Sociedade civil e novas institucionalidadesdemocráticas na América Latina:dilemas e perspectivas

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Sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na América Latina

Sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na América Latina: dilemas e perspectivas




Sociedade civil e novas institucionalidades democrĂĄticas na AmĂŠrica Latina: dilemas e perspectivas


Esta publicação contou com o apoio de:

Sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na América Latina: dilemas e perspectivas / organizadores Lizandra Serafim e José Antonio Moroni. São Paulo: Instituto Pólis e INESC, 2009. 288 p. Trabalhos apresentados em seminário organizado pelo Instituto Pólis, Inesc e Abong, com o apoio de Novib e Oxfam Internacional, e realizado em Brasília, DF, em novembro de 2008. 1. Direito constitucional - Aspectos sociais - América Latina. 2. Administração pública - Participação do cidadão - América Latina. 3. Sociedade civil - América Latina. 4. Participação social - América Latina. 5. Democracia. I. Serafim, Lizandra. II. Moroni, José Antonio. III. Instituto Pólis. CDU 342(8=6)

Realização  Instituto Pólis e Inesc Organizadores  Lizandra Serafim e José Antonio Moroni
 Colaboradores  Ana Claudia Chaves Teixeira, Cláudia Dias Nogueira, Pedro Pontual, Rosane Cristina Santiago, Vanessa Marx
 Tradutores  Alexandre Agabiti Ferrnandez e Olvenara Agabiti Fernandez
 Revisores  Beatriz de Freitas e Idalia Morejón Arnaiz
 Coordenação Editoral  Ana Claudia Chaves Teixeira, Cecilia Bissoli e Vanessa Marx
 Projeto gráfico e editoração  Cássia Buitoni e Silvia Amstalden Impressão  Semear Editora Gráfica


Sociedade civil e novas institucionalidades democrĂĄticas na AmĂŠrica Latina: dilemas e perspectivas



Sumário

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Apresentação José Antonio Moroni e Lizandra Serafim

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A nova Constituição do Equador, 2008: seu processo de definição e as mudanças institucionais Jorge León Trujillo

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Direitos, meio ambiente e nova Constituição na Bolívia E. Evelin Mamani Patana

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O sistema mexicano de transparência e acesso à informação pública governamental Ernesto Isunza-Vera

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Políticas de participação e novas institucionalidades democráticas no contexto brasileiro recente Ana Claudia C. Teixeira, José Antonio Moroni e Vanessa Marx

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A rica experiência dos orçamentos participativos no Peru Romeo Grompone

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Institucionalidade participativa na Colômbia: balanço e desafios Fabio Velásquez C. e Esperanza González R.

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As Novas Institucionalidades: formas de participação comunitária do governo venezuelano desde 1999 Margarita López Maya

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Rumo a um Mercosul Cidadão: os desafios de uma nova institucionalidade Ignacio Arboleya e María Julia Aguerre

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Sociedade civil, participação cidadã e democracia no novo contexto político da América Latina: um olhar para os desafios e estratégias de ação a partir da sociedade civil Susana Eróstegui

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Novas institucionalidades e experiências participativas



Apresentação José Antonio Moroni e Lizandra Serafim


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Há pouco mais de vinte anos, em 1988, era promulgada a oitava Constituição brasileira, fruto da mobilização popular pelo fim da ditadura militar. Conhecida como a “Constituição Cidadã” e reconhecida, por alguns segmentos, como a que contou com o maior apoio popular, a que criou mecanismos de participação e a que se mostrou voltada para a defesa dos direitos dos cidadãos e cidadãs. Para outros, uma Constituição que avançou nos direitos sociais e foi extremamente conservadora nas questões econômicas, da reforma agrária e da organização democrática do Estado. Ou, mesmo, um rearranjo das elites brasileiras para se perpetuar no poder. Os trabalhos dos constituintes resultaram em um texto que recebeu críticas pela extensão – são 250 artigos e 89 atos de disposições constitucionais transitórias –, uma das maiores do mundo. Nestes vinte anos, a Constituição foi modificada por mais de cinquenta emendas de reforma, que alteraram desde a forma de estruturação administrativa do Estado brasileiro até o sistema previdenciário. Além disso, alguns capítulos do texto de 1988 ainda esperam regulamentação. Pouco tempo depois da Constituição brasileira, em 1991, a Colômbia também aprovou sua nova Carta, que, do ponto de vista formal, ampliou o espectro dos direitos e abriu grandes possibilidades para a participação da sociedade civil na vida pública do país. Passados esses anos, tanto no Brasil como na Colômbia verificam-se avanços do ponto de vista da expansão da cidadania, mas ainda subsiste uma enorme distância entre a cidadania formal, aquela que consta das respectivas Cartas Magnas e a cidadania real, que, lamentavelmente, se traduz na violação cotidiana dos direitos de milhões de cidadãos/ãs. Recentemente, países como Venezuela, Bolívia e Equador estão passando por processo semelhante, de pactuação de um novo “contrato social” pautado por uma força política inédita que busca instaurar maior justiça econômica e social, tendo como base política os movimentos sociais. Temos ainda o Paraguai, que depois de décadas elegeu um presidente ligado aos anseios populares. Países como o Peru, com a Lei Nacional sobre Orçamento Participativo, e o México, com a lei de transparência e informação pública, avançaram na direção da democratização. Além disso, há experiências de integração regional como o Mercosul, que coloca desafios para uma integração cidadã, justa e inclusiva. Diante desse contexto, redes e organizações da sociedade civil brasileira e latino-americanas aproveitaram o aniversário da ConstiApresentação

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tuição brasileira para iniciar, em novembro de 2008, uma reflexão sobre os processos de construção de novas institucionalidades democráticas na América Latina, seus dilemas e perspectivas. Para tanto, realizou-se o Seminário Regional “Sociedade civil e as novas institucionalidades democráticas na América Latina: dilemas e perspectivas”, realizado em Brasília por Instituto Pólis, Inesc e Abong, com apoio de Novib e Oxfam Internacional. O seminário reuniu mais de sessenta representantes de organizações da sociedade civil e movimentos sociais de dez países latinoamericanos, com o objetivo de refletir sobre os avanços e os limites das novas institucionalidades na América Latina e possíveis estratégias de ação da sociedade civil, na perspectiva da radicalização da democracia e da garantia de direitos. Este evento marcou apenas o início de um processo mais amplo de reflexão coletiva que poderá resultar em um aprendizado salutar para aquelas organizações que buscam a consolidação da democracia nas suas três dimensões: representativa, participativa e direta. Com o sentido de dar continuidade e amplitude a este processo de reflexão, foi organizado o presente material, contendo nove textos sobre experiências de novas institucionalidades democráticas existentes na América Latina, produzidas para subsidiar o debate, e fichas com informações sobre catorze experiências de institucionalidades que contêm formas participativas e inclusivas de exercício do poder criadas no continente a partir do protagonismo da sociedade civil. Para a construção do banco de experiências, elaboramos um modelo de ficha baseado no banco de experiências do Observatório da Inovação Pública Local e convidamos organizações de todo o continente, inseridas no processo de elaboração e realização da discussão sobre as novas institucionalidades, a sistematizarem experiências de protagonismo da sociedade civil na construção destas em nível local. Recebemos quatro fichas preenchidas por organizações parceiras e acrescentamos dez fichas selecionadas do banco do Observatório (www.innovacionlocal.org). As experiências selecionadas referem-se a sete países diferentes, tratando de temas como juventude, meio ambiente e planejamento participativo, entre outros. Esperamos, a partir desta iniciativa, subsidiar a necessária reflexão para o avanço dessas experimentações democráticas permeadas por conflitos, avanços e retrocessos, de que todas e todos, como sociedade civil e governo, somos sujeitos ativos.

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Sistematização do Seminário1 Antes de passarmos aos textos analíticos sobre as novas institucionalidades na América Latina, apresentaremos uma síntese das questõeschave do seminário “Sociedade civil e as novas institucionalidades democráticas na América Latina”, que poderão ser enfrentadas pela sociedade civil latino-americana para o aprofundamento da democracia nos próximos anos. Com mais de vinte anos de existência de diversos mecanismos de democracia participativa e direta nos países latino-americanos, são diversas as questões que se colocam para a avaliação do alcance destas novas institucionalidades democráticas. A discussão realizada durante o seminário latino-americano tratou de quatro eixos de questões: • Até que ponto a democracia direta e participativa tem contribuí­do para criar novos valores, comportamentos e atitudes com relação à democracia? • Até que ponto tem tensionado a democracia representativa, a ponto de aperfeiçoá-la? • Até que ponto avançamos com relação aos mecanismos de transparência, acesso à informação pública, controle social do orçamento público e controle social das políticas econômicas? • Até que ponto a estratégia de agir nesta institucionalidade contribui com o nosso objetivo maior de construção de uma sociedade sem as desigualdades que geram exclusão social, política, econômica?

O(s) sentido(s) da participação A criação de espaços de participação e mecanismos de democracia direta nos últimos vinte anos é resultado da luta e da pressão sistemática de movimentos sociais, ONGs, partidos políticos, acadêmicos, cidadãos/ãs e agentes da administração pública orientados pelo objetivo maior de operar uma transformação profunda na sociedade, incorporando direitos aos diversos segmentos e sujeitos sociais, dando “vez e voz” aos setores tradicionalmente marginalizados social, cultural, econômica e politicamente.

1 As questões aqui apresentadas, longe de dar conta de toda a rica discussão realizada durante o seminário latino-americano, baseiam-se nas relatorias das mesas e dos debates. Agradecemos a Evanildo B. Silva, Julita Kissa, Lucídio Bicalho, Maria do Carmo Albuquerque, Nina Best e Pedro Pontual pelas contribuições a estas questões. Apresentação

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Esta transformação profunda se dá na dinâmica dos conflitos e construções coletivas entre os diversos atores, com suas visões de mundo e projetos políticos específicos, na cultura, nos espaços institucionais de participação e na prática concreta cotidiana dos atores. O discurso da participação – e seus resultados em termos de controle e transparência públicos, e construção de uma cultura política democrática – é amplo e se presta a diferentes interesses. Ocorre em um campo de disputa intelectual e política. A participação, como discurso e prática, está atravessada pelo discurso da governabilidade, por práticas conservadoras e autoritárias, pela focalização das políticas sociais em detrimento de sua universalização e pela desresponsabilização do Estado. Existe um amplo uso de espaços participativos e técnicas fundadas no discurso da participação para amenizar conflitos, sem a perspectiva da liberdade e do pensamento autônomo e da transformação do Estado. Esta disputa de significados se dá não apenas entre atores da sociedade civil e do Estado, mas está inserida nos conflitos e construções da própria sociedade civil, em sua diversidade. A criação de mecanismos e espaços de participação e democracia direta não é um fim em si mesma, é parte de uma transformação mais profunda que transcende a institucionalidade do Estado. Deve vir acompanhada do debate político amplo, da inclusão de sujeitos diversos, da ampliação e garantia de direitos, da autonomia da sociedade civil. Neste sentido, uma reflexão sobre as novas institucionalidades democráticas e os desafios para a sociedade civil latino-americana não pode deixar de analisar esta transformação do ponto de vista da construção de uma cultura política mais democrática, da redução das desigualdades, das relações entre estas novas institucionalidades e a democracia representativa e da criação de mecanismos de transparência e controle do orçamento público e políticas econômicas, para além das sociais.

Aperfeiçoamento da democracia representativa e da institucionalidade do Estado A articulação entre os mecanismos de democracia participativa e direta e a democracia representativa é um tema fundamental a ser aprofundado. Como afirmado acima, a democracia participativa e direta pretende transcender a institucionalidade do Estado, entretanto deve passar pela transformação dele, por um novo desenho da de14

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mocracia representativa, das normas e regras produzidas e das políticas públicas concretas. Como estes mecanismos podem tensionar e contribuir para estabelecer uma nova dinâmica para a tomada de decisões e a própria gestão de políticas e serviços públicos que transcenda espaços e temas específicos, e introduza a lógica da equidade para além da eficiência em todo o funcionamento do aparato estatal, incluindo arenas da democracia representativa? A debilidade das instituições nos países latino-americanos, gerada pela incapacidade do Estado de comportar as demandas existentes, tem sido um dos desafios urgentes a serem enfrentados. Fortalecer a institucionalidade do Estado, a democracia representativa, o Poder Judiciário e o ordenamento jurídico fazem parte destes desafios. A criação de espaços de participação e de Constituições “refundacionais” são formas de responder a este desafio, que apresentam avanços e limitações. Constituições que preveem a garantia de direitos e a equidade não significam necessariamente a efetivação destes princípios. Temos também, nos espaços participativos criados, os riscos da reprodução de relações clientelistas, do monopólio da representação por certas organizações, restringindo a participação de amplos segmentos, especialmente quando a criação destes mecanismos se dá acompanhada do enfraquecimento da representação política exercida pelos partidos e do sistema político como um todo.

Papel da sociedade civil, partidos e Estado Neste contexto de debilidade das instituições e dificuldade em romper com a “velha política” na ação do Estado e na relação deste com a sociedade, é predominante a sensação de descrença generalizada nas instituições e na representação. Há um crescente abstencionismo político, especialmente entre os jovens, observado em diversos países latino-americanos. Diante disso, qual é o papel da sociedade civil? Criar novos partidos na tentativa de redefinir o exercício da representação política, como nos casos recentes da Bolívia e do Paraguai? As ONGs devem ser porta-vozes dos anseios populares e dos movimentos sociais não absorvidos pelos partidos políticos? Qual a importância e como devem ser os partidos políticos neste novo contexto? Como resgatar os princípios da participação e do protagonismo da sociedade como chave para a construção democrática? Nas discussões realizadas durante o seminário latino-americano, reforçou-se a importância dos partidos políticos no exercício da reApresentação

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presentação política. Foi reforçado também o papel das organizações da sociedade civil do campo democrático no tensionamento do Estado, dos partidos, e da própria sociedade. Seus papéis seriam: pressionar o Estado para que cumpra seu papel fundamental de garantir direitos através de políticas públicas que reconheçam as demandas e as particularidades dos diversos segmentos da sociedade; constituir arenas de explicitação de conflitos e disputas em torno de projetos políticos que orientam visões de mundo; defender a participação que garanta direitos e inclua econômica e politicamente diversos segmentos; ser fonte de renovação e aprimoramento do exercício de representação, inclusive aquela exercida pelos partidos políticos, propondo formas de controle, prestação de contas e diálogo que garantam a representatividade. Reafirmou-se, portanto, a luta de organizações da sociedade civil do campo democrático pela criação de mecanismos de democracia participativa e direta, e especialmente pelo aperfeiçoamento daqueles já existentes e de sua conexão com a democracia representativa. As democracias participativa e direta vão além de regras e procedimentos formais, estão profundamente ligadas à mobilização e à autonomia da sociedade civil, e não podem ser desconectadas disso. Sem mobilização e participação autônoma, as institucionalidades por si sós não atingem seus objetivos, não se sustentam e podem acabar caindo em mera formalidade. Devemos estar atentos também ao funcionamento do Estado, ao controle social das políticas públicas, e exigir mecanismos de transparência e controle, não apenas das políticas sociais como também das econômicas e estratégicas, pensando na redistribuição da riqueza e na garantia de direitos. Outra questão apontada como central entre os participantes dos diversos países é a representação exercida pela própria sociedade civil nos espaços participativos. Como garantir a representatividade destes representantes e seu controle? É crescente a preocupação com a qualidade destas novas formas de representação e seus desdobramentos para a efetiva garantia de direitos e construção de uma cultura política democrática.

Inclusão, reconhecimento e garantia de direitos A questão dos direitos e da inclusão de minorias ou mesmo maiorias étnico-raciais tradicionalmente excluídas social, econômica e politicamente é central, especialmente nos países andinos. Como buscar o 16

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respeito à diversidade e a garantia de direitos no âmbito do ordenamento jurídico? A Constituição boliviana é um exemplo de iniciativa que visa ao reconhecimento dos diversos segmentos da sociedade, mas que enfrenta o risco de contribuir para a fragmentação dos diversos atores e segmentos da sociedade. É necessário vencer a fragmentação de lutas e políticas públicas, no âmbito da sociedade, nos espaços participativos e no Estado. Longe de imaginar que exista uma solução unívoca para os conflitos e demandas existentes ou negar a multiplicidade e diversidade dos sujeitos da transformação, a justiça social e a equidade só podem ser perseguidas com articulação e diálogo amplos desta diversidade de atores e visões de mundo.

Questões novas e urgentes Foi levantada a urgência de incorporação, na discussão da participação e transformação do Estado pelo campo democrático, de questões ainda pouco exploradas, sem as quais não se dará o avanço necessário à democracia em construção. Trata-se da incorporação dos conflitos rurais, de questões de gênero e raça / etnia, da diversidade de orientação sexual e da juventude tanto nas lutas dos movimentos sociais quanto nos direitos e nas políticas públicas. Há ainda outros desafios, como ampliar a ação da sociedade no controle do Legislativo e de políticas estratégicas, destacando-se aqui os conflitos entre concepções de desenvolvimento dominantes e questões ambientais. Destaca-se ainda a necessidade de acesso e controle da informação, a discussão do papel dos meios de comunicação como atores políticos na disputa pela hegemonia. Por fim, destaca-se o desafio de lidar com o crescimento de mediadores e representantes políticos que não atuam na lógica dos direitos e da democracia e até mesmo se utilizam de violência para legitimar sua representação, como grupos religiosos conservadores, grupos paramilitares e outros relacionados a atividades ilícitas, tais como tráfico de armas e drogas.

Apresentação

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Apresentação dos artigos2 Na seção anterior, apresentamos as questões que permearam o debate realizado durante o seminário, que estão longe de ser esgotadas. A seguir, apresentamos os textos encomendados para subsidiar o debate, que fazem um esforço de aprofundar estas questões nos contextos nacionais específicos. Os temas foram escolhidos de acordo com a experiência do país, os avanços e questões que se colocam e podem dialogar com a realidade latino-americana mais geral. Os textos sobre Equador e Bolívia retratam processos recentes de transformação política e disputas pela construção de institucionalidades democráticas participativas que garantam a inclusão de uma diversidade de setores. Ao chegarem ao poder, os governos de Evo Morales e Rafael Correa propuseram a “refundação democrática” de seus países ao convocarem Assembleias Constituintes para elaborar um novo “pacto social”. Ambos os países buscam, nas novas Constituições, criar uma nova sociedade baseada na participação ativa dos cidadãos e na qual o Estado é revalorizado na missão de promover o desenvolvimento econômico e social. Jorge León Trujillo analisa o texto da nova Constituição equatoriana aprovada por referendo em 2008. A Constituição prossegue na longa tradição reformista do Equador, que foi o primeiro país do continente a incorporar diversas inovações sociais em seus textos constitucionais, a exemplo do voto feminino, do divórcio, de direitos trabalhistas, da proibição de discriminação por orientação sexual, entre outras. Contudo, os textos constitucionais aprovados no país não conseguiram lograr o objetivo de construir um marco institucional estável. Trujillo salienta que, mesmo propondo “refundar” o país e o Estado e acabar de uma vez por todas com os vícios do sistema político equatoriano, a recém-aprovada Constituição é, em grande medida, uma estratégia política do novo governo para legitimar-se e ganhar espaço político e para solucionar questões conjunturais. Se, por um lado, a Constituição amplia os espaços de participação cidadã, por outro, ela poderá enfraquecer os partidos políticos ao pôr fim ao monopólio partidário da representação política. Transfere

2 Para esta seção, utilizamos trechos do texto “Novas Institucionalidades Democráticas na América Latina: refletindo sobre seus limites e possibilidades”, elaborado por Gustavo Gomes da Costa Santos. 18

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também diversas prerrogativas do Legislativo para o Executivo, que teve seu poder aumentado de forma significativa. Segundo o autor, a nova Constituição é resultado da grande expectativa da população equatoriana na participação cidadã, vista como o “remédio” para todos os males do sistema político. Todavia, o autor destaca o perigo latente de reprodução dos vícios da democracia representativo-partidária nos mecanismos de participação cidadã, dentre eles o autoritarismo e o clientelismo. Evelin Mamani Patana, ao analisar a Constituição boliviana aprovada em 2009, afirma que esta está permeada pelo espírito de promoção da participação e do controle social dos atos do Estado. Além de prever uma extensa gama de direitos e garantias individuais e coletivas à população, a nova Constituição inova ao definir o Estado boliviano como “plurinacional”, reconhecendo formalmente a Justiça comunitária indígena e os usos e costumes locais dos povos originários. Estabelece também diversos mecanismos de participação social (direito de petição, acesso à informação, revocatória de mandatos eletivos, controle social do Judiciário, participação na formulação de políticas estatais, principalmente no gasto público, entre outros) e o controle da população sobre o uso dos recursos naturais, com ênfase nos hidrocarbonetos e na água. Prevê uma nova organização territorial, onde coexistirão diversos níveis de autonomia: departamental, regional, municipal e indígena. Este foi um dos pontos mais conflituosos nos debates na Assembleia Constituinte, dada a reivindicação de autonomia e de controle de recursos orçamentários por parte dos governos departamentais da região da Meia-Lua boliviana3. A autora afirma que muitas das propostas da sociedade civil foram incorporadas à nova Constituição, em especial a ideia de um desenvolvimento humanizado, que leva em conta as necessidades, identidades e aspirações da população local. Ao fim do tortuoso processo em torno da retificação da Carta constitucional, a Bolívia criou um Estado plurinacional que valoriza a participação das culturas originárias e que promete pôr fim às recorrentes injustiças e violações dos direitos humanos no país. Fica a expectativa de que as propostas da Constituição sejam realmente implementadas, modificando a situação de extrema miséria e opressão da grande maioria da população boliviana. 3 Região formada pelos departamentos de Santa Cruz de la Sierra, Tarija, Beni e Pando, localizados nas terras baixas bolivianas. Apresentação

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Ernesto Isunza Vera analisa a organização do sistema de transparência e acesso à informação pública na administração federal no México após a aprovação da Lei de Transparência e Acesso à Informação (LAI) em 2002. A alternância no poder, que pôs fim a hegemonia de 71 anos do PRI (Partido Revolucionário Institucional) no governo federal, possibilitou a criação do Instituto Federal de Acesso à Informação Pública (IFAI), órgão da administração federal mexicana responsável pela organização e divulgação de todas as informações dos principais órgãos federais. O autor afirma que, apesar das dificuldades ainda existentes, o governo federal mexicano conseguiu implementar um sistema razoavelmente bem organizado de informações públicas. No entanto, segundo Isunza, há ainda diversos problemas no sistema de acesso à informação pública, a exemplo da precariedade das estruturas de acesso à informação em nível estadual. Contudo, para o autor, é inegável reconhecer o grande avanço deste sistema em apenas seis anos de implantação e o grande número de acessos via internet, possibilitando maior transparência pública e assim um maior controle social das ações governamentais. Ana Claudia Chaves Teixeira, José Antonio Moroni e Vanessa Marx apresentam um breve histórico de como as políticas de participação têm se desenvolvido no contexto brasileiro desde a Constituição de 1988, com destaque para os conselhos nacionais de políticas públicas e as conferências. Além de destacar a trajetória dos canais implementados para a participação da cidadania, o texto faz um balanço crítico sobre eles, apontando, entre outros temas, o desafio da relação entre a democracia participativa e a democracia representativa. As trajetórias das políticas de participação no contexto brasileiro nos indicam alguns desafios da institucionalização da participação e da sua assimilação pela sociedade brasileira. As tensões e resistências das elites no poder com relação aos canais e instrumentos de participação cidadão nos levam a pensar na necessidade de aprofundamento desses canais e de criação de novas institucionalidades, a fim de que as aspirações previstas em leis sejam realmente concretizadas e a prática da participação cidadã seja incorporada por aqueles que lutam por incidir nas políticas públicas, por aqueles que são chamados a representar o povo nas instituições de Estado e pelo conjunto da sociedade. No caso do Peru, analisado por Romeo Grompone, a participação cidadã se institucionaliza em um contexto no qual havia a afirmação do governo autoritário do presidente Alberto Fujimori (1990-2000), 20

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que buscava terceirizar serviços públicos e envolver os cidadãos em algumas políticas sociais, principalmente no nível local e de forma dispersa e individualizada. Segundo Grompone, a participação cidadã no Peru é, em grande medida, retórica. Apesar de haver a previsão de diversos mecanismos de participação cidadã na Constituição, os requisitos exigidos acabam por inviabilizá-los. Grompone afirma que, com a Lei Orgânica dos Governos Regionais aprovada em 2002, surgiu de fato a ideia de envolver a população na gestão estatal por meio da implantação dos orçamentos participativos. Para o autor, embora tenha sido uma importante iniciativa para promover a participação cidadã, as regras excessivamente detalhadas e muitas vezes contraditórias acabam por “dificultar” a participação. Além disso, Grompone observa diversos entraves às experiências de orçamento participativo, como o alcance das decisões tomadas, a excessiva intromissão de técnicos do Estado, a ausência de importantes atores sociais nos processos de discussão, a falta de articulação dos objetivos estratégicos da localidade, entre outros. Mesmo neste contexto, algumas experiências de participação cidadã foram exitosas e têm em comum o fato de conseguirem se “desamarrar” do emaranhado de leis, regulamentos e ordenações, adaptando-os ao estritamente necessário à realidade local. Segundo o autor, para que sejam minimamente exitosas, as experiências participativas devem adaptar-se às realidades e necessidades locais, tornando assim a vida social mais democrática e os governos locais mais legítimos. De acordo com Fabio Velásquez e Esperanza González, ao analisarem o caso colombiano, a Constituição de 1991 estabelece legalmente diversos mecanismos e espaços de encontro e influência da sociedade civil na gestão estatal. A Constituição é um marco na participação cidadã e foi em grande medida a resposta das elites políticas à crise do sistema político e ao aprofundamento do conflito armado na década de 1980. Na visão dos autores, embora reivindicada por vários movimentos sociais, a participação cidadã foi em grande medida uma concessão do Estado, com vistas a recuperar a legitimidade do sistema político e a confiança cidadã. Os diversos mecanismos e os espaços de participação cidadã existentes na Colômbia concentram-se nas atividades de fiscalização das ações governamentais e, em menor medida, na elaboração e na gestão das políticas públicas. Um balanço prévio apresentado pelos autores mostra que alguns setores governamentais ainda olham com Apresentação

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desconfiança para os espaços de participação política. Por outro lado, atores da sociedade civil (ONGs, Igreja, cooperação internacional) têm estimulado os processos de planejamento participativo e o controle social da gestão pública, contribuindo para a transformação desta visão. No caso específico da Colômbia, os anos de conflito armado dificultam a que os atores sociais se reconheçam uns aos outros como adversários e não inimigos. Nesta situação, o conflito político desemboca muitas vezes em um jogo de “soma zero”, no qual a construção de consensos é muito dificultada. O texto de Margarita López Maya apresenta importantes experiências locais de participação cidadã na Venezuela: as Mesas Técnicas de Água (MTA), as Organizações Comunitárias Autogestionárias (OCA) e os Conselhos Comunais (CC). Destas experiências locais de democracia participativa, a autora observa diversos avanços, mas também problemas. Dentre os avanços, pode-se salientar: a) a sensível melhora dos serviços públicos; b) o empoderamento dos cidadãos, que passaram a ter uma visão mais clara e estruturada da ação governamental; c) a criação de um sentimento de identidade e pertencimento aos membros das comunidades; d) a participação massiva da população na coordenação e supervisão de obras de melhoria da comunidade, entre outros. Já no que se refere aos entraves à participação cidadã, López Maya afirma que a dupla jornada da maioria da população, a instabilidade das políticas chavistas, os obstáculos burocráticos dificultam a efetivação dos espaços de participação. O excesso de tarefas, que implicam grande disponibilidade de tempo para aqueles que participam destes espaços, aliado à falta de definição clara de suas atribuições e à reprodução de redes clientelistas, tendem a piorar a qualidade democrática do modelo político venezuelano. Ignacio Arboleya e María Julia Aguerre analisam a construção da institucionalidade do Mercosul ao longo do tempo e a discussão com a sociedade civil em torno de um modelo de integração social e solidário que transcenda a visão “minimalista”, pautada apenas pelas relações comerciais. Ressaltam o papel da articulação de organizações, grupos e redes locais, nacionais e regionais no debate, organizando discussões em torno de temáticas como agricultura familiar, cooperativas e políticas para mulheres que se incorporaram à institucionalidade do Mercosul, gerando reuniões especiais temáticas. Os autores relatam outros mecanismos de participação da sociedade no Mercosul, tais como o Instituto Social do Mercosul, o 22

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Mercociudades, o Parlamento do Mercosul, o Somos Mercosul, as Cúpulas Sociais do Mercosul e o Programa Mercosul Social e Participativo. Apontam desafios para a consolidação de uma institucionalidade e uma dinâmica do Mercosul que incorpore novas agendas e construa um novo conceito de cidadania que oriente sua institucionalidade e dinâmica, fortalecendo o comprometimento dos representantes com as decisões tomadas em diálogo com a sociedade, a transparência das informações, a ampliação dos atores da sociedade representados nos espaços participativos existentes, a construção de agendas comuns regionais, a construção de uma institucionalidade inclusiva para o Mercosul e a participação do cidadão ao processo de integração. Susana Eróstegui fecha esta seção de textos inserindo questões para a agenda da sociedade civil latino-americana diante das institucionalidades democráticas em processo de criação e reinvenção. Explora temas centrais como o sentido da democracia que estamos construindo, o papel da participação cidadã para esta construção, o fortalecimento da sociedade civil e uma nova relação desta com o Estado, pautada no controle social das políticas públicas e no compartilhamento de poder entre Estado e sociedade, vencendo a cooptação e o clientelismo, bem como a tradicional contraposição entre estas duas esferas na luta contra a exclusão e as desigualdades.

Apresentação

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A nova Constituição do Equador, 2008: seu processo de definição e as mudanças institucionais Jorge León Trujillo


Jorge León Trujillo, pesquisador do CEDIME (Centro de Estudios sobre Desarrollo y Movimientos Sociales del Equador). Professor de Ciência Política.


Uma Assembleia Constituinte elaborou a nova Constituição equatoriana, que foi ratificada em um referendum – realizado em outubro de 2008 – por 64% dos eleitores4. A nova Constituição define normas para mudanças institucionais de natureza diversa, que por enquanto só podem ser analisadas em sua definição normativa, mas não em relação à prática. No presente texto, trataremos do seu processo de construção e do seu conteúdo com relação a vários aspectos de renovação institucional. Depois de uma rápida apresentação de antecedentes para chegar a uma proposta de reelaboração da Constituição, apresentaremos alguns conteúdos relevantes da nova Carta e suas implicações; em um terceiro momento, apontaremos conclusões relativas às mudanças institucionais no jogo político que a nova Constituição oferece e as possibilidades de ação para a sociedade civil.

Antecedentes Equador: um país reformista O Equador tem um longo passado reformista, notório na incorporação consecutiva, desde inícios do século XX, das inovações sociais ou reformas de todo tipo no âmbito político ou social. Foi o primeiro país do continente a conceder o direito de voto à mulher, por exemplo, ou a adotar o divórcio, ou ainda a importar o código do trabalho da “revolução mexicana” quando em sua sociedade os assalariados eram franca minoria. Não é de surpreender que com a Constituição de 1998, há dez anos, o Equador tenha se convertido em uma referência sobre o reconhecimento de direitos coletivos e da pessoa, por exemplo. Em 2008, o Equador voltou a apresentar esta e outras diferenças que indicam tal característica reformista. Esta já é sua vigésima Constituição, uma média de uma a cada dez anos. A cada mudança significativa de governo se quis definir a mudança com uma nova Constituição, a qual, em princípio, deve incorporar inovações próprias à mentalidade do momento.

A busca do definitivo em um país de instabilidade Apesar de seu caráter reformista, o Equador é um dos países mais instáveis do continente em seus parâmetros políticos. Em cada pro4 Deste total, 28% dos eleitores se pronunciaram pelo não, 7% votaram nulo e 0,73% votaram em branco. A nova Constituição do Equador, 2008: seu processo de definição e as mudanças institucionais

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cesso de elaboração da nova Constituição, um dos argumentos explícitos de seus atores foi o de dotar o país de instituições e normas duradouras. A disputa mais importante foi sobre as regras do jogo político, especialmente aquelas relativas aos processos de seleção dos representantes, por exemplo, sobre a concorrência eleitoral, e aquelas sobre os componentes da divisão de poderes do Estado, sobretudo sobre as competências do Executivo e do Legislativo. Em um Estado no qual o poder é regionalizado e atua por meio de complexos equilíbrios regionalizados, estes aspectos adquirem uma relevância singular, já que por meio deles se realizam os processos de divisão de poder ou de disputa de decisões que põem em jogo os interesses das duas principais regiões. Entre as duas principais regiões (Sierra-Costa, mas, principalmente, Quito-Guayaquil) são distribuídas as decisões, os recursos e os postos de decisão. As diversas contradições sociais, neste marco, tendem a instalar disputas prolongadas que podem levar a impasses ou a complexas soluções que, em geral, requerem mudanças nas relações de força políticas. É frequente, então, que para resolvê-las sejam consideradas como pré-requisito a superação dos impasses com reformas no marco normativo que define o espaço ou as possibilidades de ação dos atores implicados em tais processos5.

A nova Constituição e sua conjuntura Como no passado, os principais autores da nova Constituição (2008) pretendem ter alcançado uma saída “definitiva” de seus impasses e uma renovação institucional, que seria a da “refundação” do país e do Estado6. Seus oponentes, apesar de reconhecerem certas inovações sociais, consideram-na feita para responder aos projetos políticos de Rafael Correa, presidente desde janeiro de 20077.

5 Jorge León Trujillo, “Un sistema político regionalizado y sus crisis”, em Víctor Bretón e Francisco García (eds.), Estado, etnicidad e movimientos sociales en América Latina. Ecuador en crisis. Barcelona: Icaria Editorial, pp. 25-55; Simón Pachano, 2004, “El tejido de Penélope: Reforma política en Ecuador”, a ser publicado em Reforma política en América Latina, Rio de Janeiro, Fundación Konrad Adenauer. 6 Vários autores, La nueva Constitución. Quito: La Tendencia, ILDIS, 2008; K. Lucas (org.), Entre el quiebre y la realidad. Quito: Abya Yala, 2008. 7 Pablo Lucio Paredes, En busca de la constitución perdida. Quito: Trama. 2008. 28

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Processo de construção da nova Constituição A crise política e a ideia da refundação do país A nova Constituição faz parte da saída da longa crise política equatoriana dos últimos anos, na qual foram destituídos três presidentes por meio da pressão popular. Em dez anos, seis presidentes se sucederam no poder, sem adotar decisões que modificassem os impasses e aglutinassem as forças de um país mais fracionado do que de costume8. Um equilíbrio de forças entre os promotores das reformas favoráveis a uma visão de mercado (neoliberais) e seus oponentes, especialmente em diversas organizações contestatárias, impediu decisões radicais e duradouras em um ou outro sentido, não apenas na economia, mas, em geral, naquilo que é próprio a qualquer exercício de governo. A paralisia frequente de decisões e de políticas alternou-se, então, com tentativas de impor mudanças legais ou de políticas que uniram os contestatários em seu afã de mudar a ordem. Em meados dos anos 1990, estas organizações populares clamavam por uma nova Constituição, exigiam maior inclusão e equidade social, controle dos abusos e dos abusadores do poder, assim como maior participação política. Uma Assembleia foi constituída por voto popular para elaborar uma nova Constituição, em 1998. Foi aprovada uma nova Constituição, considerada à época como a que dava maior reconhecimento aos direitos da pessoa e dos coletivos. Ela foi vista como resultado do trabalho concertado ou não dos setores contestatários, em particular dos indígenas e das mulheres. Os setores contrapostos consideraram, ao contrário, que essa Constituição era um êxito porque, ao conceder maior poder ao Executivo, em detrimento do Legislativo, se conseguiria ter “governabilidade” em um país com déficit de possibilidades de ter um “bom governo”. A independência dada ao Banco Central em relação ao governo era vista como garantia de uma política financeira e econômica de longa duração e não submetida às conjunturas governamentais. Finalmente, sem que fosse promovida a desregulação da propriedade pública, foi eliminada sua proteção, ao ter sido suprimida uma norma segundo a qual era proibido privatizar os “setores estratégicos”, entre os quais estavam os recursos naturais e as empresas de serviços públicos. As8 María Fernanda Cañete (comp.), La crisis ecuatoriana: sus bloqueos económicos, políticos y sociales. Quito: CEDIME – IFEA, 2000. A nova Constituição do Equador, 2008: seu processo de definição e as mudanças institucionais

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sim, a Constituição de 1998 foi resultado do acordo entre as duas principais tendências da vida política, a desreguladora e a reguladora, especialmente os contestatários que reclamavam maior equidade e inclusão social. Mais direitos para estes, maior capacidade de “governabilidade” para os outros, uma divisão de vantagens para cada um.

Os abusos oligárquicos e a ideia de acabar com os maus Depois de 1998, o Equador conheceu uma prolongada crise política e principalmente financeira e econômica. Uma das características deste período foi o processo de oligarquização, fenômeno visível com a colusão de interesses entre o setor empresarial e os políticos, sendo estes reféns dos primeiros; fenômeno generalizado em todo o mundo. Este fato foi notório na desregulação feita no setor financeiro e a conseguinte crise bancária que levou o Estado a assumir as bancarrotas, tal como agora acontece no mundo e que, no Equador, ademais do fato de o Estado ter assumido as perdas dos poupadores, traduziu-se em dolarização. Posteriormente, predominou a busca reiterada por sancionar os banqueiros e regular seus abusos. Este momento foi um ciclo de deslegitimização da política e dos políticos, fenômeno que incentivou a ideia de mudar tudo e substituir os atores políticos. Haviam sido gestadas na sociedade diversas propostas e atitudes que buscavam estabelecer uma sanção ética ou moral contra esta colusão de interesses e seus abusos, paralelamente à tentativa de renovar a elite política. Acabar com os que abusam do poder e esta colusão era a ordem e com ela foi enraizada a ideia de condenar os partidos e de ver “todos” como cúmplices do abuso. No Equador cunhou-se o termo “partidocracia” para significar que esta política era própria dos partidos e que estes, por conseguinte, não deveriam existir. Esta visão favorece os substratos ideológicos da antipolítica, pois haveria uma ordem na qual os “maus” não poderiam existir, ou seja, “a política seria apenas para os bons”. Para os setores contestatários, a “partidocracia” representaria os partidos de direita ou afins ao setor oligárquico, os quais atuaram em função desta colusão de interesses e negociaram postos públicos para dispor de aliados que respeitassem suas ordens. Para os setores contestatários, a meta seria então limitar as possibilidades de atuação deste setor oligárquico e, em contrapartida, reforçar as possibilidades do setor contestatário de conquistar o poder político. Assim, lentamente, foi legitimada a ideia de criar um novo ordenamento consti30

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tucional que realizasse essas mudanças, em detrimento da luta social; ou, pelo contrário, esta se transformaria em voluntarismo legal. A nova norma definiria uma nova realidade. Neste processo de desvalorizar os partidos, foi construída também a ideia de que eram os cidadãos, em princípio distantes dos partidos e da “política”, os que poderiam pôr ordem diante do abuso de poder que encarnaria a “partidocracia”. A alternativa cidadã aparecia assim como uma despolitização de uma política de partidos, para promover uma política indefinida; era uma tábua de salvação da vida pública por simples contraste.

Tática e estratégia política: o milagre da nova Constituição Desde o início de sua carreira política, rápida, quase espontânea, Correa acolheu a proposta de uma nova Constituição para sancionar e pôr ordem na economia, na sociedade e no Estado, em detrimento dos atores políticos existentes (a mencionada “partidocracia”). Esta proposta tornou-se constitutiva de sua estratégia política. Era uma condenação aos partidos, o que reforçava sua imagem de independente. Em um contexto de deslegitimação e descontentamento políticos, esta posição obteve bastante sucesso. Posteriormente, serviu de justificativa para realizar um referendum de maneira ilegal. O Congresso deveria ter decidido os pontos de sua estrutura, em mais de uma sessão, mas foi o Tribunal Supremo Eleitoral que acabou decidindo e construiu uma legalidade circunstancial, para se livrar do Congresso e aprovar a ideia de um referendum para eleger a Assembleia Constituinte e refazer a Constituição. A ideia da nova Constituição criou muitas ilusões de solução de quase todos os problemas e de ponto de partida para a construção de aspirações. Na ótica do governo, permitiu-lhe consolidar seu espaço e ganhar mais reconhecimento. A nova Constituição foi uma estratégia política para legitimar e ganhar espaço político para um governo eleito sem um partido e apoiado por uma série de organizações populares, geralmente contestatárias.

Os plenos poderes Por caminhos não necessariamente legais nem constitucionais, o novo governo que promoveu nos fatos e nos discursos a renovação dos dirigentes políticos impôs, em primeiro lugar, o afastamento da maioria dos deputados para substituí-los por seus suplentes e assim A nova Constituição do Equador, 2008: seu processo de definição e as mudanças institucionais

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obteve a maioria para estabelecer a Assembleia Constituinte. Apesar de que o referendum para aprovar a elaboração de uma nova Constituição, por meio de uma Assembleia Constituinte, definiu que seus membros tivessem “plenos poderes” para modificar as instituições políticas, uma vez constituída, seu significado foi redefinido para dotar a Assembleia do poder de realizar leis como se esta fosse a função legislativa, com procedimentos expeditivos. Assim, a ideia dos plenos poderes tornou-se parte decisiva da formação do novo poder do novo governo, uma estratégia política para consolidar legitimidade e circunscrever mais o débil poder dos rivais políticos ou do poder econômico.

Exorcizar o neoliberalismo É voz corrente que a Constituição anterior era neoliberal e que a nova acaba com o neoliberalismo. Neste processo de constituição de legitimidades para a mudança, foram associadas as políticas predominantes no período anterior à Constituição de 1998, sem que nos fatos existisse necessariamente relação entre um e outro. Para diversas organizações dos setores populares, principalmente os indígenas e as mulheres, a Constituição de 1998 foi considerada a que lhes reconheceu e foi vista como a Constituição da inclusão sociopolítica9. No entanto, diante das novas aspirações, tal fato passou a um lugar desconhecido, no qual chegou a predominar a ideia de que era necessário criar uma ordem social que não permitisse o neoliberalismo. Mais do que definir pautas gerais, macro ou institucionais, este tipo de razões circunstanciais (condenar o abuso de poder e o neoliberalismo) adquiriu importância decisiva no momento de elaborar a Constituição.

Conteúdo da nova Constituição A nova Constituição reforçou os direitos da pessoa e os direitos coletivos, aspectos ecológicos e a descentralização, estabeleceu um novo sistema de participação cidadã, um Executivo forte, um Legislativo débil, um Estado regulador ou interventor, embora não tenha conseguido resolver os impasses do jogo político equatoriano.

9 Galo Chiriboga e Rafael Quintero (eds.), Alcances y limitaciones de la reforma política en el Ecuador 1998. Quito, Instituto Latinoamericano de Investigaciones Sociales, 1998. 32

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Direitos A Constituição de 1998 já estabelecia muito claramente e incorporava a última geração de direitos; isto foi reconhecido pelos atores da nova Constituição até o ponto de, no início, terem considerado desnecessário mexer em sua parte dogmática e pensado fazê-lo apenas na parte orgânica. A Constituição de 2008, contudo, incrementa e detalha estes direitos10 (Título 2), e todos eles – os sociais, os políticos e os da pessoa – são considerados de igual valor, sem hierarquia, de aplicação imediata, “exigíveis” por parte de qualquer cidadão. Foram promovidas políticas de discriminação positiva para obter equidade. Chama a atenção a ampliação de detalhes de cada um dos direitos e as categorias nas quais estão articulados revelam a concepção estabelecida e as mudanças propostas: Direitos do bem viver (Cap. 2); Direitos da pessoa e grupos de atendimento prioritário (Cap. 3); Direitos das comunidades, povos e nacionalidades (Cap. 4); Direitos de participação (Cap. 5); Direitos de liberdade (Cap. 6); Direitos da natureza (Cap. 7); Direitos de proteção (Cap. 8); Responsabilidades (Cap. 9). A parte orgânica, finalmente, é composta de 94 artigos e por extensos incisos.

Direitos do bem viver Em primeiro lugar, com estes direitos foi introduzida uma noção de certos povos indígenas, o “Sumak Kawsay”, como um valor a buscar que promoveria certo equilíbrio e harmonia da pessoa e seu entorno, e dariam lugar ao “bem viver”. A introdução deste conceito ou desta visão na Constituição seria um reconhecimento das culturas indígenas e uma atribuição de valor à interculturalildade. Em segundo lugar, estes direitos compreendem sumariamente o direito à água e à alimentação sadias (para tanto, foi promovida a soberania alimentar); um ambiente saudável e ecologicamente equilibrado11 que garanta a sus-

10 Por exemplo, com relação à não discriminação afirma (em uma parte do art. 11): Todas as pessoas são iguais e gozarão dos mesmos direitos, deveres e oportunidades. Ninguém poderá ser discriminado por razões de etnia, lugar de nascimento, idade, sexo, identidade de gênero, identidade cultural, estado civil, idioma, religião, ideologia, filiação política, passado judicial, condição socioeconômica, condição migratória, orientação sexual, estado de saúde, portar HIV, deficiência, diferença física; nem por qualquer outra distinção, pessoal ou coletiva, temporal ou permanente, que tenha por objeto ou resultado reduzir ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício dos direitos. A lei sancionará toda forma de discriminação. 11 Conservação de ecossistemas, da biodiversidade e do patrimônio genético (inclui a prevenção de dano ambiental – art. 14). Ficam proibidas armas químicas, biológicas e nucleares. A nova Constituição do Equador, 2008: seu processo de definição e as mudanças institucionais

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tentabilidade e o bem viver (Sumak Kawsay); o direito a uma comunicação livre, intercultural, inclusiva, diversa e participativa; o direito a manter sua cultura e identidade; o direito à educação; ao habitat e à moradia; à saúde; ao trabalho e à previdência social. Desse modo, a conservação ecológica tornou-se um pré-requisito para o bem viver e foram acrescentadas outras necessidades modernas como direitos básicos da vida. Estes aspectos estão desenvolvidos em 14 artigos (e numerosos parágrafos e capítulos) que definem a qualidade desses direitos e as condições de acesso a eles.

Direitos da pessoa e grupos de atendimento prioritário Estes direitos para pessoas em condições especiais pela idade ou condições físicas significam um atendimento prioritário por parte do Estado com diversas medidas e serviços públicos. Estes grupos são os idosos; os jovens; a mobilidade humana (direito à migração ou à liberdade de deslocar-se e a proibição de considerar uma pessoa ilegal por questões migratórias); mulheres grávidas; crianças e adolescentes; pessoas com deficiências; pessoas com doenças graves ou prolongadas; pessoas privadas de liberdade; usuários e consumidores. Para cada uma destas categorias foram identificadas sua condição, as necessidades particulares, os direitos em consequência e as obrigações públicas para seu cumprimento12. Como se pode obser-

12 Tomamos o exemplo de adultos e idosos. Art. 36. As pessoas idosas receberão atendimento prioritário e especializado nos âmbitos público e privado, especialmente nos campos da inclusão social e econômica, e proteção contra a violência. São consideradas idosas as pessoas que tiverem cumprido sessenta e cinco anos de idade. Art. 37. O Estado garantirá aos idosos os seguintes direitos: 1. Atendimento gratuito e especializado de saúde, assim como o acesso gratuito aos medicamentos. 2. Trabalho remunerado, em função de suas capacidades, para o qual se levará em conta suas limitações. 3. Aposentadoria universal. 4. Descontos em serviços públicos e em serviços privados de transporte e espetáculos. 5. Isenções no regime tributário. 6. Dispensa do pagamento de custos de cartórios e registros, de acordo com a lei. 7. O acesso a uma moradia que garanta uma vida digna, com respeito a sua opinião e consentimento. Art. 38. O Estado estabelecerá políticas públicas e programas de atendimento às pessoas idosas, que levarão em conta as diferenças específicas entre áreas urbanas e rurais, as iniquidades de gênero, a etnia, a cultura e as diferenças próprias das pessoas, comunidades, povos e nacionalidades; mesmo assim, fomentará o maior grau possível de autonomia pessoal e a participação na definição e execução destas políticas. 34

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var, a categoria de setores com particularidades e atendimento especial foi multiplicada.

Direitos das comunidades, povos e nacionalidades Os direitos coletivos também foram ampliados em número (21), em especificações sobre os direitos adquiridos anteriormente, e no número de sujeitos destes direitos – além dos povos indígenas e afro-equatorianos, foram incluídos os montubios, um setor de camponeses da região costeira. Foram reconhecidos igualmente os povos em isolamento voluntário, sendo seu território intangível. Apesar de a Constituição de 1998 conceder o direito aos povos indígenas e afro-equatorianos a constituir Circunscrições Territoriais Indígenas e Afro-Equatorianas, estas nunca se concretizaram. Não houve acordo sobre seus desenhos ou seus obstáculos eram de grandes proporções, pois implicavam redefinir os limites da Divisão Político-Administrativa para moldar novas circunscrições adaptadas aos territórios indígenas, nos casos em que houvesse território; por outro lado, para a maioria, que vive nos Andes, sem território e em Especialmente o Estado tomará medidas de: 1. Atendimento em centros especializados que garantam sua alimentação, saúde, educação e cuidado diário, em um marco de proteção integral de direitos. Serão criados centros para acolher quem não possa ser ajudado por seus familiares ou quem necessite de um lugar onde residir de forma permanente. 2. Proteção especial contra qualquer tipo de exploração no trabalho ou econômica. O Estado executará políticas destinadas a fomentar a participação e o trabalho das pessoas idosas em entidades públicas e privadas para que contribuam com sua experiência, e desenvolverá programas de capacitação de mão-de-obra em função de sua vocação e suas aspirações. 3. Desenvolvimento de programas e políticas destinadas a fomentar sua autonomia pessoal, diminuir sua dependência e conseguir sua plena integração social. 4. Proteção e atendimento contra todo tipo de violência, maus-tratos, exploração sexual ou de qualquer outro tipo, ou negligência que provoque tais situações. 5. Desenvolvimento de programas destinados a fomentar a realização de atividades recreativas e espirituais. 6. Atendimento preferencial em casos de desastres, conflitos armados e todo tipo de emergências. 7. Criação de regimes especiais para o cumprimento de medidas privativas de liberdade. Em caso de condenação à pena privativa de liberdade, sempre que não forem aplicadas outras medidas alternativas, cumprirão sua sentença em centros adequados, e em caso de prisão preventiva se submeterão à prisão domiciliar. 8. Proteção, cuidado e assistência especial quando sofram de doenças crônicas ou degenerativas. 9. Adequada assistência econômica e psicológica que garanta sua estabilidade física e mental. A lei sancionará o abandono das pessoas idosas por parte de seus familiares ou das instituições estabelecidas para sua proteção. A nova Constituição do Equador, 2008: seu processo de definição e as mudanças institucionais

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convívio cada vez maior com não-indígenas, o problema resultava irresolúvel. Em 2008 foi adotado um procedimento para constituir tais circunscrições, sem redefinir a Divisão Político-Administrativa, mas estabelecendo um procedimento pelo qual, por referendum, uma circunscrição desta divisão político-administrativa (paróquia, cantão, província) pode se converter em Circunscrição Multicultural. Nesta, apesar de serem aplicadas as competências próprias à circunscrição político-administrativa, estas podem ser executadas seguindo as pautas dos direitos coletivos, sempre que sejam respeitados os não-indígenas ou os não-afro-equatorianos que lá vivam. Além disso, estas circunscrições multiculturais podem se integrar caso sejam contíguas e constituir assim um território mais amplo, que no final poderia corresponder a um território indígena. Assim, trata-se de um caminho que pode reconstituir territórios indígenas no marco da divisão político-administrativa. Faz parte de uma mudança importante o fato de que o Equador se defina agora como “plurinacional”, precisamente para dizer que se trata de um país formado não exatamente por vários povos (tal como diz o direito internacional), mas por várias nacionalidades, termo usado pelas organizações indígenas mais importantes, sem que se precise seu significado. O Equador se define igualmente como país “intercultural”, o que implicaria que todas as culturas possam não apenas buscar sua continuidade e reconhecimento, mas que, em seus espaços, deva ser promovida a mútua apropriação da cultura do outro. A interculturalidade requer, entretanto, que se lhe dê também um significado concreto.

Direitos de participação Serão abordados com mais detalhes no capítulo seguinte. Direitos de liberdade Estes direitos (29 artigos) correspondem ao que se denominam direitos da pessoa, como indivíduo, tal como o direito à inviolabilidade de sua vida, ou à integridade de sua pessoa etc. Direitos da natureza Segundo eles, a natureza se torna sujeito de direitos e são promovidos a manutenção de sua integridade, o respeito a seus ciclos vitais, a restauração, a precaução e a restrição caso sejam afetadas espécies.

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Direitos de proteção Por meio deles garante-se às pessoas o direito a serem protegidas pela lei, a respeito de sua reputação, à defesa legal, a normas para o devido processo no respeito da pessoa. Responsabilidades Finalmente, identificam-se as responsabilidades dos cidadãos, fundamentalmente o respeito à Constituição e às Leis, e a valores básicos de convivência. As leis, instituições e serviços terão como uma de suas finalidades o respeito a todos os direitos. As garantias constitucionais, entre outros aspectos, definem para tanto a ação de proteção, o habeas corpus, o acesso à informação pública, o habeas data, a ação de descumprimento, a ação extraordinária de proteção.

Participação: direitos da pessoa, dos coletivos e um quarto poder do Estado Os aspectos relativos à participação cidadã são emblemáticos da nova Constituição. A participação política é primeiramente um direito das pessoas (Cap. V, arts. 61 a 65), pelo qual elas podem apresentar projetos normativos (reformas de lei) de iniciativa popular; ser consultadas para sua elaboração; fiscalizar os atos de governo e cassar os mandatos dos representantes. A “participação em democracia”13 (art. 95) compreende participar na tomada de decisões, na planificação da gestão governamental e demais assuntos públicos; finalmente implica o controle das instituições do Estado e dos representantes. Estas possibilidades seriam exercidas por meio da democracia representativa, mas também por pautas de democracia direta e comunitária. É singular que se reconheça para tanto a organização coletiva (arts. 96 a 98), que pode cumprir funções para a solução de conflitos, atuar por delegação de autoridade, reclamar reparação de danos causados a terceiros (ou seja, a espaços públicos ou a uma coletividade ou à natureza), formular propostas econômicas, políticas ou de outro tipo de importância pública; finalmente, reconhece-se o direito à resistência a decisões públicas consideradas lesivas. A ação cidadã será exercida de forma individual ou 13 Título IV, Participação e organização do Poder. A nova Constituição do Equador, 2008: seu processo de definição e as mudanças institucionais

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em representação da coletividade, sem a mediação de um processo particular para assumir esta representação; em outros termos, uma pessoa por si e ante si pode assumir a causa de um problema em que considere pertinente atuar em nome da coletividade. Fica instituído o direito a participar dos diferentes níveis de governo, para o qual devem existir instâncias de participação em cada nível compostas de representantes das autoridades eleitas, representantes do nível da divisão político-administrativa e aqueles da sociedade civil. Estas instâncias poderão elaborar planos e políticas públicas; melhorar o investimento público e definir agendas de desenvolvimento; fortalecer a democracia com mais transparência, exigência de prestação de contas e exercício de controle dos representantes em todos os níveis do Estado; “impulsionar a formação cidadã e processos de comunicação”. Este tipo de participação se rea­lizará por meio de audiên­ cias públicas, inspetorias, assembleias, cabildos populares, conselhos consultivos, observatórios e outros meios que a cidadania promova. Em cada instância de representação política de cada nível da divisão político-administrativa (município, província, paróquia) haverá uma poltrona vazia (art. 101), que será ocupada por um representante da sociedade civil, qualquer que seja o tema a ser tratado. A cidadania – de forma individual ou organizada – poderá apresentar projetos e propostas a todos os níveis de governo (art. 102). Por meio da “iniciativa popular normativa” será possível promover a criação, a reforma ou a derrogação de normas jurídicas. Para tanto, será necessário o apoio de 0,25% de cidadãos inscritos no cadastro eleitoral da jurisdição correspondente. Por sua vez, o órgão competente disporá somente de 180 dias para examinar a questão; excedido esse prazo, a proposta entrará em vigor automaticamente. Caso se trate de uma proposta de lei, o presidente pode emendá-la, mas não vetá-la. Em propostas de reforma constitucional, a cidadania requer o apoio de 5% dos inscritos no cadastro eleitoral. Neste caso, se o Congresso não a examinar durante o período de um ano, passa-se automaticamente a um referendum aprobatório. A cidadania poderá igualmente convocar uma consulta popular caso disponha de 5% de apoio do cadastro eleitoral. Para o exercício da cassação de mandatos é necessária a participação de 10% do eleitorado; caso se trate do presidente, a exigência é de 15%. A cidadania poderá também, por meio dos “Conselhos Nacionais de Igualdade” (art. 156), formados por membros da sociedade civil e do Estado, buscar a vigência de direitos através da formula38

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ção, “transversalização”, observância, acompanhamento e avaliação de políticas públicas, como no caso das políticas de gênero, direitos coletivos, direitos da criança e do adolescente. Estes direitos de participação nos processos de decisão são completados por aqueles relativos à busca de transparência e de controle sobre as decisões e os representantes públicos, para o qual se constituiu o quarto poder do Estado: a “Função de transparência e controle social”. Além de controlar as entidades públicas e zelar para que exerçam suas responsabilidades com transparência e equidade, esta nova Função de Estado deverá fomentar a participação cidadã, proteger o cumprimento dos direitos, prevenir e combater a corrupção. Esta superentidade abarca diversas outras, encarregadas da luta contra a corrupção, de defender os direitos (ombudsman) e de controlar as funções do Estado ou deste em relação à sociedade (a Defensoria do Povo, a Controladoria Geral do Estado e as superintendências de banco, de companhias e de modo especial o Conselho de Participação cidadã e de controle social (art. 204)). Este “Conselho de Participação cidadã e de controle social”, particularmente emblemático desta mudança, tem como funções (art. 208) promover a participação e a deliberação pública, estabelecer os mecanismos de “controle social” (inspetorias, prestação de contas) sobre entidades e questões de interesse público, instar as entidades competentes a assumir “de forma obrigatória” assuntos que se considere pertinente fazê-lo, investigar questões de corrupção e impulsionar atos legais em consequência, proteger as pessoas que denunciem atos de corrupção, e nomear certo número de autoridades importantes do Estado, tais como o procurador do Estado (advogado do Estado) e os superintendentes (de bancos, de companhias, de controle ambiental) encarregados de controlar certas entidades privadas. Estas pessoas são designadas a partir das listas tríplices apresentadas pelo presidente da República. Por concurso público serão nomeados o Defensor do Povo (ombudsman), o Fiscal e o Controlador Geral, isto é, todas as entidades encarregadas da defesa dos direitos cidadãos, do início dos processos legais e do controle dos gastos do Estado. Da mesma forma serão nomeados os membros das entidades encarregadas das eleições ou processos de votação pública (Conselho Nacional Eleitoral e Tribunal Contencioso Eleitoral), e aqueles que compõem o Conselho da Magistratura, ou seja, a entidade encarregada da organização da administração da justiça. A nova Constituição do Equador, 2008: seu processo de definição e as mudanças institucionais

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Estas enormes atribuições pertenciam antes à função legislativa e foram consideradas fonte de abuso de poder pelos arranjos entre partidos que isto implicava, com intercâmbio de favores. O “Conselho de Participação cidadã e de controle social” será formado por sete pessoas propostas por organizações sociais ou pessoas, em um concurso público que definirá uma lista tríplice escolhida na entidade legislativa. A mudança fundamental seria, por conseguinte, que as prerrogativas exclusivas do poder instituído fossem compartilhadas com o cidadão comum ou suas organizações, as quais poderiam exercer um direito de controle constante. Para este exercício, o poder dos representantes é diminuído, ou seja, o poder do voto popular, do qual também resulta o presidente. Este poder cidadão é, assim, colegislador e controlador de fato. Efetivamente, implica a perda da defesa do exercício da representação política e a constituição de um poder acima dela que não provém do voto popular, mas das possibilidades de exercício da democracia direta. As diversas possibilidades de participação cidadã – direta ou por meio de organizações, que a nova Constituição estabelece – revelam boa vontade de constituir um sistema no qual a representação política, como instituição resultante do voto popular, em princípio perde seu predomínio e emerge uma entidade que constitui um poder paralelo. Este é resultado de um poder cidadão que não segue as pautas de constituição do voto popular, mas que é designado por pautas de origem coorporativa ou ao menos distante de partidos políticos (pessoas sem pertença a organização social ou popular alguma, no caso de conseguirem ser nomeadas ao Conselho de Participação). As prerrogativas do poder cidadão são grandes; se antes faziam parte do poder do Legislativo e, portanto, dos partidos, na nova Constituição equatoriana passaram a ser parte de um novo poder do Estado. Se fossem aplicadas todas as competências desta nova função do Estado, teríamos um novo sistema político, no qual deveriam conviver um poder emanado do voto popular, o da democracia representativa, e outro saído da democracia participativa, designado por organizações ou pessoas que encarnassem alguma ideia de cidadania. A democracia representativa teria de dividir seu poder com uma democracia participativa encarnada na participação cidadã institucionalizada. Finalmente, foi instituído um “Sistema Nacional Descentralizado de Planejamento Participativo” pelo qual, em todos os níveis de governo, haverá uma instância para a definição do plano correspon40

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dente de desenvolvimento com a participação cidadã. Um conselho nacional de planejamento ou um do nível de governo correspondente será formado com representantes do governo correspondente e da cidadania. Este é outro aspecto do novo sistema; neste caso, trata-se de uma instância que, poderíamos dizer, busca a concertação e a coordenação entre os representantes, ou seja, as pessoas que encarnam a democracia representativa e aquelas que encarnariam a cidadania. Neste caso, é um passo intermediário entre a polarização eventual destas duas ideias de democracia. Em síntese, os dados apresentados revelam a constituição de normas que garantem a participação cidadã, por meio de organizações ou diretamente pelas pessoas de modo individual; a formação de instâncias de participação em geral, tais como o conselho de participação cidadã, e em relação a todos os níveis de governo, em diversas modalidades de participação para as decisões ou para o controle ou vigilância de políticas e exercício da representação pública ou da administração pública. Estas instâncias são de dois tipos: no primeiro se encontram representantes dos eleitos em cada nível de governo e da cidadania; no segundo estão aquelas instâncias que podem ser exclusivamente compostas pela cidadania. Com o primeiro tipo de instâncias procura-se não entorpecer as funções do nível de governo respectivo diante da eventualidade de a participação cidadã bloquear o seu exercício. A composição deste tipo de instâncias formada por eleitos e por representantes da cidadania buscaria pautas de acordos e negociação para coadjuvar o exercício do governo, enquanto o outro tipo de instâncias, completamente formadas por membros da sociedade civil, favoreceria os papéis de inspetoria e controle externos ao poder político. A definição de um quarto poder do Estado, para a participação cidadã, mostra a importância dada a este processo e as grandes expectativas que se têm com relação a ela para criar um contrapeso ao poder político.

Impasses em reformas políticas ou a pobreza da política As mudanças em relação às regras do jogo político que justificaram a reelaboração da nova Constituição, por outro lado, são limitadas. Não foram definidos os elementos para enfrentar os problemas institucionais ou de funcionamento do jogo político, como a instabilidade e o fracionamento político que se reforça com circunscrições eleitorais

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que premiam partidos locais14. As exigências ou os estímulos para a constituição de partidos “nacionais” continuam sendo muito limitadas em um país em que o local predomina em relação ao regional, sem que existam muitos atores que assumam o conjunto. Existe uma diferenciação entre os partidos e os movimentos políticos. Enquanto é exigido um maior número de requisitos aos primeiros, entre os movimentos o fato de serem nacionais lhes confere liberdade de atuar em qualquer nível sem as fortes exigências dos primeiros. Apesar de ambos exigirem, para sua constituição, 1,5% de adesão entre os cidadãos inscritos nos cadastros eleitorais, os partidos devem obter votação na metade das províncias e em ao menos nas três mais populosas, enquanto os movimentos estão livres desta exigência. Disto decorre que são os próprios atores que se autodefinem como partido ou movimento. Uma conclusão imediata destas normas é que se desestimulam os partidos e se favorece a constituição dos movimentos, os quais, mesmo tendo favorecido setores sociais marginalizados no passado, tendem a alimentar a vinculação política local. Continuando com as preocupações do momento sobre a “partidocracia”, está sendo dada ênfase na definição de normas de funcionamento interno para promover a transparência, a democracia interna, a alternância dos dirigentes, a prestação de contas e a paridade entre mulheres e homens nas diretorias, devendo estas ser eleitas em processos eleitorais internos (primárias). Existe uma longa disputa no Equador entre as organizações políticas e os chamados “independentes”, que afirmam não seguir nenhuma ideologia e pretendem estar acima da “política”. Foi desse modo que, no passado, foram constituídos os caciques e os caudilhos políticos contra os quais, por outro lado, o conjunto de reformas políticas de fins dos anos 1970 deu ênfase, exigindo a constituição de partidos e de pautas internas de funcionamento democráticas, de programas de ação e definições ideológicas. 15 A 14 Simón Pachano, “El sistema electoral ecuatoriano: una descripción”, em Democracia sin sociedad. Quito: ILDIS, 1996, pp. 145-213, e La representación caótica (análisis del sistema electoral ecuatoriano). Quito: FLACSO, 1998. 15 Felipe Burbano de Lara e Michel Rowland, Pugna de poderes. Presidencialismo y partidos políticos en Ecuador 1979-1997. Quito: CORDES/Cooperación Española/Fundación Konrad Adenauer, 1998; Catherine Conaghan, Restructuring Domination. Industrialist and the State in Ecuador. Pittsburg, Pa.: University of Pittsburg Press, 1988;– Catherine Conaghan, “Loose Parties, ‘Floating’ Politicians, and Institutional Stress: Presidentialism in Ecuador, 1979-1988”, em Juan Linz e Arturo Valenzuela (orgs.), The Failure of Presidential 42

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Constituição de 2008 reconhece o direito de participação destes independentes nos partidos ou movimentos, ao se tornarem candidatos sem ser membros daqueles. Finalmente, contrariando a tradicional medida no Equador de não permitir a reeleição presidencial para frear os mencionados caudilhos, em 2008 se estabeleceu a reeleição por uma única vez, sem a exigência de renúncia ao cargo para a campanha eleitoral para os postos uninominais, em particular para a Presidência da República. Este aspecto foi considerado uma decisão dedicada ao presidente Rafael Correa. As diversas propostas que teriam permitido substanciais mudanças no jogo político e na organização dos poderes do Estado não prosperaram porque, como indicam as reformas mencionadas, não houve consenso entre a maioria atualmente no governo. Sendo esta composta por uma série de organizações populares de tendências e visões diferentes, que têm em comum a visão da política como uma ação na qual se devem sancionar os que se consideram ser os responsáveis pela oligarquização da política ou por seus abusos, os partidos não conseguiam chegar a acordos sobre sua reorganização para além de pautas moralizadoras. Os resultados são produto, assim, da relação de forças e das mentalidades do momento nestes setores políticos. A política nestas visões se torna inclusiva para os “bons” e busca excluir os “maus”. Esta visão religiosa do jogo político contrasta com a tradição pluralista do Equador e se choca com a ideia de uma democracia o mais inclusiva possível de todos os atores e setores sociais.

Um executivo forte para uma democracia participativa Na Constituição, entretanto, aparecem mais as ausências de decisões que as que foram tomadas a respeito, salvo no relativo à organização do poder do Estado, como o Executivo. Efetivamente, uma das principais críticas à Constituição de 1998 foi ter ampliado o poder do

Democracy. The Case of Latin America (vol. 2). Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1994; Osvaldo Hurtado, El poder político en Ecuador. Quito: Ediciones de la Pontificia Universidad Católica del Ecuador, 1977; Jorge León Trujillo, “La democracia real versus la democracia idealizada. Ecuador de 1978 a 2003”, Revista POLÍTICA n. 1, Santiago, 2004; Vicente Martínez, “Análisis de la coyuntura político-electoral 19761979”, em FLACSO/F. Friederich-Naumann, Elecciones en Ecuador 1978-1980. Quito: Editorial Oveja Negra, s/d, pp. 39-58; Amparo Menéndez-Carrión, La conquista del voto en Ecuador. De Velasco a Roldós. Quito: Corporación Editora Nacional, 1986; Andrés Mejía, Gobernabilidad democrática. Sistema electoral, partidos políticos y pugna de poderes en Ecuador: 1978-1998. Quito: Fundación Konrad Adenauer, 2002; Juan Pablo Pérez Saínz, Clase obrera y democracia en Ecuador. Quito: El Conejo, 1985. A nova Constituição do Equador, 2008: seu processo de definição e as mudanças institucionais

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Executivo em detrimento do Legislativo, deixando o Executivo quase sem um verdadeiro contrapeso, o que favoreceu que fosse presa fácil de poderes fáticos, que nas críticas comuns se expressa como refém do “neoliberalismo”. Nas justificativas para elaborar uma nova Constituição foi priorizada a neutralização desta situação. Nos resultados, entretanto, surgiu um Executivo mais forte e um Legislativo que em vários aspectos perdeu poder, como o de nomear autoridades-chave do Estado, pois quem o detém é o novo poder de participação cidadã; mesmo que o Legislativo possa processar politicamente os ministros e destituí-los, continua sendo um poder limitado. O Legislativo perdeu inclusive a capacidade de ter iniciativa para a reforma da Constituição e tornou-se apenas um participante desta. Não foi o caso do Executivo, que teve inclusive ampliada sua capacidade de iniciativa legislativa e de veto. Este desenho foi considerado necessário para cumprir as metas do governo atual, ao considerar que encarna a mudança e tem legitimidade sem que se considere que um sistema assim, com um dos “maus” no governo, não seria visto precisamente do mesmo modo. Igualmente, o poder concedido ao Executivo, que tornou ainda mais hiperpresidencialista o sistema, é tido como uma busca de “governança”. Os efeitos desta tendência na Constituição de 1998 e outros casos mais revelaram que esta não trazia uma solução à instabilidade política nem favorecia um “bom governo” (governança). Uma mudança importante para a tradição equatoriana e suas reiteradas destituições legais de presidentes foi a introdução da pauta do regime parlamentar, pela qual, em caso de destituição do Executivo por parte do Legislativo, serão convocadas eleições gerais imediatas. O novo desenho do Estado voltou a dar uma importância de primeira ordem à planificação nacional, que se tornou vinculante para todos os níveis de governo e contrasta com o peso dado à participação local e à descentralização. É um dos temas que exigirá precisão na prática, mas responde à visão atualmente predominante de neutralizar a visão neoliberal anterior de desregulação.

Um Estado regulador, coordenador da economia Pelo que foi exposto anteriormente, fica claro que foi esta visão de um Estado com forte capacidade de regulação que predominou e que recuperou sua capacidade de intervenção na economia, paralelamente à proteção dada à proibição de privatizar os recursos naturais e as empresas de serviços públicos. 44

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Estado e regiões: a descentralização A opção final é a de chegar a uma forte descentralização no nível local. Contudo, em contraste com as tendências equatorianas a minimizar o governo central, nas reformas de 2008 esta descentralização instituiu claramente o papel decisivo do governo central. Este cumprirá prioritariamente um papel de orientador geral de bom número de competências, mas a maioria delas será executada pelos governos subnacionais ou seccionais; por outro lado, estes tiveram um aumento no número de suas competências exclusivas. No nível do governo intermediário, foram constituídas as regiões que integrarão as províncias em um processo deixado ao livre-arbítrio delas. Paralelamente, as juntas paroquiais rurais (o primeiro nível da divisão político-administrativa) adquiriram um poder significativo por meio de sete competências, em parte similares às dos municípios. O toque ecológico As dimensões verdes da Constituição equatoriana de 2008 são significativas e lhe deram um toque de singularidade. Já mencionamos que por meio da ideia de “bem viver” se fez da conservação (manutenção e regeneração dos ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos16) uma condição indispensável de vida e se promoveu a ideia da necessidade de um ambiente saudável; para tanto é preciso preservar a biodiversidade, os recursos naturais, a biosfera e o patrimônio natural. Foi concedido à natureza o status de sujeito de direito (art. 11), recorrendo a visões das culturas indígenas a respeito, o que suscitou uma grande polêmica. Entretanto, a ideia que está por trás é a de dotar a conservação de maiores meios para encontrar defensores na sociedade, e qualquer organização ou pessoa poderá assumir esta condição de falar e defender, em nome da natureza, por seus direitos inalienáveis. Em caso de danos à natureza, existem medidas de prevenção e restrição para as atividades que poderiam extinguir espécies, destruir ecossistemas ou alterar permanentemente os ciclos naturais. De modo complementar, ficou proibida a introdução de materiais que possam alterar permanentemente o patrimônio genético deste país megadiverso que é o Equador.

16 Art. 71. A nova Constituição do Equador, 2008: seu processo de definição e as mudanças institucionais

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As formas e o discurso A Constituição de 2008 quis inovar também no seu discurso ao buscar uma redação distante da linguagem jurídica. Foi defendido que uma linguagem comum a tornaria mais fácil de ser compreendida e aceita pela maioria. Está em vigor agora uma das Constituições mais longas da história equatoriana e possivelmente do mundo. Os quase 500 longos artigos foram simbolicamente reduzidos a 444, em uma linguagem oposta ao que se exige de uma Constituição: ser simples, precisa e concisa. Predominou, pelo contrário, um tom discursivo, em parte por esse motivo, impreciso e com uma tendência regulamentária em quase todos os temas. Contrariamente ao que os autores pretendiam – que ao detalhar as propostas se teria maior precisão e se abarcariam as suficientes particularidades ou condições para evitar os pretextos para o descumprimento –, estes detalhes deram espaço para interpretações ou encontraram resquícios de novas situações não mencionadas que tornam uma norma não aplicável. Este tipo de discurso em uma Constituição não contribui para que ela seja referência não conflituosa para normas subalternas e ideias coletivas sobre o modo de organizar o Estado, o país. Estes procedimentos podem favorecer que se exclua ao invés de incluir. Por exemplo, no tema da família, foi reconhecida a variedade de tipos de família, entre outras as famílias que vivem separadas em espaços distantes, com o qual se torna restritivo. Efetivamente, se existe um caso que não está na lista, ele está finalmente excluído, enquanto uma norma geral permite incluir todos os casos. Mas predominou a ideia de que a enumeração protege mais as pessoas ao ser taxativa nos casos enumerados ou identificados. A realidade, pelo contrário, pode ultrapassar estes casos.

A modo de conclusão, sobre sociedade civil e novas instituições A nova Constituição equatoriana pode ser vista como inovadora a partir de vários ângulos, tanto pelo processo de sua elaboração como por diversos aspectos de seu conteúdo, tal como mostramos com relação a vários temas. No que se refere ao processo, ela pode ser vista como a Constituição do encontro dos setores que se consideravam excluídos do 46

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centro do poder. Efetivamente, são estes setores contestatórios os que nesta ocasião formaram a maioria dos membros da Assembleia Constituinte e da maioria (Acordo País) que a controlou. Mais de 80% dos constituintes eram jovens e completamente desconhecidos na cena política. Esta mudança de geração incluiu uma multiplicidade de ideias para construir normas constitucionais diferentes das anteriormente predominantes, daí, entre outros aspectos, a linguagem utilizada e as reticências em lançar mão de categorias clássicas do direito constitucional (o Equador, por exemplo, não é mais um estado de direito, mas “um Estado de direitos e justiça”). A maioria dos constituintes não tinha uma visão elaborada da lei, viveu uma aprendizagem com a prática. No nível das mentalidades predominantes, desejava-se instituir normas para impedir abusos e acabou por se impor a ideia de ter pautas de controle severas, paralelamente a conceder à participação cidadã a qualidade de antídoto à “desordem” da política e de sua oligarquização. Na lutas sociais estes setores estavam articulados por reivindicações de igualdade social e de rechaço à exclusão, aspectos que acabaram predominando na definição detalhada dos direitos e no incremento dos setores que se busca proteger. Houve a ampliação de direitos a mais pessoas em casos de particulares ou de aumento dos direitos como os de “bem viver”, que incluem os aspectos ecológicos e a ideia de um meio ambiente saudável. Para garantir sua aplicação, a hierarquia foi eliminada: todos os direitos passaram a ter o mesmo valor e, mesmo que se reconheça que sua concreção não pode ser imediata, foi definido que todos são exigíveis de imediato. Assim, tanto na forma pela qual cada setor buscava plasmar seu discurso e encontrar-se nos detalhes do texto, como pelos conteúdos notáveis, esta Constituição pode ser vista como a do encontro destes setores contestatórios e reivindicativos sociais. No processo equatoriano, poderia ser vista como mais um passo na constituição da comunidade política na qual todos os setores não estão apenas incluídos, mas agora as próprias normas da comunidade política foram desenhadas sob medida pelos que antes contestavam a ordem estabelecida. Na prática, existe uma enorme expectativa com relação a todos os abundantes direitos instituídos que, aparentemente, com o direito de “exigibilidade” se cumprirão, quando além das ideias e da vontade política dependem das condições estruturais e da luta social. Mas existe a tendência a considerar que tudo é questão de vontade política e, de fato, assim se minimiza a importância da luta social. A nova Constituição do Equador, 2008: seu processo de definição e as mudanças institucionais

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A ênfase colocada na participação política e nas normas concedidas à democracia direta, em detrimento da democracia representativa – a ponto de terem sido reduzidas as capacidades do Legislativo e quase se sancionarem os partidos – revelam a boa concepção latente nestas normas, segundo a qual a alternativa ao sistema político e de Estado passa por uma mudança dos pesos e contrapesos do poder. Já não seriam todos no âmbito do institucional, aparentemente, mas no do reconhecimento dos pesos externos à divisão de poderes do Estado. No Equador, cujo sistema político já incorporava a contestação, esta concepção não é algo excepcional nem necessariamente nova; em grande medida se assemelha à ideia de um poder paralelo ao sistema político estabelecido. Nas propostas constitucionais se supõe que os abusos do poder ou seus desvios para defender interesses particulares serão corrigidos graças a uma cidadania ativa na participação política, para a qual o sistema cria instâncias que a viabilizam e lhe concede direitos formais. Além disso, para dar notoriedade ao sistema de participação, foram concedidas a ele algumas funções que contrabalançam o poder Legislativo, buscando deste modo eliminar a chamada “partidocracia” equatoriana, que implicava a divisão de cargos entre grupos políticos afins, em uma negociação de favores mútuos e de colocar em tais cargos pessoas dispostas a seguir as ordens ou defender os interesses dos que os nomearam. O desafio resulta assim particularmente complexo se considerarmos que estas práticas de poder não necessariamente obedecem aos partidos nem se limitam a interesses materiais. Por outro lado, está em jogo que a participação possa ser constante e não cíclica como mostram os fatos. Finalmente, por estas normas se chegou a um processo de institucionalização da participação, que pode favorecer um modo de cooptação das organizações cidadãs e acabe por debilitar sua força que provém precisamente de sua capacidade de independência em relação ao poder e de contestação não institucional. Agora deve ser importante que as novas instituições participativas adquiram ou sejam construídas com significados que lhes confiram a legitimidade indispensável para serem aceitas e se consolidarem. Sem uma marca de distinção e sem eficácia em seu desempenho a participação cidadã perderá sentido e se desprestigiará, poderá ser uma simples instância a mais do poder político instituído. Construir, por conseguinte, um significado social do que é, em primeiro lugar, a cidadania e, em segundo lugar, esta participação, é um pré-requisito 48

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para sua nova configuração pública com identidade própria. A participação não pode ser um resíduo do fato de não pertencer a um partido ou de ser parte de alguma organização social. O que está em jogo é uma ressignificação contemporânea e, para uma sociedade como a equatoriana, da cidadania e de seus papéis na vida pública. Em princípio, a participação cidadã não deveria ser o mesmo que o poder político em suas formas até agora conhecidas, nem assemelhar-se – ou pior, defender – os poderes fáticos como os do dinheiro. Mesmo que seja associada implicitamente a uma ideia de ética, uma entidade como esta de participação não poderia se restringir a um sentido moralizador do poder, mas a uma ressignificação do poder em seu exercício. Um desafio não menos importante para a sociedade seria que esta proposta de institucionalização da participação evitasse a corporativização, fenômeno com fortes raízes no país. De fato, para nomear os membros do Conselho de Participação se favorecem as organizações existentes entre as quais, convém recordar, as que têm maior duração e incidência na sociedade são as diversas corporações que cumprem funções de grupos de interesse e de pressão. A recorporatização dos encarregados de encarnar a participação cidadã seria reproduzir um novo sistema de “partidocracia”, o oposto à ideia que o legitima. Como conclusão, abrem-se assim múltiplas possibilidades de ação para a sociedade civil ao dispor de tantas instâncias de participação e de competências reconhecidas, em todos os níveis do exercício de governo, desde o local ao nacional. E é mais do que isso, ao serem não apenas as organizações, mas as pessoas individualmente, as que podem exercer tanto os direitos de controle ou vigilância do poder como uma participação direta nos processos de decisão. O sistema novo, contudo, pode produzir efetivamente muitas incongruências. Em grande medida ele foi desenhado para diminuir a importância da representação política que emana do voto popular, de uma vontade majoritária, enquanto os conselhos cidadãos se formam por vontade própria ou pela nomeação de terceiros. A representação política é incontornável, a participação cidadã não pode ser feita em detrimento da primeira, mas deve cumprir funções que retifiquem seus procedimentos, que exijam pautas apropriadas de decisões e façam ouvir vozes diferentes para os processos de decisão. Por conseguinte, a participação cidadã em um caso como o do Equador, no qual poderíamos dizer que já está “tudo” reconhecido, requer uma definição urgente para conseguir ter identidade própria e impacto. A nova Constituição do Equador, 2008: seu processo de definição e as mudanças institucionais

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Este aspecto é ainda mais urgente porque o Equador é um país no qual as instituições passam por constantes redefinições devido à instabilidade política, e os impactos negativos para resolver problemas ou acumular esforços para construir alternativas são frequentemente frustrados. Ao contrário do que em geral se pensa, não necessariamente se conseguem maiores impactos com mudanças ou com resolver problemas à base de mudanças constantes em normas e instituições. É comum, pelo contrário, que as sociedades experimentem mudanças positivas quando disponham de instituições sólidas e por isso mesmo perduráveis. Neste caso, a sociedade, em vez de se dedicar a disputas pelas regras do jogo, pode investir em construir alternativas sociais ou de outro tipo, que pouco a pouco incidem nas instituições existentes. O que pode haver de aleatório nas mudanças constantes converte a luta política na ação de minorias enquanto as maiorias preferem a ordem e a estabilidade. Não é por acaso que o Equador, depois de tanta agitação social, política e econômica, prefira agora a ordem com um governo forte. A nova Constituição pouco fez para construir instituições sólidas e viáveis, preferiu um governo forte, que é outra coisa e que pode ser por isso mesmo muito circunstancial. É possível mais democracia com instituições frágeis? Esta seria uma das questões para o caso do Equador. A instabilidade mina projetos e resultados, os impactos se debilitam e com eles também as utopias, pois a ação social perde legitimidade ao não conseguir a adesão de maiorias, não tanto para observar a validade de direitos ou ideias de poder sobre o qual estarão de acordo eventualmente, mas para construir o novo, isto é, para investir em sua construção. O processo de definição da Constituição e seu conteúdo no Equador, sejam quais forem os resultados práticos futuros, revela a busca e uma tentativa para resolver a crise da democracia representativa questionada pela concentração da riqueza ou dos poderes fáticos e a submissão da política a estes, entre outros aspectos. A ideia de compensar a debilitada democracia representativa com democracia participativa, que compreende elementos de democracia direta, tem neste caso o mérito de colocar o dilema no campo institucional. E o faz inclusive de modo anti-institucional, ao buscar pesos e contrapesos por fora dos poderes tradicionais do Estado, com novas pautas para a participação cidadã. O maior risco disto pode ser, contraditoriamente, que a participação se torne de tal forma institucionalizante que uma sociedade particularmente ativa no protesto e na organização social, como a equatoriana, acabe por perder sua dinâmica. 50

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DIREITOS, MEIO AMBIENTE E NOVA CONSTITUIÇÃO NA BOLÍVIA E. Evelin Mamani Patana


E. Evelin Mamani Patana. Vice-presidente e Coordenadora Legal da Equipe TĂŠcnico-Legal de Fobomade.


UM POUCO DE HISTÓRIA No dia 25 de janeiro de 2009 foi realizado o referendo dirimitório e aprobativo do novo texto constitucional. Foi aprovado com pouco mais de 61%. Trata-se de uma Constituição que desde sua socialização foi considerada “revolucionária” e de interesse para a região sul-americana, pois contempla as aspirações e os objetivos de luta de organizações sociais e acadêmicas regionais. A inclusão de novos direitos humanos de vanguarda para o indivíduo e o coletivo – direitos que fortalecem um Estado que exerce soberania, não somente territorial, mas de gestão e desenvolvimento de suas potencialidades com respeito – foi alvo de elogios por estabelecer uma Constituição avançada. Contudo, também foi criticada, pelos problemas em nível político interno que provocou e pelas controvérsias sobre prognósticos fatalistas a respeito do problema das autonomias de alguns departamentos que realizaram referendos autonômicos, a gestão da exploração e industrialização de recursos naturais, os direitos dos povos indígenas, a propriedade de terras agrícolas, territórios indígenas, as concessões florestais e o incentivo ao empresariado (grande, médio e pequeno). Outros temas muito sensíveis e de suma importância não foram percebidos naqueles momentos: mineração, gás, transgênicos, desenvolvimento da Amazônia, aplicabilidade de competências autonômicas, entre outros. A problemática emergente e a discussão sobre sua aprovação deram origem a uma etapa de “negociação final” entre o governo nacional e a oposição, no mês de outubro de 2008. Foi formada a Comissão de Concertação da nova Constituição Política do Estado, integrada por um representante de cada partido político. Finalmente, depois de observar mais de 46 artigos, o concerto se rompeu, por não haver acordo final sobre o tema principal do conflito: “as autonomias” (a nova Constituição incorpora quatro níveis autonômicos), além do Imposto Direto sobre o Gás (IDH), “sua restituição” e os fundos que a sustentariam, reeleição presidencial, justiça comunitária, instabilidade constitucional e ausência de um regime agropecuário. O rompimento da harmonia aconteceu no início da grande marcha nacional pela aprovação da nova Constituição, na qual várias centenas de pessoas e de representantes de movimentos sociais de Direitos, meio ambiente e nova constituição na Bolívia

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todas as partes do país se dirigiram a pé à sede de governo, em La Paz, lá chegando no dia 20 de outubro de 2008, quando foi emitida a lei de convocação do referendo constituinte e dirimitório17. Este quadro de processos, posições e repercussões no interior da Bolívia não deixou de representar, no auge dos conflitos, a aspiração a um processo de mudança real. Mudança de modelos produtivos e de desenvolvimento, verdadeira justiça, novos direitos humanos que façam frente a um processo desenvolvimentista desumano que exalta o poder e a riqueza. Para quem? À margem deste panorama, nos interessa saber se os novos direitos humanos introduzidos, ampliando os individuais e introduzindo os coletivos, terão a viabilidade que se espera deles, seu alcance, os sujeitos e o papel do Estado. Em matéria de meio ambiente e de desenvolvimento, o novo texto constitucional, agora em vigor, incorporou novos princípios e mecanismos. Em função da visão dos movimentos socioambientalistas, corresponde saber quais são esses novos direitos, princípios e mecanismos aplicáveis aos temas do meio ambiente, recursos naturais e desenvolvimento, que enfrentaremos como organizações e entidades acadêmicas.

A PROBLEMÁTICA ANTERIOR Em relação ao meio ambiente e ao desenvolvimento, foram identificados vazios constitucionais críticos que se plasmaram em normas com um enfoque realizado por setores, que foram penetrando nas leis ambientais vigentes, levando a uma absurda separação entre recursos naturais, meio ambiente e as pessoas. Os recursos naturais estratégicos foram objeto de concessões em sua exploração e beneficiamento, oferecendo muitas vantagens para investidores e empresas transnacionais que viram na Bolívia um bom negócio. A Constituição anterior não contemplava uma distribuição equitativa dos benefícios (mesmo que fossem muito poucos naquela época) advindos do uso e do aproveitamento dos recursos naturais. Não se levou em consideração nenhuma segurança jurídica na base do desenvolvimento nacional. 17 Na aprovação do texto final da Constituição por parte da Assembleia Constituinte não houve acordo sobre o número máximo de hectares. 54

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O aproveitamento de recursos naturais não levava em conta critérios de sustentabilidade, de justiça ambiental e nem sequer todos os recursos naturais eram patrimônio do Estado, somente o gás e a mineração eram considerados expressamente como tais. Os sistemas de administração de justiça não puderam exercer autoridade por causa da dispersão do tema ambiental nas leis setoriais, deixando um manto sombrio sobre problemas e conflitos ambientais que devem esperar soluções “técnicas”. Por tudo isso, sempre esteve latente a necessidade de constitucionalizar a diversidade de direitos socioambientais, incorporar uma visão de desenvolvimento sustentável, o reconhecimento de relações e interconexões territoriais especiais como as indígenas, estabelecer a prioridade de alguns elementos ambientais em relação aos direitos humanos, à memória coletiva e ao patrimônio relacionado à biodiversidade, apesar de que se conta com um quadro normativo ambiental que propõe direitos, políticas e procedimentos. Com esse entendimento, o novo texto constitucional, resultante do processo constituinte, concebeu uma norma supranacional que enfatiza princípios progressistas ambientalistas fundamentalmente em relação aos Direitos Humanos e aos interesses coletivos. Os mesmos que no decorrer do texto normativo tentam ser transversalizados em diversos aspectos e tópicos constitucionais.

OS DESAFIOS Princípios e fins do Novo Estado Desde as primeiras linhas, no preâmbulo constitucional, em um quadro geral, define-se um Estado que se baseia na igualdade entre todos, enfatizam-se como princípios a soberania, a dignidade, a complementaridade, a solidariedade, a harmonia e a equidade na distribuição e redistribuição do produto social, um Estado no qual predomina a busca do viver bem. Considerando as características geo­gráficas, etnográficas e culturais da Bolívia, estabeleceu-se o respeito à pluralidade, em todos os seus eixos de relacionamento societário (econômico, social, jurídico, político e cultural). A nova Constituição estabelece os princípios e os valores fundamentais deste novo Estado como a garantia ao bem-estar, ao desenvolvimento, à segurança, à proteção e igual dignidade das pessoas, das nações, dos povos e das comunidades. Isto implica a aplicação Direitos, meio ambiente e nova constituição na Bolívia

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efetiva das garantias estabelecidas, para que o indivíduo ou o coletivo possam exercitar seus direitos. Mas, considerando o nosso objeto de estudo, identificamos que, em matéria ambiental, o Estado agora declara que promoverá e garantirá o aproveitamento responsável e planificado dos recursos naturais, impulsionará sua industrialização, o fortalecimento da base produtiva em suas diferentes dimensões e níveis, e a conservação do meio ambiente, que deverá ser fundamental para o bem-estar das gerações atuais e futuras (um arrazoado do desenvolvimento sustentável). Estes valores e princípios do novo Estado são o ponto de partida do processo de análise do movimento socioambientalista local, pois as políticas de governo deverão velar pelo coletivo nacional e priorizar a satisfação das demandas próprias. Sem dúvida se enfatiza a necessidade da independência e da autossuficiência nacional mediante os recursos naturais, por isso sua industrialização por iniciativa do Estado é prioritária em todo o texto constitucional.

Os novos direitos humanos Ao rever alguns capítulos de nossa nova Constituição, na parte dos direitos fundamentais e suas garantias (direitos humanos fundamentais segundo as convenções internacionais) podemos observar que todas as gerações de direitos humanos, segundo a doutrina, foram incluídas. Isto mostra uma imagem ideal de Estado, um Estado que promove e garante os direitos humanos e inclusive propõe inovações em seus avanços legislativos. Em um capítulo importante sobre os direitos fundamentais18, foram introduzidos dois direitos inovadores que, pelo fato de estarem nesse capítulo especial, chamam a atenção para a grande importância concedida, além do fato de serem “fundamentais”, o que os torna de cumprimento e exercício iniludíveis (apesar de todos os direitos humanos serem fundamentais, pois todos buscam a dignidade das pessoas). O acesso à água, como meio indispensável à vida, foi reconhecido como direito fundamental. Isto implica uma visão mais ampla do uso da água em benefício das pessoas. Foi estabelecido o direito fundamental à alimentação, mesmo que frente a este direito se observe a implementação de políticas de segurança alimentar e de não soberania alimentar. Apesar de muitas pes-

18 Considera-se que um direito fundamental esteja situado no topo de todos os direitos existentes, é a premissa de todos os demais direitos; assim, o direito à vida é a premissa primeira e básica de todo outro direito. 56

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soas não notarem diferença alguma, um direito humano como este, que deverá ser exercido dentro do conceito de soberania alimentar que garantirá efetivamente o acesso a alimentos produzidos de modo salutar, nativos e nutritivos, é um critério importante para a Bolívia, tendo em vista que é um país de origem e de diversidade de sementes e de alimentos com alto valor nutricional, como a quinua. Na lista de direitos, o que mais provocou controvérsia na Assembleia Constituinte foi a introdução dos direitos dos povos indígenas, originários e camponeses, denominação que descreve a atual situação das comunas, nações ou etnias subsistentes, às quais se deu reconhecimento formal e personalidade. O marco de direitos especiais para os povos indígenas procura alcançar uma sociedade equilibrada e igualitária no exercício dos direitos, que pratique o respeito mútuo entre pessoas e grupos humanos que optaram por manter suas formas de vida, cultura e estilos produtivos próprios. Direitos que em certo momento causaram opiniões alarmistas infundadas agora estão em vigor: • Em seu meio ambiente • Em suas terras e territórios • Escolha das formas de subsistência • Exercício da justiça comunitária ou indígena • Acesso preferencial aos recursos naturais em seu território O direito dos povos indígenas de viver em um meio ambiente sadio, com o manejo e o aproveitamento adequado dos ecossistemas, garante que as formas de vida desses povos sejam respeitadas e que sua existência seja encarada como prioridade nacional. Um direito de particular importância é o direito e a obrigação da consulta prévia em territórios indígenas a respeito de projetos de impacto em territórios indígenas. O procedimento da consulta respeitará os usos e costumes na tomada de decisões e será aplicado especialmente a respeito da exploração de recursos naturais não renováveis que puder ocorrer em seus territórios. No caso em que haja aceitação dos povos para o desenvolvimento de projetos de exploração, a participação nos lucros obtidos em seu território é um direito consequente. Sobre os recursos naturais renováveis, estabelece-se o uso e o aproveitamento prioritário por parte desses povos. Não se estabelece expressamente o “direito de veto” dos povos indígenas, não obstante, considerando os direitos especiais na nova Direitos, meio ambiente e nova constituição na Bolívia

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Constituição, o compromisso de respeito ao “veto” por parte do Estado estaria implicitamente presente. Se está estabelecido o respeito aos direitos indígenas como à escolha da forma do próprio desenvolvimento, o Estado só deverá garanti-lo. O direito à consulta não é de aplicação exclusiva dos povos indígenas, mas de qualquer grupo social. Continuando com a busca de novos desafios, e saindo do tema dos direitos indígenas, sem dúvida o tema ambiental adquire importância fundamental, por sua menção recorrente em todo o texto constitucional junto à declaração de industrialização de seus recursos naturais; o desafio é estabelecer a visão com a qual foram introduzidos e estabelecer como serão “implementados”. No capítulo dos direitos humanos sociais e econômicos incluídos (Capítulo dos direitos sociais e econômicos), as pessoas têm direito a um meio ambiente saudável, protegido e equilibrado. É um direito que em outras Constituições da região e de outros continentes está em vigor desde fins do século passado, mas o contexto foi diferente em cada um desses países. Na Bolívia o contexto é outro e o momento histórico também. Estamos diante de uma problemática ambiental mundial como o aquecimento global, no qual toda previsão e medidas governamentais a favor da preservação do equilíbrio ambiental mundial são primordiais. Em muitos artigos, o tema ambiental surge insistentemente, mesmo que junto a ele esteja o aproveitamento de recursos naturais. Isto obriga o legislador a considerar o tema ambiental não como uma simples externalidade, mas como um assunto inter-relacionado às pessoas que vivem nesse meio ambiente. Em relação ao direito, a obrigação de denúncia de danos ambientais foi configurada como a faculdade de qualquer pessoa para exercer ações legais em defesa do direito ao meio ambiente. Estabelece-se a obrigação de atuação de ofício do Estado, por se tratar de interesse nacional. Seguramente novas entidades, como a Procuradoria do Estado, terão papel importante na defesa ambiental, sobretudo em temas internacionais, de recursos de fronteira e de danos ambientais transfronteiriços, como é o caso das represas do Rio Madeira. Até janeiro de 2009, nossa legislação não considerava importante o patrimônio cultural, em que se encontram também grupos humanos como os povos indígenas e alguns mais vulneráveis, como os povos isolados (algumas famílias Toromonas e Pacahuaras no norte amazônico), segundo o Direito Internacional dos Direitos Humanos. 58

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Sem dúvida, isto requererá um processo de sistematização e de pesquisa sobre conhecimentos e práticas culturais ancestrais, algumas alteradas pela passagem do tempo e pela interculturalidade. O novo texto constitucional declara o patrimônio cultural como inalienável, impossível de ser embargado e imprescritível. Junto do conceito de patrimônio cultural se definiu a riqueza natural, arqueológica, paleontológica, histórica, documental e a procedente do culto religioso e do folclore – que se mostram como elementos interdependentes. Esta é uma visão sobre o patrimônio cultural e natural aplicável aos fundamentos das áreas protegidas. Na Bolívia, estes elementos – o natural e o cultural – sempre foram considerados, o que permite visualizar um marco de construção de estratégias de defesa no caso de se cogitar a exploração de uma área protegida com todas essas características naturais, culturais e sociais. Em um capítulo concreto está a parte dos deveres das pessoas, que são poucos e concretos. Dentro do nosso objeto de estudo, a proteção e a defesa dos recursos naturais é um tema básico tendo em vista o desenvolvimento sustentável. Também estabelece como dever que todo desenvolvimento nacional considere as gerações futuras, assim como a proteção e a defesa do meio ambiente adequado para o desenvolvimento dos seres vivos. Um novo critério constitucional, que criou suscetibilidades em muitos setores, foi a declaração como delito de traição à pátria a violação do regime constitucional de recursos naturais. Um propósito normativo adverte que a exploração de algum recurso natural, sobretudo os empreendimentos do Estado em recursos estratégicos, deverá respeitar o princípio de que todo o lucro gerado seja definitivamente para os bolivianos e bolivianas. Muitas atividades de exploração de recursos naturais favoreceram poucos, pelo que, logo de uma exaustiva investigação, uma vez identificados os responsáveis, além do tipo de negócio em detrimento do Estado, estes poderiam ser sancionados.

As ações disponíveis Depois do direito, requeremos a ação, pois de nada servem os direitos sobre os quais não se possam exercer ações legais e sanções para os responsáveis da eventual violação de direitos. Nos países vizinhos, como o Brasil, é conhecida a Ação Popular; no entanto, é algo novo na Bolívia. A Ação Popular é uma ação constitucional, similar ao recurso de amparo. Sua utilidade dependerá da compreensão de sua importância, utilidade e oportunidade. Direitos, meio ambiente e nova constituição na Bolívia

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A Ação Popular foi concebida para que proceda contra todo ato ou omissão das autoridades ou das pessoas individuais ou coletivas que violem ou ameacem violar direitos e interesses coletivos. Os danos ambientais demonstraram que o prejuízo ambiental não é individual, mas coletivo. No plano formal isto é um avanço, mas ainda nos falta percorrer o caminho da comprovação e da prática, e da análise comparativa com a experiência de países que já contam com este recurso e os resultados que tiverem alcançado.

Novos marcos institucionais Uma nova instância de justiça é a Jurisdição Agroambiental, um tribunal que agora poderá acolher ações por danos ambientais, florestais e outros desta matéria. Esta instância de administração de justiça (que ampliou as competências do antigo Tribunal Agrário) é uma resposta às reivindicações da sociedade por uma instância de justiça especializada, mas consideramos que ela vai encontrar vários problemas. Primeiramente, apenas foram ampliadas as competências da entidade que conhecia casos de conflitos de propriedades agrárias. Em segundo lugar, devido ao fato de que iniciar um litígio sobre danos ambientais não é tarefa simples e é ainda muito recente na Bolívia – e a vigência de outros meios de justiça sempre foi um obstáculo aos meios probatórios, um elemento fundamental na demanda de justiça –, requereremos a participação de fiscais especialistas (não simplesmente processualistas), a participação e a identificação das vítimas do dano ambiental e a análise do próprio dano para a determinação da responsabilidade penal, civil e administrativa. A conjunção de elementos jurídicos e técnicos deverá ser bem estabelecida e acessível para quem recorrer a estes novos tribunais. Em outro capítulo da nova Constituição se introduziu um capítulo sobre as relações internacionais, no qual se declara expressamente que toda consideração de assinatura de tratados que empreenda o Estado deverá verificar que se respeitem os fins do Estado e da soberania nacional. A assinatura de qualquer tipo de tratado deverá zelar, por exemplo: • Pela defesa e a promoção dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais e ambientais, com repúdio a toda forma de racismo e discriminação; • Respeito aos direitos dos povos indígenas originários camponeses; 60

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• Harmonia com a natureza, defesa da biodiversidade, proibição de toda forma de apropriação de elementos vivos da natureza. Nestes novos princípios das relações internacionais da Bolívia com o mundo, encontramos um princípio revolucionário: • “Segurança e soberania alimentares para toda a população”. Ressaltamos o conceito de soberania alimentar, que como princípio obriga o Estado a evitar acordos internacionais que possam colocar em risco as políticas agrárias e produtivas nacionais e o direito à alimentação natural, nativa e nutritiva. Um segundo principio revolucionário, nesta matéria, é: • A proibição de importação, produção e comercialização de organismos geneticamente modificados e elementos tóxicos que prejudiquem a saúde e o meio ambiente. Devemos recordar que, antes de outubro de 2008, o tema dos transgênicos, na proposta de constituição da Assembleia Constituinte, era proibido; no entanto, a negociação política interna que o governo nacional teve de fazer para permitir a implementação das mudanças estruturais permitiu a mudança da redação do artigo respectivo para uma regulação por Lei sobre transgênicos. Mas se a soberania alimentar, as políticas produtivas e alimentares estão agora em vigor como princípio de direito perante a comunidade internacional, consolidou-se a posição nacional inicial de “proibição dos transgênicos”. Isto terá, em algum momento, repercussões internacionais, pois entidades internacionais como a OMC não permitem este tipo de proibição nos países que a compõem, devido aos impactos no comércio regional. Será possível que tais entidades exerçam pressão no governo nacional para mudar este princípio soberano? Uma problemática em nível de política interna, durante a vigência da Assembleia Constituinte, e agora em sua implementação, são as competências dos novos níveis de governo: as autonomias regionais, departamentais, municipais e indígenas. Nestes níveis de governo se dividem as competências do Estado. Para o nível nacional, por exemplo, se estabeleceram como privativas, dentre outras, as políticas sobre terras e território, titulação, petróleo e gás, política de biodiversidade e meio ambiente, deixando as competências de fiscalização, controle e preservação para os demais níveis de governo. Direitos, meio ambiente e nova constituição na Bolívia

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Dentro da estrutura do Estado estão as empresas estatais, que recebem mandatos especiais sob a forma de objetivos, por exemplo, administrar “em nome do povo boliviano os direitos de propriedade dos recursos naturais” em geral e exercer o controle estratégico das cadeias produtivas e industriais. Foi estabelecido que os recursos naturais pertencem ao povo boliviano e são apenas administrados pelo Estado. A faculdade que se dá às empresas estatais só alcançará os legalmente concedidos para o seu aproveitamento. A faculdade administrativa sobre os recursos naturais estabelece claramente que o Estado é simples administrador e não poderá aliená-los, concedê-los em concessões perpétuas ou figuras similares. Na parte final do capítulo sobre meio ambiente, chama a atenção a ênfase à promoção da redução dos efeitos nocivos ao meio ambiente (não deveria ser promoção da prevenção?). Contudo, imediatamente se declara a “responsabilidade pelos danos ambientais históricos e a imprescritibilidade dos delitos ambientais”. Podemos chamar a atenção aqui para a primeira grande exceção à regra da retroatividade, muito comum em matéria trabalhista e penal. Com este mandato constitucional, não poderiam ser iniciadas investigações e ações penais sobre danos ambientais ocorridos em governos anteriores, mesmo que à época não tenham sido considerados delitos e reservando a possibilidade da prescrição das ações? Esta previsão nos leva a pensar em um possível processo de auditoria socioambiental similar ao acontecido no Equador. Em outra parte da Constituição, os recursos naturais não renováveis são declarados de interesse nacional, um requisito que faculta ao Estado adotar iniciativas de exploração e industrialização de recursos para as políticas de desenvolvimento nacional, mas isto não o exime de buscar outras formas de empreendimento para o desenvolvimento e a satisfação das necessidades energéticas. Ante este último critério, fica a dúvida sobre se este interesse nacional declarado a respeito dos recursos naturais não renováveis respeitará o interesse de desenvolvimento próprio dos povos indígenas em seu território, no qual sempre se instalam as grandes indústrias extrativistas e de infraestruturas altamente contaminadoras e degradadoras. Outros elementos inovadores, como a regulação sobre o patrimônio genético da Bolívia, são interessantes, considerando que os países amazônicos ainda são objeto de biopirataria. Eles exigirão uma 62

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política especial de proteção, tendo em conta que processos de registro a modo de patente ou propriedade intelectual do patrimônio da biodiversidade podem resultar mais perigosos que benéficos. Este é um desafio complexo. A Amazônia boliviana conta com um capítulo próprio, que lhe dá um nível de importância necessário para a nova visão inclusiva do Estado. Estes são alguns dos novos desafios para organizações e movimentos sociais e ambientais. Agora, com este novo instrumento normativo, cabe a nós, novos atores, ter novas visões de país, novos direitos, mudar a regra segundo a qual “todo processo de desenvolvimento causa impacto ambiental, portanto, constante violação de direitos humanos”19.

O QUE ESPERAMOS DESTE NOVO ESTADO? Com as novas disposições constitucionais, esperamos que se consiga reverter a regra de que os grupos humanos vulneráveis suportem as cargas desproporcionais dos impactos ambientais resultantes de políticas de desenvolvimento depredadoras. O novo Estado se mostra disposto a mudar, e fica como responsabilidade da sociedade fazer o controle social e participar deste processo para que as boas intenções se convertam em boas ações. Ao rever alguns aspectos da nova Constituição, temos a oportunidade de dar início a um trabalho árduo de plasmar esse “dever ser” da Constituição nas leis especiais que as tornarão possíveis para o próprio Estado e para nós mesmos. O novo Estado traçou uma meta: constituir uma sociedade descolonizada e sem discriminação. Descolonizada de políticas externas e impostas, de receitas desenvolvimentistas que desconsideram nossas necessidades, reivindicações, conhecimentos, saberes e soluções próprias. Acreditamos que se implantou uma visão endógena do desenvolvimento nacional, com respeito, dignidade e pluralismo. Agora começa a verdadeira tarefa de todos nós, agora cabe a nós demonstrar quão consequentes somos.

19 Tese ETL-FOBOMADE. Direitos, meio ambiente e nova constituição na Bolívia

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O SISTEMA MEXICANO DE TRANSPARÊNCIA E ACESSO À INFORMAÇÃO PÚBLICA GOVERNAMENTAL Ernesto Isunza-Vera


Texto elaborado para o Seminário regional “Sociedade civil e as novas institucionalidades democráticas na América Latina: dilemas e perspectivas”, Brasília, 9-12 de novembro de 2008. Agradeço os comentários críticos e correções de Luciana Tatagiba (Unicamp), e dos organizadores do Seminário.

Ernesto Isunza-Vera. CIESAS e IFCH-Unicamp.


O observador interessado em temas de prestação de contas (accountability) e transparência e acesso à informação que chega ao Brasil fica impactado pela numerosa e heterogênea quantidade de experiências nas quais a sociedade se encontra com o Estado em tarefas próprias da gestão dos assuntos públicos. A participação cidadã no Orçamento Participativo e nos Conselhos Gestores de políticas públicas é não só um tema obrigatório na literatura internacional, mas também um enorme acúmulo de experiências de aprofundamento da democracia. Por isso, assombra ainda mais a grande quantidade de tempo e esforço que os cidadãos organizados ou os representantes nos Conselhos investem em ações para conseguir dados sobre o orçamento, o conteúdo de planos de políticas, os recursos orçamentários concretos a serem aplicados em uma localidade ou o destino dos recursos públicos repassados aos prestadores de serviços contratados pelo governo. Parece que a transparência está mais pensada no Brasil como referida somente à luta contra a corrupção (o que não é pouca coisa) e não como o melhoramento de ferramentas para a democratização do Estado e a vida pública em geral. E aquele observador imagina os usos potenciais que teria um sistema de transparência e acesso à informação no Brasil que poderia se articular com os dispositivos já existentes de prestação de contas, fornecendo informações tanto aos atores da sociedade civil como também às instituições estatais (como, por exemplo, o Ministério Público ou as Comissões Parlamentares de Inquérito) encarregadas do controle interno ou externo de outras instituições estatais. Nessa perspectiva, o presente texto se dirige a expor as principais características do sistema mexicano de transparência e acesso à informação pública governamental, o que inclui o sistema normativo, as instituições, os dispositivos e procedimentos criados a princípio no nível federal para proteger o direito de acesso à informação desde o ano de 2002. A primeira parte desenvolve sucintamente os principais fatos que explicam a materialização deste sistema no momento da alternância na Presidência da República, depois das eleições federais de julho de 2000. Ao longo da segunda seção descreve os atores e instituições que fazem parte do sistema de transparência a partir da lei federal da matéria, para contar assim com uma visão geral dos acertos e limitações das escolhas mexicanas acerca do tema. Ao final, aborda alguns dilemas da experiência visando olhá-la criticamente em comO sistema mexicano de transparência e acesso à informação pública governamental

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paração com outras realidades, desde uma perspectiva de ensinamentos a partir de seus erros e acertos.

O contexto Na atualidade, o reconhecimento do direito à informação no México implica quatro garantias que, no conhecimento do sentido comum, incluem-se na noção de “transparência”: falamos do (1) acesso à informação pública a pedido da parte, (2) acesso à informação pública de ofício (o que se entende precisamente como “transparência”), (3) proteção de dados pessoais, e (4) a existência de arquivos públicos (Villanueva, 2006, p. 71). Mas o caminho percorrido até chegar a esse ponto é muito longo. Em dezembro de 1977, como parte da chamada “reforma política” durante a presidência de José López Portillo, a Constituição mexicana (de 1917, ainda vigente) foi modificada no artigo 6º, reconhecendo que “o direito à informação será garantido pelo Estado”. Mas seriam necessários trinta anos e inúmeras lutas para chegar a uma nova redação, na qual esse direito fosse traduzido em princípios gerais que permitissem sua implementação nos níveis federal e estadual. Em abril de 2002, a Câmara de Deputados aprovou por unanimidade a Lei Federal de Transparência e Acesso à Informação Pública Governamental (LAI), iniciando20, na verdade, o processo de institucionalização do reconhecimento deste direito (Alonso, 2007, pp. 12-20). O fator-chave que explica a possibilidade da inovação legal de 2002 é a alternância na Presidência da República, pela primeira vez em 71 anos, e a configuração plural da equipe de transição (e depois, de governo) do presidente Vicente Fox, a partir da demanda de um grupo tecnicamente sólido e influente de atores da sociedade civil. Assim, durante o ano de 2001 se desenvolveram principalmente duas propostas de lei muito próximas: uma dentro do governo (na chamada Cofemer: Comissão Federal de Melhora Regularizadora21) e

20 Um pouco antes, em dezembro de 2001, no estado de Jalisco foi aprovada a primeira lei deste tipo (Alonso, 2007, p. 19). 21 A Cofemer é um departamento do Executivo federal (que faz parte do Ministério de Economia) e tem a meta de elaborar estudos do impacto de novas leis e regramentos, promover a simplicidade dos trâmites, receber as propostas de melhora das normas e manter um inventário de todas as normas de ordem federal (cf. http:// www.cofemer.gob.mx). 68

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outra feita por uma coalizão de especialistas acadêmicos, meios de comunicação e organizações civis, conhecida como “Grupo Oaxaca”. A proposta de lei do Grupo Oaxaca conseguiu o apoio dos grupos parlamentares de todos os partidos políticos, exceto do Partido Acción Nacional (PAN), o partido do presidente Fox. Assim, a Câmara dos Deputados recebeu a iniciativa do governo Fox, ficando com duas propostas com redação em forma de lei muito desenvolvidas. A coordenação da Câmara resolveu nomear uma comissão técnica com especialistas no tema da Cofemer e do Grupo Oaxaca para negociar um texto de consenso. Isso foi feito e o texto da lei ficou pronto para sua aprovação por unanimidade na Câmara dos Deputados federal (Escobedo, 2003; López-Ayllón, 2004)22. O resultado foi a LAI que marcou um divisor de águas no tema23. Por razão do equilíbrio de forças nacional, a LAI só regularia o direito à informação pública governamental no nível federal, deixando por resolver a tarefa de inovação legal nos níveis estadual e municipal a cada uma das legislaturas dos 31 estados da República e o Distrito Federal. Assim, o resultado foi um conjunto de dezenas de leis muito heterogêneas e uma lei federal que iriam conviver ao longo dos anos seguintes. Essa debilidade estrutural do sistema está a caminho de ser resolvida com o processo que foi apontado acima: as mudanças constitucionais de julho de 2007, pelas quais se estabeleceram sete princípios para a proteção desse direito nos três níveis da República (Federação, estados e municípios). O primeiro dispõe que toda a informação em poder dos atores estatais é pública e que as restrições a esta serão exceção, primando pelo princípio de máxima publicidade. Também se reconhece a proteção dos dados pessoais e a gratuidade do acesso a eles e à informação pública, para o qual o cidadão não precisa demonstrar interesse específico ou justificar a sua utilização. Em quarto lugar a reforma constitucional providencia a existência de mecanismos ágeis e procedimentos de revisão das negativas governamentais;

22 O interessante processo de criação da LAI pode ser reconstruído desde as duas visões dos principais atores envolvidos através da leitura de Escobedo, 2003, e LópezAyllón, 2004. 23 Em seus primeiros parágrafos, a LAI define que a transparência e o acesso à informação pública governamental têm como finalidade “favorecer a prestação de contas aos cidadãos, de forma que possam avaliar o desempenho dos sujeitos obrigados” e “contribuir com a democratização da sociedade mexicana e a completa vigência do estado de direito” (México, 2002, artigo 4º). O sistema mexicano de transparência e acesso à informação pública governamental

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isso é a tarefa de um órgão especializado que deve ser imparcial e autônomo. A reforma prescreve que os “sujeitos obrigados” precisam ter arquivos administrativos em que ficarão seus documentos, mas também publicadas eletronicamente seus indicadores de gestão e os dados do exercício dos recursos públicos. Em sexto lugar, devem se publicar as informações sobre os recursos públicos repassados pelos órgãos estatais às pessoas físicas ou jurídicas. Finalmente, se estabelece a necessidade de sanção aos funcionários públicos que não cumprirem as obrigações de proteção do direito à informação pública (México, 2007; Carbonell, 2007b, pp. 6-20)24. Em resumo, assistimos hoje a um processo de convergência das leis e instituições na Federação e nos estados, mas o procedimento é muito recente e só vai fechar seu ciclo de implementação em julho de 2009. Aliás, pode resultar útil conhecer as principais características do sistema federal como referência do que acontece (e vai acontecer) nos níveis estadual e municipal.

A lógica do sistema federal de acesso à informação pública Devido à enorme diversidade das experiências ocorridas nos últimos anos nos estados da Federação, e o reduzido espaço deste texto, vamos expor apenas as características básicas do sistema federal de acesso à informação. Isso também se justifica pelo fato de ser o sistema mais desenvolvido com continuidade até agora e também o mais estudado, o que nos servirá para ter uma referência de outras trilhas institucionais percorridas em alguns estados da Federação (Ackerman, 2007; Alonso, 2007; Villanueva, 2003). Em primeiro lugar, a lei federal de transparência e acesso à informação pública governamental (LAI) define que toda a informação produzida pelas instituições do Estado federal é pública, exceto aquelas que forem definidas como reservadas ou confidenciais. Nesse

24 É necessário esclarecer que nos artigos transitórios da reforma constitucional de 20 de julho de 2007 se estabelece que as 32 entidades federais (31 estados e o Distrito Federal) devem se adequar à nova lei um ano depois da vigência da reforma (21 de julho de 2008), e contar com um sistema eletrônico de acesso à informação dois anos depois (julho de 2009). Este último também é obrigatório no caso dos municípios com mais de 70 mil moradores e nas “delegaciones” (subprefeituras) do Distrito Federal. 70

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caso, os documentos têm um período determinado sem publicidade, tendo que ser registrados em um índice, revisado a cada seis meses, e devem estar disponíveis para sua revisão por parte do organismo que protege o direito à informação pública governamental, o IFAI (Instituto Federal de Acesso à Informação Pública). Antes de descrever o IFAI, cabe esclarecer os alcances do conceito de “transparência” no sistema mexicano. A LAI define as informações fixas e permanentes publicadas pelos sujeitos obrigados25 (todos os órgãos do governo federal), além das informações que devem ser entregues aos cidadãos que realizem seu requerimento. Assim, as dezessete “obrigações de transparência” são: estrutura orgânica; faculdades; diretório; remuneração mensal (que inclui todas as percepções e prestações reconhecidas além do salário); “unidade de enlace”26 (que age como interlocutor da cidadania para receber as solicitações de informação); metas e objetivos; serviços; trâmites, requisitos e formatos; orçamento (designado e exercido); auditorias; programas de subsídios; concessões (licenças e autorizações); contratações; marco normativo; informes; participação cidadã (canais para a participação nos órgãos públicos, onde isso seja previsto); outra informação relevante27 (México, 2002, artigo 8º). Toda essa informação deve ser acessível em uma parte do site de internet de cada órgão do Estado federal intitulado “Portal de obrigações de transparência”. Tanto a qualidade dessa informação como as respostas às solicitações dos cidadãos são avaliadas pelo IFAI de maneira permanente, o que se traduz em uma qualificação de cumprimento dessas obrigações em cada instância estatal. Além disso, a LAI também define como obrigações de transparência: as sentenças do Poder Judiciário; os projetos de lei ou as medidas administrativas propostas pelos órgãos estatais; o uso dos recursos públicos feito pelos partidos políticos; o destino dos recursos

25 Na legislação mexicana se fala de “sujetos obligados” no sentido da obrigação que têm esses órgãos estatais de subsidiar os cidadãos com informação em sua posse. Por isso, vamos falar de “sujeitos obrigados” em português. 26 “Unidade de enlace” é um escritório de cada órgão dos sujeitos obrigados (ministérios, secretarias, institutos etc.) encarregado de relacionar o órgão com a cidadania que precisa de informação. Geralmente, a “unidade de enlace” está formada por um grupo pequeno de funcionários do arquivo ou da parte central da administração, que receberam treinamento sobre os mecanismos e prazos da LAI. 27 Nesse rótulo de “outra informação relevante” podem ser encontrados, por exemplo, os textos completos das respostas às solicitações de informação de cada órgão, o índice de expedientes reservados ou o caminho para a consulta dos dados pessoais. O sistema mexicano de transparência e acesso à informação pública governamental

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públicos entregue a particulares e os informes elaborados por eles quanto ao seu uso. Toda a informação também deverá ser acessível pelo meio eletrônico remoto (Internet) ou em dispositivo dos próprios órgãos estatais, embora, como se verá mais adiante, a enorme maioria das solicitações seja atualmente feita pelo meio eletrônico (México, 2002, artigos 8-12). Desta maneira, uma quantidade determinada de informação fica disponível ao conhecimento do cidadão, mesmo que ninguém a solicite. Mas havendo necessidade de outro documento ou conjunto de dados dos “sujeitos obrigados”, os cidadãos devem dirigir seus requerimentos através de duas opções: seja pela “Unidade de enlace” que existe compulsoriamente em cada órgão federal ou por meio do sistema de dados geral chamado de SISI (Sistema de Solicitude de Informação à Administração Pública Federal)28, o qual pode ser utilizado pela Internet e, como nos requerimentos pessoais elaborados nas Unidades de enlace, os peticionários não precisam demonstrar interesse algum ou mesmo se identificar. Olhado desde dentro das instituições, o mecanismo de acesso à informação pública governamental tem três pontos básicos: primeiro, a já descrita Unidade de enlace, a face da instituição frente à cidadania (que recebe os requerimentos de informação); segundo, o Comitê de informação, que é constituído por funcionários designados pela máxima autoridade do órgão estatal (o qual elabora as diretrizes internas, organiza as solicitações e as respostas); e, terceiro, o Arquivo administrativo (normalmente dividido em fundos históricos e “vivos”). Essas três partes da instituição (Unidade de enlace, Comitê de informação e Arquivo administrativo) devem trabalhar articuladamente entre elas e com as diferentes seções do órgão que geram o documento procurado, desde o momento em que se recebe uma petição de acesso à informação. Como existem prazos determinados para a elaboração de uma resposta ao cidadão solicitante, a LAI tem contribuído para mudar hábitos e procedimentos, em alguns escritórios da administração federal, para fazer frente às obrigações de transparência e acesso à informação29. 28 No site de Internet do SISI, além de realizar as petições de informação, pode-se consultar o texto completo das resoluções do IFAI e todas as solicitações e respostas feitas até o momento da consulta pelos mais de 250 órgãos federais. 29 Sem dúvida, algumas das principais mudanças aconteceram na cultura patrimonialista e baseada no segredo dos funcionários do Estado autoritário mexicano, a qual faz parte de um sistema corrupto e antidemocrático. 72

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Voltando para o IFAI, ele pode ser entendido como portador de uma dupla face de ombudsman da informação e tribunal administrativo. Foi definido como um “Organismo descentralizado não setorizado”30 que tem sua máxima instância de decisão em um Pleno de cinco comissionados nomeados pelo Presidente da República31; uma vez nomeados, os Comissionados têm alguma proteção contra afastamento “político”. Seu mandato é de sete anos e o Pleno de comissionados designa por maioria entre seus membros aquele que por dois anos o exercerá como Comissionado presidente. O IFAI tem um corpo de funcionários que trabalha dirigido pelas decisões do Pleno de comissionados. As funções do Instituto são: garantir o direito à informação pública governamental, proteger os dados pessoais e resolver negativas das dependências32 do governo federal às petições de informação da cidadania. Revisando as características do IFAI 33 e sua história recente, Ackerman (2007, pp. 37-45) destaca como acertos o caráter coletivo da sua máxima instância deliberativa (o Pleno dos comissionados) e a publicidade das suas sessões; no sentido contrário, dois pontos fracos são a falta de independência plena de alguns dos Comissionados34 – que pode limitar as decisões sobre o alcance da abertura e os 30 Isso significa, no contexto da administração pública mexicana, que o IFAI não é um organismo autônomo constitucional, como são o Ombudsman ou o Instituto Federal Eleitoral (ou o Ministério Público no Brasil). Pela LAI, o IFAI é um órgão que faz parte do poder Executivo, mas não de um ministério, e conta com uma relativa autonomia política e de gestão. 31 O Senado da República tem o poder de vetar uma proposta de Comissionado, mas a falta de clareza na lei deixa esta faculdade em situação de fraqueza caso o Presidente insista em propor e nomear alguma pessoa que não tiver a confiança do Senado. 32 Lembre-se que os sujeitos obrigados (através de suas Unidades de enlace) podem responder aos cidadãos no sentido de negar o acesso à informação baseado nas exceções marcadas na lei. Aliás, frente a uma “negativa de acesso”, o cidadão pode apelar ante o IFAI para que resolva em última instância se a informação solicitada deve ou não ser entregue ao cidadão peticionário. 33 Por outro lado, instituições estatais enfocadas em ações de controle de outros órgãos do Estado e que não respondem à lógica de prestação de contas via o voto (o princípio da autorização e controle dos cidadãos pelo voto), precisam basear sua legitimidade tanto na publicidade de seus atos quanto em uma relação especialmente densa com a sociedade (Ackerman, 2007, pp. 11-13). 34 Especialmente Ackerman fala do papel do atual Comissionado presidente do IFAI, Alonso Lujambio, um reconhecido intelectual próximo ao presidente Felipe Calderón e seu Partido Acción Nacional (PAN). Aliás, a nomeação de Lujambio não rompe com nenhuma regra da LAI; no Pleno do IFAI se debateu uma proposta de que os Comissionados não participassem de decisões nas quais representassem um conflito de interesse. Entretanto, em 22 de novembro de 2006 foi recusada essa proposta em uma votação dividida em três (incluído Lujambio) contra dois (Ackerman, 2007, p. 39). O sistema mexicano de transparência e acesso à informação pública governamental

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limites da publicidade em assuntos ou órgãos do Estado por motivos políticos – e, acima de tudo, a falta de uma real estrutura de funcionários públicos dentro do IFAI35. Uma característica do sistema mexicano é a possibilidade de que os cidadãos possam pedir um recurso de revisão ante a negativa dos órgãos federais à informação solicitada. Neste caso, é o IFAI que age como última instância, ditando uma resolução definitiva e obrigatória sobre a razão e o alcance da petição de informação. Como já foi dito, existe no sistema mexicano o princípio de “prova de dano” pelo qual o órgão governamental fica obrigado a demonstrar o dano que faria a divulgação da informação nos termos definidos na lei como segurança nacional e segurança pública, informações pessoais ou aquelas que ponham em risco trâmites em processo36. Finalmente, os Comissionados do IFAI devem atuar no sentido de proteger o interesse dos cidadãos que encaminharem uma queixa através das ferramentas de “suplencia de la queja” e “facultad de investigación”. Estas ferramentas permitem que os Comissionados levem suas ações além da literalidade das petições dos cidadãos, buscando suprir as deficiências ou limitações na formulação original, complementando os dados ou promovendo entrevistas para decidir como melhor encaminhar as solicitações de informação e as obrigações dos funcionários públicos. Uma visão esquemática do sistema descrito acima aparece no Quadro 1: nele aparecem os três atores básicos do sistema, que são os cidadãos, as dependências (sujeitos obrigados) e o IFAI.

35 Essa fraqueza do IFAI não é exceção, infelizmente, mas a regra no Estado mexicano: a universalização dos concursos para ingresso no serviço público, para permanência, promoção ou saída, é um fenômeno muito restrito na administração pública mexicana. 36 Na verdade este “regra” de publicar uma informação pelo princípio de máxima publicidade levando em conta as ideias da “prova do dano” e “prova do interesse público” é parte do sistema mexicano, mas não por sua inclusão nas normas. É uma interpretação que os Comissionados do IFAI têm construído ao longo de várias resoluções no mesmo sentido, também baseados em uma parte do Regramento da LAI (Ackerman, 2007, pp. 22-26). 74

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Como foi dito acima, este sistema é válido apenas para o nível federal do Estado mexicano. Em paralelo, a partir do ano de 2001 os estados da Federação fizeram suas próprias leis de transparência e acesso à informação pública acumulando uma enorme quantidade de experiências nem sempre melhores que a recentemente descrita. As principais contradições nas legislações estaduais estão relacionadas com os requisitos para as solicitações de informação, os conceitos de informação confidencial e reservada, os tempos de resposta às solicitações, os custos de reprodução dos documentos públicos, os caminhos legais e administrativos a percorrer no exercício do direito e, muito destacadamente, o perfil das autoridades encarregadas da proteção do direito (Carbonell, 2007b, p. 3). Assim, a partir da convergência dos esforços do IFAI, governadores de alguns estados, grupos políticos e organizações civis, materializou-se a reforma constitucional de 2007 exposta acima. A reforma das leis estaduais e a implementação dos sistemas eletrônicos de acesso à informação, como foi dito, devem se realizar no prazo de um ano e dois anos, respectivamente. Por isso, é ainda cedo para realizar uma avaliação baseada em dados consistentes sobre o impacto da reforma nas realidades regionais e locais. Além disso, baseado nos dados de quase seis anos de exercício do direito no nível federal, pode se afirmar que estamos falando de uma nova área de ação social e transformação das relações sociedade-Estado no México.

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Segundo as estatísticas oficiais do IFAI, no período 2003-200837 foram recebidas 344.690 solicitações de informação (das quais 96% pela via eletrônica)38. No mesmo período, os órgãos do Estado ao nível federal elaboraram 302.753 respostas (96,26% delas foram pelo meio eletrônico). E, por outro lado, das respostas recebidas pelos cidadãos solicitantes surgiram 17.355 recursos de revisão ao IFAI. Embora as estatísticas do IFAI sobre acessos aos sítios eletrônicos de transparência de todas as dependências do governo federal só abranjam os anos de 2007 e 2008, é impressionante as cifras de seu uso: 4.966.619 acessos no ano de 2007 e 10.925.616 até o final de setembro do ano de 2008 (cf. site do IFAI)39.

Dilemas do sistema mexicano: possíveis ensinamentos para outras experiências Além das críticas que se podem (e se devem) fazer à experiência mexicana de acesso à informação pública governamental, não tenho dúvida de que os avanços logrados em um prazo muito curto são um patrimônio que merece se valorizar adequadamente. Há apenas seis anos o tema fazia parte unicamente da agenda de algumas mídias, e poucos acadêmicos, políticos e ONGs especializadas. Agora, o debate sobre o acesso à informação é central nas disputas políticas e sociais do país todo: com a reforma constitucional e as mudanças legais e organizativas nos estados e municípios com mais de 30 mil pessoas, agora também o tema se materializa como eixo transversal da administração pública e as relações sociedade-Estado. Só para exemplificar, em um período muito pequeno, informações antes completamente obscuras e zelosamente guardadas no fundo do aparelho estatal, como a gestão das finanças, a atribuição de ­contratos

37 Dados atualizados no final de setembro de 2008. 38 Isso significa que quase 350 mil pessoas solicitaram alguma informação a um dos mais de 250 órgãos do Estado ao nível federal, e a imensa maioria delas utilizou o caminho do sistema eletrônico SISI e não as solicitações em cartas entregas nas Unidades de enlace dos órgãos. 39 Outra cifra interessante é que no período 2003-2008, 30.863 solicitações foram “concluídas” (o que significa que não foram encaminhadas) pela razão de que o solicitante não respondeu ao requerimento de informação adicional encaminhada pela Unidade de enlace do órgão do Estado para a elaboração da resposta (89,34% das 30.863) ou pela falta de pagamento pelo cidadão solicitante do custo de reprodução da informação (10,65%) (cf. site do IFAI). 76

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ou a remuneração dos funcionários, começam a fazer parte do conhecimento público e cotidiano (Carbonell, 2007a, p. 68). Buscando realizar uma reflexão sobre os vetos e oportunidades para a vigência plena do direito a conhecer o que acontece no Estado, defino os seguintes dilemas existentes dentro do sistema nacional de transparência e acesso à informação pública governamental: a. Nível de implementação da lei de transparência e acesso à informação. Há seis anos, os legisladores escolheram elaborar uma lei que desenvolveu instituições, caminhos, relações, dispositivos só no âmbito federal; hoje acontece uma “segunda geração” de inovações baseadas na reforma constitucional do artigo 6º, mas com uma grande quantidade de experiências estaduais e municipais prévias. Na experiência mexicana esta separação de reconhecimento do direito e implementação diferenciada gerou contradições e atrasos em alguns estados federais onde a demanda pela transparência e o acesso à informação não tinha alcançado a suficiente força política. b. Tipo de instituição protetora do direito ao acesso à informação. No nível federal, o México tem exemplos de instituições autônomas (ainda com autonomia reconhecida no texto constitucional) em outros campos (eleições, Ombudsman) ou no mesmo campo, mas na escala estadual. Sem dúvida o tema da autonomia não resolve sozinho os problemas que surgem da relação controle / prestação de contas. Mas o risco de deixar vazia de poder a instituição ou tornar irrelevante seu uso pelos cidadãos obriga a repensar se este tipo de instituição não deveria contar com uma proteção e independência dos outros poderes do Estado. c. Abrangência das obrigações dos poderes do Estado. O desenho normativo de 2002 deixou definido claramente o funcionamento do sistema de transparência e acesso à informação somente no poder Executivo. O Legislativo e o Judiciário (assim como as outras instituições autônomas como, por exemplo, o IFE ou a Comissão Nacional dos Direitos Humanos – o Ombudsman) ficaram com o dever de autorregulação, o que (como no tema da escala da implementação) se traduziu em diversas experiências claramente contrárias ao exercício do direito referido. Na maior parte de nossas experiências seria muito importante para o aprofundamento da democracia e ampliação do estado de direito que o Judiciário e o Legislativo tivessem a obrigação sistemática de ser transparentes e respeitar o acesso à informação. O sistema mexicano de transparência e acesso à informação pública governamental

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d. Desenvolvimento integral do marco normativo. Além do reconhecimento real do direito à transparência e ao acesso à informação na sua respectiva lei, ainda resta desenvolver três áreas fundamentais para a sua proteção no país: uma lei de arquivos, uma lei de proteção de dados pessoais, e a regulação do direito à privacidade (Carbonell, 2007a). Olhando para a história da LAI e os avanços logrados até agora, é necessário nas áreas ainda não desenvolvidas (arquivos, dados pessoais, privacidade) articular o reconhecimento conceitual com um novo marco jurídico, um movimento social de demanda e os respectivos dispositivos institucionais. e. Construir o direito ao acesso à informação e à transparência desde a perspectiva da sociedade. Desde a minha visão, sem a transparência da função pública a possibilidade de controle social é muito pequena. Revisando algumas experiências de participação cidadã em dispositivos de cogestão de políticas públicas, resulta impactante a quantidade de tempo investido pelos representantes sociais em conseguir informações básicas do desempenho estatal. Em uma visão geral de um sistema de prestação de contas (accountability), o agir das agências de controle intraestatal é fundamental, assim como sua possível articulação com as ações de controle social; nesta perspectiva, as obrigações de transparência e a possibilidade estabelecida de acesso à informação poupa tempo e esforços que bem poderiam se dirigir a outras atividades mais substanciais40.

40 Visto desde a perspectiva do Estado, este movimento pela abertura à sociedade se traduz em outros efeitos positivos: a profissionalização das ações cotidianas do Estado e construção da memória das instituições. Isso pode abrir a possibilidade de sistematização e tematização das experiências cotidianas da cidadania no contato com o Estado. 78

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Políticas de participação e novas institucionalidades democráticas no contexto brasileiro recente Ana Claudia C. Teixeira, José Antonio Moroni e Vanessa Marx



Apresentação Este texto tem por objetivo apresentar um breve histórico de como as políticas de participação têm se desenvolvido no contexto brasileiro desde a Constituição de 1988, com destaque para os conselhos nacionais de políticas públicas e as conferências. Além disso, busca apontar outras políticas criadas no âmbito local, como o Orçamento Participativo. Além de destacar a trajetória dos canais implementados para a participação da cidadania, o texto faz um balanço crítico sobre eles, apontando, entre outros temas, o desafio da relação entre a democracia participativa e a democracia representativa. As trajetórias das políticas de participação no contexto brasileiro nos indicam alguns desafios da institucionalização da participação e da sua assimilação pela sociedade brasileira. As tensões e resistências das elites no poder com relação aos canais e instrumentos de participação cidadã nos levam a pensar na necessidade de aprofundamento desses canais e de criação de novas institucionalidades, a fim de que as aspirações previstas em leis sejam realmente concretizadas e a prática da participação cidadã seja incorporada tanto por aqueles que lutam por incidir nas políticas públicas, quanto por aqueles que são chamados a representar o povo nas instituições de Estado, bem como pelo conjunto da sociedade.

A participação cidadã na Constituição Federal de 1988 No final da década de 1970 e início dos anos 1980, o chamado “campo democrático popular”41 retomou a questão da democratização do Estado, debatendo a seguinte questão: Quais mecanismos são necessários para democratizar o Estado e torná-lo de fato público? Na formulação desta questão estava embutida a avaliação de que a democracia representativa – via partidos e processo eleitoral – não era suficiente para responder às complexas necessidades da sociedade 41 Entendemos por “campo democrático popular” o conjunto de movimentos sociais, ONGs e profissionais que desenvolveram um conjunto de ações da sociedade civil, com características, filosofias e concepções próximas e tiveram como agenda política a construção do Estado Democrático e Social e o combate a todas as formas de desigualdades. Políticas de participação e novas institucionalidades democráticas no contexto brasileiro recente

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moderna e da multiplicidade dos sujeitos políticos. Era necessário criar outros mecanismos de participação que permitissem fazer a expressão política desta multiplicidade emergir na esfera pública e, ao mesmo tempo, influenciar as decisões políticas. Isso significava criar estratégias e propostas para além da garantia e efetivação de direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, permitindo e assegurando a participação popular efetiva nas políticas públicas e em todas as decisões de interesse público. Portanto, tornar a participação também um direito humano fundamental, fundante e estruturante dos demais direitos. O amplo movimento de participação popular na Constituinte, que elaborou emendas populares à Constituição e coletou subscrições em todo o país, marca este momento de inflexão e uma nova fase dos movimentos sociais, já no final dos anos 1980. Momento em que as experiências da “fase” anterior, predominantemente reivindicativa, de ação direta ou “de rua”, são sistematizadas e traduzidas em propostas políticas mais elaboradas e levadas aos canais institucionais conquistados. “Na luta fazemos a lei” era o slogan de muitos candidatos do campo democrático-popular ao Congresso Constituinte, revelando seu caráter de espaço de afirmação das mobilizações sociais no plano dos direitos instituídos. A emergência desses chamados “novos movimentos sociais”, que se caracterizou pela conquista do direito a ter direitos, do direito a participar da redefinição dos direitos e da gestão da sociedade, culminou com o reconhecimento, na Constituição de 1988, em seu artigo 1°, de que “Todo poder emana do povo, que o exerce indiretamente, através de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Esta “Constituição cidadã”42 prevê a participação direta dos cidadãos através dos chamados institutos de democracia direta ou semidireta como o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular de lei, as tribunas populares, os conselhos e outros canais institucionais de participação popular43. A criação destes instrumentos de democracia direta e participativa visava a uma alternativa à democracia representativa, sem excluí-la, por meio do aumento da transparência e da participação popular. O

42 Assim foi chamada a nova Constituição por Ulysses Guimarães, presidente do Congresso Constituinte. 43 Maria Vitória Benevides, A cidadania ativa. São Paulo: Ática, 1991. 84

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principal objetivo desses instrumentos era concretizar o acúmulo de demandas e lutas dos movimentos sociais construídas ao longo de décadas, pela garantia de direitos, especialmente o direito de participar das decisões e definições de políticas e ações do Estado – papel antes reservado apenas aos governantes. O processo Constituinte foi um momento de inflexão, em que emergiram claramente, nas reivindicações dos movimentos sociais, a ideia de participação em um patamar diferente da participação entendida de forma ampla e genérica. A partir da Constituinte, e ao longo da década de 1990, tornou-se cada vez mais clara, para os movimentos sociais, a reivindicação de participar da redefinição dos direitos e da gestão da sociedade. Não reivindicavam apenas obter ou garantir direitos já definidos, mas ampliá-los e participar da definição e da gestão desses direitos, não apenas ser incluídos na sociedade, mas participar da definição do tipo de sociedade em que se querem incluídos, de participar da “invenção de uma nova sociedade”44. Culminam na Constituinte, e no reordenamento institucional que a ela se seguiu, diversas lutas que têm raízes na década de 1960. É exemplar, neste sentido, a luta pela Reforma Sanitária, aliando a ação dos profissionais da Saúde – os sanitaristas – aos emergentes movimentos populares e sindicais na área de saúde, que conseguem aprovar a Lei do SUS – Sistema Único de Saúde (em 1990), e instituir um sistema de cogestão e controle social tripartite (ou seja, composto de Estado, profissionais e usuários) das políticas de saúde, que se articula desde os conselhos gestores de equipamentos básicos de saúde até o Conselho Nacional, regido pela Conferência Nacional de Saúde. Destaca-se ainda que a luta pela Reforma Urbana consagra a função social da propriedade e da cidade em um capítulo inédito da Constituição sobre a questão urbana que prevê o planejamento e a gestão participativa das políticas urbanas e institui diversos espaços de cogestão das políticas urbanas nas esferas estaduais e municipais. Merecem também destaque, pela participação da sociedade organizada, pressionando e construindo espaços de cogestão, as áreas que envolvem políticas de defesa da criança e do adolescente e de assistência social. Por meio de novas leis como o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente (de 1990) – e a LOAS – Lei Orgânica da Assistência Social (de 1993) – estas políticas, marcadas tradicio44 Evelina Dagnino, Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania, em Os anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994. Políticas de participação e novas institucionalidades democráticas no contexto brasileiro recente

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nalmente pelo paternalismo e pelo clientelismo, são redefinidas de modo universal e democrático e submetidas ao controle social exercido por movimentos sociais e entidades profissionais. A construção destes e de inúmeros outros espaços de gestão participativa foi permeada pela construção de uma cultura participativa, que admite, reivindica e valoriza a participação direta e o controle social por parte dos usuários e outros segmentos interessados nas políticas públicas. A construção desta cultura participativa marca todo este período de forte mobilização social e é um processo contínuo de aprendizado que permeia os espaços participativos tanto autônomos da sociedade civil quanto de controle social junto ao Estado. Vale ressaltar que na política econômica não se criou nenhum mecanismo institucionalizado e público de participação, assim como não foi criado nenhum mecanismo participativo em arenas de decisão que definem as diretrizes do modelo de desenvolvimento brasileiro. A Constituição de 1988 apresentou grandes avanços com relação aos direitos sociais, apontando, claramente, para a construção de um Estado provedor da universalização dos direitos sociais. Entretanto, no que se refere à ordem econômica, ao sistema político (financiamento público exclusivo de campanha, democratização dos partidos, processos eleitorais transparentes, mecanismos que viabilizem a participação da mulher na política, possibilidade de cassação de mandato pela população etc.) e à democratização da informação e da comunicação, dimensões fundamentais para a construção de um Estado democrático, a Constituição de 1988 foi extremamente conservadora. Existe uma contradição entre esse processo e o momento histórico vivido internacionalmente, marcado pela ampliação e pelo fortalecimento das políticas neoliberais. No Brasil, ao mesmo tempo em que se elaborava uma Constituição que apontava para a construção dos direitos, do ponto de vista da política entrávamos na era neoliberal com a eleição de Fernando Collor de Mello para a Presidência da República. Aqui, é importante assinalar certa coincidência dos discursos com relação à descentralização e à participação. Os movimentos sociais afirmavam a descentralização no sentido do poder de decisão estar mais perto da população e não concentrado em “Brasília”, isto é, no município e não mais na União. Afirmavam ainda a participação das organizações da sociedade civil na definição das políticas, de forma autônoma e independente. A concepção neoliberal entendia a descentralização como estratégia de enfraquecimento do Estado (desregulamentação) e a participação como meio de repassar 86

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para a sociedade atribuições do Estado, sobretudo na área social. Esta contradição foi analisada por Dagnino (2002) como uma “confluência perversa” entre o projeto neoliberal e o projeto democratizante, participativo45. Uma das mais importantes forças sociais / políticas que atuaram na construção desse “modelo” de participação foi o chamado “campo democrático e popular”, cujo principal canal partidário era o Partido dos Trabalhadores (PT). Com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para presidente da República, em 2002, criou-se a expectativa de que o chamado “sistema descentralizado e participativo” fosse realmente efetivado. Esperava-se que os cidadãos e cidadãs do Brasil pudessem participar de modo ativo e cada vez mais das decisões públicas e que novos canais de participação fossem criados. O governo Lula tratou da questão da participação, tendo como olhar especial a criação e a reformulação de conselhos de políticas públicas nacionais, a realização de conferências nacionais e o processo participativo de debate do Plano Plurianual (PPA 2004-2007), ocorrido em 2003. A seguir, centramos a análise do sistema descentralizado e participativo, o que não quer dizer que não reconheçamos outras formas de participação e sua importância. Procuramos trazer alguns desafios para a construção da participação como um direito humano fundamental.

O sistema descentralizado e participativo Os movimentos e organizações sociais, junto com as esferas de poder sensíveis ao tema da participação, vêm ampliando os projetos políticos para além da participação institucionalizada pela Constituição Federal de 1988. É preciso dizer que, em nosso país, sempre ocorreram movimentos de resistência à dominação e à apropriação do espaço e dos bens públicos e do próprio Estado por interesses privados. Destacamos a seguir alguns instrumentos de participação institucionalizada em políticas públicas, tais como os Conselhos Gestores, as conferências, o Orçamento Participativo e os Planos Diretores Participativos.

45 Evelina Dagnino, Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2002. Políticas de participação e novas institucionalidades democráticas no contexto brasileiro recente

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Conselhos Gestores Nos últimos vinte anos, a conjugação entre a vontade política dos governantes e as forças da sociedade civil resultou na criação de muitos Conselhos Gestores de Políticas Públicas. Em geral, esses órgãos foram instituídos por decretos ou leis de iniciativa do poder Executivo. Alguns surgiram por obrigatoriedade prevista na legislação federal, como a LOAS, o ECA e o LOS, que definem diferentes competências para os estados e os municípios. Em muitos estados e municípios brasileiros, um grande número de Conselhos foram criados durante a década de 1990. Embora formados na mesma época, cada um dos Conselhos é resultado de um processo diferente de articulação entre as lutas sociais e a ação do governo. O caso da criação do CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – no ano de 1993 – desativado em 1995, e reativado em 2003) e da LOSAN (Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional – em 2006) é um exemplo mais recente de articulação de organizações da sociedade civil e governo que resultou na criação de um Conselho e na estruturação em curso de um sistema participativo descentralizado, inspirado nos modelos da LOS e LOAS. A lei que cria os Conselhos também define quem deles participa, havendo variações na sua composição, tanto no que se refere aos setores representados quanto à paridade e forma de eleição ou escolha destes representantes. Em geral, sua composição é orientada pelo princípio da paridade46. Este princípio está associado à ideia de que os Conselhos são espaços de gestão compartilhada. Ou seja, a definição das políticas públicas é de responsabilidade conjunta do governo e da sociedade civil, em sua diversidade. Parte-se do pressuposto de que, quanto maior a diversidade de segmentos presentes em um Conselho, maior a capacidade deste em elaborar e fazer cumprir políticas públicas que melhor atendam ao interesse público. Cada setor tem contribuições específicas a dar à política pública, de acordo com sua realidade e vivência específicas. O Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente e o Conselho da Assistência Social têm sua paridade definida em lei federal por

46 Paridade é uma forma de garantir a representação numérica de diferentes segmentos sociais. Ela expressa as forças políticas envolvidas na gestão das políticas públicas em cada Conselho.

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50% de representantes do governo e 50% de organizações da sociedade civil. Já os Conselhos de Saúde têm outro tipo de paridade. Sua composição deve ter 50% de usuários, e os outros 50% repartidos entre trabalhadores e prestadores de serviços. Já o CONSEA é formado por 57 conselheiros – 38 representantes da sociedade civil e 19 ministros de Estado e representantes do Governo Federal, além de 23 observadores convidados. A lei que institui cada Conselho também define se ele é consultivo ou deliberativo. Os consultivos emitem pareceres ou opiniões sobre determinada ação do governo e não têm poder de decisão sobre a diretriz da política em questão. O CONSEA, por exemplo, é um Conselho consultivo, responsável por assessorar o presidente da República na formulação de políticas e na definição de orientações para a garantia do direito humano à alimentação. Pela sua natureza consultiva e de assessoramento, este Conselho não é nem gestor nem executor de programas, projetos, políticas ou sistemas, como ocorre com os Conselhos de Saúde e Assistência Social. Ele acompanha e propõe diferentes programas, como Bolsa Família, Alimentação Escolar, Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar e Vigilância Alimentar e Nutricional, entre muitos outros. Além disso, tem o papel de estimular a participação da sociedade na formulação, execução e acompanhamento de políticas de segurança alimentar e nutricional. Já os Conselhos deliberativos são órgãos de decisão, ou seja, têm autoridade para analisar, intervir e propor ações em determinada política setorial. Mas é importante observar atentamente nos artigos em que estão descritas as competências do Conselho para saber, se ele for deliberativo, sobre o que exatamente ele delibera. Existem casos em que está escrito na lei que o Conselho é deliberativo, mas, na descrição das suas competências, identificamos que ele delibera apenas sobre a aprovação do seu Regimento Interno. Portanto, não basta o Conselho estar criado com natureza deliberativa, é preciso que a lei indique também sobre quais matérias o Conselho irá deliberar. O funcionamento e a organização de cada Conselho Gestor de Política Pública podem ser definidos tanto na lei que o criou como em seu Regimento Interno. O Regimento Interno tem a função de descrever detalhadamente como será o funcionamento do Conselho: deveres e direitos dos conselheiros, quem tem direito de voto, periodicidade das reuniões, critérios para formação e funcionamento das comissões e outros aspectos que ajudam a organizar o Conselho. Políticas de participação e novas institucionalidades democráticas no contexto brasileiro recente

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Em geral, os Conselhos se organizam em reuniões plenárias, comissões (ou grupos de trabalho), secretaria executiva, diretoria e au­ diên­cias públicas. Os Conselhos funcionam como órgãos de cogestão entre sociedade civil e Estado. Do ponto de vista da sociedade civil, constituem espaços de representação de grupos sociais, como usuários dos serviços públicos, profissionais, sindicatos, empresas públicas e privadas e outras organizações que prestam atendimento à população etc. Os integrantes desses grupos, quando investidos da condição de conselheiros, tornam-se responsáveis por trazer as opiniões e proposições dos setores que representam. Mas eles também devem levar aos grupos que representam as informações, os debates e as decisões tomadas nos Conselhos. Os conselheiros da sociedade civil serão mais fortes e capazes de exercer pressão sobre o governo na proposição de políticas públicas quanto maior for sua representatividade junto ao segmento representado. Os representantes do governo, por sua vez, têm a responsabilidade de trazer as propostas do governo para a temática em questão, dar informações que auxiliem os demais conselheiros a tomar decisões. Da mesma forma que os conselheiros da sociedade civil, os de governo devem estabelecer um constante diálogo junto à equipe de governo. A qualidade de representação dos conselheiros do governo, sua capacidade de tomar decisões e de fornecer informações importantes para o funcionamento do Conselho podem ser considerados indicadores da relevância dada pelo governo ao trabalho realizado pelo Conselho.

Conferências Tão importantes quanto os Conselhos, e atuando em relação direta com eles nos planos municipais, estaduais e nacional, existem as conferências de políticas públicas. As conferências têm o objetivo de, incluindo maior diversidade e um número maior de atores da sociedade e do governo em relação aos Conselhos em sua dinâmica cotidiana, traçar diretrizes e objetivos para as políticas públicas e posicionar-se com relação a questões importantes na agenda do setor específico (saúde, segurança alimentar, assistência social etc.). Na relação com os Conselhos, as conferências traçam as diretrizes, os objetivos ou posicionamentos que posteriormente deverão ser detalhados e aplicados pelos Conselhos nas respectivas esferas. O processo de realização de conferências geralmente obedece a uma periodicidade de dois em dois anos, e se inicia com conferências 90

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municipais (ou mesmo, antes das conferências municipais, com a realização de conferências regionais em um município muito populoso), nas quais se elegem posicionamentos e representantes que seguirão às conferências estaduais. Nas conferências estaduais são debatidas as questões e os posicionamentos levados pelos municípios e seus delegados, e traçadas as diretrizes e os posicionamentos para o âmbito estadual e outros, que culminarão na conferência nacional. Por fim, na conferência nacional se reúnem os delegados da sociedade civil e do poder público escolhidos nas conferências estaduais, que deliberam sobre as diretrizes da política nacional para o setor. A política é posteriormente detalhada pelo Conselho Nacional do setor respectivo. As conferências municipais e estaduais traçam diretrizes para as políticas públicas destas esferas, a serem detalhadas e aplicadas pelos Conselhos e poder público respectivos. Os Conselhos nacionais, estaduais e municipais são responsáveis por organizar as conferências junto com o poder público, definindo seus objetivos, o tema geral, metodologia, programação, número e distribuição de participantes nos segmentos e cronograma de atividades preparatórias. É importante levar em conta que, da mesma maneira que os Conselhos têm atribuições, composições e dinâmicas específicas, também as conferências se estruturam de maneiras distintas, especialmente aquelas que não se referem a um sistema como o SUS ou o SUAS. No caso da área de Segurança Alimentar, o SISAN (Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional) ainda está em processo de estruturação e a relação entre conferências, Conselhos e a política pública em todas as esferas ainda não está plenamente delineada. Em alguns casos, as conferências são espaços de debate das políticas entre governo e especialistas e não têm poder de decisão.

Orçamentos Participativos O Orçamento Participativo (OP) é um mecanismo que tem o objetivo de incluir a participação da sociedade na deliberação e na definição das prioridades de uma parcela do orçamento público do município, geralmente uma parcela de investimentos. O chamado “ciclo do OP” possui metodologias e formatos bastante variáveis de uma experiência a outra, mas em geral apresenta-se com duração anual ou bianual e conta com seis momentos: a definição da metodologia que será adotada no processo; a mobilização, a divulgação e a formação da população para participar; a realização de plenárias Políticas de participação e novas institucionalidades democráticas no contexto brasileiro recente

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regionais e temáticas em que se escolhem as prioridades para o município e os representantes que comporão o Conselho do OP; a negociação das prioridades da população e dos projetos do governo; a elaboração da proposta orçamentária e o envio para a Câmara dos Vereadores; e o acompanhamento da execução do orçamento e a fiscalização das obras e dos programas aprovados. Desde 1986, algumas cidades como Vila Velha, no estado do Espírito Santo, iniciaram experiências de discussão do orçamento municipal com a população, de modos bastantes distintos entre si. A partir de 1989, foram iniciadas novas experiências, como Porto Alegre, Uberlândia e muitas outras. O OP viria a se consolidar no Brasil, entretanto, marcado pela experiência de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, que se tornou a mais duradoura, premiada e conhecida nacional e internacionalmente. O Orçamento Participativo é uma forma inovadora de elaborar e executar um orçamento público, que incorpora como elementoschave a cidadania, a democracia e a participação. Através do orçamento participativo, não somente os técnicos da burocracia estatal e os governantes tomam as decisões sobre a arrecadação e os gastos públicos, devido à participação direta dos indivíduos, da comunidade, dos movimentos sociais e de organizações da sociedade civil. Os Orçamentos Participativos compartilham com os Conselhos Gestores de políticas setoriais muitas potencialidades, particularmente a capacidade de publicização da política e especialmente a construção de um sentido de interesse público, tanto nos governantes (Executivo e Legislativo), quando submetidos ao controle social, como na população e nos movimentos sociais, desafiados a superar sua visão imediatista, particularista e corporativa. Os Conselhos de Orçamento, mais que os Conselhos setoriais, podem propiciar a interlocução e a negociação entre atores com grande diversidade de interesses, o que desafia a capacidade de ouvir e de pautar-se por argumentações que fundamentam racionalmente esses interesses conflitantes. Esta visão mais geral das demandas e dos interesses em disputa tem sido favorecida pelas plenárias temáticas e principalmente pelas chamadas “caravanas da cidadania” – visitas coletivas a toda a cidade, realizadas com a presença dos conselheiros representantes dos diversos bairros e áreas de governo. Estas iniciativas geram uma visão mais ampla dos problemas da cidade e um sentido de solidariedade que permite, inclusive, que se abra mão de algumas reivindicações corporativas em função de prioridades mais importantes para a coletividade. 92

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Planos Diretores Participativos Os Planos Diretores Participativos se constituem como uma experiência importante de participação. A Lei Federal 10.257/2001 (Estatuto da Cidade) estabeleceu que os municípios acima de 20 mil habitantes deveriam elaborar e aprovar seus Planos Diretores Participativos até junho de 2008. Ainda que tenham tido alcance maior após a implementação do Estatuto da Cidade, alguns deles foram criados antes desta normativa. Os Planos Diretores implicam o planejamento e a gestão territorial em busca de cidade justa, democrática e sustentável. Os princípios e orientação do planejamento participativo centram-se na discussão com a população das diretrizes e as prioridades da gestão urbana e territorial, além de pensar o desenvolvimento da cidade. Esta concepção de Plano Diretor com participação popular busca pensar em um pacto socioterritorial que defina a função social da cidade. Se antes os Planos Diretores eram feitos de forma tecnocrática na administração pública local, esta nova etapa e inovação na forma de elaborar o Plano Diretor da cidade implica um maior empenho por parte do governo local na articulação com outros atores da esfera local e a participação da cidadania. Um fator importante a ser destacado é que a partir da aprovação do Estatuto da Cidade o Plano Diretor se torna instrumento de implementação dos instrumentos de acesso e democratização da terra urbana previsto neste Estatuto.

Um balanço sobre a democracia participativa Mas de que têm servido todos esses espaços? Qual é o significado de todas essas mobilizações? Qual papel exerce tudo isso na democracia brasileira? É possível dizer que outros atores sociais vieram à cena por meio desses espaços? Acaso provocaram eles mais igualdade, mais acesso e melhor qualidade dos serviços públicos? Após estes vinte anos, é hora de um balanço. Vinte anos podem parecer um intervalo de tempo relativamente curto na história de um país. Mas o Brasil é um país jovem, onde tudo é relativamente recente. Ademais, vinte anos não constituem um tempo tão curto quando se trata de corrigir rotas. A pergunta que podemos nos fazer é: como aperfeiçoar os atuais mecanismos de participação? Sem descartá-los, nem mistificá-los como panaceia para todos os males, como tornar a democracia participativa mais democrática e mais parPolíticas de participação e novas institucionalidades democráticas no contexto brasileiro recente

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ticipativa? E como fazer dela um instrumento para a conquista de maior justiça social? Os setores sociais que se organizam em torno desses espaços percebem alguns desafios que merecem atenção. Um dos objetivos centrais da criação dos espaços participativos era ampliar a representação característica da democracia formal e integrar na cena pública um novo conjunto de representantes da sociedade. De fato, a sociedade civil brasileira está cada vez mais plural, e muitos setores têm procurado tanto buscar assento nos Conselhos quanto participar ativamente das conferências. Mas é preciso olhar detidamente quem tem conseguido espaços nos Conselhos e para representar quem e o quê, como os distintos sujeitos políticos têm se construído e se representado, e qual o poder que têm de fato alcançado. Primeiro, há que reconhecer as grandes assimetrias de recursos, conhecimento e poder, que, de alguma forma, se reproduzem nesses espaços. Para citar um exemplo extremo, nos Conselhos de Assistência Social existe a vaga para a categoria “usuário”, que dificilmente consegue ser ocupada realmente por um usuário, mas sim por entidades que trabalham com usuários. Frequentemente, moradores de rua procuram ter espaço nos Conselhos de Assistência Social e não conseguem. A questão que se coloca é como dar condições de participação, tratando diferenciadamente os desiguais, e permitindo o acesso e a atuação efetiva? Outra questão, correlata à anterior, diz respeito às entidades que têm expressão apenas no nível local. Como abrir espaço para essas organizações que não se estruturam nacionalmente? Além disso, como lidar com interesses de grupos, entidades e Igrejas, que, muitas vezes, colocam sua identidade corporativa acima da discussão sobre a política pública? É preciso pensar ainda em como a sociedade civil se organiza, como constrói suas relações políticas, em um campo heterogêneo, complexo e de concepções políticas muito distintas. Nesse sentido, é preciso perceber que convivemos ainda com concepções que afirmam que tudo será solucionado quando as contradições da relação capital e trabalho forem resolvidas. Para estas concepções, as desigualdades oriundas das relações de gênero, étnico-racial, de orientação social etc. serão resolvidas automaticamente quando chegarmos ao socialismo. Nesse sentido, elas convergem para a hierarquização dos movimentos. O desafio aqui parece ser este: como articular novos e velhos sujeitos políticos, de forma não hierárquica? Por fim, sabemos que vários conselheiros têm vínculos também com partidos políticos. E trazem para os Conselhos disputas que não 94

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necessariamente têm a ver com as políticas públicas. Como lidar com esses representantes, que exercem, por assim dizer, uma dupla militância, e se pautam, muitas vezes, por limitados interesses partidários e eleitorais? É preciso mencionar ainda que, não raro, os representantes do governo nesses espaços são pouco representativos, dispõem de pouca informação, e têm pouco poder de fato para falar em nome de quem supostamente representam. Duas alternativas – que obviamente não dão conta de todos estes desafios – têm sido experimentadas pelos Conselhos. Primeiro, buscar mais formas de comunicar / divulgar o que se passa nesses espaços, para possibilitar alguma forma de controle. Assim, alguns Conselhos produzem boletins informativos de suas atividades – prática que poderia ser mais disseminada. Segundo, criar fóruns autônomos, para aumentar a representatividade, a capacidade de mobilização e o poder de pressão política da sociedade civil. Outro desafio diz respeito às difíceis relações entre a democracia participativa e a democracia representativa. Os espaços participativos foram concebidos como um contraponto à democracia representativa. Ou, na melhor das hipóteses, ambos se complementariam. De fato, o que observamos foi a subordinação da democracia participativa à democracia representativa. Desde o início dos anos 1990 até o presente momento, tem sido possível observar a emergência de diferentes atores, portadores de diferentes projetos políticos, que enfatizam a participação como algo essencial. Entre eles, há os que pensam em um Estado mais enxuto, com as organizações da sociedade civil substituindo as instâncias estatais no exercício de várias funções; ou ainda defensores de propostas que reforçam apenas o caráter fiscalizatório, e quase policialesco, da sociedade civil, com o intuito propalado de coibir a corrupção nos poderes públicos. As expectativas sobre a participação têm sido frustradas. No plano federal, o governo do presidente Lula criou muitos espaços participativos, mas em geral os tratou como momentos de “escuta forte”. Tal postura foi compreensivelmente considerada insatisfatória por parte da sociedade civil. O que acontece no plano federal é cotidiano nas experiências participativas de nível local. O respeito ao Conselho como instância deliberativa depende fortemente da vontade política dos governantes e da mobilização da sociedade civil. Se partirmos do pressuposto de que a criação de mecanismos participativos não substitui as instituições da democracia representativa, mas Políticas de participação e novas institucionalidades democráticas no contexto brasileiro recente

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c­ omplementa-as, o desafio parece ser como promover uma nova arquitetura institucional, na qual o sistema representativo possa ser fortalecido e tensionado pela inclusão de mecanismos de participação cidadã. No Brasil, embora várias instâncias participativas, como os Conselhos de políticas públicas, tenham sido definidas como peças-chave do processo de descentralização das políticas – principalmente das políticas sociais –, elas não encontraram seu lugar na estrutura do Estado. Resultado disso, podem constituir-se, em muitos casos, como institucionalidade paralela, com pouco ou nenhum efeito democratizante sobre as instituições estatais. Além disso, a experiência brasileira nos revela outra dimensão do problema. Em um contexto no qual a agenda política se encontra constantemente monopolizada pelas disputas político-partidárias, as instâncias participativas – principalmente no nível local – ficam contaminadas pelo jogo político próprio à formação das maiorias eleitorais. Em vez da complementaridade entre instituições participativas e representativas, parece muito mais adequada a afirmação de uma combinação subordinada. Ou seja, a democracia brasileira, ao mesmo tempo em que inaugura ampla variedade de interfaces governo / sociedade, não os inclui como elementos de uma renovada arquitetura institucional, capaz de oferecer caminhos novos e alternativos à reforma democrática do Estado e à governabilidade. A impressão é que as experiências participativas no Brasil, mundialmente reconhecidas, “correm por fora”, ficando na periferia do sistema, afetando pontualmente uma ou outra política setorial, a depender da vontade política dos governos e / ou do poder de pressão da sociedade organizada. Elas parecem não resultar de – ou induzir – uma estratégia mais profunda de articulação entre representação e participação. Em alguns casos, é possível dizer até que, mesmo quando o governo aloca recursos que resultam em efeitos redistributivos, tal procedimento não se distingue das estratégias conservadoras de manutenção do poder e de velhas práticas clientelistas. Não consideramos que os espaços institucionalizados sejam os mais importantes e estratégicos para serem ocupados pela sociedade civil organizada e comprometida com as transformações sociais, econômicas e sociais. Eles são mecanismos limitados para operar essas transformações. Porém, podem provocar mudanças significativas na relação Estado e sociedade. Estes mecanismos podem contribuir com a construção e a consolidação de uma nova cultura, socializando 96

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o poder e a política. Nesta direção, vale destacar o esforço, desde 2006, para a construção da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, que entre outras levanta a bandeira da democratização da democracia participativa, reivindicando propostas como o acesso universal à informação, especialmente as orçamentárias, e a criação de mecanismos de participação, deliberação e controle social sobre as políticas econômicas e de desenvolvimento47.

47 Para mais informações sobre a Plataforma, acesse o site www.reformapolitica. org.br. Políticas de participação e novas institucionalidades democráticas no contexto brasileiro recente

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A RICA EXPERIÊNCIA DOS ORÇAMENTOS PARTICIPATIVOS NO PERU Romeo Grompone


Romeo Grompone. Instituto de Estudios Peruanos.


Introdução Na maioria dos países andinos existe uma preocupação com a participação cidadã em países dotados de regimes políticos distintos. Expressões desses processos foram as mudanças promovidas pelas novas Constituições de 1991 na Colômbia, de 1993 no Peru e as preocupações e mudanças legislativas introduzidas na Bolívia em 1994. O primeiro caso está associado ao processo de descentralização, que naquela época buscava introduzir princípios de estabilidade política e de convivência democrática em uma sociedade afetada pela violência política e social. No Peru – que na ocasião procurava afirmar um sistema autoritário – se tratava de terceirizar serviços e implicar os cidadãos em algumas políticas sociais e ao mesmo tempo tornar a população cliente do governo, fazendo-a partícipe de distintos projetos pequenos, condicionando vantagens à mudança de apoio em alguns dos grupos dentre os setores mais pobres, dando ajuda de modo deliberadamente disperso, sem preocupação em estabelecer vínculos de uns com outros entre centros povoados e comunidades, e debilitando no processo as organizações sociais que aspiravam à projeção nacional. Dentre elas, estão os próprios partidos políticos, precipitando uma decadência que já havia começado a se fazer notar no fim da década de 1980. Na Bolívia, o efeito das reformas – primeiro de ajuste estrutural e depois dirigidas à reconstrução da economia a partir de uma perspectiva neoliberal, na qual se privatizou a maioria das então empresas públicas – se complementou em parte para responder a algumas reivindicações da população com a chamada Lei de Participação Popular. Segundo esta lei, os prefeitos dos distritos, eleitos em votações, devem contemplar as propostas e iniciativas das chamadas organizações territoriais e de base e das comunidades camponesas; além disso, a lei determina que a população eleja também Comitês de Vigilância, que em teoria tem a responsabilidade de fazer um acompanhamento minucioso da gestão das autoridades e, dependendo do caso, vetar algumas de suas decisões. No plano da identidade como país, foi definido como multiétnico e multicultural até chegar à proposta mais radical do atual governo, considerando que a Bolívia é, além disso, multinacional.

A rica experiência dos orçamentos participativos no Peru

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A tantas vezes invocada e tantas vezes negada participação cidadã no Peru Esta extensão da participação é, em boa medida, retórica no Peru, se levarmos em consideração as condições que orientam sua aplicação. Aproximadamente 0,3% dos cidadãos inscritos como eleitores podem fazer com que o Congresso considere uma determinada iniciativa legislativa. Na realidade, nada garante que por isso a proposta tenha condições de ser aprovada. Avaliando os custos de conseguir as assinaturas necessárias e os resultados a que finalmente se chega, os cidadãos optam pela mobilização social ou o trato com alguns parlamentares e prescindem da mencionada alternativa. Trata-se, então, de uma modalidade que não se exerce. Algo semelhante acontece com o referendo, em que se submete à consideração dos eleitores uma determinada lei. São exigidos neste caso 10% de assinaturas para que finalmente os cidadãos se pronunciem, uma vez convocados às urnas. Foi introduzido pela oposição durante o governo de Fujimori, para evitar a segunda reeleição inconstitucional do presidente. O Congresso desconsiderou tal solicitação ao introduzir uma cláusula adicional na qual era exigido o voto favorável de pelo menos 2/5 dos 120 integrantes do Congresso unicameral, sem fundamento algum para tergiversar o que a própria Constituição do regime estabelecia de modo inequívoco. Em outra disposição teoricamente orientada para estabelecer instituições de democracia direta, observa-se que, para afastar autoridades nomeadas pelo Executivo, incluindo ministros, exigem-se 50% de assinaturas da circunscrição na qual o funcionário exerce suas atividades, requisito inalcançável na prática quando o que está em jogo é a opinião que se tem das autoridades de maior nível. Existe, por último, a possibilidade de solicitar o afastamento das autoridades locais. Para chegar às votações em que se decide sobre o tema é preciso o apoio de 25% dos cidadãos inscritos na localidade, até o máximo de 400 mil assinaturas, e um pronunciamento majoritário de rechaço à gestão do prefeito ou dos vereadores. Chega-se a esta instância fundamentalmente em distritos predominantemente rurais, circunstância atribuída a dois fatos: o reduzido número de eleitores inscritos, que permite rapidamente atingir a quarta parte de assinaturas solicitadas, e a fragmentação política, que com frequencia faz com que o prefeito chegue a seu cargo com reduzidas porcentagens de aprovação, às vezes com menos da quinta parte dos votos, em um 102

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pleito no qual intervêm dezenas de movimentos locais e, em menor medida, partidos políticos. Quem foi eleito se encontra no dilema de se apoiar em seu eleitorado fiel, uma comunidade, uma aldeia, um povoado que o apoiou, ou ser fiel aos favores de quem financiou sua campanha, ou então buscar um pleito mais amplo. Em qualquer dessas estratégias é provável que encontre antigos opositores, ou opositores que se manifestem durante sua gestão – dos quais não procura se aproximar para ampliar o espectro de seus aliados, aferrado então com exclusividade aos compromissos previamente assumidos. A situa­ ção se agudiza porque os fundos que lhe são atribuídos, o chamado “Foncomun”, e ocasionalmente os recursos que recebe por haver alguma atividade de mineração ou petrolífera em sua região, faz com que disponha de recursos pouco significativos em termos globais, mas de importância quando de trata de zonas de pobreza extrema. Em suma, como notou Remy48, o único direito de participação reconhecido constitucionalmente que se exerce é o do afastamento. Como vimos, não está necessariamente associado ao aprofundamento da democracia, mas geralmente às múltiplas facções políticas em um país sem partidos políticos de projeção nacional. O afastamento é uma maneira certamente provisória de dirimir conflitos porque uma decisão pode seguir outra na mesma circunscrição em um cenário que deve ser interpretado caso a caso, porque o que parece estar em jogo é uma extrema particularização de interesses e as tentativas precárias de que algum deles prevaleça sobre os outros. Por outro lado, em contraste com o estabelecido no atual marco legal, algumas consultas que os cidadãos promovem, às vezes de acordo com as autoridades locais, não são mais que uma simples pesquisa de opinião e não são levadas em conta. Assim, por exemplo, em 2002 a maior parte da população de Tambo Grande, um distrito do departamento de Piura, se pronunciou no sentido de continuar dando às suas terras um uso agrícola, em uma zona especialmente apta para tal atividade, em vez de aceitar que se promovesse a atividade mineradora. Também em Piura, os habitantes dos distritos de Pacarpampa, Ayabaca e Carmen de la Frontera se manifestaram contra a expansão de outra mineradora, a Majaz, em 2007, devido aos efeitos ambientais que se entendia que esta atividade pro-

48 Maria Isabel Remy, “Los múltiples campos de la participación ciudadana en el Perú. Un reconocimiento de terreno y algunas afirmaciones”. Lima, Instituto de Estudios Peruanos, 2005. A rica experiência dos orçamentos participativos no Peru

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vocava, associados neste caso à contaminação dos rios. Nos dois casos houve uma massiva presença cidadã nas votações realizadas, em ambos houve um desconhecimento da decisão tomada por parte do governo central, se bem que em Tambo Grande a mineradora Manhattan não pôde continuar com a exploração em face de uma situação social que se tornou insustentável, dada a resistência encontrada por parte da comunidade. O Peru se encontra então em uma situação paradoxal: as instituições previstas constitucionalmente e logo legisladas não são utilizadas para promover a participação e, quando o são, como os afastamentos, isto é feito com propósitos geralmente distantes do que é o simples exercício da democracia direta. E as iniciativas cidadãs que procuram resolver situações de conflito chamando os cidadãos a se pronunciar são, em geral, desconsideradas pelas autoridades do governo central.

A exigência de transparência e a cultura do segredo A consideração realista das perspectivas da participação só pode adquirir sentido se for associada a uma concepção em que se reivindica a publicidade do direito e das decisões do Estado, princípio que fundamenta Kant. Esta defesa da publicidade se apoia em uma concepção republicana que teve uma trabalhosa irrupção confrontada à aceitação “naturalista”, religiosa ou jurídica da autoridade, que resulta coextensiva à ideia da vigência da noção de segredo de Estado. Como observa Bobbio, existe secularmente a ideia de atribuições que convêm que o governante tenha em conta. O princípio que parte de Hobbes se baseia em que não se deve informar o inimigo externo dos movimentos que se faz e, por outro lado, na comprovação da ignorância do povo sobre temas que formam parte da esfera pública. O autor anota com lucidez que, “em certo sentido, os dois argumentos se opõem; no primeiro caso, o não saber depende de que o outro seja capaz de saber muito; no segundo, o não fazer saber está relacionado ao fato de que o outro entende muito pouco e poderia interpretar mal as razões de uma deliberação e opor-se a ela com pouco critério”. Em boa medida, esta concepção não se encontra estritamente associada à autocracia, como sugere Bobbio, mas também a ­alguns 104

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critérios de uma democracia elitista. E, em outra chave, convém acrescentar, a traços de uma cultura política patrimonialista de chefaturas locais e relações de clientela que não consegue separar o público do privado, que o encara como algo finalmente alheio ao exercício do poder, o que impede que se plasme uma dimensão cidadã capaz de ir além do palavreado. Como foi observado no seminário do LogoLink, a transparência é um instrumento das lutas pela ampliação da democracia, de produção de novas relações entre sociedade e Estado, um instrumento capaz de conferir mais poder aos cidadãos por meio do conhecimento sobre a gestão pública, base primeira para as possibilidades de atuação, reivindicações, pressões e propostas de alternativas posteriores. A informação e a participação se apoiam mutuamente. Em boa parte, além do discurso às vezes retórico sobre o chamado “accountability” societal, o eixo do conflito está na capacidade de os atores sociais conseguirem, primeiro no normativo, depois nos fatos, que as exceções em que o Estado se reserva o direito de informar ou prescinde de fazê-lo se regulem taxativamente. E não apelando a conceitos vagos, deliberadamente imprecisos, como por exemplo “razões de segurança nacional”. No caso peruano, avançou-se substancialmente nas normas de transparência desde o retorno da democracia, em 2001. Não acompanhou o processo na medida em que resulta desejável a apropriação de tais mecanismos por organizações sociais e por cidadãos. Essas limitações, nos parece, gravitam em diversas instâncias do governo nacional e subnacional, e freiam uma participação eficaz, por exemplo, no caso dos orçamentos participativos, o assunto que vamos expor49.

As razões para promover os orçamentos participativos Os orçamentos participativos se associaram, em suas primeiras propostas no Peru, à busca, no processo de retorno à democracia, de tornar mais transparente a atribuição de recursos. Na ocasião, se entendia que os moradores deveriam decidir sobre o destino dos fun-

49 As observações que fizemos nestes parágrafos se baseiam em boa parte no trabalho de Romeo Grompone. “Construyendo el sentido del buen gobierno”. Informe para a Defensoria do Povo. Lima, 2004. A rica experiência dos orçamentos participativos no Peru

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dos atribuídos ao seu distrito, à sua província e região, se bem que esta última entidade de governo subnacional, pela complexidade de seus problemas, exigisse uma intervenção técnica elaborada e uma planificação diligente. As expectativas eram, para os mais otimistas, fortalecer a sociedade; outros, mais desencantados e provavelmente mais realistas, notavam a debilidade desta mesma sociedade e entendiam que, caso se promovesse uma instância deliberativa como a mencionada, em que se tratasse de problemas que dissessem respeito à população, se poderia recuperar a profundidade do que anos atrás fora uma extensa trama associativa. Acreditava-se que estabelecendo uma agenda que despertasse interesse nos cidadãos se poderia recuperar parte da vigência perdida pelas juntas de moradores nas cidades; pelas organizações que tiveram relevância no início de alguns programas sociais majoritariamente integrados por mulheres, como foram os configurados em torno dos Restaurantes Populares e do chamado Copo de Leite, que em nível regional se comprometeram não apenas com a reivindicação, mas com o desenvolvimento social e econômico; pelas chamadas Frentes de Defesa, nas quais grupos empresariais como as Câmaras de Comércio e de classes médias como os conselhos profissionais se vincularam com a administração local. Em outro plano, procurou-se incentivar que as organizações e comunidades camponesas tivessem contatos mais fluidos e transparentes com as autoridades e restabelecessem sua atuação nas zonas rurais depois de terem sido afetadas por mais de treze anos de conflito armado interno, que começou em princípios dos anos 1980. Neste contexto, a expectativa é a de que as associações de produtores, as federações camponesas, as juntas de irrigadores recuperassem seus espaços de atuação. Como veremos ao longo desta exposição, estudando alguns casos e realizando uma avaliação geral, os orçamentos participativos conseguiram introduzir, somente em algumas zonas, mudanças significativas neste conjunto de associações e não conseguiram – sobretudo aqueles que não dispunham de recursos para participar do processo – que os grupos promotores da democratização chegassem a criar um cenário social mais inclusivo.

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A distância entre uma normatividade rígida e as exigências da realidade A proposta de orçamento participativo se caracterizou desde o princípio por suas pretensões normativas, nas quais se generalizavam situações heterogêneas por si mesmas, o que dificultou sua aplicação. Outro problema era o número excessivo de regras. O que deveria ter sido feito era facilitar processos de inovação política e social que considerassem com realismo o que estava ocorrendo nas distintas zonas em que deveria ser aplicada a proposta. Uma mesma legislação regia os 25 governos regionais, os 195 municípios provinciais e os 1.864 municípios distritais em que se encontra dividido administrativamente o país. Esta desmedida se nota inclusive no próprio nível de governo subnacional; as mesmas disposições se aplicam, por exemplo, ao distrito de San Juan de Lurigancho, que tem mais de 400 mil eleitores, e a alguns outros distritos situados em zonas da serra e da selva, que contam com apenas 2 ou 3 mil pessoas habilitadas para votar. As normas que regulam o processo são, além de excessivamente detalhistas, contraditórias. A Lei Orgânica de Governos Regionais nº 27.862, complementada pela a Lei nº 27.902, introduziu a ideia do orçamento participativo complementado pelos Planos de Desenvolvimento Concertado como iniciativas que propõem obrigatoriamente a sociedade organizada às autoridades regionais e aos prefeitos. O processo se apoiava na existência de Conselhos de Coordenação Regional, instituição integrada por prefeitos provinciais (60%) e por representantes da chamada sociedade civil (40%). Suas decisões não eram vinculadoras, o Conselho Regional deveria aprová-las finalmente para que tivessem força legal. Esta proposta participativa tinha como problema desde o início a desconfiança dos partidos políticos e de movimentos regionais de peso, nos casos em que tivessem vencido as eleições municipais, entendendo que enfraquecia os que foram eleitos por votação universal. Temia-se então que uma correlação de forças cambiante ou manobras políticas de grupos mobilizados da população afetassem o que havia sido proposto realizar em sua gestão. O sistema foi se estendendo aos Conselhos de Coordenação Local (CCL) provincial e distrital. Nestes casos também se estabeleceu que este organismo deveria ser composto por 60% de prefeitos de províncias ou distritos e 40% de representantes da sociedade civil. Sobre este último ponto A rica experiência dos orçamentos participativos no Peru

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existem algumas especificidades, por exemplo, que haja um terço de representantes de organizações de produtores. Os defensores do sistema dos Conselhos de Coordenação Local – fundamentalmente ONGs que influíram na decisão de alguns legisladores – partiam do reconhecimento da debilidade dos partidos e da tentativa de fortalecer o sistema político, estendendo outros mecanismos alternativos de intervenção cidadã. Em outros casos, sem observar todas as suas consequências, o intento de prescindir de mediações institucionais e de opor de maneira elementar e não fundamentada a representação à participação respondia à preocupação de fortalecer seu próprio papel enquanto assessores da comunidade. Os orçamentos participativos permitem a criação de elos entre diferentes níveis – os regionais, os provinciais e os distritais –, de modo que cada instância contenha a outra de menor complexidade. Os CCL tiveram, desde o início, grandes problemas de funcionamento. Em algumas ocasiões, devido ao escasso interesse da maioria das organizações sociais em ser parte do processo. Em outras, porque introduz cortes arbitrários, por exemplo, como decidir se é mais legítimo que se integre uma associação de produtores de café e não uma cooperativa de comerciantes do mercado do povoado principal da zona, porque uma comunidade camponesa e não outra e, em outro plano, como conseguir a intervenção de empresários de uma determinada circunscrição administrativa se eles não estão interessados neste processo? Além disso, cada integrante dos CCL representa em teoria a “sociedade civil” em seu conjunto e não seu próprio grupo, o que torna ainda mais confusa a instituição. A Lei Marco do Orçamento Participativo nº 28.056 desorganizou o processo: estabelece que o prefeito deve preparar um conjunto de documentos, entre eles o executado na gestão anterior, identificação de agentes participantes, instâncias de capacitação, oficinas de trabalho de priorização de projetos, outras de caráter temático e territorial, formalização de acordos e prestação de contas. Como foi dito anteriormente, este esquema de trabalho não corresponde às distintas realidades locais do país como notaremos ao longo do desenvolvimento do trabalho.

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A intervenção dos técnicos do governo central No sistema, os técnicos do Ministério de Economia e Finanças – a maioria deles convencidos das virtudes da participação – tornaram ainda mais difícil manejar os orçamentos participativos, elaborando ano a ano manuais de instrução para teoricamente ganhar em eficiência e impacto. Ao mesmo tempo, cada municipalidade – mesmo aquelas que contam com apenas um ou dois funcionários de certo nível profissional – deve elaborar um texto normativo sobre o tema. Na teoria, estas disposições não têm a mesma hierarquia jurídica que a lei e, portanto, não necessariamente têm de ser aplicadas em todos os seus detalhes. Ocorre, no entanto, que o peso do Ministério de Economia e Finanças, devido principalmente ao fato de ser a instituição que aprova os projetos de maior alcance, concede-lhe um peso político decisivo que as instâncias municipais não podem desconsiderar. No processo, os Conselhos de Coordenação Local foram perdendo relevância, exceto como uma espécie de organismo auxiliar que ajuda na realização das diversas oficinas. Estabeleceu-se finalmente um comitê de vigilância nomeado pela comunidade, entre cujas atribuições está apresentar denúncias quando são encontradas irregularidades entre o que foi decidido participativamente e o que efetivamente se cumpre, levando-as, caso se considere necessário, ao Poder Judiciário ou à Controladoria Geral da República. Acaba sendo um requisito que, pelas exigências técnicas e os conhecimentos jurídicos que supõe, não está à altura do grau de formação e do tempo que os integrantes da maioria das sociedades locais podem dedicar à tarefa.

A importância das iniciativas e das inovações locais Expostos os obstáculos que conduzem ao excesso de regulamentos dos orçamentos participativos, não é muito difícil supor que as experiências de maior êxito sejam aquelas que não procuram seguir passo a passo o que está previsto nas leis, regulamentos e textos normativos, e procuram adaptar o sistema ao que realmente necessita a zona em que autoridades e sociedade atuam. Algumas experiências antecedem inclusive a introdução do tema de maneira generalizada A rica experiência dos orçamentos participativos no Peru

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na agenda pública, como é o caso de Limatambo, um distrito predominantemente camponês da região de Cusco, e Villa El Salvador, na cidade de Lima. A experiência de Limatambo tem antecedentes na década de 1980, quando ainda tinha influência a esquerda política, e se sistematizou a partir de 1993 em um processo que se apoiou não somente na redefinição das organizações sociais, mas na influência decisiva de um mesmo prefeito, que foi reeleito em períodos sucessivos e que exerceu o poder entre 1993 e 2002. Na primeira gestão (1993-1995), como observa Landa50, a participação camponesa foi majoritária, em parte porque se conseguiu estabelecer uma nova agenda, desta vez orientada à distribuição de recursos com projetos de desenvolvimento por meio da Federação Distrital de Camponeses de Limatambo (Fedical), que reunia camponeses das comunidades dos vales e pequenos proprietários das zonas serranas de altitude. Em todo caso, havia um conflito, em algumas ocasiões explícito, entre os antigos notáveis da localidade – em sua maioria possuidores de fazendas, que por sua extensão não foram afetadas pela reforma agrária dos anos 1970 – e os membros das comunidades. O conflito foi superado, pelo menos em parte, nos anos posteriores, com a criação do Conselho Comunal e de Moradores que ambas as partes integravam, deslocando parcialmente o eixo formal de autoridade que é o Conselho Municipal. A dinâmica estabelecida se sustentava em reuniões trimestrais, nas quais as comunidades e os moradores se reuniam, enviando seis delegados (três mulheres e três homens) de cada comunidade e dos bairros da localidade urbana, para discutir sobre atribuição de recursos, planos e obras, em especial as relativas à produção agropecuária, infraestrutura viária e serviços básicos. Procurava-se realizar rapidamente os ajustes técnicos que facilitassem sua aprovação. Mesmo assim, continuavam existindo pontos de vista diferentes entre moradores e comunidades, mas pelo menos agora havia um marco institucional para que todos se expressassem. Não necessariamente se chegava ao consenso em todos os casos, mas a intransigência de conflitos anteriores foi consideravelmente atenuada.

50 Ladislao Landa, “Waqamuwanku Haykumuyku. Nos llaman y entramos. Los modos de participación en el espacio rural: Cusco e Apurímac”. Lima, Instituto de Estudios Peruanos, 2004. 110

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Este estilo de gestão participativa foi logo implantado na província de Anta, quando Rozas postulou a prefeitura dessa província em 2002 e foi reeleito em 2005, depois de ter sido eleito no distrito de Limatambo. Porém, o eixo da participação se modificou, em parte. Por um lado, obedeciam-se de modo mais estrito os critérios seguidos no orçamento participativo tal como é determinado por leis, textos normativos e regulamentos. Por outro, mesmo com a participação de membros das comunidades e moradores, as decisões se tomam não por meio de assembleias e reuniões massivas, mas por comitês de gestão que se encarregam de administrar e fiscalizar obras e serviços. As formas de intervenção cidadã variam então segundo a complexidade dos contextos em que se tomam as decisões, mesmo quando há uma mesma autoridade que não mudou suas preo­cupações e objetivos. Durante o processo, parece ter acontecido certa renovação das lideranças. Algumas práticas autoritárias desenvolvidas tanto nas comunidades como entre os moradores foram perdendo parte do seu espaço com o surgimento de uma nova geração de líderes mais jovens, com maior exposição ao sistema educativo e com disposição para aceitar mudanças e até propor inovações no estilo de gestão. Esta nova situação não eliminou por completo o clientelismo em relação aos responsáveis pelos diversos programas do Estado, das próprias autoridades locais e das ONGs, mas se dispõem de mais recursos e informações para identificá-lo e, em certas ocasiões, denunciá-lo.

A colocação em prática de experiências de decisão sobre orçamentos acordados por autoridades e atores sociais no âmbito metropolitano Anos antes que se legislasse sobre orçamentos participativos, cujos problemas fundamentais já mencionamos, havia antecedentes a considerar, assim como vimos no caso de Limatambo, distrito fundamentalmente camponês de Villa El Salvador, com mais de 300 mil habitantes, na cidade de Lima. Este distrito surgiu no começo dos anos 1970, com a invasão de povoadores de terras não cultivadas, de propriedade do Estado, que então eram apenas areais. Muitos autores peruanos e estrangeiros, especialistas em urbanismo e em participação cidadã, consideram como experiência exemplar a construção do A rica experiência dos orçamentos participativos no Peru

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bairro pelos próprios cidadãos, por meio de uma organização que reivindicava sua autonomia diante do prefeito provincial de Lima, fazendo valer seus direitos via negociação ou realização de protestos e deliberação com os prefeitos e a comunidade organizada. Mesmo que alguns destes traços estivessem presentes, esse tipo de relato oficial é uma historia tendenciosa. Existiram, em boa parte de sua história, tensões difíceis de lidar entre a organização gremial oficial, agora em decadência, a CUAVES – que era reconhecida por parte dos moradores e pelos sucessivos prefeitos, mesmo que em suas manifestações ambas as partes reclamassem estar seguindo um modelo autogestionário e padecerem juntas, durante os anos do conflito ­interno, o enfrentamento desatado entre os grupos aliados em armas que tinham presença minoritária na região –, e autoridades e associações. As primeiras ideias de discutir em conjunto o orçamento acordado na região apareceram em 1998 e 1999. Isto se deveu em parte porque foi dada uma nova penetração a uma instituição que existia no bairro desde ao menos vinte anos antes, os chamados Comitês de Gestão do Desenvolvimento. Este nome pretensioso se limitara a organizar reivindicações e apresentá-las, nada além disso. Agora se produziu uma transformação mais congruente com o que em teoria oferece a denominação com que era conhecido: pensar no desenvolvimento e fazer acordos com as autoridades. Assim, em 1998 foi promovido o chamado Foro Cidadão ou Foro Distrital de Participação, Controle e Desenvolvimento Humano, que realizou oficinas temáticas e territoriais com a participação de autoridades, equipes técnicas da municipalidade, organizações sociais, alguns setores do Estado central, que em geral compareciam esporadicamente aos eventos, e ONGs que atuavam na região. As oficinas temáticas se concentravam nos temas de saúde e meio ambiente, desenvolvimento urbano, produção e comércio, juventude, educação e cultura e segurança cidadã. Nas oficinas territoriais eram seguidas as divisões administrativas já estabelecidas há muitos anos por autoridades e comunidade, dividindo o distrito em oito espaços entre os mais definidamente vizinhos e as chamadas zonas Industrial e Agropecuária. Esta primeira etapa de trabalho buscou sistematizar os resultados, realizando o que se chamou de Primeiro Conclave Distrital, no qual se definiu a chamada Visão do que deveria fazer o distrito até o ano de 2010. Foi convocada uma consulta cidadã para que a população decidisse quais eram os objetivos estratégicos a priorizar, se bem que com uma perspectiva um tanto retórica, já que se devia escolher en112

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tre opções nas quais se decidia a respeito de Villa El Salvador dever ser saudável, limpa e verde, uma comunidade educativa, um distrito de produtores e gerador de riquezas, uma comunidade líder e solidária ou uma comunidade democrática. Apesar do aspecto relativamente irrelevante das propostas, por serem todas elas definitivamente pouco discutíveis, compareceram para votar cerca de 50 mil cidadãos, o que representa aproximadamente a quarta parte dos habilitados a fazê-lo. Em todo caso, a partir daí se iniciou um estilo de discussão que se repetiu ano a ano, no qual sucessivos governos locais estabeleceram, sem maiores questionamentos dos moradores, os montantes que seriam destinados a cada território, levando em conta as condições econômicas, sociais e participativas, considerando também, como notou Zolezzi51, indicadores tais como necessidades básicas não satisfeitas, número de população inexistente e níveis de tributação local. Esta iniciativa tem as debilidades gerais de outros processos, por exemplo, a ausência de grêmios empresariais significativos, graus de desarticulação entre os objetivos estratégicos do distrito e as reivindicações da população que se expressam na prioridade que estes concedem a pequenas obras que não resultaram significativas para o desenvolvimento ou, em outro plano, moradores que se sentem representados e outros, marginalizados do processo. Mesmo com estas objeções, os povoadores aprenderam sobre custos das obras, opções nesta linha, impostos a pagar ou o que deve ser investido pela municipalidade na contratação de pessoal.

O caso de Santo Domingo: a participação estendida em uma comunidade da serra Uma vez estabelecida a legislação do orçamento participativo, e, como já foi observado, as divergências de experiências de um caso a outro, sendo curiosamente as de maior êxito aquelas que, sem transgredir seu espírito, se distanciam das rígidas disposições que pretendem ordenar o tema. Em zonas rurais, por exemplo, cabe destacar o ocorrido no distrito de Santo Domingo, na província de Morropón, na Região de Piura, cuja atividade econômica predominante é a agricultura e a criação de gado, que os 8 mil habitantes realizam em 51 Mario Zolezzi, “La práctica de los planes de desarrollo y el presupuesto participativo de Villa El Salvador/Perú”. Lima, DESCO, 2005. A rica experiência dos orçamentos participativos no Peru

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­ iferentes nichos ecológicos situados entre trezentos e 3 mil metros d acima do nível do mar. Em Santo Domingo, destaca-se em primeiro lugar a presença constante de uma liderança política desde 1998, na figura do prefeito Carlos López, e a rotação contínua de outros vereadores. Diferentemente de outras experiências, foram constituídos os CCLs que intervêm ativamente no processo e a presença de equipes técnicas capacitadas provavelmente pela influência do apoio prestado por ONGs nacionais e por organismos de cooperação internacional. Como se trata de uma zona predominantemente rural, se queremos incentivar a participação é preciso visitar as 41 vilas que integram o distrito em vez de pretender estabelecer assembleias conjuntas em uma primeira etapa. Nesta linha, foi estabelecido um plano de ação em cada vila depois de uma visita prévia da equipe técnica. Apenas posteriormente se agruparam todas elas em nove zonas, oito rurais e uma urbana, e se operou cada uma delas por meio de um comitê de desenvolvimento regional. Não se trata, então, de supor um modelo de participação plena em todas as instâncias, o que de fato é inaplicável, mas de partir primeiro de uma consulta amplamente descentralizada e em seguida eleger representantes que dialoguem de acordo com critérios pensados anteriormente. Finalmente, realiza-se uma assembleia geral distrital na qual se aprova o plano orçamentário que foi originado por todo este processo. Diferentemente de outros distritos, os vereadores, membros do conselho municipal eleitos, intervêm ativamente em toda esta dinâmica e não ficam marginalizados, nem formulam sua opinião somente na instância final. O sistema se sustenta finalmente em redes de apoio nas quais intervêm de professores a associações de pequenos produtores.

A intervenção cidadã em territórios extensos e desarticulados Em outras zonas, as dificuldades são certamente maiores, especialmente em províncias pouco articuladas nas quais, como foi mencionado, e de acordo com o que estabelece a legislação e os textos normativos do orçamento participativo, devem ser resolvidos ao mesmo tempo os orçamentos participativos em níveis provinciais e distritais. Este é, por exemplo, o caso de Sandía, na região de Puno, que conta com zonas de altitude que atingem mais de 5 mil me114

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tros acima do nível do mar e a maior parte de seu território – dividido em nove distritos – é “sobrancelha de floresta”, floresta alta e floresta. Há obstáculos para empreender uma tarefa de desenvolvimento, que surgem dessa diversidade geográfica e da carência de uma rede viária adequada que ligue a província – em parte por descuido dos governos, em parte pelo que seria necessário em termos de investimento em infraestrutura, tendo em vista o território acidentado. Em alguns distritos é mais simples se comunicar com cidades de outras regiões que com a capital da província da qual teo­ricamente dependem administrativamente. Diante desse problema, um prefeito com predisposição para a participação, como o que exerceu sua tarefa entre 2002 e 2006, deparou-se com limites severos para realizar uma atribuição dos fundos orçamentários de que dispunha com uma extensa consulta à população. Na prática, e sem que se possa pensar de modo realista em outra alternativa, as circunstâncias levaram os integrantes dos CCL a procederem de diversas organizações sociais da capital da província e de seu entorno, e os técnicos a visitarem periodicamente os distritos mais distantes que têm problemas produtivos, educativos e de desenvolvimento extremadamente diferenciados uns dos outros e que não dispõem de uma burocracia qualificada com a qual eles possam dialogar ordenadamente nos lugares onde comparecem. O processo de orçamento participativo se afastou obrigatoriamente do que foi previsto na legislação, alternando etapas de discussão em nível distrital com outras em nível provincial, em vez de tratar cada um desses âmbitos separadamente. O projeto de desenvolvimento acordado prevê obras de infraestrutura viária, dotação de serviços de água potável e eletrificação, mas a falta de informação e as dificuldades já mencionadas para unir a zona e a falta de recursos para fazer estudos em profundidade tornam problemática a concretização desse conjunto de projetos.

O orçamento participativo em distritos e províncias do Altiplano A província de Azángaro, também em Puno, com mais de 150 mil habitantes, não apresenta os problemas de comunicação entre suas diferentes circunscrições como em Sandía, apesar de existir alguns problemas para estabelecer uma infraestrutura viária adequada. A rica experiência dos orçamentos participativos no Peru

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Neste caso, também a equipe técnica que tem as capacidades necessárias para colaborar com eficácia no orçamento participativo se encontra na capital da província. Esta equipe dispõe da ativa colaboração de um conjunto de ONGs que encontram oportunidades de realizar tarefas de assessoramento e um governo municipal que se mostra receptivo a essas iniciativas. No distrito de Azángaro, capital da província do mesmo nome, a discussão se organizou dividindo o espaço entre cinco territórios rurais e a cidade, delegando ao Conselho Municipal as tarefas de organização do debate e a definição de prioridades às diferentes ONGs. Mesmo existindo uma centralização quase inevitável na discussão das atribuições orçamentárias, foi feito esforço para estabelecer um plano de desenvolvimento concertado que contemplasse as necessidades de todo o distrito, no qual se levou em consideração o desenvolvimento agropecuário agroindustrial, viário, comercial e turístico, assim como o melhoramento da qualidade da educação e o desenvolvimento cívico institucional. Estes avanços parciais não foram suficientes para impedir que predominasse um ambiente de instabilidade. Apesar do esforço das equipes técnicas e de algumas ONGs, uma leitura do plano de desenvolvimento concertado para quem não é especialista no tema impressiona pela imprecisão em termos de interpretação e de análise quantitativa das propostas que foram se desenvolvendo. Estas carências seguramente serão mais perceptíveis em outras regiões do país, onde prefeitos e demais autoridades se mostram reticentes em desenvolver um estilo de governo em que a comunidade intervenha ativamente. Em outro distrito de Azángaro, José Domingo Choquehuanca, o orçamento participativo funciona porque se teve a habilidade de combinar a criação dos CCL com a experiência participativa anterior das mesas de concertação interinstitucional, que se converteram em um foro de discussão no qual intervêm representantes de diferentes setores do Estado, em geral agricultura, saúde e educação e, em menor medida, a polícia, o juiz de paz e o governador; participam também os prefeitos, os vereadores e os dirigentes das comunidades camponesas e dos bairros. Uma ONG que atua no mencionado distrito conseguiu que também interviessem no processo associações de mulheres, de jovens e de produtores. Por sua vez, a tarefa se completou com um ativo compromisso dos integrantes do CCL que realizam, por exemplo, visitas à centros educativos, promoção de atividades culturais e iniciativas de gestões em Lima para que sejam 116

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efetivamente entregues os recursos que em teoria foram atribuídos à localidade. Outra vez, deixar de lado muitas das disposições estabelecidas pelas normas e manuais do orçamento participativo é a melhor maneira de cumprir seus objetivos.

Os problemas que deve enfrentar a execução dos orçamentos participativos Como foi exposto, este processo de discussão da atribuição orçamentária com a população – mesmo nos casos de sucesso que mencionamos – enfrenta um conjunto de dificuldades no Peru, que convém destacar.

O peso das lideranças políticas pessoais O Peru é um país sem partidos políticos com cobertura nacional. O APRA, o mais conhecido deles, não tem a capacidade de mobilização que geralmente se lhe atribui. Nestas circunstâncias – como ocorreu também em outras conjunturas políticas da América Latina –, o Estado e, em outro nível, as autoridades locais, organizam a agenda política e chegam mesmo a definir os interesses da comunidade, que se mostra incapaz de plasmá-los por si mesma. No caso dos prefeitos, alguns são mais dispostos ao diálogo, outros o rechaçam de maneira mais ou menos explícita, por razões diversas, que vão do estabelecimento de relações de clientela com alguns grupos até convicções legítimas do que consideram ser suas prioridades de gestão, que uma ativa intervenção cidadã impediria seu cumprimento. Como foi mencionado, na maioria de nossos países, quem ocupa cargos de decisão política cumpre formalmente algumas regras e às vezes faz uma transgressão – até mesmo calculada em seu alcance – dessas mesmas disposições que diz acatar. Postos na situação segundo a qual o que acontece com os orçamentos participativos leva aos atoleiros entre o tempo previsto para a continuidade desta iniciativa e o tempo político eleitoral. Um prefeito que substitui ordenadamente a outro inicia um processo no qual busca a ativa participação cidadã ou, no extremo oposto, desbarata o que já havia sido iniciado nesta direção. Os processos se tornam então aleatórios, contingentes.

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A fragmentação política e a debilidade dos partidos políticos e dos movimentos regionais O Peru é um caso de transição no qual, diferentemente da maioria dos casos acontecidos na região, os partidos políticos não tiveram importância decisiva na mudança. O advento da democracia no ano 2000 se deveu às contradições e ao conseguinte colapso do regime autoritário, às pressões da comunidade internacional e à mobilização social. E estas organizações políticas não recuperaram sua posição de protagonistas. A classe política peruana não tem penetração em nível local e dispõe, depois das eleições de 2006, de apenas três dos 25 governos regionais. Desconhecem, estão distantes do que acontece na maior parte das circunscrições nos diferentes níveis dos governos subnacionais. Diante desta comprovação, a intervenção nos orçamentos participativos tem resultado muito limitado e circunstancial e, nesta condição de debilidade, o desejo de se legitimar se faz presumivelmente pela apresentação de propostas alternativas ante o risco de ficar em minoria. Os movimentos regionais são dirigidos em alguns casos por pessoas de longa trajetória política e social nas zonas em que atuam, e com frequência integraram partidos dos quais se afastaram devido à situação de descrédito destes. Podem, em alguns casos, propor-se a levar adiante propostas participativas. O inconveniente é que somente em muito poucos casos têm tanto presença na região como na maioria das províncias e distritos de um departamento. Por isso, poucas vezes chega a se formar um cenário como o que está previsto legalmente, em que se complementem e articulem os orçamentos participativos distritais, provinciais e regionais, reiterando-se uma e outra vez situações de incongruência ou de aleatoriedade.

A debilidade da sociedade civil As organizações sociais perderam boa parte de sua penetração tanto em nível nacional como local. Em parte, como em outros países da região, estas deficiências podem ser atribuídas à crise do modelo de Estado central, à penetração da proposta neoliberal e sua posterior decadência. Os atores sociais ficaram sem referências institucionais que lhes fornecessem normas, valores e orientações, fundamentalmente ligados ao trabalho e às reivindicações de moradores e de camponeses, sem que no país tenham sido produzidas novas redefi118

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nições pelas quais parte da população assumisse identidades étnicas, como aconteceu, por exemplo, na Bolívia e no Equador, países andinos de características semelhantes. Os processos participativos não têm força suficiente para recriar federações e juntas de moradores. A participação, então, limita-se apenas a alguns problemas relevantes da comunidade, dependentes em boa parte das iniciativas das autoridades locais e de algumas ONGs52. O que, na prática, tem mais influência são os movimentos sociais tendentes à confrontação, dentre eles, moradores que questionam a gestão das autoridades locais buscando em certas ocasiões seu afastamento do cargo, comunidades afetadas pela mineração que se mobilizam por diversas razões, dentre elas os efeitos ambientais destas explorações, a falta de compensação econômica quando se expropriam terras dos camponeses e os obriga a procurar outro lugar, a carência de oportunidades de emprego que se entende essas empresas deveriam oferecer. Finalmente, em outro plano, grêmios de trabalhadores como os da construção civil ou os professores não têm interesse por esse tipo de reivindicações, não têm interesse em se integrar à iniciativa dos orçamentos participativos.

A ausência de atores sociais estratégicos no processo As organizações sociais de maior importância, principalmente em nível provincial e regional, são as grandes empresas e as Frentes de Defesa. Às primeiras não interessa, em geral, se incorporar ao orçamento participativo, pois, para fazer prevalecer seus interesses e ainda realizar obras em uma comunidade por um exigido princípio de responsabilidade social, estimam mais conveniente estabelecer instâncias de negociação direta com as autoridades locais e, nos problemas estratégicos, com o governo nacional. Não se sentem comprometidas, salvo quando é inevitável dialogar com as comunidades pelo temor de enfrentar exigências desmedidas da população ou de se verem obrigadas a abandonar em parte sua planificação prévia. As Frentes de Defesa – cuja força varia de região para região e de período para período –, quando conseguem dirigir um movimento, 52 No que talvez seja uma leitura superficial surgida de discussões no seminário internacional organizado em novembro de 2008, em Brasília, pela LogoLink, daria a impressão de que os preocupados pelo tema da participação no Brasil, quiçá por uma experiência política prévia, conhecem mais sobre o funcionamento do Estado e os critérios para se aproximar de quem toma decisões do que em outros países da América Latina. A rica experiência dos orçamentos participativos no Peru

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legitimam-se pelo radicalismo de suas reivindicações. Um processo participativo, organizado em diferentes espaços, transformaria o que entendem ser suas necessidades mais urgentes.

A confusão de instâncias: os CCL, os agentes participantes e a intervenção de autoridades e de ONGs Como foi mencionada, a convocação à participação nesta debilitada sociedade civil se realiza por meio dos Conselhos de Coordenação regionais e locais e pela intervenção dos agentes participantes. No primeiro caso, trata-se de uma entidade mista formada por prefeitos e representantes de organizações sociais. Os prefeitos preferirão negociar diretamente com outras autoridades do governo subnacional por conta própria, para obter vantagens mais factíveis e imediatas do que se realizassem previamente uma ampla consulta. Os chamados agentes participantes, principalmente em espaços desarticulados, terão escassa incidência, dependerão de decisões prévias e realizadas sem consulta de autoridades locais, que fixarão unilateralmente tetos orçamentários, definindo assim os parâmetros da discussão ou da tarefa dos chamados “facilitadores”, em sua maioria provenientes de ONGs, que, em certas ocasiões, mais do que contribuir para organizar o debate e canalizar as prioridades que se expressam, acabam se desviando do que são seus próprios objetivos e os de suas clientelas ou públicos cativos, exercendo essa prática enquanto esgrimem que estão praticando uma experiência de democracia direta.

As oposições artificiais entre participação e representação Em boa medida, a justificação dos orçamentos participativos surgiu por levar em conta, às vezes por razões dignas de consideração, os limites da democracia representativa em determinadas instâncias que requerem que os cidadãos expressem diretamente sua opinião. Ocorre, no entanto, que aspirar a uma participação plena da comunidade em todas as instâncias, como se pretende, é irrealista e é até parte de uma estratégia mal urdida por frações de uma elite local para justificar suas decisões. As experiências de sucesso que expusemos são aquelas nas quais se realizam primeiramente consultas em nível de bairros ou de aldeias rurais, onde se discutem e se estabelecem prioridades, nomeia-se uma estrutura de delegados que organizam um novo debate que se sustenta nas opiniões prévias que 120

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foram recolhidas, e somente em localidades onde é possível um rápido deslocamento de um lugar a outro se pode encerrar o processo com uma assembleia geral. Do contrario, a participação é invocada no discurso e escamoteada nos fatos.

A intervenção das equipes técnicas A organização do processo, a definição de prioridades e a elaboração de projetos exigem a presença de uma burocracia qualificada de que o país não dispõe em todas as províncias e distritos. Também não existem equipes técnicas que defendam os interesses da comunidade ante as aspirações do governo local no qual trabalham. Às vezes, as equipes técnicas tentam impor seus critérios por entender, por razões que consideram justificadas, que a população não está em condições de apreciar adequadamente o que está acontecendo em determinado território. Em outras ocasiões, pretendendo também sustentar seus argumentos em motivos de boa administração ou seguindo relações de clientela ou patronagem, alteram os critérios estabelecidos pela comunidade, alegando que os perfis de projeto decididos por esta não conseguem alcançar os padrões mínimos de qualidade para que possam ser aceitos e que eles não dispõem de tempo ou de recursos para introduzir as retificações necessárias. Alguns funcionários têm propostas de orçamento participativo literalmente perdidas nas gavetas de seus escritórios. Acontece também, outras vezes, que o orçamento participativo da capital orienta o do conjunto da província, não necessariamente por má vontade, mas porque, dadas as condições existentes, é o que julgam que estão em condições de fazer. As experiências de uma discussão participativa de sucesso acontecem em geral quando as equipes técnicas de regiões e províncias se deslocam a distritos distantes e ajudam a sistematizar as necessidades que a população lhes expressa. O orçamento participativo é um processo exigente em termos de investimento em sociedades como a peruana. Requer equipes técnicas maiores e fundos para que possam percorrer sua circunscrição e fazer com que o processo transcorra de modo articulado entre uma região, uma província, um distrito.

As exigências de capacitação Os cidadãos, até para fazer valer sua própria autonomia, devem ter níveis de capacitação para tornar mais eficaz sua intervenção no A rica experiência dos orçamentos participativos no Peru

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p­rocesso. Esta capacitação deve ser distinta, mas com níveis de influência semelhantes aos da burocracia. As disposições que em teoria atendem a esta necessidade não foram regulamentadas. Então, deve ser feita uma mudança brusca de orientação caso se queira democratizar verdadeiramente o processo.

O irrealismo na elaboração dos Planos de Desenvolvimento Concertados Muitas províncias e distritos não contam com estes planos, exigidos pelas principais leis que regulam a descentralização. Em muitos casos, quando existem, não são mais do que uma lista de necessidades imprecisamente formuladas, em que coexistem ambição e imprecisão nas propostas. Em algumas ocasiões são feitas projeções para dez ou vinte anos, resultado de uma ou duas jornadas de trabalho com a participação de técnicos de alguma ONG. Em geral, é irrealista supor que este instrumento ajude a gestão a organizar o que se discute nos orçamentos participativos ano a ano. Podem existir exceções, mas a situação geral é a que foi exposta, o que faz que com frequência se recomece a mesma discussão de processo em processo, com poucos avanços substanciais.

As ínfimas funções dos Comitês de Vigilância Esta instituição, prevista em diversos manuais do Ministério de Economia e Finanças, estabelece que delegados eleitos pela comunidade podem formular denúncias a fiscais e à Controladoria Geral da República caso se comprovem irregularidades no cumprimento dos orçamentos participativos. Os conhecimentos requeridos para realizar essas acusações, tanto como as dificuldades para intervir em complexos processos jurídicos, lhes retira atribuições ao invés de conferir-lhes. Efetivamente, deveria se pensar com realismo o que estes delegados se encontram em condições de fazer e não instalá-los unicamente na cultura da suspeita. Os encarregados dos Comitês de Vigilância podem estar atentos em relação à realização das obras decididas no tempo previsto, de acordo com os fundos de que se dispõem. Em todo caso, como promove uma ONG, a DESCO, nos distritos do cone sul de Lima – San Juan de Miraflores, Villa el Salvador, Lurín e Villa María del Triunfo –, quando representantes desses comitês são instruídos adequadamente, podem supervisionar e oferecer à comunidade uma informação breve e acessível sobre obras decididas, montantes e cronogramas de execução. Estão em condições de saber 122

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então se existe correspondência entre o que se aceitou fazer e o que está efetivamente sendo executado.

Os custos da participação para os mais pobres e os especialistas na participação Os pobres, se é que têm alguma ocupação, trabalham durante longas jornadas e, se podem, em vários empregos. A diversificação e a intensidade de suas atividades impõem limites infranqueáveis. Eles não estão em condições de se envolver ativamente no orçamento participativo por falta de tempo e de recursos, a menos que tenham estabelecido alianças com setores mais organizados da sociedade local. Como contrapartida, existem determinados atores que intervêm ativamente e em todas as etapas das experiências participativas. Suas motivações são diversas, e entre elas está um genuíno interesse cívico no processo. A situação mais comum, por outro lado, na opinião que tivemos de especialistas no tema, é que essas pessoas combinam a busca de vantagens pessoais com outras dirigidas à organização, ao bairro, à comunidade a que pertencem ou que representam. Em certas ocasiões, as autoridades locais e as ONGs, por razões de eficácia, estão interessadas na permanência desses atores por serem interlocutores que, pela experiência adquirida, facilitam-lhes o intercâmbio de ideias. Podem ser finalmente cooptados, passando de simples participantes a integrantes de algumas dessas organizações. Isto não acontece somente no caso peruano, experiências nesse sentido existem também no caso brasileiro. No processo participativo se propõem problemas também para incorporar novos protagonistas. Quando o processo não se renova, ganha em seus efeitos imediatos e será afetado nos objetivos a que finalmente se propõe.

A arte e a necessidade de inovar Em sociedades heterogêneas como a do Peru, como mencionamos mais de uma vez ao longo deste artigo, buscar que confluam participação cidadã e representação requer respostas imaginativas. Não é a mesma coisa o orçamento participativo discutido em um bairro de uma grande cidade, em um pequeno povoado, em uma aldeia rural, em uma comunidade camponesa. Quando se encontra a resposta adequada em cada caso, a vida social se torna mais democrática e os governos locais se tornam mais legítimos. Do contrário, se estabelecem – velada ou abertamente – mecanismos de controle. A rica experiência dos orçamentos participativos no Peru

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Fazer um diagnóstico geral sobre os orçamentos participativos no Peru é não apenas uma tarefa tediosa, mas também uma tarefa que em parte carece de sentido. O que quisemos fazer aqui foi uma análise sem preconceitos do processo e ao mesmo tempo resgatar aquelas experiências que consideramos valiosas, diferentes umas das outras, sem seguir um padrão geral, mas preocupadas todas elas em alentar a participação cidadã.

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INSTITUCIONALIDADE PARTICIPATIVA NA COLÔMBIA: BALANÇO E DESAFIOS Fabio Velásquez C. e Esperanza González R.


Fabio Velásquez C. é Sociólogo e diretor da Unidade Executora de Programas, Fundación Foro Nacional por Colombia. Esperanza González R. é Socióloga e Presidente Executiva da Fundación Foro Nacional por Colombia.


INTRODUÇÃO A importância central da participação cidadã na estruturação dos sistemas democráticos contemporâneos modificou de maneira substancial sua configuração institucional e cultural. As formas e os significados da democracia representativa foram complementados e, até certo ponto, questionados por uma nova gramática das relações entre a sociedade e o Estado53 que colocou no coração dos sistemas democráticos noções como as de diversidade sociocultural, cidadania ativa e fortalecimento do público, além de novas práticas para a tomada de decisões sobre os assuntos de interesse coletivo. Do ponto de vista institucional, foram criados novos espaços de deliberação e de decisão, assim como mecanismos para a tomada de decisões. Também se renovaram os imaginários políticos ao terem sido acolhidos valores que outrora não tinham um peso tão significativo no funcionamento da democracia, tais como o pluralismo, a tolerância, o respeito à diferença, a construção de consensos, a reivindicação de identidades específicas, entre outros. Novos cenários de exercício da cidadania, novos valores orientadores da ação e também novos atores de carne e osso – não só o cidadão abstrato da Ilustração – como protagonistas na construção de bem-estar e de convivência coletivos. A democracia participativa se configurou assim não apenas como um sistema de instituições representativas para a tomada de decisões e para sua execução sob o império da lei (Estado de direito), mas como uma arena de encontro e uma aposta ético-política para a convivência entre diferentes. A participação foi erigida assim como um fator potencial de fortalecimento e aprofundamento da democracia e como um instrumento para a busca de bem-estar. Na Colômbia, a Constituição de 1991 se alinhou com este novo conceito de democracia, o que representou um salto qualitativo e, sobretudo, um desafio para enfrentar duas circunstâncias cuja conjugação havia produzido um grande mal-estar na maioria dos colombianos: de um lado, a crise do regime político bipartidário, regime de caráter autoritário e politicamente excludente, por meio do qual os partidos tradicionais (liberal e conservador) se reservaram o monopólio do Estado mediante um pacto de alternância no poder que começou em 1958 e culminou praticamente com a expedição da 53 Santos e Avritzer (2002). Institucionalidade participativa na Colômbia: balanço e desafios

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nova Constituição em 1991. De outro lado, o conflito armado, que no começo atingiu poucas regiões do país e, posteriormente, foi se expandindo até cobrir, no fim dos anos 1980, boa parte da geografia nacional. Dois componentes da reforma do Estado, iniciada em meados da década de 1980 e consolidada por meio da Constituição de 1991, tiveram grande relevância: a descentralização do Estado e a institucionalização de espaços e mecanismos de participação cidadã na gestão pública, especialmente em nível municipal. Por meio da descentralização, buscou-se entregar competências, recursos e poder de decisão às entidades territoriais (especialmente aos municípios), com o objetivo de melhorar a prestação dos serviços e aproximar a gestão pública do cidadão. Por meio da institucionalização da participação pretendeu-se incorporar a cidadania às decisões que a afetam. Ambos os componentes tinham uma única finalidade: recuperar a legitimidade do regime político por meio de uma redefinição da arquitetura do Estado e das regras do jogo para a tomada de decisões, e construir progressivamente o caminho para a paz. O que a institucionalização da participação perdeu em relação a estes objetivos? Quais são os traços mais característicos de seu desenvolvimento nas últimas duas décadas? Quais são seus pontos fortes e fracos? Seus êxitos e seus fracassos? Este documento pretende trazer alguns elementos de reflexão para responder a estas perguntas. Para tanto, o texto está dividido em quatro partes. Na primeira, são analisados os antecedentes da institucionalização da participação na Colômbia e os desenhos normativos e institucionais que regeram seu exercício. Na segunda parte é analisada a evolução da participação na década de 1990, por meio de um exame de seus principais traços. Na terceira parte são analisadas algumas tendências recentes e os problemas mais relevantes que o exercício da participação no país enfrenta hoje. Na seção final são mostrados brevemente alguns desafios do futuro.

A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO NA COLÔMBIA Em meados da década de 1980 foi iniciada uma mudança silenciosa na arquitetura do Estado e do regime político colombiano, resultado das reformas que entregaram aos entes territoriais, especialmente os 128

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municípios, uma cota importante de autonomia política e administrativa e recursos – que desde fins do século XIX e ao longo do século XX lhes haviam sido subtraídos pelo governo central. Um dos aspectos mais inovadores da descentralização do Estado colombiano foi a institucionalização de mecanismos e instâncias de participação cidadã na gestão pública, por meio dos quais distintos setores da sociedade podem interferir no conteúdo das políticas públicas. Mediante a reforma constitucional de 1986 e a expedição das Leis 11 e 12 desse mesmo ano, ordenou-se a eleição popular dos prefeitos e foram criados alguns mecanismos de participação, como a consulta popular municipal, as Juntas Administradoras Locais54, a participação dos usuários nas Juntas Diretivas das empresas de serviços públicos55 e a contratação comunitária56. A Constituição de 1991 e seus desenvolvimentos legislativos avançaram nesta direção, criando mecanismos de intervenção direta da população nas decisões públicas (iniciativa legislativa, consulta popular, referendo, plebiscito, revogação de mandato, “cabildo” aberto) e um bom número de instâncias de participação cidadã na gestão pública municipal. Atualmente, a Colômbia conta com uma ampla infraestrutura participativa que permite aos cidadãos intervir nos assuntos de seu município e do país, e participar de diversas formas nas decisões públicas57.

54 As Juntas Administradoras Locais (JAL) são instâncias de representação territorial das comunas (divisões territoriais dos municípios em sua área urbana) e dos “corregimientos” (divisões territoriais da área rural dos municípios). São eleitas por sufrágio universal. 55 Até aquele momento, as Juntas Diretivas eram formadas somente por representantes do prefeito e do Conselho Municipal. 56 Mediante este mecanismo, as Juntas de Ação Comunal (JAC), as Sociedades de Melhora e Ornato, as Juntas e Associações de Recreação, Defesa Civil e usuários, constituídas em respeito à lei e sem ânimo de lucro, podem contratar a administração municipal para a execução de determinadas funções ou obras. 57 O estudo de Velásquez e González (2003) identificou cerca de trinta leis que criaram mecanismos e instâncias de participação cidadã na gestão pública. Atualmente, existem mais de trinta instâncias de participação no nível municipal (juntas, conselhos, comitês, foros, mesas de concertação etc.). Também existem espaços não institucionais, que surgiram por iniciativa cidadã ou governamental, que fazem parte do novo cenário da participação na Colômbia. Neste trabalho, entretanto, interessa analisar apenas a evolução e os resultados da participação em sua dimensão institucional. Institucionalidade participativa na Colômbia: balanço e desafios

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As reformas aludidas foram inspiradas pelo propósito de instaurar a democracia participativa na Colômbia58. A ideia era transformar o regime político promovendo práticas participativas59 que envolvessem os cidadãos nos assuntos públicos, conferissem legitimidade às decisões políticas e administrativas e permitissem um desempenho eficiente e transparente das autoridades públicas. Dois elementos do contexto propiciaram estas reformas: a crise do sistema político e o agravamento do conflito armado. Com efeito, a institucionalização da participação foi a resposta do sistema político a sua própria crise, uma das mais agudas que vivera em toda a sua história republicana. Até aquele momento, o sistema político estava fechado à voz cidadã: o único instrumento de intervenção da população na cena pública era o voto para a eleição do Presidente da República e dos membros dos corpos de representação política (Conselhos Municipais, Assembleias Departamentais e Congresso Nacional). De resto, a população carecia de instrumentos para incidir nas decisões públicas. O regime podia ser qualificado como uma democracia formal e elitista, cuja direção real estava nas mãos de minorias “seletas”, eleitas pelos cidadãos em certos intervalos para que governassem em seu nome. Ademais, não era um regime competitivo; pelo contrário, em fins da década de 1950, os partidos tradicionais

58 Segundo Sader, as experiências políticas amparadas sob o rótulo de “democracia participativa” se caracterizam pela afirmação do Estado de direito, da proposta participativa, da responsabilidade social das empresas, da participação das mulheres na luta política e da reivindicação dos direitos sociais. A aposta é no aprofundamento das relações entre os cidadãos e as decisões do poder político, e no resgate dos grupos minoritários como atores sociais. Tais experiências apontam para uma reforma democrática do Estado no sentido da aproximação dos governantes com os governados e do controle dos segundos sobre os primeiros. As iniciativas de democracia participativa procuram resgatar a dimensão pública e cidadã da política, seja por meio da mobilização de setores sociais interessados na realização de políticas públicas, pressionando as autoridades para que levem em conta seus pontos de vista e suas necessidades, seja por meio da transformação / flexibilização das instituições representativas para que abram as portas à voz dos cidadãos (Sader, 2002, pp. 651 ss.). 59 Entendemos as práticas participativas como aquelas condutas que resultam da ação expressa de indivíduos e grupos no cenário público em busca de metas específicas, em função de interesses diversos e no contexto de redes concretas de relações sociais e de poder. Por meio delas, os indivíduos ou grupos, em função de seus respectivos interesses (de classe, de gênero, de geração, étnicos etc.), intervêm no cenário público, diretamente ou por meio de seus representantes, com o fim de obter bens e serviços específicos (materiais e simbólicos) e / ou de incidir nas decisões coletivas relacionadas com a distribuição de tais bens e serviços. Podem ser desenvolvidos por meio de canais institucionais ou de maneira informal. 130

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(liberal e conservador) firmaram um pacto (a Frente Nacional) para se alternar no governo, dividir milimetricamente o aparato estatal e excluir qualquer outro ator político da possibilidade de conduzir os destinos do país. Dois componentes constituíram, naquele momento, os eixos articuladores do regime político: o clientelismo e o autoritarismo. Boa parte da interação entre governantes e governados tinha lugar por meio de canais informais articulados em redes de clientela controladas ferreamente pelas lideranças bipartidárias. Como indicam acertadamente Leal e Dávila (1990), “as relações de clientela permaneceram na condição de ingrediente importante do sistema político até a Frente Nacional. A partir de então (...) o clientelismo se projetou como relação política principal para articular o sistema que se reorganizou com o novo regime” (p. 18). O outro componente do sistema político foi a resposta autoritária do Estado à mobilização cidadã, em um contexto de modernização social e política geradora de desigualdades. Tal resposta se expressou de várias formas: a exclusão política, a concentração do poder no Executivo e a repressão direta e permanente dos protestos sociais. No fim da década de 1970, um amplo segmento da população havia perdido a confiança nos líderes políticos e nas instâncias tradicionais de representação, assim como na capacidade do Estado de garantir melhores condições de existência. Esta desconfiança, aumentada pelo autoritarismo dos governantes, manifestou-se por vias bem diferentes: abstencionismo de uma parcela crescente da população que não via nas eleições um instrumento favorável aos seus interesses; protesto cidadão ante a incapacidade do Estado de atender as necessidades da população; e intensificação do conflito armado. Este último aspecto constitui uma das particularidades do caso colombiano. Desde fins da década de 1940, a história colombiana esteve marcada pela violência política. A interpretação do conflito armado na Colômbia e de suas últimas fases não é tarefa fácil, em razão da complexidade do fenômeno e das mudanças que sofreu nas últimas três décadas. Como nota bem Pécaut (2004), o conflito armado combina uma multiplicidade de estratos históricos, configurações sociais e registros de ação. Os atores que intervêm no conflito apresentam traços bem diferenciados segundo a época: uma coisa são as FARC, expressão por excelência das formas de autodefesa camponesa nos anos 1950; outra, a guerrilha – originada a partir de esquemas revolucionários surgidos na América Latina no rastro Institucionalidade participativa na Colômbia: balanço e desafios

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da revolução cubana (ELN e EPL) – de moldes marxistas; e outra as organizações paramilitares, de perfil claramente anti-insurgente. Os cenários também mudaram: até 1960, mostra Pécaut, as adesões coletivas eram dominantes na sociedade colombiana; nas duas décadas seguintes a urbanização e o desenvolvimento capitalista fizeram surgir novas camadas sociais e novos movimentos (operário e camponês), enquanto que no fim dos anos 1970 o regime político se endureceu e o perfil da ação guerrilheira mudou para o protesto político. O discurso e as práticas participativas surgiram em uma fase da violência política, caracterizada pelo papel central desempenhado por distintos grupos guerrilheiros e pelo recrudescimento do autoritarismo do regime, expresso na aplicação do Estatuto de Segurança, promulgado pelo governo do Presidente Julio César Turbay (19781982)60. Esta política repressiva foi respondida pela guerrilha com um aumento das ações violentas que levaram o governo de Belisario Betancur, no começo da década de 1980, a lançar uma proposta de diálogo, para evitar que mais sangue continuasse sendo jorrado no país, e uma estratégia de abertura democrática – condição sine qua non para o êxito de sua proposta de paz. A abertura do sistema político por meio da participação se converteu, deste modo, em um componente central da ação governamental. Assim, os anos 1980 viram um país convulsionado, mergulhado em uma profunda crise, alimentada por um movimento insurrecional que exigia um espaço no cenário político e que se nutriu das inconsequências e contradições da democracia colombiana, que “junto da manutenção de uma série de instituições próprias de um Estado de direito, e de liberdades e direitos civis, permite a coexistência paralela do estado de sítio como normalidade, de formas autoritárias e de repressão do protesto social legítimo, de grupos paramilitares e de violência privada com sustentação nas Forças Armadas, da impunidade e da falta de garantias para a vida humana, 60 “O governo de Turbay Ayala foi uma tentativa falida de extremar ao máximo a alternativa repressiva de controle da dissensão e do inconformismo social e político. Esta resposta do Estado ao conflito político, que vinha sendo gestado a partir da Frente Nacional, desembocou primordialmente na maior radicalização das forças em luta, na polarização dos setores sociais em conflito e erodiu a precária ideologia consensual. Por outro lado, a luta guerrilheira e a ação política desinstitucionalizada se viram fortemente legitimadas no âmbito popular, ante os atos de um governo que negava cotidianamente na prática os postulados ideológicos formais que sustentam o Estado de direito colombiano” (Santamaría e Silva, 1984, p. 56). 132

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bem como de evidentes expressões de intolerância e exclusão antiesquerdista” (Lopez de la Roche, 1994). Os processos de descentralização e de institucionalização de instâncias e mecanismos de participação cidadã na gestão pública foram resultado de uma dinâmica interna na qual as elites modernizadoras dos partidos tradicionais, apoiados por alguns setores da débil esquerda colombiana e pelas organizações e os movimentos sociais interessados em modificar os padrões tradicionais de exercício da política (o clientelismo e o autoritarismo), se viram obrigadas a abrir uma válvula de escape para as tensões sociais e políticas que vivia o país. A participação foi, em essência, uma oferta estatal, pressionada em parte pelo movimento social, mas inspirada principalmente pela intenção de reduzir significativamente os níveis de conflito, recuperar a legitimidade perdida do sistema político e resgatar para os setores dominantes as rédeas do poder e a confiança cidadã61. Com a institucionalização da participação se pretendeu não somente garantir uma abertura democrática de amplo alcance, capaz de permitir que os setores excluídos se envolvessem na dinâmica pública, mas melhorar a gestão dos municípios e recuperar a confiança da população em um regime até então muito débil em termos de aceitação cidadã. Durante a década de 1990 houve um desenvolvimento importante da legislação em matéria de participação. Os desenvolvimentos legislativos da Constituição se multiplicaram e conformaram uma ampla infraestrutura da participação cidadã, especialmente no âmbito municipal, que continua a se desenvolver. Além dos mecanismos de decisão direta (referendos, consultas populares, iniciativa legislativa, plebiscito, “cabildo” aberto, revogação do mandato), consagrados na Lei 134 de 1994, essa infraestrutura contempla um bom número de conselhos e comitês de participação. O Quadro 1 inclui a menção aos que tiveram maior desenvolvimento62. 61 O Ministro de Governo do Presidente Betancur, na exposição de motivos da Lei 11 de 1986, afirmou que os movimentos cívicos locais e regionais haviam chegado a um ponto tal que ameaçavam a estabilidade das instituições democráticas do país. Por isso, era preciso adiantar as reformas necessárias para atacar a raiz destas mobilizações e garantir maior estabilidade ao sistema político. 62 Não é demais mencionar que esses espaços não são de criação obrigatória em todos os casos. Existe um componente de discricionariedade das autoridades públicas para sua regulamentação, com algumas exceções, nas quais tais autoridades são obrigadas a criá-los e a anunciar sua formação. É o caso dos conselhos de planejamento e os de política social. Institucionalidade participativa na Colômbia: balanço e desafios

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Quadro 1 Espaços, alcance e agentes participativos na Colômbia Tipo de agente participativo segundo a instância SETOR

ALCANCE

TIPO DE AGENTE PARTICIPATIVO

Serviços Públicos Domiciliares (Comitê de desenvolvimento e controle social dos serviços públicos, Juntas Diretivas das Empresas)

Informação, Consulta, Iniciativa, Fiscalização e Gestão

Representantes de usuários dos Serviços Públicos para zelar pela eficiência na prestação dos serviços públicos domicilia­res.

Saúde (Associações ou Ligas de Usuários de Saúde, Comitê de Ética Hospitalar, Comitês de participação comunitária em saúde – Copacos)

Consulta, Iniciativa, Fiscalização e Gestão

Representantes da comunidade para a defesa e a proteção do direito à saúde e a prestação do mesmo.

Educação (Juntas Municipais de Educação, Foros Educativos Municipais)

Consulta, Iniciativa e Fiscalização

Cidadãos, cidadãs e representantes da comunidade para a defesa e a proteção do direito à educação e a prestação do mesmo.

Desenvolvimento Rural (Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural)

Concertação, Decisão e Fiscalização

Representantes de organizações do setor rural que propõem e acordam políticas dirigidas ao setor e controlam sua execução.

Controle Social (Inspetorias cidadãs e Juntas de Vigilância)

Fiscalização

Pessoas a título individual e organizações sociais que decidem por vontade própria iniciar processos de vigilância e controle do uso dos recursos públicos.

Planejamento (Conselho Consultivo de Planificação de Territórios Indígenas, Conselho Municipal de Cultura, Conselho Municipal de Juventude, Conselho Municipal de Paz, Conselho Municipal de Política Social, Comitê Municipal de Deslocados, Conselhos populacionais de deficientes, de etnias, de mulheres etc. )

Informação e Consulta

Representantes de setores sociais encarregados de emitir pareceres sobre propostas de planos locais (globais, setoriais, territoriais) e de acompanhar sua execução. Também promovem a consideração de problemáticas específicas no marco do desenho de políticas públicas.

Fonte: Elaboração própria.

Como se observa no quadro, existem espaços globais, setoriais e populacionais. Estes últimos, dentre os quais cabe mencionar o Conselho Municipal de Planejamento, o Conselho Consultivo de Ordenamento Territorial, o Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural e algumas inspetorias cidadãs, caracterizam-se pelo fato de que sua referência é o município ou a cidade em seu conjunto ou um segmento territorial “meso” (comuna ou “corregimiento”), e não um setor (educação, saúde, meio ambiente) ou um grupo social em particular (jovens, comunidades étnicas, deslocados etc.). 134

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Outra forma de classificá-los é segundo o tipo de representatividade: territorial, institucional e social. A primeira toma como referência o território: os agentes participativos intervêm representando um segmento sociogeográfico do município e sua designação ou eleição se faz com esse critério. Na segunda categoria, o espaço de participação é formado fundamentalmente por pessoas que representam instituições (entidades não governamentais, universidades, corporações, cooperativas, setor privado) e não conjuntos populacionais ou organizações sociais de base. Os conselhos de paz, de atendimento aos deslocados, os comitês interinstitucionais de deficientes e outros similares, são exemplos desta categoria. Finalmente, o grupo mais amplo é formado pelos órgãos de representação social. Sua natureza está ligada à expressão de interesses sociais particulares na cena pública. É uma categoria altamente heterogênea que pode ser desmembrada segundo critérios muito diferentes. Por exemplo, de um lado podem ser caracterizados canais de representação global, como o Conselho Territorial de Planejamento, o Conselho Consultivo de Ordenamento Territorial ou as audiências públicas, nos que intervêm agentes de origem social e territorial muito diferentes para a discussão de temas que geralmente abarcam o conjunto de facetas da vida municipal; de outro lado, canais de representação setorial ou funcional (conselhos de juventude, instâncias nos âmbitos de educação e saúde, meio ambiente etc.), nos quais a referência é um âmbito particular da vida da cidade ou um grupo social específico. As instâncias setoriais, segundo se pode observar no Quadro 2, são as que têm maior peso quantitativo no conjunto.

Quadro 2 Alcance das instâncias de participação cidadã (%) TIPO DE TAREFAS

%

Informação

17,2

Consulta

34,5

Iniciativa

82,8

Fiscalização

58,6

Concertação

34,5

Decisão

27,6

Gestão

34,5

Institucionalidade participativa na Colômbia: balanço e desafios

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Um último traço dos espaços de participação é seu limitado alcance decisório. Efetivamente, a leitura das funções de cada um deles indica que seu trabalho gira principalmente em torno de atividades de iniciativa e fiscalização e, em menor grau, de consulta, concertação e gestão (Quadro 2).

A DÉCADA DE 1990 Este amplo espectro de instâncias de participação mostra uma grande riqueza a partir do ponto da oferta de espaços e de sua cobertura e alcance. O problema é que tal riqueza não se traduziu necessariamente, durante a década de 1990, em processos de mobilização cidadã em torno da questão pública, na democratização da gestão e, principalmente, na incidência da cidadania na formulação, execução e acompanhamento das políticas públicas; pelo contrário, parece ter se ampliado a brecha entre a institucionalidade participativa, as condutas da população no cenário público e seus resultados em termos da modernização e democratização da gestão. Como explicar essa “defasagem” entre a oferta institucional de participação e as dinâmicas cidadãs de mobilização em torno da questão pública?63 O exercício da participação requer dois tipos de condições: em primeiro lugar, um ambiente sociopolítico favorável, isto é, um conjunto de opções que o ambiente social e político oferece em relação a quais os atores tomam a decisão de participar na busca de bens públicos. Entre tais opções podem ser mencionadas o grau de abertura do sistema político às demandas sociais e ao protesto cidadão, a presença ou ausência de grupos de apoio aos atores participantes, o grau de unidade das elites políticas e a capacidade do governo para criar seus planos e programas. Estes elementos alteram os custos e a “rentabilidade” da ação coletiva, de maneira que estimulam ou freiam a participação.

63 Não é demais mencionar que o país registrou experiências de sucesso de participação em muitos lugares no decorrer das duas últimas décadas. Entretanto, tais experiências, sem dúvida importantes, continuam sendo minoritárias em número no panorama dos cenários institucionais de participação. Além disso, vários dos processos de sucesso respondem, antes, a dinâmicas não institucionalizadas que não passam necessariamente pelos canais estabelecidos na norma. 136

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Em segundo lugar, a constituição de identidades coletivas: os atores podem aproveitar um ambiente favorável na medida em que estejam em condições de atuar em sintonia com tais circunstâncias. Assim, são fundamentais para garantir o êxito das práticas participativas o grau de articulação / desarticulação dos atores, de homogeneidade / heterogeneidade entre eles, a densidade da trama de suas relações, em outras palavras, a consistência de sua identidade como grupo. A análise deste aspecto inclui, ainda, aspectos como os níveis de organização dos participantes, as lideranças, as redes de compromisso estabelecidas, os recursos (de informação, saberes, meios logísticos, recursos materiais etc.) dos quais dispõem para se envolver em um processo participativo, e as motivações que os levam a desenvolver práticas participativas. A combinação destes dois tipos de condições pode ser muito variada e dá lugar a dinâmicas e a resultados diferentes. Do ponto de vista do ambiente sociopolítico, um fator determinante, mas não único, que incide nas dinâmicas de participação são as estratégias utilizadas pelos agentes governamentais para a operação dos processos participativos. São estratégias diferentes, que obedecem a leituras diferentes da realidade local e, especialmente, a interesses que se projetam na cena política. O estudo já citado de Velásquez e González (2003), encontrou cinco diferentes estratégias dos atores governamentais frente aos cenários de participação: • A participação-formalidade: é a participação entendida unicamente como um requisito formal que é preciso satisfazer para cumprir com as exigências da norma. São criadas instâncias, mas elas não recebem nenhum estímulo ou apoio de parte das autoridades governamentais. Inclusive, em algumas ocasiões estas procuram fazer com que os canais não funcionem e se tornem inócuos, de maneira que percam legitimidade e morram por falta de apoio governamental e / ou cidadão. • A participação “sem asas”: é aquela em que as autoridades locais promovem sempre e quando as práticas participativas não colocam em questão as lógicas e as estruturas de poder vigentes no município. Ela é objeto de falas, ponderações e respaldo, inclusive com fundos municipais, mas, ao mesmo tempo, ela é “truncada” para que não se converta em um instrumento de construção de contrapoderes em favor de setores tradicionalmente excluídos dos circuitos de tomadas de decisões. Institucionalidade participativa na Colômbia: balanço e desafios

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• A participação-integração-cooptação: é aquela que as autoridades locais promovem para evitar que correntes de pensamento e de mobilização cidadã atuem contra a lógica dominante do sistema político local. Um dos instrumentos mais importantes utilizados para atingir este propósito, mesmo não sendo o único, é a cooptação de velhas e novas lideranças por parte das autoridades locais e suas organizações políticas, para que atuem em benefício dos interesses políticos hegemônicos na vida local, ao invés de a favor das necessidades e aspirações da população que, supostamente, representam. • A participação-concertação: este conceito coloca a tônica e a construção coletiva de acordos em torno de objetivos comuns e dos meios para alcançá-los. Duas ideias são centrais nesta noção: o pluralismo sociopolítico e a intervenção direta da cidadania na análise de seu entorno e na tomada de decisões. • A participação-modo de vida: aqui a participação não é concebida como uma atividade adicional à rotina diária das pessoas, como algo que exige esforços adicionais e custos (de tempo, de recursos etc.), mas como um valor e uma norma social interiorizados desde a infância, que levam as pessoas a se envolverem em dinâmicas coletivas não tanto para a obtenção de um benefício específico, apesar de que tal estímulo possa existir, mas principalmente porque é bom fazê-lo e dessa forma o coletivo social se beneficia e se fortalece. Estas estratégias podem ser combinadas e, além disso, mudar com o tempo. A elas, ademais, somam-se outros fatores, como a garantia de liberdades de associação e expressão, não totalmente obtida na Colômbia, e a existência de atores do entorno, como as ONGs, a cooperação internacional, os meios de comunicação, as igrejas etc., que, no caso colombiano, desempenharam um papel importante para dar suporte técnico, social e político às práticas participativas. O balanço dos fatores do ambiente sociopolítico na Colômbia não é o melhor, no sentido de que, depois de duas décadas de experiências participativas por meio de espaços institucionais, alguns setores governamentais continuam olhando esses tipos de dispositivos com desconfiança. É preciso reconhecer, não obstante, que essa atitude está mudando pouco a pouco e que o papel de outros atores (as universidades, as ONGs, a Igreja e a cooperação internacional) foi relevante para dar dinâmica à participação, especialmente em nível municipal. Tais atores estimularam os processos de planejamento 138

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participativo, os orçamentos, o controle social da gestão pública e seus resultados, a concepção de políticas setoriais e populacionais com a participação dos interessados, entre outros. Do ponto de vista dos atores da participação, o que deve ser reconhecido em primeiro lugar é que a “oferta” participativa estatal de participação estimulou de algum modo a emergência de novos atores que intervêm nos cenários públicos e lutam para encontrar um lugar nela para fazer valer seus interesses. Em tal luta, os velhos atores sociais, muitos deles vinculados estreitamente ao mundo da política local, tentam manter seu lugar, dando oportunidade para o surgimento de tensões no exercício da liderança e a novas formas de relação entre a sociedade e o Estado no plano local. De acordo com a pesquisa de Velásquez e González, observam-se certas tendências do ponto de vista dos atores. Em primeiro lugar, participam mais pessoas que vivem nos municípios grandes (cidades) do que em pequenos municípios, dado que nas primeiras existem e operam mais espaços e mecanismos. Em segundo lugar, participam mais as pessoas que pertencem aos estratos médio-baixo, médio e alto do que os que figuram nos estratos mais baixos da população. Seria normal esperar que estes últimos fossem os que mais interviessem devido às carências que sofrem. Entretanto, não é assim. Eles mostram grande desconfiança nas esferas institucionais ou buscam o acesso a bens e serviços através de outros meios, em particular pelas redes clientelistas, ou simplesmente ficam excluídos desse acesso. Por último, participam proporcionalmente mais mulheres e pessoas adultas, maiores de 55 anos, do que homens e jovens, exceção feita aos conselhos de planejamento, nos quais a população jovem tem maior presença. Isto não significa que exista igualdade de condições e de oportunidades para as mulheres e para os homens. Existe uma espécie de divisão sexual do trabalho no mundo da participação, em que as mulheres convocam, animam, realizam o trabalho manual e dão apoio logístico, enquanto que os homens tomam a palavra, ocupam em sua grande maioria os cargos de representação e têm maior peso na tomada de decisões. A cultura patriarcal ainda é dominante nos processos participativos. Cabe ressaltar o surgimento, no cenário público, de um conjunto de novos atores como as mulheres, alguns jovens, minorias étnicas e adultos idosos, que em suas pretensões aspiram a renovar as estruturas tradicionais de liderança e, de fato, estão entrando de maneira notória em vários espaços como os conselhos de planejamento e as Institucionalidade participativa na Colômbia: balanço e desafios

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inspetorias cidadãs, os conselhos de juventude, os conselhos de cultura e outras instâncias setoriais. A renovação das lideranças sociais é um fato incontestável e, ademais, reconhecido pela população. Contudo, isto provocou tensões não desprezíveis entre velhos e novos líderes, que ainda não foram resolvidas. Os líderes tradicionais resistem a ceder quotas de poder em suas organizações e seus lugares de residência, enquanto as novas camadas de líderes lutam para ocupar cargos de representação e por ter maior visibilidade nas decisões públicas. Uma das manifestações da resistência das lideranças tradicionais a ceder seu lugar a novos dirigentes é o “polimembrismo”. Consiste no pertencimento de um mesmo líder a vários espaços, monopolizando desta maneira a representação social, as oportunidades de decisão e os benefícios disto derivados. São precisamente os líderes tradicionais – por sua maior experiência, seus conhecimentos, suas relações e sua capacidade de negociação – os que apresentam com maior frequência este fenômeno. Isto levou a uma certa “profissionalização” da participação e, em alguns casos, a uma burocratização dos cargos de representação social nos cenários de participação. Apesar dessa fenomenologia que mostra como tendência dominante as práticas de participação através de espaços institucionais, devemos reconhecer que tais instâncias de participação possibilitaram à cidadania começar a ter uma incidência nas decisões que as autoridades locais devem tomar, permitiram relações mais próximas entre as autoridades e a cidadania, incentivaram uma maior preocupação com os assuntos públicos por parte da cidadania e incrementaram as ações de controle social com o objetivo de resolver as necessidades mais prementes da população.

As fraturas O que a experiência participativa na década de 1990 na Colômbia mostra é uma série de “fraturas” que limitam seu alcance e seu impacto positivo em termos da democratização das decisões públicas, especialmente no âmbito municipal: • Fratura entre as distintas instâncias de participação: cada uma delas atua segundo sua própria lógica, o que acaba por fragmentar os atores e dispersar as ações. • Fratura entre iniciativa governamental e a ação cidadã: a oferta participativa estatal e a direção que é lhe dada pelas autoridades go140

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vernamentais e os agentes políticos nem sempre coincide com as demandas cidadãs, o que provoca desencontros e ineficiências na operação das instâncias de participação. • Fratura entre representação política e participação cidadã: os agentes políticos e os líderes sociais nem sempre estão de acordo na definição dos objetivos e do alcance da participação, o que produz tensões entre eles e limita a eficácia da participação. • Fratura entre interesses particulares e interesses coletivos: a participação nas instâncias criadas se converte, às vezes, em um “campo de batalha” para a obtenção de objetivos que não necessariamente concorrem para o bem comum. Muitos dos agentes que intervêm em processos participativos atuam com uma lógica de poder “soma zero”. Assim, acaba por se desenvolver uma forte tendência ao neo­corporativismo na lida com os assuntos públicos. • Fratura entre líderes sociais e suas bases: o “polimembrismo” e a profissionalização dos agentes que intervêm nos espaços institucionais estratificaram o universo da participação e tendem a produzir um fenômeno de “elitização” da liderança que distancia os líderes de suas bases e produz fenômenos de autorreferenciação na ação coletiva.

TENDÊNCIAS RECENTES Esta década foi marcada pelo intento de um setor majoritário da elite política de implantar no país um projeto autoritário, no marco das formas democráticas vigentes (Estado de direito, eleições, funcionamento de órgãos de representação política, igualdade formal diante da lei). Como mostram Dagnino, Olvera e Panfichi (2006), o projeto autoritário se inclina por um Estado forte, centralizado, no qual a figura do governante concentra todo o poder e está por cima de qualquer outro ator político; restringe a atuação das instituições democráticas e desconhece a sociedade civil como interlocutora do Estado; os direitos políticos são reduzidos ao mínimo e os direitos sociais são praticamente desconhecidos; o protesto é criminalizado e a participação cidadã não é vista com bons olhos, salvo se por meio dela se apoia e exalta o regime político. Os espaços de participação não existem ou são cooptados pelo Estado. Este projeto é representado pela figura do Presidente Álvaro Uribe, que desde sua chegada ao governo arremeteu contra as instiInstitucionalidade participativa na Colômbia: balanço e desafios

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tuições estabelecidas pela Constituição de 1991 e empreendeu uma série de reformas que minaram os princípios democráticos desta última64. Em matéria de participação, o modelo proposto pelo Presidente Urbe (o “Estado comunitário”) se baseia em dois princípios fundamentais: em primeiro lugar, debilitar a autonomia das entidades territoriais e, em consequência, a descentralização, por meio da recentralização de competências e recursos. Dessa forma, o cenário básico da participação (os municípios) perdeu força do ponto de vista da atenção aos problemas da população, o que, por sua vez, diminuiu o alcance e o impacto da participação cidadã65. Em segundo lugar, diminuir a força dos espaços de participação cidadã e propiciar outra forma de relação entre o Estado e a cidadania, que passa, de um lado, pela desinstitucionalização das instâncias de mediação (os cenários de participação) e, de outro, por uma relação direta, sem intermediários, entre o presidente e os cidadãos para resolver diretamente seus problemas. O instrumento, por excelência, utilizado pelo presidente são os Conselhos Comunitários que realiza todos os sábados em um bairro diferente. Em tais Conselhos, o presidente seleciona seus interlocutores e, em um diálogo direto com eles e com suas autoridades, busca resolver problemas concretos por meio da entrega direta de fundos. Este modelo foi adotado por um bom número de prefeitos e governadores. A tendência é, pois, para a desinstitucionalização da participação e a implantação de uma modalidade de relação direta entre o mandatário e a população, que centraliza no primeiro um grande poder de discricionariedade com respeito às decisões públicas, em particular as decisões sobre inversão de fundos públicos. O que foi exposto levanta uma tensão entre dois modelos de relação entre os governantes e os governados: de um lado, o modelo “tradicional”, que opera com base nas instâncias formais de participação, segundo regras de jogo estabelecidas na norma; de outro, o modelo de discricionariedade, que relaciona a autoridade pública 64 Nos referimos à reeleição presidencial imediata, à mudança no regime de transferências aos municípios e departamentos, à reforma política e da justiça, à lei de justiça e paz para favorecer os paramilitares desmobilizados e à desinstitucionalização da participação cidadã, entre outras mudanças. 65 Embora os prefeitos ainda mantenham um certo nível de autonomia para atender os assuntos de sua jurisdição, a presidência, por meio do Conselho de Ação Social e Cooperação Internacional, começou a intervir nos assuntos locais com a entrega de investimentos diretos em infraestrutura e da entrega de subsídios solicitados em campos que por lei são de competência dos entes municipais. 142

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com a cidadania por meio de uma relação pessoal, não institucional, na qual a primeira concentra o poder de decisão e converte a segunda em um ator dependente das decisões políticas, sem capacidade de incidir nelas, para além do que se pode fazer por meio do diálogo direto. Esta tensão não está resolvida, o que significa que o modelo tradicional segue vigente, mesmo que tenha menor impacto do que antes, enquanto o modelo discricional tende a se generalizar. São duas lógicas bem diferentes, que não têm zonas de contato entre si, mas que colocam para a população um dilema importante sobre seu estatuto de cidadania: ter a capacidade de incidir de maneira autônoma nas políticas públicas, por meio de instâncias e mecanismos regulados por normas precisas, ou ser acolhida pelo poder dos mandatários que tudo engloba e depender de sua discricionariedade para receber os benefícios do investimento público. Um segundo aspecto que ganhou peso nas discussões sobre a participação na Colômbia em anos recentes é o relativo às relações entre participação cidadã e representação política. O tema foi examinado por diversos analistas (Santos e Avritzer, 2002; Bacqué, Rey e Sintomer, 2005; Tatagiba e Teixeira, 2007), que propõem modelos diferentes de relação entre ambos os elementos. Santos e Avritzer afirmam que a participação cidadã surgiu como resposta às limitações dos modelos hegemônicos de democracia, baseados no mecanismo de representação. Bacqué, Rey e Sintomer concordam com eles nesse diagnóstico, mas vão mais longe ao apresentar três formas de relação entre representação e participação: em primeiro lugar, a remobilização política através de dinâmicas participativas. Estas seriam um complemento de proximidade da democracia representativa. Um segundo tipo de articulação é a substituição de um modo de participação por outro. Neste caso, a participação põe em prática sua própria capacidade de decisão em domínios muito específicos, sem necessidade de se articular com as estruturas representativas clássicas. Os grupos comunitários operam então como grupos de pressão que exercem influência sobre os poderes políticos, constituindo formas de representação de minorias e deixando intacto o sistema político tradicional. Finalmente, outro modelo é o de uma combinação entre as formas convencionais e não convencionais da participação, em um jogo que se pretende que seja positivo: “a ideia é dotar as estruturas participativas de um verdadeiro poder, de maneira que dinamizem o sistema representativo por essa via” (Bacqué, Rey e Sintomer, Institucionalidade participativa na Colômbia: balanço e desafios

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2005, p. 34). Segundo os autores, o orçamento participativo brasileiro se inscreve nesta linha, pois busca transformar o sistema político mediante um apoderamento da cidadania. Por sua parte, Tatagiba e Teixeira, analisando a gestão da prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, do Partido dos Trabalhadores, procuram demonstrar que o ideal de complementaridade possível e desejável entre democracia representativa e participativa não conseguiu ser rea­lizado na cidade e que, pelo contrário, “as instâncias participativas – principalmente no nível local – ficaram profundamente ‘contaminadas’ pelo jogo político que é próprio do processo de formação das maiorias eleitorais” (Tatagiba e Teixeira, 2007, p. 19). Em consequên­cia, preferem falar de uma “acomodação ou combinação subordinada” da participação na representação política. Haveria aqui uma quarta forma de articulação da participação e da representação política, diferente das três mencionadas por Bacqué, Rey e Sintomer, ou seja, a subordinação da participação às lógicas da representação política, lógicas que são vistas de maneira negativa (“contaminação da participação pelo jogo político”) e que impediriam a complementaridade necessária entre os dois componentes para garantir uma governança democrática. Esta nova forma estaria próxima à forma de substituição, que mencionam os autores franceses, no que diz respeito às práticas participativas – que seriam relegadas à periferia do sistema, criando uma “institucionalidade paralela” e com escassa capacidade de incidência nas decisões públicas –, mas acrescenta um novo ingrediente, a subordinação da participação às dinâmicas e critérios da representação política. Tal subordinação significa que as lógicas político-partidárias, estreitamente ligadas ao clientelismo, à divisão de cargos entre os representantes políticos em troca de apoio às iniciativas do Executivo, ao jogo eleitoral e à decisão em mãos dos grupos políticos, se impõem sobre as aspirações democratizadoras da participação cidadã, reduzindo significativamente sua eficácia social e política e a incidência dos cidadãos nos assuntos públicos. O que acontece no caso colombiano se aproxima bastante ao mostrado por Tatagiba e Teixeira, e a um dos modelos propostos por Bacqué, Rey e Sintomer. Efetivamente, a participação institucionalizada surgiu na Colômbia nos anos 1980 como uma resposta à crise de legitimidade do regime político e dos atores do sistema político. Nesse sentido, foi entendida por muitos setores, especialmente aqueles que haviam sido secularmente excluídos das decisões políti144

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cas, como um substituto da representação política. Os agentes participativos teriam, então, o que os agentes políticos não conseguiram: satisfazer as demandas cidadãs e incidir nas respostas do governo a tais demandas. O efeito de substituição é claro. Entretanto, essa substituição não significou um apoderamento da cidadania em relação à tomada de decisões, mas uma concentração de poderes nos representantes políticos em detrimento da tomada de decisões autônomas por parte da população e seus representantes nas instâncias de participação. Aqui houve uma flexibilização do conceito, um efeito de subordinação, no sentido de que finalmente as decisões são tomadas pelos agentes políticos e são muito poucos os cenários nos quais a participação consegue incidir nessas decisões. O resultado dessas dinâmicas foi uma série de tensões entre os atores políticos e os atores da participação. Os primeiros deslegitimam os segundos afirmando que não foram eleitos por sufrágio universal – isso acontece na maioria das instâncias de participação –, enquanto eles o foram. Inclusive, argumentam que a participação não tem muito sentido, pois a eleição popular dos mandatários, com base em um programa de governo, lhes outorga total liberdade de ação, o que, em última instância, torna desnecessária a participação nas decisões públicas. Os segundos, por seu lado, acusam os primeiros de incapacidade para resolver os principais problemas da população, basicamente porque operam em função de seus próprios interesses e não dos interesses do conjunto da população. Finalmente, um elemento de grande atualidade, mesmo tendo feito parte dos processos na década anterior, é o do impacto do conflito armado na gestão municipal. A relação pode ser vista de dois ângulos diferentes: de um lado, o conflito armado teve um impacto negativo no exercício da participação, na medida em que esta última pôde se converter em um instrumento para desafiar o poder dos atores armados, especialmente do ponto de vista da denúncia da violação dos direitos humanos. Neste sentido, os atores armados, especialmente do lado dos paramilitares, definiram os líderes sociais como objetivos militares, o que se traduziu na ameaça, no sequestro e na morte de milhares de dirigentes sociais em vários rincões do país. Desse ponto de vista, o conflito foi um desativador da liderança social e das práticas participativas. Por outro lado, o conflito armado se converteu, para algumas comunidades, em um incentivo, um estímulo para construir a paz e se opor à arremetida dos atores armados contra eles, por meio de Institucionalidade participativa na Colômbia: balanço e desafios

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movimentos de resistência civil e de não-violência. Isto foi evidente nas comunidades indígenas, mas também em outras zonas, como o Médio Magdalena, onde diferentes comunidades decidiram trabalhar integralmente pela paz em seu território. Destas duas tendências, a primeira – o efeito negativo do conflito sobre a participação – é a dominante, o que resulta preocupante do ponto de vista da sustentabilidade do sistema democrático na Colômbia. Assim, estamos falando mais de uma democracia formal do que real – pois abre espaço ao modelo autoritário que, como se afirmou, tende a se impor no país.

OS DESAFIOS Falar de desafios sobre a participação significa colocar em primeiro plano a necessidade de defender e fortalecer as instituições democráticas no país. A participação foi um estímulo importante para uma grande quantidade de segmentos sociais, secularmente excluídos das decisões públicas na Colômbia, para incidir nas decisões públicas. Não somente criou expectativas em sua origem, mas também demonstrou, nos casos de sucesso especialmente, que é uma janela de oportunidade não desprezível para fortalecer a democracia e encontrar solução aos grandes problemas do país e de sua população. Por tal motivo, é necessário blindar a institucionalidade participativa do acosso do modelo autoritário que se pretende implantar na Colômbia. Isto significa fortalecer os espaços de participação e evitar que a desinstitucionalização da participação e a discricionariedade das autoridades na tomada de decisões se imponham como regras para o futuro. É verdade que os cenários de participação não são os melhores, que há dispersão, fenômenos de burocratização e de cooptação dos líderes sociais pelos agentes governamentais. Mas continuam sendo uma trincheira importante na batalha pela democracia real na Colômbia. É preciso aperfeiçoá-los, sem dúvida, ao invés de acabar com eles. É necessária uma reforma do estatuto legal da participação na Colômbia para evitar a dispersão de normas e de espaços, para articular os diferentes âmbitos da participação e para criar incentivos e condições que levem as pessoas a se apropriar desses espaços e a utilizá-los com critérios de bem coletivo.

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O que foi exposto passa por uma democratização as instituições de participação. Na Colômbia cabe perfeitamente a proposta de democratizar a democracia e de cidadanizar a política. Em ambos os casos, trata-se de evitar que os espaços de participação se convertam em objeto de espoliação por parte de certas elites da participação que pretendem monopolizar as decisões e obter benefícios particulares mediante seu uso. É fundamental ampliar a base cidadã dos espaços de participação e garantir que estes produzam resultados que beneficiem um segmento cada vez mais amplo da população, em especial de quem mais quer ter visibilidade por meio de tais espaços e deixar claras suas aspirações. A educação para a cidadania é, nessa linha, uma necessidade inadiável. Desde as crianças até os adultos é preciso empreender uma intensa ação de sensibilização em relação aos assuntos coletivos. O medo provocado pelos atores armados e a indiferença de grande parte da população por estes temas têm de ser revertidos como tendência dominante. Os exemplos já comprovados no país acerca do potencial da ação solidária para enfrentar o conflito armado e renovar as lideranças sociais e políticas tradicionais constituem a prova de que é possível mudar o rumo. É nessa lógica que devem ser socializadas as crianças e educados os adultos. Finalmente, é necessário romper a barreira que separa a representação política da participação cidadã. Isso passa necessariamente por um exercício de reconhecimento do outro como um adversário e não como um inimigo. Os atores políticos devem entender que as lógicas de participação podem fortalecer os sistemas democráticos. Ainda mais, é necessário que os partidos políticos apostem no fortalecimento da participação, coisa que até agora não aconteceu, nem sequer no campo da esquerda política colombiana. É preciso estimular debates internos nos partidos sobre o tema e pressionar por propostas que motivem a intervenção da cidadania nos assuntos públicos. Por sua vez, os agentes participativos têm de entender que a representação política é um mecanismo necessário – mesmo não sendo suficiente – da democracia. Portanto, as lógicas de participação devem ser entendidas como um complemento necessário da representação política. A convivência e a colaboração entre líderes sociais e políticos devem ser permanentes. Será um jogo de “soma positiva” que redundará no benefício de todos.

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O contexto na Colômbia não é o melhor para enfrentar esses desafios e conseguir o objetivo de fortalecer a democracia participativa: um conflito armado não resolvido; um modelo autoritário que trata a todo custo de se implantar; uma situação de desigualdade e injustiça social insustentável; uma política pública, especialmente na ordem nacional, que concentra sua força e seus recursos para a guerra; um presidente que quer se perpetuar no poder; e, o que é mais grave, uma cidadania que em sua grande maioria segue sob os efeitos do “feitiço autoritário” de Uribe e não consegue sair desse sonho que é um pesadelo para uma porção importante de colombianos. Nada é impossível em política. Mas o que é certo é que a mudança desse contexto só poderá acontecer em prazos longos. Precisamente por serem longos, é preciso começar desde já. Tudo o mais será perda de tempo e de oportunidades.

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As Novas Institucionalidades: formas de participação comunitária do governo venezuelano desde 1999 Margarita López Maya


Este artigo contém resumos elaborados anteriormente para trabalhos do projeto: Municipal Innovations in Non-Governmental Public Participation: UK/Latin America, financiado pela ICPS-ESRC (Grã-Bretanha). Os trabalhos em questão são de López Maya (2008 e no prelo).


Entre as novas institucionalidades que o governo de Hugo Chávez Frías e seus aliados sociais e políticos estão implantando na Venezuela, encontram-se formas de participação comunitária que o governo criou ou fortaleceu para pôr em prática o princípio da participação na gestão de políticas públicas. Estas novas formas foram muito diversas e a concepção de participação que subjaz nelas foi se transformando no decorrer destes dez anos de governo. No início do mandato do presidente Chávez, as primeiras formas de participação tiveram origem em modalidades de cogestão de serviços públicos, implantadas por governos locais de esquerda nos anos 1990. Foram especialmente relevantes as experiências nas gestões locais que o partido La Causa R (LCR) ensaiou, a partir de 1989, nos municípios de Caroní, no Estado de Bolívar, no sul do país, e no município de Libertador, principal assentamento da cidade de Caracas. As Mesas Técnicas de Água (MTAs) e as Organizações Comunitárias Autogestionárias (OCAs), que serão analisadas neste artigo, começaram a se desenvolver como parte das novas experiências democratizadoras tentadas por esses governos locais. Os prefeitos e equipes que desenvolveram estas formas de participação apoiaram, em 1998, a candidatura presidencial de Chávez como militantes do partido Pátria Para Todos (PPT) ou de forma pessoal. Com o triunfo desta opção política, foram chamados a incorporar-se ao governo nacional, que instituiu essas formas de participação popular, agora como políticas promovidas desde o nível político-admi­ nistrativo nacional. Na medida em que o projeto político do presidente Chávez e de seus apoios sociopolíticos foi avançando e se consolidando, as inovações participativas foram se multiplicando e modificando suas concepções e objetivos. Por volta de 2002 aparecem os Comitês de Terra Urbana (CTU), respondendo a demandas de ativistas e organizações populares que tinham feito da problemática dos moradores pobres urbanos o centro de suas identidades e demandas. Também, em 2003, o governo Chávez estimulou a criação de Comitês de Saúde como parte da Missão Bairro Adentro I, implementada por influência e em parceria com o governo de Cuba. Por volta de 2005 começaram a se fazer notar, no discurso do Presidente, os Conselhos Comunitários de Participação Local, e em abril de 2006 a Assembleia Nacional aprovou uma lei que criou os Conselhos Comunais, uma inovação participativa sem personalidade legal e diretamente vinculada e dependente da Presidência da República. Com esta forma de As Novas Institucionalidades: formas de participação comunitária do governo Venezuelano desde 1999

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participação comunitária, o enfoque participativo ganhou uma conotação mais próxima aos modelos socialistas de Estado, especialmente ao modelo socialista cubano. Neste artigo nos concentramos principalmente nas formas de participação conhecidas como MTAs e OCAs, para analisar o tipo de Estado que o bolivarianismo procurou construir nos anos iniciais de governo. Acompanhamos com relativa profundidade a problemática que tentaram atender as normas que os regeram e, através do estudo de casos em Caracas, contribuímos para uma avaliação de seus acertos e limitações. Os casos particulares que estamos revisando são a MTA do bairro La Pedrera (paróquia Antímano), que funcionou entre 2002 e 2007, e a OCA dos bairros Carpintero e Unión (paróquia Petare), que funcionou intermitentemente entre 2000 e 2001 e depois novamente entre 2004 e 2005. Nestes dois casos foi obtida informação empírica por meio de uma metodologia de observação participativa, realizando-se entrevistas com participantes, ativistas, funcionários públicos e técnicos que apoiaram as experiências. Adicionalmente revisaremos – apoiados em informação documental e bibliográfica e algumas entrevistas com ativistas – outras formas de participação que se construíram na segunda metade do primeiro governo Chávez. Este artigo está dividido em cinco partes: na primeira é examinado o problema dos serviços públicos da cidade de Caracas. Na segunda são examinados a Constituição de 1999 e os principais instrumentos oficiais e legais que orientaram o processo de construção de formas de participação na gestão pública do primeiro governo Chávez. Na terceira abordamos com profundidade o caso da MTA La Pedrera, examinando como foram percebidas, por quem participou dessa experiência, as conquistas em relação à qualidade de vida, aquisição de destrezas para assumir corresponsabilidades de gestão pública e suas opiniões sobre a contribuição dessas experiências para um aprofundamento da democracia venezuelana. Na quarta parte faremos um acompanhamento similar para a OCA Carpintero-Unión. E no capítulo final avaliamos os pontos fortes e os pontos fracos destas primeiras formas de participação do governo Chávez, em comparação com outras formas criadas posteriormente.

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Caracas e seus problemas Caracas, como capital de um país com imensos recursos petrolíferos, foi submetida ao longo do século XX a grandes transformações. Graças à considerável receita fiscal advinda do petróleo desde os anos 1920, o Estado venezuelano promoveu um acelerado processo de modernização em todo o país, que afetou primeira e primordialmente a capital. A cidade passou de aproximadamente 100 mil habitantes no início do século XX a mais de 3 milhões no início do século XXI (INE, 2008), constituindo-se no principal foco de atração de uma significativa migração interna e externa66. Apesar das várias políticas de planejamento e organização urbana que diferentes governos desenvolveram ao longo do século, as urbes venezuelanas adquiriram a fisionomia característica de cidades com ampla população segregada dos serviços básicos e inclusive do status de cidadania67. A crise do modelo industrialista nos anos 1980 agravou esta situação68, acentuando a polarização social e territorial em ghettos de pobres e ricos. Durante o primeiro governo Chávez (19992007) e até hoje, aproximadamente metade das famílias caraquenhas se aloja em bairros populares, que carecem ou têm serviços públicos básicos seriamente deteriorados – como redes de água potável e esgoto, iluminação pública, ruas asfaltadas, moradias adequadas. Igualmente, os problemas de segurança, transporte e abastecimento de alimentos, nestas áreas, são especialmente acentuados. Em termos político-administrativos, Caracas é formada por cinco municípios governados por prefeitos eleitos, além de uma “Alcaldía” (Prefeitura) “Mayor” que coordena estes municípios no chamado Distrito Metropolitano de Caracas, com um “alcalde mayor”, também eleito. A MTA e a OCA, que analisaremos em profundidade aqui, se encontram nos dois municípios que concentram a maioria dos bairros populares da cidade: o Município de Libertador, no oeste da cidade, e o Município de Sucre, do Estado de Miranda, no extremo leste. Os municípios se dividem em paróquias. Na paróquia de Antímano, do Município de Libertador, se encontra o bairro de 66 Censo de 1891 e de 2001, mais estimativas. 67 Até os anos 1990, por exemplo, áreas de Caracas que contêm populosos bairros populares apareciam nos mapas oficiais como “zonas verdes” sem população. Isso se deve a que o assentamento ali era ilegal. 68 Calcula-se que atualmente na Venezuela 92,8% da população viva em assentamentos urbanos (Cepal, 2007). As Novas Institucionalidades: formas de participação comunitária do governo Venezuelano desde 1999

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La Pedrera, onde se constituiu em 2004 a MTA que tomamos como caso de estudo. Na paróquia Petare, do Município de Sucre, se encontram os bairros Carpintero e Unión, onde se desenvolveu a experiência da OCA que analisamos aqui.

Dados socioeconômicos das paróquias de Antímano e Petare A paróquia de Antímano tem aproximadamente 150.971 habitantes69, dos quais cerca de 15 mil pessoas – aproximadamente 3.700 famílias – viviam, na época do nosso trabalho de campo, no bairro de La Pedrera (MTD, entrevista, 2007). A paróquia, incluindo este bairro, é uma das poucas que continuou servindo de expansão territorial da cidade depois dos anos 1980, quando começou a crise econômica, recebendo tanto migração interna como do exterior. O crescimento em 2001 com relação ao censo de 1990 foi de 9%, muito alto para a média da capital, que entre 1990 e 2001 só cresceu 0,1% (INE, 2006). A paróquia de Petare, segundo o censo de 2001 com estimativas para 2006, tinha em 2006 aproximadamente 546.766 habitantes (INE, 2006), dos quais os bairros de Carpintero e Unión abrigavam cerca de 39.200 pessoas, mais de 9.500 famílias (OCAs, s/d). Em comparação com a paróquia de Antímano (ver Quadro 1), as condições socioeconômicas de Petare são ligeiramente melhores, ainda que continue sendo uma das duas paróquias com níveis significativos de pobreza e exclusão. Por outro lado, os bairros Carpintero e Unión são muito mais antigos que La Pedrera, pois começaram a ser povoados nos anos 1940. Os terrenos do Bairro Unión foram doados pelo governo do presidente Gallegos, em 1948, a camponeses que estavam sendo expulsos de terras de outras áreas da cidade pelo processo de urbanização (OCS, entrevista, 2006). Isso explica sua maior população e maior consolidação. Também na paróquia de Petare se encontram algumas áreas residenciais de setores sociais de renda média e média alta.

69 Censo de 2001 (127.708 habitantes) com estimativas do próprio INE. 156

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Quadro 1 Alguns indicadores socioeconômicos de Antímano e Petare Censo 2001 Paróquia de Antímano*

Paróquia de Petare**

Município Libertador

População hab.

150.971

546.766**

2.091.452

Residências pobreza %

28,65

15,97

16,35

Residências pobreza crítica %

6,44

2,34

2,86

Crianças não escolarizadas %

2,05

1,37

0,95

Residências em aglomeração %

17,27

11

10

H. moradia inadequada

8,31

2,09

3,7

H. sem serviços básicos %

4,41

1,68

2,9

H. com elevada dependência econômica %

4,93

2,81

3

* Antímano é uma das 22 paróquias do Município de Libertador. ** A paróquia de Petare faz parte do Distrito Metropolitano de Caracas (DMC). Por não dispor de dados do DMC, comparamos seus indicadores com o Município de Libertador e não com os do Estado Miranda, sua jurisdição federal. FONTE: INE, 2006.

Entre 2004 e 2007, as políticas fiscais e sociais favoráveis que o governo Chávez desenvolveu, principalmente as conhecidas como missões, foram diminuindo as taxas de pobreza no país em geral e, por conseguinte, também nestas paróquias de Caracas. Mas não dispomos de dados discriminados70. A deficiência nos serviços básicos, no entanto, não melhorou significativamente, como pudemos constatar em nosso trabalho de campo. Ademais, como exemplo extremo das deficiências, em novembro de 2007, ao finalizar nosso trabalho de campo, o bairro de La Pedrera desapareceu quase completamente. Chuvas torrenciais causaram profundos deslizamentos de terra que arrasaram vários setores do bairro. Voltaremos a esse assunto mais adiante. Como parte da problemática urbana popular, as paróquias de Antímano e Petare apresentam altas taxas de violência e criminalidade (ver Quadro 2). Em nossas entrevistas, em especial no bairro

70 Segundo o INE, a taxa de famílias em situação de pobreza em toda a Venezuela está em constante declínio desde 2003: em 2005 era de 35,5%, em 2006, de 31,85%, e no primeiro semestre de 2007, de 27,5% (INE, 2008). As Novas Institucionalidades: formas de participação comunitária do governo Venezuelano desde 1999

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de La Pedrera, o problema da violência apareceu constantemente como um obstáculo para participar das diferentes iniciativas governamentais 71.

Quadro 2 Homicídios e roubos registrados em Antímano e Petare 2002-2006 (Taxa x 100.000 habitantes) Paróquia de Antímano

Paróquia de Petare

Distrito Metropolitano de Caracas

Homicídios

Roubos

Homicídios

Roubos

Homicídios

Roubos

2002

110

209

101

210

51

266

2003

166

194

97

192

51

281

2004

71

111

55

117

37

179

2005

64

64

69

67

35

90

2006

76

60

72

65

37

91

FONTE: Centro de Estudos para La Paz, UCV, 2007 (relatório parcial) e cálculos próprios.

O contexto sociopolítico dessas inovações As formas de participação que estudaremos mais detalhadamente aqui, as MTAs e as OCAs, foram criadas nos anos 1990 por governos locais do LCR e atores sociais progressistas que buscavam novas soluções para as problemáticas urbano-populares do país. Em 1998, quando aconteceu a vitória do movimento bolivariano liderado por Hugo Chávez, estas modalidades encontraram a possibilidade de expandir-se com o novo projeto político de democracia participativa que se materializou na Constituição da República Bolivariana da Venezuela (CRBV) de 1999. O novo enfoque participativo do Estado venezuelano, aprovado na CRBV, teve origem no desenvolvimento sociopolítico das décadas anteriores. Já nos anos 1980, no processo de reforma do Estado, conseguiram-se consensos políticos para ampliar a participação cidadã, em especial por meio de um processo de descentralização político-administrativa e de mecanismos participativos, como os referendos, no nível local (Gómez Calcaño e López Maya, 1991). No entanto,

71 Nos dados de roubos em paróquias com maioria de bairros populares os números são menores porque as pessoas denunciam menos que em paróquias residenciais de classes média e alta. 158

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ao contrário das experiências locais concretas desenvolvidas nos anos 1990, no primeiro governo Chávez as formas de participação como as MTAs e OCAs foram promovidas pelo Executivo Nacional e como políticas nacionais. Isto lhes confere outras características. Em Caracas, por exemplo, constatamos que os governos municipais de Libertador e Sucre, assim como a Alcaldía Mayor, apesar de terem obrigações legais claras sobre o fornecimento dos serviços de água e ordenamento urbano, e apesar dos prefeitos serem do partido do Presidente, não participaram primordialmente das inovações participativas que analisamos aqui. Deixaram que o governo nacional as promovesse e, segundo os entrevistados, não as apoiaram ou o fizeram só ocasional e debilmente. Neste sentido, ao contrário dos anos 1990, as novas formas de participação comunitária surgiram desvinculadas de enfoques e orientações de descentralização político-administrativa.

O conceito de participação no bolivarianismo O quadro constitucional e a orientação do planejamento público Em termos teóricos, o conceito de participação tem diversas origens, possui múltiplos significados e pode ser abordado a partir de diferentes perspectivas (Involve, 2005). Por isso, para compreender as primeiras inovações participativas do governo Chávez é necessário concentrarmos no conceito de participação que aparece no discurso governamental, contido principalmente na CRBV e nas Linhas Gerais do Plano de Desenvolvimento Econômico e Social da Nação 20012007 (de agora em diante LGDESN, 2001). A democracia “participativa e protagonista” na CRBV consagra o direito à participação dos cidadãos de forma “direta, semidireta e indireta” não só no processo de sufrágio, mas também de “formação, execução, e controle da gestão pública” (Exposição de Motivos, 1999). Este enfoque que dá à participação uma conotação de princípio modelador de uma “nova” democracia e / ou de um novo Estado, é muito diferente do enfoque que norteava a Constituição de 1961. Ainda que se mantenham na nova Carta Magna os princípios e formas da democracia representativa – como a divisão e autonomia dos poderes públicos, bem como o sufrágio universal –, considera-se a participação cidadã para diferentes atividades políticas e de gestão As Novas Institucionalidades: formas de participação comunitária do governo Venezuelano desde 1999

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pública, em todos os níveis da administração, como elemento fundamental para transformar as relações de poder profundamente desiguais que existem na sociedade (artigo 62). Nas LGDESN 2001-2007, por outro lado, afirma-se que a participação é um meio que propicia o autodesenvolvimento das pessoas, conscientiza sobre a corresponsabilidade e impulsiona o papel de protagonista dos cidadãos, que seriam os atributos necessários para que emerja uma sociedade igualitária, solidária e democrática. Neste enfoque da democracia, o Estado mantém um papel de ator fundamental, mas como “acompanhante” da sociedade civil; é criador de condições que possibilitem o empoderamento dos cidadãos, mas o protagonista não é ele, e sim o povo (LGDESN, 2001). Por meio da crescente participação na gestão pública, indivíduos, famílias e a sociedade organizada constituem-se em atores transformadores e transformados. Eles são os protagonistas, e não o Estado. Sobre estas bases gerais legitimam-se as diversas experiências participativas que se incentivaram desde os primeiros anos de governo.

As MTAs O conceito da mesa de trabalho, e dentro dela a mesa técnica de água, surgiu na gestão do prefeito Aristóbulo Istúriz, na Prefeitura de Libertador, entre 1993 e 1996. Foi compreendida como um espaço de encontro das comunidades paroquiais com funcionários do governo municipal e técnicos da companhia hidráulica estatal Hidrocapital (Arconada, 1996). O objetivo foi abrir um espaço para a troca de conhecimentos e esforços para buscar soluções às gravíssimas deficiências do serviço de água potável e esgoto de que sofriam os bairros pobres do oeste de Caracas, especialmente a paróquia de Antímano (MTD, entrevista, 2006). A MTA foi inscrita na ideia de constituir, dentro dos municípios – que na Venezuela são as unidades políticas primárias e autônomas –, governos paroquiais que descentralizassem os municípios para as paróquias, aprofundando a democracia ao aproximar o poder decisório local do povo organizado (Arconada, 1996). No final do governo Istúriz foi sancionada uma ordenança constituindo a figura do governo paroquial, mas ela foi abolida pouco depois, quando o LCR perdeu a prefeitura em 1996 e Libertador passou a ser governado novamente por um prefeito do partido AD. Logo no início do governo do presidente Chávez, as MTAs foram reativadas, desta vez pela Hidrocapital, a companhia hidráulica estatal que serve a Área Metropolitana de Caracas (AMC). A enge160

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nheira Jacqueline Farías, que fez parte da equipe de Istúriz em Libertador nos anos 1990, foi designada Presidente da companhia. As MTAs se formaram e se consolidaram no AMC e paulatinamente se estenderam para todo o país, promovidas pela Hidroven. Em 2001, as MTAs foram institucionalizadas na Lei Orgânica para a Prestação dos Serviços de Água Potável e Saneamento (2001). Em 2007 existiam aproximadamente 2.700 MTAs em todo o país (MTD, entrevista, 2007). Nesta lei, assim como na Lei Orgânica do Poder Público Municipal (LOPPM, 2005), estabelece-se que o serviço de água potável e o de saneamento são competência dos municípios e distritos municipais. Por isso a lei estabeleceu que estas entidades territoriais devem promover – junto com os prestadores de serviços (as hidráulicas) – a participação dos subscritores nas MTAs para a “supervisão, fiscalização e controle da prestação dos serviços” (artigo 11). Na prática, contudo, na capital esta vinculação não se cumpria, pois durante o ano e meio em que acompanhamos a MTA da Pedrera e o Conselho Comunitário de Água (CCA) da paróquia de Antímano, os funcionários municipais nunca estiveram presentes (MTO, entrevista, 2006; MTA, entrevista, 2006). Ressaltamos que as MTAs, segundo a lei, foram pensadas como associações de subscritores, com personalidade jurídica própria, regidas pelo Código Civil (artigo 75). No entanto, em muitos bairros populares – incluindo La Pedrera – as pessoas organizadas em MTAs não estão subscritas nem pagam o serviço de água. Também se prevê nesse artigo que os prestadores de serviços podem ser de caráter estatal ou privado. No entanto, todas as hidráulicas na Venezuela são propriedade do Estado e esta orientação tende a se consolidar no segundo mandato do Presidente. Em contraste com o artigo 75, o artigo 76 refere-se às MTAs como representantes das comunidades em geral, sem mencionar o requisito de que seus membros sejam subscritores. Como funções próprias das MTAs, este artigo menciona: a) representar suas comunidades perante as companhias hidráulicas; b) divulgar nas comunidades a informação relativa à prestação dos serviços e em especial sobre os direitos e obrigações dos subscritores; c) exigir o cumprimento de seus direitos e cumprir seus deveres; d) orientar a participação da comunidade em geral e dos subscritores e usuários em especial, no desenvolvimento e supervisão da prestação dos serviços; e) propor planos e programas para o pagamento da prestação dos As Novas Institucionalidades: formas de participação comunitária do governo Venezuelano desde 1999

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serviços e assim resolver as deficiências ou falhas que possam existir; f) colaborar com as hidráulicas nos assuntos que sejam submetidos à sua apreciação e qualquer outro que permita satisfazer adequadamente seus direitos. Como vemos, esta lei não contempla a gestão direta dos serviços de água por parte das MTAs, justamente o que a MTA da Pedrera desenvolveu por meio de seu projeto de substituição do encanamento de água potável entre 2005 e 2007, que examinaremos aqui. Para este projeto, o Presidente entregou Bs 800 milhões (aproximadamente US$ 372 mil). Este aspecto parece nos revelar uma dinâmica, existente desde o início, de tensão entre a ideia das MTAs como organizações da sociedade civil e a ideia de concebê-las preferivelmente como organizações estatais. Essa tendência resolveu-se a favor do segundo conceito, durante o segundo governo Chávez, representado pelos Conselhos Comunais. Voltaremos a este assunto quando revisarmos esta última inovação participativa. O CCA, por sua vez, é uma instância participativa intermediária, pensada para que todas as MTAs que compartilham um mesmo fornecimento de água se reúnam, a cada 15 dias, com funcionários e engenheiros da companhia hidráulica, neste caso Hidrocapital e autoridades municipais. A vinculação das MTAs de Antímano com a Hidrocapital, enquanto fizemos nosso trabalho de campo, foi muito estável. A relação com o Ministério do Meio Ambiente, com quem também tinham laços, foi menor, pois foi iniciada praticamente em 2005, quando a engenheira Farías, antes presidente da Hidrocapital, foi nomeada titular dessa Pasta e trasladou a esse Ministério o Plano de Saneamento do rio Guaire, rio que atravessa a cidade de Caracas no sentido Sudeste72. Ela vinculou os projetos das MTAs de Antímano – como o de substituição de encanamento da MTA da Pedrera – com este Plano Guaire, garantindo-lhes assim apoios e recursos.

As OCAs Foi também durante a gestão de Istúriz em Caracas, entre 1992 e 1996, que o Consórcio Catuche, uma inovação participativa não governamental antecessora das OCAs, contou com o primeiro apoio significativo por parte de um governo local. A figura do consórcio social

72 Este é um projeto de saneamento e recuperação do principal rio da cidade de Caracas, convertido em cloaca desde o início do século XX, pois nele desembocam todos os esgotos da cidade. 162

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foi uma forma participativa que surgiu no bairro popular de Catuche, da paróquia de Altagracia, no Município de Libertador, em Caracas. Foi criada pela comunidade, com alguns padres jesuítas que ali faziam trabalho comunitário e um grupo de urbanistas da Universidad Central de Venezuela (UCV), que juntaram seus conhecimentos e esforços para desenvolver um projeto de saneamento do arroio Catuche, ao redor do qual se assenta esta comunidade, que fora transformado em cloaca imunda, e também em risco hidrológico incontrolado. A ideia do consórcio social tinha implícito um tipo de organização que, ao contrário de outros tipos de empresa privada, é ativado somente para um propósito determinado e implica uma mesa de negociação entre os agentes envolvidos durante tempo limitado. Cumprido o propósito que o constituiu, desapareceu (OCV e OCB, entrevista, 2006). O Consórcio Catuche recebeu apoio financeiro da prefeitura de Libertador entre 1993 e 1996 e teve muito êxito em seu projeto participativo, alcançando reconhecimento internacional e um prêmio mundial em Istambul, em 1997. Várias outras comunidades de Caracas, como as de Anauco, na paróquia Candelária, e San Blas, em Petare, estimuladas por esse êxito, também criaram consórcios (OCVI, entrevista, 2007; OCB e OCV, entrevista, 2006). Com o governo Chávez, os consórcios sociais e depois as OCAs, derivadas do consórcio, surgiram na política nacional, promovidas primeiro pelo Conselho Nacional da Habitação CONAVI (2000-2001), depois pelo Ministério de Habitação e Habitat (2004-2005). Com um conceito de organização popular análogo ao das MTAs, as OCAs são associações civis com personalidade jurídica própria. Sua vinculação natural também é o município, pois a LOPPM estabelece que cada município tenha um plano local de desenvolvimento urbano que incluirá o ordenamento do território municipal, fará uma classificação dos solos e seus usos e regulará seus diferentes usos e níveis de intensidade, definirá os espaços livres e de equipamento comunitário, adotará as medidas de proteção do meio ambiente, de conservação da natureza e do patrimônio histórico, assim como a defesa da paisagem e dos elementos naturais. Esta lei também contempla a determinação das operações destinadas à renovação ou reforma interior das cidades, com o que, em princípio, toda organização que desejar participar da gestão para a reabilitação física dos bairros, como é o caso das OCAs, deve estabelecer vínculos com o governo local (artigo 61). A OCA Bairro Unión-Carpintero, objeto de nosso estudo, em diferenAs Novas Institucionalidades: formas de participação comunitária do governo Venezuelano desde 1999

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tes momentos teve vinculações com o Município de Sucre (OCM, entrevista, 2006). Durante a administração da arquiteta Josefina Baldó no CONAVI (2000 e 2001) – que fez parte da equipe de urbanistas que trabalharam no Consórcio Catuche nos anos 1990 –, a inovação do consórcio social adquiriu escala nacional, elaborando com apoio desta instituição cerca de 270 projetos técnicos de reabilitação física para cidades em todo o país, que se identificaram como unidades de desenho urbano (UDUS). Estas UDUS foram definidas como unidades territoriais que, desde o ponto de vista técnico, têm problemas em comum, passíveis de serem enfrentados com um projeto técnico comum. Igualmente, é desejável constituir, nessa unidade territorial, organizações autogestionárias para essa finalidade, ou seja, espaços de encontro e negociação das comunidades assentadas ali com profissionais e funcionários públicos, para juntos realizarem diagnósticos dos problemas e elaborarem programas integrais de habilitação. A UDU Bairro Unión-Carpintero foi identificada e delimitada nesse período. Até a destituição de Baldó se desenvolveram no CONAVI cinco consórcios sociais piloto, incluindo Catuche, todos dentro do AMC. As OCAs propriamente ditas foram criadas em 2004 e 2005, durante a gestão de Julio Montes no Ministério da Habitação e do Habitat. Foram pensadas como uma forma participativa melhorada dos consórcios sociais73. As OCAs, ao contrário dos consórcios, buscam a habilitação física a partir da participação das comunidades organizadas contratando, elas mesmas, os agentes técnicos e profissionais necessários, que no modelo prévio se consorciavam. Esta mudança visava fortalecer a autogestão popular. Como organizações civis, privadas, reguladas pelo Código Civil, as OCAs são autônomas para decidir como escolher as diretrizes e que estrutura lhes dar. Não existem regulamentos ou leis que as tenham regulado e, como nos consórcios sociais, mantêm o caráter descentralizado e vínculos com os municípios, pois tanto a Constituição de 1961 como a de 1999 colocam a responsabilidade da reabilitação física dos bairros e a construção de moradias nas mãos do governo municipal. No caso da Constituição de 1999, esta responsabilidade é estrita do município e não compartilhada com outros níveis, como foi o caso na Constituição de 1961. No entanto, na prática a situação foi mais frouxa enquanto fizemos nosso trabalho de campo, pois as OCAs estavam principalmente vinculadas ao Executivo Nacional. 73 Julio Montes também fez parte da equipe do prefeito Istúriz nos anos 1990. 164

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Nos bairros de Unión e de Carpintero de Petare foram realizadas, em 2005, as assembleias setoriais em que a comunidade escolheu seis delegados para integrar a OCA promovida pelo Ministério da Habitação e do Habitat. Eles mesmos elaboraram os estatutos de funcionamento, que foram aprovados em uma Assembleia Geral realizada em 17 de setembro de 2005, conjuntamente com a eleição de uma Junta Diretiva composta por um delegado de cada um dos setores (OCA, s/d). Na assembleia também foi aprovado o plano integral ou diretor de reabilitação de bairros, com um custo aproximado de Bs. 5 bilhões (cerca de US$ 2.325.000; OCM, entrevista, 2006). O presidente Chávez aprovou em agosto de 2005 os primeiros recursos dos planos diretores de todas as OCAs, cerca de 60 bilhões de bolívares, e pouco depois as obras começaram a ser executadas (OCB e OCV, entrevista, 2006). No entanto, em outubro daquele ano o ministro Montes renunciou ao cargo, após uma dura repreensão pública que Chávez lhe fez durante o programa de televisão Aló Presidente. O Presidente responsabilizou Montes pelo atraso na construção de moradias oferecidas naquele ano, e especialmente importantes para Chávez, pois já se iniciavam os preparativos da campanha para sua reeleição. Os financiamentos estatais para as OCAs foram paralisados desde então e não voltaram a ser reativados, pois os ministros que o sucederam não concordaram com a proposta. No caso da OCA do Bairro Unión-Carpintero, com os primeiros recursos conseguiu-se construir um muro de contenção no Bairro Unión e um edifício de quatro andares para diversos serviços comunitários, na parte alta do Bairro Unión (OCM, entrevista, 2006).

A MTA La Pedrera: qualidade de vida, destrezas para a autogestão e contribuições para a democracia O bairro de La Pedrera, como já mencionamos, faz parte de uma das paróquias mais pobres, violentas e com famílias com mais necessidades básicas insatisfeitas de Caracas. Além disso, é uma das zonas onde o problema da água é dos mais graves da capital (MTD, entrevista, 2006). No final dos anos 1970, segundo nossas entrevistadas(os), o governo levou encanamento de esgoto e água potável a este bairro, conjuntamente com casinhas feitas com material metálico que foram colocadas pelo Instituto Nacional da Habitação (INAVI). Também foram colocados postes de luz, que eram de madeira e “foram apodrecendo” (MTT, entrevista, 2006). Na década de 1990 a infraestrutura As Novas Institucionalidades: formas de participação comunitária do governo Venezuelano desde 1999

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estava completamente colapsada, em especial o encanamento, pelo rápido crescimento do bairro, pela posse ilegal e pela ação do tempo. As famílias tinham de se abastecer com a água que os caminhões cisterna traziam de maneira irregular e em épocas de escassez cobravam preços abusivos. No momento em que foi colocado o encanamento, em La Pedrera havia três setores ou “Planes”. Na época do nosso estudo havia dezoito (MTT, entrevista, 2006). Por volta de 2001, por sugestão do coordenador comunitário da Hidrocapital, algumas pessoas da comunidade começaram a se organizar como MTA e a assistir ao CCA de Antímano (MTT, entrevista, 2006; MTO, entrevista, 2006; MTS, entrevista, 2006). Elas se constituíram em MTA, com uma assembleia em que foram nomeadas 38 pessoas. Mas, por problemas entre eles, em 2006, quando fizemos o trabalho de campo, apenas oito pessoas trabalhavam de forma permanente e outras oito talvez quando se faziam trabalhos no setor onde viviam (MTO, entrevista, 2006; MTD, entrevista, 2007). Os membros desta MTA que entrevistamos afirmaram que tal atividade participativa havia mudado muito a qualidade de vida, tanto no plano pessoal como na comunidade em geral. Haviam conseguido uma regularização do fornecimento de água pelo encanamento antigo a cada 18 ou 20 dias. O estado desta tubulação e do fornecimento em geral era mantido e supervisionado pela brigada da Hidrocapital nessa zona, de acordo com as denúncias e informações que a MTA proporcionava a Pedrera na reunião quinzenal do CCA74. Ainda que o ciclo de fornecimento no caso das distintas zonas de Antímano e de La Pedrera era (e continua sendo) sumamente longo, sua regularização constitui uma diferença substancial em relação ao passado para as famílias, ao ter deixado para trás a incerteza dos anos anteriores sobre quando a água chegaria e a especulação brutal feita pelos donos dos caminhões cisterna. Tanto no CCA como no desenvolvimento do projeto de substituição do encanamento de água potável, que se realizou com o apoio da Hidrocapital e do Ministério de Habitação e Habitat, as(os) participantes desta MTA consideraram que foram se sensibilizando sobre os problemas que este serviço enfrenta na cidade. Por outro lado, a comunidade confiava que, graças 74 Os CCAs consistem em duas partes: na primeira parte as MTAs informam como se desenvolveu o ciclo de fornecimento; na segunda, chamada de manutenção, informamse os vazamentos de água, as infiltrações e outros problemas nas tubulações. Os engenheiros tomam nota da denúncia e se põem de acordo com a MTA para resolver a situação. 166

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ao projeto que executavam e a outros projetos que a Hidrocapital dizia ter, seria diminuído, em médio prazo, o ciclo de fornecimento a tempos mais curtos. Concluindo, esta inovação fez que mais gente se sentisse informada, incluída, respeitada e com mais esperança de que no futuro terá melhor acesso ao direito de serviço de água. As MTAs como a de La Pedrera, por terem personalidade jurídica, podem buscar recursos ou recebê-los tanto do setor público como do privado e administrá-los autonomamente. Isso pode se considerar teoricamente um potencial importante para desenvolver-se de forma autônoma. No entanto, a gestão do serviço de água é um assunto complexo e a MTA necessitou de constante apoio técnico e administrativo por parte da Hidrocapital. Na Pedrera, os membros da MTA reconhecem que a figura do coordenador comunitário da Hidrocapital em Antímano, assim como da instituição em geral, foi fundamental para terem conseguido organizar-se, convocar as assembleias de cidadãos e cumprir com outros requisitos necessários para participar da gestão deste serviço em todas as suas fases, como fazer um primeiro croqui da comunidade e identificar os problemas que tinham. Em 2004 foram assessorados pela Hidrocapital para elaborar o projeto mediante o qual tiveram acesso aos recursos concedidos pelo presidente Chávez (MTO, entrevista, 2006; MTT, entrevista, 2006). Expressaram confiança e gratidão pela hidráulica: “nós fomos regidos praticamente por eles [Hidrocapital], eles nos dizem como se deve trabalhar, o que se deve fazer, ou seja, temos o apoio deles em tudo” (MTT, entrevista, 2006). Trata-se, então, de uma participação induzida e na qual os funcionários públicos gozam de uma importante ascendência sobre os membros da MTA, principalmente figuras como o coordenador comunitário e os engenheiros que assistem aos CCA. Aqui podemos falar de uma capacidade limitada de autonomia. Por outro lado, os recursos para o projeto de substituição do encanamento de água potável vieram diretamente do presidente Chávez, que os concedeu em ato público. Estes aspectos expressam vulnerabilidades em relação ao potencial de independência de critério ou capacidade de negociação com agentes públicos pela assimetria destas relações em muitos sentidos (recursos, poder, conhecimento). Por outro lado, deve-se também avaliar que, no caso do bairro de La Pedrera – e em geral pode-se dizer que nas comunidades pobres da Venezuela nos anos prévios ao governo Chávez –, o tecido organizativo dos setores populares era escasso, frágil e disperso (Denis, As Novas Institucionalidades: formas de participação comunitária do governo Venezuelano desde 1999

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2005). A participação e a organização popular que aconteceu esteve, salvo exceções, vinculada às redes dos partidos tradicionais AD e Copei, com forte cultura paternalista e clientelista, azeitada (como continua sendo o caso) pela abundante renda gerada pelo petróleo ao Estado. Estas condições conspiram contra a capacidade de autonomia de organizações pequenas como as MTAs, que têm uma relação assimétrica com o governo, e especialmente com o Presidente. Posto isso, as agudas deficiências no acesso a direitos básicos que padecem famílias como as de La Pedrera, paradoxalmente também são estímulo para o autodesenvolvimento pessoal e o trabalho comunitário. Nos anos 1990, algumas pessoas nos relataram como se reuniam para fazer gestões por conta própria, junto às entidades do governo, para dar solução aos problemas do bairro. Em La Pedrera foram feitas reuniões, independentes dos partidos, para buscar soluções para a falta de iluminação, água, escola para as crianças e tantas outras necessidades. Algumas das mulheres fundadoras desta MTA começaram sua trajetória de trabalho comunitário incentivando este tipo de iniciativas que em alguns casos deram resultado, o que as estimulou para continuar participando de espaços comunitários e lhes conferiu certa autonomia e percepção de empoderamento (MTP em Diário de campo, 10 de agosto de 2006). O controle de todas as fases do projeto de substituição do encanamento de água – com o apoio estável da Hidrocapital – foi uma importante fonte de formação para a participação, o autodesenvolvimento e para inculcar autoestima dos membros desta MTA. Muitos(as) integrantes desta MTA também participaram de diversas oficinas e cursos que foram fortalecendo sua formação. Alguns se inscreveram na missão Ribas, o que lhes permitiu contar com um modesto subsídio ou bolsa para terminar estudos secundários e também desfrutar da possibilidade de ter tempo para se dedicar ao trabalho da MTA. Graças a estes estímulos, os membros da MTA se sentem como “empresários(as)” comunitários(as) (MTO, entrevista, 2006). Desenvolveram uma série de aptidões e assumiram um conjunto de responsabilidades que lhes permitiu crescer como pessoas e cidadãos(ãs). Assim, neste aspecto da capacidade de autonomia encontramos desdobramentos mistos que deixam abertas tendências contraditórias. Do lado das debilidades, a escassa e ocasional participação por parte da imensa maioria desta comunidade desperta perguntas sobre o que exerce tanto impacto na cultura do povo além de lideranças comu168

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nitárias emergentes. Os integrantes das MTAs não têm nenhuma independência econômica do Estado, o que é um risco permanente à cooptação em uma sociedade em que o paternalismo e o clientelismo estão profundamente arraigados. Do lado das fortalezas, a qualificação profissional e a sensibilidade dos funcionários da Hidrocapital comprometidos com esta inovação, o respeito pelas comunidades na relação que constatamos que desenvolvem nos CCA, assim como o compromisso institucional da Hidrocapital, que sustentou esta inovação de forma estável por sete anos, permite a consolidação de uma relação fluida e horizontal entre funcionários do governo e a comunidade, que incentivou um fortalecimento de atributos de autonomia da MTA. Finalmente, a questão da contribuição ao aprofundamento da democracia venezuelana. As MTAs foram concebidas para melhorar o serviço de água, sob a premissa de que se a comunidade não se reunia e participava dos diagnósticos e das soluções não seria possível garantir à maioria da população esse direito humano. Nesse sentido, MTAs como La Pedrera demonstram ter tido êxito em resolver problemas concretos mediante a participação organizada, formando a quem participa delas e inculcando autoestima e valores como a solidariedade com os vizinhos. As assembleias e os CCA são espaços que permitiram uma dinâmica horizontal entre os vizinhos e destes com o governo, representado pala empresa hidráulica. Neste sentido, sua contribuição como conceito e como prática para a melhoria da qualidade da democracia venezuelana parece inquestionável. Mas perguntando aos membros da MTA La Pedrera sobre o tipo de relações que houve entre eles e a comunidade, a partir da dinâmica do projeto, ficaram nítidos vários problemas que impedem que inovações como esta se estendam e se consolidem, remontando a experiências e valores pouco democráticos inerentes à cultura política venezuelana. Um dos temas que apareceu insistentemente foi a dificuldade de fazer que as pessoas participem de forma permanente das atividades participativas comunitárias. A MTA La Pedrera começou, como requer a lei, convocando assembleias de cidadãos de todo o bairro, e também assembleias por setores (MTS, entrevista, 2006). Ali se nomearam os “porta-vozes” de cada um dos 18 setores. No entanto, pouco depois o número permanente de porta-vozes diminuiu significativamente a apenas oito membros, a maioria mulheres, que tiveram de levar adiante todas as responsabilidades do dia-a-dia do projeto de substituição da tubulação. As Novas Institucionalidades: formas de participação comunitária do governo Venezuelano desde 1999

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Por que este reduzido impacto? Há muitas razões que debilitam a participação nas MTAs e nas formas de participação comunitária em geral. A desconfiança que continua predominando em relação às iniciativas promovidas pelo governo sempre está presente. As pessoas estão acostumadas a promessas eleitorais que depois não se cumprem por partidos e / ou diversas autoridades e funcionários. Também é frequente que alguns tirem proveito privado da participação. São conhecidos inúmeros casos de enriquecimento pessoal no passado. Outros se retiraram porque não há remuneração salarial para o trabalho do projeto e, ou não estão de acordo, ou não podem incorporar-se porque têm necessidade de remuneração. Um obstáculo significativo para que a participação se estenda mais está relacionado com o complexo problema da participação em si. Nem todos querem ou podem participar. É preciso gostar do trabalho comunitário – ter vocação – ou pode ser que a necessidade seja tal que as pessoas se incorporem, mas depois se desinteressam. Só os “pouquinhos” de sempre continuam fazendo o trabalho (MTT, entrevista, 2006). Por outro lado, a participação requer tempo; para que seja efetiva requer também apoio estável de natureza técnica e administrativa por parte dos agentes governamentais e / ou equipes profissionais. Assim, necessita de certas condições de segurança que não existiam em bairros como La Pedrera, onde as taxas de violência eram atrozes, e ao cair da tarde as vielas e a estrada ficavam à mercê de delinquentes e / ou bandos armados. As reuniões em La Pedrera, que durante a semana só podiam ser feitas à noite para garantir assistência, foram se espaçando cada vez mais devido a todos estes inconvenientes. Isto terminou dificultando a consolidação de valores e atitudes que contribuiriam significativamente para um aprofundamento democrático. Em novembro de 2007, já acabada a obra, todo o esforço se perdeu. Chuvas torrenciais em outubro de 2007 acabaram com casas, lutas e sonhos. A prefeitura, que nunca havia participado da inovação, esclareceu então que a zona era de alto risco e exigiu que a comunidade do 4º Plano saísse de lá. Algumas das casas, entre elas as de duas das mulheres integrantes da MTA, foram demolidas. Foram tempos terríveis. Houve aproximadamente 170 famílias diretamente afetadas (Diário de campo, novembro de 2007). Depois soubemos que, em 1994, um levantamento feito pela UCV já havia advertido que os solos de La Pedrera em Antímano eram de alto risco e somente uma intervenção complexa e planifi170

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cada poderia torná-los aptos para o assentamento urbano (UCV, UPF 9, 1994). Nem o governo de então nem o de agora prestaram atenção ao tema e deixaram que a área continuasse sendo ocupada. Com uma visão bem-intencionada, mas míope, a Hidrocapital apoiou a comunidade de La Pedrera e o governo concedeu recursos sem um planejamento integral, que teria funcionado para superar os problemas que afetavam esses solos. Com isso, perderam-se o investimento e a experiência. Hoje em dia, muitos dos integrantes da MTA foram para outros lugares depois de passar vários meses em refúgios ou em casas de familiares e / ou vizinhos.

OCA Bairro Unión-Carpintero: qualidade de vida, capacidade de autonomia e melhor democracia As contribuições da OCA Bairro Unión-Carpintero para a elevação da qualidade de vida das pessoas nestas comunidades foram reconhecidas por nossos entrevistados, ainda que houvessem discrepâncias. Porque, se bem que certas melhorias puderam ser realizadas no Bairro Unión quando o presidente Chávez inicialmente aprovou os primeiros recursos, devido à posterior suspensão destes não é fácil para quem participou avaliar positivamente o que foi alcançado, pelo pouco que se avançou comparado às muitas necessidades e às expectativas que haviam sido criadas. Ao contrário das MTAs, as OCAs contemplavam recursos para um conjunto de projetos que permitiram às comunidades administrá-los diretamente e coordenar a melhoria física dos bairros em todas as dimensões: muros de contenção, escadas, novas moradias para famílias em situação de risco, melhorias para as que estivessem em terrenos seguros, ruas, coletores de esgoto etc. Em suas apreciações, os integrantes da associação demonstraram frustração (OCS e OCM, entrevista, 2006). Com relação à capacidade de autodesenvolvimento e empoderamento, segundo diversas entrevistas, tanto dos participantes da experiência nos bairros Carpintero e Unión como entre ativistas comunitários de outras OCAs da capital, estas, como conceito, facilitam que o povo se torne protagonista da solução dos graves problemas que os bairros populares enfrentam. Com a OCA, segundo afirmam, superaram-se certas fraquezas observadas na modalidade anterior do consórcio e se fortaleceu ainda mais o potencial independente que este tinha, fazendo que as próprias comunidades organizadas “gerenciem os recursos, gerenciem o projeto, contratem obras, licitem, toda essa série de questões, com exceção – vamos dizer – da As Novas Institucionalidades: formas de participação comunitária do governo Venezuelano desde 1999

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estrutura da instituição como mediadora” (OCM, entrevista, 2006). Entre os integrantes da OCA Bairro Unión-Carpintero estas ideias prenderam força e hoje consideram que, enquanto durou, a experiência foi um estímulo para o autodesenvolvimento e reforçou sentimentos de empoderamento. Em vez de ser o Estado que administra os recursos, foram as OCAs, o que alguns alegam que gerava uma dinâmica econômica no bairro que permitiu a realização e a conclusão de obras de qualidade (OCR, entrevista, 2006; OCS, entrevista, 2006). Consideram que a burocracia estatal teme este tipo de organização popular e comentam que “só Josefina Baldo, quando foi presidente do CONAVI, tomou a decisão de assinar um documento de delegação administrativa às organizações comunitárias” (OCR em Diário de campo, 21 de novembro de 2006). Dão como exemplo de autonomia a experiência do Consórcio Catuche, a pioneira das experiências de organizações comunitárias autogestionárias, que hoje consegue sobreviver com financiamentos alternativos aos públicos, mantendo vivo seu projeto depois que o governo retirou os apoios materiais para os planos diretores. Por outro lado, os dirigentes comunitários dos consórcios fundaram APODERA depois que Baldó saiu do CONAVI, para se manterem unidos e buscar meios para sobreviver. Em 2005, ao serem suspensos novamente os recursos, fundaram uma Federação de OCAs, que continua tentando obter apoios econômicos tanto nacionais – públicos ou privados – como internacionais para reativar as obras mais urgentes. Tudo isto é expressão de autonomia. Entre as reuniões mantidas com nossos entrevistados aconteceram intensas manifestações de autonomia que são, a nosso ver, resultado de uma combinação de fatores. De um lado, a antiguidade dos bairros onde se constituíram. Nos casos com os quais tivemos contato, eram bairros consolidados, com famílias assentadas ali há muito tempo, que foram melhorando as condições socioeconômicas e possuem uma série de vínculos e relações na comunidade. Muitos de nossos entrevistados da OCA Carpintero-Unión nasceram nestes bairros, e inclusive em alguns casos seus pais foram, antes deles, ativistas na comunidade, fundadores de organizações anteriores, como o caso de um cuja mãe foi fundadora da Cooperativa Madre Laura, uma cooperativa pioneira na Venezuela (OCJ e OCM, entrevista, 2006). Por outro lado, em ambos os bairros a atividade organizativa e participativa tem uma tradição relativamente longa, ao contrário de La Pedrera, ao menos desde os anos 1960, ou vinculada aos partidos 172

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tradicionais, ou então com certa autonomia face à política partidarista. A prefeitura do Município de Sucre também aparece ativa em muitas das entrevistas, refletindo que haviam sido estabelecidas relações interessantes para as comunidades populares e que estas, nem sempre fáceis, possibilitaram que as pessoas pudessem se desenvolver como cidadãos (OCM, entrevista, 2006). Outras manifestações de autonomia, espírito de luta e iniciativa transpareceram durante nosso estudo nas relações que foram se estabelecendo entre os integrantes da OCA e os diferentes entes governamentais, ao buscar fundos para reativar as obras e / ou buscando uma saída que lhes permitisse realizar ao menos alguns dos projetos (OCM, entrevista, 2006). A experiência das OCAs paralisadas desde 2005 é importante como inovação antecedente à criação, em 2006, dos conselhos comunais (de agora em diante CCs), propostos pelo presidente Chávez como base de um Poder Popular que visa o estabelecimento de um socialismo do século XXI na Venezuela. Em 2006, questionados sobre esta então nascente inovação participativa, alguns ativistas de diversas OCAs em Caracas nos manifestaram que lhes parecia inspirada pelo conceito da OCA. Não obstante, consideram-na diferente e, em certos aspectos, mais fraca para potencializar a autonomia das organizações populares. Nossos entrevistados(as) compartilharam conosco algumas primeiras ideias sobre os CCs em relação às OCAs75. A uma pergunta sobre a diferença entre ambas, comentaram que com essas propostas de voltar a organizações populares de escala pequena, de 200 ou 400 famílias, retornamos a “la Cuarta” [República]. Porque foram concebidas para fazer obras, mostrar obras, e não respondem a uma proposta de urbanismo, nem a uma perspectiva integral dos problemas dos bairros. Na Quarta República aconteceu este tipo de iniciativa, que só manteve o povo excluído e os bairros como setores marginais. As OCAs são diferentes, porque significam uma incorporação com igualdade. Elas permitiriam acabar com a irresponsabilidade do Estado em todos os níveis. É uma proposta integral que tem uma unidade adequada para a reabilitação física. Outro aspecto que destacaram foi que o sistema de eleição nas OCAs era flexível, mas o dos CCs, por lei, deve ser igual para todos: 75 A seguir, trechos retirados da ata que fizemos de uma reunião com dirigentes de OCAs em novembro de 2006 (Diário de campo, 2006). As Novas Institucionalidades: formas de participação comunitária do governo Venezuelano desde 1999

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secreto. As OCAs são inscritas em Registro Subalterno, têm personalidade jurídica e estão centradas na reabilitação. Os CCs se encarregam de tudo e não têm personalidade jurídica, são parte do Estado. Nossos entrevistados insistiram que a escala dos CCs era uma notável fraqueza, pois não é possível resolver os problemas urbanos com projetos localizados e pequenos, pois os bairros são muito grandes. Por isso as Unidades de Desenho Urbano, UDUS, as Unidades de Desenho Integral, UDI, e ainda maiores, as Unidades de Desenho Físico, UPF, lhes parecem mais adequadas. Também comentaram que a lei dos CCs tem contradições. Os bancos comunais, que cria como braço financeiro, são um equívoco, porque nos CCs toda a comunidade é membro, mas deram ao banco comunal, por lei, a figura de cooperativa, e a adesão às cooperativas por lei é voluntária e feita com as contribuições dos membros. Também o definiram como ad honorem, o que segundo eles é um erro. Os CCs deveriam ser articulados com o município, e em geral todas estas iniciativas de participação, porque a relação é mais fluida e próxima com o governo local, mas como as pessoas que estão no município “não servem”, o governo nacional optou por ignorá-los e vincular os CCs ao nível nacional. Comentaram também que a participação não se decreta, mas se constrói. E os CCs foram se constituindo aceleradamente desde 2006 sem cumprir normas e tempos que permitissem garantir a conscientização dos valores comunitários. Alguns insinuaram que a escala dos CCs não é adequada para resolver a reabilitação física, mas seriam perfeitos para mobilizar a população, têm o tamanho ideal para controlar, podem ser formados esquadrões e batalhões. Ou seja, que talvez os queiram como organização política para mobilizar em épocas eleitorais. O tempo lhes deu a razão76.

Comentários finais: MTAs e OCAs versus CCs Os espaços abertos pelo primeiro governo Chávez à participação direta das comunidades organizadas foram uma demonstração de criatividade e de vontade política para superar os defeitos do anterior modelo político venezuelano. Os casos estudados, contudo, revela-

76 Em janeiro de 2009 este propósito ficou evidente quando a ministra de Desenvolvimento Social, Erika Faría, instou os Conselhos Comunais a abandonar as obras e dedicar-se inteiramente a buscar votos para que se impusesse a ideia de Hugo Chávez de permitir a reeleição em todos os cargos (El Nacional, 8 de janeiro de 2009). 174

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ram a complexidade do problema e os limitadores para desenvolver real e sustentadamente experiências que possam superar a pobreza e a severa exclusão de direitos básicos que sofrem as maiorias urbanas deste país produtor de petróleo. Se bem que dois casos isolados, como os analisados aqui, sejam insuficientes para obter avaliações generalizáveis a todo o processo de transformação aberto pelo governo desde 1999, eles constituem exemplos adequados de casos cujas comunidades chegaram a manejar recursos delegados pelo governo e obtiveram resultados, permitindo apreciar pontos fortes e / ou debilidades de suas experiências. Com base nisso, e complementando este dado com informação geral sobre os Comitês de Terra Urbana e os Conselhos Comunais, outras formas de organização e participação promovidas posteriormente, agregaremos algumas ideias que contribuem com o necessário processo de avaliação do primeiro governo Chávez sobre inovações participativas.

Sobre os pontos fortes e as debilidades das MTAs e OCAs São muitas e diversas as inovações participativas que o governo bolivariano incentivou no primeiro mandato de Chávez. Mas as MTAs e as OCAs se parecem porque se ajustavam conceitualmente ao que fora disposto na CRBV e nas LGDESN, que definem a participação como um instrumento para o autodesenvolvimento e a transformação dos setores excluídos em cidadãos plenos. São diferentes, contudo, na forma como pensam que essa transformação pode ser alcançada. Nas MTAs se induz a participação ao redor de um problema básico, muito concreto e delimitado: as deficiências no acesso à água potável. Nesta inovação se combina a busca por melhorar um serviço público por meio da cogestão entre Estado e comunidade organizada, com a aprendizagem para uma cidadania mais ativa e responsável a partir de um problema concreto. Nos espaços da MTA e do CCA, as comunidades se encontram diretamente com funcionários das hidráulicas públicas e eventualmente também com autoridades locais dos municípios e / ou nacionais. Suas queixas são ouvidas, recebem e dão informação, educam-se e se sensibilizam sobre assuntos relacionados com este recurso e entram em acordo para corrigir, entre ambos, as falhas. No entanto, em nosso caso concreto, a experiência e os esforços no fim se perderam por falta de visão de planejamento de médio ou longo prazo, por parte As Novas Institucionalidades: formas de participação comunitária do governo Venezuelano desde 1999

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do Estado, que garantisse um cenário favorável para a consolidação de experiências como esta. As OCAs, propiciadas pelo CONAVI e pelo Ministério da Habitação e Habitat, tinham, entre suas virtudes, justamente uma visão integral dos problemas e um forte apoio técnico. A OCA induzia a participação comunitária em uma unidade territorial na qual profissionais urbanistas haviam diagnosticado anteriormente problemas comuns e suscetíveis de serem superados mediante o desenho de planos integrais (planos diretores) de habilitação física. Esta unidade não corresponde necessariamente à historia de como esse espaço urbano foi se povoando e sim a seus problemas comuns, a partir dos quais o Estado induziu a organização e a participação popular. As OCAs dividem com as MTAs a ideia de que a participação da comunidade organizada é parte essencial da solução das deficiências dos bairros, tanto porque é quem possui o maior e o melhor conhecimento de seus problemas e pode ser mais eficiente nas possíveis soluções, como porque sem sua colaboração e consentimento não poderiam se transformar em democracia as construções já feitas. Elas dividem também a noção de que participação na cogestão pública de serviços é um aprendizado para o autodesenvolvimento e empoderamento. E como as MTAs, as OCAs foram concebidas com personalidade jurídica própria, regidas pelo Código Civil, quer dizer, como parte de uma sociedade civil emergente, que atuaria progressivamente como interlocutor do Estado e iria substituindo o governo da cidade em determinadas funções. As OCAs são copartícipes da criação das políticas para seus bairros, por meio dos chamados diagnósticos participativos em que estabeleciam as prioridades nos planos diretores, e a ideia era que o Estado lhes delegasse os recursos para que tramitassem e administrassem diretamente todas as fases das obras. Infelizmente, esta inovação – por ter um desenvolvimento intermitente, dependente do compromisso pessoal dos funcionários, da presidente do CONAVI e do ministro Montes – acabou sendo paralisada por falta de recursos, ao ser descartada pelos ministros sucessores e aparentemente também pelo Presidente. As OCAs foram criticadas por alguns ativistas dos Comitês de Terra Urbana que consideraram que esta forma de participação dava peso demais a critérios e assessores técnicos e isso debilitava a autonomia das comunidades (CTM, entrevista, 2008; CTA, entrevista, 2008). No entanto, tentou se corrigir essa debilidade quando os 176

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consórcios se transformaram em OCAs para prevalecer a comunidade organizada sobre os outros agentes, algo que nossos entrevistados dos CTU pareciam não saber ou valorizar. Isto nos leva a concluir que houve certa ignorância e certa competitividade entre ativistas e inovações participativas, o que contribuiu para debilitá-las. A paralisação das OCAs gerou desânimo, frustração e fraqueza nas lideranças emergentes. Nossos entrevistados das OCAs tendem a pensar que os bolivarianos viram nesta modalidade uma capacidade de autonomia popular fora do controle de seu movimento e do Estado, característica que temem e / ou não concordam (Federação de OCAs, Diário de campo, novembro de 2006; OCV, entrevista, 2006). Uma primeira análise aos CCs parece dar-lhes a razão.

Os CCs Em 2005 o presidente Chávez lançou a ideia dos CCs, uma nova modalidade participativa, que seria institucionalizada na Lei dos Conselhos Comunais de abril de 2006. Segundo esta lei, os CCs “são instâncias de participação, articulação e integração entre as diversas organizações comunitárias, grupos sociais e os cidadãos e cidadãs, que permitem ao povo organizado exercer diretamente a gestão das políticas públicas e projetos orientados para responder às necessidades e aspirações de uma sociedade de equidade e justiça social” (artigo 2). Os CCs foram concebidos para gerir, e não para formular nem elaborar políticas públicas, atuando como microgovernos – o máximo de famílias que contemplam são 400 – sem personalidade jurídica, mas com muitas e diversas tarefas, que inclusive foram aumentando com o tempo (Weffer, 2007). A lei estabelece as normas para que sejam criados, indica como devem funcionar, como tomam decisões, e exige, para poder ter acesso aos recursos públicos, que se registrem junto à Comissão Local Presidencial do Poder Popular, ente do governo central cujos membros são nomeados pelo Presidente da República (artigos 20 e 31). A lei criou um Fundo Nacional dos Conselhos Comunais como ente autônomo sem personalidade jurídica, com uma junta diretiva nomeada pelo Presidente, para financiar os projetos “comunitários, sociais e produtivos” (artigo 29). As transferências são feitas ao banco do CCs, que funciona como cooperativa, também pautado na lei. A lei dos CCs revogou o artigo 8 da Lei dos Conselhos Locais de Planejamento Público, sancionada em 2002, em que apareceu pela primeira vez a figura dos CCs vinculada, junto aos conselhos paroAs Novas Institucionalidades: formas de participação comunitária do governo Venezuelano desde 1999

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quiais, à dinâmica participativa e protagonista nos municípios (disposição revogatória única). Por estas características do quadro jurídico-legal, os CCs estão conceitualmente pensados como parte do Estado, vinculados e dependentes da Presidência da República. Expressam o processo de recentralização do Estado e concentração de poderes no Presidente, que veio se acentuando nos últimos anos. Não obstante este desenvolvimento, que parecia limitar os potenciais de autonomia das organizações populares para a participação, os CCs despertaram grandes expectativas. O Presidente, em inúmeras oportunidades, refere-se a eles como núcleos primários desde os quais se construirá um novo modelo de sociedade e de Estado, que chamou de socialismo do século XXI. Em dezembro de 2006, referiu-se a eles como o quinto motor da revolução, “a explosão do Poder Popular”. Na proposta de reforma constitucional apresentada por ele em agosto de 2007, os CCs passaram a ter categoria constitucional (artigo 70) e formavam a base de uma reestruturação territorial do Estado que contemplava comunas e cidades comunais (proposta de reforma ao artigo 16, 2007). Na proposta de reforma ao artigo 136, Chávez propôs que fossem considerados parte do Poder Popular, um poder que não surge do sufrágio “nem de eleição alguma, e, sim, que nasce da condição dos grupos humanos organizados como base da população”. O Poder Popular incluiria também conselhos operários, camponeses, estudantis e outros no surgimento de um sexto poder público, que debilitaria ou competiria com a tradicional divisão política administrativa do Estado (em entidades federais, municípios e paróquias). A proposta foi rejeitada pelos votantes em dezembro de 2007, com o que esta concepção sobre os CCs e seu lugar em uma nova “geometria do poder” foi adiada. Em 2008 o governo foi introduzindo alguns dos componentes rejeitados por meio de decretosleis, mas, até hoje, a lei dos CCs não foi reformada. São poucos os trabalhos acadêmicos publicados sobre o desempenho dos CCs até agora, por isso, mais que afirmações ou avaliações, o que prolifera hoje são dúvidas e perguntas que não podem ser respondidas de forma definitiva. Os CCs, dependendo das particularidades das comunidades onde foram criados, as zonas do país onde se localizam, as tradições de organização e participação anteriores das comunidades, apresentam desdobramentos muito diversificados. Mencionamos, para concluir, algumas características que concretamente foram sendo fornecidas por diferentes fontes: 178

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• A dinâmica de constituição dos CCs promovida com intensidade e urgência pelo governo central – entre outros motivos pela campanha do referendo que houve em 2007 – tendeu a fortalecer certos desvios no objetivo explícito buscado pelo bolivarianismo com esta forma participativa, que consiste em servir de instrumento para a transformação dos setores populares em um sujeito popular empoderado, “socialista”. Durante o ano de 2007, foi criado um número indeterminado de CCs sem cumprir as normas pautadas pela lei, outros simplesmente foram criados para captar a renda petrolífera. Há casos em que as prioridades dos CCs eram impostas às comunidades por funcionários, outros casos por pequenos grupos da comunidade, outros excluíam quem não tivesse as mesmas posições políticas chavistas (Lerner, 2007; García-Guadilla, 2007). • Ativistas populares de diversas procedências e posições políticas, assim como funcionários públicos, indicam os obstáculos burocráticos que se enfrentam para conformar os CCs. A revisão do número de trâmites que os CCs devem fazer para obter registro é preocupante (Weffer, 2007; González, 2007). No entanto, se Chávez ou alguma autoridade visita uma comunidade, o CC se constitui e se concedem recursos superando-se todos os inconvenientes (Idem). • A participação atual nos CCs está muito motivada pela combinação de dinheiro – que a prosperidade petrolífera pôs à disposição do governo nos últimos anos – com a promessa de delegação de poder que se oferece. Foi bastante efetiva, pois, segundo dados oficiais, por volta do final de 2007 havia cerca de 30 mil CCs (Noboa, 2007). Contudo, tanto na lei como na prática existem muitas falhas para controlar a concessão dos recursos e para fazer um acompanhamento; por isso, alguns observam que esta inovação e as redes que ela está construindo se inclinam mais ao clientelismo, bastante arraigado na cultura venezuelana, que ao desenvolvimento de um poder popular forte e autônomo (García-Guadilla, 2007). • Os CCs são minigovernos com muitas tarefas, que exigem grande disponibilidade de tempo para quem quer participar. Também envolve informação e apoios técnicos contínuos por parte de entes governamentais. Nas entrevistas que fizemos com integrantes de nossos casos de estudo sobre o CCs de sua comunidade, um dos problemas surgidos foi que, ao contrário de outras modalidades em que estava claro qual instância governamental proporciona os apoios, nos CCs podem ser tantos que muitas vezes acabam não encontrando nenhum apoio oficial (MTA, Diário de campo, 2007). As Novas Institucionalidades: formas de participação comunitária do governo Venezuelano desde 1999

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• Com os CCs se tentou superar a representação política tal como está concebida no modelo democrático liberal. Para isso estabelecem a figura de porta-vozes destituíveis em vez de representantes. No entanto, o tamanho micro destes espaços, a falta ou a pouca clareza sobre instâncias intermediárias e como funcionariam, a preferência pela assembleia em detrimento do sufrágio universal, direto e secreto, a dependência ao Presidente, a desvinculação em relação aos municípios e estados, entre outras características, tende a piorar a qualidade democrática do modelo político venezuelano. Por seu tamanho e características, os CCs talvez tenham sido bem concebidos para serem braços executores de políticas públicas micros e / ou locais, mas inclusive isto é duvidoso pelo tamanho dos bairros populares venezuelanos e a complexidade dos problemas, que uma comunidade de 400 famílias não pode abordar com eficiência. Essa escala dos CCs não permite que possam ter capacidade para influir nas elaborações e decisões mais gerais da sociedade, muito menos sobre as políticas nacionais da República. Por outro lado, o instrumento da assembleia debilita o pluralismo político (López Maya, 2007). O acompanhamento, durante mais de dois anos, de experiências participativas na Caracas bolivariana nos serviu para apreciar o quanto é importante – para o rejuvenescimento da democracia na Venezuela – o impulso de experiências em que as comunidades organizadas possam assumir responsabilidades na gestão pública e manejar recursos provenientes dos abundantes recursos que chegam ao Estado venezuelano no caráter de proprietário de um dos negócios mais rentáveis do mundo. No primeiro período de governo Chávez, as inovações participativas aqui analisadas tiveram diferentes origens e concepções sobre como empoderar os setores pobres, empobrecidos e excluídos da sociedade. Cada um a seu modo, provocaram entusiasmo e criaram condições para dinamizar o surgimento de um sentimento de pertencer a um grupo e autoestima nos habitantes dos bairros populares, invisibilizados e estigmatizados nos lustros prévios. Reemergiu uma consciência política que contribuiu para o retorno das maiorias venezuelanas à participação política, da qual tinham sido excluídas ao menos desde os anos 1980. No entanto, ao avaliar a melhoria da qualidade de vida, empoderamento e melhoria da qualidade democrática desta sociedade, os resultados continuam sendo fracos, pois os inúmeros obstáculos que enfrenta quem vive nos bairros urbanos 180

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do país impedem a estabilidade, o aperfeiçoamento e a consolidação destas formas de participação. Ao encerrar este estudo, o governo bolivariano percorre um segundo período constitucional, que se insinua menos interessado em avaliar e aperfeiçoar as experiências ensaiadas e mais em criar uma institucionalidade nova que uniformize a participação popular e a incorpore como estrutura de um Estado socialista. As MTAs e OCAs, assim como os CTU e outras modalidades organizativas, debilitaram-se em favor da modalidade dos CCs. Estes, que se institucionalizaram em uma lei de 2006 sem que tivesse sido realizada uma avaliação das forças e fraquezas das modalidades anteriores, e sem ter aberto uma ampla discussão com as comunidades organizadas sobre sua pertinência e méritos, contudo, cresceram exponencialmente, substituindo as outras pelo fato de que o Executivo Nacional foi canalizando os recursos públicos para os setores populares em direção a eles. O trabalho adiantado no primeiro período tende a gerar tensões entre as tendências, a incentivar uma participação cooptada desde cima – vinculada às tendências de recentralização do Estado e à concentração de poderes no Presidente – e as forças que advogam por desenvolver certa capacidade para a interlocução de forma independente com o governo e seus funcionários. O resultado não está preestabelecido.

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Rumo a um Mercosul CidadĂŁo: Os desafios de uma nova institucionalidade Ignacio Arboleya e MarĂ­a Julia Aguerre


Ignacio Arboleya e María Julia Aguerre . Programa MERCOSUL Social e Solidário – PMSS – Montevidéu, outubro de 2008.


É tempo de avançar na construção do Mercosul cidadão, já que será esse o espaço democrático onde com muito trabalho seguiremos construindo nossos acordos. Devemos assumir que todos SOMOS Mercosul e que de todos nós depende o êxito deste formidável projeto político. Presidente Tabaré Vázquez – Assunção, 20 de junho de 2005, ao apresentar a iniciativa SOMOS Mercosul.

No dia 26 de março de 1991, em Assunção, foi assinado o Tratado do Mercado Comum do Sul (Mercosul) por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Entrou em vigor no dia 29 de novembro de 1991 e sua duração é indefinida. Em termos gerais, o propósito do Tratado era reverter o declínio do comércio intrarregional e frear a crescente marginalização da América Latina em relação ao sistema econômico internacional, dando uma resposta ao fenômeno da globalização e à formação de blocos comerciais regionais em diversas partes do mundo, o que gerava crescentes dificuldades às economias nacionais de nossos países (como ao resto dos países periféricos) para se reinserirem no novo contexto econômico internacional. Não obstante esta concepção comercialista inicial, que presidiu o funcionamento do Mercosul por ao menos uma década, e como resultado de uma série de rápidos avanços registrados nos primeiros anos de sua existência, este projeto despertou expectativas que ultrapassaram amplamente os propósitos originais, transformando-o em um fenômeno que pode marcar profundamente o curso da história presente e futura de seus membros. E se, a rigor, mais que uma rea­ lidade, o Mercosul ainda é em boa medida uma aposta, uma tarefa aberta em cujo processo se registram tropeços, estancamentos, retrocessos e crises múltiplas, o projeto do Mercosul pode ser considerado um dado presente nas relações entre seus integrantes, não apenas no nível dos governos, mas também em redes da sociedade civil e em relações com o resto do mundo, o que gera toda uma nova dinâmica regional de apostas, demandas e empreendimentos. A respeito dos instrumentos jurídicos do Mercosul foi mencionada sua “brevidade, insuficiência e ambiguidade”, produto de uma “estratégia minimalista em termos institucionais” que, com o passar Rumo a um Mercosul Cidadão: os desafios de uma nova institucionalidade

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do tempo, foi se transformando em uma das debilidades e dos freios mais importantes do bloco. E este dado não é menor, porque em qualquer processo de integração a definição da estrutura institucional não é uma questão meramente técnica ou jurídica, pois a natureza das instituições revela a concepção política em cujo marco se constrói o processo. A opção por um determinado modelo de integração corresponde a um determinado formato institucional. Em 17 de dezembro de 1994, o Mercosul firmou o Protocolo de Ouro Preto, que em conjunto com seu Anexo completa o Tratado de Assunção no que se refere à estrutura institucional, atribuições específicas dos órgãos e sistemas de tomadas de decisões. Neste documento aparece uma novidade importante para a sociedade civil organizada da região, porque em Ouro Preto foi criado o Foro Consultivo Econômico e Social – FCES –, o único órgão oficial de caráter privado que integra a estrutura institucional do Mercosul. Segundo sua definição formal, é “um organismo de representação dos setores econômicos e sociais dos países do Mercosul, representados por organizações de empresários e trabalhadores e organizações da sociedade civil dos quatro países”. Tem um caráter consultivo sobre os temas atinentes a sua representação e é o apogeu de uma luta contínua da Coordenadoria de Centrais Sindicais do Cone Sul, abrindo pela primeira vez um espaço institucional à sociedade civil, no formato bastante excludente do processo de integração regional.

A sociedade civil organizada no Mercosul A insistente demanda por “outro Mercosul” Na hora de fazer um balanço do potencial político das organizações e movimentos sociais mais ativos no Mercosul, sem dúvida uma de suas maiores fortalezas é constituir espaços articuladores de visões compartilhadas, que vão conformando identidades coletivas, ao mesmo tempo que põem em jogo a experiência, a capacidade e as conquistas acumuladas, e que instigam a uma valoração positiva de outros atores sociais, de atores e representantes políticos. A heterogeneidade e a complexidade da sociedade atual, com uma multiplicidade de atores, vozes e visões diferentes, implica que um processo de aprofundamento democrático e participação cidadã 188

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deve conter esta pluralidade, já que a integração regional afeta todas as agendas particulares das organizações sociais, sem exceção. Em muitas oportunidades, quando se discute a participação da sociedade civil, se levantam dúvidas acerca de sua representatividade. É preciso mencionar que as organizações e os movimentos da sociedade civil se representam a si mesmos e aos grupos de cidadãos ou populações com que trabalham. Frequentemente se cai no debate estéril de discutir qual organização é mais representativa, entrando em uma lógica reducionista de competência dos atores. Isto acontece na dinâmica real e não somente nas análises teóricas. A legitimidade da participação da sociedade civil não passa por representar a sociedade em seu conjunto, mas por sua especificidade e pelo posicionamento ou conhecimento sobre certos temas ou especialidades, e pelas particularidades dos grupos de referência ou de base dos movimentos e redes.

Os movimentos globais, atores de novo cunho As vozes de diferentes atores imprimem uma fisionomia particular à paisagem política atual. Movimentos de diferentes tipos e com diferentes universos e utopias entrecruzam visões e no melhor dos casos, alguns diálogos. Nesse contexto, todo esforço de gestão democrática deve estar dirigido para aumentar as vozes de quem participa, e também gerar maiores espaços de diálogo e interconexão. Entre os diferentes movimentos sociais e entre os diferentes atores políticos, existe um escasso reconhecimento mútuo. A este respeito, as redes e os foros da sociedade civil têm um papel cada vez mais importante, que é o de articular esta diversidade e esta capacidade distinta que têm os atores da sociedade civil de contribuir com um mesmo projeto, um mesmo objetivo. Isto é fundamental, porque isolados eles perdem capacidade real de intervenção ou de incidência. Neste tema da democracia e da participação, merece menção especial a nova realidade constituída por movimentos e atores sociais que atuam em nível local / nacional / regional / global, geralmente com afinidades e vinculados a setores políticos progressistas, mas que atuam com autonomia dentro do espaço público e com independência em relação aos partidos políticos. Se olharmos com atenção a ação destes atores globais, é possível constatar que a ação de atores locais no global gerou novas agendas, que não apenas demandam a consagração de novos direitos, mas coRumo a um Mercosul Cidadão: os desafios de uma nova institucionalidade

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locaram na discussão pública os estreitos vínculos de uma agenda de direitos com o modelo econômico, de crescimento e de consumo, e também com as regras do comércio internacional. A ação dos movimentos e organizações sociais no regional e global transcendem os conteúdos e contextos de suas lutas nacionais, mas estes dois níveis – o nacional e o internacional – estão em estreita relação entre si, de tal forma que as transformações que se alcançam em um levam a transformações no outro. O espaço de ação destes atores sociais, ainda quando cresce no espaço global, se baseia nas experiências de organização e disputa nos espaços nacionais, e se combina criativamente em uma pluralidade de marcos, de significados da ação e em diferentes cenários políticos, sejam estes globais, regionais, nacionais ou locais. A própria evolução das temáticas assim o exige: hoje em dia abordar uma agenda de “desenvolvimento sustentável” ou de problemas ambientais supõe articular o debate e a ação em todas essas escalas, simultaneamente (local, nacional, regional, global). Uma das consequências desta ação local, nacional, regional, é que estes movimentos impulsionam direitos, cidadanias múltiplas e em expansão, que transformam os antagonismos nacionais em solidariedades setoriais, que também permeiam as fronteiras tradicionais dos países, criando aproximações que são embriões de cidadania regional e / ou global. Os chamados movimentos antiglobalização, ultimamente denominados altermundistas, têm a característica de incorporar todos os movimentos anteriores: da velha esquerda aos novos movimentos sociais; não criam uma nova superestrutura e se articulam apoiando plataformas mínimas, como “outro mundo é possível”.

A conquista de maiores espaços de participação Longe de ficar paralisada pela falta de espaços de participação e pelas limitações geradas pelo déficit democrático que caracteriza o Mercosul, a sociedade civil da região foi tomando contato com os problemas e as oportunidades que surgiram no processo de integração, e diversos setores realizaram ações para conseguir que o projeto regional cumprisse objetivos de “melhorar as condições de vida” das pessoas por meio do “desenvolvimento econômico com justiça social”, como diz o Tratado de Assunção. Foi assim que sindicatos, ONGs, cooperativas, pequenos e médios empresários, mulheres, jovens etc. formularam reivindicações 190

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e propostas a respeito da agenda da integração em função de seus interesses e necessidades setoriais específicas e de sua própria visão do processo. É necessário levar em conta que os níveis de participação social obtidos até o momento no Mercosul são reduzidos e que somente alguns setores da sociedade civil, como os trabalhadores organizados em sindicatos e os empresários, desempenharam um papel relativamente destacado, e que os níveis de influência alcançados pelos setores mais organizados e ativos da sociedade civil nas tomadas de decisões fundamentais para o andamento do processo de integração são ainda muito limitados. Em seguida abordaremos, muito brevemente, os atores sociais com maior nível de incidência na região.

A COORDENADORIA DE CENTRAIS SINDICAIS DO CONE SUL(CCSCS) – O ator regional por excelência Os movimentos sindicais da região defenderam historicamente a necessidade da integração latino-americana; as ações sindicais sempre foram coerentes com esta definição básica, desde as primeiras épocas do integracionismo da região, nos tempos da criação da ALALC. Na época da fundação do MERCOSUR, a atitude das centrais se caracterizou pela falta de entusiasmo e pela cautela, apoiando criticamente, mas isto devido à estratégia neoliberal de abertura e desregulação e ao reducionismo comercialista ao qual se havia associado o projeto. Esta atitude de reserva nunca chegou ao rechaço, muito pelo contrário. Os sindicatos questionaram energicamente o modelo de integração proposto, as carências em matéria de aspectos sociais e a inexistência de espaços de participação para os interlocutores sociais no desenho original do acordo regional, e trabalharam para superar estas limitações. A CCSCS foi criada em 1986, ou seja, cinco anos antes do Tratado de Assunção, com o apoio da Confederação Internacional de Organizações Sindicais Livres (CIOSL) e sua representação para o continente americano, a Organização Interamericana de Trabalhadores (ORIT). Desde o início incluiu centrais da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. Sua missão original era colaborar nos processos de redemocratização da América Latina, especialmente Rumo a um Mercosul Cidadão: os desafios de uma nova institucionalidade

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no Cone Sul e em particular nos países onde ainda se vivia sob ditadura, como era o caso então de Chile e Paraguai. Seu primeiro período de atividade foi pautado por este objetivo e, posteriormente, uma vez que nestes dois últimos países a democracia voltou a vigorar, o grave problema da dívida externa concentrou os esforços e lhe deu continuidade à ação. Com a criação do Mercosul, a CCSCS ganhou novo dinamismo, não sem a forte oposição de várias centrais sindicais. Para tornar operativa a ação da Coordenadoria no processo de integração foi criada a Comissão Sindical do Mercosul, integrada especificamente pelas centrais dos quatro países membros plenos do acordo. A construção da CCSCS como ator político-sindical da região foi resultado de um longo processo de negociação interna, discussões, contradições, com debates que incluíram a própria estrutura orgânica (coordenadoria ou confederação?) e os graus de estratégia de participação no processo de integração. Isso porque as centrais estavam e estão sujeitas a diferentes contextos políticos e jurídicos nacionais, ideologias, tradições e trajetórias sindicais. Com muito esforço e visão de futuro, paulatinamente foi surgindo uma agenda de interesses comuns no andamento do processo, para cujo êxito contribuiu a adoção de uma “estratégia múltipla de participação”, com atuação em dois níveis – o nacional e o regional –, consolidando-se como um ator com voz única de reivindicação e proposta dos trabalhadores da região. Isto não o impede de atuar simultaneamente em nível setorial, por meio da aproximação entre organizações sindicais de segundo grau (federações de indústrias, serviços etc.). A ação sindical em nível regional avançou também por meio de uma ampla gama de articulações de esforços e iniciativas conjuntas, como, por exemplo, a comemoração comum do dia 1º de maio, geralmente em uma cidade ou lugar de fronteira. É possível afirmar ainda que a CCSCS é o único ator social “mercosuliano” com enfoque supranacional, que questiona a lógica intergovernamental do Mercosul e que, quando se expressa, o faz a partir dessa própria tendência à supranacionalidade. Entre as múltiplas ações empreendidas pela Coordenadoria, merece destaque por sua importância o que se denomina “Cartas aos Presidentes”, documentos entregues por ocasião das Cúpulas Presidenciais do Mercosul, para aproveitar o alto significado político dessas reuniões e como forma de alcançar uma participação mais global, 192

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por fora dos mecanismos mais institucionais e setoriais nos quais também atuam. Desde 1992 até hoje foram entregues doze Cartas, nas que se evitam as reivindicações corporativas para apresentar, de forma direta aos máximos decisores regionais, propostas sobre temas produtivos, comerciais, trabalhistas, políticos, sociais e culturais. Na primeira Carta, apresentada em 1992, a Coordenadoria trazia propostas de complementação produtiva e de superação das assimetrias. Os sindicatos da região estimam que a integração sindical não é suficiente para alcançar seus objetivos no Mercosul, e por isso procuram articular alianças com outros setores da sociedade civil como forma de ganhar representatividade e maiores níveis de pressão na hora de fazer suas propostas. Os próprios trabalhadores admitem que, até o presente momento, não tiveram muito êxito em seu intento de produzir uma política de alianças com outros setores da sociedade civil mercosulista. Algumas iniciativas foram realizadas, como, por exemplo, a criação do “Movimento pela Integração dos Povos do Cone Sul”, que reuniu trinta organizações sindicais, populares e centros de pesquisa, mas que não funcionou depois de sua criação. Outro resultado modesto desta política de alianças foi a incorporação de outros setores da sociedade civil no Foro Consultivo Econômico e Social, que tampouco teve resultados concretos, salvo em casos contados e com diferenças segundo os países. Atualmente se realizam reuniões e algumas articulações com a Aliança Social Continental. Do ponto de vista mais diretamente relacionado com a contribuição da CCSCS à participação da sociedade civil na estrutura institucional do Mercosul, faremos uma breve resenha dos êxitos mais importantes. 1992 Em 1991, a Coordenadoria apresentou na Reunião de Ministros do Trabalho o que na verdade foi a primeira Carta aos Presidentes, mesmo que naquela oportunidade ela não tivesse o aspecto formal que posteriormente se utilizaria nestas instâncias. A Carta propunha ao órgão executivo do Acordo (Grupo Mercado Comum) a criação no mais alto nível de um Subgrupo de Trabalho (SGT), de natureza oficialmente tripartite (governos, empresários, trabalhadores), encarregado das Relações Laborais, Emprego e Previdência Social. Este grupo foi efetivamente criado, passando a se chamar SGT 11, que hoje é o SGT 10.

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1994 Criação do Foro Consultivo Econômico e Social – FCES – pelo Protocolo de Ouro Preto, em 17 de dezembro de 1994. Segundo a própria definição do Protocolo, é “o organismo de representação dos setores econômicos e sociais dos países do Mercosul, representado por organizações de empresários e trabalhadores e organizações da sociedade civil dos quatro países”, sendo o único órgão oficial de caráter privado que integra sua estrutura institucional. A sessão constitutiva foi realizada em 31 de maio de 1996, na cidade de Buenos Aires, na qual foi aprovado o Regulamento interno. Em nível regional, a estrutura do FCES é composta pelo Plenário (órgão máximo que deve se reunir ao menos uma vez por semestre), pela Secretaria Permanente, pelas Áreas Temáticas e pelos Órgãos de Assessoramento. O FCES é composto pelas Seções Nacionais, uma para cada país, integradas por três setores ou grupos: empresários, trabalhadores sindicalizados e o chamado grupo “diversos” – formado por cooperativas, ONGs, consumidores, profissionais liberais etc. Estas Seções Nacionais têm autonomia organizativa e podem definir, independentemente e conforme suas particularidades, os setores econômicos e sociais que as integram, assim como sua forma de funcionamento, exigindo-se que sejam os mais representativos possíveis e de âmbito nacional. Os nomes dos representantes que integram tanto os órgãos regionais como as Seções Nacionais são designados pelas próprias organizações, sem intervenção oficial. As principais atribuições do FCES são pronunciar-se no âmbito de sua competência emitindo Recomendações, propondo normas e políticas econômicas e sociais em matéria de integração, contribuindo para que a sociedade civil tenha maior participação no processo de integração regional, entre outras. O FCES se relaciona com o Comitê Econômico e Social Europeu, é membro associado da Associação Internacional de Conselhos Econômicos e Sociais e Instituições Similares (AICESIS), assinou o Acordo com o Parlamento do Mercosul e é de consulta preceptiva para alguns temas relacionados com o Instituto Social do Mercosul. As Recomendações podem se referir tanto a questões internas do Mercosul como à relação deste com outros países, organismos internacionais e outros processos de integração. São levadas diretamente ao Grupo Mercado Comum e devem ser tomadas por consenso, com a presença de todas as Seções Nacionais. 194

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1998 Declaração Sociolaboral, criação da Comissão Sociolaboral. O SGT 11 se dividiu em oito comissões para tratar os temas relacionados com seus objetivos; a partir das discussões e dos trabalhos da Comissão nº 8, começou a ser redigida uma Carta Social para o Mercosul, que logo passou a se denominar Carta Social, seguindo o exemplo da Carta Social Européia. Com o apoio da OIT, e em meio a grandes controvérsias, foi redigida uma “Carta de Direitos Fundamentais em matéria trabalhista”, que definitivamente se estabeleceu com o texto do que é a Declaração Sociolaboral (DSL), aprovada pela Cúpula de Presidentes realizada no Brasil, em 1998. Entretanto, os trabalhadores reunidos na CCSCS aspiravam dar um passo a mais, no sentido de que era necessária a criação de um espaço que, entre outras atribuições, tivesse o controlador do cumprimento do que estabelecia a DSL. Assim, foi posta em funcionamento a Comissão Sociolaboral (CSL), aceita e aprovada pela Cúpula Presidencial. Este conjunto de êxitos, SGT 10 (sua denominação atual), a Declaração Sociolaboral e a criação da Comissão Sociolaboral (CSL), segundo alguns especialistas, “veio formar parte da construção do espaço social do Mercosul”. 2004 Criação do Grupo de Alto Nível de Emprego – GANEMPLE. Significou um avanço qualitativo em relação aos êxitos anteriores, sendo aprovada a proposta da Coordenadoria quase sem modificações, incluindo um Observatório do Mercado de Trabalho. Tem como função elaborar a avaliação e o acompanhamento da estratégia de Crescimento do Emprego no Mercosul. Parte de um enfoque integral no qual se relacionam as políticas econômicas, comerciais, migratórias, educativas e de previdência social, e é coordenado pelos Ministérios do Trabalho dos países. Na Declaração da Coordenadoria na Cúpula de julho de 2006, realizada em Córdoba, foi reiterado que, “tal como definiu o GANEMPLE, uma estratégia do Mercosul para o crescimento do emprego deve ser desenvolvida a partir de duas bases concei­tuais: a) a articulação de políticas micro, meso e macroeconômicas com as trabalhistas, sociais e educativas – com o objetivo de gerar condições de criação de empresas e de empregos dignos; b) o respeito e o cumprimento dos direitos fundamentais do trabalho digno e emprego de qualidade, por meio de cinco pilares fundamentais (emprego, proteção social, direitos do trabalho, equidade de gênero e diálogo social)”. Rumo a um Mercosul Cidadão: os desafios de uma nova institucionalidade

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2008 Por ocasião da Cúpula de Presidentes de Tucumã, realizada em julho de 2008, a Coordenadoria apresentou uma proposta de criação do Instituto de Trabalho do Mercosul. Na primeira parte da proposta se alude à criação do GANEMPLE e à decisão do ano de 2006 que adotou “a Estratégia Mercosul de Crescimento do Emprego”. Depois de oito considerações muito críticas, foi proposta a criação do Instituto com os seguintes objetivos: estabelecer uma política regional para a promoção e o respeito aos direitos dos trabalhadores (as) e convênios internacionais da OIT, especialmente no que se refere ao Trabalho Decente, partindo das normas nacionais vigentes, acompanhar a implementação do Acordo de Residência do Mercosul, constituir uma estrutura orgânica e material com capacidade de abarcar e articular os organismos sociolaborais, permanentes e transitórios, erradicação do trabalho infantil e da exploração sexual de menores, igualdade de gênero, emprego para jovens, entre outros.

Esta lista não é exaustiva, porque as iniciativas da Coordenadoria incluem uma série de propostas não mencionadas por razões de espaço; entre as que podem ser destacadas está a relacionada com o funcionamento do Focem (Fundos de Convergência Estrutural do Mercosul).

AS REUNIÕES ESPECIALIZADAS Uma série de atores sociais regionais encontrou seu espaço de participação no processo de integração regional, fortalecendo-se como atores setoriais, a partir do mecanismo das Reuniões Especializadas. As Reuniões Especializadas foram criadas pelo Conselho do Mercado Comum (CMC) a partir de 1991, com o objetivo de tratar de temas não incluídos nos Subgrupos de Trabalho (SGT) estabelecidos pelo Tratado de Assunção. São órgãos auxiliares e assessores do Grupo Mercado Comum (GMC) que funcionam por meio da realização de reuniões periódicas. A maioria destas Reuniões Especializadas é realizada duas vezes por ano, coincidindo com cada Presidência Pro Tempore, mesmo que algumas sejam celebradas com maior frequência e outras uma apenas vez por ano. As Reuniões Especializadas são organizadas pelas Seções Nacionais que se constituem em cada país membro do Tratado. Em alguns 196

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casos, essas Seções Nacionais se limitam a uma Coordenação Nacional exercida pela autoridade governamental; em outros, são integradas por representantes governamentais e do setor da sociedade civil correspondente ao campo de atuação específico. A composição plural das Seções Nacionais em algumas reuniões é equitativa entre o setor público e o privado, em outras predomina a representação do poder público. Em muitos casos, as Reuniões Especializadas são integradas também por Estados associados, ou alguns deles, especialmente Chile e Bolívia. Essa participação se dá por convite dos Estados Parte ou por solicitação do Estado Associado, e pode ser plena ou limitada ao desenvolvimento de projetos conjuntos sobre temas de interesse comum. O vínculo entre as Reuniões Especializadas e o GMC se produz na apresentação de um Plano de Trabalho anual ou bianual a ser aprovado e um informe ou conjunto de recomendações aprovadas pelo plenário da Reunião Especializada. Em resumo, as Reuniões Especializadas são um espaço de diálogo político, um espaço de participação e proposta e um órgão do Grupo Mercado Comum, que o assessora sobre temas específicos de sua competência. No decorrer do tempo foram sendo criadas Reuniões Especializadas para Ciência e Tecnologia, Turismo, Drogas, Municípios e Intendências, Promoção Comercial, Cinema e Audiovisual, Cooperativas, Mulher e Agricultura Familiar. Por razões de espaço deste trabalho e especialmente pelo desenvolvimento de setores da sociedade civil nas Reuniões Especializadas, nos referiremos somente às três últimas. Na Cúpula de Presidentes realizada em Córdoba, no mês de julho de 2006, foi criada a Reunião Especializada dos Jovens.

A REUNIÃO ESPECIALIZADA DE COOPERATIVAS DO MERCOSUL (RECM) Nos países integrantes do Mercosul existem aproximadamente 12 mil cooperativas com cerca de 18 milhões de associados, que dão uma importante contribuição para o desenvolvimento sustentável dos países e regiões, que tem como efeito a dinamização da economia local, nacional e regional, com uma alta participação na área agroalimentar, no sistema bancário, nos serviços públicos, nos seguros etc., Rumo a um Mercosul Cidadão: os desafios de uma nova institucionalidade

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sendo muito relevante seu aporte para a solução de problemáticas como as da moradia, da distribuição de alimentos, da saúde e da geração de emprego produtivo. Como destacam as próprias cooperativas, elas são “um instrumento incontornável na hora de garantir a transparência nos mercados, evitando ou compensando comportamentos oligopólicos que atentam contra a eficiência da economia e contra a igualdade de oportunidades”. No contexto do Mercosul, o movimento cooperativo foi estabelecendo vínculos em nível regional com o objetivo de coordenar as diferentes iniciativas para obter uma maior integração e presença (“busca proativa de espaços de participação”) no processo de integração. O início destas ações é anterior ao processo de integração (1986), mas elas se multiplicaram com o lançamento do projeto regional (Reunião de Cooperativas do Mercosul, Foz do Iguaçu, 1992). Em 1999, por ocasião do Encontro dos representantes da sociedade civil Europa-América Latina-Caribe, no Rio de Janeiro, foi criado um Grupo Técnico de Enlace dos movimentos cooperativos organizados em suas Confederações nacionais, com o objetivo de coordenar tecnicamente as iniciativas que podem ser pactuadas para fortalecer as cooperativas como atores regionais. Entre outras tarefas, o Grupo Técnico de Enlace coordena as diferentes representações do cooperativismo no Foro Consultivo Econômico e Social, promovendo a integração daquelas organizações ou segmentos que não se encontram representados e garantindo a efetiva presença cooperativa neste órgão da sociedade civil. Para tanto, foi constituído um registro de cooperativas do Mercosul, garantindo o livre acesso de todos os interessados como forma de incentivar as relações horizontais entre todas as cooperativas da região, buscando mecanismos permanentes de circulação da informação. O “Bloco Cooperativo” – grupo de entidades cooperativas participantes do Foro Consultivo Econômico e Social – propôs ao Grupo Mercado Comum, por meio da Recomendação nº 5, de 1999, a criação da Reunião Especializada de Cooperativas do Mercosul – RECM – que se concretizou em uma resolução do GMC em 2001. A RECM é formada pelos seguintes representantes governamentais: Instituto Nacional de Associativismo e Economia Social (INAES), Secretaria de Apoio Rural e Cooperativismo (SARC), Instituto Nacional de Cooperativismo (INCOOP) e Comissão Honorária de Cooperativismo (OPP/CHC). E pelas seguintes confederações coo198

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perativas nacionais: Confederação Intercooperativa Agropecuária (CONINAGRO), Confederação Cooperativa da República Argentina (COOPERAR), Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), Confederação Paraguaia de Cooperativas (CONPACOOP), e Confederação Uruguaia de Entidades Cooperativas (CUDECOOP). Atualmente está em curso o processo de incorporação da Venezuela, especificamente a Superintendência Nacional de Cooperativas. Entre os objetivos da RECM estão a harmonização e o aperfeiçoamento da legislação específica entre os países em todos os níveis relacionados com a integração regional, promoção da liberdade de circulação e de instalação das cooperativas na região, o estabelecimento de ações voltadas para a eliminação de assimetrias em temas relacionados ao registro, fiscalização, matéria tributária, definição do ato cooperativo e outros temas vinculados às políticas públicas do setor cooperativo, entre outros. Neste momento, o interesse maior das cooperativas está concentrado na elaboração de um “Estatuto das Cooperativas do Mercosul”, que está sendo discutido em uma Comissão Técnica que começou os trabalhos em outubro de 2006. Devido à impossibilidade de uma legislação supranacional no Mercosul, a Comissão procurará redigir uma série de normas para que sejam rapidamente incorporadas de forma idêntica nas legislações nacionais. Para tanto, o movimento cooperativo espera a colaboração do Parlamento do Mercosul. Por ocasião das Cúpulas, os Presidentes do Mercosul expressaram seu apoio ao movimento cooperativo e a suas reivindicações. Para mencionar apenas algumas das últimas, na cúpula de 21 de julho de 2006, no ponto 28, se lê: “Mesmo assim, reafirmaram sua vontade de avançar na direção da integração produtiva regional com desenvolvimento social, com ênfase na promoção de empreendimentos produtivos regionais que incluam redes integradas, especialmente por pequenas e médias empresas e cooperativas. Para tais fins, os Presidentes instruíram os ministros das áreas vinculadas com a produção para definir as pautas que conformarão o Plano de Desenvolvimento e Integração Produtiva Regional. Reconhecendo a urgência de que o Mercosul adiante uma ação articulada para promover o desenvolvimento social e produtivo, instruíram seus ministros a apresentar suas contribuições durante a próxima Cúpula do Mercosul”. E o ponto 42 da mesma Cúpula diz: “Reconheceram a relevância das Cooperativas e demais empresas e organizações da economia Rumo a um Mercosul Cidadão: os desafios de uma nova institucionalidade

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social, cuja promoção consagra a Recomendação 193 da OIT, no desenvolvimento dos países e na busca da coesão social. Nesse sentido, e com efeitos de coadjuvar o desenvolvimento cooperativo, manifestaram seu compromisso de promover a internalização da mencionada Recomendação nos respectivos ordenamentos jurídicos nacionais”. O movimento cooperativo tem um relacionamento fluido intra-Mercosul, no qual se destaca um Acordo de cooperação firmado em julho de 2006 com a Comissão de Representantes Permanentes do Mercosul (CRPM). Em uma reunião de ministros de Desenvolvimento Social foi estabelecido que a RECM é um dos órgãos de relacionamento do Instituto Social do Mercosul, especialmente em relação aos temas de Economia Social. Com o mesmo Instituto tem em estudo a implementação de um projeto de desenvolvimento cooperativo em zonas de fronteira com respaldo do FOCEM. Tanto a CUDECOOP como a CONPACOOP exercem a titularidade do “Setor Diversos” no Plenário Regional do Foro Consultivo Econômico e Social, enquanto as outras organizações são ligadas às Associações de Consumidores. A RECM se pronunciou em diversas oportunidades sobre temas de seu interesse, entre as quais cabe mencionar: • Declaração sobre o papel das cooperativas no Mercosul (2003). • Declaração sobre Cooperativas, Emprego e Trabalho Decente (2005). • Desenvolvimento de Áreas de Fronteira (2005). • Políticas Públicas em Matéria Cooperativa (2005). • Declaração Conjunta sobre a Promoção das Cooperativas e Economia Social na União Europeia e o Mercosul: Uma via adequada para favorecer a inclusão e a coesão social (2005). • Declaração das confederações cooperativas do Mercosul sobre conflitos em zonas de fronteira (2006). • Projeto de Estatuto Cooperativo do Mercosul (encaminhado pelo GMC ao Parlamento do Mercosul) (2008). • Propostas de operacionalização de Centros de Desenvolvimento Cooperativo em zonas fronteiriças – em estudo pela Reunião de Ministros de Desenvolvimento Social (2008).

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REUNIÃO ESPECIALIZADA DA MULHER (REM) Desde a constituição do Mercosul, as ONGs feministas vinculadas à análise da temática do emprego das mulheres, as sindicalistas, a UNIFEM e a FLACSO fizeram esforços para introduzir a consideração da dimensão de gênero no processo de integração, dirigindo nesse momento as iniciativas ao SGT 11. Ao avaliar os esforços realizados, a FLACSO e a UNIFEM constataram o relativo desconhecimento e alheamento por parte das organizações de mulheres a respeito do Mercosul e decidiram implementar um foro de informação e sensibilização para incrementar a participação das mulheres. Em 1995, antes da IV Conferência das Nações Unidas, foi realizado na sede do Parlatino, em São Paulo, o primeiro seminário de análise das Mulheres no Mercosul. Desta iniciativa e de outras, realizadas nesse período, depois de uma fase de interação e elaboração de estratégias, a Reunião Especializada da Mulher (REM) surgiu na estrutura institucional do Mercosul. A Reunião Especializada da Mulher foi criada em 1998, sob instância e proposta do Foro de Mulheres do Mercosul. O Foro de Mulheres do Mercosul é o antecedente da REM e foi criado em novembro de 1995, como resultado das Jornadas de Trabalho sobre “Integração do Mercosul – Visão a partir da Mulher”. É integrado por mulheres de setores políticos, empresariais, sindicais e dos campos da educação e da cultura. O objetivo inicial do Foro foi a busca de um espaço dentro dos órgãos permanentes do Acordo, especialmente no Foro Consultivo Econômico e Social (FCES), para “instalar a partir da visão da mulher a discussão, a participação e a contribuição de todos os setores sobre a base da nossa necessária presença no desenvolvimento do Mercosul”. No caminho para realizar tal inserção, o Foro da Mulher criou “capítulos” em cada um dos países do bloco a partir de 1996, realizando encontros anuais nos quais se trataram temáticas atinentes aos seus objetivos, como, por exemplo, a harmonização das legislações existentes sobre a mulher para garantir a igualdade de direitos entre homens e mulheres no espaço da região. Ao modificar seu estatuto de funcionamento em novembro de 2005, a REM reconheceu a contribuição do Foro de Mulheres como assessora da REM desde 1998 até aquele momento, mas cabe mencionar que o Foro continua participando das atividades da REM. Rumo a um Mercosul Cidadão: os desafios de uma nova institucionalidade

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A função principal da REM é impulsionar a transversalidade de gênero na legislação dos países do Mercosul e monitorar o tema, a partir do enfoque de igualdade de oportunidades. Mesmo assim, desenvolve estratégias de ação em outros espaços com atores sociais regionais e outros organismos do Mercosul para que se assuma plenamente a perspectiva de gênero. Neste sentido, desenvolveram ativa participação em vários Subgrupos de Trabalho (SGT) como Indústria, Assuntos Trabalhistas, Emprego e Previdência, Saúde, Reuniões Especializadas de Ciência e Tecnologia, Comunicação Social, Reunião de Ministros de Educação e Cultura, entre outros. Realizaram importantes esforços apoiando a instalação do Parlamento do Mercosul, propiciando a participação igualitária de mulheres em sua composição. Um dos êxitos mais importantes a respeito desta estratégia é a incorporação da igualdade de gênero como componente transversal da REAF (Reunião Especializada de Agricultura Familiar). Nos últimos anos foram incorporados à sua agenda os temas do trabalho e da mulher, proporcionando o fortalecimento de políticas de melhoramento da qualidade do emprego e de empregabilidade das mulheres mais pobres, a luta contra o tráfico de pessoas, especialmente o tráfico de mulheres e crianças com fins de exploração sexual. Na REM participam representantes dos governos, organizações sociais e organismos internacionais. Entre as organizações da sociedade civil se encontram o Comitê Latino-Americano para a Defesa da Mulher (CLADEM), a Rede Interamericana de Gênero e Comércio, a Coordenadoria de Centrais Sindicais do Cone Sul (CCSCS), a Articulação Feminista MARCOSUR, a REPEM, o Observatório dos Direitos Humanos do Mercosul, o Foro de Mulheres do Mercosul, a União de Mulheres Uruguaias, o CMP-Kuña Roga, a Associação de Mulheres Rurais, entre outras. Entre as organizações internacionais cabe destacar o Fundo das Nações Unidas para a Mulher (UNIFEM), a Organização Internacional para as Migrações (OIM), a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), entre outras. A REM, que conta com um dos regulamentos internos mais avançados do Mercosul, procurou, nos dois últimos anos, concretizar duas inovações em relação à estrutura institucional do Mercosul. Efetivamente, em novembro de 2007, resolveu promover uma mudança no status da participação das organizações de mulheres, propiciando uma resolução para alterar o caráter assessor da participação da sociedade civil na REM. Para tanto, enviou um projeto de resolu202

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ção propondo “modificar a resolução 20/98 que estabelece esse caráter assessor, concedendo às organizações e redes da sociedade civil um caráter de interação e participação com a REM”. A resposta do Foro de Consulta e Concertação Política do Mercosul (FCCP) foi devolver o projeto à REM, solicitando que especificasse os termos e o alcance de sua proposta. Outra iniciativa institucional da REM foi a institucionalização da Secretaria Técnica da REM, para o qual contou com o apoio da AECID. O Grupo Mercado Comum (GMC) aceitou a proposta de criação da Secretaria Técnica, mas modificando a fonte de financiamento. “As tarefas administrativas e técnicas da REM poderão ser encomendadas a uma secretaria permanente financiada por recursos de organizações não governamentais, fundações e / ou cooperação de Organismos Internacionais, de acordo com a normativa vigente no Mercosul.” Para pôr em funcionamento a Secretaria Técnica, surgiu outra dificuldade além do financiamento, já que na resolução do GMC se estabelecera que a sede da Secretaria seria Montevidéu, mas o Paraguai aspira a que funcione em seu país.

REUNIÃO ESPECIALIZADA SOBRE AGRICULTURA FAMILIAR (REAF) A Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar (REAF) foi uma iniciativa política do governo brasileiro, e o apogeu de uma luta de dez anos da Coordenadoria de Organizações de Produtores Familiares do Mercosul (COPROFAM), somada a outros antecedentes, como a “Carta de Montevidéu”, que permitiram que este espaço institucional se consolidasse. A COPROFAM inclui organizações dos quatro países do Tratado, mais Chile e Bolívia. Em um contexto de reorientação da política exterior, voltada para a integração regional e a uma maior aproximação com os países em desenvolvimento, o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Ministério de Relações Exteriores do Brasil levaram ao Grupo Mercado Comum (GMC), em 2004, a proposta de criação da REAF. Na Resolução do GMC, o Artigo 1 estabelece “Criar a Reunião Especializada sobre Agricultura Familiar no Mercosul, com a finalidade de fortalecer as políticas públicas para o setor, promover o comércio dos produtos de agricultura familiar e facilitar a comercialização de produtos oriundos da agricultura familiar da região”. Rumo a um Mercosul Cidadão: os desafios de uma nova institucionalidade

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No Artigo 2 se dispõe que a REAF será coordenada pelos representantes governamentais dos quatro Estados Partes, e que as respectivas Seções Nacionais garantirão a participação das entidades representativas da Sociedade Civil. O Artigo 3 autoriza a “reunir-se com a presença do Chile e da Bolívia naqueles temas de interesse comum”. Tais objetivos propostos quando da fundação implicam a criação de condições para que esses produtores sejam incluídos no mercado por meio de medidas que garantam mais e melhor acesso aos meios de produção e à comercialização, e que conduzam à agregação de valor aos produtos e ao aumento da capacidade produtiva da agricultura familiar como um todo. A base do funcionamento da REAF são as Seções Nacionais, nas quais se constroem os consensos sobre propostas à agenda, posições frente a temas em debate da própria agenda já acordada pela REAF e se define a “posição negociadora de cada um dos estados”. As Seções Nacionais, seu bom funcionamento e o apoio às delegações das organizações sociais para que participem em pé de igualdade em matéria de informação e análise com as delegações governamentais fazem a diferença e caracterizam, hoje, depois de realizadas oito sessões até dezembro de 2007, o espaço de diálogo político da REAF e são as causas de sua dinâmica, alta participação e projeção social em cada um dos países. Com o apoio do FIDA, desde outubro de 2004, além das oito sessões regionais, a REAF realizou mais de 120 sessões das Seções Nacionais respectivas a cada um dos seis países, mais de 30 reuniões preparatórias dos debates regionais dos Grupos Temáticos e aproximadamente 20 oficinas e seminários prévios a cada REAF. Esta dinâmica foi permitindo construir avanços, propostas e a agenda atual. A agenda atual, denominada “Uma Agenda para a Integração Regional”, com resultados, inclui os seguintes temas: 1. 2. 3. 4. 5. 6.

Acesso à terra e reforma agrária Equidade de gênero Cobertura de risco climático – Sistemas de Seguro para a AFC Facilitação de comércio de produtos da AFC Políticas ativas para a juventude rural Cooperação horizontal, entre os países membros da REAF (organizações representativas da AFC e governos) 7. Aceder ao crédito para a Agricultura Familiar 8. Intercâmbio entre os países 204

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Considerando a conjuntura internacional e regional de alta de preços dos alimentos e seus impactos na sustentabilidade socioeconômica dos países e o papel central da Agricultura Familiar no abastecimento do mercado interno e a promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional, o Brasil propôs a criação de um Grupo de Alto Nível que elabore uma estratégia neste tema para o Mercosul, considerando que a REAF deve liderar a implementação da proposta.

Outros espaços institucionais de participação Até agora nos referimos aos espaços de participação da sociedade civil criados a partir de decisões oficiais, mas como consequência da gestão, da proposta e da pressão dos setores da sociedade civil. Em seguida incluiremos três espaços de participação nos quais a iniciativa correspondeu aos governos ou atores oficiais.

INSTITUTO SOCIAL DO MERCOSUL (ISM) A criação do Instituto Social do Mercosul foi uma iniciativa do Presidente da Comissão de Representantes Permanentes do Mercosul (CRPM), Dr. Carlos Álvarez (Chacho), concretizada pela Resolução 03/07 do Conselho de Mercado Comum, em 18 de janeiro de 2007. Sua missão é contribuir para a promoção de uma concepção participativa de políticas sociais regionais, procurando superar as assimetrias por meio de mecanismos de cooperação horizontal. Funcionará como uma instância técnica de pesquisa, discussão e concertação intersetorial a partir do estudo dos problemas sociais que existem no Mercosul. Esta instância representa um ponto de inflexão por ser a primeira instância regional dedicada exclusivamente a esta temática. O ISM pretende ser um instrumento técnico com compromisso ético-político que acompanhe o desenvolvimento de projetos, programas e políticas para a inclusão social, promova o intercâmbio de experiências e ofereça acompanhamento técnico à elaboração, execução e avaliação de políticas públicas, concretizado por meio de processos de comunicação, articulação de saberes e participação social. Na criação foram definidos os objetivos gerais, os componentes e a estrutura institucional do órgão. A implementação do ISM está sendo lenta e dificultosa, com um cronograma atrasado (na resolução do CMC se estabelecia como data de inauguração o mês de dezembro de 2007), estando encarregados Rumo a um Mercosul Cidadão: os desafios de uma nova institucionalidade

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de sua instalação os Ministérios de Desenvolvimento Social da região. A sede permanente do Instituto é a cidade de Assunção. Por enquanto, a participação da sociedade civil no ISM tem sido muito marginal. O Instituto é um instrumento de grande potencial e as organizações da sociedade civil deverão conceber estratégias de participação que lhes permitam alcançar níveis de incidência reais, como forma de garantir o cumprimento dos objetivos.

O PARLAMENTO DO MERCOSUL A criação do Parlamento do Mercosul constitui outro ponto de inflexão nos processos de integração, assentando as bases para uma nova etapa na qual se resgata o valor da política no processo regional (nivelando a preeminência dos assuntos e instrumentos comerciais como fatores principais de integração), restabelece um benéfico equilíbrio de poderes no esquema institucional do Mercosul, contrabalançando o papel de protagonista quase exclusivo dos Poderes Executivos, gerando um espaço genuíno para o debate político e a confrontação de ideias, em um órgão que refletirá a pluralidade política da região, e especialmente porque produz um espaço para a participação da cidadania nos assuntos regionais. A sociedade civil organizada terá, por meio do Parlamento, uma maior amplificação de suas propostas, debates e questionamentos ao processo de integração; ele será um porta-voz de suas opiniões, proporcionando instâncias de controle social que operem com uma lógica regional. O Protocolo constitutivo diz que o Parlamento do Mercosul se constitui “como órgão de representação de seus povos”, independente e autônomo, que integrará a estrutura institucional do Mercosul. Isto é, o Parlamento não representa os Estados nem os governos, mas os povos. O fato de serem eleitos, confere um significativo elemento de legitimidade aos parlamentares. O Parlamento do Mercosul é unicameral, tem sua sede em Montevidéu, reúne-se ordinariamente uma vez por mês, conta com dez comissões permanentes de trabalho e resolveu funcionar, entre outras metodologias, com o mecanismo de audiências públicas. O Parlamento nasceu em uma conjuntura especialmente difícil do processo de integração, em meio de uma situação de crise, com sinais evidentes de desconformidade e descrença de setores muito 206

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numerosos da cidadania, e cercado de polêmicas acerca de sua própria pertinência. Podemos afirmar, entretanto, que é uma nova oportunidade para o processo de integração, cujo aproveitamento positivo depende de muitos atores, não somente estatais, entre os quais a sociedade civil tem um papel de primeira importância.

MERCOCIDADES Mercocidades é a rede que reúne as prefeituras e outras instâncias administrativas municipais dos centros urbanos do Mercosul. Foi criada em novembro de 1995 em Assunção, na Primeira Cúpula de Prefeitos de Mercocidades, na qual participaram Assunção, Buenos Aires, Brasília, Montevidéu, Córdoba, La Plata, Rosario, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Salvador. Posteriormente se integrou à rede um número muito importante de cidades dos Estados Parte do Mercosul e cidades de Chile e Bolívia. Atualmente, a rede Mercocidades conta com 181 cidades associadas, nas quais vivem mais de 80 milhões de pessoas. O objetivo da rede Mercocidades é conseguir a participação dos municípios no seio do Mercosul e impulsionar o intercâmbio e a cooperação entre as cidades da região. Desde sua fundação, tem sido promotora constante da condição de protagonista dos governos locais, reivindicando sua importância na construção e consolidação dos processos democráticos da região, apoiando decididamente e estimulando o processo de integração regional e, apesar de todas as dificuldades e a crise do bloco, Mercocidades manteve sempre sua confiança e compromisso com o caminho aberto pelo Mercosul. Depois de muitos anos de anúncios infrutíferos, na atualidade Mercocidades é parte da rede institucional do Mercosul, dentro do Foro Consultivo de Municípios, Estados Federados, Províncias e Departamentos do Mercosul (FCCR). Dada a complexidade deste ator, não é possível realizar neste trabalho uma apresentação da estrutura orgânica, funcionamento e descrição de suas 14 Unidades Técnicas ou Grupos de Trabalho, que constituem o espaço de intercâmbio com a sociedade civil, já que contribuem com a formulação de políticas públicas, promovem pesquisas e difundem diversas experiências de sucesso das gestões urbanas locais. Mercocidades é um espaço privilegiado de participação da sociedade civil em suas mais diversas manifestações, estando muito Rumo a um Mercosul Cidadão: os desafios de uma nova institucionalidade

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ligada na atualidade ao Programa Somos Mercosul, convertendo-se em um ponto de referência do processo de construção do Mercosul no concerto internacional de cidades.

SOMOS MERCOSUL O Programa Somos Mercosul é uma iniciativa da Presidência Pro Tempore do Uruguai no Mercosul, apresentada em junho de 2005, na cúpula de Presidentes de Assunção, e que os demais governos assumiram e continuaram plenamente. O objetivo principal é implicar a cidadania no processo de integração regional, fortalecendo o Mercosul Cidadão, para avançar na construção da cidadania regional, criando novos espaços para que a sociedade civil e os governos locais possam formular demandas e participar dos processos decisórios do Mercosul. É um programa de atuação, uma plataforma de ação, com uma dinâmica aberta à participação da sociedade civil por meio de suas organizações representativas. É um espaço para somar, uma oportunidade para que os atores não tradicionais do Mercosul possam integrar suas vozes e suas vontades no processo de construção regional. Um território de todos, um espaço público regional para promover um debate no qual o cidadão tenha papel de destaque. Somos Mercosul pretende articular a agenda dos governos e da sociedade civil com o propósito de resgatar a dimensão social, política e cultural do Mercosul. É um programa de ações sociais, políticas e culturais, de caráter semestral, acordado pela Presidência Pro Tempore que estiver no posto com a sociedade civil organizada do Mercosul. A Secretaria Técnica é exercida pelo Centro de Formação para a Integração Regional – CEFIR. Em essência, Somos Mercosul representa uma contribuição democratizadora que procura uma apropriação maior do processo de integração por parte das organizações sociais da região, para obter novos avanços no envolvimento coletivo do projeto e para que, como diz a alocução presidencial, os cidadãos dividam responsabilidades com os governos, porque de todos depende o êxito do projeto. A coordenação de Somos Mercosul é composta por cinco Pontos Focais, um para cada governo (o da Venezuela está em processo de reestruturação), sendo que coordenadores nacionais delineiam conjuntamente a agenda de ação e diálogo para cada semestre. Os 208

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Pontos Focais da Argentina, Paraguai e Uruguai estão localizados nos Ministérios das Relações Exteriores, e o do Brasil na SecretariaGeral da Presidência da República. A primeira reunião dos Pontos Focais de Somos Mercosul foi realizada em 28 de junho de 2006, na sede do CEFIR.

Cúpulas sociais do Mercosul Muito ligada a Somos Mercosul é a realização das Cúpulas Sociais em paralelo às Cúpulas de Presidentes do Mercosul. Na reunião de Córdoba de julho de 2006, a Chancelaria argentina organizou o “Encontro por um Mercosul Produtivo e Social”, primeira experiência de uma participação numerosa de organizações da sociedade civil, ampliando consideravelmente o pluralismo e o espaço de intercâmbio e debate entre atores sociais e políticos. Participaram mais de 400 representantes de organizações sociais, que apresentaram conclusões sobre os seguintes temas: Mercosul Produtivo e Social, Sociedade e Tecnologia, Juventude, Produção, Governos Locais e Regiões Subnacionais. Em sua Cúpula, os Presidentes fizeram referência expressa ao Programa Somos Mercosul e à realização do “Encontro por um Mercosul Produtivo e Social”, destacando que a participação social é central para aprofundar o processo de integração. Em dezembro de 2006 foi realizada em Brasília o que se considera a Primeira Cúpula Social do Mercosul, na qual participaram cerca de 500 representantes sociais das mais diversas organizações, dando continuidade à reunião de Córdoba. A abertura oficial da Cúpula teve lugar no Palácio do Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Fizeram uso da palavra: Luiz Dulci, Coordenador Geral da Cúpula Social e Chefe da Secretaria-Geral da Presidência do Brasil; o Chanceler Celso Amorim; o Presidente da Comissão de Representantes Permanentes, Dr. Carlos Álvarez (Chacho), e Lilian Celiberti, lutadora pelos direitos da mulher. Todos destacaram a importância da Cúpula Social e do novo enquadramento da Cúpula, agora como instância oficial do Mercosul. Durante dois dias, as organizações sociais funcionaram em nove grupos temáticos e no fim da tarefa foi aprovada uma Declaração de 23 pontos para ser entregue aos Presidentes. Por sua parte, os Presidentes, no Comunicado resultante de sua Cúpula, realizada em janeiro de 2007, no Rio de Janeiro, saudaram a realização da Cúpula Social de Brasília e propuseram que as Cúpulas Sociais passassem a Rumo a um Mercosul Cidadão: os desafios de uma nova institucionalidade

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ser atividades permanentes dos movimentos sociais, sendo realizadas no marco das reuniões de Cúpula do Mercosul. Na Cúpula de Presidentes do Paraguai não foi realizada uma Cúpula Social com as características mencionadas e dentro do espaço Somos Mercosul, mas várias organizações sociais se reuniram em uma jornada que denominaram Cúpula dos Povos do Sul, com mesas-redondas de discussão de diversos temas, que terminou com uma declaração e posterior marcha na qual foram apresentadas as reivindicações das organizações presentes. Em dezembro de 2007 teve lugar em Montevidéu uma nova Cúpula Social, na qual se tentou dar um caráter diferente. Foi considerado que a Cúpula Social deveria ser o resultado de um processo prévio, no qual os atores sociais regionais desenvolvessem seus programas e atividades regionais, mas dentro de uma visão de conjunto. Para articular as ações e as agendas, foram realizadas duas oficinas de consulta a representantes de diversas organizações sociais, resolvendo-se, entre outros pontos, encontrar uma identificação comum no momento dos anúncios de convocação e em relação à apresentação gráfica de tais atividades. Foi assim que, no calendário de Somos Mercosul da Presidência Pro Tempore do Uruguai, foram incluídos eventos e atividades desde o mês de setembro até dezembro. Em 14 de dezembro foi realizado um encontro-diálogo entre organizações da sociedade civil e representantes governamentais e oficiais do Mercosul. Nessa instância, diferentes atores sociais apresentaram suas propostas (de forma verbal e por escrito) à Mesa integrada pelo Chanceler do Uruguai, o Presidente da CRPM, os Pontos Focais de Somos Mercosul e o Presidente do Parlamento Mercosul. O PMSS interveio apresentando suas propostas e enviando o documento ao Presidente Pro Tempore, Dr. Tabaré Vázquez, e à Presidente Pro Tempore seguinte, Dra. Cristina Fernández. Em junho de 2008 foi realizada uma nova Cúpula Social em Tucumã, sob a Presidência Pro Tempore da Argentina. Naquela oportunidade foi adotado novamente o formato de trabalho em comissões que abordaram diferentes temas, tais como Equidade de Gênero, Juventude, Recursos Naturais, ONGs e Fundações, Mudança Climática, Soberania Alimentar, Produção e Trabalho etc. A última Cúpula Social organizada até o momento aconteceu na Bahia, no mês de dezembro de 2008. A modalidade desta Cúpula foi a de realização de uma série de Seminários e Oficinas organizadas 210

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por plataformas regionais e / ou programas ou instituições oficiais. No último dia da Cúpula foi realizado um ato conjunto de todas as Plataformas, no qual resultados e conclusões de todas estas atividades foram socializados. É necessário ressaltar que por ocasião das Cúpulas Presidenciais, são realizadas reuniões de outros atores sociais e políticos, que conferem a essas instâncias um especial dinamismo, um ambiente de significação e impacto político. Com efeito, paralelamente aos Presidentes se reúne o plenário regional do Foro Consultivo Econômico e Social, o Parlamento do Mercosul, Mercocidades, as Reuniões Especializadas de Cooperativas e da Mulher, a Associação LatinoAmericana de Micro, Pequenas e Médias Empresas (ALAMPYME), a Coordenadoria de Centrais Sindicais do Cone Sul (CCSCS), a Comissão de Representantes Permanentes do Cone Sul, aos quais se somam as Cúpulas Sociais, realizando-se um sem-número de oficinas e seminários com temas relacionados à integração regional.

Programa Mercosul social e participativo Por Decreto da Presidência do Brasil, firmado pelo Presidente Lula, foi criado, em 6 de outubro de 2008, o Programa Mercosul Social e Participativo. Tal programa funcionará no âmbito da Secretaria-Geral da Presidência e do Ministério das Relações Exteriores do Brasil. O objetivo deste programa é promover a interlocução entre o Governo Federal e as organizações da sociedade civil sobre as políticas públicas do Mercosul. O Decreto estabelece três finalidades principais relacionadas à participação da sociedade civil no Mercosul, sendo coordenado pelo Ministro de Estado Chefe da Secretaria-Geral da Presidência e pelo Ministro das Relações Exteriores. Mesmo que este espaço seja nacional, acreditamos que é necessário incluí-lo no presente documento, em virtude do enorme potencial de futuro que apresenta, o fato inédito na região de sua inserção institucional (diretamente vinculado à Presidência da República), e as possibilidades de ser um modelo a reproduzir em outros países. O PMSS integra o Programa desde o seu início.

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Reflexões finais O Mercosul institucional atual continua sendo um espaço estreito e insuficiente para a incorporação de todas as novas agendas, que não somente são sociais, como também políticas, econômicas e externas. O contexto regional mostra no momento atual um cenário de disputas e conflitos que coloca no primeiro plano da agenda política o debate acerca dos modelos de desenvolvimento e o processo de integração regional. O Mercosul é um processo em construção e um modelo em disputa, como também estão em disputa os modelos de desenvolvimento e de democracia. É necessário construir com urgência espaços de convergência entre a sociedade civil organizada e os partidos políticos e governos afins, única possibilidade de tornar viável um “novo Mercosul”. O Parlamento pode ser um excelente instrumento para viabilizar essa convergência, pela maior proximidade com os cidadãos, pela legitimidade política que lhe confere sua condição de eleito e seu grau de representatividade. É necessário construir um novo conceito de cidadania, promovendo sua ampliação e aprofundamento sob um paradigma de direitos humanos universais, com um enfoque de cidadania ativa, não reduzido unicamente à dimensão de cidadão-eleitor. Há uma grande distância entre o discurso oficial e os fatos. Se tomarmos como base as declarações, documentos, consensos, comunicados, acordos e até mesmo a linguagem utilizada em muitos deles, parece que “estamos todos na mesma sintonia”, mas os fatos são muito mais lentos e dificultosos que os discursos, e em certas oca­ siões acontece o não-cumprimento dos compromissos assumidos. Os problemas de transparência são especialmente graves, já que o secretismo e a reserva se mantêm, além das dificuldades de acesso à informação, o que distancia o cidadão comum e também o envolvido e ativista do conhecimento dos elementos fundamentais para entender o que está acontecendo e poder incidir na orientação da tomada de decisões. Nesse contexto, ninguém sabe quem está negociando os temas-chave do Mercosul de hoje, nem quem é representado, nem quem os controla. A partir do ponto de vista da sociedade civil, é necessário ampliar os elencos de representação das organizações para superar a atual situação de elitização que se percebe na maioria dos encontros, 212

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seminários, oficinas e atividades regionais, nos quais reaparecem os mesmos nomes como participantes. A construção do Mercosul Cidadão não deve se cindir da solução dos outros problemas não resolvidos do processo de integração, como a complementação produtiva, a negociação internacional como bloco, uma estratégia de financiamento intrazonal, a complementação energética e em infraestrutura etc. A reengenharia do Mercosul implica desafios a todos os atores envolvidos, mas especialmente à sociedade civil organizada. Alguns dos desafios suscitados são: 1. Identificar e construir agendas comuns e regionais. Nas páginas anteriores foi demonstrado que a sociedade civil conseguiu construir espaços de participação e incidência, mas eles são estanques, com baixa capacidade de interconexão entre si e com base em agendas setoriais muito focalizadas. Isto impede que seja alcançada uma visão mais global e estratégica que permita estabelecer e impulsionar iniciativas concretas apoiadas por toda a sociedade civil do Mercosul. Na mesma linha, é necessário aprender a construir agendas que suponham algo diferente do somatório das agendas nacionais. As Cúpulas Sociais podem se tornar um espaço adequado para tentar esta articulação. Estes espaços concederam aos atores sociais uma visibilidade de que não dispunham previamente, permitiram o conhecimento e o intercâmbio de agendas e propostas, demonstraram a vitalidade e a pluralidade do Mercosul social, e facilitaram o diálogo com representantes dos governos e a institucionalidade regional. Tudo isto constitui um avanço qualitativo de real significação. Contudo, existe o risco de debilitar a potencialidade política das Cúpulas, mantendo um formato que mostra sinais de esgotamento, no qual cada instância se converteria em “mais do mesmo”. Por isso se deve repensar a modalidade de funcionamento das Cúpulas Sociais, mudando o esquema para tomar como reivindicação ou proposta, com muita força, um único tema das reivindicações transversais que são comuns a todas as organizações, como por exemplo a democratização ou a transparência do Mercosul. 2. Fortalecer a incipiente institucionalidade inclusiva do Mercosul. Isto supõe dar conteúdo político e temático às instâncias de participação cidadã do Mercosul, tais como o Parlamento do Mercosul Rumo a um Mercosul Cidadão: os desafios de uma nova institucionalidade

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ou o anteriormente mencionado respeito às Cúpulas Sociais, utilizando com inteligência e efetividade as instâncias de participação que se abrem. Transitar da informação necessária à participação com capacidade de proposta. Se bem que a transparência na tomada de decisões e na circulação de informação seja requisito indispensável para a participação, isto não é suficiente. Nós, atores da sociedade civil, devemos melhorar nossa capacidade de formular propostas regionais (supranacionais) a partir de uma agenda comum. 3. Vincular o cidadão comum com o processo de integração. Sem isto não será possível fortalecer um novo Mercosul. Isto significa não apenas uma política de comunicação mais explícita dos afazeres relativos à integração, mas um esforço de vincular o local com o regional, de facilitar o intercâmbio cultural e social, de superar falsas contradições e interesses. No imaginário do cidadão comum, o Mercosul é assunto dos governos e talvez dos empresários. A própria sociedade civil envolvida no processo de integração não conseguiu transmitir uma visão mais completa e integral, dando a conhecer toda a riqueza e pluralidade da teia social regional. A participação da sociedade civil não é o único insumo para a construção de um processo de integração regional efetivo e democrático, mas é fundamental para a sua sustentabilidade. E isto sempre deve ser levado em conta por todos os atores sociais. Um Mercosul fortalecido é um Mercosul social e produtivo, com políticas energéticas comuns e projetos de infraestrutura que facilitem a comunicação e a complementação, com políticas redistributivas e maior integração social e cultural entre os países membros e dentro dos países. Um Mercosul que desenvolva sua institucionalidade de acordo com uma filosofia da integração, superando o que aconteceu até o presente, de crescimento institucional por agregação. Um Mercosul que seja catalisador de processos mais amplos de integração continental, demonstrando que outra integração é possível e necessária.

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sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


Alguma bibliografia sobre o tema Para elaborar o presente documento foram utilizados materiais enviados especialmente pelas seguintes organizações: CUDECOOP, Cotidiano Mujer, Secretaria Técnica da CCSCS, e Projeto FIDA Mercosul. Agradecemos a colaboração de todos. Aguerre, María Julia e Sarachu, Juan José. La sociedad civil en el MERCOSUR. Guía de Actores. Programa MERCOSUR Social y Solidario, novembro de 2004. ALLEMANY, Cecilia e LEANDRO, Beatriz. Análisis y propuestas para la participación ciudadana en el MERCOSUR. FES, novembro de 2006. ARBOLEYA, Ignacio. La participación de la Sociedad Civil organizada en el MERCOSUR. Nuevos desafíos para un nuevo modelo de integración. Boletim LogoLink América Latina, 4 de agosto de 2008. CAETANO, Gerardo. Los retos de una nueva institucionalidad para el MERCOSUR. FES, 2004. CAETANO, Gerardo; VÁZQUEZ, Mariana e VENTURA, Deisy. Reforma Institucional del MERCOSUR. Análisis de un Reto. CEFIR – InWent – Documento de Trabalho 001/2008. CANZANI, Agustín. ¿Participar para qué? El rol de las organizaciones sociales en la construcción de democracia desde abajo. Documento de Trabalho para o PMSS. Montevidéu, agosto de 2005. CARRAU, Natalia. La Coordinadora de Centrales Sindicales del Cono Sur. Un actor con mirada regional en el MERCOSUR. FES, abril de 2008. CASAL, Oscar. MERCOSUR: Refocalizar en lo estratégico. MERCOSUR abc, fevereiro de 2008. CELIBERTI, Lilian e MESA, Serrana. La Equidad de género en los países del MERCOSUR. CEFIR – InWent – Documento de Trabalho 002/2008. ¿Es sostenible la globalización en América latina? Debates con Manuel Castells – PNUD – Bolívia, Fondo de Cultura. Foro Consultivo Econômico e Social do MERCOSUL. A 10 años de su creación. Selección de Normativa y Documentos. GARCÉS, Mario. Apuntes para el debate político interno. Documento para o PMSS, Santiago do Chile, abril de 2005. GARCÉS, Mario. La democracia, la ciudadanía, las políticas públicas y los movimientos sociales en la Región MERCOSUR. Santiago do Chile, outubro de 2005.

Rumo a um Mercosul Cidadão: os desafios de uma nova institucionalidade

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González Guyer, Fernando. El MERCOSUR y nosotros. Artigo para o PMSS, Montevidéu, março de 2006. La Sociedad Civil de Manifiesta. Las cumbres y sus propuestas. Documento Preliminar. FES, junho de 2008. PADRÓN, Álvaro. MERCOSUR, nuevos actores y nuevas agendas. Em “América Latina, desafíos de su inserción internacional”. CLAEH, 2007. PEREIRA, Marcelo. Ser y parecer. Balance de la iniciativa Somos MERCOSUR. FES, dezembro de 2006. PMSS. “Al MERCOSUR también lo construye la gente”. Proposta do Programa MERCOSUL Social e Solidário para a Semana da Cúpula Social do MERCOSUL. Montevidéu, dezembro de 2007. PMSS. Coordenadoria María do Carmo Albuquerque. “La construcción democrática desde abajo en el Cono Sur”. São Paulo, 2004. PMSS. Coordenadoria Mario Garcés. “Democracia y Ciudadanía en el Mercosur”. Santiago do Chile, 2006. PMSS. Declaração de Rosario. “Por una integración solidaria de los pueblos del MERCOSUR”, outubro de 2006. Rodríguez Larreta, Aureliano. El gran dilema del pequeño país. Cómo mirar al futuro sin imitar al pasado. CURI, Estudio nº 04/08. Seminário Regional: Aportes para un nuevo plan de formación y comunicación en temas de integración regional para el MERCOSUR. Relatoria do Seminário CEFIR – InWent – Documento de Trabalho 003/08.

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sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


Sociedade civil, participação cidadã e democracia no novo contexto político da América Latina: um olhar para os desafios e estratégias de ação a partir da sociedade civil Susana Eróstegui


Susana Er贸stegui. Diretora Executiva da UNITAS.


Introdução Neste momento crítico da história, no qual as desigualdades extremas persistem, no qual se percebem os efeitos das normas ditadas pelos atores globais da “globalização” para controlar a doutrina econômica neoliberal na América Latina, em que se desmantelaram os serviços públicos e se saquearam as riquezas nacionais, em que se reduziram os investimentos em áreas sociais, aumentou o desemprego e se agudizou a violência, é sempre pertinente debater e confrontar ideias para encontrar respostas às nossas crises. A explosão de reações para reverter as transformações estruturais que os governos neoliberais conseguiram impor nos países da região durante os últimos dois decênios foi se transformando em mobilização social de resistência ao neoliberalismo; as demandas de mudança manifestadas por diversos atores sociais começaram a se converter em alternativas reais para outra forma de desenvolvimento. A participação dos movimentos sociais começou com força em diferentes países e sua articulação com outros segmentos organizados da sociedade civil e os partidos políticos criou a oportunidade de transformar tais movimentos em força política e dar a vitória a governos de esquerda ou a forças progressistas que se somam à de Evo Morales na Bolívia, à reeleição de Lula no Brasil, Hugo Chávez na Venezuela, Daniel Ortega na Nicarágua e às vitórias eleitorais de centro-esquerda no Equador, Chile, Uruguai, Argentina e Paraguai. No entanto, cabe questionar: quais são os avanços e os limites das novas institucionalidades democráticas na América Latina e quais as estratégias de ação da sociedade civil para a construção de processos democráticos e a promoção do exercício dos direitos? O tema deste espaço de reflexão tem diferentes arestas e facetas em cada contexto nacional. Portanto, tentaremos abordar de maneira mais ampla alguns temas que hoje estão em questão e na base dos novos desafios que podemos assumir: sociedade civil, participação cidadã e democracia no novo contexto político da América Latina; um olhar para os desafios e estratégias a partir da sociedade civil.

Sociedade civil, participação cidadã e democracia no novo contexto político da América Latina

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Reconfiguração da relação entre Estado e sociedade civil A sociedade civil assume, em cada contexto, a conotação de um conglomerado social complexo de classes sociais dominantes e subalternas, classes populares e médias, grupos de interesses, grupos corporativos, comunidades diversas como agregações sociais de base. Na sociedade civil coexistem sindicatos de assalariados, organizações indígenas, de camponeses, de empresários, de vizinhos, de mulheres, redes sociais, movimentos sociais e culturais, grupos de opinião, de pressão, instituições cívicas, religiosas, de ação para o desenvolvimento regional ou local. A sociedade civil atua sobre algumas dimensões centrais de organização social: o Estado, o mercado (ou a economia e a política) e entre as organizações da própria sociedade civil, com o fim de obter melhoras a seu favor, em sua posição socioeconômica, cultural e política. Em uma dimensão mais próxima da atuação das ONGs e das organizações sociais, a sociedade civil é entendida como o conjunto das organizações / instituições não estatais por meio das quais os indivíduos organizam sua participação na vida pública, e para o qual criam seus próprios mecanismos de representação e suas lideranças, por meio dos quais interagem com as instituições estatais e políticas. Neste terreno de formação, transformação e conflito entre diversos poderes, as organizações da sociedade civil não podem ignorar as relações e as contradições básicas que dividem a sociedade, as desigualdades socioeconômicas e de outros tipos, seus conflitos entre classes, entre grupos de interesses e os poderes sociais e econômicos vivos em seu interior. A base social da população boliviana se caracterizou historicamente por ser altamente organizada, participativa, politizada e deliberativa. Este traço apresenta, entretanto, um duplo aspecto em relação ao desenvolvimento. Por um lado, entende-se como uma vantagem importante para avançar no caminho da transformação de estruturas e o exemplo mais patente é o processo de mobilização iniciado há décadas pelos movimentos indígenas, camponeses e posteriormente urbano-populares para obter o exercício de direitos coletivos; por outro, esta participação social foi identificada – pelos governos anteriores e correntes conservadoras – como um fator de ingovernabilidade que torna inviável a ação de instituições públicas e 220

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privadas, submetidas a uma pressão grupal impossível de manobrar. Em nenhum caso o capitalismo e o desenvolvimento do Estado moderno conseguiram ampliar a base material sobre a qual tem lugar a inclusão à cidadania, agudizando as tensões derivadas dos interesses de classe que representam os setores dominantes e dominados. O escasso desenvolvimento do aparato produtivo na Bolívia, vinculado por um lado à debilidade da burguesia (aferrada a lógicas feudais e rentistas) e, por outro, ao fracasso do capitalismo de Estado ensaiado com a Revolução de 1952 a partir das minas, deixou grandes massas da população à margem do pacto econômico / político estatal, que podem ser qualificadas como população pré-contratual. Esta carência explica a ausência de lealdade dos indígenas camponeses à ordem estatal. Entretanto, é nesta grande massa excluída do pacto que se encontram as maiores forças mobilizadoras e organizativas, mesmo que apareça paradoxalmente desconectada do interesse comum emanado do pacto e, portanto, sem virtudes democráticas. Isto se explica porque o acesso ao pacto, à cidadania, foi obrigado a se orientar para a integração política diante da ausência de bases econômicas e materiais. O preço desta inclusão política foi o clientelismo e o sinecurismo, derivados da ampliação do aparato estatal como aparato burocrático não produtivo, mas rentista, e identificado como o espaço de reprodução política de poder. Neste quadro, os não integrados ao novo pacto estatal de 1952, os indígenas camponeses, foram cooptados e incorporados ao sistema por meio da substituição da secular servidão econômica por novas formas de servidão política (organização sindical e Pacto Militar-Camponês). O balanço final da Revolução de 1952 é negativo: uma massa majoritária, mobilizada e organizada que, depois de lutar desde 1930 pela inclusão, foi no fim das contas aviltada e espoliada porque a inclusão nunca pôde ser material nem econômica77. A população majoritariamente pobre e indígena se manteve submetida à exação de suas terras e direitos, base da discriminação social que nega a diversidade cultural como valor para fortalecer o tecido social no país. Este pacto estatal (Estado-mineiros), precário e viciado em muitos sentidos, entrou em colapso entre o fim dos anos 1970 e o começo da década seguinte, e deixou o caminho livre para o projeto de modernização neoliberal, que reduziu ao mínimo qualquer vis77 Cecilia Salazar, comunicação Oficina: “Participación política, movimientos sociales e desarrollo sostenible”. ABDES, La Paz, setembro de 2008. Sociedade civil, participação cidadã e democracia no novo contexto político da América Latina

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lumbre de pacto ao situar a geração de riqueza em estruturas extranacionais que impuseram a mercantilização sem limites dos recursos naturais. A Lei de Participação Popular surgiu, assim, como contrapartida ou compensação ao desmantelamento da estrutura estatal e de qualquer forma de pacto social por conta do avanço neoliberal e facilitou o processo de particularização da massa excluída com base em critérios étnicos e locais, fortalecendo ainda mais o caráter préestatal destes grupos e reduzindo sua capacidade de atuação ao espaço local78. Em síntese, o neoliberalismo desmontou a possibilidade material de cidadania política na Bolívia, pois o processo de integração que permitiria construir esta cidadania política deveria se basear na reconstrução de sua possibilidade material, produtiva, econômica. As medidas neoliberais que resultaram na exação do Estado e do território boliviano, despojando-o de sua soberania e aprofundando as desigualdades e injustiças sociais, levaram ao desaparecimento de empresas nacionais e, apoiadas em regras injustas de comércio e investimentos e em medidas de entidades multilaterais a serviço do grande capital, provocaram também o desaparecimento da autodeterminação na condução dos destinos socioeconômicos do país. Neste quadro, a relação entre Estado e sociedade civil (essa tradicional contraposição) é uma falsa dicotomia, posto que sempre existiram profundos vínculos entre certas classes, agentes ou elites econômicas que ganharam espaços de decisão tanto no âmbito público como no privado em função de seus próprios interesses. No novo contexto boliviano, este assunto se torna também complicado, pois o governo de Evo Morales tem o mando, mas ainda não tem todo o poder e enfrenta estruturas que mantêm tais vínculos e reproduzem a desigualdade social. Por sua vez, ao ser um governo surgido das próprias organizações sociais, amplia significativamente as possibilidades para construir uma democracia mais direta (mesmo que ainda não tenham sido criados os mecanismos institucionalizados de participação), mas esta estreita relação levanta dúvidas a respeito dos papéis diferenciados entre Estado e sociedade civil. Por um lado, o governo do MAS, na Bolívia, caminha para a construção de uma nova forma de (re)articulação do poder do Estado, que propõe a institucionalização de maior participação das organizações populares e a criação de medidas econômicas de tipo 78 Idem. 222

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nacionalista com uma intenção redistributiva da riqueza; por outro, a ação da sociedade civil – orientada à defesa dos direitos políticos, econômicos, sociais e culturais e à ação organizada frente ao poder do Estado e do mercado – passa a ser uma missão do próprio governo, que assume sua representação. Nesse sentido, o papel das organizações sociais está em constante redefinição a partir da reflexão sobre sua “identidade”, sua “razão de ser” e sua “ação” em relação às mudanças políticas que a Bolívia experimenta. Tudo indica que, por um lado, a luta contra a exclusão está centrada fundamentalmente no espaço institucionalizado mediante os mecanismos que o governo propõe, inclusive nas organizações mais politizadas, enquanto existe nelas o sentimento generalizado de fazer parte ou de estar integradas a este. Por outro lado, se percebe também uma tendência nas organizações mais politizadas a um distanciamento entre as camadas dirigentes e as bases, assim como uma predisposição daquelas a atuar de maneira cupular, debilitando a estrutura organizativa que em outro momento facilitara o controle e a influência das bases sobre os dirigentes que compõem as principais organizações que representam o movimento social. Nesta medida, o desafio das organizações sociais em suas lutas contra a exclusão consiste, fundamentalmente, em enfrentar a cooptação de seus dirigentes por um sistema político reconfigurado que pode voltar a operar sob novas formas de clientelismo; aprofundar a democratização interna de suas organizações e construir uma perspectiva política própria diferenciada da estatal. Para além das suas modalidades de ação, as organizações da sociedade civil têm o desafio de continuar fortalecendo as capacidades organizativas e a independência político-partidária, pois a consideração de novos valores sobre uma nova visão de sociedade (elemento ativo e transformador da estrutura) se mimetiza com a ação do governo, enquanto questões de desigualdade, recursos naturais, terra e território, direitos dos povos indígenas e outros, formam parte do discurso do governo atual e continuam sendo reivindicações das organizações sociais. Nesse sentido, considera-se a necessidade de gerar uma articulação de demandas e representações específicas da sociedade civil para construir um horizonte político ou “visão de país”, construindo capacidades de influência sobre a política e a economia à margem do mandato que recebeu o governo. Caso contrário, estaríamos diante de um cenário de desmobilização, ao acreditar que, de fato, o governo do MAS atenderá às demandas históricas de nossos Sociedade civil, participação cidadã e democracia no novo contexto político da América Latina

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povos, e não haveria garantia de passar do nível discursivo ao plano de concreção da demanda social acumulada. Se bem que não se possa ignorar que o caráter simbólico da eleição presidencial de um indígena, com amplo respaldo popular, tenha efeitos em toda a região ao haver deixado claro que os setores tradicionalmente excluídos são “capazes” de assumir o comando de um Estado, na prática, sua situação de pobreza e exclusão continua sendo a mesma. A estrutura social boliviana é resultado de um processo histórico de colonização articulado nos últimos tempos com o sistema capitalista neoliberal, que submeteu a grande maioria da população a uma constante segregação pelo fato de ser pobre. O desafio é reverter as profundas transformações estruturais que os governos neoliberais conseguiram impor no nosso país, neutralizando o risco de que essa integração nacional fracasse por estar limitada ao âmbito político e não se estender ao plano econômico e produtivo.

Fortalecimento da sociedade civil Se considerarmos que o fortalecimento da sociedade civil é o requisito indispensável para uma democracia genuína em todos os aspectos, fortalecer a sociedade civil supõe a construção consciente das capacidades autodeterminativas dos grupos que a compõem, principalmente os subalternos; das capacidades de exercício de influência sobre a política e, a partir daí, sobre a economia; das capacidades de controle progressivo da gestão estatal e do mercado. Estas capacidades autodeterminativas implicam autonomia, identificação de necessidades, demandas e interesses a partir de distintas identidades e experiências socioeconômicas e culturais, sua autorrepresentação, articulação entre elas e delas com um horizonte social determinado, incidência e influência nos espaços institucionalizados de tomada de decisões. Um dos casos emblemáticos é a aposta na Assembleia Constituinte e o uso de mecanismos democráticos de consulta cidadã que se deram em um quadro de redistribuição do poder político. O processo iniciado em 1990, com a marcha dos povos indígenas do oeste boliviano, foi assumido com um elevado sentido de pertinência e apropriação dos movimentos sociais que acabou reproduzindo os velhos mecanismos de democracia “pactuada”, ao ter subordinado suas reivindicações históricas à decisão de partidos políticos representados por seus parlamentares, cuja participação se baseou em motivos político-partidários que defenderam novamente os interesses de gru224

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pos de poder econômico. A oposição ao MAS conseguiu frear o processo constituinte. Meses depois se estabeleceram acordos no cenário de um “diálogo”, do qual não participaram as organizações sociais (nova restrição de suas possibilidades de decisão), mas autoridades nacionais e regionais, além de técnicos e observadores internacionais. Finalmente, a análise, modificação e aprovação do texto da Nova Constituição Política do Estado passou às mãos do Congresso Nacional, no interesse de obter a “pacificação do país”. Diz-se que “a nova Constituição Política do Estado busca superar os desequilíbrios gerados pelo capital entroncado com o colonialismo a partir de uma visão inclusiva e diversificada da sociedade na qual se recupera o papel do Estado e o poder social coletivo; reconhece os direitos de todos e rompe a lógica oligárquica dando início a um processo que implica uma nova forma de construir o poder e o Estado, poder que pela primeira vez leva em conta os excluídos e os incorpora à sociedade com capacidade de decisão e controle social”. Pois bem, o processo constituinte, legítimo em sua origem e suas reivindicações, se encaminha para a refundação do país com base em um novo pacto social enredado na formalidade, ou seja, continuam sendo utilizados os mesmos desenhos institucionais criados pela democracia formal representativa, que contribuíram no passado para manter e reproduzir a exclusão política das organizações da sociedade civil, impedindo-lhes tanto de agregar e integrar suas reivindicações nas instâncias estatais como de participar em processos de tomada de decisão acerca de aspectos centrais relacionados ao desenvolvimento da sociedade. Isto se realizou a partir do desmantelamento de organizações de trabalhadores, voltado para o controle dos conflitos trabalhistas, cujos instrumentos foram a flexibilização do trabalho e a despolitização do trabalho, e da decomposição de estruturas sociais organizativas, que serviam de suporte para a reprodução social, por meio do aprofundamento de redes clientelistas que debilitam as organizações provocando a atomização das reivindicações e o afrouxamento dos controles sociais, o que se traduz em uma cidadania restrita. No processo recente, sem desmerecer os avanços obtidos e reconhecidos pela sociedade boliviana, é dada ênfase aos procedimentos formais que são aproveitados pela oposição para desvirtuar as aspirações históricas de mudança estrutural que a sociedade civil reivindicou e são ressaltados elementos de discriminação sociocultural e linguística que complicam ainda mais o processo e impedem que se enfrente com a mesma força as contradições de classe que são o Sociedade civil, participação cidadã e democracia no novo contexto político da América Latina

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grande desafio para continuar fortalecendo a sociedade civil, ou seja, politizá-la, converter os sujeitos sociais em atores políticos, reconstituir sujeitos sociais em suas atuais configurações. Hoje, por um lado, se percebe a falta de pensamento crítico, mas, por outro, se notam sinais do esgotamento do pensamento único, diante do qual todo argumento tinha de se inclinar. Contudo, esse pensamento liberal e conservador de valores como a propriedade privada e a acumulação de capital, ou seja, o capitalismo que não se pode derrubar e que parece ser o estado natural da sociedade em que as contradições de classe se agudizam, são relativizadas com os acordos político-partidários que se deram entre o governo e as forças políticas de oposição para viabilizar a aprovação da nova Constituição Política do Estado. Em termos gerais, o que se observa na dinâmica atual de luta e combate à exclusão é que este processo fortalece a dimensão emancipadora, de constituição de novos sujeitos sociais, uma dimensão política representada pelo poder que exigem os novos atores e a criação de recentes formas de reivindicação do exercício dos direitos de cidadania, mas também uma dimensão institucional, ao alterar a própria materialidade do Estado. Por sua vez, na arena política haverá sempre novos argumentos aos quais os tradicionais grupos de poder queiram aderir para frear o processo de mudança iniciado na Bolívia, e que se expressam em novas formas de dominação e de autonomia a partir do Estado ou, paradoxalmente, contra ele (prefeituras departamentais), ou seja, esferas públicas organizadas paralelamente ao Estado nacional, mas obrigadas a recorrer a ele para interferir na vida pública ou sustentar seus interesses diretos. A questão mais difícil nesta conjuntura é: como obter a inclusão social no contexto de macroestruturas que continuam gerando exclusão? O primeiro passo que foi dado é que as pessoas conquistem determinados direitos, tenham consciência crítica e exijam determinadas garantias que a nova Constituição Política do Estado contempla, por exemplo, ao haver incorporado os direitos dos povos indígenas ou as relações de gênero que agora têm especial proteção de garantias e direitos postulando o direito à vida para todos, que deve se expressar em unidade, igualdade, inclusão, dignidade, liberdade, solidariedade, reciprocidade, respeito, complementaridade, harmonia, transparência, equilíbrio, igualdade de oportunidades, equidade social e de gênero na participação, bem-estar comum, responsabi226

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lidade, justiça, distribuição e redistribuição dos produtos e bens sociais para todos. Dada a condição previamente acordada para a inclusão, resta trabalhar para garantir que não se trate de “inclusão no capitalismo”. Nesse sentido, os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil são chamados a responder aos desafios que propõe a realidade do país, a exercer de maneira ativa o controle social sobre a administração do Estado e contribuir para as mudanças econômicas e políticas necessárias para garantir uma vida digna para todos e todas, e avançar na construção de uma sociedade justa e equitativa. Por sua vez, enfrentar os níveis de discriminação por razões étnicas e raciais, tão enraizadas em nossas sociedades, que contrastam com os valores comunitários que também vão perdendo nossos povos, requer um trabalho explícito de “reconstrução de nossas matrizes cognitivas, pois contradições que antes apareciam como secundárias ou pouco relevantes – as culturais ou as étnicas, as de gênero e de gerações – hoje são materializadas em conflitos fortes e, em certos momentos, antagônicos”79. Pensar utopicamente não significa abandonar a atenção com a emergência nem se distanciar da realidade, mas justamente criar condições para poder pensar outra realidade que supere a atual. Entretanto essa utopia – e isso tem a ver com o trabalho das ONGs – deve ser legítima. Os intelectuais podem especular sobre o mundo, sobre os valores, mas não deveriam avançar demais em uma construção utópica se não a construírem com as pessoas, isto é, se não o fizerem dialogicamente, se não o fizerem a partir dos desejos que todas as pessoas têm, que podem parecer limitados, muito ligados às necessidades materiais, mas que apresentam um componente utópico que temos que contribuir para desenvolver (José Luis Coraggio).

Garantir o direito a participar Enquanto algumas correntes argumentam que os direitos sociais permitiram aos mais desfavorecidos se integrar à corrente principal da sociedade e exercer efetivamente seus direitos civis e políticos, outras correntes de pensamento (de direita) sustentam que o Estado de 79 José Luis Coraggio, Ponencia Seminario Mitos y Realidades sobre Inclusión Social, Participación Ciudadana e Desarrollo Local, Córdoba, Argentina, 2002. Sociedade civil, participação cidadã e democracia no novo contexto político da América Latina

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bem-estar promoveu a passividade entre os pobres, não melhorou suas oportunidades e criou uma cultura de dependência. A ideia de que todo benefício deve implicar alguma obrigação parte do pressuposto que a satisfação das próprias necessidades econômicas é uma pré-condição para ser considerado membro pleno da sociedade e que a integração social e cultural dos mais pobres deve ir além do exercício dos direitos, focalizando-se em sua responsabilidade de ganhar a vida. Para outras correntes de pensamento mais progressista continua tendo força o argumento de que as pessoas só podem ser membros plenos da vida social na medida em que suas necessidades básicas estejam satisfeitas. No entanto, este pensamento, considerado de “esquerda”, reconhece a impopularidade das políticas sociais e a tendência a promover uma concepção clientelista da cidadania. Ao considerar que quem está em situação de dependência preferiria não estar e, em segundo lugar, não está seguindo pelo caminho que segue o resto da sociedade por causa da falta de oportunidades, prefere afirmar que os direitos de participação devem preceder as responsabilidades. Isto quer dizer que “só é apropriado exigir o cumprimento das responsabilidades uma vez que estejam garantidos os direitos de participação”80. Cabe ressaltar que os direitos humanos implicam, antes de tudo, em relações entre o Estado e sua população, nas quais os indivíduos e os grupos são os beneficiários, enquanto as obrigações recaem sobre os Estados. No entanto, inserir o sistema de direitos humanos no complexo estatal supõe romper as barreiras que impedem a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais e, assim, articular substancialmente e de forma sistemática o campo técnico-jurídico dos direitos humanos e o campo multidimensional do desenvolvimento integral. Mesmo assim, não podemos esquecer que o direito dos povos a obter livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural implica o direito à não interferência e o direito a “dispor livremente de suas riquezas e recursos naturais”. Diante desses desafios, estamos todos chamados a desenvolver a capacidade de questionar e avaliar a ação de quem exerce funções no Estado e a nos envolver muito mais na discussão pública, pois uma 80 Will Kymnlicka e Wayne Norman. “El retorno del ciudadano. Una revisión de la producción reciente en teoría de la ciudadanía”, Agora n. 7, 1997. 228

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combinação de medidas que alentem a participação e o compromisso com a transformação da realidade é um primeiro passo que favorece o exercício de todos os direitos. Muitos críticos da modernidade assinalaram que a governabilidade democrática, concebida de maneira unilateral, dá conta de uma cultura política caracterizada pela subordinação cidadã ao governo autoritário, no qual cidadãos e cidadãs se acostumaram a não se envolver nos assuntos públicos e viveram a política do lado da demanda mais do que do lado da oferta. Apesar da alternância política, nada garante que esta relação viciada entre governantes e governados desapareça. Tampouco a reeleição dos governantes ou a ampliação de seus períodos de governo é alguma garantia. Ao contrário, as experiências passadas mostram que ser eleitos lhes permite tomar qualquer tipo de decisão em nome dos eleitores. Será a participação cidadã o melhor antídoto para romper com este tipo de práticas políticas? Nenhum governo – ou partido político –, por mais bem-intencionado que seja, pode conseguir mudanças profundas sem a participação de uma cidadania ativa que abarque e supere a participação eleitoral e inclua muitas organizações e movimentos sociais81. Por outro lado, o consenso sobre a necessidade de um novo paradigma para a redução da pobreza que incorpore como elemento-chave a participação das organizações da sociedade civil não conseguiu equilibrar o poder e avançar na superação de uma democracia de “representação passiva” para chegar a uma democracia de “participação ativa”; tampouco promover a equidade, a integração social ou o exercício pleno de direitos. Ainda existe uma desconfiança política e social que se reflete no enfrentamento entre os interesses dos que detêm o poder econômico e os interesses do povo, e no vazio e na crise de institucionalidade que garanta o relacionamento da sociedade com o Estado. A unificação estatal estaria expressando a construção de uma articulação ou integração social, equivalente a uma relação interpenetrada e pertinente entre Estado e sociedade, como base fundadora da democracia. Tal relação é chamada por René Zavaleta de “ótimo social”; por isso sustenta que um sistema social é mais democrático quanto mais a sociedade resgata para si mesma as instâncias de poder que, abandonadas a sua 81 Fernando Calderón, Martín Hopenhayn e Ernesto Ottone. Esa esquiva modernidad, 1996. Sociedade civil, participação cidadã e democracia no novo contexto político da América Latina

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própria lógica, tendem sempre a se tornarem mais autônomas em relação à sociedade e, em muitos casos, se levantar contra ela82. A participação cidadã é um eixo que tem a ver com sujeitos sociais, políticos e culturais nacionais, porque seu referente é o Estado. O Estado Nacional permanece sendo o principal referente da política, e desde esse ponto de vista a participação é fundamental para que possam ser expressados os interesses particulares e para que as lutas pela transformação social possam se legitimar, levando em conta que a situação de vulnerabilidade da massa de cidadãos e cidadãs que vivem em condições de sobrevivência explica sua preferência por resultados imediatos, ao que se soma uma cultura política viciada pela cooptação de lideranças sociais de base que obriga a buscar novas formas de participação que até agora a institucionalidade político-democrática formal não cobre. A democracia por si mesma não resolveu os velhos problemas de pobreza e exclusão e as características do modelo econômico vigente são o maior obstáculo para conseguir a realização plena dos direitos humanos na região. É preciso continuar lutando para a transformação das causas estruturais que geram pobreza e desigualdade e considerar que os direitos humanos não podem ser neutros e, nesse sentido, o desafio é optar pelos interesses dos setores que não estão exercendo e realizando seus direitos em cada um de nossos países. Mesmo assim, dada a ampla adoção do discurso de participação por todo tipo de organização da sociedade civil, devemos examinar criticamente como e com que fins estão sendo usadas suas propostas, e também analisar com mais clareza sob quais condições o discurso predominante do desenvolvimento cria espaços para uma participação efetiva. Isto é, como avaliamos se os que estão promovendo o discurso de participação estão efetivamente ampliando as oportunidades para uma genuína construção da democracia e sob quais condições, ao contrário, trata-se de um assunto de cooptação e legitimação do status quo? Um segundo problema relacionado com um enfoque limitado da participação é a forma pela qual o discurso oculta a importância de fatores externos que igualmente moldam as possibilidades da participação democrática e mudanças reais nas relações de poder. 82 Ivonne Farah, 2008, em Marco conceptual para entender el fortalecimiento de la sociedad civil. 230

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


O sentido da democracia O conceito de democracia é objeto de um juízo que parece paradoxal. Na medida em que corresponde a um sistema político que procura conciliar, mediante o contrato social, as liberdades individuais e uma organização comum da sociedade, é indiscutível que esse conceito ganha terreno e responde plenamente a uma reivindicação de autonomia individual que se estende por todo o mundo. Mas sua aplicação – sob a forma da democracia representativa – em diferentes países latino-americanos se depara ao mesmo tempo com uma série de dificuldades: a distância crescente entre governantes e governados, a evidente corrupção do mundo político e a crise de políticas sociais obrigam a redefinir o ideal democrático ou, ao menos, a revitalizá-lo para levar a cabo uma ação comum a favor da liberdade, da paz, do pluralismo autêntico e da justiça social. O sentido idealista da democracia procura sensibilizar os membros de uma sociedade a respeito de um conjunto de valores imanentes que, por princípio e na medida em que sejam assumidos e compartilhados pelas pessoas e grupos de uma sociedade, poderão aproximá-los de um ideal de convivência no qual todos os seus membros controlariam as decisões coletivas e sua execução, e só obedeceriam a si mesmos. Nessa forma de comunidade ficaria suprimido qualquer gênero de dominação de uns sobre outros: se todos têm o poder, ninguém está sujeito a ninguém. A ideia da democracia como realização da liberdade de todos é de concreção pouco factível, mas seu atrativo se funda na carência de igualdade no mundo vivido, aspecto que geraria a projeção de um mundo desejável83. O outro sentido da democracia vem de um conjunto de regras e instituições que se expressam em uma forma de governo conforme certos procedimentos e é realizável de acordo com situações específicas. Não é um projeto de associações segundo valores, mas um modo de vida em comum em um sistema de poder84. Esse modo de vida apela para uma coexistência ordenada e ordenadora baseada em procedimentos que derivam da igualdade das pessoas diante da lei. A esse respeito, o princípio que canaliza a democracia é o da cidadania, entendida como um estatuto comum que torna semelhantes todas as pessoas.

83 Villoro, 1997, em “Lo Local: Dilemas de la democracia y la participación social”, Proyecto Control Ciudadano, CEDLA, 2001. 84 Idem. Sociedade civil, participação cidadã e democracia no novo contexto político da América Latina

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Os dois sentidos da democracia constituem os eixos a partir dos quais se conformam os campos de discussão e tratamento da democracia representativa com relação a práticas participativas – que tendem a ser – mais emancipadoras. Um eixo repousa no sentido utópico de democracia, abarcando um nível de menor a maior controle nas decisões coletivas e sua execução por parte dos indivíduos e / ou grupos de uma sociedade específica. O outro eixo corresponde à aplicação e à institucionalização dos procedimentos democráticos legítimos em circunstâncias específicas, desenvolvendo-se, também, em um nível de menor a maior85. Uma explicação das causas da descompensação entre a institucionalização dos procedimentos democráticos e a participação no controle das decisões pode se dever ao fato de que o aumento do pragmatismo dos partidos políticos no processo de modernização do sistema político coincida com o aumento da lógica clientelista dos partidos e do próprio Estado86, que favoreceria os interesses partidários, a competitividade e a rotação entre as diversas clientelas partidárias mais do que promover a construção democrática da relação Estado-sociedade87. A busca da igualdade social como um bem comum implicaria um compromisso recíproco entre o poder público e as pessoas, o poder público permitindo a participação cidadã na política e oferecendo condições de bem-estar social e oportunidades produtivas, e as pessoas exercendo o controle social sobre os poderes públicos e, mais importante ainda, participando do âmbito público mediante espaços de deliberação e formação de acordos entre cidadãos 88. Para configurar uma rede de maiores articulações e relações de representação com setores da sociedade é necessária uma sociedade civil mais organizada, ativa e autônoma. Zavaleta definiu a democracia como uma “forma de vida social que mede seu valor e legitima suas pretensões segundo o grau e a qualidade com que torna possível a participação dos grupos so-

85 Walter Arteaga, 2001, em “Lo Local: Dilemas de la democracia y la participación social”, Proyecto Control Ciudadano, CEDLA, 2001. 86 Toranzo, 1998, em “Lo Local: Dilemas de la democracia y la participación social”, Proyecto Control Ciudadano, CEDLA, 2001. 87 Ayo, 2000, em “Lo Local: Dilemas de la democracia y la participación social”, Proyecto Control Ciudadano, CEDLA, 2001. 88 CEPAL, 2000, em “Lo Local: Dilemas de la democracia y la participación social”, Proyecto Control Ciudadano, CEDLA, 2001. 232

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


ciais, principalmente subalternos, nos centros e sistemas de decisão”. Esta definição de democracia, a partir de uma perspectiva que é inevitavelmente política, nos permite distinguir ao menos três aspectos centrais. Por um lado, a questão da participação; por outro, o da equidade social; e finalmente, o do caráter, nada indiferente para a democracia, de qual é o núcleo determinativo ou impulsionador da reforma ou da mudança na relação entre Estado e sociedade. Nos termos de Zavaleta, é importante saber qual é a disponibilidade, a atitude ou o estado de ânimo estatal ou coletivo (da massa ou da sociedade em ação) na direção da mudança, “na direção da substituição de formas”; definitivamente, na direção de novas bases estruturais de sustentação da relação Estado-sociedade, ou seja, de interpenetração entre a sociedade organizada e de configuração do sistema político. Tal disponibilidade, portanto, remete à cultura política, aos valores e percepções que se tem sobre a formação e o exercício do poder e sua direção89.

Bibliografia consultada ARTEAGA, Walter. (2001). “Lo Local: Dilemas de la democracia y la participación social”, Proyecto Control Ciudadano, CEDLA, La Paz. ARTEAGA, Walter e ESPÓSITO, Carla. (2006). Movimientos Sociales Urbano-Populares en Bolivia: Una lucha contra la exclusión social, económica y política. UNITAS – Centro de Estudios para América Latina y la Cooperación Internacional. Fundación Carolina (Espanha). ASSIES, Willem e Salman, Ton. (2004). “La democracia boliviana: entre la consolidación, la profundización y la incertidumbre”, Tinkazos, ano 7, n. 16, PIEB, La Paz. BORÓN, Atilio. (2003). Estado, capitalismo y democracia en América Latina, CLACSO, Buenos Aires. CALDERÓN, Fernando; HOPENHAYN, Martín e OTTONE, Ernesto. (1996). Esa esquiva modernidad: desarrollo, ciudadanía y cultura en América Latina y el Caribe. Caracas: UNESCO Nueva Sociedad. CASTEL, Robert. (1991). “La dinámica de los procesos de marginalización: de la vulnerabilidad a la exclusión”, em Vários, 1991.

89 Ivonne Farah, 2008, em Marco conceptual para entender el fortalecimiento de la sociedad civil. Sociedade civil, participação cidadã e democracia no novo contexto político da América Latina

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CORRAGIO, José Luis. (2002). Ponencia Seminario Mitos y Realidades sobre Inclusión Social, Participación Ciudadana y Desarrollo Local, Córdoba, Argentina. FARAH, Ivonne. (2008). “Proceso politico boliviano y rol de las ONGs”, em Marco conceptual para entender el fortalecimiento de la sociedad civil. Metodología para la medición de impacto. La Paz: Editora Presencia. KYMNLICKA, Will e NORMAN, Wayne. (1997). “El retorno del ciudadano. Una revisión de la producción reciente en teoría de la ciudadanía”. Agora n. 7. LAGOS, María L. (2001). “Bolivia la nueva: la construcción de una nueva ciudadanía”, em Vários (comp.).

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sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


novas institucionalidades e experiĂŞncias participativas



Controle Social da gestão pública no município de Lagoa Seca: sociedade construindo e exercendo cidadania Região Nordeste do Brasil, estado da Paraíba, município de Lagoa Seca

nível de desenvolvimento da iniciativa

Municipal / Comunal / Distrital

área temática principal em qual se inscreve a experiência  áreas complementares

Controle social da gestão pública municipal.

Participação cidadã na proposição de políticas públicas municipais.

temas transversais com os quais a experiência busca contribuir

Desenvolvimento local.

perfil dos participantes da experiência  Trabalhadores e trabalhadoras rurais; lideranças comunitárias (urba-

nas e rurais) e sindicais ligadas ao Sindicato de Trabalhadores Rurais do município. beneficiários

Pelas características da experiência, considera-se beneficiária toda a população do município.

área de atenção

Intervenção no processo legislativo de discussão e aprovação de leis orçamentárias e acompanhamento da execução orçamentária do Executivo municipal.

nome e tipo da organização que coordena a iniciativa  ano de início da experiência

Fórum em Defesa da Cidadania do Município de Lagoa Seca

1997  |  vigência  Até os dias atuais

O controle social encontra dificuldades devido a fatores como falta de preparo educacional da população em geral, acesso a dados e informações da esfera pública (sobretudo dados orçamentários e financeiros), e linguagem complexa e dúbia da legislação. Neste contexto se insere o município de Lagoa Seca. Com uma cultura clientelista e autoritária, o município tem sua vida política marcada por grupos que se alternam no poder utilizando formas variadas para impedir a participação social na definição dos gastos públicos, ao mesmo tempo em que utilizam dinheiro público para interesse pessoal. Tal situação evidencia a necessidade de esforço e iniciativa no acompanhamento sistemático das contas públicas pelas organizações da sociedade, processo que pode inibir e minimizar a corrupção na administração pública.

qual situação busca reverter ao impulsionar tal experiência?

Lagoa Seca é um município situado no Agreste Paraibano, com uma população de 24.154 habitantes, sendo 16.042 residentes na zona rural. Com características predominantemente rurais, tem na produção de hortifrutigranjeiros a base de sua economia. Marcado por uma cultura clientelista e autoritária, Lagoa Seca tem sua vida política marcada por grupos que se alternam no poder utilizando formas variadas para impedir a participação popular na definição dos gastos públicos, ao mesmo tempo em que utilizam dinheiro público como coisa privada. A má distribuição dos recursos e os desvios de verbas têm sido característicos dos últimos governos, que não priorizam os setores/secretarias que têm função social, gastando mais com a manutenção da máquina administrativa do que com investimentos sociais. Beneficiam parentes e outros apadrinhados, deixando de lado os investimentos e incentivos ao desenvolvimento local. A partir de 1993, o Sindicato de Trabalhadores Rurais passa a assumir o trabalho de controle social através da intervenção no processo orçamentário daquele ano. Nos anos seguintes, a

descrição

novas institucionalidades e experiências participativas

237


estratégia seguiu sendo a mesma: mobilização para inclusão de demandas dos/as agricultores/as familiares nas leis orçamentárias, sem muito sucesso – quando incluídas nas leis, não eram contempladas em sua execução. Após alguns anos vivenciando esta experiência, avaliou-se que, mesmo as demandas sendo incluídas nas leis referentes ao planejamento orçamentário municipal, estas não eram executadas ou o eram parcialmente. Percebeu-se a partir daí que seria necessário acompanhar o processo de execução não só das demandas geradas a partir do STR, mas também de outros segmentos (inclusive urbanos). Em 1997, algumas associações comunitárias rurais e urbanas, pastorais, e principalmente o STR, constituem o “Fórum em Defesa da Cidadania de Lagoa Seca”, com o objetivo de intervir propositivamente na gestão pública local, tendo como instrumental o orçamento público municipal (planejamento orçamentário e fiscalização das contas públicas), informando a sociedade sobre a análise da execução orçamentária do município, acionando e pressionando os órgãos públicos de fiscalização e controle para exercerem seu papel. Entende-se que o fato de o Fórum ter sido impulsionado pelo STR e ter como instrumental de intervenção o orçamento público credencia esta experiência como inovadora. objetivos

1º Analisar as contas municipais, encaminhando possíveis irregularidades ao Tribunal de Contas do Estado e ao Ministério Público. 2º Pressionar os gestores municipais para que sejam implantadas políticas públicas sustentáveis através das leis orçamentárias. 3º Tornar acessíveis à população as atividades de controle exercidas pelo Fórum, bem como o acesso aos balancetes mensais do município, através de publicação de boletim informativo.

resultados alcançados

1º Quebra de sigilo bancário e indisponibilidade de bens do prefeito (gestão 1997-2000) por constatação de irregularidades denunciadas pelo Fórum. 2º Inelegibilidade de prefeito por constatação de irregularidades denunciadas pelo Fórum. 3º Implementação de políticas públicas federais voltadas para o desenvolvimento rural.

breve descrição das etapas-chave no desenvolvimento da experiência

1ª Processo de capacitação do público envolvido na experiência para intervenção na formulação de políticas públicas. 2ª Intervenção nos espaços de formulação, discussão e aprovação de políticas públicas (conselhos setoriais e Câmara Municipal de Vereadores). 3ª Fiscalização da execução orçamentária cruzando a análise de balancetes e do balanço da gestão municipal com as ações realmente desenvolvidas pela administração municipal. 4ª Investigação de possíveis irregularidades cometidas pela administração municipal. 5ª Formulação e apresentação de denúncias aos órgãos de controle (Tribunal de Contas do Estado, Ministério Público e Controladoria Geral da União). As ações desenvolvidas consistem na realização de oficinas de análise das contas públicas, observando o comportamento da execução orçamentária geral. A leitura e análise dos documentos e a comparação com as obras e serviços previstos e/ou realizados oferecem subsídios para a elaboração dos informativos e boletins que são divulgados para a população em geral, através do envio pelos Correios, mas também em espaços em rádio, televisão, jornais, reuniões nas comunidades / organizações sociais. Também são realizadas atividades de formação de acordo com as necessidades do grupo (cursos, seminários, oficinas).

metodologia de trabalho

238

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


O instrumental privilegiado no processo de formação é o próprio orçamento público municipal, utilizado como ferramenta e também como instrumento de formação política, na medida em que reflete tanto os anseios da população como também as “intenções” dos gestores municipais.

instrumentos

O Fórum em defesa da cidadania de Lagoa Seca tem atuado na intervenção no processo orçamentário e na fiscalização das contas públicas do município, com a assessoria do CENTRAC. Durante esse processo, o CENTRAC desenvolveu junto aos membros do Fórum cursos sobre participação cidadã e controle social da gestão pública, oficinas temáticas sobre políticas públicas e oficinas, e os estudos permanentes dos Balancetes Mensais, do Balanço Anual e da Lei Orçamentária do município. Os cursos e oficinas temáticas embasam a formulação de políticas públicas voltadas para atender às necessidades dos vários segmentos da sociedade (rural e urbana). As oficinas e estudos permanentes dos Balancetes Mensais e da Lei Orçamentária permitiram melhor acompanhamento da execução orçamentária por parte das lideranças que constituem o Fórum. A partir da análise dos documentos contábeis, essas lideranças têm levantado possíveis irregularidades detectadas e encaminhado denúncias ao Tribunal de Contas do Estado e / ou ao Ministério Público. Quanto ao intercâmbio de experiências, o Fórum tem atuado em vários espaços e conseguido relações com as redes e fóruns em nível regional, nacional e internacional, o que tem favorecido uma conexão do tema controle social com um conjunto de ações mais amplas (seminários, campanhas), que fortalecem o planejamento em torno de articulação, formação e troca de experiências.

processos de formação

ALIANÇAS

[organização não governamental] Assessoria técnica, política e jurídica no processo de acompanhamento e intervenção na gestão pública municipal.

CENTRAC – Centro de Ação Cultural

como colabora com a experiência

Fortalezas da experiência

1ª Grupo é composto por pessoas que conhecem a realidade na qual estão incluídos. 2ª O grupo não só consegue formular demandas, mas também políticas públicas que visam o desenvolvimento local com base em experiências que estão sendo geradas / desenvolvidas por organizações da sociedade civil. 3ª A baixa ou nenhuma escolaridade não limita a intervenção do grupo no planejamento orçamentário e na fiscalização das contas públicas, devido à sua inserção em espaços formativos oferecidos pela CENTRAC.

debilidades da experiência

1ª Mobilização e sensibilização de pequena parte da sociedade. 2ª Práticas clientelistas e autoritárias por parte dos gestores municipais debilitam a atuação do Fórum. 3ª Gestores municipais pouco sensíveis à participação ativa da sociedade no planejamento municipal.

como se expressa a participação cidadã

Pelas características predominantemente rurais do município, os atores envolvidos na experiência são em grande parte agricultores e agricultoras familiares, sendo o Fórum constituído de representantes do Sindicato de Trabalhadores Rurais; associações de pequenos produtores rurais; representantes dos Conselhos de Agricultura e Meio Ambiente; pastorais sociais da Igreja Católica e a Sociedade dos Amigos da Comunidade –

novas institucionalidades e experiências participativas

239


SAC (organização centrada no urbano). Quanto aos mecanismos utilizados e às fases em que ocorre a participação, o Fórum atua em várias frentes, utilizando os espaços institucionais de participação na discussão, formulação, definição e execução de políticas públicas disponíveis no marco legal (CF/88; Lei Orgânica Municipal; Lei de Responsabilidade Fiscal; Estatuto da Cidade). Os espaços privilegiados são os conselhos setoriais (que contam com representantes não do Fórum enquanto organização, mas das organizações que compõem o Fórum (STR, SAC, pastorais sociais etc.); as audiências públicas no âmbito do Legislativo municipal (­convocadas pela Câmara ou proposta pelas organizações); o processo de discussão das Leis Orçamentárias no âmbito do Legislativo. A inovação na experiência decorre da atuação do STR no processo do planejamento orçamentário municipal, com inclusão de demandas advindas diretamente da sociedade nas Leis Orçamentárias.

quais mudanças e inovações foram introduzidas com a experiência?

Percebe-se que o Fórum tem buscado influenciar a ação do governo municipal, na medida em que apresenta um modelo de desenvolvimento apoiado na agricultura familiar (base econômica do município) e busca influenciar a política agrária municipal através do Conselho de Desenvolvimento Rural. O Sindicato de Trabalhadores Rurais (com atuação permanente no Fórum) também tem se preocupado em levar essa discussão para outros espaços dos quais participa, como, por exemplo, o Pólo Sindical da Borborema, que congrega 14 sindicatos de trabalhadores rurais da Região do Agreste da Borborema. O CENTRAC considera que a atuação de forma articulada reforça a capacidade de influenciar nas políticas públicas em outras esferas de governo e que esta ação demonstra que o grupo tem potencial para irradiar sua atuação regionalmente. Entretanto, na esfera local tem sido mais difícil, pois as relações entre os diversos atores são mais próximas, portanto, mais complexas.

observações sobre o desenvolvimento posterior/atual da experiência

nome, organização e contato de quem preencheu a ficha

240

CENTRAC.

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


Projeto Controle Social e Conservação da Biodiversidade no Território Madeira-Mamoré Brasil, Rondônia

nível de desenvolvimento da iniciativa

Subestatal / Departamental / Provincial / Regional

área temática principal na qual se inscreve a experiência  perfil dos participantes da experiência

Controle social de orçamento e políticas públicas.

Lideranças de organizações e movimentos sociais, estudantes e

pesquisadores. beneficiários

Organizações sociais já formadas, comunidades rurais e urbanas que necessitam de conhecimento e estratégias para exigibilidade de seus direitos.

área de atenção

Orçamento público e conservação da biodiversidade.

nome e tipo da organização que coordena a iniciativa

Associação de Desenvolvimento da Agroecologia e Economia Solidária da Amazônia Ocidental (ADA Açaí)

ano de início da experiência

2008  |  vigência  2008

A quase totalidade das organizações sociais e dos cidadãos desconhece o caráter do orçamento público e a legislação que exige que este tenha a participação efetiva da população em sua elaboração, execução, monitoramento e avaliação. Dessa forma, são elaboradas metas, ações e estratégias que desfavorecem os mais oprimidos.

qual situação busca reverter ao impulsionar tal experiência?

O Projeto Controle Social e Conservação da Biodiversidade no Território Madeira-Mamoré buscou promover ações de diagnóstico, formação, monitoramento e articulação de atores sociais no processo de intervenção em políticas públicas de agricultura, segurança alimentar e meio ambiente, com a finalidade da conservação da biodiversidade no Território MadeiraMamoré, formado pelos municípios de Porto Velho (capital de Rondônia), Candeias do Jamari, Itapuã do Oeste, Nova Mamoré e Guajará Mirim (fronteira com a Bolívia). O critério para a seleção das organizações buscou primeiro envolver as populações diretamente atingidas pela construção das hidrelétricas do Rio Madeira, as organizações que já haviam participado de atividades promovidas pela ADA Açaí ou as indicadas pelas ONGs parceiras. A principal inovação do projeto no estado de Rondônia foi o estudo das peças orçamentárias (PPA, LDO e LOA) do estado e de cada município envolvido no projeto, tornando acessíveis a linguagem e a metodologia do orçamento público. Apropriadas desse conhecimento, as lideranças sociais estão começando a intervir nas eleições municipais, de suas próprias organizações e no desempenho dos poderes Executivo e Legislativo municipais. Passaram a conhecer os espaços nos quais podem interferir a favor de suas necessidades e como exigir a criação e a implementação de ações que sejam voltadas à população e não apenas a determinados grupos ligados a partidos políticos ou autoridades municipais.

descrição

objetivos

1º Fortalecer o monitoramento e o controle social das políticas públicas e do ciclo orçamentário nos cinco municípios do Território Madeira-Mamoré. 2º Realizar um diagnóstico socioeconômico ambiental nas áreas que estão sob influência das usinas hidrelétricas, identificando e cadastrando as famílias ameaçadas pelo deslocamento. 3º Formar lideranças, entidades e conselheiros(as) municipais nos cinco municípios do Território

novas institucionalidades e experiências participativas

241


Madeira-Mamoré, qualificando a atuação desses agentes políticos no controle social do ciclo orçamentário e na promoção da exigibilidade dos DHESCAs. resultados alcançados

1º Criação de grupos de discussão e fóruns para a participação cidadã, acompanhamento, monitoramento e avaliação de políticas públicas nos municípios envolvidos e ampliação da participação nos conselhos municipais de Candeias do Jamari e Itapuã do Oeste, nos quais era este um fator crítico. Criação e implementação do Fórum Permanente de Conselhos Municipais de Porto Velho. 2º Diagnóstico com o levantamento do número de famílias e as respectivas situações dos processos de mitigação e indenização, da falta de estudos completos abordando as espécies ameaçadas e atingidas pela construção das hidrelétricas, além da denúncia às autoridades competentes e organismos nacionais e internacionais acerca do desrespeito aos direitos das comunidades ribeirinhas, indígenas e demais moradores das margens do Rio Madeira. 3º Sistematização das peças orçamentárias dos cinco municípios pela equipe do projeto, com participação das lideranças das organizações sociais envolvidas, abordando políticas existentes para cada área-foco do projeto controle social e conservação da biodiversidade, orçamento previsto para cada política pública por ano e valores gastos para cada política pública por ano; empoderamento das lideranças que passaram a exigir a participação nos processos dos ciclos orçamentários e a aquisição das peças orçamentárias para análise e elaboração de pareceres.

breve descrição das etapas-chave no desenvolvimento da experiência

1ª Mobilização de organizações a fim de fortalecer ou instituir parcerias, com vistas a concretizar os objetivos deste projeto (etapa concluída). 2ª Visitas aos municípios, reuniões com conselheiros, secretários municipais e prefeitos, encontros com entidades de base e ciclos orçamentários para levantamento e análise de PPA, LDO e LOA dos municípios do Território Madeira-Mamoré, do Governo do Estado de Rondônia e estudo dos conselhos municipais de políticas públicas que eram o foco do projeto – meio ambiente, segurança alimentar e agricultura. Também foi levantada a existência e o funcionamento dos conselhos municipais de desenvolvimento rural, meio ambiente e segurança alimentar (etapa concluída). 3ª Diagnóstico socioeconômico e ambiental das comunidades atingidas pelas hidrelétricas do Rio Madeira (etapa concluída). 4ª Realização de oficinas e reuniões locais nos municípios do Território Madeira-Mamoré para formação das lideranças (etapa concluída), além de oficinas, seminários e encontros em Porto Velho com todas as lideranças e representantes das organizações sociais dos municípios envolvidos e das comunidades atingidas pelas hidrelétricas do Rio Madeira, para discutir estratégias de intervenção no orçamento público e no enfrentamento dos grandes empreendimentos no estado de Rondônia (etapa permanente). 5ª Elaboração do documento “Base de informações do ciclo orçamentário do estado e dos municípios do Território Madeira-Mamoré” (etapa concluída) e elaboração de banco de dados com diagnóstico socioeconômico e ambiental das famílias atingidas pelas usinas hidrelétricas no Rio Madeira (etapa em andamento). Acredita-se que é possível criar um processo de intervenção social garantindo formação de lideranças e atores sociais para a elaboração dos instrumentos de exigibilidade de direitos e fortalecimento das entidades de base. Assim, todo o trabalho foi permeado pela

metodologia de trabalho

242

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


proposta freiriana de participação social, criticidade, defendendo que “Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor e se engajam na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si mesmos, superando, assim, sua ‘conivência’ com o regime opressor” (Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, 1987, p. 29). Para o levantamento das peças orçamentárias foi criada uma tabela na qual puderam ficar evidentes as políticas existentes para cada área-foco do projeto, o orçamento previsto para cada política pública por ano e os valores gastos para cada política pública por ano. Para o levantamento dos conselhos municipais foi utilizada uma ficha contendo as seguintes informações: título do conselho, existência (ou não) no município, agenda de reuniões, composição, respaldo legal, orçamento para 2008 (se garantido em lei). Já o diagnóstico socioeconômico foi realizado com questionários contendo perguntas abertas e fechadas. O critério mais importante que orientou a seleção da amostra para a pesquisa de campo foi o número de famílias registradas pelo IBGE, das quais 10% compuseram a amostra.

instrumentos

A equipe que compunha o projeto estudou as referências de pesquisa sobre orçamento público e construção de hidrelétricas no Brasil, principalmente os materiais elaborados pelo INESC. Com isso, promoveu debates sobre ciclos do orçamento (fevereiro a abril nos municípios do Território Madeira Mamoré) e oficinas com os seguintes temas: Controle social e DHESCAs, Controle social do orçamento público e Justiça Ambiental.

processos de formação

alianças

[Associação de Produtores Rurais] como colabora com a experiência  Monitorando o processo do ciclo orçamentário em Itapuã do Oeste e participando do Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural.

a. aspraja ­– Associação dos Produtores Rurais da Aliança do Jamari

b. coopbiamio ­– Cooperativa de Biojoias e Artesanato de Itapuã do Oeste

[Cooperativa de artesãos] Monitorando o processo do ciclo orçamentário em Itapuã do Oeste e exigindo a implementação do Conselho Municipal de Meio Ambiente.

como colabora com a experiência

[Organização de produtores orgânicos] Monitorando o processo do ciclo orçamentário em Porto Velho, participando do Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural e do Fórum Permanente de Conselhos Municipais.

c. ceac ­– Centro Agroecológico e Cultural

como colabora com a experiência

d. AACCJ ­– Associação Artística e Cultural de Candeias do Jamari

[Associação de artesãos] como colabora com a experiência  Monitorando o processo do ciclo orçamentário em Candeias do Jamari e impulsionando a criação do Fórum Municipal de Orçamento Público.

e. Pastoral Social da Igreja Católica

[Entidade religiosa] como colabora com a experiência  Monitorando o processo do ciclo orçamentário em Guajará Mirim e participando do Conselho Municipal de Meio Ambiente.

f. Comitê Binacional de Fronteira

[Entidade da sociedade civil] Articulando discussões com as organizações bolivianas envolvidas no debate sobre as hidrelétricas do Rio Madeira.

como colabora com a experiência

[Entidade religiosa] Monitorando o processo do ciclo orçamentário em Nova Mamoré e participando do Conselho Municipal de Agricultura.

g. CPT ­– Comissão Pastoral da Terra da Igreja Católica

como colabora com a experiência

novas institucionalidades e experiências participativas

243


h.

ASPRONA ­– Associação dos Pequenos Produtores Rurais de Nova Mamoré

como colabora com a experiência

[Associação de produtores rurais] Monitorando o processo do ciclo orçamentário em Nova Mamoré e participando do Conselho Municipal de Agricultura.

i. INESC ­– Instituto de Estudos Socioeconômicos [Entidade da sociedade civil sem fins lucrativos]

como colabora com a experiência

Fornecendo materiais e indicando profissionais para formação da equipe e da liderança no tema orçamento público e controle social.

j. PAD ­– Processo Articulação e Diálogo

[Entidade da sociedade civil sem fins lucrativos] como colabora com a experiência  Articulando espaços para formação e intercâmbio de experiências com outras entidades que atuam com controle social e exigibilidade dos DHESCAs.

fortalezas da experiência

1ª Parcerias com entidades e organizações da sociedade civil que colaboram com o projeto. 2ª Rede de contatos com organizações e instituições governamentais (como Ministério Público do Estado) e não governamentais (INESC e PAD). 3ª Equipe com responsabilidade, determinação e compromisso com o sucesso do projeto, buscando estratégias, materiais e parceiros para sua formação e também das lideranças envolvidas.

debilidades da experiência

1ª Entraves políticos dos setores das Prefeituras que dificultaram o acesso a informações por parte da ADA Açaí e das entidades parceiras nos municípios. 2ª Falta de profissionais que atuam na área de orçamento público, controle social e direito ambiental que tenham disponibilidade para oferecer assessoria ou formação para a equipe do projeto. 3ª Reduzido número de membros da equipe chegou a analisar os orçamentos públicos dos cinco municípios do Território Madeira-Mamoré (apenas duas pessoas) e pouca formação no tema. A participação dos atores envolvidos deu-se desde a concepção e a estruturação do projeto até a sistematização e a divulgação das informações coletadas e organizadas em banco de dados, por meio de ações que atingiram um total de 24 comunidades ribeirinhas, 58 organizações da sociedade civil, 76 homens, 87 mulheres e 50 jovens (na faixa etária de 15 a 29 anos).

como se expressa a participação cidadã

Percebeu-se maior atenção para as propostas de trabalho dos candidatos a prefeito durante o processo eleitoral de 2008 e maior acompanhamento na elaboração do orçamento para 2009. Destaca-se Candeias do Jamari, que está reunindo organizações da sociedade civil para institucionalizar um Fórum que acompanhe e discuta o orçamento e as políticas públicas desse município.

observações sobre o desenvolvimento posterior/atual da experiência

nome, organização e contato de quem preencheu a ficha

Eliriane dos Anjos da Silva Albuquerque, ADA Açaí,

­elirianesilva@hotmail.com.

244

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


Rede de Planos de Zonas e Corregedorias da cidade de Medellín, Antioquia, Colômbia Colômbia, Antioquia, Medellín

nível de desenvolvimento da iniciativa

Municipal / Comunal / Distrital

área temática principal na qual se inscreve a experiência  áreas complementares

Democracia e desenvolvimento local.

Políticas Públicas de Participação Cidadã.

Incidência das comunidades no desenvolvimento estratégico da cidade e controle cidadão da gestão pública local.

temas transversais com os quais a experiência busca contribuir

Articulações de organizações comunitárias urbanas, ONGs que apoiam os processos e universidades.

perfil dos participantes da experiência

beneficiários

Comunidades urbanas que contam com processos de organização social articulados.

Educação, capacitação, promoção organizativa, diagnósticos participativos e estratégias de atuação.

área de atenção

nome e tipo da organização que coordena a iniciativa  ano de início da experiência

Instituto Popular de Capacitação – IPC – ONG

1996  |  vigência  Até os dias atuais

Reverter situações de extrema exclusão social, cultural e política de conglomerados urbanos que não são consultados sobre as grandes decisões de ordem pública que impactam o desenvolvimento e a vida da população. Primeiramente identificam-se os grandes problemas de desenvolvimento e convivência em nível de cidade e o potencial das organizações de base urbanas para empreender processos de incidência na democracia e no desenvolvimento local.

qual situação busca reverter ao impulsionar tal experiência?

Partindo de processos territoriais locais (de comunas), identificaram-se os atores sociais no território e foram incentivados cenários de reflexão sobre os principais problemas da cidade e da comuna a partir de processos prévios de acompanhamentos realizados por diversas ONGs. Foi iniciado um processo de construção de rede em que se identificou a democracia e o desenvolvimento local como horizonte de articulação de experiências comunitárias. A partir da reunião do compromisso de um núcleo de ONGs e de organizações sociais, aborda-se a realização de propostas de agendas de desenvolvimento na cidade e estratégias de participação nos planos de desenvolvimento e estratégicos, incentivados pela Administração Pública. Trabalha-se a partir das ONGs na unificação ou na articulação dos processos de capacitação e formação, que progridem, e foi estabelecido um acordo com organizações comunitárias de alguns territórios para empreender o intercâmbio de experiências na própria cidade. Foram estabelecidas estratégias para apresentar propostas conjuntas à Administração Local e desenvolver cenários de deliberação pública sobre as condições de vida das comunidades. Avançou-se em processos de formulação de políticas de participação, em aliança com outros atores, entre eles um Sistema Municipal de Planejamento e um Acordo Municipal para institucionalizar o Orçamento Participativo. A rede foi uma referência para comunidades que se animaram a aprender com outras comunidades. Também é um claro interlocutor da Administração Pública da cidade para a implementação de programas públicos de investimento social e, por sua vez, estimulou propostas de transcender a participação em processos locais à participação em processos da cidade.

descrição

novas institucionalidades e experiências participativas

245


objetivos

1º Visualizar o desenvolvimento da cidade a partir da participação direta das comunidades. 2º Alcançar processos de participação política cidadã que reivindiquem e proponham um modelo de cidade inclusiva, equitativa e em paz. 3º Conseguir a implementação de políticas públicas favoráveis às comunidades excluídas, com um enfoque de realização de direitos.

resultados alcançados

1º O ator comunitário é relevante na cidade e deve ser levado em conta na implementação de diversas políticas de convivência, de paz, de participação, de desenvolvimento urbano, de educação etc. 2º Incorporou-se a participação cidadã nos programas de governo e desenvolvimento da cidade em três gestões da Prefeitura. 3º Aprovaram-se como Acordos Municipais no Conselho da cidade o Sistema Municipal de Planejamento e o Orçamento Participativo (ou seja, que devem ser levados em conta pelas autoridades eleitas em cada período).

breve descrição das etapas-chave no desenvolvimento da experiência

1ª Identificação da necessidade de articular processos, seja ela inicial ou contínua pelos novos desafios. 2ª Identificação de papéis de quem conflui na experiência  líderes sociais e organizações sociais, as ONGs e as universidades. 3ª Desenvolvimento de estratégias definidas: formação, debates públicos, interlocução e publicações. 4ª Acompanhamento dos processos de base que integram a experiência. 5ª Avaliações anuais, identificação de atores a relacionar e retroalimentação de estratégias. Construir acordos de trabalho a partir do que cada participante (organização) pode fazer; realizar ações de esforço combinado, trabalhar por consensos. A rede é de coletividades, e não de pessoas.

metodologia de trabalho

Secretaria Técnica por períodos, comunicações internas, reuniões periódicas, realização de oficinas e seminários abertos, pronunciamentos públicos em meios de comunicação, reuniões periódicas com outros atores da Administração e das Juntas Administradoras Locais, participação em debates no Conselho da cidade, intercâmbio com outras redes da região e do país.

instrumentos

Foram realizadas algumas ações de capacitação e houve o intercâmbio de experiências de formação de integrantes da rede; são promovidos a participação de líderes em diversos cenários e o intercâmbio de experiências sempre que exista uma oportunidade.

processos de formação

ALIANÇAS a. CEDECIS – Corporación para el Desarrollo Comunitario y la Integración Social

[ONG de apoio à comunidade e

ênfase educativa]

Acompanha organizações no território, desenvolve programas educativos formais e informais e com experiência na parte rural.

como colabora com a experiência

b. Convivamos  [Organização comunitária de uma das zonas da cidade (Noroeste)]

como colabora com a experiência

Orienta processos comunitários em uma zona da cidade e desenvolve

programas educativos.

246

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


c. Corporación Región

[ONG]

como colabora com a experiência

Acompanha processos territoriais de comunidades e desenvolve in-

vestigação e educação. d. Corporación Penca de Sabila

[ONG] como colabora com a experiência  Acompanha processos territoriais de comunidades e desenvolve investigação e educação. Trabalhou processos de ruralidade na cidade. Perito ambiental. [Organização comunitária] como colabora com a experiência  Orienta um processo comunitário e desenvolve programas de formação e comunicação (Zona Nordeste)

e. Corporación “Picacho Con Futuro”

[Organização comunitária] Orienta um processo comunitário e desenvolve programas de formação e comunicação (Zona Nordeste)

f. Corporación Simón Bolivar

como colabora com a experiência

[ONG] Acompanha processos territoriais de comunidades e desenvolve investigação e educação. Trabalhou processos de ruralidade na cidade.

g. Corporación Nuevo Arco Iris – Capítulo Antioquia

como colabora com a experiência

[Organização comunitária] Orienta um processo comunitário e desenvolve programas de formação com ênfase em direitos humanos (Zona Nordeste)

h. Sumapaz

como colabora com a experiência

i. Fundación Social

[ONG]

como colabora com a experiência

Acompanha processos territoriais de comunidades e desenvolve in-

vestigação e educação. [ONG comunitária] como colabora com a experiência  Acompanha processos territoriais de comunidades e desenvolve investigação e educação. É uma experiência de paz após um processo de reinserção de milícias urbanas.

j. CORPADES – Corporación para la Paz y el Desarrollo Social

[ONG] Acompanha processos territoriais de comunidades e desenvolve pesquisas e educação, deliberação pública, informação e imprensa sobre problemas urbanos. Além disso, participa ativamente nas decisões de planos das coordenações comunitárias de quatro comunas da cidade. Conta com o apoio da Universidade de Antioquia, por meio da Faculdade de Ciências Sociais, no acompanhamento de processos de sistematização e investigação.

k. IPC – Instituto Popular de Capacitación

como colabora com a experiência

fortalezas da experiência

1ª Participam as experiências mais representativas da cidade quanto à trajetória de organização e participação comunitária. 2ª Esteve conectada com os cenários de debate da cidade e interpela a Administração Local. 3ª É uma aliança entre o processo de base e os atores que dão suporte e apoio.

debilidades da experiência

1ª Tem dificuldades, pela natureza do processo (muito ativismo cotidiano), de estabelecer relações permanentes, além da cidade. 2ª Não instalou um processo comunicativo amplo, ágil, que potencie o processo. Assembleias de comuna (agrupação de bairros), assembleias de organizações comunitárias por comuna, encontros, oficinas temáticas, fóruns públicos de debate

como se expressa a participação cidadã

novas institucionalidades e experiências participativas

247


com participação de outros atores que estão implicados em seu desenvolvimento, execução de contratos públicos. Incidência nos Conselhos Consultivos Comunais do Orçamento Participativo, assembleias cidadãs de bairro, mesas por eixos de planos de desenvolvimento, Conselho Municipal de Planejamento etc. Introduzir temas novos nos planos de desenvolvimento, dialogar com outros atores de temas públicos, dialogar e interpelar as autoridades, promover controle cidadão e vigilância, cogestão de programas com a administração, contribuir no tratamento de temas conflituosos, apresentar propostas de inclusão da voz das comunidades, apoiar situações de risco e emergência, ações de solidariedade diante do risco natural e político.

quais mudanças e inovações foram introduzidas com a experiência?

Institucionalizou-se o planejamento participativo (por localidades), enriqueceram-se mecanismos de participação da cidade como o Conselho Municipal de Planejamento (reunião de diversos atores econômicos sociais e acadêmicos). Há novos desafios: a cidade como região, os problemas ambientais e do ordenamento do território, novos atores como multinacionais, os problemas de serviços públicos domiciliares.

observações sobre o desenvolvimento posterior/atual da experiência

Hoje se discute como avalizar processos de governabilidade democrática na cidade e a inter-relação com outros atores a partir de cenários mais políticos.

observações gerais

nome, organização e contato de quem preencheu a ficha

248

Martha Lucía Peña Duque, IPC, presidencia@ipc.org.co.

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


Orçamento Participativo de Ecatepec de Morelos. Agora, o orçamento também é de todos!

divisão político-administrativa

O México é uma Federação com três níveis de governo: federal, estatal e municipal. O município não faz parte do Pacto Federal, sendo este o tema principal das propostas de Reforma de Estado.

nível de desenvolvimento da iniciativa

Municipal / Comunal / Distrital

área temática principal na qual se inscreve a experiência  áreas complementares

Democracia Participativa e Participação Cidadã.

Orçamento Público.

temas transversais aos quais busca contribuir a experiência

Direitos, equidade e inclusão social e territorial, construção de cidadania, relação democrática entre governo e cidadania.

perfil dos participantes da experiência

13.818 moradores em 316 comunidades (56% do total); 1.580 Comissários do Orçamento Participativo; o Prefeito; 16 Coordenadores Territoriais, representantes pessoais da presidência da Câmara Municipal; 16 Conexões Territoriais de Coordenação Territorial; 16 Conexões de Coordenação de Fortalecimento Cidadão; 12 Conexões de Direção de Obras Públicas; 80 Promotores Comunitários; 10 Conexões de Direção do Governo; 15 funcionários de diversas áreas que intervieram (Secretaria Técnica, Tesouraria, Controladoria, Serviços Públicos, Segurança Pública, Comunicação etc.); 8 membros do organismo de assessoria (COPEVI).

População das 316 comunidades participantes e de 60 comunidades vizinhas, no caso de obras de impacto nas zonas e ações sociais (aproximadamente 1.012.954 habitantes).

beneficiários

área de atenção

Fortalecimento Cidadão e Políticas Públicas.

nome e tipo de organização que representa a iniciativa

Centro Operacional de Vivienda y Poblamiento, A. C., COPEVI (organização da sociedade civil sem fins lucrativos – ONG)

ano de início da experiência

agosto de 2007  |  vigência  março de 2009

Processo municipal pioneiro no México. Em 2001 houve duas experiências parciais no Distrito Federal, de caráter mais consultivo. Ecatepec é o município mais povoado do país, com 1 milhão e 800 mil habitantes, 560 comunidades e um orçamento municipal importante, antes gerido de modo tradicional, centralizado e clientelista. O OP buscou impulsionar a participação cidadã informada e organizada e a corresponsabilidade social; fomentar cultura cidadã de pagamento de impostos; fortalecer arrecadação fiscal local; instalar como princípio orientador a transparência e a responsabilização; e abrir novas instâncias deliberativas e canais de comunicação, diálogo e construção de acordos governo-comunidade.

qual situação busca reverter ou potencializar a experiência?

É uma estratégia de democratização das relações governo-cidadão, parte integrante do processo de planejamento participativo, em que a população exerce sua cidadania como atora e construtora da cidade. Instrumento de gestão democrática, promove o interesse e a participação efetiva dos cidadãos nos assuntos públicos, particularmente na orientação de parte do orçamento destinado a melhorar as condições de vida e o desenvolvimento local.

descrição

novas institucionalidades e experiências participativas

249


É um novo modo de administrar, garantindo transparência e controle cidadão sobre os recursos públicos. Instrumento metodológico e pedagógico de comunicação, mediação, consenso e decisão conjunta entre governo local, comunidades e cidadãos, pretende construir uma cidadania ativa, informada, crítica, organizada, base de uma sociedade consciente, próativa e corresponsável. Centralmente busca devolver a cada comunidade – em obras e ações públicas – o que foi pago em imposto predial e derivados, realizando um exercício de democracia participativa em que cada comunidade define suas prioridades que, depois de uma análise de viabilidade técnico-financeira, são incorporadas no plano e orçamento anual. Foi utilizada uma metodologia participativa em Assembleias Comunitárias deliberativas de prioridades e representantes de suas comunidades, que constituem comissões comunitárias do OP, que integram o Conselho Municipal do Orçamento Participativo. Podem participar todas as comunidades que estão em dia com o pagamento do imposto predial ou, caso contrário, as que aceitem o sistema de realização de melhorias. O montante para a execução das prioridades, com base nos critérios de equidade, corresponderá ao montante alcançado pela arrecadação do imposto predial e imobiliário, ou a parte proporcional relativa ao sistema de melhorias. Por iniciativa do prefeito se construíram os acordos necessários com o governo e a administração local. O processo se baseou em uma estrutura articulada entre governo local, as Comissões de Orçamento Participativo, o Conselho de Orçamento Participativo, as Assembleias Comunitárias e a cooperação de organizações sociais. O processo foi organizado e conduzido por uma comissão coordenadora formada por seis áreas de governo – Fortalecimento Cidadão (FC), Secretaria Técnica (ST), Obras Públicas, Tesouraria, Controladoria, Governo – e o organismo assessor COPEVI. As áreas FC e ST, com o apoio da COPEVI e em articulação com as 16 Coordenações Territoriais, responderam pela convocatória, organização e realização das Assembleias Comunitárias, assim como o acompanhamento das comissões comunitárias do Orçamento Participativo. A área de Obras Públicas coordenou a quantificação das prioridades, examinou a viabilidade técnica, financeira, jurídica e social de cada orçamento, realizou levantamentos e registros e preparou – junto à Tesouraria – o orçamento a ser aprovado pela Câmara. objetivos

1º Gerar transformação na maneira de governar, baseada na implantação de mecanismos que garantissem transparência, inclusão e participação cidadã nos assuntos públicos, construção da cidadania, reconhecimento dos direitos antes negados ou violados e estabelecimento de mecanismos de democracia participativa no município. 2º Promover o interesse e a participação efetiva dos cidadãos nos assuntos públicos, particularmente na orientação de parte do orçamento municipal destinado a melhorias e desenvolvimento local, reorientando o gasto municipal com base nas necessidades e prioridades das comunidades. 3º Melhorar a eficácia e a eficiência, assim como promover uma cultura de participação no âmbito da administração pública.

resultados alcançados

250

1º Destinou-se o orçamento para obras e ações sociais de acordo com as prioridades estabelecidas pelas comunidades, alcançando um montante global de 218 milhões de pesos. Reuniões de informação sobre o exercício, os montantes e as ações para cada comunidade. Difusão do propósito de estabelecer um governo promotor da democracia participativa e assegurador de direitos.

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


2º Processo participativo de análise das comunidades sobre suas necessidades e prioridades. Execução de propostas voltadas ao desenvolvimento local. Construção de instâncias participativas e espaços democráticos de interação. Reconstrução do tecido social. 3º Redesenho da gestão governamental de maneira integrada e voltada ao desenvolvimento local e zonal das comunidades. Nova visão de relações includentes e de coparticipação com os moradores.

breve descrição das etapas-chave no desenvolvimento da experiência

1ª Preliminar – Acordos entre governo e representantes das comunidades. Desenho do processo, instrumentos, convocatória, capacitação e coordenação operacional. 3ª Assembleias Comunitárias – Cada comunidade estabeleceu sua proposta de cinco prioridades de obras ou ações e nomeou a Comissão de Orçamento Participativo integrada por cinco moradores. Participaram a população de cada comunidade, as Coordenações e Conexões Territoriais, as Conexões de quatro áreas municipais e a COPEVI. 3ª Análise de viabilidade das propostas de prioridades – Foram realizadas análise de viabilidade social, técnica, jurídica e financeira de cada proposta (pelos Gabinetes de Governo) e vistoria de campo com levantamentos técnicos na maior parte das comunidades, com participação das Comissões de Orçamento Participativo. Integrou-se uma ficha técnico-social para cada uma das prioridades. 4ª Assembléias Comunitárias de validação e acordos – Realizadas em função das prioridades mais viáveis. Participação das Comissões de Orçamento Participativo e da população de cada comunidade, das Conexões, dos técnicos e das Coordenações Territoriais. 5ª Instalação do Conselho Municipal de Orçamento Participativo – Com a assistência de todas as Comissões de Orçamento Participativo (COP), do prefeito e da equipe de governo, nomeou-se um coletivo de 80 pessoas. 6ª Execução de obras e realização de ações acordadas – Em cada comunidade se envolveram as áreas respectivas, além de contar com acompanhamento, vigilância, supervisão e avaliação das Comissões de Orçamento Participativo. 7ª

Avaliação participativa do processo de Orçamento Participativo – Com a intervenção das Comissões de Orçamento Participativo e do Conselho Municipal de OP, com a finalidade de extrair as lições deste primeiro exercício e planejar a realização deste processo de OP para 2009.

metodologia de trabalho

Adaptação do modelo brasileiro de Orçamento Participativo, estratégias de Poder Popular, planejamento participativo, educação popular e educação cidadã, construção de consensos, gestão estratégica e integrada de planejamento governamental territorial.

Instrumento

Informação massiva, comunicação participativa, cartazes, folhetos, flyers, áudios on-line; psicodrama; passeios, Assembléias Comunitárias, Comissões de OP em cada comunidade, reuniões zonais, reuniões e assembleias informativas; supervisão técnica com moradores e técnicos em cada obra e ação; reuniões intergovernamentais para desenho do processo, definição técnico-jurídica e social, análise de prioridades e proposta de acordos com comunidades; acordo do processo na Câmara, assim como montantes e planos de ação.

processos de formação

Oficinas sobre os processos de OP com funcionários das diversas áreas; psicodrama com as equipes territoriais das 15 zonas para preparar as Assembléias Comunitárias; duas oficinas de formação para os Comitês Comunitários de OP; assistência dos Comitês de OP à sessão da Câmara para aprovação do montante orçamentário; encontro para intercâmbio de experiências com representantes de Portugal, Brasil, Equador, Andaluzia e França.

novas institucionalidades e experiências participativas

251


ALIANÇAS

[Organizações sociais do município que colaboram com a gestão do governo democrático] como colabora com a experiência  Na difusão do exercício do Orçamento Participativo e participação das comunidades no processo.

a. Frente de Esquerda por Ecatepec – FIE

b. Centro Operacional de Habitação e Povoamento A. C. – COPEVI

[Organismo civil] Assessoria, orientação de experiências e relações com outros casos nacionais e internacionais. Participação no coletivo das diversas áreas responsáveis pelo processo ao longo de todo o exercício (formação, capacitação, assistência a assembleias, análise de prioridades, reuniões etc.).

como colabora com a experiência

fortalezas da experiência

1ª Vontade política e determinação do prefeito e de parte de sua equipe de governo. 2ª Forte expectativa da população, que se transformou em participação ativa. 3ª Experiência da equipe assessora no manejo e na aplicação do processo de OP.

debilidades da experiência

1ª Falta de capacidade da equipe de governo para incorporar o total das comunidades ao exercício. 2ª Tempo longo para licitação em diversas obras, aquisição de patrulhas etc., assim como em casos de mescla de recursos com fundos federais. 3ª Falta de experiência da equipe de governo e da população em articular exercícios participativos e de democracia direta. Os cidadãos das comunidades locais, reunidos em Assembleias Comunitárias, decidem as prioridades a ser consideradas; validam as análises técnico-financeiras e realizam sua seleção final; elegem seus comissionados ao OP. As Comissões de OP dão seguimento aos acordos e às ações resultantes, conjuntamente com suas comunidades, exercendo controle social sobre o processo; participam na avaliação do processo. A Comissão Coordenadora e as áreas de governo, em reuniões e mesas de trabalho, definem as orientações e a aprovação do processo do OP, os instrumentos do processo, o agendamento de assembleias; sensibilizam e convidam a participar todas as áreas e os Gabinetes de Governo; organizam a logística e a cobertura territorial nos 16 setores; acompanham a realização de assembleias; analisam e validam – técnica, jurídica, administrativa e financeiramente – as prioridades das comunidades; formulam o projeto de despesas para sua aprovação pela Câmara; organizam assembleias de devolução e acordos com as comunidades e integração do Conselho Municipal de OP; capacitam as Comissões de Orçamento Participativo; supervisionam obras e ações; organizam e acompanham a avaliação participativa; promovem ajustes para o processo de OP de 2009. O organismo assessor COPEVI elabora o desenho de propostas conceituais, operacionais, metodológicas e instrumentais para definição e desenvolvimento do processo (documento base, manual de operações, conteúdo dos meios de difusão, convocatória, cartas descritivas de assembleias, instrumentos de captura, indicadores para análise de viabilidade de prioridades, processo formativo das Comissões de Orçamento Participativo, funções e integração do Conselho Municipal, avaliação participativa, ajuste de experiência para sua continuidade e replicabilidade); capacita e sensibiliza as equipes territoriais, funcionários municipais e a Comissão de OP; acompanha as Assembleias Comunitárias; participa na análise de prioridades; coordena a avaliação participativa; ­redesenha

como se expressa a participação cidadã

252

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


o OP de 2009. As ­Coordenações e as Conexões Territoriais convocam e coordenam as assembleias com apoio dos promotores e das instâncias de representação comunitária; entrem em contato com as Comissões de OP; acompanham a supervisão de obras e ações; participam na avaliação. A área de Comunicação Social realiza o registro visual do processo, o controle dos materiais e as estratégias de divulgação do Orçamento Participativo. A Tesouraria atualiza a base de dados para determinar os montantes de contribuição de cada comunidade em forma de imposto predial. Há muitos anos o Orçamento Participativo tem sido tema de interesse no México, mas também de desconfiança a respeito de sua aplicabilidade; com duas prévias experiências parciais, o processo de OP de Ecatepec abriu a possibilidade de sua replicabilidade nos governos locais do país, além da articulação com as redes internacionais de OP. Internamente, significou o desafio de articular a ação do governo em torno desse processo e contribuiu, juntamente com outros processos de construção da cidadania, para criar uma gestão estratégica e participativa. As instâncias comunitárias do OP e sua expressão municipal se somam a outras geradas durante esta gestão em campos da saúde, educação, cultura, jovens e redes solidárias para o consumo e renda popular.

quais mudanças e inovações foram introduzidas com a experiência?

Tem-se cumprido com as obras e ações priorizadas pelas comunidades, o que em si representa uma mudança na atenção governamental aos moradores de Ecatepec; as prioridades têm sido acompanhadas por outras ações sociais, de infraestrutura, saúde, educação, cultura e segurança pública na maior parte das zonas do município acordadas deliberativamente com os moradores; em sua gestão posterior, os moradores solicitarão acordos em torno de suas prioridades e as comunidades que não conseguiram ser incluídas no primeiro exercício do OP solicitarão sua inclusão; o prefeito e sua equipe de governo estão trabalhando na elaboração de um regulamento de participação cidadã e OP, além de um manual operacional já existente.

observações sobre o desenvolvimento posterior

Amplia-se a expectativa de que, a partir da experiência de OP em Ecatepec e sua divulgação, será possível a replicabilidade em outros governos locais do país, ampliando as experiências de democracia participativa e seu impacto na transformação do Estado, na perspectiva de descentralização, democratização e cultura da participação.

observações gerais

nome, organização e contato da pessoa que preencheu a ficha  Informação complementar

Rocío Lombera, COPEVI, copevi@prodigy.net.mx.

www.ecatepec.gob.mx

novas institucionalidades e experiências participativas

253


Comunidade e Município, Aliados pelo Desenvolvimento Social de Alhué: Incorporação de Atores Locais Chile, Metropolitana, Melipilla, Alhué

nível de desenvolvimento da iniciativa

Municipal / Comunal / Distrital

área temática principal na qual se inscreve a experiência  áreas complementares

Administração e Governo.

Gestão e Direitos Cidadãos.

área complementar específica

Liderança e Formação de Dirigentes.

temas transversais com os quais a experiência busca contribuir  perfil dos participantes da experiência  beneficiários

Participação.

Cidadãos em geral, autoridades públicas, líderes da comunidade.

População em geral.

área de atenção

Urbana.

nome e tipo da organização que coordena a iniciativa  ano de início da experiência

Municipalidade de Alhué

1999

Dada a situação de isolamento e pobreza que afeta a comuna (em 1994 foi incluída entre as 72 comunas mais pobres do país), existe, entre outras situações complexas, alta rotatividade de técnicos e profissionais no município, que rapidamente emigram, implicando alto custo para o governo municipal, devido à descontinuidade na execução de programas ou iniciativas que se implementam e que na área social requerem tempo e estabilidade para a avaliação de resultados.

qual situação busca reverter ao impulsionar tal experiência?

O projeto foi implementado no ano 2000. Começou com a reestruturação da Direção de Desenvolvimento Comunitário. Pretende assegurar a continuidade de iniciativas que se implementam no território, mediante a integração de atores locais e comunitários na gestão do município, através de alianças com grupos sociais da comuna e do desenvolvimento de redes locais. Para isso se criaram os espaços onde integrar a comunidade na tomada de decisões e na busca de soluções para seus problemas. Isso implica a transmissão de capacitação a pessoas da comunidade, incorporando-as a um processo de treinamento e desenvolvimento de habilidades para que, ao apoderar-se das ferramentas de intervenção, atuem como facilitadores em temas de Desenvolvimento Social. Para isso foram criadas seções de emprego e treinamento, cultura, comunicações, esporte e recreação, terceira idade, pessoas com necessidades especiais, juventude e infância, abrindo concurso para a seleção dos interessados de acordo com perfis previamente definidos, e a quem se paga uma remuneração pelo desempenho de sua tarefa, o que inclui trabalho no terreno e em escritório.

descrição

objetivos

1º Abordar de forma mais eficiente, eficaz e integral os diferentes desafios propostos na área de desenvolvimento comunitário a partir de uma concepção de programas sociais e grupos vulneráveis.

2º Auxiliar na transmissão de capacitação à população através do treinamento de seus líderes e atores-chave de forma a gerar mudanças desde dentro, em coerência com o principio de ação que fomente a educação e o treinamento.

254

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


3º Criar uma estrutura capaz de sustentar, fortalecer, fomentar, criar e difundir as iniciativas que surjam a partir dela mesma e replicá-la, sem depender das administrações ou das tendências das pessoas encarregadas.

resultados alcançados

1º Posicionamento de atores locais como protagonistas em diversos temas de desenvolvimento comunitário (cultura, comunicações, esporte, mulher, juventude, infância, terceira idade e necessidades especiais, treinamento e emprego) com o respaldo e no contexto da gestão municipal (aliança sociedade civil e governo local). 2º Formulação de planos participativos nas diferentes temáticas do desenvolvimento comunitário e execução através da realização de atividades e programas. Formação de conselhos de apoio às seções, com diferentes graus de consolidação, chegando a constituir-se inclusive organizações formais. Gestão de treinamento formal e informal dos encarregados de escritório e de seus colaboradores em diversos temas de interesse. 3º Participação direta da comunidade na tomada de decisões na área social emanadas do poder local, mediante a criação de sistemas de informação e da administração da estrutura “Direção de Desenvolvimento Comunitário” que permita seu manejo independente da pessoa encarregada. Nascimento de um “espírito de cooperação”, trabalho em equipe, responsabilidade e avaliação da atividade entre os encarregados e os cooperantes.

breve descrição das etapas-chave no desenvolvimento da experiência

1ª Instalação: a experiência teve início em 1999, mediante a aprovação do orçamento municipal que incorpora o financiamento para sua execução. Começou suas atividades no ano 2000, no contexto da reestruturação de DIDECO (Direção de Desenvolvimento Comunitário) de Alhué. Assim se organizaram sete seções, com os respectivos encarregados: Esporte, Juventude, Mulher, Terceira Idade, Cultura, Infância e Comunicações. 2ª Formulação de planos nas diferentes temáticas de desenvolvimento comunitário e sua execução através de atividades e programas ao longo de todo o ano 2000. Neste mesmo contexto foram lançados os anúncios de convocação aos Conselhos de Apoio às Seções, integrados por atores locais da comuna, organizados e participando de acordo com seus interesses. 3ª Gestão e treinamento formal e informal dos encarregados de seções e seus colaboradores. Nesta etapa do processo, a comunidade participou da formação e da tomada de decisões na área social. 4ª Criação de sistemas de informação e administração da estrutura da DIDECO, cuja lógica é a permanência do modelo independente dos colaboradores eventuais e das contingências políticas dos municípios. A incorporação da participação de parte da população da comuna nos programas sociais municipais, mediante a nomeação de Agentes Locais Municipais, provenientes da comunidade, como encarregados das seções respectivas.

metodologia de trabalho

A iniciativa incorpora ativamente a comunidade no trabalho municipal, pelo trabalho empreendido pelos agentes locais na planificação, distribuição de recursos e execução dos programas definidos.

instrumentos

Trabalhou-se inicialmente no treinamento e na aprendizagem contínuos dos envolvidos, na avaliação e sistematização permanente das experiências, além da ênfase no ­trabalho coordenado e em equipe. Nesta etapa do processo participam profissionais da DIDECO e os Agentes Locais.

processos de formação

novas institucionalidades e experiências participativas

255


ALIANÇAS a. Municipalidade de Alhué

b. Sernam, Prodemu, INJ

[Órgão público municipal] Apoios técnico e financeiro, treinamento e cogestão.

como colabora com a experiência

[Organismo nacional de caráter regional] Apoio técnico e treinamento.

como colabora com a experiência

c. Fundação para a Superação da Pobreza

como colabora com a experiência

[Organização paraestatal] Apoio técnico, recursos humanos e treinamento.

d. Organizações Comunitárias de Alhué

como colabora com a experiência

[Associação de moradores] Cogestão.

fortalezas da experiência

1ª Mudanças na gestão municipal dos programas sociais, institucionalizando a participação da comunidade através das seções e agentes locais, estabelecendo partidas orçamentárias e papéis específicos a estas instâncias. 2ª Os Agentes Locais Municipais animam a participação comunitária e coordenam as atividades dentro da área temática de que se ocupam, e que, por se tratar de uma comuna pequena (4 mil habitantes), tem alta visibilidade e impacto. 3ª Vontade política e apoio das autoridades à iniciativa, assim como o desejo de continuidade, de modo que foi incorporada à execução orçamentária de 2001 (além de tudo, é de muito baixo custo).

debilidades da experiência

1ª Falta consolidação da iniciativa no interior do município, onde não é completamente assumida, e que sua continuidade seja garantida mediante equipes de trabalho competentes. 2ª Falta consolidar a ideia de equipe de trabalho, de modo a poder garantir sua continuidade, independentemente do profissional responsável por ela ou do apoio político que recebam. Os atores são cidadãos em geral, autoridades públicas e líderes da comunidade. Os mecanismos contemplados são espaços de diálogo, assembleias e mesas de trabalho. A participação se expressa no diagnóstico de situações locais, no desenho de propostas, e na implementação comunidade-autoridade.

como se expressa a participação cidadã

quais mudanças e inovações foram introduzidas com a experiência?

256

1ª O desenvolvimento de uma nova temática. 2ª Inclusão de novos atores (envolve sua participação e cogestão) na comunidade organizada (pessoas da comunidade, formadas e capacitadas). 3ª Desenvolvimento de novos enfoques, estratégias e metodologias quanto ao trabalho a partir da DIDECO para e com a comunidade. 4ª Modificações na gestão interna, especialmente ao idealizar os Agentes Locais Municipais. 5ª Primeira vez na área da DIDECO e do município.

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


Conselho Democrático Municipal México, Jalisco, Cuquío

nível de desenvolvimento da iniciativa

Municipal / Comunal / Distrital

área temática principal na qual se inscreve a experiência  áreas complementares

Administração e Governo.

Infraestrutura e Serviços Públicos.

temas transversais com os quais a experiência busca contribuir  beneficiários

Participação.

População em geral.

área de atenção

Rural.

nome e tipo da organização que coordena a iniciativa  ano de início da experiência

Prefeitura de Cuquío, Jalisco (órgão público municipal)

1993

A concentração de programas e obras em grupos específicos detonou a criação de mecanismos institucionais de relação com o governo municipal. As políticas públicas municipais estavam focadas em determinadas regiões e setores, marginalizando algumas comunidades e tendo como resultado a falta de desenvolvimento econômico e social equitativo. Soma-se a isso a apatia da população em participar, devido à falta de credibilidade no desempenho das autoridades municipais.

qual situação busca reverter ao impulsionar tal experiência?

A formação de um Conselho Democrático Municipal estabelece como base de sua operação uma estrutura participativa e territorial. Com a divisão territorial por zonas se pretende representar todas as comunidades do município, assim como incentivar a participação dos habitantes no Conselho mediante a presença de conselheiros comunitários e setoriais. Esses conselheiros são representantes e inclusive líderes das comunidades, que são eleitos democraticamente para representá-las nas sessões que se realizem. Para isso, em cada uma das zonas se analisam e priorizam as petições das localidades, com o propósito de apresentar propostas e argumentos ante o plenário do Conselho. Além disso, as organizações cidadãs propõem suas petições ante o Conselho. Este, com base nas propostas apresentadas por ambas as vias, analisa e aprova por consenso as obras que são de prioridade municipal, considerando elementos como demanda, tipo de obra, benefícios para a comunidade, beneficiários e viabilidade. O Conselho elabora o documento com as ações aprovadas e o remete à presidência municipal. Esta última analisa a viabilidade das obras, que serão discutidas posteriormente em reunião do Cabildo. Uma vez analisadas e aprovadas, os recursos tramitam nas instâncias estatais e federais. O Conselho não só participa na definição e na seleção das obras, como também na etapa de acompanhamento, com o objetivo de zelar para que os recursos sejam utilizados adequadamente em assuntos prioritários.

descrição

objetivos

1º Promover a participação e o fortalecimento de suas instâncias de organização comunitária. 2º Fomentar o desenvolvimento do município mediante o desenho, a elaboração e o acompanhamento das propostas formuladas. 3º Participar da elaboração do Plano de Desenvolvimento Municipal.

novas institucionalidades e experiências participativas

257


resultados alcançados

1º Interesse e participação ativa por parte da população na definição de problemas comunitários. Participam aproximadamente 1.800 pessoas em 60 comunidades. 2º Execução de ao menos uma ação em cada comunidade representada, tendo como resultado uma distribuição equitativa das obras e dos serviços públicos. 3º Solução de problemas manifestados por grupos organizados e diminuição do controle de certos grupos políticos.

breve descrição das etapas-chave no desenvolvimento da experiência

1ª A definição de um Comitê permanente, em que participam dez secretários conselheiros de zona e um secretário técnico. 2ª O desenho de um Regulamento municipal de participação cidadã, e Regulamento interno do Conselho. 3ª A elaboração e apresentação de propostas por comunidade, com o objetivo de integrar um único documento. Neste se priorizam anualmente as obras públicas municipais. 4ª A execução de reuniões periódicas com a participação dos habitantes, conselheiros comunitários e setoriais, secretário, conselheiro da zona e um representante da autoridade municipal. 5ª A realização de reuniões com representantes dos níveis de governo municipal, estadual e federal. A criação de um Conselho Democrático Municipal estabelece como base de sua operação uma estrutura participativa e territorial. Com a divisão territorial por zonas se pretende representar todas as comunidades do município, assim como incentivar a participação dos habitantes no Conselho mediante a presença de conselheiros comunitários e setoriais.

metodologia de trabalho

O representante do Comitê assiste às sessões do Cabildo com a finalidade de informar sobre atividades que estão sendo desenvolvidas e as necessidades que foram detectadas. Sua presença é de vital importância porque, por sua vez, se informa das ações que o município está empreendendo.

instrumentos

Com a finalidade de fortalecer as capacidades do Conselho, são constantemente desenvolvidas oficinas de trabalho sobre planejamento participativo. Cabe ressaltar que há uma relação próxima, de cooperação constante, entre o Conselho e o governo municipal.

processos de formação

ALIANÇAS

Órgãos públicos

como colabora com a experiência

Apoios técnico e financeiro, treinamento e cogestão.

fortalezas da experiência

1ª Institucionalização da participação dos habitantes, mediante a aplicação de método e princípios democráticos de debate comunitário e transparência. 2ª Integração das propostas nas ações de governo. 3ª Execução equitativa das obras e dos serviços públicos.

debilidades da experiência

258

1ª Consegue incorporar importantes setores. Não obstante, faltam grupos com melhor posição econômica, como comerciantes e fazendeiros. 2ª A única vinculação jurídica com a Prefeitura é o “acordo de Cabildo”, que reconhece o Conselho como órgão de planejamento municipal.

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


As comunidades veem com beneplácito o programa. A participação e a interação com as autoridades municipais mediante este mecanismo permitem legitimar as ações, assim como validar as propostas emanadas do Conselho Democrático. Evidentemente a participação das comunidades representadas se produz em todas as fases, desde o diagnóstico até o acompanhamento das ações. Finalmente, os representantes são a via das necessidades e propostas formuladas pelos cidadãos e o Conselho é a instância que serve como mecanismo para levar ao conhecimento do governo municipal os requerimentos comunitários.

como se expressa a participação cidadã

Mediante este mecanismo se propicia a canalização de ações e recursos para outras áreas prioritárias. Isto implica que a aproximação entre as comunidades e a administração municipal, por meio da formulação de propostas concretas, diminui a concentração de ações em certos grupos de poder e consegue o desenvolvimento econômico e social mais equitativo entre comunidades.

quais mudanças e inovações foram introduzidas com a experiência?

Foi efetuada a institucionalização deste mecanismo. Isto se reflete na legitimidade que tem perante o governo municipal. De fato, se alguma proposta é recebida diretamente pelo governo municipal, este a remete ao Conselho para seu conhecimento e revisão. Além disso, os mecanismos de participação utilizados pelo Conselho permitem às comunidades participar e apresentar seus problemas de forma organizada.

observações sobre o desenvolvimento posterior/atual da experiência

novas institucionalidades e experiências participativas

259


Construindo Capacidade de Ação Institucional em Organizações Sociais da Grande Buenos Aires Argentina, Buenos Aires, Moreno

nível de desenvolvimento da iniciativa

Municipal / Comunal / Distrital

área temática principal na qual se inscreve a experiência  áreas complementares

Educação e Cultura (educação através do esporte).

Desenvolvimento socioeconômico (fortalecimento da cidadania).

temas transversais com os quais a experiência busca contribuir  beneficiários

Participação.

Adolescentes e jovens.

área de atenção

Urbana.

nome e tipo da organização que coordena a iniciativa

Fundación Defensores del Chaco (FDC) (organização da

sociedade civil) ano de início da experiência

1997  |  vigência  Sim

A importância/necessidade deste projeto reside fundamentalmente nos aspectos contextuais da área de implementação, aspectos que configuram consideráveis graus de degradação social e exclusão, fortemente marcados pelas carências materiais e, ao mesmo tempo, por práticas políticas e culturais longamente enraizadas na região, que desfavorecem a reconstrução gradual dos laços sociais e da rede de relações comunitárias que gerariam maior contenção dos setores mais vulneráveis. Os distritos de Moreno, San Miguel, Malvinas Argentinas e José C. Paz fazem parte do “Conurbano 4”, a área mais severamente afetada pelos mais altos índices de pobreza, indigência e desemprego na Região Metropolitana de Buenos Aires.

qual situação busca reverter ao impulsionar tal experiência?

O projeto está orientado para expandir as capacidades de ação e de incidência de organizações sociais de base comunitária, por meio da capacitação e formação de seus dirigentes e membros da organização. As organizações que participarão deste projeto atualmente formam uma incipiente Rede Regional integrada por instituições e grupos de moradores dos bairros de San Miguel, José C. Paz, Moreno e Malvinas Argentinas, todos eles distritos do noroeste da Região Metropolitana de Buenos Aires. O propósito desta iniciativa é ampliar a consciência dos direitos de sujeitos coletivos e individuais, a participação cidadã e a construção coletiva e associada destinada a promover o desenvolvimento das comunidades. Em tal sentido, a iniciativa se sustenta fundamentalmente na educação como ferramenta útil na ampliação de conhecimentos para promover melhor gestão organizacional, após a criação de espaços de participação, diálogo, construção de consensos e soluções concertadas entre diversos atores sociais envolvidos nos problemas da comunidade. A partir de nosso trabalho (as Ligas de Futebol de Rua, as atividades culturais, a alfabetização cívico-legal) fomos detectando e identificando com clareza um dos obstáculos fundamentais na promoção de estratégias de desenvolvimento e cidadania nas comunidades: a ausência de redes institucionais, em escala de bairro, distrital e regional, que possam efetivamente articular um olhar integral sobre os problemas da comunidade, aperfeiçoar os recursos existentes e gerir os necessários para melhorar a qualidade de vida dos habitantes no que se refere à saúde, educação, infraestrutura, moradia, economia solidária e trabalho.

descrição

260

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


objetivos

1º Expandir as capacidades, os conhecimentos e as habilidades das Organizações Sociais de Moreno como articuladores e transmissores dos problemas comunitários às instituições. 2º Intensificar a densidade das relações com a comunidade e melhorar quantitativa e qualitativamente seu potencial de incidência nas decisões públicas, utilizando o esporte, a cultura e o direito como ferramentas de confiança.

resultados alcançados

1º Entre as principais conquistas podemos mencionar a melhoria das condições de vida de crianças e jovens, a redução do grau de vulnerabilidade social e o aumento da solidariedade, a formação de líderes e a construção de cidadania. No âmbito comunitário, a FDC promoveu a formação de capacidades da comunidade para incidir em políticas públicas. Entre as conquistas se enumeram: manter o preço do bilhete de transporte público, tarifa mínima para estudantes secundários, promoção de acesso à água potável. Estas conquistas foram resultado da mobilização e da participação ativa de mais de 5 mil pessoas da comunidade de Moreno. 2º Com a formação da Liga de Futebol de Rua (jovens entre 16 e 22 anos), foram integradas 30 organizações de bairros vizinhos que agrupam 2 mil jovens, somando 4.950 meninos, meninas e jovens participando das atividades. Além disso, realizou-se o “1° Mundial de Futebol de Rua” dentro do programa cultural alemão no âmbito do Mundial de Futebol FIFA 2006. 3º O trabalho desenvolvido através do esporte, da arte e da educação, em direitos e cidadania, contribuiu para a criação de uma rede de organizações em toda a região que atualmente promove a chamada “Carta Popular”, uma iniciativa que inicialmente captou a visão de 1.500 famílias sobre as necessidades do bairro e a forma de melhorar a participação e a democracia, para depois impulsionar e coordenar a elaboração participativa de uma série de propostas político-sociais em nível de moradores e de bairro.

breve descrição das etapas-chave no desenvolvimento da experiência

1ª Em junho de 1997 foi comprada a propriedade para a realização das atividades e iniciado o processo de consolidação da identidade no bairro. No início, a “Defensores del Chaco” era uma associação civil que realizava atividades com recursos provenientes do apoio da comunidade, em eventos com finalidade de arrecadação: sorteios, rifas, alimentação etc. Com a compra do terreno onde se construíram as instalações, começou a ser implementado o “sistema solidário”, que consiste na aliança da FDC com programas de RSE (Responsabilidade Social Empresarial) de empresas argentinas. 2ª No final de 2004 se organizou a 1º Posta Regional e foi criada a primeira rede de organizações da Região Metropolitana de Buenos Aires. Em 2005 foi realizado o 1º Campeonato Sul-Americano de Futebol de Rua, em que se pôs à prova a capacidade organizativa. Em 2006, dentro do programa cultural alemão, foi organizado o “1° Mundial de Futebol de Rua” no âmbito do Mundial de Futebol FIFA 2006. Naquele momento foi conquistada a primeira experiência de incidência em políticas públicas e mobilização cidadã com a implementação do bilhete único. 3ª A partir do diagnóstico baseado no trabalho territorial, foi identificada a falta de redes de organizações na região que facilitassem a reconstrução da estrutura social e ao mesmo tempo favorecessem a participação democrática, o diálogo e a construção de consenso. O trabalho educativo através do futebol de rua e os componentes cultural e artístico desenvolvidos pelo “Culebrón Timbal” contribuíram para a criação de uma rede de organizações que possibilita a

novas institucionalidades e experiências participativas

261


construção de uma Democracia Participativa na região, que incorpore a iniciativa comunitária, o orçamento participativo, a justa participação dos setores populares na criação e na distribuição do trabalho e da riqueza, o desenvolvimento local e a economia social. ALIANÇAS a. “Culebrón Timbal”

[Centro comunitário e cultural] Apoios técnico e político.

como colabora com a experiência

[Órgão público nacional] como colabora com a experiência  Apoio financeiro.

b. Secretaria de Deporte de la Nación

[Fundação filantrópica internacional] como colabora com a experiência  Apoio financeiro.

c. Fundación AVINA

d. ACIJ

[ONG de serviço local ou mobilização popular] Apoio técnico.

como colabora com a experiência

e. “Ashoka”

[Fundação filantrópica internacional] Apoio financeiro.

como colabora com a experiência

fortalezas da experiência

1ª O aumento da capacidade das organizações sociais e a confiança criada entre elas para trabalharem juntas e promover ações coordenadas, como o caso da Carta Popular. 2ª A promoção de liderança nos jovens e a criação de espaços permanentes de encontro e formação. 3ª A criação de uma rede regional de organizações sociais. A abertura ao diálogo sobre a democracia que queremos em nossas comunidades. O desenvolvimento desta experiência tem três componentes que se articulam entre si, e ao mesmo tempo conservam certo grau de autonomia. Por um lado, há o componente esportivo, que consiste na criação de ligas de futebol de rua na região do noroeste da Região Metropolitana de Buenos Aires e também em algumas províncias do interior do país. A metodologia do futebol de rua é uma nova forma de jogar futebol, em que predomina o valor educativo do esporte e a aquisição de habilidades por parte dos jovens, para resolver seus conflitos pacificamente, liderar processos, educar seus pares. Depois vem o componente cultural ou artístico, que consiste na realização de eventos culturais em espaços públicos, muitas vezes articulados com atividades esportivas, que têm como finalidade recuperar a identidade cultural dos habitantes da região, criar espaços de encontro entre moradores e aproveitar estas instâncias para trazer informação à população. Depois há o componente de formação em direitos, em que se capacitam dirigentes e membros de organizações sociais, docentes, comunidade educativa em geral, jovens etc., sobre direitos sociais, políticos e econômicos, acesso a serviços básicos, formas de intervenção pública etc. Os primeiros componentes favoreceram a criação de uma rede de organizações em toda a região, que atualmente impulsionam a mencionada “Carta Popular”. A aquisição de conhecimentos, capacidades e habilidades para enfrentar os problemas sociais da comunidade, diagnosticálos, criar estratégias de ação e, finalmente, mobilizar a participação cidadã vai produzindo gradualmente o fortalecimento das organizações e ao mesmo tempo da rede de instituições. O fortalecimento das instituições facilita e dá permanência à interação com outras organizações, ao mesmo tempo em que sistematiza o exercício participativo, que tem como principal suporte a maior capacidade de acesso à informação e o conhecimento de direitos que se ad-

como se expressa a participação cidadã

262

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


quiriram. Estes fatores atuam como elementos de sustentabilidade do projeto, o qual no futuro não exigirá a intervenção das organizações do projeto, mas que se transformará em uma engrenagem comunitária com autonomia própria. Dessa forma, mesmo com todos atuando de forma autointeressada, a rede e seus recursos continuarão funcionando, o que demonstra que estas características particulares facilitaram as instâncias de cooperação com outras organizações nacionais e internacionais e empresas. quais mudanças e inovações foram introduzidas com a experiência?

a FDC comprovou em sua experiência cotidiana que o esporte é uma ferramenta educativa útil para a transmissão de valores como a solidariedade, o trabalho em equipe e a convivência pacífica. Assim, o esporte não constitui um fim em si mesmo, mas o meio para alcançar melhor qualidade de vida. Esta concepção fundamentou a criação das Ligas de Futebol de Rua.  Promoção de liderança nos jovens  para a FDC, a participação dos jovens sempre foi um de seus objetivos. A FDC aprendeu com a experiência que, para que os jovens se assumam como líderes de um processo em sua comunidade, têm de ter um papel a cumprir, visível e palpável. É por isso que a FDC, após a identificação dos perfis de liderança, deu a estes jovens um papel e responsabilidade na organização, seja como integrantes da comissão diretiva, como agentes multiplicadores e treinadores, ou como professores nas atividades. Assim, foi conseguido um verdadeiro empoderamento dos jovens, com aumento de sua autoestima e a transmissão destes valores à comunidade.  Intercâmbio e construção  o trabalho se fortalece estabelecendo alianças estratégicas em dois níveis. Com a comunidade, através da criação de redes com outras organizações de base comunitária, para intercambiar experiências e fortalecer a presença na comunidade. Em outro nível, formando alianças com organizações com um forte componente técnico, de forma a maximizar os recursos de todos os atores e avançar para a construção da cidadania. A experiência propõe uma abordagem inovadora do problema da participação cidadã, a partir do esporte, da arte e do conhecimento sobre direitos e ferramentas legais. Assim, fomenta a articulação e o intercâmbio ao invés de atitudes de confronto, o que favorece âmbitos de construção mais ricos. Nossa principal aprendizagem é a necessidade de devolver capacidades às pessoas, sejam elas individuais ou coletivas. Nenhuma comunidade precisa que lhe digam, a partir de fora, o que ela necessita, porque já o sabe. Mas o que nem sempre sabe é como sistematizar esta informação, como coordenar ações, como denunciar quando estão violando seus direitos. O esporte como ferramenta

O trabalho territorial que tem as organizações na região foi uma das principais condições de sucesso, já que a Defensores do Chaco tem mais de dez anos de trabalho na área e conta com grande presença, visibilidade e legitimidade entre seus pares e em relação à comunidade em geral. Depois, a convocatória dirigida a atores diversos (organizações sociais, escolas, paróquias, organizações de desempregados etc.) e a criação de espaços de construção de consenso entre os participantes da iniciativa permitiram avançar na proposta. A integralidade da estratégia é a chave do desenvolvimento da iniciativa. Nesta etapa se somam a visibilidade das ações que geram confiança e a participação nas diferentes atividades por parte das organizações, o que fortalece a capacidade de mobilização social e o impacto público, criando condições propícias para a consolidação das capacidades nos beneficiários capacitados. Além disso, outros elementos que também influíram foram contar com consenso, bom diagnóstico e apostar na conquista de

observações sobre o desenvolvimento posterior/atual da experiência

novas institucionalidades e experiências participativas

263


objetivos e metas, e a metodologia de trabalho nos espaços de treinamento, articulando conteúdos teóricos com situações cotidianas vividas pelos docentes nas aulas. A participação democrática e a construção de novas formas de cidadania se fazem no próprio exercício, e nisto a informação e o conhecimento desempenham papel fundamental. Facilitar o acesso à informação, produzir novas informações, intercambiar, abrir espaços. Não é possível construir uma nova forma de fazer democracia sem saber qual é a democracia que queremos. Por isso, para devolver o poder à comunidade, o primeiro passo é consultar o que querem, pensam, necessitam, podem oferecer, com que coisas se comprometem etc. Somente participando se pode construir participação. O modelo de Ligas de Futebol de Rua se reproduziu em outras províncias da Argentina e, entre outros, países como Chile, Peru, Brasil, Bolívia, Paraguai e Colômbia.

observações gerais

264

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


Programa de Desenvolvimento Sustentável das Enseadas de Tocopilla Chile, Antofagasta, Tocopilla

nível de desenvolvimento da iniciativa

Municipal / Comunal / Distrital

área temática principal em qual se inscreve a experiência  áreas complementares

Desenvolvimento socioeconômico.

Infraestrutura e Serviços Públicos.

temas transversais com os quais a experiência busca contribuir

Participação.

Trabalhadores rurais, líderes da comunidade (urbana e rural) e os sindicatos vinculados à União de Trabalhadores Rurais do município, Organizações da Sociedade Civil.

perfil dos participantes da experiência

beneficiários

População em geral.

área de atenção

Urbana.

nome e tipo da organização que coordena a iniciativa  ano de início da experiência

Junta Rural de Vizinhos San Pedro de Caleta Buena

1997

A experiência desenvolvida pela Junta Rural de Vizinhos San Pedro de Caleta Buena, localizada a 43 quilômetros ao sul de Tocopilla, II Região, pretende abordar a regularização dos terrenos em que se encontra a comunidade, pois a falta deste reconhecimento não lhes permite investir nem aceder a benefícios sociais, na busca por melhores condições de vida.

qual situação busca reverter ao impulsionar tal experiência?

A iniciativa tem como finalidade um projeto de vida comunitário, enfatizando o entorno social, econômico, de proteção e resguardo do meio ambiente. Este surgiu como um povoado de pescadores em 1985, que oferecia segurança e diversidade de produtos de mar, devido à crise da pesca artesanal pela poluição de áreas de captura e a corrente El Niño. Atualmente é uma comunidade pesqueira que convive com população de veranistas. Dadas as estreitas relações estabelecidas na comunidade, surge o imperativo de organizar-se ante as necessidades e os projetos comuns. Em 1997 foi articulada sua primeira organização  a Junta de Vizinhos; depois, enfrentado problemas produtivos, foi organizado o Sindicato de Pescadores (1999) e finalmente criou-se o Centro de Desenvolvimento Sustentável (2000). Estes processos permitiram algumas conquistas desde o ponto de vista sanitário: dotação de água potável mediante caminhões-pipa municipais; coleta de lixo etc. Atualmente se encontram envolvidos com desafios maiores, como água potável rural e reconhecimento do modelo de desenvolvimento implementado em Caleta Buena.

descrição

objetivos

1º Abordar a problemática das comunidades costeiras, com pacotes integrados de apoio que contemplam ao menos a propriedade dos terrenos em que está situada a comunidade. 2º Manejo ambiental do entorno, aproveitando os recursos naturais de forma integral, enfatizando a transmissão de conhecimentos e o registro de informação bioecológica, junto ao manejo de recursos pesqueiros através de processos tecnológicos. 3º O intercâmbio e a socialização das experiências adquiridas e executadas pelas comunidades.

novas institucionalidades e experiências participativas

265


resultados alcançados

1º A criação de organizações (sindicato de mariscadores de mergulho que trabalham na enseada, em 1999, e o centro de desenvolvimento sustentável, no ano 2000); transferência de técnicas de manejo de resíduos domésticos para adubo; projeto de limpeza e higiene ambiental de entulho e lixo na enseada. Implementação do programa de arborização por parte de CONAF (Corporação Nacional Florestal). Ampliação da unidade dos moradores com a incorporação da comunidade de turistas para a realização, em conjunto, de atividades em beneficio da enseada. 2º Realização de uma oficina de capacitação de pesca artesanal e uso sustentável da orla marítima do norte, convidando os sindicatos de pescadores das regiões I, II e III. Elaboração do projeto, com trâmite no Ministério de Bens Nacionais, para a cessão em comodato de terrenos na enseada para a construção da sede da Junta de Vizinhos, do sindicato e do centro experimental, este último com fins produtivos nas áreas agrícola, agropecuária e florestal. 3º Conclusão da tramitação da área de manejo. Processo de reprodução do projeto na Enseada Urco, com a conformação do centro turístico produtivo, e Enseada Punta Paquica, iniciando a formalização do sindicato.

breve descrição das etapas-chave no desenvolvimento da experiência

1ª Motivação e diagnóstico inicial a partir de necessidades específicas relacionadas com habitabilidade; a comunidade começa um processo de organização e captação de apoios. 2ª Instalação e gestão: busca de oportunidades e negociação com organismos públicos em relação a temas de infraestrutura, desenvolvimento produtivo e organizacionais. 3ª Execução-avaliação, redesenho de ações de acordo com necessidades e Plano de Trabalho Trienal de Caleta Buena. 4ª Difusão do modelo de gestão para outras enseadas da região a partir dos êxitos do modelo de desenvolvimento e das conquistas com o mundo público. Constituição de uma equipe multidisciplinar, a cargo de um empreendedor social, que em conjunto com as organizações desenvolveu e implementou um Plano de Trabalho Trienal nas áreas de desenvolvimento técnico-produtivo, técnico-ambiental, econômico-comercial e sociocultural.

metodologia de trabalho

As organizações estabeleceram vínculos de coordenação, planificação, assessoria técnica, mesa de negociação e obtenção de recursos humanos, técnicos e financeiros com organismos públicos e da sociedade civil, além de estabelecer um plano regional de regularização da propriedade do terreno junto ao Ministério de Bens Nacionais. A comunidade, mediante um processo de autogestão, define uma estratégia de desenvolvimento, sendo reconhecida por instituições públicas (Bens Nacionais) como uma Enseada-Piloto em nível regional. É reproduzida atualmente pelas Enseadas de Urco e Punta Paquica.

instrumentos

As relações vão da comunidade aos atores públicos e novamente voltam para a comunidade para retroalimentar a informação, estabelecendo-se diálogos na busca de soluções aos problemas que afetam a comunidade. O intercâmbio se dá em reuniões e assembleias, junto ao relacionamento com agentes externos.

processos de formação

ALIANÇAS a. Municipalidade de Tocopilla

266

[Órgão público municipal] Apoio técnico.

como colabora com a experiência

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


b. Programa Serviço Pais

c. Fundação Ashoka

[Organização paraestatal] Apoios técnico e em espécie, treinamento.

como colabora com a experiência

[ONG internacional] Apoios técnico e em espécie, treinamento.

como colabora com a experiência

[Sindicato] Apoios técnico, financeiro e em espécies.

d. Sindicato de Mariscadores de Mergulho de Caleta Buena

como colabora com a experiência

[Associação de moradores] como colabora com a experiência  Apoios financeiro e em espécie, cogestão e voluntariado.

e. Junta Rural de Vizinhos San Pedro de Caleta Buena

[Universidade, Centro de estudos privados] como colabora com a experiência  Apoios técnico e em espécie, treinamento.

f. Centro de Desenvolvimento Sustentável, Caleta

[Organismo nacional de caráter regional] Apoios técnico e financeiro.

g. Fundo de Solidariedade e Investimento Social

como colabora com a experiência

[Organismo nacional de caráter regional] Apoios técnico e financeiro.

h. Serviço Nacional de Treinamento e Emprego

como colabora com a experiência

[Órgão público estatal de caráter regional] Apoio financeiro.

i. Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional

como colabora com a experiência

[Órgão público nacional] como colabora com a experiência  Apoio em espécie.

j. Corporação Nacional Florestal

fortalezas da experiência

1ª Grupos de pescadores artesanais e suas famílias, que consolidam uma perspectiva integral de desenvolvimento, fazendo parcerias com organismos públicos e privados. 2ª A confiança e o respaldo institucional alcançado (Ashoka, Serviço País, Conapach). 3ª A experiência é modelo para outras intervenções em enseadas de pescadores na região e outras zonas do país.

debilidades da experiência

1ª A necessidade de manter a coesão das organizações. 2ª Escassez de recursos econômicos. A principal contribuição é a proposta de desenvolvimento sustentável para as comunidades rurais situadas na borda costeira. Importância de ser um centro demonstrativo em terreno para as outras enseadas, porque a estratégia pode se reproduzir nas diversas enseadas que vivem a mesma realidade, do litoral da Região de Arica e Parinacota à Região de Atacama. A influência e o reconhecimento que a organização tem ao nível setorial em escala nacional (Conapach, Renace, Fundação Nacional para a Superação da Pobreza).

como se expressa a participação cidadã

Por um processo de autogestão, a comunidade conseguiu definir uma estratégia própria de desenvolvimento, sendo reconhecida ao posicionar-se em instituições como Bens Nacionais como experiência-piloto em nível regional. Esta proposta de desenvolvimento de Caleta Buena foi aceita, reconhecida e reproduzida por outras enseadas de Tocopilla, como Urco e Punta Paquica. O manejo integral da ­comunidade se realiza nos distintos âmbitos, social, produtivo e ambiental.

quais mudanças e inovações foram introduzidas com a experiência?

novas institucionalidades e experiências participativas

267


Gestão Conjunta da Municipalidade de Canaria e Comunidades de Umasi e Raccaya Peru, Ayacucho, Víctor Fajardo, Canaria nível de desenvolvimento da iniciativa

Municipal / Comunal / Distrital

área temática principal em qual se inscreve a experiência  áreas complementares

Educação e Cultura.

Desenvolvimento socioeconômico.

temas transversais com os quais a experiência busca contribuir  beneficiários

Acesso e equidade.

População em geral.

área de atenção

Urbana.

nome e tipo da organização que coordena a iniciativa

Municipalidade de Canaria e as Comunidades de Umasi

e Raccaya ano de início da experiência

2003

Falta de acesso à Educação Secundária de adolescentes e jovens das comunidades de Umasi e Raccaya, devido principalmente a três problemas: a pobreza, a falta de centros educativos próximos às comunidades e a marginalização das meninas no interior das próprias famílias, já que se privilegia a educação dos filhos homens.

qual situação busca reverter ao impulsionar tal experiência?

descrição

A experiência consiste na fundação de dois centros educativos de gestão compartilhada entre a Municipalidade de Canaria (Víctor Fajardo, Ayacucho) e duas comunidades camponesas do distrito. Esta experiência se desenvolveu nas comunidades de Umasi e Raccaya, ambas muito distantes da capital distrital. Estes centros educativos contam com um número variável entre três a quatro professores por ano, que são pagos de forma compartida pela comunidade, pela municipalidade e uma contribuição adicional da Unidade de Gestão Educativa Local. A comunidade adicionalmente proporciona vários elementos: alojamento para os professores, locais para o funcionamento dos centros e mão-de-obra para a construção das instalações definitivas. O Colégio de Umasi funciona há dois anos e recentemente foi convertido em centro educativo estatal, e por isso seu financiamento completo ficará a cargo da UGEL (Unidade de Gestão Educativa Local) de Víctor Fajardo.

objetivos

1º Permitir o acesso da população local ao ensino secundário. 2º Incentivar a população local para que as meninas também tenham acesso à educação.

resultados alcançados

1º Participação coordenada da comunidade na solução de seus problemas e envolvimento de outros atores sociais locais e distritais. 2º Criação dos CEGECOM (Centros Educativos de Gestão Comunal) “J. Velasco Alvarado”, em Umasi, e “F. Belaunde Terry”, em Raccaya, com o que se possibilitou o acesso da população juvenil a serviços educativos em suas próprias comunidades. 3º O total de 80 jovens em Umasi e 60 em Raccaya receberam os serviços educativos. Aproximadamente 50% deles são mulheres. Além disso, já há oito professores trabalhando.

breve descrição das etapas-chave no desenvolvimento da experiência

268

1ª Detecção da necessidade de criar centros educativos para as populações de Umasi e Raccaya. sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


2ª Convocatória por parte da Municipalidade Distrital de Canaria a um processo de criação de convênios com a população das comunidades e autoridades locais. 3ª Início dos trâmites junto à UGEL de Víctor Fajardo para a criação de centros educativos de gestão comunal. 4ª Compromisso de apoio logístico e econômico do município, bem como dos demais agentes civis envolvidos. 5ª Início de funcionamento dos dois centros educativos.

instrumentos

Buscando resolver os problemas mais básicos de nosso distrito, neste caso específico optamos pela cogestão, ou seja, fazer com que os próprios beneficiários participem da solução de seus problemas. Consideramos inovadora a nossa experiência porque a partir dela conseguimos sensibilizar as autoridades estatais e praticamente obrigá-los a que assumam seu papel, em justa reivindicação do direito à educação. Para o nosso distrito, e inclusive para a nossa região, esta experiência pode ser aplicada para solucionar outros problemas, como o da água, esgoto etc. Fazer com que os beneficiários participem na medida de suas possibilidades conduz a que valorizem as obras e os trabalhos que eles mesmos realizam; de fato, isto foi sendo implementado no contexto da criação de convênios, do orçamento participativo e da participação cidadã.

ALIANÇAS

[Órgão público municipal] Execução, financiamento, avaliação e coordenação.

a. Municipalidade Distrital de Canaria

como colabora com a experiência

[Fundações e institutos públicos] como colabora com a experiência  Financiamento, apoio técnico, avaliação e supervisão.

b. Unidade de Gestão Educativa Local UGEL de Víctor Fajardo

[Organização ou federação de povos indígenas] como colabora com a experiência  Execução, financiamento e coordenação.

c. Comunidades Camponesas de Umasi e de Raccaya

fortalezas da experiência

1ª Benefício evidente do projeto permite uma resposta imediata da população: acesso a serviços educativos sem necessidade de sair da comunidade. 2ª Compromisso importante da população e das autoridades comunais com relação às iniciativas de melhoria. Os centros educativos comunais são considerados, por quem participa deles, como experiências-modelo, das quais se sentem orgulhosos. 3ª Sólido compromisso e vínculo entre as comunidades, a municipalidade e os docentes participantes.

debilidades da experiência

1ª Existe um clima de rivalidade na municipalidade de Canaria, entre o prefeito e o vice-prefeito, que pode afetar o desenvolvimento da experiência. 2ª Os professores se queixam dos salários, mas apontam como motivação de seu trabalho o possível reconhecimento futuro das horas de aula ministradas, por parte da UGEL, o que lhes possibilitaria obter uma nomeação oficial. 3ª A pouca idade e a falta de experiência de docentes poderia ter consequências negativas no desenvolvimento geral da proposta.

como se expressa a participação cidadã

Formulação e desenho, implementação, execução e avaliação.

quais mudanças e inovações foram introduzidas com a experiência?

novas institucionalidades e experiências participativas

Inclusão de novos atores e ação pioneira na área.

269


Promoção da Participação Cidadã através da Apresentação de um Projeto de Lei sobre Mercados Produtivos Artesanais, sob a modalidade de Iniciativa Popular Argentina, Río Negro, Dina Huapi

nível de desenvolvimento da iniciativa

Municipal / Comunal / Distrital

área temática principal na qual se inscreve a experiência

Desenvolvimento socioeconômico (cadeias

produtivas) áreas complementares

Gestão e direitos dos cidadãos (Participação Cidadã).

temas transversais com os quais a experiência busca contribuir  beneficiários

Acesso e equidade.

Produtores e comerciantes.

área de atenção

Rural.

nome e tipo da organização que coordena a iniciativa

Asociación de Comerciantes y Productores (organização

da sociedade civil). ano de início da experiência

2005  |  vigência  Sim

As famílias de artesãos e pequenos produtores, especialmente nas áreas rurais de Río Negro, continuam vivendo em condições de subexistência, com elevada porcentagem delas apresentando necessidades básicas insatisfeitas (30% da população do departamento de Pilcaniyeu, em comparação com o total provincial, de 17,9%). A economia destas comunidades se desenvolve de maneira informal. Quase ninguém está incluído na Previdência Social. A maioria deles vive isolada, as estradas estão em mau estado, carecem de serviços de transporte público e de insumos energéticos – tanto energia elétrica como gás. A presença do Estado nestes lugares é insuficiente e, em alguns casos, esporádica.

qual situação busca reverter ao impulsionar tal experiência?

Um dos eixos de trabalho, para perseguir esse desenvolvimento integral, é a incidência em políticas públicas com o objetivo de conseguir a visibilidade jurídica daquelas pessoas envolvidas em seus projetos. Ou seja, precisamente, que os pequenos produtores rurais e artesãos da província sejam reconhecidos como sujeitos de direito pleno e, como consequência disso, poder melhorar suas condições de vida ao ter acesso à Previdência Social e, ao mesmo tempo, exercer o direito de cumprir com as obrigações cidadãs. Para tanto foram realizadas mais de dez oficinas com produtores e artesãos e aproximadamente vinte reuniões técnicas até agora. Desde março de 2007 ambas as organizações se aliaram à Vicaría de la Fraternidad, ao Mercado de la Estepa e à Fundación Avina para unir esforços e poder levar adiante um projeto para a apresentação de uma lei na legislatura provincial, sob a modalidade de Iniciativa Popular, ou seja, conseguindo o apoio de 3% do eleitorado provincial – neste caso, cerca de 11 mil assinaturas de cidadãos de Río Negro. Para isso é necessário um processo de conscientização da cidadania sobre a participação como exercício fundamental para a construção de uma democracia madura. Cabe destacar que, ainda que o recurso da Iniciativa Popular esteja contemplado no artigo segundo da Constituição Provincial, jamais foi posto em prática desde sua sanção. Obtidas as assinaturas requeridas, a Legislatura Provincial respaldou a primeira Iniciativa Popular na província de Río Negro.

descrição

270

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


objetivos

1º Promover a participação da cidadania, em Río Negro, na elaboração de políticas públicas e favorecer a tomada de consciência sobre a importância da intervenção cidadã para a construção de seu próprio futuro e o fortalecimento da democracia. 2º Promover a apresentação de um projeto de lei de Economia Social e Mercados Produtivos Artesanais na Legislatura de Río Negro, através do mecanismo de Iniciativa Popular. 3º Melhorar as condições de vida de produtores rurais e artesãos da província de Río Negro, através do reconhecimento de suas atividades econômicas.

resultados alcançados

1º A apresentação de um projeto de lei provincial de economia social, com o aval de 14.500 assinaturas de cidadãos. Indicadores: quantidade de assinaturas, lei apresentada. Instalar a Economia Social nos poderes Legislativo e Executivo provincial. A iniciativa Surcos Patagónicos se transformou em referência provincial e nacional em matéria de economia social, comércio justo e incidência em políticas públicas. 2º Criação de emprego genuíno, em contraposição aos planos sociais com valores médios de U$ 45, que não somente são insuficientes para o sustento familiar, mas também destroem a dignidade das pessoas. 3º Aumento da renda média das famílias, e com isso melhoria na qualidade de vida em emprego, alimentação, vestimenta, moradia e educação. Tudo isso influiu especialmente na qualidade de vida de crianças e mulheres gestantes. Indicadores: avaliações participativas, entrevistas com artesãs. Tornou-se uma organização consolidada, com mulheres que aumentaram sua autoestima ao poder vender artesanato, que até o momento faziam para uso próprio; com isso estão recuperando a identidade cultural, a autodeterminação e a dignidade.

breve descrição das etapas-chave no desenvolvimento da experiência

1ª 2ª 3ª 4ª

Junho de 2000 – Início da comercialização conjunta (20 pessoas). Dezembro de 2003 – Inauguração do Mercado da Estepa. Fevereiro de 2008 – O Mercado se constitui em Associação Civil (270 sócios). Junho de 2008 – Apresentação formal do projeto de lei. A Asociación de Comerciantes y Productores vem trabalhando desde 2005 com a Asociación Civil Participación Ciudadana na elaboração participativa de um projeto de lei de Economia Social e Promoção de Mercados Produtivos Artesanais.

processos de formação

ALIANÇAs a. Fundación AVINA

[Fundação filantrópica internacional] Apoios financeiro e técnico.

como colabora com a experiência

b. Ministerio de Desarrollo Social

c. INTA

[Órgão público nacional] Apoio financeiro.

como colabora com a experiência

[Organização paraestatal] Apoios técnico, financeiro e logístico.

como colabora com a experiência

[Fundação filantrópica] como colabora com a experiência  Apoio financeiro.

d. Fundación Nuria

e. Fundación Centro de Estudios Patagónicos / Participación Ciudadana

como colabora com a experiência

[Fundações e institutos públicos]

Apoios técnico e financeiro.

novas institucionalidades e experiências participativas

271


f. Programa Social Agropecuario

[Órgão público estatal de caráter regional] Apoios técnico e logístico.

como colabora com a experiência

g. Facultad de Agronomía, Universidad del Comahue

[Universidade, Centro de estudos privados] como colabora com a experiência  Apoio técnico. [Empresas locais] como colabora com a experiência  Apoio logístico.

h. Tren Patagónico

fortalezas da experiência

1ª Capacidade interdisciplinar da equipe de trabalho, com perfis pessoais que se complementam nas ações. 2ª Alianças interinstitucionais. Por meio de diferentes ações e estratégias, procura-se fortalecer outras instituições e coordenar com cada uma delas diferentes pontos-chave da província: Viedma, Alto Valle, Línea Sur e Área de Cordillera. 3ª Capacidade de gestão, para poder obter resultados positivos nas estratégias desenhadas e consensuais junto às organizações coexecutoras e facilitar o trabalho da coleta de assinaturas. Pôr em funcionamento uma Iniciativa Popular gera a necessidade de uma proposta educativa a cada pessoa que esteja disposta a assinar, principalmente no meio rural, onde, em geral, as pessoas não têm esse hábito, pois são somente convocados para votar nas eleições. O fato de convocá-los a formular uma lei e assiná-la já é um processo cívico de profunda transformação. Outro elemento importante é a presença não só no território em que atua, mas também na dimensão provincial, o que envolve fazer alianças com outras forças civis, ONGs, cooperativas, escolas, credos etc. A experiência põe em funcionamento um processo junto à excluída população do mundo rural, já que sua visibilidade não é possível pelo fato de viverem em territórios isolados e com pouca atuação do governo. Isto, historicamente, levou ao desconhecimento da capacidade e das habilidades que podem desempenhar os habitantes dessa região, o que pode ser verificável na colocação de seus produtos no mercado e observado no aumento de vendas e também na qualidade dos produtos, junto ao aumento de produtores associados (hoje são 250 sócios no Mercado de la Estepa). Importância da participação na elaboração do marco regulador da província e o sentir-se parte dele, não só para a equipe organizadora, mas para a maioria dos que aderem com sua assinatura.

como se expressa a participação cidadã

Consideramos que o processo de apresentação de um projeto de lei através da modalidade de Iniciativa Popular é valioso em si mesmo, porque por um lado estão se manifestando as necessidades e petições da cidadania, e por outro vão se somando uma série de aprendizagens em civilidade e outros aspectos, tanto para os cidadãos como para as organizações que possam levá-los adiante. E acreditamos que para outras organizações pode acontecer o mesmo que na nossa e nas aliadas: levar adiante um processo, em nosso caso, inédito na província, e construí-lo junto às autoridades provinciais e locais pertinentes, de maneira a poder utilizar os recursos que oferece o marco regulador atual na província. E ao mesmo tempo dar visibilidade à população social e ­economicamente marginalizada, objetivo de nosso trabalho. Além disso, através dessas ações continuamos consolidando nosso objetivo de desenvolvimento integral das comunidades rurais da província, fato que se reflete no dia-a-dia do Mercado de la Estepa. Por outro lado, junto com o compartilhamento do processo da Iniciativa Popular, estamos em condições de dividir esta

quais mudanças e inovações foram introduzidas com a experiência?

272

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


experiência associativa de comercialização, o que nos permitirá enriquecer outras organizações, mas também aprofundar nossa vivência e corrigi-la através das debilidades que outros possam nos apontar. Depois de mais de um ano do começo da iniciativa para a coleta, a quantidade de assinaturas requeridas foi conseguida e a Legislatura Provincial respaldou a primeira Iniciativa Popular na província de Río Negro. Isto significa que regressou ao local onde atualmente se encontra, em tratamento em cada comissão.

observações sobre o desenvolvimento posterior/atual da experiência

O Mercado de la Estepa está tendo, nestes últimos dois anos, ampla difusão de alcance nacional e também em países vizinhos, como é o caso de Chile e Uruguai. Este projeto foi difundido por diferentes motivos através de meios nacionais (gráficos, radiofônicos e televisivos) e através de sua página web. A partir disso, existem várias organizações e grupos de produtores interessados na réplica do modelo em seus locais de origem. Por esse motivo, os integrantes da Surcos foram convocados em várias oportunidades para relatar sua experiência. Um dos projetos mais avançados nesse sentido é o Mercado Regional Solidario, na costa atlântica de Río Negro, que incluiria San Antonio Oeste, Las Grutas, Viedma, Valcheta e outros pontos nos arredores. Já está bastante avançada sua organização e foi conseguida uma casa em San Antonio Oeste, cedida pelo município local, para ser a sede do Mercado. Este projeto tem cerca de dois anos de organização e a Surcos Patagónicos acompanhou muito de perto todo o processo, trazendo seu know-how e a experiência adquirida no tema.

observações gerais

Esta prática está inserida na iniciativa do Mercado de la Estepa, que adota como eixos a participação, a organização comunitária e a tomada de decisões em consenso, o que determinou seu papel central e a apropriação do empreendimento por parte das mulheres rurais (já que representam 96% dos sócios do Mercado). Através do trabalho conjunto dos sócios e da Surcos Patagónicos, apoiados pelo INTA e pelo PSA, foi possível conseguir a comercialização direta, conjunta e solidária de produtos artesanais com elevado valor agregado, no marco do comércio justo. Houve o fortalecimento da identidade cultural, de valores e capacidades individuais e grupais em suas comunidades. Foi possível trazer capacitação, acompanhamento e assistência técnica para favorecer a produção, assim como houve o fomento da participação política para promover a autogestão das comunidades.

Informações complementares

novas institucionalidades e experiências participativas

273


Rede de Jovens pela Saúde Argentina, Moreno, La Matanza, San Fernando, Lanús, Almirante Brown e Florencio Varela

nível de desenvolvimento da iniciativa

Municipal / Comunal / Distrital

área temática principal na qual se inscreve a experiência

Saúde e Serviços Sociais. (Saúde Sexual e Reprodutiva

e prevenção da Aids). áreas complementares

Educação e Cultura.

temas transversais com os quais a experiência busca contribuir  beneficiários

Participação.

Adolescentes e jovens.

área de atenção

Urbana.

nome e tipo da organização que coordena a iniciativa  ano de início da experiência

Fundación Huésped (organização da sociedade civil)

2000  |  vigência  Sim

A violência e os problemas vinculados à saúde sexual e reprodutiva são as primeiras causas de mortalidade entre os/as adolescentes, afetando especialmente os setores sociais de menores rendas. A violência é uma das primeiras causas de morte entre os homens jovens (acidentes, suicídios e homicídios), mas também aumentou entre as mulheres. Por tal motivo é indispensável recuperar e revalorizar suas potencialidades e fortalecer a integração social, partindo de uma concepção de juventude centrada na saúde como direito humano e ressaltando os aspectos positivos deste setor, para superar o enfoque reduzido à visão da doença e dos riscos.

qual situação busca reverter ao impulsionar tal experiência?

Consideramos os/as adolescentes e jovens como sujeitos de direitos e não somente receptores da oferta de serviços de saúde, incorporando, além disso, o enfoque de gênero como forma de identificar o modo pelo qual mulheres e homens constroem sua identidade sexual e exercem sua autonomia para tomar decisões a partir dos valores sociais diferenciados sobre os sexos. Neste sentido, a saúde sexual e reprodutiva se constitui em um componente essencial das estratégias dirigidas ao desenvolvimento juvenil, a partir do qual é possível facilitar o acesso a serviços e insumos adequados para promoção, educação, prevenção, assessoramento e atendimento à saúde dessa população, respeitando a autonomia nas decisões e a liberdade de escolha quanto ao pleno exercício dos direitos sexuais e reprodutivos. Mediante esta iniciativa se busca ressaltar valores comuns, fomentar a participação, fortalecer as práticas solidárias e o sentimento de pertencer à comunidade. As atividades propostas se orientam pela formação da população jovem, destacando as aspirações e potencialidades dos/das participantes, democratizando a produção e o acesso aos bens culturais, assim como gerando capacidades nos grupos juvenis para abordar estes temas entre pares, a partir da transferência de conhecimentos e ferramentas de intervenção.

descrição

Criar espaços de inclusão social para jovens, com o objetivo de favorecer o cuidado da saúde mediante a prevenção entre pares. Trata-se de motivar a aquisição e a transferência de pautas de promoção e prevenção da saúde e o exercício dos direitos humanos, especialmente os direitos sexuais e reprodutivos entre os/as jovens.

objetivos

274

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


resultados alcançados

1º Os jovens que integram a Red de Jóvenes por la Salud (RJS) pertencem a 11 grupos juvenis da Região Metropolitana de Buenos Aires (Moreno, La Matanza, San Fernando, Lanús, Almirante Brown e Florencio Varela) que realizam atividades de prevenção em diversos locais da província de Buenos Aires. 2º Por haver integrado, em 2006, a equipe técnica do projeto “Muestra Itinerante: actividades de prevención entre jóvenes”, implementado conjuntamente pela Fundación Huésped e a Dirección Nacional de Juventud, atingiu mais de 5 mil jovens de diversas províncias argentinas. 3º Entre as principais conquistas da RJS se encontram: a apresentação no Primeiro Encontro de Cultura e Saúde realizado no Centro Cultural da Cooperação, em agosto de 2005; o Prêmio “Hacelo Corto” (Governo da Cidade de Buenos Aires) e o Festival Fejorel (Teatro San Martín) ao curta-metragem La amistad; capacitação de jovens de centros de convivência no Encontro de Integração por uma Cultura Participativa, Mar del Plata, Província de Buenos Aires, em março de 2006; coordenação da oficina sobre HIV/Aids e Saúde Sexual e Reprodutiva na Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, em abril de 2006; capacitação no encontro com escolas de Rosário no “Primeiro Encontro Nacional para o desenvolvimento de Políticas Públicas sobre HIV/Aids e problemas relacionados”, em maio de 2006; capacitação técnica no projeto Mostra Itinerante implementado durante o ano de 2006 pela Fundación Huésped e a DINAJU em Mendoza, Salta, Rosario, Santa Fe e Córdoba; durante 2005 e 2006 foram propostas oficinas e capacitações dirigidas a outros jovens em San Justo, Lomas de Zamora, Moreno, entre outros; prêmio no Concurso y Expo Virtual Latinoamérica de Proyectos, concurso que conta com o apoio da Red Latinoamericana de Juventudes Rurales – RELAJUR, do Portal de Juventud para América Latina y el Caribe, da Alianza Latinoamericana y del Caribe de Asociaciones Cristianas de Jóvenes – ALCACJ e da TakinglTGlobal.org, Comunidade Virtual Juvenil, além de ser apoiado pela UNESCO; coordenação de oficinas, projeções, debates sobre filmes e apresentação de obras de teatro sobre Aids e SSR (Saúde Sexual e Reprodutiva) na Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, em abril e maio de 2007; apresentação de cinco curtas-metragens na Programação da Seção Juventude do IX Festival Internacional DerHumALC – Cinema de Direitos Humanos, Buenos Aires, em maio de 2007.

breve descrição das etapas-chave no desenvolvimento da experiência

1ª Desde o ano 2000, a Diretoria de Epidemiologia e Prevenção da Fundación Huésped vem desenvolvendo a estratégia “Cultura e Saúde” com o fim de promover a Saúde Sexual e Reprodutiva e prevenir a Aids entre a população jovem em situação de pobreza. A estratégia consiste em criar e/ou fortalecer espaços de participação em que os/as jovens se agrupem e adquiram compromissos e responsabilidades sobre os problemas que os afetam. 2ª A partir desta experiência, em 2005 foi formada a Red de Jóvenes por la Salud (RJS), com apoio da Fundación Huésped. Multiplicadora de pares, tem como foco produzir e difundir mensagens sobre Aids e SSR dirigidas a outros jovens através de espaços de expressão cultural. Com vistas a criar e/ou fortalecer espaços de participação em que os/as jovens se agrupem e adquiram compromissos e responsabilidades sobre os problemas que os afetam, são combinadas a capacitação em disciplinas artísticas e esportivas com a aprendizagem e a reflexão sobre diversos aspectos da Aids e da SSR, através de diferentes iniciativas como as oficinas de circo, fanfarra, historietas, cinema, vôlei, violão, teatro e rádio. Nestes espaços de atuação são aplicadas técnicas grupais e oferecidos materiais didáticos produzidos por diferentes grupos juvenis e promotores comunitários. Além disso, são ­convocados

metodologia de trabalho

novas institucionalidades e experiências participativas

275


Centros Públicos de Saúde e membros de organizações sociais para que se envolvam na ­coordenação das atividades educativas. Entre as atividades da Red de Jóvenes por la Salud encontram-se a coordenação de atividades de prevenção em oficinas e apresentações culturais e esportivas em escolas, centros culturais, organizações comunitárias, refeitórios etc. Também foram organizados eventos massivos de promoção cultural e prevenção de Aids como festivais, recitais etc. Os produtos dos grupos são diversificados: cinco curtas cinematográficos, uma revista sobre esporte e Saúde Sexual e Reprodutiva, quatro historietas, dois CDs interativos, um manual de fanfarra e um spot. Entre os produtos para trabalhar com outros jovens podem ser citados os cinco curtasmetragens produzidos pela Red de Jóvenes por la Salud (RJS): La amistad, La tentación de Tanito, El hueco, Luly, Martí e Valeria.

instrumentos

A partir da experiência da Diretoria de Epidemiologia e Prevenção da Fundación Huésped no desenvolvimento da estratégia “Cultura e Saúde” desde o ano 2000, em 2005 formou-se a Red de Jóvenes por la Salud (RJS), hoje composta por mais de 200 jovens de entre 14 e 24 anos, pertencentes a 11 grupos juvenis da Região Metropolitana de Buenos Aires, Argentina.

processos de formação

ALIANÇAS a. Fundación Crear Vale la Pena

[Fundação filantrópica] Apoio técnico.

como colabora com a experiência

b. Dirección Nacional de Juventud, Ministerio de Desarrollo Social

como colabora com a experiência

[Órgão público nacional]

Apoio financeiro.

[Órgão público estatal de caráter regional] como colabora com a experiência  Apoio político.

c. Ministerio de Salud de la Provincia de Buenos Aires

[Agência multilateral] Apoio financeiro.

d. Fundo Mundial de Luta contra a Aids

como colabora com a experiência

e. Desde Abajo Cine

[tipo de organização: aparentemente não há equivalência] Apoio técnico.

como colabora com a experiência

[tipo de organização: aparentemente não há equivalência] Apoio político.

f. Asociación Civil El Culebrón Timbal

como colabora com a experiência

[Agência de cooperação internacional (bilateral)] como colabora com a experiência  Apoio financeiro.

g. Embaixada Real dos Países Baixos

[Órgão público estatal de caráter regional] como colabora com a experiência  Apoio político.

h. Dirección de Epidemiología

i. Comissão Europeia

[Agência de cooperação internacional (bilateral)] Apoio financeiro.

como colabora com a experiência

fortalezas da experiência

276

1ª A revalorização de experiências, conhecimentos, habilidades e potencialidades dos atores envolvidos em uma iniciativa com estas características se constitui em ponto-chave para o seu sucesso. É importante criar espaços horizontais de participação e debate; na medida em que todos os atores participam do processo e se apropriam de uma metodologia de trabalho, gera-se maior sustentabilidade em longo prazo.

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


2ª A experiência foi sistematizada mediante o desenho de um modelo de intervenção aprovado, na prática, com resultados positivos. Esta metodologia e as lições aprendidas na iniciativa estão sendo transferidas para Centros Públicos de Saúde, grupos comunitários e organizações sociais na região e em outras províncias do país, para facilitar o acesso das populações mais vulneráveis. 3ª O papel do Estado é fundamental para garantir os recursos humanos e materiais necessários para proporcionar cobertura adequada a toda a população.

debilidades da experiência

1ª Surgiram problemas relacionados com a falta de cultura associativa entre os grupos e organizações da comunidade, o que dificultou inicialmente a possibilidade de articulação em nível local. Para enfrentar estas limitações realizou-se, em primeiro lugar, um trabalho de fortalecimento institucional dos atores comunitários, para depois incentivar a organização e o desenvolvimento de redes locais e interdistritais. 2ª Outro problema encontrado na prática se refere à dificuldade dos atores locais para convocar adolescentes e jovens, especialmente aqueles menos incluídos na vida comunitária (estão fora do sistema educativo ou não entraram no mercado de trabalho), que constituem uma população-objetivo prioritária. 3ª Dificuldades para o financiamento e a sustentabilidade das ações por parte das organizações sociais e dos grupos juvenis em áreas de alta concentração de pobreza; por esse motivo foram capacitados em programação e gestão e promoveram-se o envolvimento e a articulação com outros atores sociais e com o Estado, através de políticas públicas. A estratégia “Cultura e Saúde” foi efetiva para a mobilização juvenil e permitiu convocar setores não atraídos por estratégias tradicionais de educação sanitária. Ao contrário das tradicionais palestras e oficinas informativas, utilizam-se dispositivos culturais como espaços de criação – recreação –, comunicação e expressão para elaborar mensagens saudáveis entre pares através do desenvolvimento de um processo organizativo dos grupos juvenis e seu reconhecimento como ator social relevante na comunidade local. Como parte do impacto das ações, identificou-se aumento no conhecimento e na aplicação de medidas de promoção e prevenção da saúde por parte dos/das jovens. Houve melhorias no acesso aos serviços de saúde e educação, dada a maior aproximação com Centros Públicos de Saúde e membros das comunidades sensibilizados pelo tema. Entre outros resultados estão a aquisição e a aplicação de ferramentas por parte dos grupos juvenis para abordar problemas como a violência, a discriminação e a iniquidade de gênero, o desenvolvimento de habilidades artísticas e esportivas específicas, capacidade de planejamento e gestão e incorporação de ferramentas de comunicação por parte dos grupos juvenis, assim como o reconhecimento por parte dos diversos atores envolvidos com relação às capacidades, habilidades e potencialidades dos/das jovens. Este reconhecimento repercutiu nas comunidades com relação à imagem negativa da população jovem em situação de vulnerabilidade.

como se expressa a participação cidadã

Ao convocar setores não atraídos por estratégias tradicionais de educação sanitária, a produção e a difusão de mensagens entre pares facilitou a apropriação e a aplicação de práticas saudáveis, gerou a autovalorização dos/das jovens e o reconhecimento de outros atores sociais, fomentando o diálogo entre as gerações. Os/as jovens criaram a Red de Jóvenes por la Salud (RJS) em 2005, envolvendo 11 grupos da Região

quais mudanças e inovações foram introduzidas com a experiência?

novas institucionalidades e experiências participativas

277


Metropolitana de Buenos Aires (200 jovens entre 14 e 24 anos) que estão transmitindo o modelo de intervenção (em 2006 chegaram a mais de 6 mil jovens em seis províncias argentinas). A Fundación Huésped desenvolve outras estratégias dirigidas à prevenção em população jovem que funcionam de forma articulada com o trabalho dos grupos juvenis e da Red de Jóvenes por la Salud. No contexto das estratégias implementadas com atores vinculados à juventude tanto na Argentina como em outros em países da América Latina, a Fundación Huésped está envolvida em uma iniciativa regional orientada para identificar experiências similares e apoiar o desenvolvimento de novos potenciais, facilitando o intercâmbio e a transferência para favorecer a sinergia entre os diferentes grupos juvenis que abordam o problema da Aids em nível latino-americano. Esta iniciativa, chamada “Red Latinoamericana de Jóvenes con trabajo en VIH/SIDA”, envolve não só grupos e organizações juvenis, mas também organizações que trabalham com jovens nestes temas, pensando na contribuição do diálogo entre gerações e no enriquecimento mútuo que significa a participação ativa e decisiva de jovens e adultos. Atualmente este trabalho é realizado em seis países (Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile, Bolívia e Peru), com a ideia de ampliar a iniciativa ao restante da região em médio prazo.

observações sobre o desenvolvimento posterior/atual da experiência

Com o prêmio recebido em 2006 no Concurso y Expo Virtual Latinoamérica de Proyectos, a experiência da Red de Jóvenes por la Salud está sendo replicada por meio de mostras culturais itinerantes sobre a juventude e a Aids. Para o segundo semestre estão previstos três festivais – em La Matanza, San Fernando e Almirante Brown –, para os quais se conta com o apoio da Universidad de La Matanza, do município de San Fernando e da Dirección de Juventud de Almirante Brown, respectivamente. Mais de 980 jovens participaram de oficinas culturais e por volta de 8 mil tomaram parte de atividades de prevenção comunitária. Três estudos em áreas de intervenção mostraram melhorias no acesso ao atendimento, uso de preservativo/MAC, informação sobre SSR – AIDS – ITS, entre outros indicadores.

observações gerais

278

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


Programa Integral de Separação, Manejo, Educação, Processamento e Aproveitamento dos Resíduos Sólidos México, Veracruz, Teocelo

nível de desenvolvimento da iniciativa

Municipal / Comunal / Distrital

área temática principal em qual se inscreve a experiência  áreas complementares

Meio Ambiente.

Educação Ambiental.

temas transversais com os quais a experiência busca contribuir  beneficiários

Participação.

População em geral.

área de atenção

Rural.

nome e tipo da organização que coordena a iniciativa  ano de início da experiência

Prefeitura de Teocelo, Veracruz (órgão público municipal)

2001

As atividades produtivas e as domésticas geram milhares de toneladas de lixo – aproximadamente 82% dele é formado por matéria orgânica, a qual se compõe de resíduos alimentícios, resíduos dos jardins e papel. Não se conta com um aterro sanitário apropriado para o depósito desses resíduos, nem com os recursos para construí-lo, e por esse motivo o município incorre em gastos com o aluguel de um terreno. Somado a isso, a falta de uma cultura de separação do lixo impede a reciclagem dos recursos inorgânicos, tendo como consequência a poluição do meio ambiente.

qual situação busca reverter ao impulsionar tal experiência?

O propósito principal deste programa é o desenvolvimento de uma alternativa para diminuir os resíduos sólidos no município e seu aproveitamento para o desenvolvimento da comunidade e dos setores produtivos. A alternativa que se sugere consiste na implementação da técnica de lombricompostagem e na separação adequada dos resíduos sólidos em orgânicos e inorgânicos. Esta alternativa é eficiente em termos econômicos e de sustentabilidade, já que consiste em prescindir do depósito utilizado e aproveitar o produto gerado a partir do tratamento dos resíduos sólidos como fertilizante em atividades alternativas agrícolas. Além disso, o problema dos resíduos inorgânicos se soluciona mediante um processo de seleção de materiais e reciclagem.

descrição

objetivos

1º Desenhar alternativas para o manejo dos resíduos sólidos. 2º Desenvolver uma cultura de respeito pelo meio ambiente mediante a separação adequada dos resíduos. 3º Dotar os produtores agrícolas de adubo para o desenvolvimento de alternativas de cultivo.

resultados alcançados

1º Conseguiu-se desenhar um sistema de coleta e reciclagem tanto dos resíduos orgânicos como dos inorgânicos. No primeiro utilizou-se uma técnica inovadora de transformação dos resíduos em um produto potencial para uso em atividades agrícolas. No segundo, a coleta e a reciclagem para voltar a utilizar os materiais obtidos. A Prefeitura se encarregou da coleta gratuita, sem custo algum para a população participante do programa de separação dos resíduos.

novas institucionalidades e experiências participativas

279


2º Mediante a difusão do programa conseguiu-se que a população tomasse consciência da importância da classificação do lixo e dos benefícios trazidos para o meio ambiente. 3º Os produtores agrícolas puderam constituir estufas de cultivos alternativos ao café com a doa­ção de sementes para plantio e a doação periódica de adubo orgânico.

breve descrição das etapas-chave no desenvolvimento da experiência

1ª Desenho e equipamento do centro de lombricompostagem. Integra-se de lugares e condições artificiais para o cultivo. 2ª Criação de um centro de armazenamento de resíduos sólidos como alumínio, papelão, ferro, papel, plástico e vidro. 3ª Difusão do programa de casa em casa com a participação de estudantes voluntários. Para isto, receberam previamente um treinamento. 4ª Coleta dos resíduos pelo município mediante dois caminhões que se especializam em resíduos orgânicos e inorgânicos. Para o tratamento dos resíduos orgânicos foi criado um Centro de Compostagem em terreno localizado na periferia, com a aprovação dos moradores e o compromisso de preservar condições de imagem e salubridade. Sua instalação requereu a aquisição de minhocas, a construção de compostores de rede e o desenho de uma máquina para moer o lixo orgânico.

metodologia de trabalho

A estratégia para a separação do lixo radicou em incentivar a participação dos cidadãos mediante programas de educação ambiental nas escolas primárias e secundárias, campanhas de difusão nas casas e esquemas de incentivos. Para isto, os professores nas escolas e a associação de estudantes voluntariamente participaram na difusão do programa. Além disso, conta-se com Chefes de Rua para a promoção e a divulgação dos benefícios do programa. O sistema de coleta consiste em recolher o lixo em dois caminhões, um para os resíduos orgânicos e outro para os inorgânicos.

instrumentos

A organização alcançada e os benefícios obtidos pelos produtores agrícolas com a produção do adubo permitiram incorporar e consolidar a participação social como um mecanismo funcional para o sucesso do programa.

processos de formação

fortalezas da experiência

1ª Utiliza um sistema inovador para o manejo dos resíduos orgânicos. 2ª Consegue incorporar e consolidar a participação da população. 3ª Diminuição em geral de custos econômicos e ambientais para a comunidade.

como se expressa a participação cidadã

A participação cidadã é fundamental para a consecução dos objeti-

vos, pois sem ela a transformação dos resíduos orgânicos em adubo orgânico é impossível. Dessa forma, a separação adequada e permanente dos resíduos permite o aproveitamento da maior parte dos resíduos e gera economia tanto para o município como para a população em geral. A participação da cidadania se consegue na fase de implementação. A implementação da técnica de lombricompostagem é uma inovação em nível municipal no país porque vai além dos sistemas tradicionais de coleta municipais. Ou seja, a maior parte dos municípios se concentra na qualidade do processo de coleta, e não nas alternativas de destino e utilização final dos resíduos. Com esta mudança em nível local, o programa contribui para o desenvolvimento sustentável do município porque, por um lado, soluciona o problema do lixo, e, por outro, contribui para o desenvolvimento de atividades alternativas de produção agrícola. Este programa permitiu reduzir os resíduos em 20%, já que conseguiu tratar aproximadamente 80% dele.

quais mudanças e inovações foram introduzidas com a experiência?

280

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


Resolução de Conflitos Ambientais por causa do Tráfico de Resíduos Tóxicos nas Províncias de Arica e Parinacota Chile, Arica e Parinacota, Arica

nível de desenvolvimento da iniciativa

Municipal / Comunal / Distrital

área temática principal na qual se inscreve a experiência  áreas complementares

Meio Ambiente.

Saúde e Serviços Sociais.

temas transversais com os quais a experiência busca contribuir

Qualidade.

Organizações não governamentais para a proteção do meio ambiente e de serviço local ou mobilização popular, Associação de Moradores, órgãos públicos, cidadãos em geral, técnicos e líderes da comunidade.

perfil dos participantes da experiência

beneficiários

População em geral.

área de atenção

Urbana.

nome e tipo da organização que coordena a iniciativa  ano de início da experiência

Corporación Servicio Paz y Justicia (SERPAJ), Arica

1998

A existência de solos contaminados com metais pesados afeta grave e permanentemente a saúde das pessoas que residem nos povoados de Los Industriales I, II, III e IV e Cerro Chuño. Para superar esta situação, a SERPAJ propõe um processo de formação dirigido à constituição de um Plano Local de Desenvolvimento, que permita identificação, escolha e priorização de problemas ambientais locais. Este processo permite a criação e a consolidação da organização Agrupação de Defesa do Meio Ambiente (ADEMA).

qual situação busca reverter ao impulsionar tal experiência?

A ADEMA foi apoiada e assessorada, no início, pela SERPAJ, que incentiva a participação cidadã para transformar, mediante ações de não-violência, os problemas ecológicos. Propõe-se a defesa do habitat a partir de ações concretas, destacando o Plano Comunitário de Meio Ambiente entregue às autoridades, o desenvolvimento de pesquisa sobre do tráfego de substâncias contaminadoras e a análise de produtos químicos tóxicos presentes na área. A iniciativa postula uma metodologia de Resolução de Conflitos Ambientais baseada na Não-Violência Ativa, assentando as bases para futuras mobilizações, além de posicionar o tema na agenda pública local e nacional a partir da ação e da liderança cidadã. Como conquista teve-se o translado transitório dos depósitos de materiais tóxicos para outra área da comuna e com melhores medidas de proteção ambiental.

descrição

objetivos

1º Priorizar a Resolução dos Conflitos Ambientais gerados pelo tráfego de resíduos de minerais tóxicos provenientes do Primeiro Mundo que afetam o solo e o subsolo dos habitantes de Arica e Parinacota. 2º Sensibilizar e incentivar a sociedade civil a um compromisso por um meio ambiente digno, livre de poluição e com respeito aos direitos do povo. 3º Determinar a magnitude do dano causado aos solos e à saúde física e mental das pessoas

novas institucionalidades e experiências participativas

281


afetadas pelo impacto no meio ambiente e buscar formas de reparação de acordo com a ­Declaração Universal dos Direitos Humanos. resultados alcançados

1º Para a resolução de conflitos ambientais procurou-se, por um lado consolidar a organização de base, com prévia sensibilização da sociedade civil sobre os direitos ambientais, o dano à saúde, a importância de participar na resolução de conflitos e nas políticas ambientais; por outro, procurou-se sensibilizar as autoridades políticas e os serviços públicos com relação à importância do tema e os prejuízos à saúde que estes resíduos tóxicos, presentes no território, geram. 2º As linhas de ação implementadas possibilitaram ampla adesão ao diagnóstico ambiental contido no Plano Comunitário e a aproximação do tema científico aos grupos populares (Estudo de Prevalência). Houve fortalecimento da organização de base (340 pessoas inscritas na ADEMA). Foi efetiva petição à Municipalidade de Arica de um recurso de proteção que conseguiu estabelecer multas aos contaminadores e maiores obrigações ao Serviço de Saúde. 3º Foram realizados Resumos Sanitários e Administrativos para funcionários públicos; e substituir algumas autoridades locais; erradicação de vazadouros e vetores; pavimentação de ruas; revisão de aquedutos e translado de depósitos; evacuação e atendimento social à população infantil do setor; na fase de translado de tóxicos, entrega ao município, por parte do Ministério de Bens Nacionais, do local onde estiveram acumulados por dez anos os resíduos tóxicos; realização de estudos ambientais por parte da Municipalidade sobre o Vazadouro Municipal, que envolveu melhoria no tratamento de lixo e a instalação de um novo vazadouro (em Quebrada Acha); criação da Oficina Comunal Ambiental.

breve descrição das etapas-chave no desenvolvimento da experiência

1ª Diagnóstico, fase de identificação do problema ambiental e de análise científica da presença de resíduos tóxicos. 2ª Desenho e implementação de estratégia de mobilização social do Plano Comunitário de Meio Ambiente e de comprometimento da comunidade e das autoridades. 3ª Execução de ações, mobilização de apoios sociais e institucionais locais e nacionais, além da assinatura de compromissos e convênios entre a ADEMA e autoridades comunais e regionais. Foi implementada metodologia baseada na pedagogia de resolução de conflitos ambientais e na aplicação de princípios de não-violência ativa, mediante a qual se busca transformar os problemas em “conflitos” e dessa maneira mobilizar os atores para sua resolução.

metodologia de trabalho

A iniciativa incidiu na consolidação de uma consciência nacional, na atenção e na priorização das consequências da mineração; como tema na agenda pública de Arica e Parinacota, envolveu compromissos do município sobre o Vazadouro Municipal e a criação da Oficina Comunal Ambiental. Inovadora pela metodologia de trabalho – que estimula a interação de todos os atores em seus deveres e direitos, possibilitando alto nível de conversações em mesas técnicas, entre moradores afetados e autoridades e chefes de serviços –, também consegue confrontar e comprometer as autoridades em ações resolutivas, além do uso da ferramenta denominada “Mapa da Estrutura do Conflito”, com o qual as pessoas passam do problema ao conflito, buscando soluções aos problemas, através da iniciativa dos afetados.

instrumentos

O processo fortaleceu a organização de base de moradores, convertendo-se em ator principal do processo. A liderança foi assumida pelas mulheres, redimensionando seu papel no povoado e na tomada de decisões.

processos de formação

282

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


ALIANÇAS

[Associação de moradores] Apoio de voluntariado.

a. Junta de Vecinos de Los Industriales

como colabora com a experiência

[Associação de moradores] Apoio de voluntariado.

b. Agrupación de Defensa del Medio Ambiente

como colabora com a experiência

c. Servicio de Salud Arica

[Órgão público nacional] Apoio técnico (amostras de sangue).

como colabora com a experiência

d. Municipalidad de Arica[Órgão público municipal]

como colabora com a experiência

Apoio técnico.

[Organismo nacional de caráter regional] como colabora com a experiência  Apoio técnico e cogestão.

e. Comision Nacional del Medio Ambiente

[ONG internacional] como colabora com a experiência  Apoios técnico e em espécie, treinamento.

f. Alianza Internacional contra el Plomo

g. “Terram”

h. “Renace”

[Organização de defesa] Apoio técnico e treinamento.

como colabora com a experiência

[tipo de organização: sem resposta] Apoio técnico e treinamento.

como colabora com a experiência

i. Fiscalía del Medio Ambiente

[Órgão público municipal] Apoio técnico e cogestão.

como colabora com a experiência

fortalezas da experiência

1ª A inclusão inicial e mobilizadora de uma ONG especializada em Direitos Humanos. 2ª A incursão da organização nesta temática.

debilidades da experiência

1ª Deslocamento das organizações mais tradicionais (juntas de moradores). 2ª Momentos eleitorais que estão condicionados o apoio. 3ª Temor às autoridades.

como se expressa a participação cidadã  Atores: cidadãos em geral, autoridades públicas, técnicos, líderes da comunidade. Mecanismos: conselhos, assembleias, mesas de trabalho, pesquisa toxicológica. Participação: diagnóstico, consultas, desenho e implementação do Plano Comunitário de Meio Am-

biente, avaliação e tomada de decisões com relação às iniciativas e às ações a desenvolver. quais mudanças e inovações foram introduzidas com a experiência? O

desenvolvimento de uma nova temática: a contaminação por resíduos tóxicos. Inclusão de novos atores (o que implica participação e cogestão): a comunidade organizada e diretamente afetada pela contaminação. Desenvolvimento de novos enfoques, estratégias e metodologias: Mapa da Estrutura do Conflito. Modificações na gestão interna: mudanças no posicionamento do município. Novas formas associativas, articulação com outros arranjos institucionais: ADEMA. Pioneiro no campo da abordagem ambiental a partir da comunidade. Mudanças significativas na situação-problema. Mudanças significativas no entorno e na gestão das práticas. Caráter replicável das práticas. Institucionalização de algumas práticas que faziam parte da experiência.

observações sobre o desenvolvimento posterior/atual da experiência

novas institucionalidades e experiências participativas

283


Melhoria das Condições de Saneamento Ambiental em quatro Assentamentos Humanos do Cone Norte de Lima Peru, Lima, Comas

nível de desenvolvimento da iniciativa

Municipal / Comunal / Distrital

área temática principal em qual se inscreve a experiência  áreas complementares

Infraestrutura e Serviços Públicos.

Meio Ambiente.

temas transversais com os quais a experiência busca contribuir  perfil dos participantes da experiência  beneficiários

Participação.

Juntas de Vizinhos, entidades públicas, ONGs nacionais e internacionais.

População em geral.

área de atenção

Urbana.

nome e tipo da organização que coordena a iniciativa  ano de início da experiência

Associação de Promoção e Desenvolvimento Social – APDES

2004  |  vigência  Não

A experiência busca facilitar o acesso a serviços de saneamento ambiental (água potável, rede de esgotos, áreas verdes e manejo de resíduos sólidos) enquanto promove a corresponsabilidade para a gestão de espaços e serviços, o fortalecimento da capacidade técnica, administrativa, econômica e financeira dos habitantes da área.

qual situação busca reverter ao impulsionar tal experiência?

O projeto consiste em melhoria de qualidade de vida, mediante o fortalecimento das capacidades da população para identificar seus problemas e a busca de alternativas de solução. Para isso foi implementado projeto para a gestão da água e recursos sólidos, em que transversalmente se integrou a participação da APDES, do SEDAPAL (Serviço Água Potável e Rede de Esgotos de Lima), da Municipalidade de Comas, dos habitantes e suas respectivas organizações comunais.

descrição

objetivos

1º Melhorar a qualidade da saúde ambiental no cone norte. 2º Desenvolver instrumentos para a implementação e a reprodutibilidade dos modelos de saneamento. 3º Desenvolver capacidades para o exercício de direitos e deveres de populações marginalizadas, integrando os moradores à estrutura formal da cidade.

resultados alcançados

1º Conseguiu-se que a população conte com acesso a serviços de saneamento ambiental: água potável, rede de esgotos, áreas verdes e manejo de resíduos sólidos. 2º Organizações do Estado integraram esta experiência aos seus planos futuros de ação em zonas similares, a fim de produzir resultados positivos novamente. 3º Além disso, institucionalizaram-se modelos participativos úteis para implementar serviços de saneamento e formação de cidadania entre os habitantes.

breve descrição das etapas-chave no desenvolvimento da experiência

284

1ª Abril de 2004 – Formação de um consórcio estratégico integrado pela APDES e pelas Juntas de Vizinhos e Arquitetos Sem Fronteiras (ASF), para aprovar projeto integral de saneamento.

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas


2ª Julho de 2004 – Sensibilização da população e desenho técnico da obra. 3ª Novembro de 2004 – Capacitação das famílias em uma Escola Ambiental. 4ª Janeiro de 2005 – Construção do sistema de resíduos sólidos e melhoria da qualidade da água. Criação de áreas verdes. 5ª Monitoramento e acompanhamento das obras. Uma das conquistas mais importantes foi o trabalho dos líderes para o desenvolvimento da experiência. Eles foram capacitados para gerir e manter os sistemas instalados individual e comunitariamente. Foram reforçadas as condições para participar nos espaços conveniados de cada comunidade e também distrital, como representantes legítimos de suas organizações comunais. Ao mesmo tempo, mobilizaram a comunidade para a participação ativa, com um sentido de responsabilidade, solidariedade e trabalho, e a comunidade assumiu os trabalhos comunais para abertura das valetas.

metodologia de trabalho

Este projeto permitiu desenhar um modelo integral e participativo válido para o saneamento ambiental das zonas marginalizadas. Desenvolveu-se o manejo adequado dos resíduos sólidos através da tecnologia não convencional, institucionalizando os canais de comunicação entre o governo local e a sociedade civil.

instrumentos

Dinamizaram-se as organizações sociais e surgiram lideranças com nova visão em relação a seus problemas e soluções, em que a cidadania assume um novo papel no desenvolvimento de suas comunidades, incorporando, na prática, além das demandas, participação na cogestão para a solução de seus problemas. O sentido de corresponsabilidade agora se traduz não só em participação para a construção e uso dos sistemas e tecnologias, mas também no estabelecimento de inter-relações e negociação nas instâncias de participação local, tais como o orçamento participativo e a negociação de convênios de saúde e meio ambiente.

processos de formação

ALIANÇAS a. APDES

[ONG de serviço local ou mobilização popular] Capacitação da população e assessoria técnica à obra.

como colabora com a experiência

[Agência de cooperação internacional (bilateral)] como colabora com a experiência  Contribuição no financiamento e na avaliação do projeto.

b. ASF – Arquitetos Sem Fronteiras

[Associação de moradores] como colabora com a experiência  Organização do trabalho comunal.

c. Junta de Vizinhos

d. SEDAPAL

[Empresa estatal]

Avaliação do expediente técnico, agilização de trâmites e desoneração dos custos de supervisão.

como colabora com a experiência

[Órgão público municipal] como colabora com a experiência  Legalização das instâncias governativas comunais, aprovação de ordenanças para o manejo de resíduos sólidos, empréstimo de maquinaria e logística.

e. Municipalidade de Comas

fortalezas da experiência

1ª Participam diretamente numerosas associações civis da área (as Juntas Diretivas dos Assentamentos, o Comitê de Gestão de Resíduos Sólidos e o Comitê Municipal de Administração da Água Potável), e dessa forma toda a população é envolvida.

novas institucionalidades e experiências participativas

285


2ª O município de Comas incorporou e institucionalizou a experiência relativa ao manejo dos resíduos sólidos, oferecendo o serviço de coleta e a disposição final de resíduos em uma zona antes inteiramente desatendida. 3ª Além disso, o SEDAPAL validou a experiência do sistema de rede de esgotos condominial, mudando a estratégia de ampliação do serviço em áreas de ladeiras e marginais.

debilidades da experiência

1ª A continuidade e a persistência do projeto estão em jogo porque a manutenção dos sistemas e as construções implementadas, uma vez acabado o trabalho da ONG, deixou de estar em suas mãos. 2ª São necessários recursos econômicos, assessoria profissional e dedicação das famílias, aspectos de difícil garantia sem financiamento externo. Participação em espaços públicos como o Conselho de Coordenação Local (CCL) ou as reuniões com o SEDAPAL. Na construção e na manutenção das obras se notava com mais facilidade a participação da população em organização comunal gratuita.

como se expressa a participação cidadã

Melhoria dos níveis de salubridade na região. Participação coletiva de diferentes atores no desenvolvimento local. Reformulação do papel ativo do cidadão com relação ao papel do Estado no respeito aos seus direitos. Reprodutibilidade da experiência em zonas de características similares.

quais mudanças e inovações foram introduzidas com a experiência?

A experiência gerou capacidades organizativas na população, criando capital social e melhorando as condições de vida nos assentamentos humanos em que se desenvolve. Além disso, conseguiu que instituições do Estado reestruturem suas estratégias e relações com setores antes marginalizados da população.

observações gerais

286

sociedade civil e novas institucionalidades democráticas na américa latina: dilemas e perspectivas




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