na proteção do meio ambiente e na utilização sustentável dos recursos naturais...”; e de aprofundar “a análise dos problemas ambientais da sub-região com a participação dos organismos internacionais competentes e das organizações da sociedade civil...”. O Acordo busca incrementar o “intercâmbio de informação quanto a leis, regulações, procedimentos, políticas e práticas ambientais”; a “harmonização das leis ambientais, considerando as diferentes realidades ambientais, sociais e econômicas dos países do Mercosul, bem como das suas diretrizes jurídicas e institucionais, a fim de prevenir, controlar e mitigar os impactos ambientais nos Estados-Parte, com especial referência às áreas fronteiriças”; e a promoção da “educação formal e informal, fomentando conhecimentos, hábitos de conduta e integração de valores orientados às transformações necessárias para que se alcance o desenvolvimento sustentável no âmbito do Mercosul”. Para dezembro de 2006, espera-se o resultado final da análise da proposta do Projeto de Protocolo para a Gestão Ambiental de Recursos Hídricos. Também existe a proposta de se analisarem os padrões ambientais de qualidade da água nos Estados-Parte, com o objetivo de buscar a harmonização entre eles com ênfase nas bacias compartilhadas. Resultados concretos são esperados para dezembro de 2007. Este artigo trata a questão dos recursos hídricos, superficiais e subterrâneos, da Argentina. Serão apresentados um panorama breve das características e da situação desses recursos; os aspectos jurídicos da sua compreensão nos âmbitos nacional e provincial; o aspecto institucional de gestão da água em âmbitos nacional, provincial e internacional; e o tratamento do tema pelo Parlamento e pela sociedade civil. Ao final, como contribuição à discussão de gestão de águas transfronteiriças, serão feitas algumas reflexões e propostas.

2. Breve panorama dos recursos hídricos na Argentina A República Argentina possui grande diversidade de relevo, clima e padrões de drenagem. Esses fatores geram uma distribuição territorial

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bastante irregular dos seus recursos hídricos, a despeito de uma ampla disponibilidade. E, ainda que a oferta hídrica superficial média anual por habitante oscile em torno dos 22.500 m3/habitante/ano, em províncias da região árida a disponibilidade de água se encontra abaixo dessa média. Tal distribuição dos recursos hídricos superficiais é resultado de uma ocupação espacial mais intensa no litoral úmido, assentada sobre uma importante rede fluvial. Nas regiões com rede de drenagem menos desenvolvida e escassas precipitações, o enraizamento de populações e o desenvolvimento econômico regional estão ligados, na maioria das vezes, à disponibilidade de água subterrânea ou ao armazenamento de águas pluviais para usos determinados. Quando as condições apropriadas se apresentam, os recursos são aproveitados por meio de represas e canalizações. A água é usada principalmente para a irrigação (71%), seguida do abastecimento humano (13%), o consumo pelo gado (9%) e a utilização industrial (7%). Nos próximos itens, apresentamos os principais sistemas hidrográficos do país. 2.1 Bacia do Prata Com 3,1 milhões de km2, é uma das principais bacias hídricas do mundo e estende-se pelos territórios de Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai. Concentra mais de 85% do fluxo total medido na Argentina. As províncias de Misiones, Corrientes, Entre Ríos, Formosa e Chaco são integralmente compreendidas por essa Bacia, que também inclui porções de Jujuy, Salta, Santiago del Estero, Santa Fé, Córdoba e Buenos Aires. Muitos dos rios da Bacia (rios do Prata; Paraguai; Paraná; Bermejo; Pilcomayo; Uruguai; Iguaçu) são compartilhados total ou parcialmente com os países vizinhos, mas também encontramos partes da Bacia com rios que transcorrem integralmente em território argentino, como o Pasaje - Juramento – Salado; o Carcarañá; e os rios das províncias mesopotâmicas. Sobre a Bacia do Prata, assenta-se cerca de 75% da população argentina, bem como os maiores centros urbanos e as principais indústrias. Os rios Paraná, Uruguai, Paraguai e do Prata são usados para a navegação; o abastecimento de água para os usos humano, agrícola e industrial; para a pesca; a recreação; e são receptores de afluentes domésticos e industriais. Os rios Paraná e Uruguai são usados para importantes


aproveitamentos energéticos, sendo que o rio Paraná se consolidou como um eixo industrial e de assentamento humano crucial para o país. 2.2 Bacias da Vertente Atlântica Concentram cerca de 9,3% do fluxo total medido e se estendem pelo oeste, centro e sul do país, da divisórias de águas dos Andes até a costa atlântica. Incluem parte das províncias de La Rioja, San Juan, Mendoza, San Luis, Neuquén, Rio Negro, La Pampa, Buenos Aires, Chubut, Santa Cruz e Terra do Fogo. Seus principais rios são: San Juan, Mendoza, Tunuyán, Atuel, Diamante, Colorado, Negro, Chubut, Senguer, Deseado, Chico, Santa Cruz, Coig, Gallegos e os rios da Terra do Fogo. Todos os rios atuam como corredores fluviais de grande importância econômica e ecológica, pois atravessam terras áridas. Sobre eles, têm-se desenvolvido sistemas de represamento para a geração de energia elétrica, regulação de enchentes e irrigação. Nessa região, encontra-se uma das mais importantes áreas de irrigação da Argentina, e, à sua margem, estão localizados os mais importantes assentamentos populacionais da região sul do país. 2.3 Bacias da Vertente do Pacífico Localizam-se na Cordilheira andino-patagônica, no limite internacional junto ao Chile. Sua riqueza hídrica é importante e representa cerca de 4,7% do fluxo total. Os rios mais relevantes são o Manso, Puelo, Carrenleufú, Pico e, em especial, o Futaleufú. A população assentada na região é escassa e o principal uso dos rios é hidroenergético. A presença de matas e lagos de extraordinária beleza trouxeram para a região um desenvolvimento turístico de grande importância. 2.4 Bacias sem Foz Oceânica Encontram-se no centro e no noroeste do país, ocupando quase 30% do território. Ainda assim, representam apenas 0,71% dos recursos hídricos superficiais. Os rios mais importantes são o Salí – Dulce Primeiro e Segundo. Nessas áreas, a água tem grande relevância econômica e social, o que tem motivado a construção de obras de aproveitamento para consumo, irrigação e produção de energia. 2.5 Recursos hídricos subterrâneos Constituem 30% do total da água extraída no âmbito nacional para distintos usos. No entanto, até o presente, não se conhece a quantidade de reservatórios existentes, nem o volume e a qualidade das águas da maioria dos conhecidos, devido à escassez de levantamentos e estudos quanto aos seus potenciais e qualidades. Esse fato é reconhecido a partir das próprias esferas do Governo Nacional. Duas exceções são os aqüíferos de Mendoza e San Juan, dos quais dependem fortemente os oásis de irrigação. Atualmente, o Banco Mundial está conduzindo uma investigação para o Aqüífero Guarani, reservatório transfronteiriço compartilhado com Brasil, Uruguai e Paraguai, ao passo que a Comunidade Econômica Européia (CEE) começou um estudo do reservatório correspondente ao Rio Pilcomayo. A importância das águas subterrâneas tem crescido nos últimos anos, em função dos problemas de disponibilidade e qualidade registrados nos recursos hídricos superficiais e das atividades petrolífera e mineradora em áreas com fontes superficiais insuficientes. Entre estas, podem-se mencionar os vales intra-montanheses de la Puna, o oeste de Catamarca e La Rioja, e a zona central de San Juan e Mendoza.

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Na Argentina, praticamente não existe uma verdadeira gestão integrada da água subterrânea. O país ainda não possui uma política hídrica nacional que integre verdadeiramente os seus recursos e tem descuidado da proteção dos aqüíferos. Podemos afirmar que a Argentina carece de uma verdadeira cultura da água e não assimilou ainda a importância do recurso nesse momento atual. O mais doloroso desse contexto é o fato de que, apesar de contar com recursos hídricos mais que suficientes, o país não conseguiu solucionar os seus problemas de acesso à água potável para uma parte da população (cerca de 22%, de acordo com dados oficiais) e de secas, ainda que as zonas afetadas contem com reservatórios de água subterrânea. Um claro exemplo é o de Castelli, na província do Chaco, assentada sobre os reservatórios de Bermejo e do Guarani. Na atualidade, os recursos hídricos de superfície e subterrâneos argentinos estão fortemente ameaçados por práticas agrícolas nãoconservacionistas; explorações de minério e petróleo; desmatamentos; uso de agroquímicos e mudanças no uso do solo. O balanço hídrico e a qualidade das fontes têm sido afetados. Vemos que o desflorestamento, o excesso de pastagens e o manejo desapropriado das terras aráveis têm produzido um aumento da erosão hídrica em Misiones, em áreas da bacia do Bermejo e em outras regiões do país. Foi detectada a presença de pesticidas nos rios Uruguai e Negro, e metais pesados na bacia do rio da Prata. As águas foram servidas sem que se tratassem os assentamentos urbanos e industriais, o que contaminou o represamento do rio Hondo, em Santiago del Estero; los Lagos San Roque e Molinos, em Córdoba; Laçar, em Neuquén; e Nahuel Huapi, no Estado do Rio Negro. O aqüífero Puelche, na província de Buenos Aires, e rios como o Matanza, Riachuelo e Reconquista, na zona da grande Buenos Aires, foram contaminados não apenas por esgotos vertidos em poços cegos, mas também pelo manejo deficiente e a disposição de resíduos sólidos urbanos e tóxicos industriais, produzidos pelo desenvolvimento urbano industrial intensivo do eixo Rosario – La Plata. A indústria petroquímica e a extração de calcário na região pampiana; a extração petrolífera; a indústria açucareira; as fundições de chumbo no Noroeste; as extrações de urânio e petróleo em Cuyo, e de carvão e petróleo na

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Patagônia, têm contaminado fontes de águas superficiais e subterrâneas. A esses fatos, devem-se somar os milhares de hectares de terras de irrigação afetados por problemas de salinidade da água, do solo e de drenagem por mal manejo de água; os impactos de inundações e a presença de altos conteúdos naturais de flúor, arsênico e boro em algumas fontes de água subterrânea. Podemos afirmar, sem medo de errar, que, apesar de existirem boas leis ambientais, estas lamentavelmente não são cumpridas ou por negligência ou, o que é pior, por falta de vontade política em executar as tarefas de controle e efetivação das normas estabelecidas.

3. Aspectos jurídicos 3.1 Âmbito nacional Sancionada em 1º de maio de 1853 e reformada pela última vez em 22 de agosto de 1994, a Constituição Nacional estabelece, em seu artigo 121: “as províncias conservam todo o poder não-delegado por esta Constituição ao Governo Federal e o poder que se tenham reservado expressamente por meio de pactos especiais na época de sua incorporação”. Já o artigo 124 determina: “cabe às províncias o domínio originário dos recursos naturais existentes nos seus territórios”. O artigo 125 reconhece às províncias, entre tantos outros, o direito de construir canais e explorar os seus rios. O artigo 75 demarca as atribuições do Congresso Nacional, entre as quais a regulamentação da livre navegação dos rios interiores e do comércio com as nações estrangeiras e das províncias entre si; a habilitação de portos; a criação ou supressão de aduanas; a promoção da construção de canais navegáveis e a exploração dos rios, assim como ditam os Códigos Civil; Penal; de Mineração; de Trabalho; de Comércio e de Seguridade Social, a aprovarem e desfazerem tratados internacionais. Observa-se que, em alguns casos, as atribuições do Congresso são concorrentes com as das províncias. O artigo 41 estabelece: “todos os habitantes gozam do direito a um meio ambiente saudável, equilibrado, apropriado ao desenvolvimento humano e no qual as atividades produtivas satisfaçam as necessidades presentes sem comprometer as das gerações futuras; e têm o dever de preservá-lo. O dano ambiental gerará prioritariamente a obri-


gação de uma recomposição, assim como determina a lei. As autoridades proverão a proteção deste direito à utilização racional dos recursos naturais, à preservação do patrimônio natural, cultural e de diversidade biológica, e à informação e educação ambientais. Cabe à Nação ditar as normas que contenham os orçamentos mínimos de proteção e, às províncias, os seus complementos necessários, sem que as mesmas alterem as jurisdições locais. É proibido o ingresso no território nacional de resíduos atual ou potencialmente perigosos, e de resíduos radioativos”. Sancionado em 25 de setembro de 1869, o Código Civil estabelece, em seu artigo 2.340, entre os bens de domínio público: “os mares territoriais e interiores, as baías, enseadas, portos e ancoradouros; os rios, seus cursos, as demais águas que correm por cursos naturais e toda outra água que tenha ou adquira a aptidão de satisfazer usos de interesse geral, incluindo as águas subterrâneas, sem prejuízo do exercício regular do direito do proprietário do fundo de extrair as águas subterrâneas na medida de seu interesse e sujeito à regulamentação; as praias do mar e as ribeiras internas dos rios, entendendo-se pelas mesmas as extensões de terras que as águas banham e desocupam durante as altas marés normais ou os aumentos médios costumeiros; os lagos navegáveis e os seus leitos; as ilhas formadas ou que se formem no mar territorial e/ou em toda classe de rio, ou nos lagos navegáveis, quando estas não pertençam a proprietários particulares”. O artigo 2.341 reconhece: “as pessoas particulares têm o uso e o gozo dos bens públicos do Estado e das Províncias, mas estarão sujeitas às disposições deste código e às determinações gerais e locais”. Por ser a água um bem público, tocam-lhe as determinações do artigo 2.337, para o qual as coisas inalienáveis estão fora do âmbito comercial. O artigo 2.350 estabelece, por sua vez, que apenas “as vertentes que nascem e morrem dentro de uma mesma propriedade pertencem, para uso e gozo, ao dono dessa propriedade”. E o artigo 2.639 determina: “os proprietários limítrofes aos rios e aos canais que servem a comunicação por água estão obrigados a deixar uma passagem de caminho público de trinta e cinco metros até a margem do rio ou do canal, sem nenhuma indenização. Os proprietários ribeirinhos não podem fazer nessa área construção alguma, ou reparar as antigas que existem, ou deteriorar o terreno de forma alguma”. Até o presente, não existe uma “Lei Nacional de Águas”. Os projetos apresentados pelo Poder Executivo ou por legisladores não encontraram respaldo para a sua sanção. Entre as iniciativas, podem ser mencionadas a “Lei para a gestão integral de águas”; a “Lei para a gestão dos recursos hídricos”; e a “Lei-marco de política hídrica”. Desde maio de 2005, está em consideração o projeto de lei “Adotando como delineamentos de política da nação os princípios regentes de política hídrica para a República Argentina e outras questões conexas”. Para este ano de 2007, está prevista a redação de um documento final para o Plano Hídrico Nacional, a fim de otimizar o manejo da água Em dezembro de 2002, foi promulgada a Lei 25.668, intitulada “Regime de Gestão Ambiental de Águas”, que estabelece os orçamentos mínimos de preservação, aproveitamento e uso racional das águas; declara as

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bacias hídricas como uma unidade ambiental indivisível de gestão de recursos; e institui a criação de Comitês de Bacias Hídricas para as bacias interjurisdicionais, criando um Plano Nacional para a preservação, o aproveitamento e o uso racional das águas, com as medidas necessárias para a coordenação de ações entre as diferentes bacias hídricas. Além disso, define como água “aquela que faz parte de cursos e corpos naturais ou artificiais, superficiais ou subterrâneas, bem como as contidas em aqüíferos, rios subterrâneos, e atmosféricas”; e, “por bacia hídrica superficial, a região geográfica delimitada pelas divisórias de águas que correm para o mar através de uma rede de leitos secundários que convergem em um leito principal único e as endorréicas”. A Lei 25.668 ainda estabelece que a autoridade nacional deve determinar os limites máximos de contaminação aceitáveis para as águas, de acordo com os diferentes usos; definir as diretrizes para a recarga e a proteção dos aqüíferos; fixar os parâmetros e padrões ambientais de qualidade das águas; e poderá, a pedido da autoridade jurisdicional competente, declarar zona crítica de proteção especial determinadas bacias, aqüíferos e áreas com volumes de água, por suas características naturais ou de interesse ambiental. Essa Lei não foi bem recebida pelas províncias. A maioria das autoridades hídricas provinciais sustenta que a lei avança sobre competências não-delegadas à Nação em matéria de Bacias e de organização de Comitês de Bacias; gestão de recursos naturais; desenvolvimento de instituições locais e planejamento, uso e manejo de água. Estão hoje em estudo, na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Senado, propostas de eventuais modificações na Lei 25.668; e, na Comissão de Recursos Naturais e Conservação do Ambiente Humano da Câmara dos Deputados, um projeto de derrogação. Leis federais como as leis de energia, transporte, portos, navegação, proteção do meio ambiente e dos recursos naturais contêm disposições relacionadas à água (ver o Anexo 1). A nação também assinou tratados internacionais para as questões de águas compartilhadas; proteção de recursos naturais e do meio ambiente; entrada de embarcações nucleares em águas argentinas; construção de obras de usos múltiplos; empréstimos para obras de abastecimento de água potável e saneamento urbano e rural. Apresentamos alguns destaques:

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CONVÊNIOS: de Diversidade Biológica, Conservação e Desenvolvimento dos Recursos Ictícolas nos Trechos Compartilhados dos Rios Paraná e Paraguai; de Basiléia, para Controle de Movimentos Transfronteiriços; de Dejetos Perigosos e sua eliminação; de Roterdã, pelo Consentimento Prévio Fundamentado aplicável a Pesticidas e Produtos Químicos Perigosos no Comércio Internacional (PIC); de Estocolmo, para Contaminadores Orgânicos Persistentes (POPs); de Viena, para a Proteção da Camada de Ozônio; de Manejo e Conservação da Vicunha; Internacional de Cooperação, Preparação e Luta contra a Contaminação por Hidrocarburetos (Lei 24.292); de Cooperação com o Uruguai, para prevenir e lutar contra incidentes de contaminação do meio aquático por hidrocarburetos e outras substâncias prejudiciais (Lei 23.839). CONVENÇÕES: de Luta contra a Desertificação e a Seca; Convenção-Marco das Nações Unidas quanto à Mudança Climática (UNFCC) (aprovada pela Lei 24.295); para a Conservação das Espécies Migratórias de Animais Selvagens (CMS); Internacional para a Regulação da Caça de Baleias (Comissão Baleeira Internacional); do Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas da Fauna e Flora (CITES); de Conservação de Recursos Marinhos Vivos Antárticos (CCAMLR); de Proteção ao Patrimônio Mundial, Cultural e Natural. TRATADOS: Internacional de Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura; e do Meio Ambiente, assinado juntamente com o Chile (Lei 24.015). PROTOCOLO: de Cartagena, para Segurança da Biotecnologia. ACORDOS: com o Uruguai, de Uso e Aproveitamento do Rio Uruguai (Decreto 1662/86); de Transporte Fluvial pela Hidrovia Paraguai– Paraná, com a Bolívia, o Brasil, o Paraguai e o Uruguai (Lei 24.385). 3.2. Âmbito provincial As províncias mencionadas a seguir se vinculam exclusivamente à Bacia do Prata e ao Aquífero Guarani – neste último caso, com exceção da província de Buenos Aires e da Cidade Autônoma de Buenos Aires. Quanto à Bacia do Prata, a “Declaração Con-


junta de Chanceleres dos Países da Bacia do Prata”, assinada em 27 de fevereiro de 1967, expressa a convicção quanto à “necessidade de esforços pelo desenvolvimento harmônico e equilibrado da região da Bacia do Prata, em benefício dos interesses comuns de seus países e povos, como um passo de grande alcance no processo de integração latino-americana”. A Terceira Reunião de Chanceleres deu origem ao “Tratado da Bacia do Prata”, que entrou em vigência em 14 de agosto de 1970. Seu artigo 1º estabelece o compromisso de promover “a realização de estudos, programas e obras, bem como a formulação de entendimentos operativos ou instrumentos jurídicos que estimem as necessidades e viabilizem [...] o uso racional da água como recurso e o seu aproveitamento múltiplo e eqüitativo”. O artigo 5º determina que “a ação coletiva” entre as PartesContratantes deve ser desenvolvida sem prejuízo para os projetos e as empresas que decidirem executar em seus respectivos territórios, com o respeito pelo direito internacional e de acordo com as boas práticas entre nações vizinhas e amigas. Na “Ata de Paysandú”, assinada em 22 de abril de 1997, os quatro países que compartilham o Aquífero Guarani – Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai – determinaram a necessidade de “mecanismos de coordenação para a pesquisa, o uso e a preservação do Aqüífero sob o marco de uma gestão sustentável e eqüitativa”. 3.2.1 Província de Buenos Aires Sua Constituição estabelece, no artigo 28, que os habitantes da província têm direito de gozar de um ambiente sadio e o dever de protegê-lo e conservá-lo para si e para as gerações futuras. A província exerce o domínio sobre o ambiente e os recursos naturais de seu território, incluindo subsolo, espaço aéreo correspondente, o mar territorial e seu leito, a plataforma continental e seus recursos naturais. A província deve preservar, recuperar e conservar os recursos naturais renováveis e nãorenováveis, bem como planejar seu aproveitamento racional; controlar o impacto ambiental das atividades que prejudicam o ecossistema; promover ações que evitem a contaminação do ar, água e solo; proibir o ingresso de resíduos tóxicos ou radioativos; defender o ambiente e os recursos naturais; assegurar as políticas de conservação e recuperação da qualidade da água, ar e solo e ainda resguardar as áreas de importância ecológica de flora e fauna. São competências de alguns dos Ministérios de Buenos Aires: Saúde: emissão de efluentes líquidos; Obras e Serviços Públicos: manutenção e exploração de obras hidráulicas, águas correntes e esgotos; serviços públicos, fiscalização de deságüe pluvial, industrial e esgotos; intervenções no transporte fluvial; aproveitamento e uso da água; prestação de serviços de água potável e esgoto; participação nos temas ligados a saneamento hídrico e obras de defesa costeira; abertura e conservação de vias navegáveis; planejamento, atualização e execução de obras junto a margens ribeiras e águas superficiais e subterrâneas; Assuntos Agrários: participar da adoção de medidas para a defesa dos cursos de água e influência sobre os mesmos em relação a atividades produtivas do setor, e preservação das inundações; A Secretaria de Política Ambiental é responsável pela fiscalização de todos os elementos que possam causar contaminação de água. O Código de Águas da Província de Buenos Aires estabelece o regime de proteção, conservação e manejo dos recursos hídricos provinciais. O

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Código recomenda ao Poder Executivo: formular a política da água dentro das linhas definidas pela legislação provincial; determinar o cânone e as contribuições a cargo dos concessionários; definir preferências para o uso de águas públicas; determinar a dotação e a distribuição da água, quando necessário; acordar junto à Nação, à cidade de Buenos Aires e outras províncias, às organizações internacionais e aos estados estrangeiros o estudo e o planejamento do desenvolvimento e da preservação de bacias internacionais; construir e executar obras, e realizar as atividades que possam afetar essas bacias. O Código cria a Autoridade da Água, que é a Autoridade de Aplicação do próprio Código, responsável por regulamentar, supervisionar e monitorar tudo o que se relaciona à captação, ao uso, à conservação e à evacuação da água; efetua o planejamento hidrológico. A autoridade ainda redige cartas de risco hídrico com detalhes das zonas passíveis de serem afetadas por inundações; estabelece restrições ao uso recreativo, ao abastecimento doméstico e urbano de determinadas águas em prol da saúde pública; realiza o inventário físico; publica as medições, registra os direitos ao aproveitamento das obras; estabelece uma rede hidrométrica provincial e leva, para ela, um cadastro de água pluvial, superficial e subterrânea da província; fixa uma linha de ribeira; e é responsável pelo funcionamento do Registro Público de Águas. O Código determina que, caso explorações de mineração encontrem aqüíferos, devem informar o achado. E ainda: (1) cria um Registro para as empresas perfuradoras, os profissionais responsáveis por perfurações, as obras hidráulicas e os vertidos industriais; (2) estabelece que o aproveitamento comum da água pública é para o uso doméstico, o transporte gratuito de pessoas e coisas, a pesca desportiva e o lazer; (3) determina que os usos especiais cuja concessão é outorgável são: abastecimento; usos agropecuário, industrial, recreativo, desportivo e de lazer; energético; medicinal e termal; de mineração; piscícola; flutuação e navegação; entre outros; (4) estabelece que podem ser emitidas autorizações de perfuração para a exploração de água subterrânea, mas proíbe a contaminação dos aqüíferos, alterações na quantidade, qualidade e dinâmica da água subterrânea, e determina o mesmo cuidado para obras de proteção e recarga dos aqüíferos; (5) exige que toda obra hidráulica seja acompanhada por um informe de impacto ambiental, e, caso aprovada, devem ser realizadas auditorias ambientais peri-

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ódicas; (6) proíbe o despejo de efluentes perigosos na água; (7) estabelece os Comitês de Bacias Hídricas e de Consórcios de Usuários; e (8) estabelece mecanismos de consulta para o rio de La Plata e as Bacias Hídricas compartilhadas. Outras leis estabelecem a proteção das fontes de provisão, dos cursos e dos corpos receptores de água; a criação do Serviço Provincial de Água Potável e Saneamento Rural; a regulação dos trabalhos relacionados ao sistema hidráulico provincial; a proteção, o aprimoramento e a restauração dos recursos naturais; o regime regulador das reservas e parques naturais; e a criação das Corporações de Fomento do Vale Bonaerense do rio Colorado e do Delta. Em 2005, foi assinado, conjuntamente com as províncias de Córdoba, San Luis, La Pampa e Santa Fé, o Tratado para a Criação do Comitê Interjurisdicional da Região Hídrica do nordeste da Planície Pampiana. 3.2.2 Província de Corrientes Sua Constitutição determina, no artigo 83, que cabe ao Poder Legislativo dispor quanto aos canais navegáveis e à exploração dos seus rios, bem como autorizar a execução de obras públicas. As atribuições dos Ministérios: Agricultura, Pecuária, Indústria e Comércio: ajudar o governo no tocante aos recursos renováveis; entender a elaboração e a execução da política provincial de recursos naturais, com vistas ao seu aproveitamento racional; entender o regime de uso dos recursos hídricos e a compatibilização do seu uso na sua área competente; Obras e Serviços Públicos: cuidar do tocante a obras e serviços públicos provinciais, bem como da elaboração e execução da política energética e de obras sanitárias, sua administração e a prestação de seus respectivos serviços. O Código de Águas de Corrientes determina que o Instituto Correntino de Águas fique a cargo do governo e da administração das águas provinciais, e que o Código e os Regulamentos que se ditem sejam a normativa orientadora da política hídrica da província, regulando relações jurídico-administrativas que tenham como objeto os recursos hídricos e as obras necessárias para o seu adequado aproveitamento. O Código ainda (1) determina que a política hídrica provincial deve impulsionar e instrumentalizar o uso racional e integral dos recursos hídricos; realizar estudos para conhecê-los integralmente; desenvolver um sistema de planejamento para o aproveitamen-


to dos mesmos, promovendo sua coordenação junto ao planejamento geral da província; proporcionar o uso múltiplo dos recursos e a integração das águas superficiais, meteóricas e subterrâneas; efetuar inventários hídricos; criar um banco de informações; proteger os recursos hídricos de eventual contaminação e promover a participação cidadã através dos Comitês de Bacia; (2) estabelece que, por ser a água um recurso natural indispensável para a vida e a atividade humana, bem como para o desenvolvimento e a manutenção do meio ambiente, ela está fora do comércio; por isso, proíbe a comercialização da água, com exceção da água mineral ou de outro tipo devidamente engarrafado; (3) estabelece que pertencem ao domínio público provincial os rios e seus cursos, todas as outras águas que correm pelos cursos naturais, as ribeiras internas de rios, aquedutos construídos para uso comum e lagos navegáveis, juntamente com os seus leitos, sendo o domínio da província sobre as águas públicas inalienável e imprescritível; (4) ratifica o domínio provincial sobre as águas interjurisdicionais no trecho e sobre a porção que corresponde ao seu território; e (5) estabelece que a bacia hídrica é uma unidade hidrológico-geográfica indivisível que requer uma consideração integral. O Código também rege o tocante às águas subterrâneas, definindo-as como as que se encontram abaixo da superfície terrestre, formando aqüíferos. Quando uma fonte é de uso comum, não é necessária uma permissão ou concessão. Todas as concessões de uso de água subterrânea estão sujeitas à existência de caudais e ao regime de exploração que a Autoridade de Aplicação venha a aplicar para a adequada conservação, preservação e o ótimo aproveitamento das disponibilidades hídricas. O Código ainda (1) proíbe a contaminação e a alteração das propriedades das águas subterrâneas e superficiais; (2) determina que se podem estabelecer áreas de proteção de bacias e realizar recargas de aqüíferos; (3) determina que os usos comuns da água têm prioridade sobre os especiais e, em meio ao uso comum, o abastecimento de populações e municipal, ao passo que as águas restantes, quando utilizadas pela indústria, devem ser devolvidas à fonte de origem em perfeito estado, em uma norma igual à norma válida para as explorações de minérios e hidrocarburetos, sendo que nestas os dejetos tóxicos e resíduos devem ser depositados em locais onde não contaminem os recursos hídricos superficiais e subterrâneos, e o meio ambiente; (4) estabelece os Registros Públicos das Concessões de Uso de: Águas Públicas Superficiais; Águas Subterrâneas e as Licenças de Uso de: Águas Públicas; para a Exploração de Recursos, Matérias-Primas e Materiais de Leitos e Praias; Exploração de Águas Subterrâneas; de Empresas Perfuradoras e do Pessoal Técnico das mesmas, e dos Projetos Técnicos e Estudos de Viabilidade. Os Registros devem concordar com o Cadastro de Água. 3.2.3 Província do Chaco Sua Constituição estabelece, no artigo 38, que é “dever dos poderes públicos ditar normas que assegurem a preservação, a conservação e a recuperação dos recursos naturais para o seu manejo e continuação” e que se deve “exigir estudos prévios de impacto ambiental para autorizar empreendimentos públicos ou privados”. O artigo 41 afirma: “A província tem direito pleno, imprescritível e inalienável sobre as fontes naturais de energia existentes em seu território. O aproveitamento racional e integral dos recursos naturais de domínio público está sujeito ao interesse geral e à preservação ambiental”.

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O artigo 48 diz: “A lei estabelecerá as condições em que se fará a reserva ou adjudicação das terras localizadas na zona de influência das obras de canalização das correntes e dos reservatórios de água”; e o artigo 50 afirma: “A província protege o uso integral e racional dos recursos hídricos de domínio público destinados a satisfazer as necessidades de consumo e produção, preservando sua qualidade; ratifica os direitos de condomínio público sobre os rios limítrofes ao seu território; poderá concertar tratados com a Nação, as províncias, outros países e organismos internacionais para o aproveitamento das águas desses rios. Regula, projeta, executa planos gerais de obras hidráulicas, irrigação, canalização e defesa, e centraliza o manejo unificado, racional, participativo e integral do recurso em um organismo executor. A fiscalização e o controle serão exercidos de forma independente”. Conforme o artigo 119, “cabe à Câmara dos Deputados legislar quanto ao uso e as disposições de bens do Estado provincial” e também quanto ao impacto, às emergências ambientais e pelo uso adequado dos recursos naturais. Atribuições dos Ministérios: Educação, Cultura, Ciência e Tecnologia: desenvolver estratégias educativas e de pesquisa que tenham como premissa a harmonia entre o desenvolvimento das forças produtivas e o uso racional dos recursos naturais; Economia, Obras e Serviços Públicos: auxiliar o Governo no desenvolvimento, na promoção, orientação e realização das obras e dos serviços públicos, intervindo em tudo que se relacione a serviços energéticos, de provisão de água potável, controle de afluentes, manejo e controle dos recursos hídricos; Produção: auxiliar o Governo na determinação das políticas de recursos naturais e participar do planejamento, da elaboração e execução de medidas para a defesa dos cursos de água e a afetação dos mesmos pelo seu uso e por atividades produtivas, bem como na prevenção contra inundações e secas, adotando medidas capazes de evitá-las. O Código de Águas de Chaco é idêntico ao da província de Corrientes, excetuando-se algumas pequenas disposições, mas o Código Correntino é posterior ao de Chaco.

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O Código (1) estabelece as Comissões de Manejo de Água e Solo (Comas); (2) que o domínio da província sobre as águas públicas seja inalienável e inembargável, e que os agentes privados não possam adquirir por prescrição o domínio dessas águas, tampouco o direito ao seu uso; (3) quanto às bacias interjurisdicionais, determina o estabelecimento de um governo conjunto e harmônico da bacia compartilhada, e um sistema de planejamento integral e adequado da mesma com vistas a um ótimo grau de aproveitamento para todos, impulsionando o conceito de “bacia interjurisdicional” (o mesmo é válido para Corrientes); (4) determina que as águas termais aptas ao uso de interesse geral pertençam ao domínio público do Estado, bem como a exploração das mesmas preferencialmente pelo Estado, municípios ou mediante concessões particulares; (5) determina a proteção, não apenas das bacias como o faz o Código Correntino, mas também de leitos, fontes, cursos e depósitos de água (para mais detalhes, veja o Código de Águas de Corrientes). A Autoridade de Aplicação é a Administração Provincial da Água (APA), que unifica as áreas do Plano de Defesa contra Inundações, da Direção Geral de Hidráulica, da Direção de Fiscalização e Prestação e do Instituto Provincial de Águas do Chaco. Além disso, a APA deve planejar e coordenar as atividades relacionadas ao manejo, à conservação e à preservação dos recursos hídricos e a luta contra o efeito nocivo das águas, intervindo na elaboração dos projetos e na execução das obras de provisão de água, tratamento e eliminação de esgotos industriais e controle de qualidade e volume da fonte de abastecimento de água. 3.2.4 Província de Entre Ríos Cabe à Subsecretaria de Assuntos Agrários entender a conservação dos solos, da água, da flora e fauna autóctones, promovendo o seu uso racional e adequado e diminuindo, assim, o impacto que a sua degradação produz no meio ambiente; e promover o uso de técnicas conservacionistas que permitam um uso racional e adequado de solos, águas, flora e fauna, avaliando os potenciais de produção sustentável desses recursos naturais. À Direção de Produção Vegetal, cabe promover o aproveitamento racional da água com fins de irrigação, desenvolver programas de uso e manejo conservacionista do solo e da água, estudar e difundir técnicas de captação e apro-


veitamento de águas em todo o âmbito da província, estimulando as técnicas mais eficientes de irrigação para os cultivos; estudar e difundir técnicas de drenagem superficial e/ou subterrânea para terras agrícolas e participar em projetos de desenvolvimento que busquem a habilitação de terras inundadas. A Área de Águas, Captação, Irrigação e Drenagem tem a missão de realizar o estudo e o levantamento da água superficial com fins produtivos em toda a província, promovendo o aproveitamento e o manejo adequados, mediante sistemas de captação, irrigação e drenagem. Ademais, deve promover e propor ações e normas para conservação e uso racional da água; intervir em todas as tarefas de estudo, planejamento, desenho e assessoramento em canais e sistemas de irrigação; outorgar permissões e concessões de irrigação; fixar pautas para o desenvolvimento de uma legislação que envolva o aproveitamento agropecuário do recurso à água; participar dos estudos e avaliações de obras de drenagem superficial e/ou subterrânea em terras agrícolas e em projetos que considerem a habilitação de terras alagadiças; promover o conhecimento e o aprimoramento da água para a produção agropecuária; propiciar uma utilização racional do recurso, orientando a adoção de técnicas de capacitação, irrigação e drenagem; e promover, orientar e participar de obras de captação de águas superficiais (macro-represas) com fins de irrigação. À Direção de Hidráulica cabe estudar, planejar, projetar e executar obras hidráulicas novas, ampliações e modificações ou reparos das existentes por conta do Estado Provincial ou por particulares, propiciando conhecimento, avaliação, controle, preservação, melhoramento e aproveitamento dos recursos hídricos provinciais. A Lei de Águas de Entre Ríos dita a: “regulação do uso e do aproveitamento do recurso natural constituído pelas águas subterrâneas e superficiais com fins econômicos produtivos em todo o território da província, com vistas a alcançar o seu melhor emprego sob os princípios da equidade, proporcionalidade e racionalidade; apontando para a sua conservação e defesa com o fim de melhorar a produção em harmonia com o meio ambiente. Incluem-se as obras hidráulicas construídas com fins semelhantes e sob os mesmos princípios enunciados anteriormente” Conforme a lei, “o uso, sob qualquer definição, de águas de domínio público, canais ou obras construídas com fins comuns, não os faz perder o caráter de bens públicos do Estado”. A lei reafirma o domínio da província sobre as águas interestaduais no trecho e na porção que correspondem ao seu território e que, para o seu aproveitamento, a província pode celebrar Tratados ou Acordos Interjurisdicionais de acordo com o princípio da reciprocidade e o critério da unidade de bacias. Diz a lei: “Para a concertação de águas subterrâneas interestaduais, serão realizados estudos prévios e a divisão será quantificada, a seguir, em termos de volume de infiltração, escoamentos e usos anteriores, segundo a regra da proporcionalidade nos respectivos territórios dos estados contratantes”. O uso comum (necessidades domésticas dos usuários e fornecimento para gado) tem prioridade sobre os usos especiais e é gratuito quando não requer a prestação de um serviço pelo Estado a terceiros. É dada prioridade aos usos especiais para abastecimento de água potável, se-

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guidos do uso agropecuário; industrial; mineração; aproveitamento energético; turístico; terapêutico; aqüicultura; recreativo; e outros. A lei estabelece as obrigações e os direitos dos permissionários, as regras para o direito ao uso especial das águas de domínio público e a construção de obras hidráulicas e de saneamento. Quanto às águas subterrâneas, determina que devem ser realizados estudos técnicos e levantamentos necessários a fim de conhecer o caudal e a reposição das fontes nas diferentes bacias aqüíferas, o grau de qualidade e contaminação das águas e o Cadastro de Perfurações nas diferentes áreas provinciais. A lei cria o Conselho Regulador do Uso de Fontes de Água (Corufa) como Autoridade de Aplicação da Lei de Águas. O Conselho requererá necessariamente, para cada resolução, a opinião fundada das ONGs interessadas na matéria; dos municípios envolvidos pelo projeto, da Universidade Nacional de Entre Ríos, dos Conselhos ou Colegiados Profissionais com incumbências afins. A lei ainda cria o Fundo Provincial de Águas e estabelece a participação da sociedade na elaboração dos programas para a preservação e a restauração do equilíbrio e a proteção do meio ambiente. Estabelece também a obrigação do Estado de velar pela preservação das águas; evitar o seu esgotamento ou contaminação; e demandar a apresentação obrigatória dos estudos de impacto ambiental potencial pelas obras eventualmente projetadas. Existe também o Regulamento de Estudo, Planejamento, Uso e Preservação da Água Termal de Entre Rios. Por água termal, entendemse todas as águas de origem subterrânea cuja temperatura na superfície seja superior à média do lugar, maior que 25º, e estejam contidas em formações basálticas ou infrabasálticas da chamada “Bacia Geológica Paraná”. O Regulamento cria Livros de Registro de autorizações, concessões e perfurações e exige estudos de viabilidade para a exploração e a perfuração de poços. Outras leis estabelecem a promoção das atividades de exploração dos recursos naturais do subsolo; o amparo ambiental; a criação de áreas naturais protegidas; a regulação da construção e a manutenção de obras para a defesa e o manejo de águas; e o regime de definição e demarcação da linha de ribeira e dos mapas de zona de irrigação hídrica nos rios Paraná, Uruguai e interiores à província.

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3.2.5 Província de Formosa Sua Constituição estabelece, no artigo 51, que a província tem domínio pleno, exclusivo, imprescritível e inalienável sobre as fontes de energia hidráulica; no artigo 52, ratifica os direitos de condomínio público para os rios limítrofes ao seu território; no artigo 53, afirma: “A Província deve buscar o aproveitamento integral e o uso racional da água, respeitando as prioridades que derivam das necessidades de consumo da população e o desenvolvimento do setor primário e industrial. Um código de águas regulamentará tudo o que diga respeito a este recurso”. E, no artigo 120, confere ao Poder Legislativo a competência de ditar o Código de Águas. Fazem parte das atribuições dos Ministérios: Produção: entender da implementação da política provincial de recursos naturais, no levantamento, conservação, recuperação, defesa e desenvolvimento dos recursos naturais; realizar estudos de conservação dos solos e da água, com vistas a alcançar o maior aproveitamento dos mesmos; aplicar as normas sobre contaminação ambiental e intervir na adoção de meios para a defesa dos cursos das águas, das zonas inundáveis e insalubres, e na criação da política hídrica provincial; Economia, Obras e Serviços Públicos: auxiliar o governo no tocante a obras e serviços públicos; elaborar e implementar planos de irrigação e eletrificação rural; estudar, projetar e explorar os planos de irrigação e eletrificação rural; estudar, projetar e explorar serviços de água potável, esgotos e dejetos industriais; aplicar medidas para a defesa de cursos de água, alagadiços e zonas inundáveis ou insalubres, e em tudo o que diga respeito a obras e serviços de água potável e saneamento, assim como a cessão e a fiscalização dos trechos onde há repartições provinciais, municipais e privadas; Desenvolvimento Humano: lidar com as questões relacionadas ao abastecimento de água potável, eliminação de esgotos e todos os outros serviços sanitários. O Código de Águas de Formosa estabelece como “objetivo regular o conhecimento, a gestão, o aproveitamento, o controle, a conservação, a proteção e a defesa das águas, seus leitos e obras hidráulicas”. Para ele, as águas subterrâneas pertencem ao domínio público: “São bens do Estado provincial: os rios, seus leitos e todas as águas que correm


por seus cursos naturais, com exceção das vertentes que nascem e terminam dentro de uma área particular. [...] Todas as águas que se derivam dos rios, sejam afluentes seus ou águas extraídas por meios de canais, aquedutos e qualquer obra pública, bem como as águas de desagües posterior à saída da propriedade e as que provenham de dessecação de lamaçais e drenagens em geral”. Como Autoridade de Aplicação do Código, está designada a Direção de Recursos Hídricos da província. O Código (1) determina a realização de estudos permanentes com vistas ao máximo aproveitamento do recurso, para impedir e prevenir perdas, e a confecção de mapas gerais e por zonas; (2) proíbe e sanciona a contaminação das águas superficiais e subterrâneas; (3) estabelece a prioridade do uso comum sobre o especial, com prioridade para o abastecimento de populações (fixa um volume mínimo, por dia, de 150 litros por habitante), os usos doméstico e municipal; em seguida, priorizam-se a irrigação; o uso pecuário; energético; industrial; terapêutico; mineração; navegação e flotação; piscícola e recreativo - “a concessão não envolve a alienação parcial ou total da água pública, que é inalienável, mas sim outorga a seu titular um direito subjetivo ao seu aproveitamento”; (4) contempla o resguardo das águas termais para que não sejam afetadas as fontes. Diz o Código: “Obrigações do Estado: o Estado provincial proporcionará as obras hidráulicas necessárias à prestação dos serviços públicos de utilidade comum, à preservação e à melhoria do recurso hídrico, à sua defesa contra efeitos nocivos e para o desenvolvimento econômico e social de acordo com os planos aprovados”. O Código ainda estabelece os Registros de Água para: Águas Públicas, outorgadas em uso, mediante permissão; Empresas Perfuradoras, para a extração de águas subterrâneas; e Técnicos Responsáveis e Consórcios de Usuários de Águas Públicas; e o Cadastro da Água. Para prospecção, escavação e uso de águas subterrâneas que não sejam de uso comum, é necessária uma permissão. O/a representante da empresa interessada deve ser engenheiro/a em recursos hídricos, ou civil, ou hidráulico ou geólogo/ a ou licenciado/a em Geologia. Os poços manterão uma distância mínima de 100 metros entre si e em relação a ribeiras e bordas de rios e arroios com caudal permanente; e 200 metros como mínimo, quando não tenham sido feitos pela Administração Pública como acessórios de obras de irrigação e com o fim de recuperar águas subterrâneas aos cursos naturais ou captar outras mais profundas para reforçar a irrigação; e ao redor dos mesmos, estabelece uma zona de proteção dentro da qual está proibida a perfuração para extração de água. A Lei de Política Ecológica e Ambiental regula as políticas de manejo de água; estabelece a proteção dos corpos de água superficiais e subterrâneos como bens de interesse geral e obrigatórios para todos os habitantes; determina que a Autoridade de Aplicação planejará ações hidrológicas e hidráulicas elaborará o plano hidrológico da bacia, seu acompanhamento e revisão, a administração e o controle do domínio público hidráulico e dos aproveitamentos de interesse geral; adotará medidas para complementar os convênios internacionais em matéria de água, implementará e gerirá o sistema de alerta hidrológico e controle de qualidade das águas, realizará os planos hidrológicos; definirá as diretrizes para a recarga e a proteção dos aqüíferos e intervirá na declaração de zonas críticas de proteção especial a determinadas bacias ou planos de

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bacias, aqüíferos, áreas ou volumes de água, por suas características naturais ou de interesse ambiental. 3.2.6 Província de Misiones Sua Constituição estabelece, no artigo 58, que “a Província tem domínio pleno, imprescritível e inalienável sobre as fontes naturais de energia existentes no seu território”; e no artigo 59, afirma que os serviços públicos correspondem originariamente à província ou aos municípios, mas a sua exploração pode ser feita pelo Estado, por entes autárquicos, autônomos ou cooperativas de usuários. O artigo 101 da Câmara de Representantes regulamenta os serviços públicos provinciais. A Lei de Águas de Misiones determina que a Câmara deve reger a província no sistema de estudo, aproveitamento, conservação e preservação dos recursos hídricos de domínio público: “A Província de Misiones procurará o uso diversificado de suas águas, coordenando e harmonizando o seu uso junto aos demais recursos naturais. Para isso, inventariará e avaliará os recursos hídricos, planejará e regulará a sua utilização, com vistas à sua conservação e ao máximo benefício geral”. A lei (1) determina que, nos planos em que as águas são necessárias como fator de desenvolvimento, têm prioridade os projetos de uso múltiplo técnica, econômica e socialmente justificados; (2) cria o Registro de Águas Públicas outorgadas em uso mediante concessões ou autorizações; o Registro de Empresas de Serviço de Engenharia para o aproveitamento dos recursos hídricos e de seus técnicos responsáveis; e o Cadastro de Água; (3) estabelece o direito de todas as pessoas ao uso comum das águas públicas, que tem prioridade irrestrita sobre qualquer uso privativo e é gratuito, com exceções para os casos em que, para o seu exercício, seja necessária a prestação de um serviço. O uso especial da água requer uma autorização ou concessão e está condicionado à disponibilidade do recurso e às necessidades reais do titular. O uso especial compreende: o uso doméstico e o abastecimento de populações (prioritário) e municipal; medicinal (águas termais, que não podem ser exploradas comercialmente sem autorização); energético (quando a potência exceder 847 KW, quando um serviço público é prestado ou quando as instalações cau-

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sarem prejuízos a terceiros, este uso será apenas outorgado por força de lei); industrial (determinado em litros por segundo); agrícola; pecuário (determinado em metros cúbicos); recreativo; piscícola; de mineração (para este, intervém conjuntamente a Autoridade de Mineração; e caso se encontrem águas subterrâneas, o fato deve ser denunciado e a contaminação de aqüíferos, impedida); de navegação e flotação. Para as águas subterrâneas, fica estabelecido: “A Autoridade de Aplicação, junto à Autoridade de Mineração, se encarregará de promover e realizar estudos e trabalhos, incluindo perfurações, relacionados ao conhecimento, uso e controle de águas subterrâneas e a supervisão das ações realizadas por particulares. O Estado provincial pode explorar e extrair águas subterrâneas em áreas fiscais desocupadas ou com ocupação precária, bem como realizar as obras necessárias para o seu aproveitamento com fins de interesse público; conceder o uso dessas águas a entes públicos ou Consórcios de Usuários por períodos de até dez anos; outorgar autorizações de exploração e perfuração em terrenos fiscais desocupados ou com ocupação precária. O extrator terá direito à concessão; a realizar, com fins de estudo, tarefas de exploração e perfuração em prédios privados, efetuando indenizações por prejuízos causados; ditar medidas de fomento à exploração dos aqüíferos; fixar zonas de reservas, dentro das quais não se autorizará a extração de águas subterrâneas, salvo para uso comum; exercer o controle das obras e medidas de perfuração extração e aproveitamento da água subterrânea, para o seu devido uso e a sua preservação.” A lei estabelece que o Estado provincial deve realizar obras hidráulicas, quando necessário, para a preservação e o aprimoramento do recurso hídrico; para a defesa; a prestação de serviços públicos de utilidade comum; para o fomento e o desenvolvimento econômico e social, de acordo com os planos aprovados. O Instituto Misionero de las Aguas se encarrega da sua administração e do seu governo. Atualmente, está em tramitação no Poder Legislativo de Misiones um novo projeto de Código de Águas, idêntico aos códigos do Chaco e de Corrientes.


3.2.7 Província de Santa Fé Atribuições dos Ministérios: Agricultura, Pecuária, Indústria e Comércio: intervir nos planos de eletrificação rural e irrigação e na elaboração de uma política hídrica para os sistemas produtivos; Obras, Serviços Públicos e Habitação: cuidar das obras públicas; formular e aplicar a política hídrica provincial; fazer obras de defesa contra inundações e para a proteção do litoral; regulamentar atividades a serem desenvolvidas em zonas de inundação dentro do território provincial; agir em tudo o que se relacione às obras de água, sanitárias, de evacuação de esgotos e vazão de chuvas; aos acordos interjurisdicionais para o manejo de sistemas hidrológicos compartilhados e tudo o que se relacione ao sistema energético, especialmente à energia hidrelétrica; Saúde e Meio ambiente: intervir nos aspectos sanitários relacionados à água potável e à eliminação de esgotos. À Secretaria de Recursos Hídricos, cabe auxiliar na formulação da política hídrica provincial e agir em tudo o que se relacione à defesa do litoral e contra inundações, no tocante a obras hidráulicas e ao manejo dos sistemas hidrológicos compartilhados. À Direção Provincial de Recursos Naturais, cabe sistematizar o conhecimento e racionalizar o uso do solo e das águas. O Código de Águas de Santa Fé estabelece que “a água é um recurso natural de domínio público provincial. Este inclui os leitos naturais de águas superficiais, correntes ou estancadas, suas nascentes e os aqüíferos”. O Código estabelece: “o domínio da província sobre as águas públicas é inalienável e inembargável. Ninguém poderá adquirir por prescrição o domínio dessas águas ou dos seus cursos, tampouco direito algum de natureza civil ou administrativa. O recurso hídrico provincial está fora de comércio por ser um bem de domínio público. O domínio originário da província não pode ser alienado sem uma lei que disponha quanto à sua desafetação. Será considerado nulo e sem efeito qualquer ato da Administração Nacional ou Municipal que modifique ou extinga os direitos da província sobre as águas de seu domínio público”. Conforme o Código, a bacia é uma unidade física que deve ser considerada de forma integral e “a água é una e se encontra na natureza em forma atmosférica, superficial e subterrânea, apresentando-se em estado sólido, líquido ou gasoso sem respeitar limites políticos. O seu uso deve respeitar a unicidade do ciclo hidrológico”. Segundo o Código, “o direito humano à água outorga o direito a contar com água suficiente a um preço exeqüível, fisicamente acessível, segura e de qualidade aceitável para usos pessoais e domésticos”; e ainda: “a água é um alimento e um bem econômico com alto valor social e ambiental, que integra o processo produtivo e que o Estado provincial maneja para gerar riqueza subordinada à proteção do meio ambiente e à eqüidade social”. O Código de Santa Fé é semelhante ao do Chaco e de Corrientes no tocante à política hídrica provincial. O Código (1) determina que são águas de domínio público as que correm por cursos naturais, as que as alimentam e formam, bem como os seus leitos, praias e ribeiras; as que têm propriedades terapêuticas ou propriedades que as tornam aptas ao uso medicinal; bem como as águas subterrâneas, incluindo as termais;

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(2) estabelece a proteção dos recursos hídricos e inclui entre as proibições a construção de poços negros que se conectem com níveis de água subterrânea por meio de perfurações realizadas dentro dos mesmos. Devem-se fixar normas para o uso racional e o controle dos pântanos, buscando conservar a diversidade biológica e as suas funções ecológicas e hidrológicas; e a Autoridade de Aplicação do Código terá uma participação necessária nas gestões para a detecção e declaração de novas Áreas Ramsar (A Convenção Ramsar de Áreas Úmidas é um tratado de cooperação para a conservação e o uso racional das zonas úmidas, estabelecido em 1971). Além disso, a Autoridade poderá designar os aqüíferos onde a extração de água é permitida; modificar métodos, sistemas ou instalações; proibir a extração em caso de baixa no nível do reservatório; estabelecer zonas de proteção em torno dos poços e preservar a qualidade e a conservação das águas. O uso comum tem prioridade sobre o especial, seguido dos usos agrícola; pecuário e de granja; industrial; aqüícola; energético; terapêutico, medicinal ou termal; de mineração (deve-se informar obrigatoriamente a descoberta de aqüíferos e evitar a sua contaminação); turístico, esportivo ou recreativo; e de navegação ou flotação. O Código ainda (1) estabelece que os conflitos surgidos pelas águas interjurisdicionais serão submetidos à Corte Suprema de Justiça da Nação; (2) ratifica as Organizações de Bacias e de Usuários; (3) estabelece o Cadastro de Águas e Obras Hidráulicas, bem como os Registros Públicos de: concessões para uso de águas públicas superficiais; de águas subterrâneas; as permissões de uso de águas públicas e de perfurações para a exploração de águas subterrâneas; as permissões para a exploração de recursos, matérias-primas e materiais nos seus leitos e praias; para as águas privadas; para empresas perfuradoras e seus responsáveis técnicos; para profissionais habilitados a realizar estudos e projetos de obras públicas e privadas; (4) estabelece os conteúdos mínimos para um Plano Hídrico Provincial: o diagnóstico dos recursos hídricos; o equilíbrio entre disponibilidade e demandas futuras, com a identificação de potenciais conflitos; as metas de racionalização do uso, de aumento da quantidade e melhoria de qualidade para os recursos disponíveis e as medidas para alcançá-los; os critérios para a cobrança pelo uso dos recursos; as

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prioridades para a outorga de direitos de uso dos recursos; as previsões para períodos de seca e inundações, e medidas de mitigação para a criação de áreas de proteção; as análises de alternativas de crescimento demográfico, de evolução das atividades produtivas e de modificação de padrões de ocupação de solos. A Autoridade de Aplicação do Código é o Ministério de Assuntos Hídricos, que cuidará de tudo o que se relaciona aos recursos hídricos; controlará e supervisionará as medidas estruturais e não-estruturais realizadas; atuará visando ao uso adequado do recurso em conjunto com as organizações de usuários, as cooperativas de serviço público de água potável e esgotos e organizações vinculadas ao recurso hídrico; centralizará a informação hidrometeorológica; implementará o sistema de alerta hidrológico; participará na avaliação de impactos ambientais para as obras que afetem os recursos hídricos; regulará o uso do solo em zonas inundáveis; resolverá conflitos hídricos; promoverá programas sociais de difusão e educação quanto aos recursos hídricos. Em 2005, as províncias de Buenos Aires, Córdoba, La Pampa e San Luis assinaram em conjunto o Tratado de Criação do Comitê Interjurisdicional da Região Hídrica Nordeste da Planície Pampiana. 3.2.8 Cidade Autônoma de Buenos Aires Carece de um Código de Águas. Sua Constituição estabelece, no artigo 8, que a cidade é “co-ribeirinha ao Rio de la Plata e ao Riachuelo, que constituem, na área sob sua jurisdição, bens de domínio público. Tem direito ao uso eqüitativo e razoável de suas águas e dos demais recursos naturais do rio, seu leito e seu subsolo, e é obrigada a não causar danos sensíveis aos demais entes co-ribeirinhos. Seus direitos não podem ser desviados pelo uso que se possa vir a fazer de outros co-ribeirinhos dos rios e dos seus recursos.”. Tudo isso, sem prejudicar as normas do direito internacional aplicáveis ao rio de la Plata e sob o alcance do artigo 129 da Constituição Nacional. A Cidade possui o domínio inalienável e imprescritível dos seus recursos naturais e acorda junto a outras jurisdições quanto ao aproveitamento racional de todos aqueles que foram compartilhados. Tem plena jurisdição so-


bre todas as formações ribeirinhas aldeãs à sua costa, o que inclui reservas naturais para preservar a flora e a fauna dos seus ecossistemas. Os espaços que formam parte do contorno ribeirinho da cidade são públicos e de livre acesso e circulação. O porto de Buenos Aires é de domínio público da cidade, que exerce o controle de suas instalações, tenham elas ou não uma concessão. Diz o artigo 27 da Constituição: “A cidade promove [...] a preservação e a restauração dos processos ecológicos essenciais e dos recursos naturais de domínio público, [...] a preservação e o incremento dos espaços verdes, das áreas florestais e de bosques, parques naturais e zonas de reserva ecológica e [...] de sua diversidade biológica. A proteção, o saneamento, o controle de contaminações e a manutenção das áreas costeiras do rio de La Plata e da bacia Matanza – Riachuelo, das sub-bacias hídricas e dos aqüíferos [...]. A educação ambiental em todas as modalidades e em todos os níveis”. O artigo 28 da Constituição proíbe o ingresso de resíduos e dejetos perigosos na cidade. Quando analisadas as legislações hídricas das províncias até aqui tratadas, podemos perceber elementos de convergência e de divergência. Apenas as Constituições provinciais do Chaco, Província de Buenos Aires, Formosa, Misiones e da Cidade Autônoma de Buenos Aires reconhecem o direito das províncias sobre os seus recursos naturais, em especial os recursos hídricos. Além disso, as Constitutições do Chaco, Província de Buenos Aires e de Formosa determinam que o aproveitamento desses recursos deve ser feito de modo racional e integral. A Constituição da Província de Buenos Aires estabelece a obrigação de preservar, proteger e recuperar esses recursos. Nas províncias de Buenos Aires e Santa Fé, têm importância o Ministério de Obras e Serviços Públicos; em Corrientes, o Ministério da Agricultura, Pecuária, Indústria e Comércio; no Chaco e em Formosa, o Ministério da Produção; ao passo que, em Entre Ríos, as funções foram compartilhadas. Com exceção da Cidade Autônoma de Buenos Aires, todas as províncias possuem suas leis ou o seu Código de Água, que entre si apresentam, também, semelhanças e diferenças. O Código da província de Buenos Aires atribui ao Poder Executivo a formulação da política hídrica provincial. Todos tratam das águas superficiais e subterrâneas, e a província de Entre Ríos possui um regulamento especial para as águas termais: prioriza-se o consumo humano, animal e agrícola. O Código da província de Formosa determina uma cota mínima de 150 litros diários por pessoa; estabelecem-se a proteção e a preservação contra a contaminação; e ainda as Autoridades de Aplicação; os Registros Públicos e os Cadastros de Águas. Os Códigos de Buenos Aires, Corrientes, Santa Fé e Chaco estabelecem os Comitês de Bacias Hídricas, e o do Chaco cria também as Comissões de Manejo de Água e Solo (Comas). Os Códigos de Buenos Aires, Formosa, Misiones e Santa Fé criam os Consórcios de Usuários; os do Chaco, Corrientes, Entre Ríos e Buenos Aires demandam avaliações ambientais dos projetos; e o Código de Buenos Aires também estabelece as auditorias ambientais. O conceito de uma bacia hídrica como unidade hidrológico-geográfica indivisível está presente nos Códigos de Corrientes, Chaco, Entre Ríos e Santa Fé, e o conceito de bacia interjurisdicional, nos de Corrientes e do Chaco. Os Códigos de Corrientes e do Chaco enfatizam firmemente o não-

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3.2.9 Província de Catamarca O artigo 61 da Constituição de Catamarca estabelece que “os rios, seus cursos e todas as águas que corram por cursos naturais, transcendendo os limites do terreno em que nascem, são de domínio público da província”; o artigo 62 diz: “compete à província regular o aproveitamento das águas dos rios interprovinciais que atravessam o seu território, mediante tratados com as províncias vizinhas”; e o artigo 66 estabelece: “os minerais e as fontes naturais de energia, com exceção das vegetais, pertencem ao domínio público da província. Atividades ligadas à prospecção, exploração, industrialização e comércio de hidrocarburetos sólidos, líquidos e gasosos, dos minerais passíveis de fissão e das fontes de energia hidrelétrica não podem ser objetos de qualquer concessão, salvo a uma entidade autárquica nacional, que não poderá transferir o total ou parte do seu contrato”.

3.2.10 Província de Córdoba A Constituição de Córdoba estabelece que as águas, que são de domínio público, estão sujeitas, em sua utilização e aproveitamento, ao interesse geral. O Estado é o encarregado de regulamentar o seu uso racional e de adotar as medidas necessárias para evitar a sua contaminação. O artigo 66 estabelece que todas as pessoas têm direito a usufruir de um meio ambiente sadio (ambientes físico e social livres de fatores nocivos para a saúde; conservação dos recursos naturais e culturais; preservação da flora e da fauna). Além disso, determina que a água, o solo e o ar são elementos vitais para o ser humano, e, como tais, matéria de proteção especial na província. Ao Estado provincial cabe proteger o meio ambiente, preservar os recursos naturais, ordenar o seu uso e a sua exploração, e resguardar o equilíbrio do sistema ecológico sem discriminar indivíduos ou regiões. O artigo 68 atribui ao Estado provincial a defesa dos recursos naturais renováveis e nãorenováveis, com base no seu aproveitamento racional e integral; a preservação do patrimônio arqueológico, paisagístico; e a proteção do meio ambiente. Atribuições dos Ministérios: Fazenda, Habitação, Obras e Serviços Públicos: realizar e conservar as obras e prestar serviços públicos provinciais; Produção e Trabalho: propor, implementar e fiscalizar um programa provincial de recursos naturais renováveis e um sistema de áreas naturais protegidas na província. Atribuições das Secretarias: Habitação, Obras e Serviços Públicos: realizar e conservar obras hidráulicas e demais trabalhos públicos; Agricultura, Pecuária e Recursos Renováveis: criar e operar áreas naturais em zonas de interesse ou conveniência. Atribuições das Subsecretarias: Obras Públicas: sugerir as políticas para recursos hídricos e o seu aproveitamento; administrar, executar e coordenar os programas acordados com o Serviço Nacional de Água Potável e Saneamento Rural; Saúde e Meio ambiente: cuidar de tudo que se relaciona à problemática ambiental e de saúde.

A Constituição ainda determina que poderá ser concedida às municipalidades ou cooperativas de usuários a exploração das fontes de energia hidráulica.

3.2.11 Província de Chubut A Constituição de Chubut estabelece, no artigo 99: “o Estado exerce o domínio originário e

reconhecimento da água como mercadoria, uma vez que ela é um recurso natural indispensável à vida, ao desenvolvimento e à manutenção do meio ambiente; e no de Santa Fé, uma vez que ela é um bem de domínio público. Este último afirma também que a água é um direito humano, um alimento e um bem econômico com alto valor social e ambiental, e que o seu ciclo é uno. Os Códigos do Chaco e de Santa Fé determinam o domínio de suas respectivas províncias sobre as águas como inalienável e inembargável, e o de Misiones, como imprescritível e inalienável. O de Entre Ríos estabelece a participação da sociedade civil na elaboração dos projetos. Para bacias hídricas compartilhadas, o Código de Buenos Aires estabelece os Comitês de Consulta e o de Santa Fé determina que a Suprema Corte de Justiça da Nação atue como árbitro em caso de desavenças. De todos os modos, deve-se enfatizar que todos eles se ajustam às disposições do Código Civil. Quanto às outras províncias, deve-se ter em mente que as províncias de Jujuy, Salta, Córdoba e Santiago del Estero têm uma parte de seus territórios compreendidos pela Bacia do Prata.

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eminente dos recursos naturais renováveis e não-renováveis, migratórios ou não, que se encontrem em seu território e sua costa, exercendo o controle ambiental sobre eles. Promove o aproveitamento racional dos recursos naturais para o seu desenvolvimento, conservação, restauração ou substituição”. O artigo 101 diz: “São de domínio do Estado as águas públicas localizadas sob sua jurisdição que sejam ou possam vir a ser aptas a satisfazer o interesse geral. A lei regula o governo, a administração e o manejo unificado e integral das águas superficiais e subterrâneas, a participação direta dos interessados e o fomento dos empreendimentos e das atividades qualificadas como de interesse social. A província acerta junto às outras jurisdições o uso e o aproveitamento das bacias hídricas comuns”. Segundo o artigo 107, “o Estado promove o aproveitamento integral dos recursos pesqueiros e subaquáticos, marinhos e continentais, resguardando o seu equilíbrio correspondente. Fomenta a atividade pesqueira e conexa, a industrialização em terra e o desenvolvimento dos portos provinciais, preserva a qualidade do meio ambiente e coordena-se às distintas jurisdições nas políticas respectivas”. Atribuições dos Ministérios: Fazenda, Obras e Serviços Públicos: auxiliar o governo da província na programação e execução de obras hídricas, nos projetos de provisão de água potável e no fomento de cooperativas para a prestação dos serviços sanitários; Produção e Turismo:auxiliar o governo nas questões ligadas aos recursos naturais renováveis e não-renováveis; ao meio ambiente; à formulação, condução e fiscalização da política agropecuária, florestal, de mineração, industrial, hídrica, turística, pesqueira e comercial da província; à conservação e ao uso sustentável dos recursos renováveis; à política de aproveitamento dos recursos hídricos; ao regime de águas e sua fiscalização; ao tocante aos recursos hídricos, ao regime de águas e sua fiscalização, ao uso sustentável dos recursos do mar e das águas continentais; à proteção do solo, água, flora e fauna autóctones, e áreas naturais; às pesquisas referentes aos recursos naturais renováveis e nãorenováveis, e à elaboração dos inventários que se fizerem necessários. 3.2.12 Província de Jujuy A Constituição de Jujuy estabelece, no artigo 22: “Cabe à província [...] eliminar ou evitar, exercendo efetiva vigilância e fiscalização, todos os fatores que possam causar a contaminação do ar, da água e do solo [...]. Promover o uso racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica”. O artigo 75 diz: “Cabe à província regular o uso e o aproveitamento de todas as águas do seu domínio e privadas. Todas as questões que se refiram ao uso das águas superficiais ou subterrâneas estarão a cargo de um organismo descentralizado, cujos membros serão nomeados pelo

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Poder Executivo e terão as atribuições e os deveres que lhes determinarem a lei. Enquanto não se fizer um estudo das capacidades de rios, lagos, diques e arroios da província, só poderão ser emitidas novas concessões de água mediante um informe técnico do organismo competente [...]. Serão outorgadas concessões e autorizações para os seguintes usos: doméstico, municipal e de abastecimento a populações, industrial, agrícola, pecuário, energético, recreativo, de mineração, medicinal, piscícola e de qualquer outro benefício para a comunidade. Será criada a legislação orgânica em matéria de obras de irrigação, defesas, saneamento de terras, construção de deságües, poços e nascentes, e exploração racional e técnica de águas subterrâneas”. O artigo 123 determina, entre as atribuições do Poder Legislativo, a criação de leis de preservação dos recursos naturais e do meio ambiente, de proteção de espécies animais e vegetais úteis ou autóctones, de florestamento e reflorestamento; e a disposição do regime de serviços públicos provinciais. Cabe ao Ministério de Obras e Serviços Públicos auxiliar o governo em tudo o que diz respeito a saneamento, aproveitamentos hídricos e hidráulicos, e irrigação. Também deve: (1) conduzir a execução do regime de uso de recursos hídricos, integral e coordenado a partir dos pontos de vista funcional, territorial, social e econômico, para que o uso melhore as condições de vida da população, sirva como instrumento de integração territorial e contribua ao progresso socioeconômico; (2) coordenar os programas de política hídrica e energética da província, exercendo a condução geral da administração e do controle de recursos hídricos e energéticos em geral; (3) administrar, coordenar e supervisionar obras e serviços de água potável, deságües e saneamento na província; (4) assessorar, aprovar e fiscalizar os deságües pluviais, esgotos e dejetos industriais, demais projetos de saneamento, os regimes de água superficial e subterrânea, as obras de aproveitamento hídrico, irrigação, uso industrial, tratamento de efluentes e saneamento em geral; (5) regular o uso da água e o manejo de caudais hídricos vinculados à exploração agrícola, pecuária, florestal, industrial e de recursos naturais renováveis (solo, bosques, flora e fauna).

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3.2.13 Província de La Pampa A Constituição de La Pampa estabelece, no artigo 41: “o aproveitamento das águas públicas superficiais e das correntes subterrâneas será regulado por lei especial e o Poder Executivo promoverá a celebração de convênios com as outras províncias da Nação, para o uso dos cursos de águas comuns, e que se devem considerar, em suas bacias unitárias”. O artigo 42 determina que os serviços públicos pertencem originalmente ao Estado provincial ou municipal, e que a exploração dos mesmos será feita preferencialmente pelo Estado, pelos municípios, entes autárquicos ou autônomos e pelas cooperativas de usuários nas quais entidades públicas possam intervir; e prevê ainda a possibilidade de concessões a particulares e a fixação de formas e condições de exploração dos serviços públicos por uma lei especial. Atribuições dos Ministérios: Bem-Estar Social: promover e fiscalizar projetos e programas de abastecimento de água potável, disposição de esgotos e todo outro serviço sanitário, intervindo na formulação de medidas relativas ao saneamento ambiental; Produção: intervir na execução da política de irrigação e colonização do rio Colorado e de qualquer outra área apta a tais fins; Fazenda, Obras e Serviços Públicos: intervir na execução dos planos e na administração de obras hidráulicas com fins energéticos, de irrigação, saneamento e defesa, junto a entidades provinciais e nacionais; e explorar os serviços de obras sanitárias e água potável provinciais. Além dos ministérios, cabe à Subsecretaria de Ecologia intervir nas questões referentes à conservação, à recuperação e ao uso racional dos recursos naturais. 3.2.14 Província de La Rioja A Constituição de La Rioja estabelece, no artigo 62, que “a província, no exercício da soberania inerente ao povo, é dona originária de todas as substâncias minerais e fontes naturais de energia, incluindo os hidrocarburetos existentes em seu território, com exceção dos vegetais”. O artigo 63 diz: “são de domínio público da província os lagos, rios e seus afluentes, bem como todas as águas públicas existentes sob sua jurisdição”. Conforme o artigo 64, os serviços públicos pertencem originariamente à provín-


cia ou às municipalidades e podem ser concedidos em exploração a particulares, priorizando as entidades cooperativas. Atribuições dos Ministérios: Desenvolvimento da Produção e Turismo: fazer o uso responsável dos recursos naturais, com a elaboração e execução das políticas, otimizando os recursos hídricos requeridos para o desenvolvimento provincial, coadunando-se às políticas nacionais de obtenção e aproveitamento de recursos hídricos; Saúde e Desenvolvimento Social: criar programas de abastecimento de água potável, evacuação de esgotos e outros serviços complementares. 3.2.15 Província de Mendoza A Constituição de Mendoza estabelece, no artigo 186, que “o uso da água de domínio público da província é um direito inerente às propriedades territoriais”; o artigo 188 determina: “todos os assuntos que se refiram a irrigação na província e não sejam de competência da justiça comum estão exclusivamente a cargo de um Departamento Geral de Irrigação, composto de um Superintendente [...], um Conselho [...] e das demais autoridades determinadas por lei”. O artigo 191 encarrega a Legislatura de criar a lei de irrigação e regulamentar as atribuições e os deveres do Superintendente, do Conselho e das demais autoridades da área. Determina também que obras como diques de distribuição, de represa e grandes canais, projetadas pelo Executivo e pelo Departamento de Irrigação, devem ser autorizadas por lei; e que, enquanto não se fizer um estudo das capacidades dos rios provinciais e dos seus afluentes, não serão dadas novas concessões de água sem um informe prévio do Departamento de Irrigação e uma lei especial, que será sancionada ou não pela Legislatura. Cabe ao Ministério do Meio Ambiente e Obras Públicas (1) promover, orientar, coordenar e fomentar o desenvolvimento de obras e serviços públicos; (2) promover o uso racional dos recursos naturais disponíveis, o estudo, projeto, coordenação, execução e aprimoramento das obras sanitárias e de geração energética; (3) planejar, coordenar e fiscalizar os serviços de água potável, sanitários, de saneamento urbano e rural, concessões materiais, técnicas, prestação de serviços públicos; (4) promover, adaptar e aperfeiçoar a legislação a respeito de águas subterrâneas e superficiais, servindo de elo entre Organismos Provinciais de Energia; de Obras Sanitárias; Ente Provincial de Água e Saneamento; Instituto de Política Energética; Departamento Geral de Irrigação; Administração de Parques e Zoológicos e Poder Executivo. 3.2.16 Província de Neuquén A Constituição de Neuquén determina, no artigo 101, que o Poder Legislativo deve redigir o Código de Águas; o artigo 228 diz: “o espaço aéreo, as jazidas de mineração e todo o conteúdo do subsolo do território da província do Neuquén são de sua jurisdição e domínio”; o artigo 232 diz: “a utilização e a exploração de petróleo, gás, carvão, energia hidrelétrica e outros minerais devem ser feitas com obras produtivas que tragam benefícios permanentes para a província”. Cabe ao Ministério de Economia, Obras e Serviços Públicos tudo o que se refere a obras e serviços públicos, em especial no tocante às obras de hidráulica em geral e irrigação em particular. Em sua esfera, está o Ente Provincial de Água e Saneamento.

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À Secretaria de Estado e Produção, cabe intervir nas políticas de preservação, promoção e desenvolvimento dos recursos naturais; nos problemas de conservação, recuperação e uso racional de água, solo e produtos agropecuários; no domínio provincial das águas, nos aproveitamentos hídricos, no manejo integral de bacias e na administração integral do recurso hídrico. Em sua esfera, atua a Corporação de Desenvolvimento da Bacia do Curí – Leuvú. 3.2.17 Província de Rio Negro A Constituição de Rio Negro estabelece, no artigo 70: “A província tem a propriedade originária dos recursos naturais existentes em seu território, subsolo, espaço aéreo e mar adjacente ao seu litoral. A lei preserva sua conservação e seu aproveitamento racional e integral [...]. A Nação não pode dispor dos recursos naturais da província sem um acordo prévio mediante leis de convênio”. O artigo 71 diz: “são de domínio do Estado as águas públicas localizadas em sua jurisdição, que tenham ou adquiram aptidão a satisfazer usos de interesse geral. O uso e usufruto das mesmas devem ser outorgados por autoridade competente”; além disso, determina que o Código de Águas regula tudo o que se refere ao recurso e que a província acorda com outras o uso e o aproveitamento das bacias hídricas comuns. O artigo 72 diz: “a província preserva, regula e promove os seus recursos ictícolas e a pesquisa científica dentro das áreas marítimas de jurisdição provincial dos demais cursos ou espelhos d’água; fomenta a atividade pesqueira e os portos provinciais. Na jurisdição marítima, complementa suas ações com a Nação” O artigo 73 assegura o livre acesso com fins recreativos às ribeiras, costas dos rios, aos mares e espelhos d’água de domínio público, determinando que o Estado regule as obras necessárias à defesa das costas e a construção de vias de circulação pelas ribeiras; o artigo 139 outorga ao Parlamento a competência para redigir o Código da Água. Cabe ao Ministério da Economia e da Fazenda a competência quanto aos recursos naturais renováveis e não-renováveis, e à Secretaria de Obras e Serviços Públicos, o tocante aos serviços públicos provinciais.

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3.2.18 Província de Salta A Constituição de Salta estabelece, no artigo 80, que “é obrigação do Estado e de toda pessoa proteger os processos ecológicos essenciais e os sistemas de vida dos quais dependem o desenvolvimento e a sobrevivência humana”. O artigo 83 diz: “as águas de domínio público da província se destinam a satisfazer necessidades de consumo e produção. Os poderes públicos preservam a qualidade e regulam o uso e o aproveitamento das águas superficiais ou subterrâneas sob o domínio da província. O uso das águas de domínio público destinadas às necessidades de consumo da população é um direito e não pode ser objeto de concessões em favor de pessoas privadas. O uso das águas de domínio público destinadas à irrigação é um direito inerente à propriedade territorial, em cujo benefício se autoriza na medida e sob as condições determinadas pela lei, observando-se a sua função social e econômica. Os poderes públicos estimulam a expansão das zonas de baixa irrigação e a formação de consórcios de irrigação. Os usuários da água pública têm participação em tudo o que diz respeito ao seu aproveitamento. A província regula o aproveitamento dos rios interprovinciais que nasçam ou atravessam o seu território, mediante leis ou tratados com as outras províncias ribeirinhas”. O artigo 85 diz: “os poderes públicos promovem o uso e a conservação das fontes de energia [...], estimulam a pesquisa, o desenvolvimento e o aproveitamento das fontes de energia nãoconvencionais”. Atribuições dos Ministérios: Produção e Emprego: formular e executar um plano unificado de obras públicas com vistas ao aproveitamento máximo das bacias hídricas; Saúde Pública: cuida de tudo que se relaciona ao controle da água para o consumo e à preservação do meio ambiente. 3.2.19 Província de San Juan Sua Constituição estabelece, no artigo 113, que “A província tem pleno domínio, imprescritível e inalienável, sobre todas as substâncias minerais [...], as fontes de energia hidrelétrica, solar ou geotérmica [...] que se encontrem dentro do seu território”. O artigo 117 diz:


“Cabe à província regular o uso e o aproveitamento das [...] águas de domínio público [...]; pode conceder, na forma que determina a lei, o uso das águas para agricultura e outros fins especiais. Tais concessões não poderão limitar o direito da província de usar essas águas para fins de interesse geral. O direito natural à água para a bebida das pessoas, necessidades domésticas e bebedouros de animais fica sujeito aos regulamentos gerais que venha a ditar a autoridade competente. A concessão do uso e usufruto da água para benefício e cultivo de uma propriedade constitui um direito inerente e inseparável do imóvel e passa aos adquirentes do domínio”. O artigo 118 diz que o tocante ao uso de águas públicas superficiais e subterrâneas cabe ao Estado provincial; o artigo 119 rege a outorga de concessões de água para abastecimento de populações, explorações agrícolas, usos industriais e energia hidráulica; e o artigo 120 estabelece que as obras hidráulicas serão definidas por lei Cabe ao Ministério de Produção, Infra-Estrutura e Meio ambiente fazer o aproveitamento dos recursos naturais na província, bem como o aproveitamento e a distribuição dos recursos hídricos. 3.2.20 Província de San Luis A Constituição de San Luis estabelece, no artigo 88, que a província tem domínio pleno, imprescritível e inalienável sobre todas as substâncias minerais, fontes naturais de energias hidráulica e geotérmica que se encontrem dentro do seu território; declara de interesse público geral o patrimônio aqüífero provincial; e reivindica o seu domínio sobre o mesmo e os direitos sobre os rios interprovinciais ou limítrofes. Além disso, determina que o Estado deve buscar o aproveitamento integral e o uso racional da água, respeitando as prioridades que derivam das necessidades da população e do seu desenvolvimento agroindustrial e de mineração. O que se refere ao uso das águas superficiais e subterrâneas está a cargo do Estado provincial na forma que determina a lei. Atribuições dos Ministérios: Fazenda e Obras Públicas: responsáveis por tudo o que se refere ao manejo, à projeção e à avaliação dos recursos hídricos, e por tudo o que se refere às obras hidráulicas e à regulação de bacias, correção de torrentes, defesa de deságües e saneamento de zonas afetadas; Desenvolvimento Humano e Social: conservar os recursos naturais e renováveis; reger as obras públicas e privadas sobre o meio ambiente; Indústria, Turismo, Mineração e Produção: ordenar o uso das águas públicas para a agricultura e a pecuária. 3.2.21 Província de Santa Cruz A Constituição de Santa Cruz estabelece, no artigo 52, que a província tem o domínio dos recursos naturais existentes em seu território, renováveis ou não, incluindo solo, subsolo, mar adjacente às suas costas, leitos, plataforma continental, fontes de energia; o artigo 73 demanda a exploração racional dos recursos naturais; o artigo 74 diz que a lei agrária fomentará a irrigação; e o artigo 104 atribui ao Poder Legislativo a legislação sobre canais de navegação e exploração de rios. Cabe ao Ministério da Economia e Obras Públicas tudo que diz respeito a obras públicas, especialmente o que se refere ao emprego das águas, aos serviços públicos, às atividades hidrometeorológicas, à exploração das bacias hídricas e hidrelétricas e à exploração do subsolo.

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3.2.22 Província de Santiago del Estero A Constituição de Santiago del Estero estabelece, no artigo 108: “As águas de domínio público da província estão destinadas a satisfazer as necessidades de consumo e produção […] Os poderes públicos preservam a localidade e regulam o uso e aproveitamento das águas superficiais, subterrâneas e termais que integram o domínio da província. [...} Os usuários de água pública têm participação em tudo que concerne ao aproveitamento desse recurso”; O artigo 109 estabelece que a província deve regular o uso e o aproveitamento dos rios interprovinciais que atravessam seu território, mediante tratados com outras províncias sobre a base de participação eqüitativa e razoável, priorizando os usos consuntivos das águas da bacia, evitando a contaminação e o esgotamento das fontes. Cabe ao Ministério da Economia, Obras e Serviços Públicos atuar no tocante à construção, manutenção e conservação de obras públicas provinciais. 3.2.23 Província de Terra do Fogo, Antártida e Ilhas do Atlântico Sul Sua Constituição estabelece, no artigo 54, que “a água, o solo e o ar, como elementos vitais para o ser humano, são matéria de especial proteção por parte do Estado provincial [...]; o Estado provincial preserva os recursos naturais e ordena o seu uso e aproveitamento”. O artigo 81 diz: “são de domínio exclusivo, inalienável e imprescritível da província [...] os recursos naturais renováveis e não-renováveis, e os contidos no mar adjacente e no seu leito [...]. A Legislatura criará leis para a proteção desse patrimônio a fim de evitar a exploração e o uso irracionais”. Conforme o artigo 83, “as águas de domínio público e o seu uso estão sujeitas ao interesse geral. O Estado, mediante uma lei orgânica, regula o uso racional das águas superficiais e subterrâneas, adotando medidas com o fim de evitar sua contaminação e o esgotamento das fontes”; o artigo 87 diz: “dentro das áreas marítimas de jurisdição provincial e dos cursos ou espelhos d’água, o Estado provincial preserva, regula e promove seus recursos hidrobiológicos

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e a pesquisa científica”; e o artigo 105 determina a competência do Parlamento para criar leis quanto aos recursos renováveis e nãorenováveis, bem como ao uso e à disposição dos bens provinciais. Cabem às Direções as seguintes tarefas: Direção Geral de Recursos Naturais: administrar e regular em matéria de águas públicas subterrâneas e superficiais, propiciando a preservação e o desenvolvimento dos recursos; Direção de Hidráulica e Recursos Energéticos Renováveis: realizar estudos, levantamentos e inventários dos recursos hídricos superficiais, de acordo com as diferentes bacias, para planejar seu ordenamento e identificar possíveis usos; Direção Provincial de Obras e Serviços Sanitários: elaborar e executar tudo o que se refere ao planejamento, à provisão e ao abastecimento de água potável, aos serviços de esgoto, ao saneamento urbano e suburbano. O Departamento de Hidráulica e Informação Básica tem as tarefas de implementar e manter a rede hidrométrica; realizar estudos hidrológicos para projetos hidráulicos e cálculos de caudal; redigir o Boletim de Dados Hidroclimáticos e manter as equipes e o instrumental da Estação de Vigilância Atmosférica Global. Cabe às seguintes Divisões: Divisão de Hidráulica: realizar mensurações de caudais de rios; avaliar a qualidade dos corpos de água; estudar as fontes de água potável; cadastrar as águas subterrâneas e superficiais; registrar as concessões; realizar projetos para aproveitamentos hidrelétricos, para obras hidráulicas e de irrigação, e estudos de viabilidade de implementação de microturbinas; Divisão de Informação Básica: responsável por tudo o que se relaciona à rede meteorológica básica e à hidrometeorologia. 3.2.24 Província de Tucumán Sua Constituição estabelece, no artigo 41, que a província preservará os recursos naturais; prevenirá e controlará a contaminação e a degradação do meio ambiente por erosão; e estabelecerá a obrigatoriedade da avaliação prévia de impacto ambiental para todas as obras públicas e privadas que possam afetar o entorno. Cabe ao Ministério da Economia executar a política e os planos de obras e serviços públicos, bem como formular e aplicar as políticas que visem a preservar, promover e desenvolver os recursos naturais.


A legislação hídrica dessas províncias até aqui tratadas também apresenta coincidências e diferenças. As Constituições de Catamarca, Chubut, La Rioja, Río Negro, San Luis, Santa Cruz, San Juan e Terra do Fogo estabelecem o domínio das províncias sobre seus recursos, mas estas duas últimas determinam que esse domínio é imprescritível e inalienável. As Constituições das províncias de Córdoba, Chubut, Jujuy, Terra do Fogo, Río Negro e San Luis estabelecem o aproveitamento racional e integral dos recursos; as de Córdoba, Chubut, Jujuy, Río Negro, Salta, Santiago del Estero, Terra do Fogo e Tucumán, a preservação dos mesmos. Algumas peculiaridades merecem destaque: a Constituição de La Pampa incorpora o conceito de unidade de bacia com o recurso compartilhado; a de Santiago del Estero cria o Conselho de Águas para Irrigação e estabelece a participação dos usuários de água pública em tudo que diz respeito a seu aproveitamento; a de La Rioja prioriza a concessão dos serviços públicos às cooperativas; a de Salta e Santiago del Estero estabelece que as águas de domínio público se destinam a satisfazer as necessidades de consumo e produção, e a de Mendoza determina que a água é de domínio público. Observa-se a importância dos seguintes Ministérios: Obras e Serviços Públicos nas províncias de Córdoba, Jujuy, Mendoza (onde o Ministério se chama Meio ambiente e Obras Públicas) e San Luis (onde se chama Fazenda e Obras Públicas); Economia e Obras Públicas em Santa Cruz e Santiago del Estero; Produção e Turismo em Chubut e La Rioja; Produção e Emprego em Salta e San Juan; e Economia em Tucumán. Nas províncias de La Pampa, Río Negro e Terra do Fogo, as tarefas estão mais repartidas, e em Neuquén, o organismo de maior importância é a Secretaria de Estado e Produção. Com as exceções de Terra do Fogo e Tucumán, todas as outras províncias possuem Leis ou Códigos de Água. A Lei de Águas de Mendoza constitui um caso muito especial, não apenas porque é a lei mais antiga do pais (foi sancionada no ano de 1884), mas porque criou uma série de organismos específicos: o Departamento Geral de Irrigação, que trata da administração dos recursos; o Conselho de Apelações, tribunal de última instância administrativa para o uso e a distribuição da água; os Subdelegacias de Bacias, que administram um rio em particular; as Inspeções de Leitos, que representam as Comissões de Irrigação e administram o recurso para irrigação; e a Assembléia Geral de Usuários. Vê-se, assim, que, já em 1884, determinou-se a participação da sociedade civil nas questões ligadas aos recursos hídricos da província. Outras leis complementares estabeleceram os Consórcios de Usuários, o patrimônio provincial sobre seus recursos, as normas relativas às águas subterrâneas e os planos de gestão integral e coordenada dos recursos superficiais e subterrâneos. Todos os Códigos e Leis de Água se ajustam às disposições do Código Civil. Todos se ocupam das águas superficiais e subterrânea, mas Jujuy estabeleceu uma lei especial para as águas termais e Catamarca, as Cooperativas de Irrigação com Águas Subterrâneas. Foram criadas as Autoridades de Aplicação do Código, os Consórcios de Usuários, os Registros Públicos de Água. Jujuy criou os Administradores da Água, e Catamarca, os Tenentes da Água, que estabelecem a preservação dos recursos e dão prioridade aos abastecimentos humano, animal e agrícola. San Juan e Catamarca estabelecem para cada pessoa 150 litros por dia e Salta, 250 litros. O conceito de bacia hídrica aparece nas leis de Catamarca, Córdoba e Chubut, e nos Códigos de Río Negro, Salta e San Luis. Mas Salta estabe-

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lece a unidade de bacia; Chubut cria as Autoridades Delegadas de Bacia; Córdoba, os Comitês de Bacia; e San Luis, os Consórcios e Organismos de Bacias. Catamarca e Río Negro incorporam o princípio de que cada curso de água é uma unidade e, adicionalmente, Río Negro estabelece a unidade de região ou bacia hídrica. As Leis de Catamarca e Chubut e os Códigos de Salta e San Luis estabelecem claramente o uso racional do recurso. A inalienabilidade e imprescritibilidade do domínio provincial sobre as águas estão explicitamente formuladas na Lei de Catamarca e no Código de Salta. O Código de San Luis define a água como um recurso vital que cumpre uma função social em benefício das atuais e futuras gerações; e a Lei de Catamarca, como um elemento de trabalho e não um bem de renda. Todas possuem, ademais, leis complementares.

4. A gestão dos recursos hídricos Nos âmbitos nacional e provincial, a gestão hídrica tem se caracterizado pela falta de coordenação. Isso provocou a superposição de funções, baixa comunicação e fragmentação setorial. Houve conflitos interprovinciais por contaminação de cursos de águas: nas províncias de Santiago del Estero e Tucumán, pela qualidade da água do rio Sali – Dulce; e ambas as províncias se moveram contra a província de Catamarca pela contaminação produzida pela mineração. Conflitos de manejo de volumes de excedentes de águas pelas inundações surgiram em Buenos Aires e Santa Fé, pela bacia da lagoa La Picasa; em Buenos Aires, Córdoba e La Pampa, pelos excedentes hídricos da Pampa Central; em Santa Fé e no Chaco, pela área de Baixos Submeridionais; em Santiago del Estero e Salta, conflitos por caudais, pelo rio Juramento; em Santa Fé e Santiago del Estero, pelo rio Salado; e em La Pampa e Mendoza, pelo rio Atuel. Algumas dessas questões chegaram até a Suprema Corte de Justiça da Nação. O país carece de mecanismos consensuados de solução de conflitos dessa natureza, mas até o presente não estabeleceu a obrigatoriedade de avaliação dos projetos hídricos, tampouco dos impactos da política econômica sobre os recursos naturais, especialmente os hídricos. A seguir, descreveremos a maneira como se realiza a gestão em âmbitos nacional, provincial e de recursos compartilhados de bacias hidrográficas.

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4.1 Âmbito nacional Não há uma Autoridade Nacional de Águas, mas sim numerosos organismos – o mesmo ocorre nas províncias – que intervêm na gestão. O organismo regente é a Subsecretaria de Recursos Hídricos, que depende da Secretaria de Obras Públicas do Ministério do Planejamento Federal, Investimento Público e Serviços. Suas atribuições são: • Auxiliar a Secretaria de Obras Públicas na elaboração e execução da política hídrica nacional e na proposta do marco regulatório para o manejo dos recursos hídricos, vinculando a ação das demais jurisdições e dos organismos intervenientes na política hídrica; • Elaborar e executar programas e ações vinculados à gestão dos recursos hídricos compartilhados, suas bacias, cursos de águas sucessivos e contíguos, e regiões hídricas interprovinciais; • Formular e executar programas e ações de gestão e desenvolvimento de infra-estrutura; • Executar a política nacional de prestação de serviços públicos e de abastecimento de água potável e saneamento básico; • Coordenar as atividades inerentes ao Comitê Executor do Plano de Gestão Ambiental e Manejo da Bacia Hídrica Matanza – Riachuelo; • Controlar e acionar o Comitê Interjurisdicional do Rio Colorado (Coirco), a Autoridade Interjurisdicional das Bacias dos Rios Limay, Neuquén e Negro (AIC) e a Comissão Regional do Rio Bermejo (Corebe). A Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável é a autoridade encarregada da preservação, do uso racional e da conservação dos recursos naturais renováveis e nãorenováveis. Por sua vez, o Ministério do Interior representa o Governo Nacional nos órgãos de governo de alguns organismos de bacias interjurisdicionais e intervém na busca de soluções para conflitos de gestão de recursos hídricos interprovinciais. O Ministério das Relações Exteriores, Comércio Internacional e Culto lida com temas relativos a recursos hídricos compartilhados com os países limítrofes. A Secretaria de Agricultura, Pecuária, Pesca e Alimentos supervisiona a execução de programas de reabilitação para áreas de irrigação e recuperação de zonas


inundadas e/ou salinizadas. A Secretaria de Energia desenvolve planos básicos de aproveitamento hidrelétrico de bacias hídricas. No Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet) há vários centros de estudo dedicados aos temas hídricos. 4.1.1 A Política Hídrica Nos últimos anos, tem se fortalecido no mundo a visão de uma gestão integrada dos recursos hídricos nos planos interno de cada país e dos recursos compartilhados com outros países. A Argentina não está alheia a essa tendência. Em 2003, as províncias, a Cidade Autônoma de Buenos Aires e a Nação criaram o Acordo Federal da Água, por meio do qual: “ficam acordados, sob o marco do federalismo concertado, os fundamentos de uma política hídrica nacional, racional e aglutinante de todos os setores” [...] este Acordo logra amalgamar princípios de política que integram os aspectos sociais e ambientais relacionados à água como parte das atividades produtivas da sociedade; incorporando princípios básicos de organização, gestão e economia dos recursos hídricos juntamente com princípios de proteção do recurso”. Com o Acordo, fica estabelecida uma Tabela de Princípios-Guia, entre os quais se destacam, para os propósitos deste trabalho: 2. A água tem uma única origem: “Toda a água que utilizamos, venha de uma fonte atmosférica, superficial ou subterrânea, deve ser tratada como parte de um único recurso, reconhecendo-se assim a unidade do ciclo hidrológico e a sua importante variabilidade espacial e temporal”. 4. Articulação da gestão hídrica com a gestão ambiental: “a inter-relação entre a gestão dos recursos hídricos e a problemática ambiental não admite divisões estanques entre as administrações de ambos os setores. Disso se depreende a necessidade de um enfoque integrador e global ao manejo dos recursos hídricos, coerente com a política de proteção ambiental e capaz de promover a gestão conjunta da quantidade e qualidade da água”. 5. Articulação entre a gestão hídrica e a gestão territorial: “as múltiplas atividades que se desenvolvem sobre um território [...] afetam [...] os seus recursos hídricos. Disso se depreende a necessidade de que se imponham práticas sustentáveis em todas as atividades que se desenvolvam nas bacias hídricas. Ao mesmo tempo, exige-se que o setor hídrico participe na gestão territorial das mesmas”. 12. Ética e governabilidade da água: “Alcançar a plena governabilidade do setor hídrico requer o compromisso e a harmonia entre os organismos dos governos e os usuários de água para democratizar todas as instâncias da gestão hídrica”. 16. Gestão descentralizada e participativa: “Cada Estado provincial é responsável pela gestão de seus próprios recursos hídricos e pela gestão coordenada junto a outras jurisdições nos casos de recursos hídricos compartilhados [...]; fomenta-se a participação efetiva de toda a sociedade na definição dos objetivos do planejamento hídrico, na tomada de decisões e no controle da gestão”. 17. Gestão integrada do recurso hídrico: “A grande diversidade de fatores ambientais, sociais e econômicos que afetam ou são afetados pelo manejo da água confirma a importância do estabelecimento de uma gestão integrada do recurso hídrico [...]. Do mesmo modo, a gestão hídrica deve estar fortemente vinculada à gestão territorial, à conservação dos solos e à proteção dos ecossistemas naturais”.

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19. Unidade de planejamento e gestão: “O movimento das águas não reconhece fronteiras político-administrativas: apenas as leis da física. Por isso, as bacias hidrográficas e os aqüíferos constituem a unidade territorial mais apta ao planejamento e à gestão coordenada dos recursos hídricos”. 22. Águas interjurisdicionais: “Para as bacias hidrográficas de natureza interjurisdicional, é recomendável criar ‘organizações interjurisdicionais de bacia’ para acordar a distribuição, o manejo coordenado e a proteção das águas compartilhadas. Atuando mediante pedido das partes, cabe à autoridade hídrica nacional o papel de facilitador e propositor cordial a fim de compatibilizar os genuínos interesses das províncias sob o marco dos presentes Princípios-Guia”. 23. Prevenção de conflitos: “A construção do consenso e o manejo dos conflitos são os pilares centrais da gestão integrada, mediante os quais se buscam identificar os interesses de cada uma das partes e assim, juntos, construir soluções que potencializem o benefício geral e, ao mesmo tempo, satisfaçam as aspirações genuínas das partes. As organizações de bacias constituem âmbitos propícios para a busca antecipada de soluções a potenciais conflitos”. 24. Autoridade única da água: “Centralizar as ações do setor hídrico em uma única condução favorece a gestão integrada das águas. Por meio dela, se propicia a conformação de uma única autoridade da água em cada jurisdição (nacional e provinciais), capaz de avançar a gestão integrada dos recursos hídricos”. 25. Organizações de bacia: “Dada a conveniência de se institucionalizar a bacia como unidade de gestão, promove-se a formação de ‘organizações de bacia’ para a gestão coordenada e participativa dos recursos hídricos dentro dos limites da bacia”. 26. Organizações de usuários: “fomenta-se a criação e o fortalecimento de ‘organizações de usuários’ da água para a delegação de responsabilidades de operação, manutenção e administração da infra-estrutura hídrica utilizada”. 27. Estado Nacional e gestão integrada dos recursos hídricos: “O Estado Nacional promoverá a gestão integrada dos recursos hídricos do território argentino, observando os princípios do desenvolvimento sustentável”; e articulará, “junto às diferentes jurisdições, a cooperação nos campos científico, técnico, econômico e financeiro destinada à avaliação dos re-

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cursos hídricos e ao aproveitamento e à proteção dos mesmos, atuando sempre sob o marco destes Princípios-Guia”. 28. Gestão de recursos hídricos compartilhados com outros países: “Os recursos hídricos compartilhados com outros países devem ser geridos de acordo com os princípios internacionalmente aceitos de uso eqüitativo e razoável, com a obrigação de não gerar prejuízo sensível e o dever de informação e consulta prévia entre as partes. Essas gestões requerem a concertação prévia e a representação específica das províncias titulares do domínio das águas em relação às decisões que serão sustentadas pela República Argentina ante a outros países, tanto em matéria de cooperação quanto de negociações e celebração de acordos. Cada província envolvida apontará um membro para as atividades das delegações argentinas nas comissões e organizações internacionais correspondentes”. 30. Conselho Hídrico Federal: “integrado pelas autoridades hídricas do Estado Nacional e dos Estados provinciais, incluindo a Cidade Autônoma de Buenos Aires, constitui um fórum para a articulação das políticas do país”. 31. A água como um bem de domínio público: “Por ser a água um bem de domínio público, cada Estado provincial [...] administra seus recursos hídricos superficiais e subterrâneos, incluindo os leitos que canalizam as águas superficiais, com o alcance dado no Código Civil. Entes privados apenas podem ter o direito de uso das águas públicas, mas não o direito à sua propriedade”. 43. Desenvolvimento de uma cultura da água: “Buscam-se infundir novas condutas e atitudes na sociedade em sua relação com a água, o que permitirá uma melhor compreensão da complexidade dos temas hídricos e de sua interdependência em meio a fatores econômicos, sociais e ambientais [...], tendo como fim uma participação mais comprometida e melhor informada de todos os níveis da sociedade na gestão dos recursos hídricos”. 46. Sistema integrado de informação hídrica: “deve-se contar com um sistema de informação integrada com alcance nacional e internacional [...], que cubra todos os aspectos quantitativos e qualitativos da água, incluindo as informações relevantes e relacionadas ao planejamento, administração, concessão, operação, provisão de serviços, monitoramento, proteção, regulação e controle do setor hídrico”.


A Carta Orgânica do Conselho Hídrico Federal (Cohife) estabelece o seu alcance sobre todos os aspectos de natureza global, estratégica, interjurisdicional e internacional dos recursos hídricos. Formulará e coordenará a Política Hídrica Nacional e o Plano Hídrico Nacional; planejará os provinciais; mediará ou árbitrará questões ligadas às águas interprovinciais; coordenará a gestão integral do recurso, o seu uso sustentável e enfoque sistêmico; estabelecerá uma Auditoria Única da Água; e promoverá a participação de comunidades de usuários na gestão da água. Na reunião do Cohife de agosto de 2006, informou-se que as províncias elaborariam propostas para a conformação de um Plano Hídrico Nacional, com redação final prevista para novembro de 2006. Mas isso não aconteceu, ainda que se tenha aprovado o documento-base do Plano Federal Nacional de Recursos Hídricos (PFNRH). A reunião, ocorrida em 6 e 7 de novembro de 2006, acordou a adoção de uma metodologia comum para que a Primeira Etapa dos Planos Provinciais seja elaborada com o propósito de definir os principais objetivos, as obras de infra-estrutura hídrica, as medidas não-estruturais e os eixos críticos de coordenação entre organismos. Para o ano de 2007, prevê-se o fortalecimento institucional dos organismos hídricos do país e a aceleração da preparação dos planos nacionais de gestão integrada de Recursos Hídricos. Na Câmara dos Deputados do Congresso da Nação, transitam no momento dois projetos de lei: a Declaração do Acordo Federal da Água como Lei e Marco da Política Hídrica; e a Criação do Marco Institucional e Regulador do Conselho Hídrico Federal. 4.2 Âmbito provincial Observou-se a proliferação de instituições com missões e funções sobrepostas. A gestão adquire características próprias de acordo com as condições geográficas, climáticas, de fauna e de flora, hidrológicas e regionais. Dois claros exemplos dessa realidade são a gestão de irrigação nas zonas áridas e a gestão de inundações nas úmidas. A divergência também está presente nas instituições que se encarregam, por exemplo, da irrigação: enquanto nas províncias áridas existem organismos especiais de irrigação, nas úmidas são as áreas relacionadas à produção agrária ou aos recursos naturais as encarregadas. Em algumas províncias, os Consórcios de Usuários e os Comitês de Bacia participam na gestão da água. Podemos então dizer que, até o momento presente, a diversidade é uma realidade característica no âmbito da gestão provincial. 4.3 Âmbito das bacias Podem-se distinguir três tipos de organismos de gestão nesse âmbito: 4.3.1 Organismos Interjurisdicionais Na maioria dos casos, estão conformados pelas províncias que compartilham o recurso - e, portanto, também as tarefas ligadas ao seu planejamento e à sua gestão -, e à Nação. São eles os seguintes: 1. Comitê Interjurisdicional do Rio Colorado (Coirco): envolve as províncias de Mendoza, Neuquén, La Pampa, Buenos Aires e Río Negro. Insere-se no contexto da gestão do recurso regida pelas entidades provinciais de gestão da água. 2. Autoridade Interjurisdicional das Bacias dos Rios Limay, Neuquén e Negro (AIC): integrada por Buenos Aires, Neuquén e Río Negro. 3. Comissão Regional do Rio Bermejo (Corebe): integrada por Jujuy,

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Salta, Formosa e Chaco (que compartilham o domínio do rio); Santa Fé e Santiago del Estero (que aspiram dispor de parte das águas do rio). 4. Comissão Técnica Interjurisdicional da Bacia do Rio Sali – Dulce: integrada por Catamarca, Córdoba, Salta, Santiago del Estero e Tucumán. 5. Comissão Interjurisdicional da Bacia do Rio Pasaje – Juramento – Salado: integrada por Catamarca, Salta, Santiago del Estero, Santa Fé e Tucumán. 6. Autoridade da Bacia do Rio Azul: integrada por Chubut e Rio Negro. A Nação não participa. 7. Comissão Interjurisdicional da Bacia da Lagoa La Picasa: integrada por Buenos Aires, Córdoba, La Pampa e Santa Fé. A Nação não participa. 8. Comitê Executor do Plano de Gestão Ambiental e de Manejo da Bacia Matanza – Riachuelo: integrado pela província de Buenos Aires e pela Cidade Autônoma de Buenos Aires. 9. Organismo Interjurisdicional da Bacia do Rio Senguerr: integrado por Chubut e Santa Cruz. 10. Comitê Interjurisdicional da Região Hídrica do NO da Planície Pampiana: integrado por Buenos Aires, Córdoba, La Pampa, San Luis e Santa Fé. 11. Comitê de Bacia Interjurisdicional da Região Hídrica de Baixos Submeridionais: integrado pelo Chaco e por Santa Fé. 12. Comitê de Bacia Interjurisdicional do Rio Matanza – Riachuelo: integrado pela província de Buenos Aires e a Cidade Autônoma de Buenos Aires. 4.3.2 Organismos Provinciais Foram criadas, ou estão em estudo ou revisão, diversas entidades de bacia nas províncias de Buenos Aires, Córdoba, Chubut, Mendoza, Neuquén e Santa Fé. Existem, por exemplo: 1. Córdoba – Comitês de Bacias dos Lagos: San Roque e Medina Allende ou La Viña; dos diques: Cruz del Eje, Rio Pichangas; dos rios Segundo, Quinto, Bajo del Calamuchita, del Valle del Sol Norte e seus afluentes. 2. Buenos Aires – Corporações de Fomento (Corfo): Vale Bonaerense do Rio Colorado e seu Delta; Comitês de Bacias dos Rios

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Salado, Arrecifes, Areco, Quequén, Grande, Sauce Grande, Samborombón. 3. Mendoza – 16 Associações de Inspeções de Leitos cobrem todos os rios. 4. Neuquén – Corporação de Desenvolvimento da Bacia do Curi – Leuvú. 5. Santa Fé – 31 Comitês de Bacias cobrem toda a província. 4.3.3 Organismos internacionais ou transfronteiriços A República Argentina compartilha recursos hídricos de várias bacias e reservatórios subterrâneos com seus países limítrofes: a Bacia do Prata e o Aqüífero Guarani são os mais importantes. Na Bacia do Prata, entidades internacionais de distintas naturezas têm operado, com intervenção de representantes da Argentina e do Brasil, da Bolívia, do Uruguai e do Paraguai, que são os seus países vizinhos, de acordo com o rio em questão. A concepção de bacia tem sido adotada pelas seguintes entidades: 1. Comitê Intergovernamental Coordenador dos Países da Bacia do Prata: integrado por Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai. 2. Comissão Binacional Administrativa da Bacia Inferior do Rio Pilcomaio: integrada por Argentina e Paraguai. 3. Comissão Binacional para o Desenvolvimento da Alta Bacia do Rio Bermejo e do Rio Grande de Tarija: integrada por Argentina e Bolívia. 4. Comissão Trinacional para o Desenvolvimento da Bacia do Rio Pilcomaio: integrada por Argentina, Bolívia e Paraguai. Tem-se encomendado a administração de trechos internacionais de alguns rios da Bacia do Prata às seguintes entidades: 1. Comissão Administrativa do Rio de La Plata: integrada por Argentina e Uruguai. 2. Comissão Técnica Mista da Frente Marítima: integrada por Argentina e Uruguai. 3. Comissão Administrativa do Rio Uruguai: integrada por Argentina e Uruguai. 4. Comissão Mista Argentino – Paraguaia do Rio Paraná: integrada por Argentina e Paraguai. Criaram-se entidades ligadas ao desenho, à construção e à operação de grandes aproveitamentos hidráulicos de múltiplo propósito e de navegação. São elas:


1. Comissão Técnica Mista de Salto Grande: integrada por Argentina e Uruguai. 2. Entidade Binacional Yacyretá: integrada por Argentina e Paraguai. 3. Comitê Intergovernamental da Hidrovia Paraguai – Paraná: integrado por Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai. Também se criou o Grupo de Trabalho Argentino – Chileno para Recursos Hídricos Compartilhados, encarregado de inventariar e fazer planejamentos para as bacias de recursos hídricos compartilhadas pelos dois países. Em suma, pode-se dizer que a diferença entre os âmbitos nacional e provincial, no tocante à gestão de bacias compartilhadas, é o fato de que se alcançou uma gestão integrada entre as províncias que compartilham bacias – seus maiores exemplos são o Coirco e a AIC. Cabe esperar que o Plano Federal Nacional de Recursos Hídricos, acordado entre Nação e províncias, permita o manejo harmônico da água como recurso; a adoção de leis integrais; o estabelecimento de políticas racionais e eficientes; e que sirva de base para a solução de conflitos provocados pelo uso entre as províncias que os compartilham. E não se pode esquecer que, do recurso à água, depende a vida em todos os aspectos, e que a água potável não é uma mercadoria, mas sim um direito humano fundamental ligado à saúde e à vida, um bem social inalienável que deve ser objeto de políticas de serviço público. A água é um patrimônio dos povos e países que o possuem.

5. Desenvolvimento da problemática hídrica no Parlamento e na sociedade civil Na Câmara dos Deputados do Congresso da Nação, operam as Comissões de Recursos Naturais e Conservação do Ambiente Humano e do Mercosul. Esta última se encarrega do escrutínio de todo projeto ou assunto que possa afetar o processo de integração regional. Já na primeira, se encontram, entre os projetos vigentes com status parlamentar, os pedidos de: criação de uma Comissão Bicameral do Sistema Aqüífero Guarani e do seu Conselho Consultivo; estudo de previsões do país a respeito das reservas do Aqüífero; e estudo a respeito da filtragem de caudais do rio Uruguai até o Guarani e dos efeitos contaminadores que possam produzir nele as fábricas de pasta de celulose que estão sendo construídas em Fray Bentos, no Uruguai. Também existe a Comissão Especial Bicameral Parlamentar do Mercosul. Atualmente, está em andamento o ciclo de audiências para a constituição do Parlamento Mercosul. Pode-se dizer que quase não existem projetos referentes aos recursos hídricos. Infelizmente, entre os projetos que nunca foram tratados, encontram-se os de: criação da pessoa jurídica do Patrimônio Genético Nacional e declaração de sua defesa de interesse público através do Código Civil (como parte do domínio público); Declaração da água como recurso estratégico nacional e patrimônio da Nação Argentina; Consagração especial do direito do agricultor ao uso próprio de sementes; e contra a estrangeirização da Terra. Não há vontade política para tratar esses temas, tampouco os que dizem respeito aos minérios e hidrocarburetos. A história tem demonstrado que o país que não é dono de seus recursos naturais (terra, água, biodiversidade, selvas, bosques, minérios e hidrocarburetos), para explorá-los em benefício de seu próprio povo, cuidando de sua preservação para que também possam ser desfrutados pelas gerações futuras, estará sempre prostrado diante de empresas

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transnacionais, de organismos financeiros e econômicos internacionais e da potência imperial da vez: nunca será verdadeiramente livre, independente, autônomo e soberano. Ainda que a Constituição Argentina estabeleça, em seu artigo 75, inciso 17, a participação dos povos originários indígenas na gestão dos seus recursos naturais e nos demais interesses que os afetem, esse direito não é cumprido. A Constituição prevê, no artigo 39, o direito de iniciativa popular na apresentação de projetos de lei na Câmara dos Deputados, mas determina que essa iniciativa deve conter 3% de assinaturas do eleitorado nacional, incluindo uma adequada distribuição territorial, para que venha a ser tratada. Mas cabe recordar que 1/3 da população argentina se concentra entre a cidade Autônoma de Buenos Aires, capital da república, e a chamada “Grande Buenos Aires”. Essa situação conspira contra a norma estabelecida pela Constituição Nacional para que se recorra ao mecanismo da consulta popular. Isso fez com que a cidadania organizasse consultas populares quanto a temas como a dívida externa, a ALCA, o Seguro de Emprego e Formação, por conta própria. Atualmente, a Autoconvocatória pela Renacionalização do Petróleo e do Gás lançou uma campanha que busca coletar um milhão de assinaturas em todo o país, para que o tema seja tratado no Congresso Nacional; e a Federação Agrária Argentina decidiu começar uma nova campanha de adesão para voltar a apresentar o seu “Projeto de Lei contra a Estrangeirização da Terra”. Por outro lado, muitas das Constituições Provinciais reconhecem o direito dos seus povos de serem consultados, mas este não é cumprido e, quando as consultas são realizadas, ou não têm poder vinculante ou têm os seus resultados burlados. Há, na sociedade argentina, sobretudo nas províncias que sofrem os efeitos devastadores da exploração de minérios, da perda de seus bosques nativos, da estrangeirização da terra e do avanço da fronteira da soja, uma consciência muito firme quanto ao cuidado e à exploração racional dos recursos naturais, e quanto à preservação do meio ambiente. Isso ficou claramente estabelecido na luta da cidade de Esquel, em Chubut, contra a instalação de uma mina de extração de ouro; e nas cidades de Catamarca, La Rioja e San Juan, pelo mesmo motivo. Em setembro de 2006, representantes de comunidades de Catamarca, Jujuy, Neuquén e Tucumán decidiram formar a “Assembléia Per-

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manente dos Povos em Defesa do Meio ambiente e dos Territórios”. No manifesto divulgado, expressaram seu repúdio quanto à forma como está sendo conduzida a exploração mineira no país. E anunciaram os seguintes propósitos: fortalecer o processo de organização entre os povos afetados; influenciar a opinião pública valendose de todos os meios de difusão; exigir o cumprimento das leis de água existentes, garantindo o manejo integral da água e das bacias, respeitando os direitos constitucionais dos povos; defender a priorização do uso da água para consumos humano, bebida, irrigação e indústria, já que ela é um bem coletivo vital de uso prioritário e o seu uso é um direito humano; proibir o uso da água para grandes empreendimentos de mineração; defender a implementação de estudos sobre as fontes de geração de água potável, para garantir a preservação das zonas de infiltração, dos rios e arroios, provedores permanentes de água pura; pressionar a Secretaria do Meio ambiente da Nação para que facilite e arbitre os meios para realizar análises dos recursos da água, do ar e do solo, que correm o risco de contaminação em função de explorações mineiras, e informe a população; exigir a retirada imediata dos dutos que se encontram nos leitos dos rios. Estabelece, ademais, a necessidade de: criação de uma equipe interdisciplinar que implemente as ações jurídicas encaminhadas e seja integrada por profissionais indicados por organizações ambientais, povos indígenas e autoconvocados, e uma rede de articulação de todos os atores sociais envolvidos; ordenamento ambiental do território, capaz de estabelecer os potenciais afetados; e que as comunidades elaborem estratégias de açção pela proteção dos seus territórios e recursos naturais. A esses exemplos, podem se somar a luta das comunidades camponesas de Santiago del Estero (Mocase), Formosa (Mocafor), Misiones (MAM) e da Federação Agrária Argentina (FAA), além da movimentação constante de outras organizações. A Mocafor propõe e reclama insistentemente: subsídios para os pequenos produtores de algodão; trabalho; água potável e energia elétrica para todas as comunidades; bolsas para estudantes de poucos recursos; saúde e educação; regulação das produções transgênicas; devolução das terras expropriadas às comunidades indígenas e defesa de todos os recursos naturais – terra, água, montanhas, fauna, petróleo – ante à situação de extrema concentração, estrangeirização e destruição.


Em 30 de outubro de 2006, com o tema “Território, Trabalho e Justiça”, foi realizado na cidade de Mendoza o Encontro Nacional Campesino Indígena, com a participação de mais de 600 delegados de organizações de quase todas as províncias. Esse espaço articula os setores rurais em luta. Os eixos fundamentais giraram em torno da terra, da água e da soberania alimentar. O Encontro foi organizado pela Mocase de Santiago del Estero, pelo Movimento Campesino de Córdoba, pela União de Trabalhadores Rurais Sem-Terra de Mendoza, pela Rede Puna de Jujuy, pelo Movimento Campesino de Misiones e pelo Encontro Calchaquí de Salta. A Declaração pelo Encontro de Mendoza mostra a preocupação com a derrubada e a queima indiscriminada das matas; o avanço da desertificação (de acordo com o Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuária, a Argentina está hoje com 85% do território com algum grau de deterioração e os 15% restantes, sobretudo na Patagônia, são irreversíveis); a contaminação da água; os desalojamentos violentos e fraudulentos das comunidades campesinas e indígenas; a exploração humana em fazendas; o êxodo rumo às cidades; o uso indiscriminado de agrotóxicos; os solos arruinados; as inundações como conseqüência dos desmatamentos; a concentração da terra em poucas mãos (4% das chamadas “explorações agropecuárias” são donas de quase 65% da terra utilizada para a produção, enquanto 82% dos pequenos produtores ocupam apenas 13%); e a perda da soberania alimentar. Além disso, ratifica a decisão e o compromisso com uma mudança social que contemple a recuperação de terras das famílias desalojadas; a volta ao campo pelas famílias excluídas (estima-se que mais de 200 mil famílias foram expulsas durante os últimos anos); o acesso à terra e à água para aqueles que quiserem trabalhar; a eliminação dos cultivos transgênicos; a disposição de construir uma democracia de natureza participativa, a partir das bases, do próprio seio da sociedade, e de contribuir com o processo de integração latino-americana. Por sua vez, a Federação Agrária Argentina, núcleo de pequenos e médios produtores, criada em 1912, tem reafirmado a demanda por uma nova política agropecuária, que dê fim à concentração e à estrangeirização da terra; que estabeleça políticas especiais a favor dos camponeses e das populações indígenas que vivem da terra e pela terra, e dos pequenos e médios produtores; que promova oportunidades para as economias regionais e avance com um sistema tributário progressivo. Também tem feito a defesa da água, destacando-se nessa luta as mulheres da Federação, que se agruparam como Mulheres Federadas Argentinas. Merece uma menção especial o documento intitulado “Una Tierra para Todos”, elaborado pela Comissão Episcopal de Pastoral Aborígine; pela Pastoral Social; Cáritas; e pelo Observatório da Dívida Social Argentina, da Universidade Católica Argentina. O documento foi apresentado pela Conferência Episcopal Argentina e estabelece que a preservação do meio ambiente e a justa distribuição da terra são elementos-chave para avançar na reconstrução e no desenvolvimento do país, e que o seu objetivo é reavivar a concepção da terra como um dom de Deus para o bem-estar de todos. O documento afirma que a concepção da terra como um bem de mercado, e não como um bem social, tem gerado na Argentina uma forte concentração, expulsado a população rural, erodido a soberania e os recursos naturais, com o fortalecimento do processo de estrangeirização. A falta de políticas de preservação do meio ambiente e de proteção dos direitos dos pequenos produtores, a sobre-exploração dos recursos naturais e os maus tratos com a terra têm prejudicado centenas de milhares

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de pequenos produtores pobres e quase mil comunidades aborígines que se vêem afetadas pela degradação dos recursos naturais. São identificados três grandes problemas no país: a crise do recurso à água, superficial e subterrânea; o desflorestamento e a expansão da fronteira agrícola - a Argentina perdeu 70% de suas matas desde 1935 -; e a exploração mineira. O documento também denuncia a ausência de um Estado com vocação política e de uma legislação eficaz, que estabeleça limites às grandes corporações e incentive o uso produtivo, racional e equilibrado da terra, dos recursos naturais e da capacidade de trabalho do indivíduo. Denuncia, em especial, o problema das terras indígenas que estão sendo invadidas por grandes corporações, amparadas por classes corruptas de políticos e dirigentes nacionais e provinciais, em meio a uma legislação que não se cumpre. Por fim, cobra a responsabilidade do Estado e de cada cidadão nas tarefas de garantir e velar pelo bem-estar de toda a sociedade Um feito auspicioso é a conformação da Comissão de Recursos Naturais no Conselho Consultivo da Sociedade Civil da Chancelaria Argentina, por meio do “Somos Mercosur”, um espaço de articulação entre os governos, órgãos do bloco regional e organizações sociais, que tem a soberania e a integração como eixos de cumprimento dos objetivos contidos no documento elaborado em Córdoba, durante o evento “Por um Mercosul Social e Produtivo”. Foram estabelecidos três eixos de discussão e estudo: a) a luta pela recuperação dos recursos naturais (20% do território do país estão em mãos estrangeiras; seus minérios e hidrocarburetos, em poder de empresas transnacionais européias e norte-americanas); b) como fazer com que os recursos naturais sirvam às maiorias populares; e c) pensar a soberania quanto aos recursos estratégicos (água, biodiversidade, minérios, hidrocarburetos), a partir da perspectiva da integração. Participam das reuniões ONGs, fundações, assembléias de moradores, cooperativas, fóruns regionais, organizações sociais e políticas, universidades e representantes do Poder Legislativo e do Executivo Nacional.

6. Reflexões e propostas Estamos vivendo novos tempos. A integração regional avança; a sociedade civil se envolve e participa cada vez mais ativamente dos temas que lhe interessam. Há desafios e obstáculos a

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serem vencidos na gestão dos recursos hídricos compartilhados. A desconfiança e o temor são dois deles, mas também há aqueles relacionados ao uso e ao manejo dos recursos, bem como aos aspectos institucionais, legislativos, econômicos e financeiros relacionados à sua gestão. São necessárias, portanto, a articulação e a coordenação das organizações intergovernamentais, governamentais e da sociedade civil que tenham responsabilidade e interesse na gestão, no uso e na proteção dos recursos hídricos. Tudo isso nos leva a buscar um planejamento integrado e participativo da água. Outro ponto a ser levado em conta é o fortalecimento das instituições de meio ambiente em âmbitos regional, provincial e municipal, uma vez que, entre as suas atribuições, encontram-se todas as que se relacionam à conservação da natureza no tocante ao uso racional dos recursos hídricos. Devemos harmonizar nossas legislações. Deve-se ampliar o conhecimento existente sobre os recursos; devemos estudar em detalhe e conhecer profundamente a sua variabilidade geográfica e sazonal, suas relações funcionais com os recursos naturais e ambientais e os termos de equilíbrio ecológico e produtividade. Isso requer a promoção, o desenvolvimento e o acesso a tecnologias que permitam melhorar o aproveitamento racional, otimizado e integral dos recursos hídricos superficiais e subterrâneos. E, também, a incorporação de considerações socioambientais na avaliação de projetos e ações. Os sistemas de informação devem ser integrados, em âmbitos regional, nacional e provincial. Memória, transmissão, processamento, armazenamento e difusão de informações são elementos vitais para a avaliação, o planejamento e o desenvolvimento dos recursos hídricos. Além disso, conflitos podem se apresentar. Isso requer traçar objetivos muito claros e precisos para antecipar e prevenir os conflitos, e também contar com marcos jurídicos ajustados e apropriados para a sua resolução. Devemos trabalhar de modo integrado, especialmente na Bacia do Prata, que é una e única, porque qualquer intervenção em cada um de nossos países trará impactos indefectíveis a toda a Bacia e à Região. Isso não significa renunciar à soberania, mas, sim, aproximar interesses, criar fortes laços de amizade e integração, respeitando o princípio da unidade em meio à diversidade. Significa ainda sermos capazes de estabelecer medidas de longo prazo: por exemplo, a coleta de águas pluviais e o manejo de bacias; a


recarga artificial de águas subterrâneas; o desenvolvimento de bacias, esquemas integrais de economia de água e déficit de irrigação; a irrigação por aspersão e micro-irrigação; o uso combinado das águas subterrâneas e artificiais; a prevenção contra perdas por evaporação em depósitos; a conscientização cidadã quanto à escassez da água e a sua importância; a criação de armazenamentos de água, superficial e subterrânea; a integração de depósitos grandes e pequenos; o planejamento integrado de bacias. Tudo isso implica a criação de planos comunitários e integrais de manejo de recursos naturais, desenvolvidos e instrumentalizados com enfoque participativo, e sem se esquecer de fazer pleno uso do conhecimento tradicional, que é tão ou mais importante que o conhecimento atual. Precisamos crescer - os países e os povos -, deixando para trás a adolescência. Precisamos elaborar por conta própria os planos de prospecção, exploração racional e preservação dos recursos naturais, que são nossos patrimônios nacionais, em especial aqueles que compartilhamos. Isso é indispensável para manter nossa sobrevivência como povo e nação, e nossa identidade para alcançar uma integração real em todos os aspectos: político, social, econômico, cultural, educacional e de defesa. Esses são nossos objetivos. Alcançá-los depende de nós. Em última instância, essa é uma batalha que se dá no campo do pensamento, mas também na alma e no coração de cada um de nós, pois o que estamos assistindo é uma confrontação de duas culturas. Uma delas proclama que as vidas humana, vegetal, animal e da natureza; o planeta e a água potável são mercadorias, coisas que se compram e vendem de acordo com as leis da oferta e da demanda do mercado. Eu a chamo de “cultura da morte”, porque leva ao suicídio a espécie humana e comete um assassinato, matando a vida humana, a vida vegetal, a vida da natureza e o planeta. Com ela, não há presente, tampouco futuro. E dou-lhe o nome que lhe corresponde: capitalismo. Jamais poderá ser humanizado, posto que se baseia na exploração do ser humano pelo ser humano e na noção de que este é, não um sujeito, mas uma mercadoria, uma coisa, um objetivo. A outra cultura diz que a vida está no centro de tudo e que, ao seu redor, devem girar a política e a economia; que não há dinheiro no mundo capaz de pagar o valor da vida humana; que não há dinheiro capaz de pagar o valor da vida vegetal, animal, da natureza e do planeta, pois esses bens nos foram dados para serem usufruídos com cuidado, preservando-os para as gerações vindouras; que a água potável é um direito humano fundamental, ligado à saúde e à vida, que é um bem social inalienável e deve ser objeto de políticas de serviço público, pois é um patrimônio dos países e povos que o possuem. Alguns a chamam de Humanismo; outros, de Doutrina Social da Igreja, de Opção pelos Pobres, de Socialismo – cada civilização, cada sociedade, cada povo, cada cultura, cada ser humano lhe dá o nome que melhor lhe parece. Eu a chamo de “cultura da vida”. Aposto no presente e no futuro e, sem medo de me equivocar, afirmo que, ao seguirmos o seu caminho em luta, estamos cumprindo aquele mandato que foi dado aos nossos ancestrais há 7 milhões de anos, quando mulheres e homens começaram a se erguer e a caminhar sobre a terra juntos, iniciando esse maravilhoso processo de evolução que nos transformou nos seres humanos que hoje somos. Esse “mandato” foi e é a responsabilidade de assegurar a sobrevivência da espécie humana em harmonia com a terra e a natureza, e não contra elas. O presente e o futuro estão em nossas mãos.

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ANEXO 1 LEI GERAL DO MEIO AMBIENTE nº 25.675 - estabelece os princípios ordenadores para a interpretação e aplicação da legislação específica que a ela se subordina na matéria; cria o Sistema Federal Ambiental, que coordena a política ambiental entre os Governos Nacional, Provinciais e da Cidade Autônoma de Buenos Aires, estabelecendo que esse sistema seja instrumentalizado pelo Conselho Federal de Meio ambiente (Cofema); LEI 24.197 - estabelece a proteção do meio ambiente e dos recursos naturais, determinando a obrigatoriedade dos estudos de viabilidade ambiental para projetos de engenharia e obras públicas; LEI 23.879, modificada pela LEI 24.539 - estabelece a avaliação das conseqüências ambientais produzidas ou passíveis de o serem em território argentino a partir de represas construídas, em construção ou planejadas; LEI 21.172 - trata da fluoração da água para consumo no país; LEI 25.612, que substitui a LEI 24.051 - regula a gestão de resíduos industriais e de atividades de serviços; LEI 25.916 - estabelece os critérios a serem seguidos na gestão de resíduos sólidos internacionais; LEI 25.831 - garante e regula o direito dos cidadãos de acessarem toda a informação ambiental em poder do estado, nos âmbitos nacional, provincial, municipal e da cidade de Buenos Aires; de órgãos autárquicos e de empresas de serviços públicos, sejam estas privadas, públicas ou mistas; LEI 25.670 - estabelece e regula tudo o que diz respeito aos Policloretos de Bifenilas (PCBs produto altamente nocivo à saúde humana); LEI 13.273 - trata da defesa da riqueza florestal; Lei 22.421 – trata da proteção e conservação da fauna; Lei 22.428 – trata do fomento à conservação dos solos; Lei 22.352 - trata de parques, reservas naturais e monumentos nacionais; Lei 25.080 – trata dos investimentos em bosques cultivados.

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CAPÍTULO III

RECURSOS HIDRELÉTRICOS E GEOPOLÍTICA NO PARAGUAI: os casos de Itaipu e Yacyretá Pesquisadora responsável: Mercedes Canese Ativista da Campanha pela Recuperação da Soberanía Hidroeléctrica do Paraguai e Profesora na Universidade Nacional de Assunção

Artigo preparado a partir de estudos realizados pelos engenheiros Ricardo Canese e Mercedes Canese

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SUMÁRIO 1. Recursos naturais das Américas ............................................................................................... 73 2. Recursos naturais do Paraguai .................................................................................................. 73 3. Recursos hidrelétricos e consumo no Paraguai ........................................................................ 74 4. No Mercosul, não há energia barata ........................................................................................ 74 5. A energia é cada vez mais importante no mundo ................................................................... 74 6. Os Tratados de Itaipu e Yacyretá prejudicam a soberania do Paraguai ............................... 75 7. A exportação de petróleo pelo Paraguai .................................................................................... 75 8. O Paraguai e o exemplo da Bolívia: união com os menores países da região ....................... 75 9. Dívidas do Paraguai .................................................................................................................... 75 10. Itaipu .......................................................................................................................................... 76 11. A estratégia do Itamaraty para expropriar a soberania paraguaia em Itaipu ................... 76 12. Argentina usa estratégia semelhante em Yacyretá ................................................................. 76 13. As binacionais e a primazia da usura como expropriação de soberania ............................ 76 14. O Paraguai exige justiça e soberania ....................................................................................... 77

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1. Recursos naturais das Américas Ainda que os povos nativos da América tenham conhecido o uso e a exploração dos recursos naturais – em especial os povos Incas e Astecas, entre outros, que dominavam o ferro e os metais –, a conquista da América após 1492 produziu no continente uma exploração intensiva e uma subtração, em favor do velho continente, dos seguintes bens: metais, produtos agrícolas, mão-de-obra escrava. Juntamente com a colonização espanhola, o Paraguai sofreu a hostilidade do Brasil-império e de Buenos Aires. Todos esses atores buscaram os recursos naturais disponíveis no Paraguai: produtos florestais, erva-mate, laranja, produtos agrícolas, couro bovino, mão-de-obra indígena e escrava. Com a independência, em 1811, a relação entre o Paraguai e seus vizinhos não mudou. Apenas 40 anos mais tarde é que Argentina e Brasil reconheceram o país oficialmente. Enquanto isso, foi se consolidando uma nação industrializada e rica, auto-abastecida em suas necessidades, soberana e independente; sem dívida externa; com terras estatais arrendadas a camponeses e produtores, e “Estâncias da Pátria” providas de abundante gado bovino. A independência econômica e política do Paraguai trouxe a aquisição de maquinário industrial, ferrovias e fundição própria de ferro a partir do Império Britânico, paga à vista sem um único empréstimo. Tal realidade foi vista como “mau exemplo” para os vizinhos e como perigo para o império do momento: a Inglaterra. Como conseqüência, entre 1865 e 1870 ocorreu a Guerra da Tríplice Aliança: Brasil, Argentina e Uruguai contra o Paraguai. Para pagar as dívidas da guerra, o Paraguai tomou o seu primeiro empréstimo, de 1,4 milhão de libras esterlinas, das quais apenas 200 mil chegaram ao país. Apenas 90 anos depois, o pagamento dessa dívida se deu por encerrado. Ao mesmo tempo, Argentina, Brasil e Uruguai pelo menos duplicaram suas dívidas externas junto aos bancos ingleses por causa da guerra. No pós-guerra, com a população dizimada e o país devastado, os recursos mais valiosos do Paraguai terminaram repartidos. As terras foram privatizadas a sociedades anônimas de capital estrangeiro para a exploração de suas principais riquezas: florestal, agrícola e bovina. Sessenta anos depois, entre 1932 e 1935, ocorreu a Guerra do Chaco. Paraguai e Bolívia se enfrentaram pelo petróleo, o novo recurso natural à vista dos impérios. Em 1973, meses antes da primeira grande crise mundial do petróleo, Brasil e Paraguai assinaram o Tratado de Itaipu. No mesmo ano, Argentina e Paraguai assinaram o Tratado de Yacyretá. A energia hidrelétrica do rio Paraná mostrou-se como o recurso estratégico do momento para a Argentina, o Brasil e o Paraguai. Nos 30 anos seguintes, a agricultura mecanizada e a agroquímica substituíram as matas e o Paraguai perdeu sua maior riqueza natural além do potencial hidrelétrico. Entre os grandes produtores agrícolas, foram acolhidos produtores brasileiros – os chamados ‘brasiguaios’ – e de outras nacionalidades. Enquanto isso, milhares de camponeses perambulavam sem terra em meio à repressão da ditadura militar.

2. Recursos naturais do Paraguai O principal recurso natural do Paraguai hoje é, sem dúvida, a energia hidrelétrica. Em segundo lugar, e muito atrás, vem a produção agrícola: soja, algodão e outros produtos; e, em terceiro lugar, a produção bovina.

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O Paraguai é o terceiro exportador e o quarto produtor mundial de soja. Em 2005, alcançou uma exportação de grãos de US$ 566 milhões, sendo US$ 59 milhões de oleaginosas ao Brasil. O crescimento da soja, de 2,3 para 4,5 milhões de hectares, ocorreu às custas do algodão, que teve uma redução de 20% na última década; assim, uma produção intensiva de maquinário substituiu parte relevante de uma produção antes obtida com mão-de-obra intensiva. Como conseqüência, apenas no período agrícola de 2002/ 2003, 14 mil famílias de camponeses – quase 100 mil pessoas – foram desalojadas do campo pela soja, como nos lembra o sociólogo e professor da Universidade Nacional de Assunção Tomás Palau. A produção bovina gerou uma exportação de carne e couro da ordem de US$ 370 milhões em 2005. Outros recursos explorados e exportados ou contrabandeados às custas das matas restantes são o carbono e a madeira.

3. Recursos hidrelétricos e consumo no Paraguai O Paraguai conta com três centrais hidrelétricas: Acaray, 100% paraguaia; Itaipu, binacional; e Yacyretá, binacional. Graças a elas, o país dispõe de 53.000 GWh/ano, dos quais consume cerca de 7.000 GWh/ano. Ou seja, utiliza menos de 14% de sua disponibilidade energética. Nas condições atuais de consumo, o Paraguai é o único país do Mercosul com excedente hidrelétrico. Além disso, conta com outros possíveis aproveitamentos hidrelétricos: Corpus Yguazú e Aña Cuá. O aproveitamento dos mesmos implicaria em diferentes efeitos econômicos, sociais e ambientais. No caso de Yguazú, a represa já está construída e por isso o seu dano ambiental e social já foi realizado. No outro caso, cabe ainda analisar se as conseqüências sociais e ambientais justificariam os benefícios econômicos esperados. O consumo de energia elétrica contabiliza apenas 10% do consumo energético nacional. A biomassa – lenha, carbono, cascas de frutas e grãos, e bagaço de cana – é o segmento mais importante de consumo energético, com 59% do total. Seguem-se o petróleo, com 30%, e os biocombustíveis como o álcool e a cana, com 1%. Os biocombustíveis são um potencial recurso energético do Paraguai, com suas terras aptas à produção sustentável de álcool e biodiesel, entre outros.

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4. No Mercosul, não há energia barata O Brasil tem se valido de todos os recursos hidrelétricos mais próximos e de fácil aproveitamento, e o movimento de pessoas afetadas por represas terminou gerando uma importante resistência à construção de novas hidrelétricas. Por isso, o país recorre cada vez mais ao gás natural (GN) boliviano. Já a Argentina carece de recursos hidrelétricos e precisa, assim, importar cada vez mais GN boliviano. Por sua vez, o Chile importa GN da Argentina. Apesar dos sucessivos aumentos no preço do GN na Bolívia de Evo Morales, o Brasil e a Argentina não pagam muito mais que 1/3 do seu preço de mercado. Se o GN boliviano for vendido a preços reais de mercado, o custo da eletricidade na Argentina e no Brasil subirá enormemente. Além disso, a Argentina precisa importar óleo diesel e combustível da Venezuela, pois não é capaz de satisfazer suas necessidades elétricas com GN próprio ou boliviano. Esse custo de geração é superior a US$ 80/MWh. Atualmente, a geração de eletricidade acima de US$ 80/MWh custaria caro para Brasil, Argentina e Chile, não fosse o subsidio existente para o GN boliviano.

5. A energia é cada vez mais importante no mundo Noventa por cento do consumo energético da humanidade vêm de energias fósseis esgotáveis. A humanidade não foi capaz de mudar essa tendência nos últimos 30 anos e, desde a primeira grande crise mundial do petróleo, cerca de 80% do consumo energético já dependiam de energias fósseis. As energias renováveis são caras: são dispersas, inconstantes, variáveis de acordo com o clima e com as estações. E as reservas de petróleo e de gás natural são extremamente limitadas. O ápice da produção de petróleo, fora do Oriente Médio, já foi alcançado ou o será dentro de, no máximo, 10 anos. Para o Oriente Médio, o prazo é de 20 a 30 anos, ou seja, praticamente agora. Enquanto isso, acelera-se a máquina do consumo em meio ao rápido crescimento da China e da Índia. Com reservas esgotáveis e uma sociedade de consumo e desperdício, tudo indica que não se encontrará uma saída antes de uma grave e irreversível crise. A tendência, assim, é que as diferentes formas de energia continuem a encarecer; e que a energia hidrelétrica passe a valer cada vez mais.


6. Os Tratados de Itaipu e Yacyretá prejudicam a soberania do Paraguai Assinado em 1973, o Tratado de Itaipu subtraiu toda a soberania do Paraguai sobre sua própria energia hidrelétrica. O artigo XIII do Tratado estabelece que “a energia produzida [por Itaipu] será dividida em partes iguais entre os dois países, sendo reconhecido a cada um deles o direito de aquisição [...] da energia não utilizada pelo outro país para consumo próprio”. Assim, o Brasil recebeu pleno direito de adquirir toda a energia que o Paraguai não pode utilizar ao custo de uma renúncia paraguaia, que, nas linhas do Tratado, perdeu a oportunidade de vender sua energia a preços de mercado ou de ter um benefício de venda de excedentes ao Brasil. Este garantiu para si uma energia a baixo custo. As condições do Tratado de Yacyretá, de 1973, foram quase idênticas: o Tratado fala em termos de “direito preferencial”. Essas condições absurdas, porém condizentes às histórias dos nossos países, fazem com que o Paraguai receba US$ 250 milhões por uma energia que vale US$ 3.500 milhões. O cálculo é o seguinte: ao preço atual de mercado de US$ 80/MWh, o Paraguai deveria receber com a exportação de 40 milhões de MWh ao Brasil e 6 milhões de MWh a Argentina [80x46=] mais de US$ 3.500 milhões por ano. Sob diferentes cifras, como compensações, ressarcimentos e royalties, recebe apenas 250 milhões de US$/ano.

7. A exportação de petróleo pelo Paraguai Enquanto exporta mais de 250 mil barris equivalentes de petróleo (bpd) em forma de uma eletricidade muito mais valiosa, o Paraguai importa 30 mil bpd – a oitava parte – de petróleo. O país paga cerca de US$ 750 milhões pelo petróleo e recebe apenas US$ 250 milhões por sua exportação hidrelétrica. É algo absurdo o fato de que os bons preços energéticos sejam uma punição para o principal exportador de energia do Mercosul. O preço de mercado da energia elétrica é de pelo menos US$ 80/MWh, tanto para o Brasil quanto para a Argentina, e em todo o mundo, de acordo com o atual preço do petróleo. A esse preço, o Paraguai deveria receber US$ 3.600 milhões por ano. No entanto, precisa pagar US$ 600 milhões/ano, além dos US$ 150 milhões/ano que pagava antes do aumento dos preços da energia, pelo petróleo que importa, em função de sua cotação mais elevada.

8. O Paraguai e o exemplo da Bolívia: união com os menores países da região Paraguai e Bolívia são os dois únicos países exportadores de energia no Mercosul. Tanto à Bolívia quanto ao Paraguai, paga-se muito menos que o valor de mercado por energia, e o Uruguai tem mostrado interesse em comprar GN da Bolívia. Os países menores do Mercosul – Bolívia, Paraguai e Uruguai – devem se unir para que os seus direitos sejam respeitados, assim como já começou a fazer a Bolívia de Evo Morales.

9. Dívidas do Paraguai Através de Itaipu e Yacyretá, o Paraguai deve cerca de US$ 14.000 milhões: 50% da dívida de Itaipu, cerca de US$ 9.500 milhões, sendo 90% desse valor à Eletrobrás; e 50% da dívida de Yacyretá, cerca de US$ 4.500 milhões. Ao mesmo tempo, a dívida externa do Paraguai é de apenas US$ 2.230 milhões.

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Por isso, falar da dívida externa do Paraguai implica analisar as dívidas de Itaipu e Yacyretá, de natureza Sul-Sul.

10. Itaipu Itaipu deveria ter custado US$ 2.033 milhões, mas terminou custando US$ 20.000 milhões. Em serviços de dívida, já pagou US$ 25.000 milhões: 12 vezes o seu custo inicial. Caso não mudem as regras do jogo, terminará custando US$ 65.000 milhões em serviços de dívida – 32 vezes seu preço inicial. Desde o início de seu mandato (2003), o atual presidente paraguaio, Nicanor Duarte Frutas, diz que está negociando a eliminação da indexação dos juros da dívida com relação à taxa de inflação dos EUA – a “dupla indexação”. No entanto, não se alcançou até o presente algo de concreto. Com preços muitas vezes superiores aos do mercado, transnacionais presentes no Brasil e empresas brasileiras de construção, como Camargo Corrêa e Andrade Gutiérrez, além de consultoras, apoderaram-se de 85% do montante dos contratos de construção de Itaipu. Resta assim, ao Paraguai, apenas 15%. Porém, a dívida é binacional, ou seja, 50% para cada país. E, ao invés de reduzir, tem aumentado: em 1991, quando a obra já estava terminada, era de US$ 17.000 milhões; hoje, é de US$ 18.000 milhões, após o pagamento de US$ 25.000 milhões. E onde foram parar esses US$ 25.000 milhões já pagos com os serviços de dívida? Para que se compreenda a ilegitimidade da dívida, um exemplo é o caso da dívida espúria. Ao final de 1996, Itaipu acumulou uma dívida espúria, ou seja, não-paga, de US$ 4.193 milhões, 98% causada porque empresas elétricas brasileiras como Furnas e Eletrosul se recusaram a pagar a tarifa igual ao custo, tal como estabelece o Tratado; ou seja, US$ 4.090 milhões foram gerados em dívida espúria por empresas elétricas brasileiras. Quando se calculam os juros de 1% ao mês aplicados pela Itaipu à Administração Nacional de Eletricidade (Ande), Furnas e Eletrosul, o valor devido hoje à Itaipu chegaria a US$ 12.000 milhões. Se essa quantia fosse reconhecida, a dívida de Itaipu diminuiria de US$ 18.000 milhões para somente US$ 6.000 milhões.

11. A estratégia do Itamaraty para expropriar a soberania paraguaia em Itaipu Desde o início, a ditadura militar brasileira alentou a corrupção em Itaipu a fim de endivi-

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dar o Paraguai e evitar que dispuséssemos de energia barata. Ao mesmo tempo, nos foram aplicados interesses usurários através da Eletrobrás. Para piorar o quadro de uma vez, a energia utilizada não foi paga e Itaipu se endividou ainda mais: 98% dessa dívida foi fruto da ação de empresas brasileiras. O objetivo é claro: que o Paraguai não disponha de sua energia.

12. Argentina usa estratégia semelhante em Yacyretá Yacyretá começou a operar em 1994. Suas obras principais foram terminadas em 1998, mas os requisitos sociais e ambientais foram totalmente negligenciados, o que causou um dano imenso ao Paraguai, que entrou com 80% do território. A Argentina levou energia barata sem se preocupar com a finalização da obra, uma vez que isso iria requerer o desembolso de dinheiro em território paraguaio. Hoje, a Argentina afirma que pretende terminar a obra porque necessita de mais energia. O seu descumprimento em terminar as obras, em 1998, endividou Yacyretá muito mais do que o devido. A Argentina se comprometeu a terminar a obra em 1998 e a não cobrar juros pelos empréstimos já concedidos pelo tesouro argentino. Descumpriu ambos os acordos: cobrou juros ao mesmo tempo em que levava uma energia quase grátis para o seu sistema elétrico; e descumpriu 80% dos requisitos sociais e ambientais paraguaios. Entre juros não-pagos e energia não-gerada, o dano é de US$ 6.200 milhões, sem os quais a dívida se reduziria à terça parte: de US$ 10.000 milhões para US$ 3.800 milhões. A necessidade de energia por parte da Argentina impulsiona a finalização de Yacyretá, incluindo a construção da central hidrelétrica do Aña Cuá. Não basta que a Argentina ofereça o pagamento de juros ilegalmente acumulados; devese eliminar toda a dívida espúria de Yacyretá e devem ser reduzidas todas as taxas usurárias do seu Tesouro, sem condicionalidades. Também devem ser atendidos devidamente os requisitos sociais, ambientais e de infra-estrutura gerados pelo seu reservatório.

13. As binacionais e a primazia da usura como expropriação de soberania A taxa de juros de empréstimo da Eletrobrás – credor quase único de Itaipu – é de 7,5%, mais a inflação dos EUA. A taxa mínima “libor”, sem a inflação dos EUA – 5,2% em 2006 – , é de


apenas 2,2% ao ano. A taxa de juros do Tesouro argentino é de 6%, mais a inflação dos EUA. Organizações como a Organização dos Países Exploradores de Petróleo (OPEP) cobram 2,5% ao ano, com taxa de - 0,5%/ano; e a Venezuela empresta ao Paraguai a 2%/ano, com -1%/ano de taxa real. A pergunta que fica, então, é: por que aceitamos a usura da Eletrobrás e do Tesouro argentino? Enquanto isso, não se prevê um reforço do sistema elétrico paraguaio em áreas rurais e tarifas reduzidas para a produção e a vida social. O sistema elétrico paraguaio da Administração Nacional de Eletricidade (Ande) requer investimentos com urgência e até mesmo prevê investimentos importantes em geração elétrica nas centrais hidrelétricas de Acaray e Yguazú, bem como em transmissão, com uma rede de 500 kV. O que não prevê é o melhoramento das redes de distribuição no interior do país, que são precárias e, muitas vezes, monofásicas.

14. O Paraguai exige justiça e soberania O primeiro elemento a se cobrar é a soberania; ou seja, que o Paraguai possa dispor de sua energia livre e soberanamente para usá-la no próprio país ou exportá-la à região a preços de mercado. Se Brasil e Argentina quiserem continuar a usar a energia do Paraguai, devem pagar o preço de mercado – US$ 3.500 milhões ao ano –, assim como qualquer país paga pelo petróleo que compra. O segundo é que a dívida de Itaipu e Yacyretá seja perdoada. Em ambos os casos, a dívida foi suficientemente paga: com US$ 25.000 milhões, no caso de Itaipu – por um custo de apenas US$ 2.000 milhões –, e em Yacyretá, pelos danos causados. O terceiro elemento é que se, após uma auditoria, restar ainda alguma dívida, a taxa de juros deve ser reduzida a preços de mercado como os da OPEP ou da “libor”. O quarto é que ambas hidrelétricas sejam geridas binacionalmente, com transparência e controle, também para o desenvolvimento do Paraguai. Finalmente, o Paraguai deve criar um plano de uso produtivo de energia hidrelétrica, capaz de reduzir assimetrias e desigualdades no Mercosul.

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