11 Publicação do Instituto de Estudos Socioeconômicos - Inesc
E D I TOR I A L
O direito ao meio ambiente
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e acordo com a Constituição brasileira, o direito a um ambiente saudável é um direito fundamental, pois apesar de não estar inscrito no título dos direitos e garantias fundamentais é reconhecido como essencial à qualidade de vida, além de ser um princípio da ordem econômica que visa à justiça social e à dignidade para todos. As dificuldades, no entanto, para colocar em prática o direito ao ambiente saudável, bem como ao desenvolvimento sustentável, leva-nos a uma discussão preocupante sobre o presente e o futuro dessa questão no Brasil. Para realizar uma reflexão sobre o tema, contamos com a contribuição do relator nacional para o direito humano ao meio ambiente, Jean Pierre, que analisa a situação brasileira a partir de exemplos emblemáticos verificados em todo o território nacional. Dada a importância do debate, o boletim do Inesc, cuja linha editorial é identificada pela análise de políticas públicas por meio da ótica orçamentária, apresenta, desta vez, uma exceção. Ao invés de números do orçamento público, esta edição elabora a análise a partir de um testemunho, quer nos mostra o que significam as cifras e as decisões políticas quando se chega lá no chão do país.
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Ano III • nº 11 • novembro de 2004
O governo sob a luz da justiça ambiental Justiça ambiental é uma idéia e uma luta que fazem sentido1 . A seguir, entraremos numa deprimente viagem ao país da ausência de direitos, em que se verá que a “luz” da justiça ambiental não passa de uma mísera lamparina, já que ninguém a vê e a respeita, para terminar iniciando a busca de sinais positivos, de lampejos que talvez um dia mudem o quadro atual, mas deixando ao leitor a possibilidade de ir à cata de outras informações esperançosas. Faz tempo que organizações da sociedade civil brasileira, ambientalistas ou não, lutam por justiça ambiental e justiça climática. Essas ações começaram a se dar de
modo mais coletivo e a permitir a construção de um corpo teórico com a criação, em 2001, da Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Esta definiu como injustiça ambiental “o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social, destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de baixa renda, aos grupos sociais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis”2 . Não foi difícil chegar a essa deGrupos sociais se finição, pois no seminário sentiam vítimas de que deu início à Rede não injustiças que faltaram exemplos de grujuntavam impactos pos sociais que se sentiam promovidos pelo vítimas de injustiças que modelo de juntavam impactos prodesenvolvimento movidos pelo modelo de dominante no meio desenvolvimento domiambiente e nas nante no meio ambiente e pessoas e nas pessoas e comunidades. comunidades À experiência de boa parte da população brasileira corresponde um arcabouço teórico e legislativo referente ao direito ao meio ambiente, em particular na Constituição brasileira de 1988 e nos documentos oriundos da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – Cnumad, realizada na Rio 92. É esse o pano de fundo da nossa avaliação3 . A Constituição Federal de 1988, chamada de “Constituição Cidadã”, já dava o quadro institucional e o substrato jurídico que permitem promover no país o direito ao meio ambiente. Há um amplo rol
de dispositivos constitucionais relacionados à matéria que, interpretados e aplicados conjuntamente, permitem a realização do direito humano ao meio ambiente, nos âmbitos econômico, social e cultural. O capítulo sobre meio ambiente está incluído sob o Título VIII, Da Ordem Social, e dessa forma submete-se ao disposto no artigo 193 (Tít. VIII, Cap. I: Disposição Geral): “A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça social”. A dignidade humana e a cidadania são tidas como fundamento da República já no artigo 1º (incisos II e III). O artigo 3º coloca como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil “construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (incisos I a IV). O artigo 225 (Tít. VIII, Cap. VI) estabelece que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Finalmente, no aspecto cultural, normas constitucionais reconhecem e impõem ao Estado o dever de proteger “as manifestações das culturas populares, indígenas e afrobrasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”, garantindo o pleno exercício dos direitos culturais, apoiando e incentivando a valorização e a difusão das manifestações culturais (art. 215, caput e parágrafo 1º).
1 Ver Acselrad, Henri; Herculano, Selene; Pádua, José Augusto. Justiça ambiental e Cidadania. Relume Dumará, Rio de Janeiro, 2004. 2 Declaração de lançamento da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, 2001 3 A reflexão é extraída de Leroy, Jean-Pierre (relator nacional) e Silvestre, Daniel Ribeiro (assessor nacional). Direito Humano ao Meio Ambiente. In: Relatório Brasileiro sobre Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais 2003. Plataforma brasileira DhESCs, Recife, Gajop, 2003.
Orçamento & Política Socioambiental: uma publicação trimestral do INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos, em parceria com a Fundação Heinrich Böll. Tiragem: 3 mil exemplares. INESC - End: SCS – Qd, 08, Bl B-50 - Sala 435 Ed. Venâncio 2000 – CEP. 70.333-970 – Brasília/DF – Brasil – Tel: (61) 212 0200 – Fax: (61) 212 0216 – E-mail: inesc@inesc.org.br – Site: www.inesc.org.br. Conselho Diretor: Eva Faleiros, Gisela de Alencar, Iliana Canoff, Juraci de Souza, Mariza Veloso, Nathalie Beghin, Neide Castanha, Paulo Calmon, Pe Virgílio Uchoa. Colegiado de Gestão: Iara Pietricovsky, José Antônio Moroni. Assessores: Alex Jobim, Edélcio Vigna, Francisco Sadeck, Jair Barbosa Júnior, Jussara de Goiás, Luciana Costa, Márcio Pontual, Ricardo Verdum, Selene Nunes. Assistentes: Álvaro Gerin, Caio Varela, Lucídio Bicalho. Instituições que apóiam o Inesc: Action Aid, CCFD, Christian Aid, EED, Esplar, Fastenoffer, Fundação Avina, Fundação Ford, Fundação Heinrich Boll, KNH, Norwegian Church Aid, Novib, Oxfam e Solidaridad. Jornalista responsável: Luciana Costa (DRT 258/82) Esta publicação utiliza papel reciclado
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Da forma como é colocado no texto constitucional, o direito ao meio ambiente é um direito fundamental, pois embora não esteja incluído no Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais4 , é reconhecido como essencial à sadia qualidade de vida e é um princípio da ordem econômica, que busca a justiça social e a existência digna de todos. Dessa forma, liga-se diretamente aos fundamentos e aos objetivos fundamentais da República, inserindo-se na realização da dignidade humana e da cidadaA Agenda 21 atribui nia, tornando-se indispenao mercado e à sável para a redução das liberalização desigualdades sociais, o decomercial o papel senvolvimento nacional e a principal para reduzir construção de uma socie- a pobreza e diminuir dade livre, justa e solidária. as pressões sobre o O direito ao meio ammeio ambiente. Aí biente é um direito fundaestá o calcanhar de mental que depende da Aquiles da Agenda participação do poder pú21, pois é pedir à blico (Executivos, onça para cuidar do Legislativos e Judiciários) rebanho para ter eficácia, assim como ocorre com os direitos econômicos, sociais e culturais, mas depende também da coletividade. Instâncias de participação do cidadão na definição, execução e fiscalização de políticas econômicas e ambientais são essenciais para que toda a sociedade, e não apenas a parcela minoritária detentora de grande poder econômico, possa manifestar seus interesses perante o Poder Público. Por sua vez, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento Cnumad - estabeleceu marcos e referências que permitem aprofundar o sentido do direito ao meio ambiente e fazer com que ele seja incorporado com maior efetividade aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. No preâmbulo do seu Capítulo 1, a Agenda 21 salienta que a humanidade se defronta “com a perpetuação das disparidades existentes entre as nações e no interior delas; o agravamento da pobreza, das doenças e do analfabetismo; e com a deterioração contí-
nua dos ecossistemas de que depende nosso bem-estar”. E continua: “Não obstante, caso se integrem as preocupações relativas a meio ambiente e desenvolvimento e a elas se dedique mais atenção, será possível satisfazer às necessidades básicas, elevar o nível de vida de todos, obter ecossistemas melhor protegidos e gerenciados e construir um futuro mais próspero e seguro”. A isso chama de “desenvolvimento sustentável” (1.1). Vale notar que a Agenda 21 atribui ao mercado e à liberalização comercial o papel principal para reduzir a pobreza e diminuir as pressões sobre o meio ambiente e, assim, chegar ao desenvolvimento sustentável. Aí está o calcanhar de Aquiles da Agenda 21, pois é pedir à onça para cuidar do rebanho. Aliás, não percebe a contradição, quando afirma, no seu capítulo 4: “Enquanto a pobreza tem como resultado determinados tipos de pressão ambiental, as principais causas de deterioração ininterrupta do meio ambiente mundial são os padrões insustentáveis de consumo e produção, especialmente nos países industrializados. Motivo de séria preocupação, tais padrões de consumo e produção provocam o agravamento da pobreza e dos desequilíbrios” (4.3). A Convenção sobre Mudanças de Clima, por sua vez, reconhece a responsabilidade dos países industrializados nas emissões globais de gases de efeitoestufa e reitera o direito das nações ao desenvolvimento sustentável, o que significa que se uns devem diminuir as suas emissões, as emissões de outros crescerão “para que eles possam satisfazer as suas necessidades sociais e de desenvolvimento” (Preâmbulo). No entanto, não os exime de uma atitude responsável quando define as obrigações das Partes, tais como: “Promover a gestão sustentável, bem como promover e cooperar na conservação e fortalecimento, conforme o caso, de sumidouros e reservatórios de todos os gases de efeito-estufa não controlados pelo Protocolo de Montreal, inclusive a biomassa, as florestas e os oceanos, como também outros ecossistemas terrestres, costeiros e marinhos” (Artigo 4 d). O meio ambiente é visto, principalmente: i) como provedor dos recursos naturais para o desenvolvimento, renováveis e não-renováveis, sendo que a
4 A não ser a breve menção do inciso LXXIII do artigo 5º, que permite ao cidadão, por meio de ação popular, intentar a anulação de ato lesivo ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.
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distinção feita aqui tende a se acabar, já que o padrão dominante de produção e consumo deve levar também ao esgotamento dos recursos que seriam renováveis; ii) como repositório dos rejeitos e da poluição causados por esse mesmo padrão. Este padrão de produção e consumo tende a reproduzir a pobreza e a desigualdade que, por sua vez, geram, embora sejam secundários, na escala do planeta, maior pressão sobre os recursos e maiores impactos sobre o meio ambiente. O direito ao meio amO direito ao meio biente funde-se aqui com ambiente funde-se o direito a um desenvolaqui com o direito a vimento sustentável: uma um desenvolvimento vida digna para todos, em sustentável: uma vida especial para as popula- digna para todos, em ções pobres dos países especial para as “em desenvolvimento”, populações pobres com acesso aos serviços esdos países “em senciais e um padrão de desenvolvimento” consumo que preserve a possibilidade da humanidade futura garantir as suas necessidades. Ao conjugar o direito ao meio ambiente com o direito ao desenvolvimento sustentável, reivindica-se o direito a um desenvolvimento próprio, que assegure uma vida digna para todos e todas e garanta uma relação ética, sustentável e democrática com o meio ambiente. A Constituição Brasileira de 1988, ao definir o meio ambiente como “bem comum”; a Convenção da Biodiversidade, ao mencionar direitos coletivos de populações tradicionais sobre a biodiversidade; a Convenção sobre Mudanças de Clima, ao chamar as Partes à responsabilidade “para com o sistema climático em benefício das gerações presentes e futuras da humanidade” (artigo 3. 1) reconhecem, cada uma a sua maneira, que o direito ao meio ambiente é um direito difuso, comum a todos e todas, desde uma comunidade local até a humanidade no seu conjunto, e que, em tese, todas as estratégias de desenvolvimento e todas as formas de apropriação dos recursos naturais e do meio ambiente devem se subordinar a esse princípio. Além dos que são dire-
tamente atingidos, todos os habitantes de um determinado local, região, país ou do mundo são afetados no seu direito ao meio ambiente. As populações da Amazônia que protestam contra as violações ao seu direito ao meio ambiente, quando a floresta está sendo derrubada, defendem os direitos de todos os amazônidas e da população de uma parte ponderável das Américas, pois o desmatamento influencia o clima e o regime de chuvas nessas regiões. Falamos de direito “difuso” no sentido de coletivo, e não no sentido de que não haveria sujeitos identificáveis desse direito. O problema, como mostra o professor Carlos Marés, é que os sujeitos coletivos são freqüentemente “invisíveis”. Diz o autor: “os direitos coletivos são invisíveis ainda hoje. Cada vez que são propostos ou reivindicados, é desqualificado o seu sujeito... Sendo assim, no universo do direito individual, tudo que seja coletivo é estatal, ou omitido, ou invisível”. Com a Constituição de 1988, começa a haver mudanças: são reconhecidos os direitos coletivos dos povos indígenas, dos quilombolas. Marés afirma: “Talvez, de todos, o mais relevante direito coletivo criado foi o estabelecido ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, elevado à categoria de bem jurídico e, portanto, apropriável juridicamente de forma coletiva, conforme o artigo 225” 5 . Perpetuação da injustiça ambiental Convém fazer uma advertência. Aqui, nos concentraremos na avaliação do Executivo federal, mas ressalvamos que a efetivação dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais é uma longa marcha que envolve, como já dito, todos os setores: Executivos, Legislativos, Judiciários e sociedade; e essa efetivação se dá ao longo do tempo. Portanto, o atual Executivo federal não pode ser o único bode expiatório da profunda injustiça reinante no país. Esperava-se dele, porém, mais sinais anunciadores de novos tempos. É uma crueldade lembrar que o plano de governo do PT previa “inclusão social com justiça
5 Marés de Souza Filho, Carlos Frederico. Os direitos Invisíveis. Texto preparado para o evento “Direitos Humanos no Liminar do Século XXI”, módulo III, realizado no Centro Cultural Maria Antônia, São Paulo, em 20 de maio de 1997.
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ambiental”. E dizia: “O governo Lula trabalhará para um novo padrão de desenvolvimento com crescimento econômico, inclusão social e justiça ambiental, de modo que, resguardando o direito das gerações futuras, todos tenham acesso justo aos recursos naturais”6 . Por isso, já que o governo não é só da coalizão que subescreve o programa, e que os assinantes diriam que governo exige responsabilidade, é a definição de injustiça ambiental, colocada no início, que vai servir de referência a nosso panorama?7 . Portanto, Exportar a qualquer desde já, vale reiterar que custo para atender aos a enorme injustiça imperativos do ajuste ambiental é oriunda macroeconômico e principalmente do moproduzir a qualquer delo de desenvolvimento custo para crescer e dominante, combinado assim fornecer com a tradição de 500 empregos são anos de devastação do tercaminhos que ritório, associada à escraencontram-se no vidão e perpetuada no desprezo pelas desprezo manifestado até condicionantes hoje para com as classes ambientais e sociais subalternas. Num quadro mundial em que as grandes empresas transnacionais e o mercado financeiro conseguiram colocar a política a seu serviço, não é de se admirar que o atual governo tenha colocado a estabilidade macroeconômica no centro da sua política. Dois elementos desta política têm um efeito devastador: as metas de superávit primário que limitam os investimentos, em particular os destinados aos ministérios periféricos, como os do Desenvolvimento Agrário, da Cidade e do Meio Ambiente, levando a um catastrófico contingenciamento de recursos; e a total prioridade dada às exportações, em particular ao agronegócio. No governo, coexiste com essa linha voltada para a estabilidade uma corrente, liderada pelo BNDES, que privilegia o crescimento econômico e quer desenvolver para tal um projeto nacional. O Plano Plurianual
– PPA - seria a expressão desse setor. Porém, concordamos com Henri Acselrad, na avaliação de que “uma mesma lógica parece unir, no atual momento, essas duas correntes no que diz respeito às estratégias produtivas - a lógica da preferência por um crescimento centrado no agronegócio exportador”.8 Exportar a qualquer custo para atender aos imperativos do ajuste macroeconômico e produzir a qualquer custo para crescer e assim fornecer empregos são caminhos que encontram-se no desprezo pelas condicionantes ambientais e sociais. Repetidas vezes, o presidente e altas figuras do governo e do PT afirmaram que o meio ambiente não pode impedir o crescimento. As consequências para a população rural e florestal são enormes. A mensagem do crescimento é captada, seja pelo capital moderno ou pelos tradicionais “aventureiros” descritos por Sérgio Buarque de Holanda9 , como um sinal de que “liberou geral”. As terras de posse de pequenos produtores e de populações tradicionais e as susceptíveis de serem destinadas a assentamentos voltados para a agricultura e agroflorestação sustentáveis tornam-se cobiçadas e escassas. Pela primeira vez, reduzem-se terras indígenas, como aconteceu com a reserva Baú, no Pará, e com a Terra Indígena - T.I. - Raposa Serra do Sol. Dá-se um freio no reconhecimento de reservas extrativistas. São 17 reservas extrativistas com processos concluídos na Casa Civil da Presidência. É o caso da Reserva Extrativista “Sempre Viva”, localizada no município de Porto de Moz, entre Xingu e Amazonas. É certo que envolve o governo do Pará, mas o governo federal não manifesta a sua força. Apesar de existir um estoque importante de terras públicas no Mato Grosso, o Incra não consegue viabilizar os assentamentos necessários à “reforma agrária” no Estado; não mais do que, por exemplo, o Projeto de Assentamento Sustentável de Anapú (PA) ou o Assentamento Extrativista de São Raimundo das Mangabeiras (MA). Visitei, em agosto passado, em Canabrava (MT), o que seria o “Assentamento Liberdade”. Os virtu-
6 Programa Coligação Lula Presidente PT/PC do B/PL/PMN/PCB. 7 Os casos que circulam na Rede de Justiça Ambiental ( www.justicaambiental.org.br) e, em particular, as visitas realizadas pelo autor no quadro do seu mandato de relator nacional para o direito humano ao meio ambiente em 2003 e 2004 servem par ilustrar o texto, mas não permitem uma avaliação completa da situação no país. 8 Descaminhos da riqueza insustentável. Brasil de Fato, setembro de 2004. 9 Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 26ª edição, 1995.
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ais assentados - miseravelmente acampados - não conseguiram tomar posse da terra prometida, ocupada em particular por produtores de soja. Um desses grileiros teria declarado a um acampado que, enquanto o Maggi fosse governador, essa terra nunca seria deles. O governador, aliás, já declarou que no Mato Grosso não há terras públicas, apenas terras de produtor. O governo federal assina embaixo quando exclui da Raposa Terra do Sol a área grilada por Poucas dezenas de arroizeiros, que a ocupamilhares de famílias ram depois da demarcação estão sendo da reserva. Os Xavantes precariamente re-ocuparam, em agosto, parte da sua terra ances- assentadas, e outras, mais numerosas, tral, Marãwatsede (MT), que se tinha tornado co- continuam saindo do campo ou se vêem nhecida como fazenda impossibilitadas de Suia-Missú. Será que os produzir políticos locais e os posseiros (leia-se, fazendeiros) rebelados contra os Xavantes, a Justiça Federal e o governo federal se sentiriam tão seguros se não fosse o clima criado? Frente à bandeira desfraldada do crescimento e na ausência de políticas públicas que possam configurar uma alternativa real ao modelo de agricultura agroexportadora subordinado à agroindústria, poucas dezenas de milhares de famílias estão sendo precariamente assentadas, e outras, mais numerosas, continuam saindo do campo ou se vêem impossibilitadas de produzir. Lá onde predominam os empreendimentos agroexportadores, essas agressões se dão de modo rápido e brutal. Em três anos, em Santarém (PA), onde se localiza o porto da Cargil para a exportação da soja, dezenas de comunidades rurais do planalto santareno foram varridas do mapa com a chegada da soja. Bem perto, na Transamazônica, é grande a preocupação das lideranças das organizações dos colonos, embora estejam se voltando para uma agricultura sustentável, menos dependente de insumos externos. Elas estimam que, se o governo não promover políticas públicas para a agricultura familiar e o agroextrativismo na re6
gião a curto prazo, as famílias do interior não conseguirão resistir à pressão dos grandes produtores de grãos. No norte de Minas Gerais, empresas de plantação de eucaliptos para a produção de carvão vegetal destinado à siderurgia compram terra ou obtêm concessões de terras públicas nas chapadas e estrangulam comunidades, como pude observar em Rio Pardo de Minas e Curvelo. Não sobram terras suficientes para esses “geraizeiros”, acostumados a combinar a produção nas veredas com o extrativismo e/ ou a criação de gado na chapada. As fontes de água secam ou são poluídas. Encurralados, ou se tornam empregados dessas empresas ou vão se empregar na colheita do café ou vão para a cidade. O mesmo destino está se desenhando para comunidades de pescadores artesanais e coletores de mariscos do litoral, cuja sobrevivência depende de manguezais. A nova Secretaria de Pesca incentiva a aquicultura, área produtiva na qual o Brasil, deitado no leito esplêndido dos seus numerosos rios - e lagos - antigamente muito piscosos, não se desenvolveu. Seria correto se ajudasse a criar uma aquicultura baseada em empreendimentos familiares e, ao mesmo tempo, desenvolvesse políticas destinadas à pesca extrativa. Mas priorizou a carcinicultura, produção voltada para a exportação, bastante problemática quando deixada à livre iniciativa, como é o caso. São empresas que dominam a cadeia produtiva, das quais dependem os pequenos produtores, que, aliás, são minoria. Os produtores de camarão ocupam áreas de coleta dos moradores locais, invadem apicums e manguezais, protegidos pela legislação, e, obcecados pelo produtivismo a tudo custo, poluem o ambiente. Chegam denúncias de todo o litoral nordestino, da Bahia ao Maranhão. Impressiona a situação dos moradores de Curral Velho (município de Acarau, CE), vítimas, recentemente (setembro 2004), de violentas agressões por parte de capangas (policiais em ação fora da sua jurisdição) de empresários, quando defendiam o patrimônio público que estava sendo apropriando. Os índios Tremembé, também localizados novembro de 2004
no litoral oeste do Ceará, foram igualmente vítimas de agressões, por parte de policiais que estavam a serviço de empresários da carcinicultura que desmata seus manguezais, carnaubais e coqueirais e lhes impede o acesso ao mar e aos rios. O turismo, apresentado com razão como atividade econômica de grande potencial, geradora de empregos, é frequentemente tratado como atividade “mineradora”, promotora de tal modificação do meio ambiente que, a prazo mais Os rumores sobre a ou menos distante, tal ou retomada e a tal região ou empreendi- expansão da energia mento perderão seu innuclear aumentam. teresse. Conjuntamente, As grandes tende a deslocar populabarragens voltam a ções, lhes retirar seus ser prioridade do meios de subsistência governo sem lhes garantir os prometidos empregos, como se verificou em vários empreendimentos no Ceará. O Prodetur, em particular, é freqüentemente associado a esse tipo de problema. Em Rio Formoso, Pernambuco, foi construído com recursos do Prodetur um sistema de saneamento urbano incompleto, que teve como resultado a destruição da fauna dos manguezais e, conseqüentemente, retirou das coletoras de mariscos e dos pescadores a sua subsistência. No município de Camocim, no Ceará, as comunidades de Tatajuba travam uma longa batalha contra grileiros. Um for te encorajamento para elas é o que ocorreu com a vizinha comunidade de Jericoacoara, que ficou desestruturada e perdeu o bem-estar que havia quando vida e trabalho estavam integrados com o meio ambiente. A perspectiva da construção de um aeroporto internacional na região vai reforçar essa tendência à expulsão e à marginalização das comunidades litorâneas. O PPA apresentado pelo governo Lula apresentava duas novidades: à diferença dos planos anteriores (Brasil em Ação e Avança Brasil), queria tratar obras de infra-estrutura dentro de uma visão de desenvolvimento nacional e não só dennovembro de 2004
tro do marco da inserção do Brasil na economia mundial. Além disso, abria espaço para o debate democrático, com a participação da sociedade. O tempo passou. A Inter-redes, que congrega uma série de redes e entidades da sociedade civil, afastou-se do processo por considerar que a sua participação era somente de enfeite. E o PPA voltou à mesmice. A ministra de Minas e Energia, Dilma Roussef, com a sua determinação firme de se adequar ao modelo de crescimento e desenvolvimento promovidos pelo governo, conseguiu que recuássemos no plano energético em várias frentes. Os avanços verificados com o Proinfa, programa de incentivo às energias alternativas, ainda são tímidos pois o encorajamento à produção descentralizada e democratizada da energia é insuficiente para tal. Os rumores sobre a retomada e a expansão da energia nuclear aumentam. As grandes barragens, excluídas de financiamento pelo Banco Mundial depois de uma Comissão Mundial ter demonstrado que seus impactos sociais e ambientais negativos ultrapassavam as vantagens, voltam a ser prioridade do governo. E, atrás disso, as médias e pequenas barragens, que, na escala do território, talvez não pareçam tão grandes e tão impactantes quanto são na realidade (muitas delas, em países europeus, apareceriam como monstruosas), se multiplicam. Aqui também, está dito claramente que o crescimento não pode ser freado pelo meio ambiente. Empresários e o Ministério de Minas e Energia – MME - se unem no protesto contra o licenciamento ambiental, reduzido por eles quase que à mera formalidade burocrática, como mostram inúmeros exemplos; e contra o Ministério do Meio Ambiente, “inimigo do progresso”. Antes mesmo que seja aprovada a barragem hidroelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, as comunidades e as suas organizações locais, voltadas para a agricultura e o extrativismo sustentáveis, sofrem discriminação por serem contra o progresso, ao questionar a barragem por seus prováveis 7
efeitos devastadores sobre o meio ambiente local e regional, sobre a bacia do Xingu e sobre as suas vidas, como o mostram alguns estudos e o exemplo de Tucuruí, não muito distante. O Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB - denuncia permanentemente e tenta ajudar localmente as comunidades atingidas a resistir à multiplicação de obras no país e à maneira como estão sendo conduzidas. A maioria das comunidades é de famílias ribeirinhas que desenvolveram, Será que o MME ao longo de décadas e joga no time dos mesmo de séculos, formas “interesses de vida e de reprodução econômicos”, em harmonia e reforçando a interdependência com a dicotomia entre natureza. O deslocamenministérios to dessas comunidades importantes para o corta as suas raízes e repre- crescimento e outros senta uma violência da periferia, inimaginável; violência destinados a cultural tão agressiva “enxugar o gelo” ? quanto a violência explícita que frequentemente a acompanha. Entre dezenas de casos, visitamos os atingidos pela barragem de Irapê, no rio Jequitinhonhas (MG) e os de Manso, na Chapada dos Guimarães MT), onde Furnas, no caso de Manso, e a Cemig, no de Irapê, estão formando uma grande clientela para o programa Fome Zero e promovendo o que mereceria ser chamado de genocídios culturais. Poderia se responder que o governo federal não está implicado diretamente em muitos desses empreendimentos. O governo e, em particular aqui, o MME, é diretor de harmonia e compositor do samba do “Brasil- grande-outra-vez”. É ele que pode e deve dizer qual é a importância do licenciamento ambiental e o que deve ser. O Grupo de Trabalho Energia, do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o meio ambiente e o desenvolvimento - Fboms , preocupado com o grau de desinformação da sociedade sobre os licenciamentos, obteve a documentação sobre vários licenciamentos e os analisou. A conclusão é
a de que existem, sim, “atrasos excessivos nas deliberações do Ibama, principalmente por falta de quadros para analisar os estudos. Faltam também técnicos para averiguar as dimensões dos impactos sobre a população a ser atingida pela obra. Mas também, há um clima de enfrentamento construído por interesses econômicos querendo fazer um curto-circuito nos legítimos processos em prol do meio ambiente e nos direitos das populações locais.”10 Será que o MME joga no time dos “interesses econômicos”, reforçando a dicotomia entre ministérios importantes para o crescimento e outros da periferia, destinados a “enxugar o gelo” ? Pois não nos parece que, fora as questões burocráticas, o licenciamento ambiental seja exagerado. Pelo contrário, faltam componentes ao licenciamento ambiental. As populações atingidas são consideradas quase que somente como proprietárias, sob um ponto de vista produtivo, economicista. Não são vistas como tendo direitos coletivos, sob o ponto de vista socioambiental. Falta, para a tomada de decisão sobre os empreendimentos, o que o professor Henri Acselrad chama de “avaliação de equidade ambiental”. Outra obra extremamente preocupante do ponto de vista socioambiental é a pavimentação da BR 163, a Cuiabá-Santarém. Apesar da abordagem transversal adotada pela ministra Marina Silva, envolvendo em particular os ministros e ministérios da Integração Nacional e dos Transportes, e do diálogo governamental com os setores sociais e empresariais da região, a preocupação é grande. A proposta do Grupo de Trabalho interministerial é de inscrever a estrada num “Plano de Desenvolvimento Territorial Integrado e Sustentável da Região de Influência da BR 163”. A “Carta de Santarém”, fruto de quatro seminários que envolveram mais de mil lideranças da região, prioriza para o Plano cinco linhas: Infra-estrutura e serviços básicos; ordenamento fundiário e combate à violência; estratégia e manejo dos recursos naturais; fortalecimento social e cultural das populações locais; garantia de proteção das áreas protegidas. Além disso, propõe “que a abrangência
10 Regis, Mayron e Switkes, Glenn. Anatomia de um licenciamento. E-mail do Grupo de Trabalho Energia, de 3 de setembro de 2004.
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territorial de impacto da construção da BR 163 considere como região de influência o Norte do Mato Grosso e o Oeste do Pará, incluindo as bacias do Xingu, Araguaia, Teles Pires e Tapajós.”11 A situação atual da região é de calamidade. É uma terra de ninguém, onde a vida e o meio ambiente não têm o menor valor. O bispo do Xingu, Dom Erwin Krautler, em carta às autoridades12 , aponta como “delitos mais preocupantes...a ocupação desordenada de terra (grilagem), o desmatamen- Há a sensação de que to ilegal, a exploração ileo governo está gal da madeira, o trabalho subestimando escravo, a superexploração totalmente a de mão de obra”. O que gravidade da situação prever para o amanhã, de calamidade em quando se observa o que que se encontra o está acontecendo com o país, com as pessoas Mato Grosso hoje e que e as comunidades se sabe que essa dinâmica quase que selvagem que está se repetotalmente tindo; quando é lembradesprotegidas da a “negociação” amigável que permitiu reduzir a Terra Baú, como já mencionado, e que o governo de Mato Grosso, com um certo sucesso, consegue promover a cultura da soja em terras indígenas do estado; quando se vê grileiros que destruíram ilegalmente a floresta e grilaram terras se apresentarem hoje como “legítima” associação de produtores, habilitada a discutir o futuro da região? O Plano proposto pelo Grupo de Trabalho Interministerial e a sociedade regional é factível? O Estudo e o Relatório de Impacto Ambiental - EIA/Rima - prévios ao asfaltamento da estrada, aos quais tivemos acesso, estão em contradição com o Plano quando analisam somente a faixa da estrada e consideram os habitantes da região somente sob sua condição de produtores. O bispo, na mesma Carta, afirma que a fiscalização do Ministério do Trabalho e da Polícia Federal sobre o trabalho escravo é insuficiente e que não existem meios de transporte adequados para intervir em época de
chuva. Quando se sabe a prioridade dada pelo governo ao combate ao trabalho escravo e o trabalho pioneiro e abnegado das equipes de fiscalização das Delegacias Regionais do Trabalho, podese imaginar o que acontece em outras áreas vitais para que os DhESCs sejam alcançados, particularmente o direito humano ao meio ambiente, ou, pelo menos, que as injustiças sejam combatidas. De fato, o Incra, o Ibama, a Funai e a Polícia Federal, instituições federais que estão presentes no campo, não conseguem defender, no âmbito das suas responsabilidades, os direitos das populações com as quais lidam. Além da corrupção frequentemente denunciada, afeta a sua capacidade de intervenção efetiva a falta de meios financeiros e de recursos humanos. A impossibilidade, não raras vezes, de fazer valer a lei e as suas decisões fragiliza o poder federal e o Legislativo. A ausência ou omissão é interpretada como um sinal de que, de fato, tudo é permitido. A sua cumplicidade, voluntária ou não, com a “bandidagem”, reforça o sentimento de um estado a serviço dos poderosos e que todos os políticos se valem disso. Vale acrescentar a insuficiência de procuradores federais, de fiscais do trabalho etc. Há a sensação de que o governo está subestimando totalmente a gravidade da situação de calamidade em que se encontra o país, com as pessoas e as comunidades quase que totalmente desprotegidas. Basta lembrar o trágico episódio do massacre de garimpeiros na terra indígena Roosevelt, dos Cinta-Larga. Um povo que sofreu genocídio, espoliado das suas riquezas, acuado nas suas terras, acusado numa série de processos, ficou por um longo tempo totalmente desprotegido pelo poder público, à exceção de uns poucos abnegados funcionários da Funai, no local. A transposição do rio São Francisco será, se executada, inscrita no rol das maiores injustiças ambientais cometidas contra o povo do semi-árido nordestino. Nesses últimos 20 anos, foram crescendo e se consolidando centenas de experiências, alcançando milhares de sertanejos e pequenos
11 Carta de Santarém, 31 de março de 2004. 12 Carta do Bispo do Xingu às autoridades, denunciando a situação da região. Altamira, 1º de julho de 2004.
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produtores rurais que buscam assegurar a sobrevivência das famílias no seu ambiente, numa perspectiva de convivência com este, tirando o foco da água como questão única na produção a partir de uma abordagem agroecológica. Resistir a períodos de seca se tornou para muitos uma realidade. Tal movimento encontrou um grande reforço na campanha iniciada por ONGs, ampliada pela Articulação do Semi-Árido - ASA, e assumida agora pelo governo com a construção de um milhão de cisternas. Com a transposição, obra digna dos faraós e dos imperadores chineses, enormes recursos serão subtraídos da população pobre do sertão para beneficiar, além de poucos centros urbanos, indústrias e o “hidronegócio”, nas palavras de Roberto Malvezzi13 . Vale chamar a atenção para o que está acontecendo na região de Petrolina, pólo de produção de frutas com irrigação intensiva. Observadores locais notam um aumento considerável de câncer, atribuído ao uso descontrolado de pesticidas. Depois de mencionar vários empreendimentos, cabe aqui fazer uma distinção entre empreendimentos privados, em que a responsabilidade do Estado está em melhorar e fazer aplicar a legislação, e empreendimentos públicos, em que a sua responsabilidade está diretamente engajada. O Estado é, frequentemente, o primeiro violador dos DhESCs no Brasil. Além dos casos mencionados, vale lembrar os quilombolas de Alcântara (MA), deslocados das suas terras pela base aeroespacial, sem que fossem levadas em conta as características socioculturais, produtivas e extrativistas dessas comunidades14 . Mesmo atividades agrícolas consideradas por certos setores e pela opinião pública como virtuosas do ponto de vista ambiental podem levar a maior injustiça socioambiental. É o caso da entrada do Brasil na produção de energia de biomassa. O aumento do consumo de álcool combustível no Brasil e as perspectivas de exportação fazem com
que, possivelmente, tenhamos que assistir a um novo ciclo de expansão da cana-de-açúcar baseado sobre a grande propriedade; em detrimento, mais uma vez, da reforma agrária. Em particular, os usineiros falidos da Zona da Mata nordestina, de quem o Estado deveria faz tempo ter recuperado as suas terras pelas dívidas públicas acumuladas, se vêem agora proclamados, ao lado dos plantadores de eucaliptos e de pinus, como salvadores do clima. Confunde-se energia renovável, a que pode ser produzida por longos tempos a partir da biomassa, com energia sustentável. De fato, não se leva em conta o uso de agrotóxicos, o desgaste dos solos, o uso das águas, etc. , nem o fato de que se fornecem empregos sem qualificação e perniciosos à saúde humana e que se concentra mais uma vez a propriedade da terra. Os trabalhadores rurais da Zona da Cana, que batalham por uma reforma agrária na região, diversificando a agricultura e produzindo a água (de qualidade) que começa a fazer cruelmente falta, estão de novo - ou sempre - sendo apontados como os bandidos. Na mesma linha, a produção de biomassa para o biodiesel tem que ser vista com cuidado. Embora o governo trabalhe para que seja baseada sobre a produção familiar e que não se torne monocultura na propriedade familiar, há sinais preocupantes, tais como a denúncia vinda de Cáceres (MT). A Central de Compra de Mamona – CCM - distribuiria gratuitamente um agrotóxico altamente tóxico chamado Endosulfan aos produtores de mamona. Esse organoclorado é de uso restrito. A questão dos agrotóxicos mereceria um tratamento à parte, dada a sua importância. O professor e médico Ângelo Trapé15 , da Unicamp, estima que há 1,5 milhão de trabalhadores intoxicados no país. Além de afetar a vida e a saúde, o efeito do uso prolongado dos agrotóxicos sobre os solos e as águas ainda é pouco analisado. Há muitas queixas, mas as pessoas e as comunidades justamen-
13 Malvezzi, Roberto. Geografia da sede e hidronegócio. CPT nacional. Outubro de 2004. 14 Ver Saule Jr, Nelson (relator nacional para o direito humano à habitação) e Osório, Letícia Marques (assessora nacional). Direito Humano à Moradia Adequada e à Terra Urbana. In: Relatório Brasileiro sobre Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais, 2003. Plataforma brasileira DhESCs. Recife, Gajop, 2003. 15 As vítimas do agrotóxico. O Globo, em 29 de agosto de 2004.
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te denunciam a dificuldade e, mais frequentemente, a impossibilidade de assegurar a realização de exames de saúde e de análises químicas e biológicas da poluição que as afeta. Ocorrem ondas de suicídio nas áreas de produção do fumo e mortandades de peixes em áreas de produção da soja, de plantação de eucaliptos, de poluição orgânica e química de rios por cidades e indústrias que afetam ribeirinhos e pescadores. A Defensoria das Águas menciona os casos de uma Pela pressão unidade industrial da exercida para Votorantim, em Três descaracterizar e Marias (MG); da Fundição desqualificar o Tupi e da Indústria Schultz, licenciamento na região de Joinville, que ambiental, pode-se liberam fenol, e os casos de ter dúvidas se Cataguases e da empreendimentos Petrobrás.16 A legislação industriais garantirão ainda é às vezes insuficieno direito ao meio temente restritiva e, sobreambiente dos seus tudo, não há o necessário trabalhadores e da monitoramento e punipopulação do seu ções. Falta entrosamento entorno entre a Federação e os Estados. Há vários casos emblemáticos: o passivo ambiental deixado, na baía de Sepetiba, no Rio17 , pela empresa falida Ingá; na Baixada Santista, pela Rhodia; em Paulínea, pela Shell, A respeito deste último, a relatora nacional para o direito humano à saúde, Eleonora Menicucci de Oliveira, denuncia a “ausência total de políticas públicas preventivas de degradação ambiental e para remediação de áreas e populações já contaminadas (...) Ausência de políticas públicas articuladas entre saúde e meio ambiente para resíduos, com destaque para resíduos hospitalares. Ausência de política nacional em saúde dos/das trabalhadores/as que especifique as atribuições do SUS nesta área, nas três esferas do governo, incorporando as relações de gênero, raça/etnia.”18 .
Pela pressão exercida para descaracterizar e desqualificar o licenciamento ambiental, podese ter dúvidas se empreendimentos industriais garantirão o direito ao meio ambiente dos seus trabalhadores e da população do seu entorno. Tal questão já se coloca em relação, por exemplo, à empresa Laminadora e Galvanizadora Veja do Sul, em São Francisco do Sul (SC), e em relação aos empreendimentos siderúrgicos e de gás-químico de Corumbá e Ladário (MS). A posição brasileira sobre o banimento do a m i a n t e 1 9 - criou-se uma comissão interministerial em lugar de banir o produto (o asbesto já foi definitivamente banido de 42 países) - é muito grave, pois afeta trabalhadores que “vendem a sua saúde” e também inúmeras pessoas e famílias que têm contato com o amiante ou com produtos em que o mesmo está presente. No futuro, milhares de pessoas poderão encaminhar ações de ressarcimento contra o Estado, como no caso, por exemplo, da Cidade dos Meninos (RJ), e ainda na questão do combate à dengue, efetuado com produtos altamente tóxicos. Enfim, convém lembrar que milhões de moradores urbanos e suburbanos enfrentam condições de vida social e ambientalmente profundamente injustas. Moradias em áreas de risco de todo tipo, ausência de saneamento, favelas e bairros sem a mínima infra-estrutura, poluição sonora, ilhas de calor, transporte inadequado, etc. compõem um quadro perverso, resultado de um processo histórico acelerado nos 30 últimos anos. A União se omitiu e ainda se omite pois compete a ela “instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos. As diretrizes vão nortear as políticas urbanas a serem implementadas pela União, Estados e municípios.” 20
16 Defensoria das Águas. O estado real das águas do Brasil 2003/2004. 2/09/2004. 17 Ver Mapa dos conflitos ambientais no Estado do Rio. Projeto IPPUR/Fase/Seema RJ. CD-Rom, Fase, 2004. 18 Oliveira, Eleonora Menicucci de (relatora nacional) e Xavier, Lúcia Maria (assessora nacional). Direito Humano à Saúde. In: Relatório Brasileiro sobre Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais 2003. Plataforma brasileira DhESCs. Recife, Gajop, 2003. 19 Ver Rede Virtual-cidadã pelo banimento do amiante na América Latina e Carta ao Presidente da República e ao Ministro-Chefe da Casa Civil. Sindicato Químicos Unificados (Campinas - Osasco - Vinhedo). 14 de setembro de 2004. 20 Saule Jr, Nelson e Osório, Letícia Marques. Op.cit.
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Poucos sinais positivos Ao longo da leitura, o leitor poderia ter indagado por que não se salienta tal ou tal coisa positiva, para fazer justiça ao programa da coalizão. Pareceu-me que o quadro não deveria ser amenizado com cores suaves que poderiam nos iludir. Existem, de fato, múltiplos projetos e programas, alguns até em fase de execução, que não reduzem em nada a injustiça ambiental reinante, mas podem ajudar a combatê-la O Ministério do no futuro. Desenvolvimento Na área da moradia, a Agrário, com o criação do Ministério da incentivo à Cidade e a orientação dada à sua ação represen- orientação para uma reforma agrária e ta um presságio excelente. uma agricultura A criação do Conselho Nacional de Habitação, familiar sustentáveis, do Sistema Nacional de segue na boa direção Habitação de Interesse do ponto de vista do direito humano ao Social e do Fundo Naciomeio ambiente nal de Habitação de Interesse Social representam iniciativas promissoras, a depender, porém, da efetiva mobilização e liberação dos recursos públicos. O Ministério do Desenvolvimento Agrário, com o incentivo à orientação para uma reforma agrária e uma agricultura familiar sustentáveis, segue na boa direção do ponto de vista do direito humano ao meio ambiente. As compras públicas da produção familiar, o seguro desemprego, a vontade de fortalecer a assistência técnica são exemplos positivos, apesar de que também aqui faltam verbas. O Ministério do Meio Ambiente elaborou excelentes planos, em particular para a Amazônia. Se a criação de reservas extrativistas está parada, a transformação do Centro Nacional das Populações Tradicionais - CNPT - em diretoria do Ibama talvez dê um novo alento aos agroextrativistas. Temos o Plano Amazônia Sustentável, o de combate ao fogo no arco do desmatamento e o plano de desenvolvimento sustentável da BR 163. Seria ampliado o Pró-ambiente, programa de crédito e apoio aos pequenos produtores e agroextrativistas, que leva em conta os serviços ambientais que pres12
tam. O Programa Nacional de Florestas nasce com a preocupação explícita de assegurar um lugar para as comunidades extrativistas da floresta. No entanto, à exceção do último, novo demais para que seja questionado, embora já tenha sido violentamente atacado, inclusive com má fé, o discurso parece mais bonito do que a realidade. Somente o sucesso da estratégia da transversalidade, defendida e colocada inicialmente em aplicação pela ministra do Meio Ambiente, poderia modificar o quadro atual, à condição que envolve o núcleo duro do governo, os estados e a sociedade. São duas condições relevantes. Tentou-se mostrar aqui o papel da política de estabilidade e crescimento. Quanto à sociedade, é inquietante ver que a maioria das organizações da sociedade avalia que a multiplicação de conselhos não resulta em influência real sobre as políticas em apreço. Não é por falta de boas idéias e experiência da parte das organizações. No Brasil de hoje, há milhares de iniciativas da sociedade que buscam de muitas maneiras a realização dos DhESCs. Convém fazer um melhor e mais completo levantamento das iniciativas governamentais existentes, para não ser injusto com os numerosos quadros e funcionários que, em muitos ministérios, tentam arrancar a camisa de força na qual foram colocados. Mesmo afirmando aqui que os resultados são poucos e muito setoriais, os mesmos não devem ser desprezados, pois são sementes, ao lado das lutas da sociedade, para a constituição de um Brasil social e ambientalmente mais justo. Enfim, foi consciente a decisão de não mencionar aqui o Legislativo federal nem o Judiciário. Talvez seja melhor, pois poderia acentuar um sentimento de melancolia do qual só se escapa com a forte convicção de que a história não terminou. Jean Pierre Leroy Coordenador executivo do Projeto Brasil Sustentável e Democrático/Fase, membro da Rede de Justiça Ambiental
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