“NUNCA ANTES NA HISTÓRIA DESSE PAÍS”...? UM BALANÇO DAS POLÍTICAS DO GOVERNO LULA Fundação Heinrich Böll Rua da Glória, 190 - 7º andar Glória - Rio de Janeiro - RJ - CEP. 20241-180 00 55 21 3221 9900 www.boell.org.br Organizadora Marilene de Paula Artigos Marijane Vieira Lisboa, Guacira Cesar de Oliveira, Marilene de Paula, Alexandre Ciconello, Danilo Marcondes de Souza Neto, Camila Lissa Asano e Lucia Nader, Lauro Mattei e Luis Felipe Magalhães Coordenação Editorial Marilene de Paula Revisão Marilene de Paula e Sabrina Petry Revisão de Conteúdo Marilene de Paula e Dawid Bartelt Capa, projeto gráfico e diagramação Monte Design Impressão Ediouro Gráfica S.A. Tiragem: 1.000 exemplares ISBN 978-85-62669-01-9 CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ “Nunca antes na história desse país”...? : um balanço das políticas do governo Lula / organizadora Marilene de Paula. -- Rio de Janeiro, RJ : Fundação Heinrich Böll, 2011. -- 152p. ; 22cm -- Inclui índice ISBN 978-85-62669-01-9 1. Brasil - Política e governo, 2003-2010. 2. Política pública. I. Paula, Marilene de. II. Fundação Henrique Böll. III. Título: Um balanço das políticas do governo Lula. 11-1461 CDD: 320.981 CDU: 32(81) 15.03.11 16.03.11 025074
Copyleft. É permitida a reprodução total ou parcial dos textos aqui reunidos, desde que seja citado(a) o(a) autor(a) e que se inclua a referência ao artigo original.
ORGANIZAÇÃO MARILENE DE PAULA
indice 8
PREFÁCIO | DAWID BARTELT
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INTRODUÇÃO | MARILENE DE PAULA
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BALANÇO DA POLÍTICA AMBIENTAL DO GOVERNO LULA: GRANDES E DURADOUROS IMPACTOS | MARIJANE VIEIRA LISBOA
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AVANÇOS E RECUOS NAS POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE E DIREITOS PARA AS MULHERES | GUACIRA CESAR DE OLIVEIRA
60
A PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL NA ERA LULA | MARILENE DE PAULA
76
OS AVANÇOS E CONTRADIÇÕES DAS POLÍTICAS DE DIREITOS HUMANOS NO GOVERNO LULA | ALEXANDRE CICONELLO
99
A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA NOS OITO ANOS DO GOVERNO LULA: LEGADOS E LIÇÕES PARA A INSERÇÃO DO BRASIL NO MUNDO | DANILO MARCONDES DE SOUZA NETO
116
REFLEXÕES SOBRE A POLÍTICA EXTERNA EM DIREITOS HUMANOS DO GOVERNO LULA | CAMILA LISSA ASANO E LUCIA NADER
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A POLÍTICA ECONÔMICA DURANTE O GOVERNO LULA (2003-2010): CENÁRIOS, RESULTADOS E PERSPECTIVAS | LAURO MATTEI E LUIS FELIPE MAGALHÃES
prefacio DAWID BARTELT Doutor em História pela Freie Universität Berlin e Diretor da Fundação Heinrich Böll no Brasil.
Nunca na história do Brasil uma eleição presidencial esteve tão carregada de significado simbólico como a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002. Ela rompeu com a longa tradição das eleições presidenciais até então, nas quais o poder político e o poder econômico andavam juntos e a favor de uma elite tradicional, cujas bases de poder remetem ao passado colonial e escravista, condição na qual o país viveu durante cerca de quatro dos cinco séculos de sua existência. O fato de que o mais alto representante era uma pessoa sem curso superior, de origem pobre, de família retirante, com uma leve lesão corporal e de discurso popular, deu visibilidade ao “povo brasileiro”, que até então era um ente miticamente enaltecido pelo discurso político tradicional, mas sempre desclassificado e excluído enquanto sujeito do processo político e de uma cidadania a ele sempre negada. É importante lembrarmos que esse governo foi levado ao poder também por uma onda de apoio das ONGs e movimentos sociais e, principalmente no primeiro mandato, representantes desses segmentos foram incorporados ao governo. Como as esperanças voaram altas, a queda devido às realidades políticas oferecidas pelos compromissos assumidos com as forças tradicionais e estruturas internacionais, foi dura. Hoje, a pergunta se a sociedade civil, depois de oito anos de governo Lula, saiu fortalecida ou enfraquecida permanece em aberto. “Nunca antes na história deste país”? Convém não esquecer que o rótulo “histórico” não pode ser outorgado pelos autores dos atos em questão, nem pelos contemporâneos. A avaliação dos anos 2003 a 2010 e a decisão se foi um período “histórico” caberá em última instância aos historiadores e por definição só será possível a luz de tempos e governos posteriores.
Mas é possível constatar grandes conquistas e avanços inegáveis da gestão Lula. O país hoje é outro, e os textos aqui reunidos fazem jus a isso. Mas o país também continua sendo igual, em muitos aspectos. Raramente a autopercepção de um governo combina com as observações empíricas. Isto porque o governo alimentou muitos programas de distribuição de renda e benefícios, mas pouco tocou nas estruturas responsáveis pela manutenção e reprodução das desigualdades e déficits, seja na área da segurança pública, no combate à pobreza ou na garantia e implementação dos direitos. As análises reunidas nesta publicação demonstram que em muitos aspectos e setores, a política de governo encabeçada por Lula não foi tão inédita assim e nem sempre significou um avanço, como fica demonstrado, entre outros exemplos, no caso da reforma agrária ou dos direitos humanos na política externa brasileira. Talvez nunca na história da democracia brasileira um governo resolveu posicionar-se internacionalmente de forma tão vergonhosa, abstendo-se em votações no Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre violações flagrantes e endêmicas de direitos humanos na Coréia de Norte e na República Democrática do Congo, entre outros, ou qualificando presos políticos em Cuba como criminosos. Ainda, a maneira do presidente de governar de forma imediata, estabelecendo uma relação direta e quase-pessoal – também mítica – entre o governante e o “povo”, tem antecedentes na história brasileira. Esta publicação não pretende empreender um balanço da política do governo Lula, mas das políticas que a Fundação Heinrich Böll considera chaves e nas quais atua no Brasil. Analisa as políticas sempre pela perspectiva dos direitos, da justiça social e ambiental, que são, mais que nunca, indissociáveis. E se devidamente reconhecemos que o país “emergiu” e deu um salto para a modernidade, devemos dizer também que o governo Lula falhou em perceber alguns sinais importantíssimos para os tempos de hoje. A mensagem de que produzir mais, distribuir “bolsas populares” para que mais pessoas consumam mais, e que isso irá retirar a população da pobreza e levará o país ao futuro, é errônea e perigosa. São os mais pobres que mais sentem os efeitos imediatos e de longo prazo das degradações ambientais e das mudanças climáticas. Executar mega-projetos devastadores, investir na energia nuclear - de custos e riscos absurdos -, legalizar o cultivo de transgênicos, tudo em nome do desenvolvimento, é o contrário de uma política sustentável digna de nome. Uma mudança simbólica, portanto, por si só não é sustentável em relação a uma mudança material da política. A ruptura com a política tradicional aconteceu, mas parece que foi mais simbólica do que real. Empurrar o carro do Brasil na velha estrada do desenvolvimentismo e ignorar as urgências da proteção ambiental e climática é provocar acidente certo.
introducao MARILENE DE PAULA Mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais, Coordenadora da área de Direitos Humanos da Fundação Heinrich Böll.
Em 2002, uma grande expectativa cercava a chegada ao poder do PT e seus aliados. O primeiro governo comprometido com os valores da esquerda brasileira subia a rampa do Planalto e possibilitava a abertura de um leque de iniciativas, que poderiam gerar profundas mudanças sócio-econômicas. A frase famosa, “nunca antes na história desse país”, que dá nome a nossa publicação, foi dita pelo Presidente Lula inúmeras vezes para se referir a essas iniciativas e escolhas. O governo Lula encerra seu período com grande popularidade, relativo crescimento econômico, elevação da taxa de emprego e visibilidade internacional. Mas como podemos avaliar esse período? A Fundação Heinrich Böll convidou nove autores para, em suas áreas de atuação, analisarem as políticas empreendidas pelo governo Lula ao longo de seus dois mandatos. O resultado é essa coletânea de artigos que esperamos possam contribuir para um debate mais amplo sobre os legados desse governo e colocar em perspectiva alguns dos desafios a serem enfrentados por Dilma Roussef, a nova presidenta. No governo Lula, salta aos olhos na leitura dos jornais e nos discursos governamentais o enorme peso dado ao crescimento econômico, conseguido durante o segundo mandado e apontado como um dos acertos desse governo. O país fortaleceu uma matriz profundamente ligada ao agronegócio e ao setor extrativista, capitaneada por petróleo e grãos. Os interesses envolvidos solidificaram alianças entre empresas transnacionais, bancos, fundos de pensão e setores do governo. Organizações Não-Governamentais (ONGs) também foram chamadas para intermediar relações entre afetados e grupos empresariais. Internacionalmente o governo brasileiro pregou também a produção dos agrocombustíveis, como proposta para a redução da fome em países da África, além de gerar abertura de mercados para empresas brasileiras nesses países. Com isso desconsiderou-se a grande crítica quanto a expansão dos agrocombustíveis: os impasses gerados com a produção de
alimentos. Produzir agrocombustíveis tem contribuído para a subida de preços dos alimentos e uma corrida das transnacionais para compra de terra em países subdesenvolvidos, num fenômeno chamado “land grabbing1”. Assim ratificou-se interesses do grande empresariado industrial e do agronegócio brasileiro, nem sempre condizentes com o princípio dos direitos e da sustentabilidade ambiental. A crescente visão de que os problemas ambientais podem e devem ser resolvidos somente via mercado traz algumas preocupações, principalmente se pensarmos que muitas vezes as empresas utilizam-se de um discurso sócio-ambiental, que na verdade “adoça” práticas predatórias aos recursos naturais e prejuízos para as populações que vivem nessas regiões, em especial indígenas, ribeirinhos e quilombolas. Marijane Lisboa, uma de nossas autoras, aponta em seu artigo que os projetos na área ambiental explicitaram a concepção de desenvolvimento imposta por esse governo. A autora observa que sob o governo Lula foram permitidos os cultivos de transgênicos no país, retomados o programa nuclear e a transposição do Rio São Francisco, entraram na agenda do Ministério de Minas e Energia os projetos de construção das hidrelétricas do Rio Madeira, voltou à pauta do Congresso, sob os auspícios da bancada ruralista, a discussão sobre o novo Código Floresta, que reduz as áreas de proteção ambiental na Amazônia. A lógica de perpetuação no poder que subjaz em todo partido dificultou a construção de uma base política comprometida com os valores historicamente apregoados pelo PT, o que gerou alianças com setores oligárquicos da política brasileira e partidos minoritários, nos quais a ideia de um desenvolvimento sustentável estava fora do horizonte político-estratégico. Os embates com ONGs e movimentos ambientalistas também foram a tônica nessa área, o que segundo a autora fortaleceu respostas alternativas no campo das mudanças climáticas e na política de energia do país. Para muitos, os principais ganhos das políticas empreendidas pelo governo Lula estão no campo social. Depois de um período de estagnação profunda, a partir de 2001 os índices das desigualdades sociais, historicamente o maior problema do Brasil, se modificaram favoravelmente e numa velocidade surpreendente. Essas melhorias iniciaram-se com a estabilização da moeda, no Plano Real em 1994, o fim do ciclo inflacionário, o aumento da escolaridade dos brasileiros, iniciada com a ampliação do acesso ao ensino básico desde a década de 1990 e se fortaleceram com o posterior crescimento econômico. As maiores contribuições do Governo Lula foram os aumentos significativos no salário mínimo, principalmente no segundo mandato, gerando ganhos maiores para os assistidos da previdência social e políticas públicas focalizadas para segmentos desfavorecidos. A combinação de todos esses fatores mudou o perfil do trabalhador e gerou um ciclo virtuoso de crescimento da renda proveniente do trabalho, determinando a redução das desigualdades sociais. 1. Mais informações em http://farmlandgrab.org/ e http://www.stwr.org/food-security-agriculture/
Desde 2001 o Índice de Gini2 da renda do brasileiro caiu de 0, 594 para 0, 539, o que comprova os dados de que a renda dos 10% mais pobres cresceu de 2001 a 2009 a um ritmo anual de 7,2%, enquanto que a dos 10% mais ricos apenas 1,4%. O crescimento da classe C, uma “classe média popular” foi talvez um dos maiores fenômenos dos últimos anos. Hoje a classe C, entendida como aqueles que ganham entre R$ 1.115,00 a R$ 4.807,003, representa 50,5% da população, com 93 milhões de pessoas, cujo poder de compra supera as classes A e B. O IPEA4 projeta que, em 2016, o país terá superado a miséria extrema e reduzido a 4% a taxa nacional de pobreza absoluta. Objetivamente isso significou que de 2003 a 2009, cerca de 29 milhões de pessoas saíram da pobreza, representada pelas classes D e E, e ingressaram na classe C. Apesar dessas mudanças substanciais, atingir o nível de país desenvolvido ainda está longe de ser alcançado. E quando analisamos os dados da PNAD por sexo e/ou raça, encontramos desigualdades gritantes entre homens e mulheres, negros e brancos. No ranking do Fórum Econômico Mundial5, que mede a igualdade de gênero em 134 países, o Brasil em 2006 era o 67º e em 2009 passou para 85º, caindo 18 posições. A superação das desigualdades de gênero e raça foram compromissos desse governo, reafirmados durante a posse dos novos ministros. Para atender às demandas desses segmentos o governo Lula criou a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SDH)6, todas com status de ministério, responsáveis por articular e fomentar políticas nas respectivas áreas. Juntas as três secretarias investiram R$ 1,09 bilhão no período de 2003 a 20107. Claro que políticas nessas áreas não foram feitas apenas por esses órgãos, porém é pouco se compararmos às demandas. Três dos artigos da publicação analisam essa questão, ou seja, as políticas focais promovidas pelo governo Lula para a igualdade de gênero, para as minorias raciais e para o respeito aos direitos humanos. 2. O Índice de Gini varia de zero a um, quanto mais próximo de zero mais igualdade. 3. Os estudos da FGV entendem a classe C como aquela com rendimentos que variam de R$ 1.115,00 a R$ 4.807,00, a classe D de R$ 804,00 a R$ 1.114,00 e a classe E com até R$ 803,00. O IBGE classifica de forma diferente, tendo a Classe C rendimentos medidos em salários mínimos que vão de 3 a 8 (R$ 1.620,00 a R$ 4.320,00). 4. IPEA. Comunicado do Ipea nº 58 - Dimensão, evolução e projeção da pobreza por região e por estado no Brasil, 2010. 5. O estudo do Fórum Econômico Mundial analisa vários dados, como expectativa de vida, horas de trabalho de homens e mulheres, taxas de fertilidade e mortalidade materna, taxas de desemprego de homens e mulheres, a existência ou não de legislação que pune a violência contra a mulher, taxas de alfabetização etc. World Economic Forum. The Global Gender Gap Report 2010. Geneva, 2010. 6. Na verdade a Secretaria de Direitos Humanos já existia no governo anterior, porém sem status de ministério. No governo Lula seu orçamento foi incrementado, com gasto de R$ 656 milhões durante o período analisado. 7. Dados disponíveis http://www.inesc.org.br/biblioteca/textos-e-manifestos/Gastos%20para%20direitos%20aumentam %20durante%20governo%20Lula.pdf, acessado em 25/10/2010.
No primeiro desses artigos, Guacira Oliveira investiga se os compromissos assumidos pelo governo Lula quanto à autonomia econômica, a garantia da liberdade sexual e reprodutiva e o enfrentamento da violência e discriminação contra mulheres foram atendidos. O artigo parte da análise orçamentária para diagnosticar que o governo Lula não conseguiu alcançar a maioria das metas previstas no I e II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres – PNPM. Não foi possível, por exemplo, a diminuição da mortalidade materna, apesar de o governo ter enfrentado o problema do aborto inseguro, a partir de medidas tanto do Ministério da Saúde quanto da SPM. Mas no segundo mandato houve recuos. Na tentativa de aumentar a base aliada, o governo se aproximou das bancadas religiosas, inclusive encaminhando ao Congresso para ratificação o Acordo Brasil Vaticano, cujo texto prevê a instituição do ensino religioso em escolas públicas, isenções fiscais e imunidade de entidades religiosas perante leis trabalhistas. Na área da educação as metas para diminuição do analfabetismo foram superadas, mas as matrículas em creches e pré-escolas, que têm uma consequência direta para a dupla jornada das mulheres, tiveram aumento de apenas 0,1%, entre 2008 e 2009. Um ponto positivo, no entanto, foi a criação do Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, em 2007, coordenado pela SPM e a promulgação no Congresso da Lei Maria Penha (nº 11.340/2006), que criou mecanismos para prevenir e punir a violência doméstica e familiar contra as mulheres, bandeira histórica do movimento feminista. A autora aponta, entretanto, que um dos principais problemas é a execução orçamentária que não garante a ampliação da rede de atendimento às mulheres em situação de violência. Há significativos avanços como a criação da SPM e novos compromissos assumidos em razão dos Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres (I e II PNPM), mas inúmeros conflitos estruturais e políticos que deverão estar presentes no governo Dilma Roussef. Tiveram também destaque as políticas desenvolvidas para a população negra. No artigo de minha autoria analiso essas políticas em certas áreas, como saúde, educação, relações internacionais, segurança pública e trabalho. Na área da educação, o Programa Universidade Para Todos (PROUNI) elevou a taxa de ingresso de estudantes no ensino superior, através da disponibilização de bolsas integrais e parciais da rede privada. Dos contemplados cerca de 47% são estudantes negros. Porém, o Programa carece de maior monitoramento de suas ações e há problemas estruturais ligadas à qualidade do ensino oferecido e permanência dos estudantes. A educação pública superior ainda é ocupada majoritariamente por brancos, sejam professores ou alunos. As políticas de ação afirmativa, em especial as cotas raciais, são necessárias e devem ser continuadas, mas são insuficientes para a superação das desigualdades. O Programa Bolsa Prêmio de Vocação para a Diplomacia, do Ministério das Relações Exteriores, uma iniciativa inovadora, foi continuada. Foi criada a SEPPIR e fortalecida a
transversalização do tema em ações e programas dos ministérios e agências governamentais. Essas ações geraram maior visibilidade quanto ao combate ao racismo e à discriminação racial, o que sem dúvida é bastante positivo. No entanto, quando nos debruçamos sobre as principais iniciativas desse governo, encontramos projetos com baixa dotação orçamentária, sem acompanhamento de resultados, descontinuidade de ações e falta de diálogo entre os órgãos responsáveis por sua implementação. A agenda social do governo na área de direitos humanos também foi explorada no artigo de Alexandre Ciconello, com considerações sobre as polêmicas geradas junto a militares e igreja pelo III Programa Nacional de Direitos Humanos. Para o autor outro grande desafio enfrentado pelo governo e com resultados ainda insatisfatórios foi na área da segurança pública. Durante o período do governo Lula houve uma leve queda nos homicídios, porém os índices de violência letal e brutalidade policial apresentam o Brasil com uma taxa de homicídio que ultrapassa a marca de 45 mil mortos ao ano, aliado a um sistema prisional deteriorado. Ciconello aponta que a criação do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania – PRONASCI e a realização da I Conferência Nacional de Segurança Pública (2009), que congregou gestores públicos, agentes de segurança e sociedade civil foram marcos importantes. No entanto, o PRONASCI tem seus recursos investidos prioritariamente na capacitação de policiais, por meio das bolsas de formação. Uma iniciativa louvável, mas até agora discussões que dizem respeito à mudanças na estrutura da polícia no Brasil, uma das instituições mais resistentes a qualquer controle social, não foram sequer tocadas. A questão da segurança pública será um grande desafio para o próximo governo. Outra área importante para pensarmos as mudanças promovidas por esse governo foi no campo da política externa. A pretensão do Brasil-superpotência, explorada em governos anteriores, voltou com força total e gerou um protagonismo brasileiro em pautas importantes do cenário internacional, promovendo também a figura do Presidente Lula. A escolha do Brasil como sede das Olimpíadas (2016) e da Copa do Mundo de Futebol (2014) demonstram o novo status de país emergente. Para analisarmos sobre as iniciativas brasileiras nesse campo, convidamos Danilo Marcondes, para em seu artigo refletir sobre a busca por reconhecimento frente às grandes potências, os desafios da integração regional e o que definiu as novas estratégias do Brasil na política externa. Para o autor, a experiência da missão de paz no Haiti, apesar de algumas críticas, demonstra um novo aspecto: a incorporação das Forças Armadas à política externa e ao projeto de conquista de um lugar de destaque no cenário internacional.
Mas os desafios dessa agenda internacional também podem ser analisados a partir de outro ângulo: o respeito e promoção dos Direitos Humanos. Para Camila Asano e Lucia Nader, o ponto alto da atuação do Brasil em nível internacional foi sem dúvida a promoção do engajamento da comunidade internacional na luta contra a pobreza e a fome no mundo. O Programa Fome Zero tornou-se referência de ações de transferência de renda e foi replicado ou estudado em muitos países da África, América Latina e Caribe. Porém, seu posicionamento no Conselho de Direitos Humanos da ONU foi em alguns casos bastante questionável e ambíguo, como nas votações quanto às violações na Coréia do Norte, Sri Lanka e República do Congo. Para as autoras, o conceito de não-interferência em alguns casos foi colocado acima de princípios básicos da dignidade humana. Na busca por expandir suas relações internacionais, o Brasil também a fez junto a governos ditatoriais que utilizaram-se do capital político internacional do governo brasileiro e da figura do presidente Lula para se fortalecerem e ganharem visibilidade. A política externa brasileira também refletiu suas escolhas econômicas. As propostas de transição para uma economia de baixo carbono, com diversidade da matriz energética não foram incorporadas de forma consistente; as políticas de fortalecimento da agricultura familiar e camponesa também foram insuficientes. Pragmaticamente, no entanto, o Brasil foi um dos primeiros países a superar a crise econômica global de 2008, se consolidando como a 8ª economia do mundo. As escolhas da política econômica são analisadas no artigo de Lauro Mattei e Luis Felipe Magalhães. Os autores refletem sobre a instabilidade e vulnerabilidade da economia brasileira provocadas pelo capital financeiro, após sua expansão sem precedentes no governo FHC e com a qual esse governo teve de lidar em seu percurso inicial. Nesse sentido são analisados os resultados obtidos dos principais instrumentos econômicos utilizados, como a elevada taxa de juros, o arrocho fiscal para superávit primário e o controle inflacionário, além de seus impactos em relação ao crescimento econômico, geração de emprego e distribuição de renda. Também são mencionados alguns desafios para o próximo período, destacando-se a necessidade urgente de uma redução mais expressiva das taxas de juros. Esperamos, assim, que esse trabalho possa traduzir as pautas sociais e políticas relevantes desse período, sendo instrumento para reflexão sobre um período bastante importante para a sociedade brasileira. Não poderíamos também deixar de agradecer a todos os autores e autoras pela colaboração e empenho. Março de 2011
BALANcO DA POLiTICA AMBIENTAL DO GOVERNO LULA: GRANDES E DURADOUROS IMPACTOS MARIJANE VIEIRA LISBOA Doutora em Ciências Sociais, Professora da PUC-SP e Relatora para Direito Humano Ambiental da Plataforma Dhesca.
COMEÇANDO MAL
q
uando Lula finalmente foi eleito, em fins de 2002, tudo parecia indicar que seu governo se constituiria em um marco da história ambiental do país. Marina Silva, personagem carismática da luta dos seringueiros chefiada por Chico Mendes assumira o Ministério do Meio Ambiente (MMA) e convidara para vários cargos importantes no Ministério, ativistas originários dos movimentos ambientalistas, contando, além disso, com amplo apoio dos movimentos sócio-ambientais de base, desde organizações indígenas até o MST e os sindicatos. Mas as ilusões não duraram muito. Nem sequer houve tempo para o Ministério concluir o seu planejamento interno ou completar as nomeações e já a crise dos pneus usados, importados do Uruguai, estourava na mídia. Preocupados em fortalecer as relações entre os países do Mercosul, a Casa Civil e o Ministério das Relações Exteriores (MRE) publicaram decreto isentando o Uruguai de pagar taxa obrigatória para a importação de seus pneus recauchutados1. O descarte de pneus usados, no entanto, sempre foi um problema ambiental. Sua combustão em fornos de cimento ou outros procedimentos que impliquem em queima liberam substâncias tóxicas perigosas, e seu descarte no meio ambiente traz consigo riscos de incêndios involuntários e proliferação de insetos e vetores de doenças. Por essas razões, o Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), aprovara resolução proibindo a importação de pneus usados, reciclados ou recauchutados. O Uruguai, no qual fora construída uma fábrica para recauchutar pneus usados vindos da Europa, recorreu contra a decisão no tribunal de arbitragem do Mercosul ainda antes do governo Lula, alegando que a resolução brasileira ocorrera posteriormente ao seu investimento na unidade de processamento e, portanto, o prejudicava. Embora tenha ganhado, restava a taxa de importação sobre produtos usados, estabelecida pelo Ministério da Fazenda. Foi essa a taxa que a Casa Civil e o MRE suspenderam, gerando imediatamente uma enxurrada de críticas na mídia. O MMA ficou em uma saia extremamente justa, pois não podia atacar de frente a decisão do governo brasileiro, embora tampouco pudesse apoiá-la. A crise seguinte, também logo nos primeiros meses do governo, teve como causa a proximidade do período de colheita da safra de soja transgênica plantada ilegalmente no Rio Grande do Sul. Uma comissão foi formada às pressas, sob a égide da Casa Civil, incluindo diversos ministérios – MMA, MAPA, MC&T, MIDIC, MJ, MDA - para encontrar uma solução para a crise. De início, parecia que se buscava uma solução negociada,
1. Marta Salomon. Lula libera importação de pneus usados, Folha On line 13/02/2003, http://www1.folha.uol.com.br/ folha/cotidiano/ult95u68832.shtml
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pela qual os agricultores ao assinarem um Termo de Ajuste de Conduta (TAC), se comprometeriam a não mais plantar soja transgênica em troca de não serem processados por sua conduta ilegal e de terem sua safra ilegal colhida e destinada à exportação ou à produção de biodisel. Mas, aos poucos, a Casa Civil foi descartando a solução de um TAC até convencer o MMA e o MDA – os dois únicos ministérios que resistiam – a aceitarem a esdrúxula solução de “legalizar” a colheita daquela safra de soja transgênica plantada ilegalmente por meio de uma Medida Provisória2 (MP). Ainda nos primeiros meses de governo, o staff do MMA foi comunicado da decisão do Presidente Lula de construir dois canais para transpor água do Rio São Francisco para regiões mais áridas do Nordeste. As negociações entre empresas encarregadas do projeto, Ministério de Integração Nacional e MMA já estavam avançadas quando o tema chegou às reuniões oficiais do secretariado do MMA, para espanto de vários dos seus membros, que como conhecedores do tema, sabiam que não “se combate a seca”, e sim “convive-se com ela”. Como essa teria sido uma decisão soberana do Presidente Lula, cabia, nas palavras da Ministra, obedecer e trabalhar para que o projeto de transposição fosse o melhor possível ou o menos pior3. No front energético também se anunciavam as futuras batalhas. O Ministério de Minas Energia (MME) pressionava o MMA para indicar “quais” projetos de hidrelétricas seriam ambientalmente adequados para preencher a demanda dos próximos anos. A lógica da chantagem funcionava a todo vapor: se não quiséssemos energia nuclear, haveríamos que sacrificar alguns rios da Amazônia. Se quiséssemos proteger o Xingu, havíamos que conceder o Rio Madeira. Enquanto isso, no Conselho Nacional de Política Energética, presidido por Dilma Roussef, se publicava portaria para formar uma comissão interministerial encarregada de avaliar a viabilidade econômica de uma terceira central nuclear. Para bons entendedores, esse intróito dos primeiros meses deveria bastar para entrever o que seria a política ambiental do governo Lula nos anos subsequentes. Mas àquelas alturas, ninguém era bom entendedor.
TRANSGÊNICOS
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Quando chegou a hora de enviar ao Congresso a Medida Provisória que autorizara a colheita da primeira safra de transgênicos plantada ilegalmente no país, a bancada ruralista, confiante na força que acabara de perceber que possuía, ameaçou emendar o projeto de
lei para autorizar novos plantios e novas colheitas de soja transgênica. Em troca de aprovar a versão original da MP, a Casa Civil negociou com a bancada a formação de uma comissão interministerial que teria como objetivo elaborar uma nova Lei de Biossegurança. A Lei em vigor, aprovada em 1995, apresentava defeitos aos olhos dos ruralistas, como, por exemplo, o de reconhecer a atribuição do Ibama e da Anvisa para registrar plantas, medicamentos e animais transgênicos. Era justamente esse artigo o que fizera com que o IDEC (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) e o GREENPEACE tivessem conseguido impedir a liberação comercial da soja transgênica no país, devido à ausência de licenciamento ambiental destas plantas. Enquanto a comissão iniciava seus trabalhos, aproxima-se o momento de plantio de soja, e novamente as pressões se sucederiam para que o governo liberasse o plantio. Nova medida provisória foi aprovada, desta vez sob o argumento da inexistência de suficiente estoque de semente convencional no mercado, liberando o plantio em troca de garantias, que mais uma vez não foram cumpridas. Entre o que apareceu como uma das poucas vitórias do Ministério estava a proibição de plantio de soja transgênica em áreas de alta biodiversidade, como nas unidades de conservação, terras indíg enas e áreas protegidas4. A nova comissão reuniu-se durante vários meses, sempre rodando em falso em torno de um ponto de discórdia central: a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), comissão que permaneceria sob a égide do Ministério de Ciência & Tecnologia, deveria ter o poder exclusivo de autorizar transgênicos no país ou continuariam IBAMA e ANVISA com suas atribuições constitucionais. Tendo se chegado a um acordo em relação à manutenção das atribuições do IBAMA e da ANVISA, o projeto de lei foi enviado ao Presidente da República, sofrendo aí transformações radicais, a pior das quais foi cassar-se aquelas atribuições dos dois órgãos. Marina Silva foi ao Palácio do Planalto e obteve revisão do texto, que retornaou à versão anteriormente negociada. Enviado ao Congresso, o governo nomeou como relator o deputado Aldo Rebelo, que era, a essas alturas, seu líder no Congresso, ou seja, político de inteira confiança da Presidência e da Casa Civil. Além de emendar o projeto, concedendo à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança plenos poderes para decidir sobre transgênicos no país, Aldo Rebelo introduziu o assunto do uso de células tronco para a pesquisa científica no corpo da lei, conseguindo com isso desviar a atenção do país sobre a questão dos transgênicos, para um debate de natureza ética e religiosa. Após idas e vindas na Câmara dos Deputados e no Senado, a versão final que emergiu de um Congresso Nacional cheio de lobbistas da indústria de biotecnologia vestidos de branco foi uma lei que retirou do IBAMA e da ANVISA o poder de avaliar e autorizar a liberação de transgênicos no país, delegando tal responsabilidade
2. Como nos livramos da herança transgênica de FHC, por Jean Marc von der Weid, Agência Estado 14/04/2003. 3. Dirceu anuncia obras de infraestrutura, Plano Brasil Participação e Inclusão, Governo Federal http://www.planobrasil.gov. br/noticia.asp?cod=236
NUNCA ANTES NA HISTÓRIA DESSE PAÍS...? UM BALANÇO DAS POLÍTICAS DO GOVERNO LULA
4. Jânio de Freitas, Os Modificados, Folha de São Paulo, 28/09/2003
BALANÇO DA POLÍTICA AMBIENTAL DO GOVERNO LULA: GRANDES E DURADOUROS IMPACTOS
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para um conjunto de biotecnólogos, a maioria dos quais sem qualquer conhecimento e compromisso com o meio ambiente e a saúde pública, mas com estreitos vínculos com centros de pesquisa públicos e privados nos quais se desenvolvem transgênicos5. Isso não foi tudo. Mais adiante a bancada ruralista no Congresso aproveitou nova Medida Provisória para inserir emenda que suprimiu a necessidade de maioria de 2/3 dos votos dos conselheiros da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança quando se tratasse da liberação de transgênicos no meio ambiente. Em vez de debates científicos rigorosos, por maioria de votos, novos transgênicos passaram a ser aprovados em processos sumários, como foi o caso do plantio comercial de milhos transgênicos em 2007. Entidades ambientalistas, de consumidores e de agricultores em vão lutaram contra tal aprovação, devido à grande possibilidade de contaminação dos milhos crioulos e convencionais pelo milho transgênico e os impactos dessa contaminação na soberania alimentar e na economia da agricultura familiar brasileira. A posição do governo Lula francamente favorável à liberação apressada de transgênicos ficou patente em 2008, quando o Conselho Nacional de Biossegurança, órgão criado pela nova lei de biossegurança expressamente com a função recursal, e composto exclusivamente por ministros e presidido pela Casa Civil – à época a Ministra Dilma Rousseff - rejeitou o recurso impetrado pelos órgãos responsáveis pela biossegurança ambiental e de saúde, o IBAMA e a ANVISA, endossando que toda e qualquer decisão sobre “biossegurança” daí em diante seria tomada pela CTNBio6. Os analistas políticos não tiveram muita dificuldade em explicar porque o governo Lula e o PT mudaram tão radicalmente sua posição em relação aos transgênicos: a necessidade de constituir uma base aliada no Congresso, atraindo o PMDB e outros pequenos partidos que se agrupam na bancada ruralista, representativa do agronegócio brasileiro. Os custos políticos dessa mudança radical ficaram por conta do esgarçamento das relações entre o núcleo duro do governo de um lado e os ministérios do Meio Ambiente e Desenvolvimento Agrário de outro. Na sociedade civil, o governo Lula perdeu o apoio de setores influentes do movimento ambientalista, de agricultores familiares e organizações de defesa dos consumidores7.
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5. Edson Duarte (PV/Bahaia), Como surgiu a “Lei Monsanto”, http://www.aspta.org.br/por-um-brasil-livre-de-transgenicos/ legislacao-sobre-biosseguranca/como-surgiu-a-lei-monsanto-por-edson-duarte-pv-ba/ Ver também: Gabriel Fernandes, O Companheiro Liberou – o caso dos transgênicos no governlo Lula, http://www.aspta.org.br/por-um-brasil-livre-de-transgenicos/legislacao-sobre-biosseguranca/o%20companheiro%20liberou.pdf/view; Marijane Vieira Lisboa, Transgênicos no Brasil: O Descarte da Opinião Pública, Revista de Direito Ambiental Econômico, vol.1, 2005; Marijane Vieira Lisboa, Transgênicos no Governo Lula: Liberdade para Contaminar, Revista PUCViva, vol.29, São Paulo, 2007. 6. Governo Lula libera milho transgênico, http://www.aspta.org.br/por-um-brasil-livre-de-transgenicos/campanhas/ governo-lula-libera-milho-transgenico/?searchterm=%20milho%20transg%C3%AAnico 7. Organizações pedem ao governo veto para o milho transgênico, http://www.aspta.org.br/por-um-brasil-livre-de-transgenicos/campanhas/organizacoes-pedem-ao-governo-veto-para-o-milho-transgenico/?searchterm=%20milho%20 transg%C3%AAnic
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TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO A surpreendente decisão do governo Lula de desengavetar um projeto de transposição do Rio São Francisco foi tanto maior devido ao fato de que havia um acúmulo de conhecimentos técnicos e científicos mostrando que a solução para as populações que vivem no semi-árido brasileiro não era o que se tentou inutilmente durante mais de um século – combater a seca – por meio de açudes, mas sim aprender a conviver com a seca. Entre as soluções mais bem sucedidas encontrava-se o projeto premiado, Um milhão de Cisternas8, que patrocinava a construção de cisternas cobertas capazes de abastecer uma família nordestina e seus animais de criação, armazenando a água das chuvas – abundantes, porém irregulares e concentradas apenas em uma época do ano. Solução barata, mas que permitia notável melhoramento na qualidade de vida das populações mais acossadas pela seca, era também apontada como uma das mais adequadas políticas para o semi-árido pelo Atlas do Nordeste, publicado pela Agência Nacional de Águas, o órgão governamental encarregado de implementar e coordenar a gestão dos recursos hídricos9. A resistência dos movimentos sociais não demorou a manifestar-se. Na I Conferência Nacional de Meio Ambiente, um protesto de participantes irritou o Presidente da República e expressou-se na aprovação de recomendações contrárias à construção da obra. Indiferente aos protestos, no entanto, o governo Lula utilizou diversas formas de pressão para arregimentar o apoio de líderes regionais e movimentos locais e obter rapidamente o licenciamento prévio do empreendimento. A recusa do governo Lula em promover um debate amplo sobre o tema antes de iniciar a obra provocou a greve de fome do bispo de Barra, Dom Luiz Cappio, em 2005, que a interrompeu em virtude da promessa do Presidente da República de que as obras seriam sustadas até que houvesse um maior debate público sobre a sua conveniência10. Escusado dizer que o governo Lula traiu sua promessa e iniciou as obras recorrendo ao Exército para demover resistências da população local, comunidades indígenas e ambientalistas. Iniciadas em ritmo intenso, as obras hoje estão quase paradas. Questionável não só do ponto de vista ambiental, mas de sua viabilidade econômica e técnica, a transposição do Rio São Francisco chamada eufemisticamente de Integração da Bacia do São Francisco às Bacias Hidrográficas
21 8. Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC), http://www.universia.com.br/materia/materia.jsp?id=3816o. 9. João Suassuna, As Águas do Nordeste e o Projeto de Transposição do Rio São Francisco, Cadernos CEAS, Centro de Estudos e Ação Social, junho/setembro 2007. 10. Brasil- Transposição do Rio São Francisco e a luta de Freio Cappio, entrevista com Ruben Siqueira e Roberto Malvezzi, Adital, 17/10/2010, http://www.adital.com.br/Site/noticia2.asp?lang=PT&cod=30840
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do Nordeste Setentrional, cuja coordenação estava afeita ao Ministério da Integração Nacional, tinha como objetivo trazer água prioritariamente para o pólo petroquímico do Pecém, em construção no Ceará e à agricultura comercial de exportação nas futuras áreas irrigadas. Mais uma vez o governo Lula perdeu apoio localizadamente, entre aqueles que seriam os grandes prejudicados com este projeto: ribeirinhos e populações indígenas cujas terras, ainda não estão demarcadas por uma injustificável lentidão da FUNAI (Fundação Nacional do Índio)11. A tentativa dos movimentos sociais locais e do Ministério Público Federal de recorrer à justiça fracassou, pois a suprema corte de justiça do país, o Superior Tribunal Federal, caçou liminares concedidas pela justiça local que suspendiam as obras até que irregularidades no processo de licenciamento fossem sanadas12.
A RETOMADA DO PROGRAMA NUCLEAR A retomada do Programa Nuclear brasileiro em 2007 estava em gestação desde o início do primeiro governo Lula. Na Casa Civil, no Ministério de Ciência e Tecnologia13, entre importantes diplomatas do Itamaraty e certamente nos setores militares do governo havia grande apoio para tal projeto. A forte oposição interna do Ministério do Meio Ambiente foi dobrada paulatinamente, até o ponto em que a Ministra Marina, deu-se por vencida14. O novo projeto renasce de forma grandiosa: além de Angra III, planeja-se a construção de várias outras centrais, algumas localizadas na Bahia, utilizando-se da água do mesmo Rio São Francisco, já atingido pelo projeto de transposição. Em sua defesa, o governo Lula recorreu a vários argumentos, desde a necessidade de diversificar a matriz energética, adotar uma fonte “limpa” de energia para não emitir gases estufa, aproveitar os investimentos já feitos no passado pelo Brasil em equipamentos caros até uma misteriosa necessidade de se “dominar o ciclo completo” do enriquecimento do urânio. Como nenhum desses argumentos pareciam sólidos o bastante para justificar a retomada de um programa que lida com uma energia tão cara e perigosa, havia quem suspeitasse de uma agenda militar secreta por trás deste novo programa civil de energia nuclear15.
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11. Transposição do São Francisco: conhecemos essa história de outros canais....Carta aberta de atingidos e atingidas pela Transposição, Combate ao Racismo Ambiental, http://racismoambiental.net.br/2010/06/ transposicao-do-rio-sao-francisco-conhecemos-essa-hi 12. STF libera obras do São Francisco, Globo.com, http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL233006-5598,00-STF+LIBERA+ OBRAS+DO+SAO+FRANCISCO.html 13. Brasil deve dominar tecnologia da bomba atômica diz ministro, BBC Brasil.com, http://www.bbc.co.uk/portuguese/ noticias/2003/030105_amaralafdi.shtml 14. Ministério da Fazenda, Resenha Eletrônica: Raymundo Costa e Cristiano Romero, Lula já aprovou construção de Angra III, Valor Econômico 21/05/2007, http://www.fazenda.gov.br/resenhaeletronica/MostraMateria.asp?cod=376638 15. Programa sofre críticas de falta de fiscalização e transparência, Repórter Brasil, 08/01/2008, http://www.reporterbrasil. org.br/exibe.php?id=1243
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Outros episódios não diretamente relacionados com o programa, como a compra visivelmente desvantajosa de submarinos nucleares franceses ou mesmo a defesa brasileira intransigente dos projetos nucleares do Irã e a postura brasileira de oposição a uma ampliação das obrigações dos países signatários do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares na última reunião do Tratado, parecem coerentes com a existência de uma agenda nuclear militar secreta. Embora tal agenda possa ser contraditória com a grande ambição brasileira de conquistar um assento permanente em um futuro Conselho de Segurança da ONU reformulado, não foram poucos os dirigentes políticos ou militares que expressaram de forma mais ou menos clara a ideia de que a posse de armamento nuclear constitui a única garantia contra intervenções militares dos EUA. De uma avaliação rigorosa sobre os impactos negativos do programa nuclear brasileiro, tampouco se deveria excluir a calamitosa situação da mina de urânio em Caetité, na Bahia, explorada pela Indústria Nuclear Brasileira (INB), empresa pública controlada diretamente pelo Ministério de Ciência e Tecnologia. Agricultores vizinhos à mina têm visto secar seus poços, devido ao forte consumo de água requerido pela indústria, tendo de ser abastecidos com carros pipa, enquanto alguns tiveram seus poços lacrados devido ao alto teor radioativo detectado pelo órgão local16. A suspeita de que seus produtos estejam contaminados inviabilizou as atividades econômicas, e por isso mesmo desvalorizou as suas terras, cujas moradias costumam rachar em virtude das explosões frequentes na mina. Tendo fugido ao debate público sobre a pertinência de se construírem novas centrais nucleares, o governo Lula parece ter atendido a um obscuro lobby nuclear, sem que para tal tenha sido submetido a perdas políticas substanciais: apenas ambientalistas e movimentos sociais de base local, em Angra dos Reis e em Caetité opuseram-se firmemente ao programa nuclear brasileiro17.
AS HIDRELÉTRICAS DA AMAZÔNIA Desde o início do primeiro governo Lula, o Ministério de Minas e Energia presidido à época por Dilma Rousseff, defendia internamente a tese de que seria inevitável a exploração do potencial hidrelétrico dos rios da Amazônia. Por essa razão, o Ministério opunha-se 16. Patrícia Bievenute (redação) População consome água contaminada por urânio em Caetité (BA), Brasil de Fato, 17/10/2010, http://www.brasildefato.com.br/node/1676; Portal EcoDebate, No sertão baiano, deputada verde alemã ouve o desespero dos que vivem em torno da mina de urânio de Caetité, 3/09/2010, http://www.ecodebate.com.br/2010/09/03/ no-sertao-baiano-deputada-verde-alema-ouve-o-desespero-dos-que-vivem-em-torno-da-mina-de-uranio-de-caetite/; Falta de fsicalização e transparência, Repórter Brasil, 08/01/2008, http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=1243 17. Entidades fazem protesto contra política nuclear em Brasília, G1, Globo.com, http://g1.globo.com/Noticias/ Politica/0,,MUL84714-5601,00.html Para uma abrangente avaliação dos riscos do programa nuclear brasileiro ver Relatório do Grupo de Trabalho Fiscalização e Segurança Nuclear, Câmara dos Deputados, Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, 2007, http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/3743
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firmemente às recomendações da Comissão Mundial sobre Barragens18, que em seu Relatório de 2001 recomendara que não mais se construíssem grandes barragens devido aos seus altos custos, impactos ambientais e sociais e prejuízos para as populações que nunca eram devidamente indenizadas pelas suas perdas. No caso em que os países considerassem imprescindível a construção de grandes barragens, o relatório propunha que tal decisão fosse alcançada de forma participativa, portanto antecedida de um amplo processo de consulta junto à população local. Mas o torniquete governamental visando obter a aquiescência do Ministério do Meio Ambiente e do Ibama às dezenas de novos projetos de hidrelétricas iniciou-se por um ataque sistemático ao Ibama, acusado de morosidade e incompetência nos processos de licenciamento ambiental19. A rigor, embora lhe faltasse recursos humanos e técnicos para o cumprimento dos seus deveres, era injusto acusar o Ibama de lentidão, pois grande parte dos projetos de obras foram rejeitados devido à péssima qualidade dos seus estudos ambientais, enquanto outros nem chegavam a dar entrada ao processo legal, preferindo entupir a mídia com acusações contra os órgãos ambientais, acusações frequentemente respaldadas pelo Presidente da República e que deixaram a ministra do Meio Ambiente inteiramente na defensiva. Sem carreira de funcionalismo público aprovada, sem concurso para preencher cargos vagos e com salários defasados, o Ibama viveu várias greves e terminou por ser dividido em dois órgãos, um encarregado de gestão das Unidades de Conservação e outro com todas as atividades remanescentes, sem que tal divisão tenha vindo a sanar a falta de recursos humanos e técnicos, bem como o problema da carreira20. É nesse cenário, com o Ministério do Meio Ambiente completamente encurralado e ainda sob a ameaça de se retomar o programa nuclear, que Marina Silva acaba por concordar com a construção de duas grandes hidrelétricas no rio Madeira. Buscou-se meios para mitigar alguns dos problemas técnicos mais gritantes do primeiro EIA-RIMA, como a questão do acúmulo de sedimentos e da desova dos bagres, nesse caso optando pela construção de uma escada para que os peixes pudessem subir contra a corrente. Além disso tentando dobrar a resistência dos quadros técnicos do Ibama, de modo que o projeto fosse finalmente aprovado. As audiências públicas que foram realizadas sob a batuta de funcionários do Ibama e dos empreendedores não permitiram que a população local ribeirinha pudesse efetivamente expressar suas dúvidas e protestos.
O rolo compressor do governo Lula funcionou cooptando ou silenciando todos os órgãos públicos envolvidos no processo de licenciamento: Ibama, Funai, IPHAN, Ministério Público Estadual, autoridades municipais e estaduais e provavelmente até o governo da Bolívia, a quem se teria prometido compensações pelo impactos ambientais que serão gerados à montante do rio, já em terras bolivianas. Sobraram os movimentos sociais locais, o Movimento dos Atingidos por Barragens e o Ministério Público Federal e um processo movido por comunidades indígenas da Bolívia contra o governo brasileiro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos21. Diferentemente do Complexo do Madeira, o projeto de construção de uma hidrelétrica no Xingu encontrou forte oposição local e nacional22. Além das evidentes falhas técnicas do projeto, dos severos impactos ambientais e dos custos exorbitantes, que serão arcados em sua maior parte pelo BNDES, a construção da hidrelétrica de Belo Monte, como é chamada, confrontou-se com movimentos locais organizados de mulheres, ribeirinhos, agricultores, povos indígenas e entidades ambientalistas e por isso mesmo conseguiu provocar um significativo debate na mídia nacional e internacional. O licenciamento da obra foi obtido por meio das mesmas pressões ilegítimas observadas no caso do Complexo do Rio Madeira, com a FUNAI atestando a realização de oitivas indígenas que não ocorreram efetivamente23, com pareceres técnicos do Ibama desconsiderados pelo seu Presidente à hora de conceder a licença prévia24 e com audiências públicas nas quais os afetados não tiveram oportunidade efetiva de informar-se sobre os impactos das obras e de obter respostas às suas indagações e críticas25. Quatro liminares para suspender o leilão da obra, interpostas pelo Ministério Público Estadual do Pará e concedidas pela Justiça Estadual, foram caçadas em poucos minutos pelo juiz do Tribunal Federal de Recursos (TFR), em posicionamento explicitamente político a favor da obra26. A política lulista de favorecer a construção de grandes hidrelétricas encontra inspiração e respaldo nas grandes empresas de construção civil do país – que ocupam uma posição destacada na economia e na política desde os tempos da ditadura militar27-,
21. Infraestrutura e Energia: impactos sociales y ambientales, Rio Madeira: Denúnciam na OEA as hidrelétricas Santo Antônio e Jirau, http://www.infraest-energ-sudamerica.org/2009/12/madeira-denuncian-na-oea/ 22. Carta Xingu Vivo Para sempre, www.equit.org.br/docs/artigos/CARTAXINGU.pdf . 23. FVPP -Fundação Viver Produzir Preservar, Belo Monte e o Dever de Consulta Prévia do Estado Brasileiro aos Povos Indígenas, 16/10/2009, http://www.fvpp.org.br/noticias_detalhe.asp?cod=192
18. Barragens e Desenvolvimento: um novo modelo para tomada de decisões – o Relatório da Comissão Mundial de Barragens. Um sumário, 16/11/2000, http://www.dams.org/report/wcd_sumario.htm
24. Portal EcoDebate, Telma Monteiro, Parecer Técnico do Ibama sobre os estudos de Belo Monte apontou dezenas de insuficiências e pediu complementações, Parte I. 24/02/2010, http://www.ecodebate.com.br/2010/02/24/parecer-tecnico-do-ibama-sobre-os-estudos-de-belo-monte-apontou-dezenas-de-insuficiencias-e-pediu-complementacoes-parte-i-por-telma-monteiro/
19. Ecopress – Lula quer agilidade no licenciamento de hidrelétricas, 02/08/2007, http://www.ecopress.org.br/ noticias+com+baixa+repercussao/lula+quer+agilidade+no+licenciamento+de+hidreletricas
25. Rodolfo Salm, Belo Monte: a farsa das Audiências Públicas, Correio da Cidadania, 6/10/2009, http://www.correiocidadania. com.br/content/view/3827/57/
20. Maurício Hashizumi, Greve de servidores do Ibama questiona previsões de gestão mais eficiente, Repórter Brasil, 30/05/2007, http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=1066.
26. Portal EcoDebate, Sociedade Civil protesta no TRF-1 contra decisão política no caso de Belo Monte, 19 de abril 2009, http://www.ecodebate.com.br/2010/04/19/sociedade-civil-protesta-no-trf-1-contra-decisao-politica-no-caso-belo-monte/
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nas empresas energo-intensivas que necessitam de enorme quantidade de energia, como a mineração, siderurgia, metalurgia, e no próprio setor elétrico público e privado, que funciona dentro da lógica insustentável de oferecer mais e mais barato, em vez de poupar energia para os usos socialmente prioritários, redimensionando a sua demanda a uma oferta que seja sócio e ambientalmente adequada28. Ao passar o rolo compressor da máquina pública e política sobre os atingidos por suas barragens, o governo Lula foi perdendo aliados entre povos indígenas e populações tradicionais, cujas lutas vão assumindo cada vez mais as características de movimentos de justiça ambiental.
DESMATAMENTO Foi no combate ao desmatamento que concentraram-se os esforços da política ambiental do governo Lula, com resultados, no entanto, pouco definidos. O Plano de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (PAS) coordenado por Marina Silva no início do primeiro governo Lula, adotava uma abordagem holística do problema do desmatamento ao considerá-lo como resultante de diversos fatores, dos quais eram fomentadores órgãos do poder executivo federal, estaduais e municipais, bem como agências públicas de financiamento29. Ministério de Minas Energia, Transportes e Agricultura e Pecuária, juntamente com políticas estaduais e financiamentos concedidos por órgãos públicos estimulavam obras e atividades agrícolas na região que fatalmente conduziam ao desmatamento. Assim, os órgãos ambientais se viam condenados a uma luta interminável, em que tratavam de mitigar os impactos negativos de empreendimentos financiados e estimulados pelos demais órgãos públicos federais e estaduais. Tratou-se, portanto, de buscar um compromisso entre ministérios, governos estaduais e agências de desenvolvimento para a adoção de políticas coordenadas e ambientalmente sustentáveis. Desnecessário dizer que tudo isso ficou no papel, pois as forças reais que destroem a Amazônia brasileira alicerçam-se em práticas de grupos de interesse nacionais e locais com forte expressão política em todos os níveis e áreas do Executivo. Por essa mesma razão, fracassou a ideia de cercar as áreas de acesso da Rodovia 163, ligando Cuiabá a
Santarém com unidades de conservação, terras indígenas e assentamentos sustentáveis de Reforma Agrária, de modo que o seu asfaltamento (reivindicado por produtores de grãos na região) não acelerasse o desmatamento da região, ao facilitar o acesso a ela30. A expansão do rebanho bovino na Amazônia31 e da soja32 seguiu o seu curso durante o governo Lula, impulsionada ainda mais pela ampliação das áreas destinadas à cana-de-açúcar para a produção de etanol, que, em um efeito dominó, empurra a soja e a criação de gado desde o sudeste, em São Paulo, para as regiões onde se encontram terras mais baratas – ou gratuitas – graças à grilagem: a Amazônia33. Na ponta desse processo sabemos que estão sempre os madeireiros ilegais, explorando a mão de obra barata dos imigrantes que não encontram trabalho na região, ou de assentados fracassados de uma reforma agrária que, desde a época da ditadura, vem destinando terras na Amazônia para agricultores expulsos de outras regiões do país. O MMA e o Ibama trataram de combater o desmatamento fortalecendo os mecanismos de vigilância e empreendendo operações policiais, por vezes muito bem sucedidas. Houve oscilações e mesmo queda nas taxas de desmatamento34, em parte atribuídas ao sucesso da fiscalização35, em parte à queda do preço da soja36. O sucesso das operações também foi responsável pela diminuição do desmatamento em certas áreas, e o aumento em outras, menos vigiadas. Mas Marina Silva não contou com o apoio do Presidente Lula para punir os desmatadores ilegais e se viu forçada à renunciar, enquanto um Plano de Amazônia Sustentável, elaborado pelo seu ministério, era entregue a um personagem político sem nenhuma experiência com a problemática amazônica37. Mais recentemente, a recusa da Presidência da República em repudiar de maneira inequívoca o parecer sobre o novo projeto de Código Florestal em trâmite no Congresso, do Deputado Federal 30. Meio Ambiente, BR-163 volta a ser asfaltada após 30 anos, 11/04/2009, http://www.revistameioambiente.com. br/2009/04/11/br-163-volta-ser-asfaltada-apos-30-anos/, última consulta 18/10/2010 31. G1, Globo.com, Ministra culpa pecuária pelo desmatamento da Amazônia, 31/01/2008, http://g1.globo.com/Noticias/ Politica/0,,MUL281935-5601,00-MINISTRA+CULPA+PECUARIA+PELO+DESMATAMENTO+NA+AMAZONIA.html, última consulta 18/10/2010; Greenpeace, Farra do Boi na Amazônia, 13/04/2010, http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Documentos/ Farra-do-Boi-na-Amazonia/, última consulta 18/10/2010 Sérgio Schlesinger, Onde Pastar?, Fase, Rio de Janeiro, 2010 32. GT Floresta, FBOMS, Relação entre Cultivo de Soja e Desmatamento: compreendendo a dinâmica, Agroambiente, http://www.agroambiente.org.br/arquivo/biblioteca/relacao_entre_cultivo_de_soja_e_desmatamento__compreendendo_a_dinamica.icv, última consulta 18/10/2010 33. Schlesinger, Sérgio, Lenha Nova para a Velha Fogueira: a febre dos agrocombustíveis, FASE, Rio de Janeiro, 2008.
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27. Pedro Henrique Campos, As origens da internacionalização das empresas de engenharia brasileiras em Campanha Justiça nos Trilhos et all (orgs.), Empresas transnacionais brasileiras na América Latina: um debate necessário, São Paulo, Expressão Popular, 2009. 28. Movimento dos Atingidos por Barragens, O Modelo de energia elétrica no Brasil e as grandes empresas Brasileiras, em Campanha Justiça nos Trilhos et all (orgs.), Empresas transnacionais brasileiras na América Latina: um debate necessário, São Paulo, Expressão Popular, 2009. 29. AmbienteBrasil, Planos apontam saída para desenvolvimento com preservação ambiental, 31/05/2004, http://noticias. ambientebrasil.com.br/clipping/2004/05/31/14820-planos-apontam-saida-para-desenvolvimento-com-preservacao-ambiental. html, última consulta 18/10/2010
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34. Amazônia Perde210 km2 de floresta em agosto, diz Imazon, Amazônia, 29/09/2010, http://www.amazonia.org.br/noticias/ noticia.cfm?id=368021, última consulta em 18/10/2010 35. Globo Amazônia, Ibama inicia megaoperação contra desmatamento na Amazônia, 16?03/2009, http://www.globoamazonia. com/Amazonia/0,,MUL1044508-16052,00.html, última consulta em 18/10/2010 36. Natália Suziki, Agência Carta Maior, Preço de Commodities impõe ritmo de desmatamento da Amazônia, 20/12/2006, Repórter Brasil, http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=861, última consulta em 18/10/2010 37. Ricardo Verdum, O que esperar do novo ministro do Meio Ambiente, INESC, http://www.inesc.org.br/biblioteca/publicacoes/ artigos/o-que-esperar-do-novo-ministro-de-meio-ambiente, última consulta em 18/10/2010
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Aldo Rebelo (PC do B), da base governista, que permitiria o desmatamento de enormes extensões de terra na Amazônia, testemunha mais uma vez os compromissos políticos do governo Lula com a bancada ruralista e o agronegócio brasileiros38. Entre os principais problemas do substitutivo apresentado pelo deputado Aldo Rebelo as organizações da sociedade civil apontam a anistia aos desmatadores, a dispensa de reserva legal para a agricultura familiar, a possibilidade de compensar desmatamento de reserva legal em outra bacia hidrográfica e a transferência das decisões governamentais da União para os Estados, permitindo que estes últimos possam reduzir as áreas de proteção permanente até a metade. Cálculos realizados por estas entidades indicam que até 85 milhões de hectares poderiam ser desmatados, se tal substitutivo for aprovado na forma em que está, e isso significaria igualmente a emissão de 25 a 30 bilhões de toneladas de gás carbônico na atmosfera, ampliando em 6 vezes a redução estabelecida como meta pelo Brasil durante a 15ª Conferência das Partes da Convenção sobre Mudanças Climáticas39.
MUDANÇAS CLIMÁTICAS Até as vésperas da Conferência de Copenhague, a COP 15, Convenção internacional que trata de enfrentar o gravíssimo problema das mudanças climáticas, o Brasil não havia definido a sua posição a ser levada ao encontro, pois o setor desenvolvimentista hegemônico dentro do governo resistia ao estabelecimento de metas para a redução de emissões de gases estufa, temeroso de que tal redução viesse a prejudicar o ambicionado desenvolvimento. A lei de mudanças climáticas, finalmente aprovada, não estabeleceu metas ou critérios para objetivos mensuráveis de redução de emissões, tardando até agora a sua regulamentação40. A descoberta de novas e imensas jazidas de petróleo – o Pré-Sal – provocou grande discussão no país a respeito do destino destes futuros recursos e nenhuma discussão sobre a inconveniência de se continuar extraindo e consumindo combustíveis fósseis em um planeta já claramente afetado pelas mudanças climáticas em curso.
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38. Página 22, Desgaste em comissão e bastidores no Planalto aquecem debate sobre Código Florestal, 29/10/2009, http://www.facebook.com/note.php?note_id=176115469544, última consulta em 18/10/2010. Manifesto rejeita mudanças propostas por Aldo Rebelo no Código Florestal, 3/07/2010, MST, http://www.mst.org.br/manifesto-rejeita-mudancas-propostas-por-aldo-rebelo-no-codigo-florestal,última consulta em 18/10/2010. 39. Manifesto contra a proposta de Aldo Rebelo, 06/07/2010. http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2010/07/474292.shtml 40. Greenpeace Brasil, Após 16 anos, sai enfim proposta de Política de Mudanças Climáticas, 5/06/2008, http://www.greenpeace. org/brasil/pt/Noticias/com-16-anos-de-atraso-governo/, última consulta 18/10/2010. Ruben Born, Juliana Russar, Morow Gaines Campbell III, Desafios para a Política e o plano nacional em mudanças climáticas, 01/10/2008, Mudanças Climáticas, http://www.mudancasclimaticas.andi.org.br/content/desafios-para-politica-e-o-plano-nacional-em-mudanca-de-clima, última consulta 18/10/2010
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TRANSPARÊNCIA E DEMOCRACIA NA GOVERNANÇA AMBIENTAL Embora durante toda a sua história, o PT tenha sido sempre receptivo às demandas dos movimentos sócio-ambientais e apoiado muitas das suas lutas, uma vez no poder, foi evidente o esforço feito para restringir esse acesso. Entidades esperavam por meses uma audiência com ministros, e por vezes, nunca viam atendidas as suas solicitações, como era o caso do MAB junto a então ministra de Minas e Energia, Dilma Roussef. No CONAMA, o novo regimento que entrou em vigor juntamente com o início do governo Lula, serviu de oportunidade para tentar reduzir a presença e eficiência da representação dos movimentos sociais, pois ao aumentar consideravelmente o número de conselheiros e câmaras técnicas, sem correspondentemente fornecer os meios para a maior participação das ONGS, desequilibrou-se mais ainda a relação, já por si muito desigual, entre governo, empresa privada e sociedade civil neste Conselho. As empresas tomaram conta de várias destas câmaras, enviando seus técnicos e representantes para assistir, preparar propostas e assumir a liderança dos processos deliberativos. Além disso, a nova prática de reunir os representantes do governo federal em dias imediatamente anteriores às reuniões do Conselho, de modo a fechar posição da bancada do Executivo nacional, eliminou a possibilidade de um verdadeiro debate político sobre questões ambientais entre os quatro segmentos do Conselho – União, Estados, Empresas e Sociedade Civil, algo que havia sido possível nos governos anteriores, em muitos momentos. Também faziam-se acordos prévios com os conselheiros dos Estados, que visavam sobretudo políticas de alianças regionais, passando por cima das questões ambientais propriamente ditas. Como em outros campos de luta dos movimentos sociais, o governo Lula tratou ao mesmo tempo de garantir apoio, ou pelo menos neutralidade por parte daquelas organizações e movimentos sócio-ambientais menos críticos ou com alguma forma de vínculo partidário, como é o caso da CUT, cujo representante, por muitos anos, secretariou o Fórum Brasileiro de Organizações e Movimentos Sociais. Outras entidades, ligadas ao governo federal por vínculos políticos e contratuais, como convênios e projetos financiados pelo governo federal, também lhe garantiram certa defesa contra a crescente crítica advinda dos movimentos ambientalistas, particularmente os ligados à justiça ambiental e climática. A forma diferenciada como se posicionaram eleitoramente os movimentos e organizações ambientalistas no primeiro, e também no segundo turno das eleições presidenciais, revelou as profundas divisões que surgiram e cresceram entre essas, ao longo do governo Lula.
BALANÇO DA POLÍTICA AMBIENTAL DO GOVERNO LULA: GRANDES E DURADOUROS IMPACTOS
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Embora outros aspectos da política ambiental dos dois governos Lula não pudessem ser incorporados neste artigo devido à questão de espaço, as políticas setoriais aqui comentadas certamente encontram-se entre as mais significativas e as que provocaram maior debate na opinião pública. Assim, para auxiliar na formulação de um balanço da política ambiental do governo Lula, nada melhor do que examinar a política de desenvolvimento empreendida pela instituição pública responsável por fomentá-la, o Banco Nacional de Desenvolvimento, o BNDES. Pecuária, mineração, geração de energia, soja, cimento e celulose são os setores que obtiveram os maiores financiamentos e aos quais correspondem, não por mera coincidência, os maiores impactos socioambientais41. A concepção de desenvolvimento deste banco, expressa no discurso, mas também na prática da concessão de financiamento público, é o que se pode chamar de desenvolvimentista e economicista. O desenvolvimento social é entendido como crescimento econômico e este como capaz de distribuir eficazmente as suas benesses à toda a sociedade por meio do crescimento de renda, emprego e de políticas redistributivas, como Bolsa Família. Além disso, o aumento dos fluxos de mercadorias e capitais graças à globalização da economia mundial e em particular à forte expansão econômica da China alavancaram a mineração, o cultivo de cana de açúcar para a produção de etanol, o de eucaliptos para celulose, a construção de hidrelétricas para fornecimento de energia barata para as indústrias energo-intensivas, fazendo com que a pauta de exportações brasileira se “agrarizasse” e a economia do país sofresse um processo de “desindustrialização”42. O crescimento da produção e exportação de commodities é visto com bons olhos pelas autoridades econômicas, que aí veem a oportunidade de equilibrar a balança de pagamentos e financiar o déficit público externo. Os impactos socioambientais são obviamente o negativo em branco e preto desta fotografia colorida de desenvolvimento, no qual ficam impressos os atingidos pelas barragens e outras grandes obras, os deslocados pela expansão da pecuária, da soja e da celulose, pela mineração e extração do petróleo, que migram para a periferia das cidades grandes, médias e mesmo pequenas, inchando os seus bolsões de miséria, socorridos, apenas em parte, pelo Bolsa Família. Com eles também desaparecem ecossistemas ricos em
diversidade biológica, solo fértil e recursos hídricos, enquanto aumenta a contaminação do solo, águas, ar, alimentos e seres humanos. Em 2003, quando Lula assumiu o seu primeiro mandato, não eram permitidos cultivos transgênicos no país, o Programa Nuclear Brasileiro estava suspenso há mais de uma década e o Projeto de Transposição do Rio São Francisco dormia em uma gaveta. Apesar do apagão de 2002, nenhuma grande hidrelétrica na Amazônia estava no pipeline do Ministério de Minas e Energia e a tentativa de emendar o Código Florestal por parte da bancada ruralista do Congresso para reduzir as áreas de proteção na Amazônia havia sido barrada no governo anterior. Não há, pois, como recusar um balanço negativo da política ambiental do governo Lula. Não só foi ruim, como significou um retrocesso frente ao que houve anteriormente. A explicá-la, não tanto mudanças na mentalidade – pois eram marginais os setores políticos do PT que possuíam uma visão e um compromisso ambiental, como a ex-ministra Marina Silva – mas a lógica política de ampliar e constituir uma base política sólida que permitisse a perpetuação do seu grupo no poder Executivo, Legislativo e Judiciário. Tributários de uma mesma visão desenvolvimentista e premidos pelos mesmos grupos de interesse internos e forças econômicas externas, certamente um governo da oposição peessedebista não teria feito coisa muito diferente nesses últimos 8 anos. Assim, se houve um mérito na desastrosa política ambiental do governo Lula foi o de provocar, com os seus desacertos, a emergência e fortalecimento de uma visão alternativa sobre o que se poderia considerar como desenvolvimento sustentável, manifesta fundamentalmente no crescimento dos movimentos de justiça ambiental por todo o país, que certamente apostam em um outro tipo de futuro43.
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41. Verena Glass, Foco dos investimentos não mudará, aponta presidente do BNDES, 03/12/2009, MAB, http://www.mabnacional.org.br/noticias/031209_bndes.html, última consulta 18/10/2010 42. Márcio Porchmann, Entrevista Há desindustrialização no Brasil?, Revista IHU-Online, http://www.confea.org.br/publique/media/materia4.doc,
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43. 3º Encontro Nacional da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA) em Fortaleza, 2603/2009, Terra Azul, http://www.terrazul.m2014.net/spip.php?breve240, última consulta 18/10/2010
BALANÇO DA POLÍTICA AMBIENTAL DO GOVERNO LULA: GRANDES E DURADOUROS IMPACTOS
AvanCos e recuos nas polIticas de promoCAo da igualdade e direitos para as mulheres GUACIRA CESAR DE OLIVEIRA Socióloga, integrante do Colegiado Gestor do CFEMEA e da Articulação de Mulheres Brasileiras
P
assados oito anos de governo Lula, é hora de fazer o balanço e ver o que se pôde avançar em termos de políticas públicas para a superação das desigualdades vividas pelas mulheres e garantia dos nossos direitos. Há muitas formas de fazer isso. Optei por focar em questões cruciais da agenda política feminista, buscando ver em que medida essa pauta: (i) foi debatida (ampliada e aprofundada), (ii) gerou conflitos e pactos e (iii) resultou em mudanças na vida das mulheres, em termos de garantia de seus direitos e melhoria das suas condições de vida. Essa foi a régua. Afinal, é para isso que se luta. É indispensável lembrar que, em 2002, quando Lula venceu as eleições presidenciais, um vasto conjunto de instâncias do movimento de mulheres tinha mobilizado um processo tanto amplo quanto profundo para a discussão e aprovação da Plataforma Política Feminista1. Nos 8 anos que se seguiram, a atuação de uma parcela expressiva dos movimentos de mulheres se referenciou e/ou esteve em consonância com essa Plataforma, que marcou os diálogos, tensões e conflitos na relação com o governo federal. No que se refere às políticas públicas, a demanda do movimento de mulheres e feminista exigia mudanças estruturais na concepção, planejamento e desenvolvimento das políticas. Mais que isso, requeria o reposicionamento do próprio Estado em relação a sua responsabilidade com a garantia de direitos para todas e todos. Os desafios apresentados pela Plataforma Política Feminista para o Estado Democrático e a Justiça Social estão expressos assim, nos seus parágrafos 34 e 35: g
34. Firmar compromisso com a superação da injustiça e da desigualdade social em um projeto nacional autônomo, não subordinado e democrático, que vise garantir o atendimento às necessidades estabelecidas no marco dos direitos humanos universais e considere os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Entende-se como parte desses direitos a autodeterminação do povo brasileiro, os direitos reprodutivos e os direitos sexuais, na perspectiva da igualdade nas relações de gênero, raça/etnia e classe.
g 35. Transformar o Estado, mediante um processo amplamente discutido e aprovado pela sociedade civil organizada e caracterizado pela ruptura com a perspectiva liberal, assegurando recursos para a provisão e ampliação do acesso aos direitos sociais – condição fundamental para o enfrentamento da exclusão social. É preciso uma transformação radical do modelo socioeconômico e jurídico, com vistas a uma política de equidade e igualdade de oportunidades na distribuição da riqueza do país. 1. As instâncias nacionais do movimento de mulheres que se organizaram para construir a Plataforma Política Feminista são as seguintes: AMB – Articulação de Mulheres Brasileiras;. ANMTR – Articulação Nacional de Mulheres Trabalhado-ras Rurais; Articulação de ONGs de Mulheres Negras Brasileiras; Secretaria para Assuntos da Mulher Trabalhadora da Contee; Comissão Nacional sobre a Mulher Trabalhadora da CUT; Secretaria Nacional de Mulheres do Partido Socialista Brasileiro; Rede de Mulheres no Rádio; Rede Nacional de Parteiras Tradicionais; Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos; UBM – União Brasileira de Mulheres.
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Logo que o governo Lula iniciou seu primeiro mandato, deu sinais de que a superação das desigualdades vividas pelas mulheres seria assumida como um desafio. Não deixaram dúvidas a esse respeito, as iniciativas de criar três mecanismos fundamentais para o desenvolvimento de políticas públicas: (1) a Secretaria de Políticas para as Mulheres – SPM, com status político de Ministério; a criação de um novo espaço de participação social, (2) a Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, com a responsabilidade de definir as diretrizes nacionais e estabelecer as prioridades para um (3) Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Ademais, o governo decidiu manter o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher como espaço de participação e controle social. Na medida em que o governo assumiu esse compromisso com o movimento de mulheres de enfrentar as desigualdades, mediante as políticas públicas, o problema da exclusão feminina dos lugares de poder e decisão, ditada por um sistema político patriarcal, absolutamente avesso à pauta feminista se impôs como obstáculo. Nesse sentido, a criação desses novos mecanismos institucionais (respondendo à reivindicação do movimento de democratização dos espaços de poder) abriu a possibilidade de alargar a arena política pela via da participação social e de ter um mecanismo de primeiro escalão para incluir a superação da desigualdade como um desafio de governo. Para o movimento de mulheres, apesar da fragilidade e do pouco poder conferido aos espaços da democracia participativa, como os conselhos, conferências, os Grupos de Trabalhos e Comissões Intersetoriais, esses lugares foram, ao longo desses anos, não raro, os únicos onde havia alguma possibilidade de pautar o debate sobre políticas públicas a partir da perspectiva feminista e, nesses termos, estabelecer processos de negociação e gerar pressão para a pactuação de compromissos com o poder público. Isto porque a disputa política para orientar o Estado à promoção da igualdade foi dura. Não faltaram apenas mulheres no poder, faltou também força política para que os projetos que colocavam a desigualdade como um dos problemas centrais e incontornáveis da agenda democrática pudessem ser desenvolvidos. Não fosse pelo fato relevante de o governo Lula ter proporcionado a sua sucessão pela eleição da primeira mulher na Presidência da República, poderíamos dizer que o problema da subrepresentação feminina nos espaços de poder, junto com a Reforma Política, havia sido uma questão abandonada da agenda prioritária do governo. Pois, como se pode ver pelo exemplo da Câmara dos Deputados, nos últimos 8 anos a proporção de mulheres manteve-se praticamente inalterada, amortizando a tendência que vinha se verificando a partir da redemocratização do país (vide gráfico) até o fim do século XX.
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GRÁFICO 1: NÚMERO E % DE MULHERES DEPUTADAS FEDERAIS, BRASIL: 1945-2006
Fonte: Tribunal Superior Eleitoral / Elaboração: Eustáquio Diniz
O outro problema, relacionado à fragilidade das forças políticas que disputavam projetos mais igualitários no poder, evoluiu com conflitos permanentes. Apesar de termos as Secretarias da Mulher, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, por outro lado cresceu a disposição governamental para a negociação com segmentos conservadores, fundamentalistas, religiosos, notadamente das igrejas católica e evangélica, tanto no que se refere a negação de direitos, quanto no que tange ao financiamento público à diferentes iniciativas dessas igrejas. No final do seu primeiro mandato, a decisão do governo de encerrar pública e oficialmente suas iniciativas em relação à descriminalização e legalização do aborto e já no seu segundo mandato, os esforços para a aprovação do Acordo (nada laico) Brasil e Vaticano2 e ainda a postura recuada sobre os compromissos firmados no PNDH 3 (Plano Nacional de Direitos Humanos) são exemplos da tendência mais conservadora
AVANÇOS E RECUOS NAS POLÍTICAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE E DIREITOS PARA AS MULHERES
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que foi se firmando perante os antagonismos entre as pautas de direitos versus as pautas fundamentalistas religiosas, entre outras demandas à direita. Para uma parcela relevante do movimento de mulheres, a atuação nos espaços de participação e controle social foi encarada estrategicamente para pautar e sustentar a agenda feminista, buscando formar opiniões, mobilizar vontades políticas, legitimar as demandas do movimento, negociar conflitos, fazer frente às agendas conservadoras e fundamentalistas, e pactuar compromissos com o governo. Por exemplo, foi por esses caminhos que, como organizações feministas, propusemos, discutimos e o Executivo apresentou ao Congresso Nacional o Projeto do que hoje é a Lei Maria da Penha. Foi por aí também que fortalecemos nosso intento (do Fórum Itinerante de Mulheres pela Seguridade Social Universal) de pautar o problema da exclusão previdenciária na discussão sobre a Reforma da Previdência e conseguimos a aprovação de uma emenda constitucional sobre o Sistema Especial de Inclusão Previdenciária, abrangendo inclusive o trabalho não remunerado realizado no âmbito da própria família. Merece destaque a elaboração em Comissão Tripartite, sob a responsabilidade do governo, do anteprojeto de lei para a legalização do aborto. Foi também em Conferência Nacional que propusemos e decidimos quais seriam os Princípios e Diretrizes da Política Nacional para as Mulheres e as linhas prioritárias dos dois Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres (PNPM). Contudo, ao longo desses oito anos, muitos compromissos assumidos pelo governo com os movimentos de mulheres nas Conferências e em outros espaços de participação não foram cumpridos, por negligência ou decisão política. Como alertava a Articulação de Mulheres Brasileiras em debate sobre a luta feminista nas políticas públicas. As mulheres feministas que atuam na política pública precisam enfrentar, a um só tempo, as forças políticas que estão representadas nos espaços de poder e a cultura política anti-democrática que está instalada nos espaços de gestão pública e na sociedade. (...) coloca-se diante de [nós] uma tarefa árdua: arrancar do Estado patriarcal, racista e elitista, políticas públicas que promovam a igualdade, a justiça, supere a exploração e transforme a vida das mulheres.3
2. Em 2009, a Câmara e o Senado ratificaram o Acordo entre o Brasil e o Vaticano, que foi apreciado por ambas as Casas
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Legislativa sem debate público amplo. O acordo fere o princípio constitucional da laicidade do Estado, prevê ensino religioso católico nas escolas públicas, concede isenção fiscal para rendas e patrimônio de pessoas jurídicas eclesiásticas, isenta a Igreja Católica de cumprir obrigações trabalhistas e promove o uso de recursos do Estado brasileiro para a manutenção de seu patrimônio cultural. O acordo foi promulgado em fevereiro de 2010. Para conhecer melhor a nossa crítica, veja o caderno “Brasil e
A ELABORAÇÃO DO PPA E AS RESISTÊNCIAS AO ENFRENTAMENTO DAS DESIGUALDADES O Plano Plurianual (PPA) é uma peça-chave no planejamento das políticas públicas e de todo o Ciclo Orçamentário. Um instrumento fundamental para evitar que o planejamento das políticas públicas, a definição de suas estratégias, o desenvolvimento das ações e a realização das despesas correspondentes continuem sendo feitos desconsiderando as desigualdades vividas pelas mulheres. Em 2003 houve um processo participativo inédito, no qual o movimento de mulheres esteve presente nos Estados e no DF em 27 fóruns de debate sobre o PPA. Para as feministas do campo da Articulação de Mulheres Brasileiras, planejar a política pública implica radicalizar a ideia de universalidade com respeito à diversidade, enfrentando o desafio de construir políticas públicas capazes de enfrentar o conjunto das desigualdades que envolvem as mulheres, superar os programas pontuais, focalizados e fragmentados. E implantar políticas públicas universais, intersetoriais, de ação afirmativa e específicas para dar conta da promoção da igualdade e da justiça social. Mas o projeto de PPA apresentado pelo governo ao Congresso naquela oportunidade não incorporou a recomendação. A proposta só recuperou o seu lugar estratégico no PPA por demanda do movimento de mulheres, traduzida em emenda apresentada pela Bancada Feminina, com o apoio da Secretaria de Políticas para as Mulheres. Tal mudança feita no Congresso Nacional, todavia, não se refletiu no nível dos programas orçamentários concebidos e desenvolvidos pelo Executivo. Somente 13 programas, dentre os 380 que compunham o PPA 2004-2007 estabeleceram objetivo, ou meta, ou público-alvo, ou indicador orientados ao enfrentamento das desigualdades de gênero ou atendimento específico às mulheres. De todos os modos, ao considerarmos que o ponto de partida do governo Lula era o PPA 2000-2003, no qual a palavra mulher e a expressão “população feminina” apareciam apenas duas vezes: uma no programa de combate à violência contra a mulher e outra no programa para reduzir a morbimortalidade materna, no Ministério da Saúde, podemos dizer não se permaneceu no mesmo lugar, avançou-se pouco, continuamos com programas pontuais, insuficientes e desarticulados. O segundo PPA do governo Lula (2008-2011), já não contou com um processo participativo de elaboração, nem apresentou alterações substantivas em termos de planejamento das políticas para as mulheres e promoção da igualdade. As mudanças mais relevantes ocorridas nesses oito anos para essa área devem-se ao PNPM que, por sua vez, foi favorecido pela existência de alguns programas pontuais no PPA.
Vaticano: o (des)acordo republicano”, editado pelo CFEMEA. 3. Fonte: Articulação de Mulheres Brasileiras. Articulando a Luta Feminista nas Políticas Públicas – Desafios para a ação do movimento na implementação de políticas. 2009. www.cfemea.org.br.
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Destacamos, especialmente no II PNPM, a abertura de um capítulo específico sobre a sua previsão orçamentária, no qual se estabeleceu o rebatimento das ações do II Plano com as ações orçamentárias (do PPA). Criou-se assim, um instrumento para monitorar os montante de recursos aportados para o Plano e suas respectivas fontes. Apesar do compromisso de todos os ministérios com o II Plano, as informações indispensáveis a esse monitoramento, na grande maioria dos casos, não vêm sendo prestadas pelos gestores. Não há que se ter ilusões a esse respeito. As limitações foram muito grandes, porque o II PNPM não é parte do Ciclo Orçamentário; e porque a SPM (que coordena o Plano) não tem o mesmo poder que o Ministério do Planejamento (que coordena o PPA) para dar diretrizes aos demais ministérios sobre o enfrentamento das desigualdades de gênero. A ausência (raras vezes se pode falar em insuficiência) de vontade política no planejamento (tanto geral, como setorial e multissetorial) das políticas públicas foi uma barreira contra muitas possibilidades de avanço. O desenvolvimento de ambos os Planos se deu nessa arena política tensa e complexa. Os resultados obtidos são reveladores dos esforços empreendidos e dos obstáculos encontrados, especialmente quando nos referenciamos nas novas mudanças que, nos últimos oito anos, foram oportunizadas às mulheres. Pinçamos a seguir algumas metas do PNPM, relacionadas à saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; autonomia econômica e igualdade no mundo do trabalho; e enfrentamento de todas as formas de violência contra as mulheres; na tentativa de fazer um balanço, ainda que parcial. Vale lembrar que o racismo sofrido pelas mulheres negras, inclusive por parte dos agentes do Estado, impôs limites próprios e redobrados ao alcance de todas as metas estabelecidas. O mesmo se pode dizer em relação às lésbicas. Por isso mesmo, em 2008, a II Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres decidiu criar um eixo específico no II PNPM, exatamente para lidar com a realidade das mulheres sujeitas a múltiplas formas de discriminação: sexismo, racismo e lesbofobia. Entretanto, as medidas adotadas pelo governo e os instrumentos disponíveis para o monitoramento das metas sob essa ótica (da discriminação composta) ainda são muito incipientes, em geral inexistentes para prestar contas e dar transparência à repercussão da ação (ou omissão) do poder público para o alcance das metas estabelecidas. A seguir, evitaremos tratar as realizações, os recursos investidos, as instituições criadas como resultados em si (ainda que reconheçamos a sua importância). Afinal, pode-se trabalhar muito, realizar muito, gastar muito e, apesar de tudo, mudar e melhorar pouco a vida das mulheres, que é o que nos interessa avaliar.
SAÚDE DAS MULHERES: DIREITOS SEXUAIS E DIREITOS REPRODUTIVOS Metas traçadas no PNPM: g Reduzir em 15% a Razão de Mortalidade Materna, entre 2008 e 2011 g Garantir a oferta de métodos anticoncepcionais reversíveis para 100% da população feminina usuária do SUS; Os dois Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres (2004-2007 e 2008-2011) tiveram como meta reduzir a mortalidade materna4 em 15%. Entretanto, nenhum deles conseguiu atingi-la. Essa meta traduzida em termos de direitos na vida das mulheres significa avançar no sentido de que possamos viver bem, com saúde e não morrer por causas evitáveis. No sentido oposto, cada recuo nesse campo implica violação do direito à saúde e à vida, sofrimento, sequelas e, por último, a morte. Considerados os resultados alcançados na última década, vê-se que as políticas públicas andam a passos lentos. No ano 2000, haviam sido registradas as mortes de 1.677 mulheres em decorrência de complicações na gravidez, parto ou puerpério. Dessas, 92% mortes poderiam ter sido evitadas se o atendimento médico fosse adequado. Entretanto, passados 10 anos, em 2009, ainda registraram-se 1.513 mortes maternas, 10% delas decorrentes de aborto. O relatório brasileiro de 2010, sobre as Metas de Desenvolvimento do Milênio, publicado pelo IPEA, indica inclusive a possibilidade de um pequeno aumento, ao invés de redução da taxa de mortalidade materna. Projetou-se uma taxa entre 69 até 77 óbitos por 100 mil nascidos vivos entre 2008 e 2010. Os números oficiais para os três anos anteriores foram 72,1; 73,4; e 75,0. (IPEA,2010). Apesar de o governo ter conseguido garantir a oferta de métodos anticoncepcionais reversíveis para todas as usuárias do SUS, o êxito na distribuição desses medicamentos não repercutiu diretamente sobre a mortalidade materna. Para reduzi-la seria necessário enfrentar, em caráter prioritário e urgente, pelo menos três outras questões: a insuficiência do orçamento da saúde, os problemas de gestão e a criminalização do aborto. Não obstante, o governo manteve a desvinculação das receitas da seguridade social, contingenciou recursos do orçamento em ações de saúde e terceirizou serviços públicos nessa área. Agravou-se assim, uma série de problemas relacionados à exiguidade de profissionais de saúde para o atendimento à população, ao treinamento precário dos profissionais disponíveis,
4. Morte materna é a morte de uma mulher durante a gestação ou até 42 dias após o término da gestação, independentemente da duração ou da localização da gravidez. É causada por qualquer fator relacionado ou agravado pela gravidez ou por medidas tomadas em relação a ela. Não é considerada morte materna a que é provoca-da por fatores acidentais ou incidentais.
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TABELA 1: VALORES LIQUIDADOS (2008-2010) EM PROGRAMAS E AÇÕES COMPROMETIDOS COM A SAÚDE DAS MULHERES NO II PNPM (SOB RESPONSABILIDADE DO MINISTÉRIO DA SAÚDE) 1444 - VIGILÂNCIA, PREVENÇÃO E CONTROLE DE DOENÇAS E AGRAVOS VI
TOTAIS
9.823.814
163.812.351
25.790.396.775
143.181.764
8.704.142
154.400.558
27.489.907.454
28.158.831.111
138.995.445
3.797.100
123.767.551
28.498.618.977
145.875.856
106.936.881.391
569.085.062
30.748.693
591.405.175
81.778.923.207
127.710.627
523.709.720
97.857.049.207
696.712.493
44.888.015
1.132.339.421
100.382.409.483
85,3%
27,9%
109,3%
81,7%
68,5%
52,2%
81,5%
0016 - GESTÃO DA POLÍTICA DE SAÚDE I
1214- ATENÇÃO BÁSICA EM SAÚDE II
1220 - ASSISTÊNCIA AMBULATORIAL E HOSPITALAR ESPECIALIZADA III
2008
27.172.161
49.574.045
25.391.674.017
148.340.387
2009
29.415.827
23.854.210
27.130.350.953
2010
23.865.633
49.362.137
TOTAL
108.921.469
PREVISTO PPA
VALORES LIQUIDADOS
% TOTAL / PREVISTO NO PPA
1293 - ASSISTÊNCIA 1312- PROMOÇÃO DA CAPACIDADE FARMACÊUTICA E RESOLUTIVA E DA HUMANIZAÇÃO INSUMOS ESTRATÉGICOS IV NA ATENÇÃO À SAÚDE V
I. Apenas as ações 8705 e 8707 – II. Apenas as ações 20B1 e 8573 – III. Apenas as ações 7833; 8535; 8585; 8758; 8761 – IV. Apenas as ações 4368; 7660 – V. Apenas a ação 6175 - Atenção Integral à Saúde da Mulher VI. Apenas as ações 6170 e 8670 Fontes: Série Histórica do CFEMEA e SIGA Brasil (www.senado.gov.br/siga, Orçamentos Temáticos, Orçamento Mulher). Elaboração: CFEMEA. Valores deflacionados pelo IPCA.
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à degradação dos hospitais, à falta de equipamentos, à insuficiência de leitos hospitalares, entre tantos outros. Tais problemas demandavam investimentos crescentes e permanentes em infraestrutura e recursos humanos, tanto no que se refere à atenção básica, quanto ao atendimento de média e alta complexidade o que, contudo, não ocorreu. Destaca-se ademais que a ação orçamentária 6175 – Implementação de Políticas de Atenção Integral à Saúde da Mulher (que integra o Programa 1312 – Resolução da Capacidade Resolutiva e Humanização na Atenção à Saúde) é responsável por realizar e financiar metade das ações prioritárias do II PNPM no eixo de saúde. Nada menos que 31 das 276 ações prioritárias de todo o II PNPM dependem dela para o seu desenvolvimento. Ao considerarmos todo o período, de 2003 a 2010, como se pode constatar no gráfico a seguir, os recursos liquidados pela ação orçamentária de atenção integral à saúde da mulher, por quatro vezes, ficaram abaixo da linha dos 75%, sendo que em 2005, caíram para 3%.
GRÁFICO 2: AÇÃO ORÇAMENTÁRIA 6175 – ATENÇÃO INTEGRAL À SAÚDE DA MULHER: RECURSOS LIQUIDADOS DE 2003 A 2010 (EM %) 100% 90%
Liquidado/ Autorizado
80% 70% 60% 50% 40% 30% 20%
41
10% 0% 2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
Fontes: II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, Sigplan (www.sigplan.gov.br); e SIGA Brasil (www.senado.gov.br/siga, Orçamentos Temáticos, Orçamento Mulher). Elaboração: CFEMEA
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Um das metas do primeiro PNPM (2004-2007) era reduzir em 5% o número de complicações de aborto atendidas pelo Sistema Único de Saúde. A meta foi superada. O relatório apresentado pelo governo sobre o cumprimento do Plano aponta que “houve uma redução de 16% no número de complicações de aborto atendidas pelo SUS”. De todo modo, vale lembrar que o aborto inseguro é uma das principais causas de morte materna e, como sua prática é considerada criminosa, ela se dá na clandestinidade e muitas mulheres morrem sem que tais óbitos sejam registrados nas estatísticas oficiais. No campo normativo, uma importante iniciativa do governo Lula foi a revisão e reedição da Norma Técnica sobre a Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes. A Norma, de 1998, regulamenta o artigo 128, inciso I do Código Penal, que garante prática do aborto em caso de gravidez decorrente de estupro. Sua revisão inovou ao não exigir apresentação de Boletim de Ocorrência para vítima de estupro realizar o aborto legal, estabelecendo também condições e providências para a assistência no caso de violência sexual. Essa Norma representou uma grande conquista para as mulheres, que passaram a contar com regras e fomento para a implementação dos serviços de saúde especializados no atendimento às vítimas de violência sexual. Segundo relatório apresentado pelo governo, de 2007 para 2010 o número de serviços que prestavam esse tipo de atendimento passou de 138 para 442, sendo que desses 60 fazem atendimento para a realização do aborto previsto em lei (risco de vida para a mulher e gravidez resultante de estupro).
AUTONOMIA ECONÔMICA DAS MULHERES Meta do PNPM: g Adotar medidas que promovam a elevação em 5,2% na taxa de atividade das mulheres PEA, entre 2003 e 2007 (I PNPM); g Adotar medidas que promovam a elevação em 4% na taxa de atividade das mulheres com 16 anos ou mais, entre 2006 e 2011 (II PNPM).
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Mais do que o enfrentamento da pobreza pelas políticas de transferência de renda, o que se almeja com essas metas é nortear as políticas públicas à contribuir para que as mulheres possam romper com o legado histórico da dominação, que tem na dependência econômica um elemento fundamental para a sua manutenção. Daí porque o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, tanto em sua primeira edição quanto na segunda, insistiu em metas a esse respeito. Contudo, não chegou a
alcançá-las. De 2003 a 2008, a taxa de atividade das mulheres foi incrementada em 2,95%. Merece destaque o fato de ter dobrado o número de mulheres titulares da reforma agrária (elas eram 13% em 2003 e passaram a 25,8% em 20105). Mas considerando apenas o período de 2006 a 2008, a tendência foi de queda. Em 2003, a taxa de atividade das mulheres era de 50,7% e até 2006 esse percentual veio crescendo, chegando a 52,6%. A partir daí, entretanto, a tendência de queda se impôs. Entre 2006 e 2008 houve uma redução de 0,4%6 na taxa de atividade feminina. A inversão da tendência, ao que parece, se relaciona às opções feitas na área econômica do governo para o enfrentamento da crise financeira internacional, favorecendo setores da indústria intensivos em mão de obra quase que exclusivamente masculina. Aumentar a taxa de atividade feminina em 5,2% (meta fixada para o período 20032007), como se pôde confirmar nos últimos anos, é um objetivo que demanda ações governamentais em diversos setores. Não basta que haja crescimento econômico, nem é este o fator indispensável para que as mulheres se engajem em trabalhos remunerados. O fundamental é desonerar as mulheres do trabalho doméstico e de cuidado, assim como do trabalho comunitário, seja em fase de crescimento econômico, seja em momentos de crise, permitindo que elas liberem parte do tempo que dedicam a essas atividades em casa e na comunidade para o trabalho remunerado. Ademais, exige que o próprio Estado não conte com a dedicação gratuita de horas de trabalho das mulheres para o desenvolvimento das ações governamentais. E ainda, que invista na qualificação social e profissional das trabalhadoras, assim como na proteção e garantia dos seus direitos, inclusive contra a discriminação. Muitas dessas medidas estão relacionadas à área de seguridade social e, como se pode constatar no gráfico abaixo, não foi por falta de novas receitas no Orçamento da Seguridade Social (que contempla Saúde, Assistência Social e Previdência), mas sim por decisão política que não se tomou iniciativas nesse sentido. A arrecadação aumentou, mas os investimentos em políticas de seguridade social para a garantia dos direitos sociais e enfrentamento das desigualdades não acompanharam a mesma tendência. O gráfico abaixo demonstra que apenas metade dos recursos arrecadados para o Orçamento da Seguridade Social foi aplicada na própria Seguridade Social. O restante é possível que tenha sido contingenciado para a formação de reservas financeiras ou transferido para outras finalidades, como o pagamento da dívida pública, que anualmente abocanha 1/3 do Orçamento da União. 5. Fonte: Brasil. Presidência da República. Secretaria de Comunicação Social. Destaques – Ações e Programas do Governo Federal. Secretaria de Comunicação, Brasília, 2010 6. Dados IBGE/PNAD de 2007, 2008 e 2009, referentes à atividade das mulheres de 10 anos ou mais de idade.
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GRÁFICO 3 - ARRECADAÇÃO BRUTA E GASTOS DO ORÇAMENTO DA SEGURIDADE SOCIAL, DE (2003-2008 - R$ BILHÕES)
Arrecadação Bruta União (R$ bilhões)
R$ 800 R$ 700 R$ 600
medidas e as trabalhadoras ficaram ainda mais desprotegidas. Ademais, a atividade reprodutiva, que onera sobremaneira as mulheres, face a escassez de recursos nas famílias (agravada pela crise) e a falta de infraes-trutura social para os cuidados, terminou por cobrar ainda mais horas das mulheres no trabalho não remunerado. g
QUALIFICAÇÃO SOCIAL E PROFISSIONAL Por sua vez, as políticas sociais relacionadas à qualificação social e profissional, apesar das decisões e compromissos assumidos no II PNPM, não conseguiram produzir mudanças em termos de ampliação do acesso das mulheres ao mercado de trabalho. Uma das metas do II PNPM é capacitar 12 mil mulheres no âmbito do Plano Trabalho Doméstico Cidadão (lançado em 2005, pelo Ministério do Trabalho e Emprego, em parceria com a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e com a SPM). Porém, desde o início do Plano, em 2008, não vem sendo executada a ação orçamentária 4733 - Qualificação Social e Profissional de Trabalhadoras Domésticas e Outras Populações em Situação de Alta Vulnerabilidade (que integra o Programa 0101 – Qualificação Social e Profissional)8, para a qual o PPA previa o montante de R$36,7 milhões no quadriênio 2008-2011.
g
ANALFABETISMO
Gasto Seguridade (R$ bilhões)
R$ 500 R$ 400 R$ 300 R$ 200 R$ 100 R$ 2003
2004
2005
2006
2007
2008
Fontes: Receita Federal (Carga Tributária 2003 a 2009) e SIGA Brasil www.senado.gov.br/siga. Elaboração: CFEMEA
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Não só na Seguridade Social, mas também nas políticas públicas na área da educação faltaram ações substantivas para favorecer a participação das mulheres no mercado de trabalho. Não houve a necessária conjugação de esforços para enfrentar a divisão sexual do trabalho. As ações empreendidas em relação aos restaurantes públicos ou subsidiados foram de escala muito pequena7. Na área da educação (creches, pré-escolas e escolas em tempo integral) planejou-se muita coisa, mas cumpriu-se quase nada, como poderemos ver com maiores detalhes mais adiante. Os recuos observados a partir de 2006 em relação à participação das mulheres no mercado de trabalho têm a ver com as estratégias adotadas pelo governo frente à crise financeira internacional e seus efeitos prolongados sobre a vida das mulheres. Destaca-se que a ação governamental para fortalecer a atividade econômica e manter o emprego, em especial as isenções tributária e outros incentivos foram direcionados às indústrias intensivas em mão de obra quase que exclusivamente masculina. A atividade produtiva que concentrava a força de trabalho feminina não desfrutou das mesmas
Fixou-se metas, também, para a diminuição do analfabetismo entre as mulheres nos dois PNPM, que foram superadas. No último período previu-se a redução de 9,64% para 8% a taxa de analfabetismo feminino, entre 2006 e 2011, e a redução de 13,38% para 11% a taxa de analfabetismo das mulheres negras. Os dados apresentam melhoras razoáveis: segundo o Relatório dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio 2010 (IPEA, 2010), com dados de 2005 a 2008, a taxa de alfabetização para mulheres acima de 15 anos elevou-se de 98,1% para 98,5%, e entre a população negra esse número subiu de 96 para 97,3%. Um dos responsáveis no PNPM pela promoção da alfabetização de mulheres jovens e adultas é o Programa Brasil Alfabetizado, que de 2008 a 2010 apresentou execução de quase 80% do total autorizado no Orçamento da União. Segundo publicação da SPM (2010), as mulheres são maioria entre os alfabetizados desse programa desde 2005: elas são 57%, enquanto os homens são 43%. A população atendida é majoritariamente negra (76,6%, sendo 12,4% preta e 64,2% parda) e do Nordeste.
7. Os restaurantes públicos ou subsidiados são aqueles que oferecem refeição ao preço aproximado de R$1 por pessoa, em várias cidades brasileiras. No total, o Governo Federal executou (pagou), de 2003 a 2010 R$ 120,3 milhões nas ações de apoio à instalação de restaurantes e cozinhas públicas.
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8. Fonte: Sigplan (www.sigplan.gov.br); e SIGA Brasil (www.senado.gov.br/siga, Orçamentos Temáticos, Orçamento Mulher).
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EDUCAÇÃO INFANTIL PARA ALIVIAR A SOBRECARGA DA DUPLA JORNADA Entre as metas traçadas no PNPM para enfrentar o problema estão: g aumentar em 12% o número de crianças entre zero e seis anos de idade frequentando creche ou pré-escola na rede pública; g construir 1.714 creches e pré-escolas, entre 2008 e 2011 (II PNPM).
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Essa meta de ampliação em 12% das matrículas em creches e pré-escolas foi firmada tanto no primeiro quanto no segundo PNPM (2004-2007 e 2008-2011). Em 2007, o relatório apresentado pela SPM sobre o cumprimento do primeiro Plano indicava que seria difícil cumpri-la, posto que até 2006 as matrículas de educação infantil no Brasil haviam crescido apenas 5,84%. No período seguinte, os entraves persistiram e se agravaram. A mesma meta está ainda longe de ser atingida, visto que entre 2008 e 2009 o crescimento verificado pelo Censo Escolar das matrículas em creches e pré-escolas foi de apenas 0,1% (considerando os estabelecimentos municipais, estaduais e federais, tanto públicos quanto privados). Ao olharmos para os recursos orçamentários executados de 2008 a 2010, vemos que as ações do Programa Qualidade na Escola que financiariam o alcance dessa meta9, em seu conjunto apresentaram execução orçamentária (recursos liquidados) acima de 70% nos três últimos anos (92,12% em 2008; 71,20% em 2009 e 88,79% em 2010). Há que se destacar que desde 2007, os problemas de financiamento tiveram melhor encaminhamento, com a aprovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb. Afinal, os recursos desse Fundo destinam-se ao financiamento de toda a educação básica, inclusive creches e pré-escolas, o que antes, com o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (Fundef) não se tinha. Contudo, apesar da ênfase dada pela Presidenta Dilma em sua campanha à questão das creches públicas, a dotação inicial de R$ 31 milhões prevista no Orçamento da União de 2011 para essas ações é muito inferior aos recursos autorizados anteriormente (em 2010, foram autorizados R$ 2,4 bilhões; em 2009, R$ 1,5 bilhões e em 2008 1,2 bilhões)10. Enfim, há que se aguardar esclarecimentos a respeito de quais serão as fontes e que montante de recursos da União será aportado para apoiar os municípios no financiamento da 9. As ações orçamentárias do programa 1448 – Qualidade na Escola a que nos referimos são: 0509 – Apoio ao Desenvolvimento da Educação Básica; 09CW – Apoio a reestruturação da rede física pública da educação básica; 8682 – Apoio a elaboração da proposta pedagógica, práticas e recursos pedagógicos da educação infantil; e 8746 – Apoio à aquisição de equipamentos para a rede pública de educação infantil. 10 Fonte: Sigplan (www.sigplan.gov.br); e SIGA Brasil (www.senado.gov.br/siga, Orçamentos Temáticos, Orçamento Mulher).
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rede pública de educação infantil. (Legalmente, a competência primeira com a garantia da educação infantil é dos municípios). De toda maneira, a enorme distância que nos separa da meta traçada nos dois Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres deixa claro que a estratégia da política e os recursos executados na esfera da União até agora não foram eficientes e nem suficientes para garantir às crianças o seu direito à educação, nem tampouco às mulheres algum grau de redução da sobrecarga injusta decorrente da divisão sexual do trabalho e da dependência econômica que ela gera.
ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES Meta traçada no II PNPM: g Construir/reformar/re-aparelhar 764 serviços especializados de atendimento às mulheres em situação de violência A aprovação da Lei Maria da Penha e o Pacto Nacional de Enfrentamento da Violência contra as Mulheres foram, sem dúvida, grandes propulsores da política nessa área. O Balanço Geral do Pacto apresentado pelo governo, informa que o esforço da Secretaria de Políticas para as Mulheres e dos Ministério da Justiça e da Saúde para conseguir-se apoiar 928 serviços de atendimento às mulheres em situação de violência. Relatam ainda, entre várias outras realizações, a capacitação de 573 mil profissionais para atuar nessa área. Ou seja, a meta traçada no PNPM foi superada. Mas os desafios continuam sendo enormes. Somos o sexto país mais violento do mundo quando se trata de homicídios, de acordo com o “Relatório Mundial sobre Violência e Saúde”, elaborado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Como a violência tem sexo e cor, morrem mais negr@s (pret@s e pard@s) do que branc@s, e mais homens do que mulheres: 92% das vítimas são do sexo masculino. As mulheres, embora não sejam as maiores vítimas dos homicídios, são as principais vítimas de outras formas de violência como o assédio moral e sexual, abuso, espancamento e estupro. Um terço delas já foi vítima de violência física perpetrada por um homem, na maioria esmagadora dos casos pelo marido, ex-marido ou ex-namorado11. Mas ainda faltam informações básicas sobre a violência contra as mulheres12. 11. Pesquisa A Mulher Brasileira nos Espaços Públicos e Privados, realizada pela Fundação Perseu Abramo em 2002 12 Suzana Cavenaghi aponta que faltam indicadores no Brasil (referentes ao número de casos, freqüência, gravidade das agressões e identificação dos tipos de agressão física e psicológica) porque não há pesquisas com desenho adequado e com a periodicidade necessária sobre a violência contra as mulheres no país. (Gênero e Raça no Ciclo Orçamentá rio e Controle Social das Políticas Públicas. CFEMEA: Brasília, 2008.)
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Como se vê pelo gráfico abaixo, a mortalidade das mulheres por homicídios tem crescido e atingido cada vez mais as mulheres negras e menos as mulheres brancas. Em 2003, quando começou o primeiro mandato do Presidente Lula, a tendência de redução de homicídios entre mulheres brancas se iniciou e se manteve lenta e constante até 2006. Para as mulheres negras, entretanto, o que chama atenção é o contrário, o aumento constante da taxa de homicídios.
apoiados pela SPM antes do Pacto e as brancas, depois. Esclarecemos que entre o apoio ofertado pela SPM ao estado e o serviço prestado pelo estado às mulheres vai uma distância considerável, que esse mapa não apresenta.
MAPA 1: SERVIÇOS DE ATENDIMENTO À MULHER VÍTIMA DE VIOLÊNCIA APOIADOS PELA SECRETARIA DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES – GOVERNO FEDERAL, ANTES E DEPOIS DO PACTO NACIONAL
GRÁFICO 4 - TENDÊNCIA DA TAXA DA MORTALIDADE POR HOMICÍDIOS NO SEXO FEMININO E RISCO RELATIVO*, SEGUNDO RAÇA/COR (BRASIL, 2000-2006)
Fonte: SIM/SVS - *rr tem como referência a população branca
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O Pacto de Enfrentamento da Violência contra as Mulheres é uma iniciativa para combater esse problema, que reuniu os governos federal e estaduais, e alguns municípios. Todos os estados brasileiros aderiram ao Pacto, que favoreceu uma melhor articulação entre os esforços dos governos estaduais e federal nesse sentido, permitindo a sua expansão e/ou fortalecimento. No mapa13 a seguir, as marcas pretas são dos serviços 13. Fonte: Apresentação de autoria da Dra. Katia Guimarães, Diretora da Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, da SPM. Mimeo, novembro de 2010. Brasília.
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Fonte: SIM/SVS - *rr tem como referência a população branca
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TABELA 2: SERVIÇOS NA REDE DE ATENDIMENTO ÀS MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA
GRÁFICO 5: PROGRAMA DE PREVENÇÃO E ENFRENTAMENTO À VCM RECURSOS AUTORIZADOS (2003 - 2011*)
SERVIÇO
2008
2010
AUMENTO 45.000.000
NÚCLEOS DE ATENDIMENTO / DEFENSORIA PÚBLICA
15
56
41
20.000.000 15.000.000
DEAMS OU POSTOS ESPECIALIZADOS
404
475
71
10.000.000 5.000.000
JUIZADOS ESPECIALIZADOS / VARAS VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
53
147
94
NÚCLEOS MINISTÉRIOS PÚBLICOS ESTADUAIS ESPECIALIZADOS VIOLÊNCIA
0
NÚCLEOS DE ENFRENTAMENTO DO TRÁFICO DE PESSOAS
0
8
8
CENTROS DE RESPONSABILIZAÇÃO DO AGRESSOR
0
7
7
650
926
276
19
42.316.122
34
41.250.000
146
40.909.000
112
30.776.878
CENTRO DE REFERÊNCIA
26.561.431
35.000.000 30.000.000 25.000.000
16.502.825
2
12.345.563
68
13.704.106
66
29.744.233
CASA-ABRIGO
40.000.000
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011*
19 Fontes: Série Histórica do CFEMEA e SIGA Brasil (www.senado.gov.br/siga, Orçamentos Temáticos, Orçamento Mulher). Elaboração: CFEMEA / *recursos aprovados na Lei Orçamentária Anual para 2011, ainda não sancionada.
% TOTAL / PREVISTO NO PPA
Fontes: II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (2008) e publicação “Com todas as mulheres, por todos os seus direitos” (2010). Elaboração: CFEMEA / * como não temos dados sobre o número de serviços reformados e equipados, esse número pode ser menor.
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Além de maior agilidade e articulação proporcionadas pelo Pacto, um dos fatores que determinou o ritmo de instalação de novos serviços ou reaparelhamento e reforma dos já existentes foi a ampliação dos recursos públicos autorizados para o enfrentamento da violência contra as mulheres, em programas estrategicamente concebidos e desenvolvidos para superar o problema. O gráfico a seguir apresenta a evolução dos recursos autorizados de 2003 a 2011 no caso do Programa 0156 – Prevenção e Enfrentamento à Violência contra as Mulheres.
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O mesmo não se pode dizer em relação à execução das ações orçamentárias do PRONASCI – Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, relacionadas ao financiamento do PNPM. Entre 2008 e 2010 haviam sido executadas apenas 18% do previsto no PPA 2008-2011. Desses 18% não é possível saber quanto foi gasto (ou não) para o enfrentamento da violência contra as mulheres. As iniciativas governamentais para enfrentar a violência contra as mulheres de um modo geral foram apoiadas e favorecidas pela participação e controle social, assim como pelas mobilizações e ações de advocacy realizadas pelo movimento de mulheres. Aos recursos propostos pelo Executivo em seus projetos anuais de Lei Orçamentária, novos foram mobilizados pelas ações do movimento no Congresso Nacional em articulação com a Bancada Feminina e a SPM assegurando o incremento substantivo do volume autorizado. Ademais, ao longo de cada ano, o controle social sobre a execução orçamentária dos recursos autorizados foi vigilante na denúncia do contingenciamento de recursos que insistentemente prejudicou o ritmo e muitas vezes comprometeu a execução de projetos nessa área. Destacamos ainda que, por iniciativa do movimento de mulheres, a Lei de Diretrizes Orçamentárias, todos esses anos, estabeleceu prioridade para várias ações nesse campo. E agora, para o Orçamento de 2011, o Programa de Prevenção e
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Enfrentamento da Violência contra as Mulheres estará (também por iniciativa do movimento) livre do contingenciamento de recursos. A proposta apresentada em anos anteriores à Comissão de Legislação Participativa pelo CFEMEA, já havia recebido dois vetos da Presidência da República. No último ano do seu mandato, entretanto, o Presidente cedeu às reivindicações e sancionou a LDO 2011 proibindo a “limitação de empenho” nesse programa. A ação do movimento conseguiu romper muitas barreiras, mas o monitoramento que vem sendo realizado pela Articulação de Mulheres Brasileiras em vários estados, assim como pelo Observe, não deixa dúvida sobre a insuficiência dos serviços existentes, sobre a má qualidade e a precariedade do atendimento prestado em muitos deles, inclusive pelo despreparo dos funcionários, pela falta de pessoal e de equipamentos, entre tantos outros problemas. Todavia, é necessário lembrar que as ações e serviços de segurança pública necessários à implementação da Lei Maria da Penha e à segurança pública de um modo geral são primeiramente da competência dos estados, e não da União, conforme as normas que regem o pacto federativo. De maneira que o compromisso da esfera estadual é determinante para o alcance das metas estabelecidas.
A LEI MARIA DA PENHA IMPLANTAR A LEI AINDA É UM GRANDE DESAFIO. por Myllena Calasans de Matos – advogada e integrante da equipe do CFEMEA
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A Lei Maria da Penha foi sancionada pelo Presidente Lula, mas é bom não perder da memória o fato de que ela é oriunda da iniciativa de seis organizações do movimento feminista (CFEMEA, ADVOCACI, CEPIA, AGENDE, THEMIS e CLADEM) e juristas feministas que em 2002 formaram o Consórcio de ONGs feministas para elaboração de uma lei integral de combate à violência doméstica e familiar contra as mulheres. O Consórcio elegeu para si a missão de estudar e elaborar uma minuta de
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projeto de lei que, além de estabelecer medidas de prevenção, punição e erradicação da violência doméstica e familiar contra as mulheres, também propôs a criação de diretrizes para a política nacional para o enfrentamento da violência doméstica e familiar, novos procedimentos policiais e processuais e a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Em março de 2004, a Secretaria de Políticas para as Mulheres instalou o Grupo Interministerial que utilizou como documento-base o estudo realizado pelo Consórcio. Em novembro do mesmo ano, a Secretaria encaminhou o Projeto de lei à Câmara dos Deputados, que, até ser transformado em Lei, foi marcado por mobilizações de apoio, realização de audiências públicas e seminários14. Essa forma de discussão constituiu um diferencial na elaboração das leis, pois teve a participação ativa dos movimentos de mulheres e feministas, das mulheres que sofreram violência doméstica, de parlamentares, gestores públicos e representantes do Poder Judiciário e Executivo. A Lei estabelece um novo conceito de violência doméstica e familiar, que passou a ser uma violação dos direitos humanos das mulheres e qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial à mulher - podendo ser praticada no âmbito da unidade doméstica, da família ou em qualquer relação pessoal afetiva – inclusive protegendo os relacionamentos homo afetivos, ao preceituar que as relações afetivas independem de orientação sexual. A Lei elenca diretrizes para a elaboração da política pública de enfrentamento à violência doméstica, com ações articuladas entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios e ações não-governamentais.
14. Várias organizações e redes do movimento feminista e de mulheres se mobilizaram. Destacamos aqui a iniciativa dos fóruns de mulheres de todo Brasil, que seguindo o Fórum do Estado de Pernambuco, realizaram em março de 2006, as Vigílias pelo Fim da Violência contra as Mulheres, para denunciar a violência e os homicídios de mulheres e pedir a aprovação do PL 4.559/2004.
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Articula, também, a assistência à mulher vítima de violência com os princípios do sistema de saúde, de segurança pública e de assistência social. Garantiu-se a inclusão no cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal, a transferência de local de trabalho (quando servidora pública) e a manutenção do vínculo trabalhista por até seis meses (quando celetista), além de acesso aos benefícios do desenvolvimento cientifico e tecnológico . Ademais, a LMP restabeleceu o inquérito policial para apurar os crimes de violência doméstica e garantiu a assistência jurídica gratuita em sede policial e judicial, bem como medidas protetivas de urgência (que devem ser decididas pelo juiz no prazo de 48 horas). Previu a criação de centros de atendimento psicossocial e jurídico, casas-abrigo, delegacias especializadas, núcleos de defensoria pública, núcleos de promotoria especializados, serviços de saúde, centros especializados de perícias médico-legais e centros de educação e de reabilitação para os agressores. Para proteger as mulheres ficou garantido que os bens indevidamente subtraídos pelo agressor poderão ser restituídos e foi permitida a suspensão das procurações conferidas pela mulher ao agressor. Determina que a Lei 9.099/95 não mais poderá ser aplicada no julgamento dos crimes de violência doméstica e familiar contra as mulheres. Em substituição aos JECRIMs, estabelece a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência para julgar os processos civis e criminais. A Lei Maria da Penha também proibiu a aplicação de penas de prestação pecuniária e de cesta básica, possibilitou a prisão em flagrante e prisão preventiva para garantir a execução das medidas protetivas de urgência quando a integridade física da mulher estiver ameaçada. Estabeleceu aumento da pena do crime de violência doméstica (§ 9º do art. 129 do Código Penal) que passou de 6 meses a 1 ano para 3 meses a 3 anos, bem como previu aumento da pena em até 1/3, se a violência for cometida contra a mulher portadora de deficiência.
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A LEI MARIA DA PENHA AMEAÇAS À LEI MARIA DA PENHA por Myllena Calasans de Matos – advogada e integrante da equipe do CFEMEA
O Poder Judiciário tem se mostrado a instância com maior resistência para aplicar a Lei. Em março de 2010, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que, nos casos de lesão corporal qualificada pela violência doméstica, a mulher vítima de violência deve representar, assumindo individualmente a responsabilidade pela denúncia, para que se inicie a ação penal15, decisão que pode fomentar ainda mais o arquivamento de processos criminais. Enquanto isso, no Supremo Tribunal Federal tramita a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC-19 de 2007), proposta pelo Presidente da República, com a finalidade de obter a declaração de constitucionalidade da lei, por entender que a lei não viola o princípio da igualdade entre homens e mulheres (art. 5º, I, CF); a competência atribuída aos Estados para fixar a organização judiciária local (art. 125 § 1º c/c art. 96, d, CF) e a competência dos juizados especiais (art. 98, I, CF). As organizações feministas CLADEM, THEMIS e Antígona solicitaram ao STF para atuarem como Amici Curiae (“Amigas da Corte”) a fim de defenderem a constitucionalidade da Lei. Além disso, tramita no STF uma Ação Direta de Inconstitucionalidade impetrada pelo Procurador-Geral da República para que o STF declare que a Lei 9099/95 não se aplica, em nenhuma hipótese, aos crimes cometidos no âmbito da Lei Maria da Penha; de forma que o inquérito e o processo criminal prossigam, independentemente da vontade da vítima, nos crimes de lesão corporal leve e culposa cometidos com violência doméstica e familiar. 15. Para reverter a decisão do STJ, a Procuradoria Geral da República moveu uma Ação Direta de Inconstitucionalidade.
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CONCLUSÃO No Congresso Nacional tramitam mais de vinte proposições legislativas que propõem modificações ao texto original ou impactam diretamente a Lei. O Projeto de Lei do Senado nº 156/2009 (Reforma do Código de Processo Penal) representou uma grande ameaça à proposta original da Lei Maria da Penha, visto que propunha a incorporação da Lei 9.099/95 no Código do Processo Penal, e, com isso, obstaria penalmente a Lei Maria da Penha e o disposto em seu art. 41, segundo o qual “Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995”. O movimento feminista, a SPM e operadores do direito que defendem a Lei denunciaram e se articularam para alterar o texto do Projeto, o que foi conseguido em 2010. Desde que a Lei Maria da Penha foi promulgada, o movimento feminista e de mulheres tem desenvolvido ações em sua defesa em todos os âmbitos. São ações de rua, de monitoramento dos projetos de lei no Congresso Nacional, de acompanhamento das decisões, de ações no Poder Judiciário e no orçamento público do Poder Executivo16 no intuito de assegurar que a lei cumpra sua finalidade: proporcionar as mulheres uma vida sem violência. Para o movimento, a Lei só precisaria ser alterada após os cinco primeiros anos de vigência, com modificações baseadas em observações empíricas e elaboradas por uma Comissão composta por parlamentares, juristas, Poder Executivo e representantes do movimento feminista e de mulheres.
16. Como exemplo citamos a iniciativa da Articulação de Mulheres Brasileiras, que tem promovido
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desde 2006 videocon-ferências para discutir a Lei e apresentar Balanço de sua implementação. Em 2009 e março de 2010, a AMB realizou duas edições da Comitiva em defesa da Lei Maria da Penha para incidir politicamente perante os poderes públicos e chamar atenção da sociedade em geral. Como produto da comitiva, deflagrou-se a campanha “Mexeu com a Lei Maria da Penha, mexeu com todas as mulheres: a Lei precisa de recursos e não de mudanças”
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Como pudemos constatar: g foram implacáveis as barreiras erguidas contra a participação das mulheres nos espaços de poder. Nem a mudança da legislação eleitoral em 2009, que passou a exigir a ocupação (não apenas a reserva) de cotas por sexo (30% no mínimo e 70% no máximo para cada sexo) conseguiu alterar o quadro de subrepresentação feminina na Câmara dos Deputados. Todos os partidos, sem exceção, descumpriram as cotas exigidas por lei. g
a política de enfrentamento da violência contra as mulheres conseguiu, um ano antes de encerrar o II PNPM, superar as metas traçadas para o quadriênio 2008-2011. Nesses oito anos, a Lei Maria da Penha foi discutida e sancionada, o Pacto Nacional veio sendo articulado e finalmente implementado. Contudo, as ações empreendidas pelo poder público (entre os níveis municipal, estadual e nacional) ainda não foram suficientes para evitar que, ano a ano, o número de mulheres assassinadas continue crescendo. Embora sigamos sem informações oficiais nacionais sobre a ocorrência das outras formas de violência contra as mulheres, em se tratando de violência doméstica é razoável supor que tais assassinatos sejam a conclusão de uma série longa e duradoura de violências, que os serviços públicos existentes ainda não conseguiram interromper. O problema da violência, que nesses oito anos alçou status político de relevância, ainda continua a exigir (especialmente dos governos estaduais, que são constitucionalmente os responsáveis pela segurança publica) medidas efetivas para prevenir e proteger as mulheres contra a violência e punir seus agressores.
g
há um abismo que não permite estabelecer correspondência entre o Ciclo Orçamentário e a Política de Atenção Integral a Saúde da Mulher. O financiamento de uma gama enorme de ações dessa política por uma única ação orçamentária (como demonstra o rebatimento do eixo de saúde da mulher do II PNPM com o PPA 2008-2011) aponta limites cruciais. As diretrizes e estratégias da Política de Atenção Integral a Saúde da Mulher, na medida em que não encontraram correspondência no planejamento e no orçamento da saúde, sofreram limitações drásticas para a sua execução. O fracasso no alcance da meta de redução da mortalidade materna fala muito alto a esse respeito, porque evidencia a insuficiência dos recursos, a fragmentação das ações programáticas e a ausência de monitoramento e avaliação que corrigissem erros e orientassem, nesses oito anos, o orçamento publico e seus programas ao alcance da meta de redução da mortalidade materna.
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g O problema na área da saúde, de uma maneira geral se repete (com maior ou menor intensidade) em todas as áreas. Continua sendo uma incógnita o volume de recursos públicos destinado à implementação das políticas para as mulheres e a promoção da igualdade. O conceito político de transparência que orientou a ação governamental, focado no combate à corrupção, continuou invisibilizando as desigualdades de gênero e raça produzidas e reproduzidas pelas finanças públicas (tributação e orçamento). Apesar de, nos últimos 8 anos, haver exigências da Lei de Diretrizes Orçamentárias em relação à administração direta e às empresas públicas para prestarem contas a esse respeito; e apesar também dos esforços, compromissos e instrumentos criados para o monitoramento das ações e recursos comprometidos no II PNPM, ninguém sabe quanto está sendo investido por cada ministério para financiá-lo. g o Brasil ficou em 3º lugar no ranking latino-americano sobre paridade (entre mulheres e homens) econômica e laboral17, um feito que em grande parte se deve ao programa de transferência de renda. Mas não conseguimos ir alem da metade do caminho em relação à meta traçada de ampliação da taxa de atividade feminina. O atraso no alcance dessa meta, num contexto geral de crescimento econômico, tem a ver com a estratégia governamental de combate a pobreza, que aceitou convenientemente que as mulheres pobres dedicassem grande parte de seu tempo aos cuidados com a família e demais tarefas domesticas, sem criar alternativas em termos de políticas públicas para que elas pudessem romper com a situação de dependência econômica e desproteção social em que se encontram. A escassez de vagas oferecidas na educação infantil pública evidencia essa opção. Outro fator que nos distanciou da meta está relacionado às decisões econômicas no contexto da crise financeira, que incentivaram exclusivamente as empresas do setor produtivo intensivas em mão de obra masculina, com repercussões inevitáveis sobre as desigualdades de gênero no mercado de trabalho.
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esses oito anos, a superação das desigualdades vividas pelas mulheres se firmou como N desafio para as políticas publicas. Como pudemos ver, novos mecanismos institucionais, novos compromissos políticos foram firmados no sentido de garantir o direito de todas as mulheres, mas avançou-se menos do que o compromissado em alguns aspectos, em outros até retrocedeu-se. Em meio a inúmeros conflitos, tendo que enfrentar embates com opositores reacionários e poderosos, as lutas feminista e antirracista conseguiram, durante os dois governos Lula, fincar algumas cunhas que permanecem na estrutura do Estado patriarcal e racista, exigindo responsabilidade e ação do poder público na superação das desigualdades e no combate às injustiças. 17. Fonte: Articulacion Feminista MarcoSur. ISOQuito – um instrumento para o seguimento do Consenso. 2010. WWW.mujeresdelsur-afm.org.uy.
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A promocao da igualdade racial na era Lula
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MARILENE DE PAULA Mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais, Coordenadora da área de Direitos Humanos da Fundação Heinrich Böll.
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á se passaram 15 anos da histórica declaração do então Presidente Fernando Henrique Cardoso admitindo a existência do racismo e da discriminação racial no Brasil2. Isto aconteceu em 20 de novembro de 1995, por ocasião dos 300 anos de morte do herói negro, Zumbi dos Palmares. Muitas foram as atividades e manifestações construídas e realizadas pelo próprio Estado brasileiro e pelo movimento social negro, tendo na Marcha Zumbi dos Palmares, sua expressão mais exitosa. 30 mil militantes da causa antirracista marcharam em Brasília e se encontraram, naquele mesmo dia, com o Presidente entregando-lhe documento exigindo políticas públicas para a população negra. Nos oito anos seguintes algumas iniciativas foram realizadas, como a criação de conselhos e grupos de trabalho3 com a participação da sociedade civil e a adoção de ações afirmativas em ministérios e agências governamentais. Os anos do governo Fernando Henrique inauguraram um campo específico das políticas públicas: a promoção da igualdade racial, definitivamente pondo fim à “invisibilidade” dos negros e negras para o Estado Brasileiro. Dois fatos marcantes colocaram a questão das políticas de ação afirmativa para negros na pauta nacional: a implantação, em 2001, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), de uma política de cotas para inserção de alunos negros no ensino superior, gerando um debate acalorado que tomou espaço na mídia, na academia e na sociedade em geral. Sob protestos e adesões favoráveis dos vários atores (mídia, academia e movimento social negro), ao longo dos últimos nove anos, outras universidades em todo o Brasil também adotaram sistemas similares em seus processos de admissão4. O segundo fato foi a realização da Conferência Mundial da ONU contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, em 2001 na África do Sul. Durante o processo de preparação da Conferência de Durban, como ficou conhecida, foram realizadas várias reuniões preparatórias em quase todos os estados brasileiros. O próprio governo federal financiou pelo menos 18 conferências em algumas regiões e estados, além de 15 estados terem promovido suas próprias conferências preparatórias.
1. Agradeço aos comentários e sugestões de Walmir dos Santos durante a elaboração desse artigo. 2. Ver mais em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/11/21/cotidiano/29.html, acesso 10/01/2011. 3. Foram criados durante o governo FHC três importantes grupos de trabalho para pensar políticas de igualdade racial: o Grupo Interministerial de Valorização da População Negra – GTI, Grupo de Trabalho Multidisciplinar – GTM, Grupo de Trabalho contra a Discriminação no Emprego e na Ocupação – GTDEO. 4. Atualmente tramitam ações no Supremo Tribunal Federal questionando a constitucionalidade das cotas (ver exemplo na Argüição de Descumprimento do Preceito Fundamental – ADPF no. 186, disponível em http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADPF&s1=186&processo=186, acesso no dia 20/02/2010) e no Senado Federal o projeto de lei 73/99 que prevê a reserva de 50% de vagas em universidades públicas para alunos oriundos de escolas secundárias da rede pública. Dentro deste percentual 25% seriam para jovens de baixa renda e a outra metade para negros e indígenas, de acordo com a proporção étnico-racial nos Estados.
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O governo brasileiro naquela ocasião sofria uma pressão internacional, produto das articulações da rede de contato do movimento social negro que desde o fim da década de 1980 tornava possível a presença de lideranças em vários fóruns internacionais, desmistificando a visão de que no Brasil não haveria racismo e sim, a convivência harmônica entre os grupos raciais. No depoimento de Edna Rolland (ALBERTI & PEREIRA, 2007:361) podemos observar isto: “para os americanos e sul-africanos que estavam lá5, eu creio que houve uma compreensão de que, derrotado o apartheid na África do Sul, o Brasil era o próximo front”. De fato, os brasileiros se tornariam o centro das atenções nos debates durante a Conferência. A defesa das ações afirmativas se tornou o carro-chefe das reivindicações do movimento social negro, apesar das resistências ideológicas e políticas. Quando analisamos as medidas implementadas pelo governo Fernando Henrique percebemos que as mais emblemáticas foram realizadas no período de preparação ou pós-Durban. O legado para o governo Lula é um amplo e diversificado corpo de iniciativas e reflexões sobre a temática racial instaurado na opinião pública, nos movimentos sociais, no próprio governo e na academia. No novo governo uma pressão interna aos centros de decisão do poder feita pelos militantes da causa antirracista e antissexista, institucionalizados no PT, exigiam medidas de ação afirmativa para vários segmentos, em especial mulheres e negros. Na posse do novo governo dois negros de reconhecimento nacional sinalizavam a inclusão das questões raciais exigida na gestão pública: Benedita da Silva, senadora pelo PT, um dos ícones da luta antirracista e antissexista, tomou posse como titular da pasta do Ministério de Assistência e Promoção Social e Gilberto Gil, no Ministério da Cultura. Outro ato importante foi a indicação para o Supremo Tribunal Federal (STF), instância máxima do Judiciário, do primeiro ministro negro, Joaquim Barbosa Gomes, também em 2003. Matilde Ribeiro, titular da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), a qual falaremos mais adiante, fecharia o leque de representações dos negros dentro do primeiro escalão. A SEPPIR tinha papel privilegiado como articuladora de ações, mas obviamente essas políticas não se esgotavam nessa iniciativa. O desafio do governo Lula era responder às demandas dos movimentos sociais negros e a todo um debate que se instaurara na sociedade. O que não significava apenas a criação de um órgão ou instância, mas a implementação de políticas de igualdade racial. É o que veremos a seguir, ou seja, um breve levantamento de algumas ações do governo Lula nesse campo, entendendo como políticas de ação afirmativa, aquelas cuja diretriz, ação ou programa estejam explicitamente direcionados para a população negra. Assim, darei ênfase a algumas ações devido a sua importância estratégica ou resultado alcançado. Obviamente, um leque de políticas universais em várias áreas também atinge essa população e auxilia na superação das desigualdades raciais, porém não farão parte de minha análise.
A discussão sobre o racismo e a discriminação racial não eram novos no PT. Na campanha de 2002 do então candidato Lula, o tema das desigualdades raciais já era tratado no documento Brasil sem Racismo, que compunha as propostas de governo do Partido dos Trabalhadores e seus coligados. As propostas eram resultado de encontros regionais organizados pela Secretaria Nacional de Combate ao Racismo, criada pelo PT desde 1993, e que foi fundamental nas principais discussões sobre o tema na equipe de transição. Em relatório dessa mesma equipe havia uma importante recomendação: a criação de um órgão na estrutura administrativa que efetivamente fosse o ponto de referência dentro do governo da temática racial, o que mais tarde se tornaria a Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), vinculada à Presidência da República e com status de ministério. A SEPPIR foi criada em 21 de março de 20036 e tinha três objetivos principais: a) ser uma instância consultiva da Presidência, b) gerar respostas para o combate às desigualdades raciais e c) acompanhar a incorporação da dimensão de raça no planejamento e implementação das políticas públicas, além de monitorar e avaliar programas e iniciativas dos ministérios e agências governamentais. Assim, esse governo apontava que políticas universais não eram suficientes para enfrentar as desigualdades sensíveis a “raça”, quebrando de forma clara a postura de neutralidade. Há que se destacar também que um debate acalorado dentro das várias tendências do movimento social negro permeou as discussões sobre a criação da SEPPIR. Aqueles contrários alegavam que a Secretaria criaria um “gueto”, para atendimento das demandas de parte da militância, impedindo que certos segmentos pudessem se posicionar contrariamente ao governo, quando necessário. A pequena alocação de recursos na Secretaria também era um fator de fragilidade do órgão. Para o governo a criação de um órgão específico dentro da máquina pública afirmava a necessidade de combate ao racismo e suas perversas consequências por meio de políticas públicas focais, sendo o principal desafio da SEPPIR articular a transversalização da questão racial em todos os programas e iniciativas do governo. Isso significava um complexo processo de sensibilização e convencimento junto aos outros órgãos da gestão pública, numa pauta que certamente encontraria muitas resistências e dependeria, e muito, dos apoios conseguidos dos centros de decisão do governo. Se conseguir apoios dentro do governo e na sociedade não era tarefa fácil, o que demonstrava os desafios hercúleos da Secretaria, é importante lembrar dos méritos da iniciativa: ter um órgão dentro do governo, apesar dos poucos recursos aplicados, era um ponto de referência, um “incômodo”,
5. Última conferência da Iniciativa Comparativa das Relações Humanas, em Cape Town, na África do Sul, em junho de 2000.
6. Medida provisória n. 111, de 2003 e posteriormente a Lei 10.678, de 23 de maio de 2003.
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SEPPIR
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que bem aproveitado poderia gerar uma espiral de políticas em várias áreas nunca antes pressionadas diretamente a realizar alguma iniciativa. A SEPPIR investiu na criação de espaços de interlocução com outros órgãos do governo e com a sociedade civil. Foram criados o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR), que teve como tarefa a realização das duas Conferências Nacionais de Igualdade Racial, e o Fórum Intergovernamental (FIPIR), que congrega representantes de 26 estados e do Distrito Federal, além de 626 municípios. O “modelo SEPPIR” também foi inspiração para 176 municípios que constituíram órgãos similares. Na análise dos relatórios de gestão nota-se que a coordenação das políticas de atendimento às comunidades quilombolas foi priorizada no trabalho da SEPPIR. No balanço feito pelo próprio governo (BRASIL, 2010), se destacam as ações direcionadas aos quilombolas. O grande avanço com o governo Lula nas políticas nessa área é a mudança de posicionamento. Anteriormente, a questão quilombola era vista como atendimento de demandas culturais, ou seja, fortalecimento e reconhecimento das tradições dos povos quilombolas ou uma questão fundiária. A criação do Programa Brasil Quilombola (PBQ), em 2004, e posteriormente a Agenda Social Quilombola (2007), que orientam a ação de 23 ministérios, além de parcerias com empresas públicas na implantação de projetos, mostraram que a questão quilombola tinha a pretensão de ser desse momento em diante uma política pública em larga escala. A coordenação do Programa ficou a cargo da SEPPIR, ou seja, direcionar um conjunto de atividades e acompanhá-las. No PBQ está o Luz para Todos, que já atendeu 6.760 comunidades, o Bolsa Família, que incorporou quase 30 mil famílias ao programa, ações de saneamento da FUNASA em 430 comunidades, distribuição de cestas alimentícias para 160 mil famílias e outras ações de atendimento à necessidades básicas (BRASIL, 2010: 43-63 p.). Os números impressionam e expressam o quanto se avançou nesse tema. Entretanto, de 2004 a 2007 apenas 32,8% dos recursos destinados ao PBQ foram gastos (ARRUTI, 2009). Num balanço geral dos recursos destinados ao Programa, a média total dos gastos não passou dos 35% dos orçamentos anuais (IPEA, 2008; SEPPIR, 2009). Apesar dos méritos da implementação de políticas transversais de promoção da igualdade racial, os recursos ainda são bastante limitados. Isso também se aplica a própria SEPPIR. Ao compararmos os orçamentos da Secretaria dos Direitos Humanos e das Mulheres, a SEPPIR teve a menor taxa orçamentária de crescimento percentual, 19,4%. As duas outras, tiveram crescimento de 312,2% e 1.342,3%, respectivamente. Em termos quantitativos a despesa acumulada pela SDH foi de R$ 656 milhões, enquanto que a SPM, R$ 255,1 milhões e a SEPPIR, R$ 147,04 milhões7. 7. BICALHO, Lucídio. Gastos para a efetivação de direitos aumentam na era Lula. Brasília: INESC, 2010, mimeo. Disponível em http://www.inesc.org.br/biblioteca/textos/materias/Gastos%20para%20direitos%20aumentam%20durante%20 governo%20Lula.pdf, acessado dia 10/01/2011.
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EDUCAÇÃO A importância da educação formal para o mercado de trabalho e para o exercício pleno da cidadania, hoje cada vez mais estão conectadas. Os números adversos para negros na educação, com reflexos nos ganhos salariais e oportunidades de mobilidade social tornaram-se uma agenda preponderante nas articulações e demandas por direitos dos movimentos antirracistas desde a década de 1990. Nesse contexto nasceram iniciativas pioneiras como o Pré-Vestibular para Negros e Carentes8, na região metropolitana do Rio de Janeiro, cursos preparatórios para ingresso de alunos das classes populares, em especial os negros, nas universidades públicas, trazendo o debate sobre a democratização do ensino superior. Quando pioneiramente uma política de cotas foi implementada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, em 2001, um debate polarizado se iniciou, com contrários e favoráveis às políticas de cotas nas universidades. Os principais jornais do país, Folha de São Paulo, O Globo e O Estado de São Paulo tomaram um feroz posicionamento contrário às cotas nas universidades, assim como intelectuais e personalidades do cenário artístico utilizaram a mídia para propagandear a preocupação de o país estar “racializando” suas políticas. Apesar disso, até 2009 79 universidades públicas (municipais, estaduais e federais) já haviam instituído um sistema de cotas para negros e indígenas e/ou bonificação para alunos egressos de escola pública9. Em pesquisa recente do DataFolha10 (2008), 51% dos entrevistados aprovaram as cotas para negros nas universidades públicas ou privadas e 39% foram contra. Apesar das investidas da mídia tentando deslegitimar a adoção das cotas, o debate ainda está em aberto. Porém, na educação superior os números ainda são bastante desfavoráveis para os negros. Segundo a PNAD (2008), em 1997 a distribuição de estudantes de 18 a 24 anos com nível superior completo entre a população branca era de 9,6%, enquanto que 2,2% 8. Os primeiros cursos “pré-vestibulares para negros e carentes - PVNC” datam de 1992/1993. Os PVNCs são uma iniciativa inovadora, com objetivo prioritário de democratização da educação e promoção da igualdade racial no ensino superior. Nos anos 2000 essas iniciativas começaram a ser denominadas de Movimento dos Cursos Pré-Vestibulares Populares (NASCIMENTO, 2007). 9. 41 são instituições estaduais, 34 federais e 04 municipais. 19 instituições têm suas vagas reservadas somente para indígenas. Ver mais FERREIRA & HERINGER, 2009. 10. Na pesquisa de opinião do DataFolha (2008) sobre o racismo na sociedade brasileira, os entrevistados responderam a pergunta: “um dos pontos do projeto prevê que, no mínimo 20% das vagas em universidades públicas e particulares sejam reservadas para pessoas negras e descendentes de negros, independente das notas obtidas no vestibular em relação aos que não são negros. Você é a favor ou contra as cotas, isto é, que sejam reservadas vagas para negros e descendentes de negros nas universidades?” 51% foram a favor, 39% contra, 5% indiferentes e 4 não sabem.Quanto à pergunta sobre estabelecimento de cotas nas empresas públicas e privadas: “O Estatuto [da Igualdade Racial] também prevê que sejam reservadas no mínimo 20% das vagas nas empresas públicas e privadas para pessoas negras e descendentes de negros. E você é a favor ou contra que sejam reservadas vagas nas empresas para negros e descendentes de negros?”. 54% aprovaram, 39% discordaram e indiferentes e não sabem, 4%.
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eram pretos e pardos. Em 2007 esses percentuais sofreram um aumento tanto para negros quanto para brancos, de 13,4% e 4,0%, respectivamente. Porém, o hiato entre os dois grupos, que era de 7,4 pontos percentuais em 1997, passa para 9,4 pontos percentuais em 2007, demonstrando que mesmo após uma década a composição racial das pessoas que completaram o nível superior permanece inalterada, ou seja, o gap entre negros11 e brancos permanece, mesmo que o acesso e permanência no ensino superior aumentem para ambos os grupos. Para mudar quadro tão adverso o governo Lula realizou algumas ações importantes. Destacaria duas iniciativas: o PROUNI e a Lei 10.639. Criado em 2005, o Programa Universidade para Todos - PROUNI12 disponibiliza bolsas de estudo totais ou parciais para estudantes de ensino médio da rede pública ou da rede particular (que tenham tido bolsa integral) para ingressarem em instituições de ensino superior privadas em cursos de graduação e cursos seqüenciais de formação específica. Para os bolsistas parciais um convênio entre MEC/Caixa Econômica e Fundo de Financiamento ao Estudante de Nível Superior (FIES) oferece empréstimo para o estudante pagar até 100% da parte não coberta pelo Programa. As instituições privadas que aderirem ao PROUNI ficam isentas de alguns impostos, como o Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ), a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), a Contribuição Social para Financiamento da Seguridade Social (Confins) e a Contribuição para Programa de Integração Social (PIS). De 2005 a 2008 deixaram de ser arrecadados R$ 673,2 milhões com a renúncia fiscal (BRASIL, 2009) dessas entidades. O PROUNI contribui com a meta da Reforma Universitária13 proposta pelo governo Lula de aumentar a proporção de jovens de 18 a 24 anos matriculados em cursos superiores para 30% até 2011. Na PNAD de 2009 apenas 15,1% tinham 11 anos ou mais de estudo nessa faixa etária. Mas houve avanços para o percentual geral que cresceu de 31,6% em 2008 para 33% em 2009. A taxa média de crescimento anual é de 1 ponto percentual14 para essa faixa que compõem o maior grupo etário, seguindo essa tendência apenas em 2025 será atingida a meta prevista, garantindo-se os esforços feitos até então. O Programa é o grande responsável pela elevação da taxa de estudantes no ensino superior, disponibilizando 1.128.718 bolsas (integrais ou parciais), destas 748.788 foram preenchidas, 66%. Apesar do não preenchimento do total de bolsas é grande a procura pelo Programa, sendo 5.548.746 inscritos de 2005 a 2010. Porém, foi o forte lobby das
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11. Utilizo a categoria negro como definida pelo IPEA, ou seja, a junção das estatísticas de pretos e pardos. 12. O Projeto de Lei n. 3.582/2004 foi encaminhando ao Parlamento em 13.05.2004, cabendo sua versão final a Lei nº 11.096, em 13 de janeiro de 2005.
instituições privadas, aliado ao baixo custo do governo com essa iniciativa o campo fértil para sua instalação, deixando de lado um investimento maciço nas universidades públicas e na qualidade do ensino. Mas como o PROUNI contribui para a igualdade racial no ensino superior? O decreto de lei que institui o PROUNI obriga as instituições a destinarem parte dessas bolsas aos candidatos negros e indígenas autodeclarados, de acordo com a proporção desses grupos na população de cada estado, presente no último censo realizado pelo IBGE. De 2005 a 2010, 353.813 bolsas foram distribuídas para estudantes negros (pretos e pardos), no total 47,26%. Dois pontos principais são objeto de crítica ao ProUni: a) ser apenas um programa de estímulo à expansão das instituições privadas de ensino, muitas com baixo desempenho no Enade; e b) o Programa priorizar o acesso e deixar de lado a permanência, um dos grandes desafios para os estudantes das classes populares. Em auditoria do TCU (BRASIL, 2009) sobre o ProUni e FIES vários problemas foram detectados: a. Pouca contribuição dos programas para o acesso e permanência de estudantes no ensino superior. De 2005 a 2008 houve evasão de 19,5% dos beneficiários do Programa e apenas 58% das vagas foram efetivamente utilizadas. Além disso, o TCU observa que 56% dos alunos que responderam questionário sobre o Programa tem dificuldade em se manter no curso. b. Os cursos oferecidos no Prouni e no FIES tem baixa avaliação pelo Enade. Dos 15.876 cursos oferecidos pelo ProUni, 5.501, ou 34,65%, nunca foram avaliados pelo Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – Enade15, ou seja, 74.951 alunos estão estudando em cursos que nunca foram avaliados. Dos cursos avaliados pelo Enade que oferecem bolsas pelo ProUni, 1,7% receberam nota 1; 19% nota 2; 40,8% nota 3; 11% nota 4 e apenas 0,7% nota 5, enquanto 17,4% ficaram sem conceito, ou seja, 20,9% dos cursos avaliados possuem nota menor que três no Enade. No FIES o cenário não é diferente, pois 24,8% dos alunos recebem financiamento em cursos com nota inferior a três, situação proibida por lei. c. ProUni e Fies não seguem recomendação do MEC de política de prioridade para profissionais da educação. Uma das diretrizes dos programas é facilitar o ingresso de professores das escolas públicas em cursos de especialização, mas em 2008 apenas 0,48% do total de bolsistas ativos eram professores
13. Plano Nacional de Educação (PNE – Lei nº 10.172/2001) 14. A taxa anual de crescimento da educação superior era de 0,7 pontos percentuais, mas a partir de 2005, com a implantação do PROUNI essa taxa cresceu para 1 ponto, graças as matrículas no ensino superior nas instituições privadas.
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15. O Enade avalia o desempenho dos alunos de cursos de graduação segundo os conteúdos programáticos, suas habilidades e competência.
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O ProUni é uma iniciativa importante, que contribuiu para o significativo aumento dos estudantes negros no ensino superior pela via da universidade privada, porém questões cruciais como a qualidade do ensino ofertado e programas que auxiliem a permanência do aluno ainda são um desafio. Como afirma Andréa Lopes Vieira (2009: 15 p.): “nesta ficção de democratização, mantiveram-se intocáveis os mecanismos de acesso, os critérios de seleção e o perfil predominante da comunidade discente das universidades públicas (em sua maioria gratuitas e de excelência); enquanto ampliaram-se as vagas (como moeda de troca para a renúncia fiscal das universidade privadas) em estabelecimentos privados”.
Na educação básica o principal destaque foi a promulgação em 2003 da Lei n. 10.63916, que torna obrigatório nas escolas públicas e privadas o ensino da História da África e das culturas afro-brasileiras. Uma política voltada para a valorização da identidade, da memória e das culturas negras, resgatando a importância da matriz africana, como componente estruturante da construção da nação brasileira. A Lei se insere num debate mais amplo sobre a universalização do sistema de ensino e atende às denúncias históricas do movimento social negro quanto ao imaginário racial presente na estrutura e no funcionamento do sistema educacional, que se corporifica na linguagem dos livros didáticos e em práticas discriminatórias e racistas. Em 2009 foi criado o Plano Nacional de Implantação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, tendo como foco a Lei 10.639. Foi criado também o Selo de Educação para a Igualdade, que premia escolas da rede pública que desenvolvem ações para implementação da Lei e do Estatuto da Igualdade Racial. O Selo é uma iniciativa da SEPPIR, em parceria com outras entidades do sistema ONU (UNESCO e UNICEF) e do governo (SECAD e CONSED). Mas, a própria SEPPIR reconhece que, até agora, poucas escolas conseguiram se adaptar a nova grade curricular. Para implementar o artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)17 e promover a Lei 10.639 outra iniciativa foi a criação do Programa de Ações Afirmativas para a População Negra nas Instituições Federais e Estaduais de Educação Superior (UNIAFRO)18, uma parceria entre MEC e os Núcleos de Estudos Afrobrasileiros – Neabs, existentes nas universidades públicas. O programa oferece “assistência financeira às Instituições Federais e Estaduais de Ensino Superior visando fomentar ações voltadas à formação inicial e continuada, nas modalidades presencial e a distância, para professores de educação básica e graduandos de licenciatura e cursos de Pedagogia, assim como para a elaboração de material didático específico para uso na Educação Básica”. De 2005 a 2009 foram capacitados 17.070 professores, 53 publicações realizadas e 190 estudantes receberam auxílio, somente em 2009 foram destinados cerca de R$ 8,3 milhões para repasses às universidades. Com isso, o Programa também fortalece a institucionalização dos núcleos e uma política de ação afirmativa dentro das universidades. No entanto, Nilma Gomes (2009) observa alguns problemas quanto ao Programa, como a demora no repasse de recursos aos Neabs e não se ter, até o momento, um sistema de avaliação para verificar se todos os beneficiários realmente cumprem as exigências dos editais e se os cursos oferecidos têm qualidade do ponto de vista teórico, didático e pedagógico.
16. A Lei 11.645, de 10 de março de 2008 alterou a lei anterior para incorporar também a história e cultura dos povos indígenas.
17. LDB, artigo 26, §4º: “O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia”.
Assim, para o TCU a distribuição de bolsas pelo ProUni e de financiamento pelo FIES não obedeceria a uma política de priorização de cursos, mas a uma oferta do mercado, demonstrando que “a dinâmica de distribuição de bolsas é movida por motivos outros que não as prioridades e necessidades brasileiras de profissionais” (BRASIL, TCU: 29p.). d. Problemas quanto ao critério de isenção fiscal. Ao assinar o termo de adesão ao ProUni a IES participante obtém isenção fiscal total, independente do número de bolsas ofertadas e/ou efetivamente ocupadas. Segundo o TCU, “uma vez que as IES não tem motivação para ocupar todas as bolsas que são ofertas, pois não receberão mais ou menos benefícios por isso” o critério de isenção fiscal dá margem a comportamentos oportunistas por parte das IES e recomenda que “ o benefício fiscal oferecido às IES deveria ser proporcional ao número de bolsistas efetivos do Programa, em comparação ao total de bolsas ofertadas”, além de recomendar que sejam utilizados como cálculo para isenção a avaliação dos cursos pelo Enade (Idem: 31p). Apesar das isenções fiscais, renegociação de dívidas e títulos da dívida pública recebidos, ao longo de 2004 a 2007 a dívida de pouco mais de 1 bilhão das IES passou para mais de quatro bilhões, um aumento crescente de débitos previdenciários. e. O custo médio da bolsa ProUni é maior que o valor da mensalidade média dos cursos, em especial para as entidades sem fins lucrativos não beneficentes, cuja mensalidade média é de R$ 504,39, enquanto que o custo médio para o Estado é de R$ 916,00 por bolsista.
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18. O Programa foi criado em 2005, mas somente em 2008 foi regulamentado (Resolução CD/FNDE nº 14, de 28 de abril de 2008 - Ministério da Educação).
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SAÚDE
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Apesar de a maioria dos atendimentos feitos pelo SUS serem da população negra, somente em 2004, no Seminário Nacional de Saúde da População Negra foi aprovada uma Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, para combater o racismo institucional no SUS e desenvolver programas específicos de atendimento a doenças com forte incidência na população negra, tais como a anemia falciforme, deficiência de glicose em recém nascidos, foliculite e doenças adquiridas em condições adversas, como desnutrição, tuberculose etc. O Ministério também promoveu a (re)organização de comitês consultivos (Comitê Técnico de Saúde da População Negra) com a participação de organizações da sociedade civil no processo decisório das políticas ligadas ao SUS. Isso gerou a inclusão da “promoção da equidade na atenção à saúde da população negra”, entre as diretrizes do Plano Nacional de Saúde, que orienta as ações do sistema de saúde. Esse processo também contou com a parceria da SEPPIR. O movimento social negro já há algumas décadas denunciava que, em especial as mulheres negras tinham tratamento diferenciado no sistema de saúde. Assim, o Plano tenta resgatar os objetivos do SUS de promover um serviço profissional e adequado às pessoas independente da cor, orientação sexual e origem racial e étnica. No contexto da Conferência de Durban foram iniciadas discussões para a implementação do Programa de Combate ao Racismo Institucional – PCRI, mas somente em 2005 o programa foi efetivamente implementado, numa parceria entre SEPPIR, Ministério Público Federal, Ministério da Saúde, Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), Departamento Britânico para o Desenvolvimento Internacional e Redução da Pobreza (DFID) e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). O Programa tinha dois focos, um no âmbito federal e outro municipal com ações em diferentes áreas. Foram realizadas atividades de capacitação, com oficina para agendes de saúde, técnicos e gestores da rede pública. Além disso, em 2006, foi realizada a Campanha de Combate ao Racismo Institucional, feita para os profissionais de saúde do Ministério e para a rede de serviços descentralizados e a inclusão do quesito cor em todos os formulários do sistema de informação em saúde. Em 2004, Matilde Ribeiro, titular da SEPPIR, protagonizou juntamente com o ministro da Saúde, Saraiva Felipe, a campanha brasileira “Aids e Racismo: O Brasil tem que viver sem preconceito”, que marcou o Dia Mundial de Luta contra a doença. Pela primeira vez uma campanha contra a Aids estava focada na população negra. Também foi criado o Projeto também criou o Projeto Brasil AfroAtitude (2004), em parceria com SEPPIR, SDH e MEC. O projeto disponibiliza anualmente, em 10 universidades públicas, 500 bolsas de estudo para que estudantes admitidos através do sistema de cotas possam participar de projetos de pesquisa, extensão e monitoria ligados ao estudo da epidemia de AIDS.
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Em 2008, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra tomou novo impulso com o estabelecimento de metas, indicadores e recursos previstos no PPA 2008-2011. O Plano encontra-se em sua segunda fase. Porém, segundo o próprio Ministério da Saúde, dos R$ 1 milhão destinados ao Programa Brasil Quilombola, e de R$ 4,7 milhões das ações de promoção da equidade em saúde das populações em condições de vulnerabilidade, nada foi gasto. A situação não muda quando olhamos para os recursos destinados aos pacientes portadores de hemoglobinopatias, apenas 27,9% foi gasto e nas políticas de atenção à saúde da mulher (cerca de R$ 8,7 milhões), 95,4% não foram executados (LAVOR, 2009).
RELAÇÕES EXTERIORES Em 2002, numa iniciativa do Ministério das Relações Exteriores, por intermédio do Instituto Rio Branco, foi assinado um protocolo de cooperação com o Ministério da Ciência e Tecnologia, Ministério da Justiça e Ministério da Cultura, para criação do Programa BolsaPrêmio de Vocação para a Diplomacia, que tinha como objetivo “propiciar maior igualdade de oportunidade e diversidade étnica na preparação ao concurso do Instituto Rio Branco para a formação de diplomatas brasileiros, por meio de apoio a candidatos afro-descendentes, e com eqüidade de gênero”. Os candidatos que ingressarem no Programa, feito através de provas, recebem uma bolsa auxílio no valor de R$ 25.000,00, desembolsados parceladamente durante 10 meses. A bolsa custeia apenas material bibliográfico e pagamento de cursos preparatórios ou professores especializados nas disciplinas exigidas no concurso do Instituto Rio Branco que acontece anualmente. Entre 2002 e 2006 foram concedidas 112 bolsas. Nesse período 07 bolsistas entraram para a carreira diplomática. Em 2009, 66 bolsas foram concedidas. As críticas feitas pelos defensores das AA se baseiam no fato de o Programa BolsaPrêmio não criar um sistema de cotas efetivas dentro do Ministério. O Programa estimula a entrada dos candidatos, mas não garante de fato um percentual maior de negros na diplomacia brasileira. Resta saber se um dos objetivos principais de uma política de AA será desta forma atingido, ou seja, fazer com que espaços historicamente prestigiados sejam também ocupados por representantes de grupos discriminados, fazendo com que esse espaço reflita a diversidade presente na sociedade. Para Weisskopf (2007) em pesquisa sobre as experiências de inserção no ensino superior de alunos de grupos sub-representados na Índia e Estados Unidos, o objetivo mais importante de uma política de ação afirmativa é gerar maior integração étnica e racial de membros desses grupos na elite de uma sociedade.
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SEGURANÇA PÚBLICA: PRONASCI Com uma dotação orçamentária de R$ 6,7 bilhões entre 2008 e 2012, o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania - PRONASCI19 foi criado em 2008 e possui 94 medidas. O PRONASCI, principal programa na área de segurança pública, inova ao colocar como uma de suas diretrizes o foco em jovens de 15 a 24 anos e “a promoção dos Direitos Humanos, intensificando uma cultura de paz, de apoio ao desarmamento e de combate sistemático aos preconceitos de gênero, étnico, racial, geracional, de orientação sexual e de diversidade cultural”. E, novamente, ao “promover estudos, pesquisas e indicadores sobre violência que considerem as dimensões de gênero, étnicas, raciais, geracionais e de orientação sexual”. A própria existência do PRONASCI já é uma inovação, numa área em que historicamente pouco foi feito pelo Governo Federal de forma estratégica, deixando aos Estados providências nesse sentido conforme reza a Constituição, porém com resultados bastante insatisfatórios no que diz respeito a promover a paz e a segurança. Outra virtude é oriental seus projetos e recursos segundo indicadores objetivos de vitimização por violência, inclusive posteriormente quanto a avaliação de seus resultados (INESC, 2010). Nas ações propostas pelo PRONASCI está o projeto Farol, uma proposta de ação afirmativa para jovens negros em conflito com a lei ou egressos do sistema prisional, visando a “recuperação desses jovens, sua inserção na rede de ensino e no mercado de trabalho, bem como a formalização de meios para que eles desenvolvam atividades sócio-educativas e culturais, atuando como multiplicadores do processo”. O projeto tem em sua execução uma parceria com a SEPPIR. Na análise orçamentária desenvolvida pelo INESC (2010) sobre o PRONASCI nota-se que no ano de 2008 não houve aplicação de recursos nesse projeto. No ano de 2009 foram autorizados R$ 3,3 milhões, mas nenhum recurso foi liquidado. Em 2010 não houve previsão de gastos para essa rubrica.
TRABALHO
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Foram criadas comissões regionais (26 estados e no Distrito Federal) e nacional para coibir práticas discriminatórias contras negros, mulheres e portadores de deficiência. Apesar das várias comissões e fóruns no MTE, de ação concreta se destaca o Plano Setorial de Qualificação Afro-descendente, lançado em 2009 e que promove a capacitação 19. O PRONASCI integra a Função Segurança Pública que possui uma série de programas e instituições, como a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal, prevenção e repressão a criminalidade, repostas aos desastres e reconstrução, assistência jurídica integral e gratuita, dentre outros.
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profissional de jovens e adultos negros(as) em cursos de nível médio, como borracheiro, mecânico, operador de telemarketing, operador de caixa etc. O Plano conta com o acompanhamento da SEPPIR. O Plano oferece também qualificação para as trabalhadoras domésticas, categoria quase que totalmente dominada pelas mulheres, em especial, negras. Além disso, o Planseq TDC tem como meta aumentar a escolaridade das beneficiárias. O Ministério também atua junto às comunidades quilombolas, através do Projeto Brasil Local, que apóia iniciativas de empreendedorismo, geradoras de trabalho e renda, fortalecendo a economia solidária. O Projeto conecta agricultores e produtores quilombolas aos consumidores e redes atacadistas, além de facilitar o acesso às políticas públicas de incentivo à agricultura e produção de alimentos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS A superação das desigualdades raciais passa necessariamente pela intervenção do Estado, a partir de políticas públicas consistentes, articuladas e com recursos definidos. No governo Lula, ao contrário do antecessor FHC, as políticas na área racial tiveram mais visibilidade e programas em escala foram implementados. Um avanço significativo ocorreu no ensino superior e em setores anteriormente resistentes à implementação de políticas nessa área. Em praticamente todos os ministérios e agências governamentais há alguma ação ou compromisso estratégico, num esforço de transversalizar o tema. No entanto, o desafio está na abrangência dessas ações, o que de fato foi feito, a prioridade dada ao tema. Apesar de um leque variado, conforme pede um tema tão complexo, a inclusão na agenda das políticas públicas com relevância e consistência se fez de forma insuficiente no governo Lula. Projetos com baixa dotação orçamentária, com pouca visibilidade, sem acompanhamento dos resultados, descontinuidade de ações e falta de diálogo entre órgãos responsáveis por uma ação ou programa, são ainda comuns. Em algumas áreas o avanço é visível, como, por exemplo na educação com vários programas e iniciativas de enfrentamento ao racismo e à discriminação. Os problemas podem ser detectados, mas há alguns resultados animadores. O mesmo não pode ser dito na área da saúde, com uma política bastante incipiente. Apesar das limitações orçamentárias e políticas, a SEPPIR também conseguiu acompanhar e desenvolver ações significativas. As ações nessa área tiveram como diretriz a transversalidade, que esbarra na cultura organizacional presente na administração pública, excessivamente marcada pela atuação setorizada e verticalizada. Transversalizar o tema racial significa também modificar as políticas universais no sentido de incluir o objetivo de igualdade racial como um eixo estruturante.
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Em pesquisa do IPEA (2009) sobre a transversalidade nas políticas federais ligadas às minorias, o número de programas (nos ministérios) que afirmam contemplar a área racial é relativamente pequeno, cerca 15,3%, em 2007. A própria constituição do racismo, que perpassa instituições e indivíduos também cria inegáveis dificuldades. Uma metodologia que tenha como objetivo a superação das desigualdades raciais deve ser incorporada no dia a dia de formuladores e gestores públicos. Há conflitos que são superáveis, mas não em curto prazo. Mas creio ser um processo já iniciado e em curso. Não podemos também confundir melhorias gerais das condições de vida do conjunto dos brasileiros com superação das desigualdades raciais. Os números e informações quando desagregados demonstram que a superação das desigualdades ligadas à cor/raça caminham de forma muito mais lenta. Isto significa o dever de continuidade e monitoramento das políticas.
GOMES, Nilma Lino. Limites e possibilidades da implementação da Lei 10.639 no contexto das políticas públicas em educação. In: PAULA, Marilene de & HERINGER, Rosana (orgs.). Caminhos convergentes: Estado e sociedade na superação das desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Heinrich Böll Stiftung, 2009, p. 39-74. INESC. Segurança pública e cidadania: uma análise orçamentária do Pronasci. Brasília: INESC, 2010. IPEA. Boletim Políticas sociais: acompanhamento e análise. No. 09, fev. 2004, Brasília. ______. Boletim Políticas sociais: acompanhamento e análise. No. 10, fev. 2005, Brasília. ______. Boletim Políticas sociais: acompanhamento e análise. No. 13, fev. 2007, Brasília. ______. Boletim Políticas sociais: acompanhamento e análise. No. 14, 2007, edição especial, Brasília. ______. Boletim Políticas sociais: acompanhamento e análise. No. 16, nov. 2008, Brasília.
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Os avancos e contradicoes das politicas de Direitos Humanos no Governo Lula
INTRODUÇÃO
e
ste artigo tem como objetivo analisar as políticas de direitos humanos no governo Lula. Para tanto, elegemos algumas áreas e programas governamentais significativos das políticas públicas voltadas para a promoção de direitos no Brasil durante esse período. Não pretendemos com isso, analisar exaustivamente o conjunto de todas as políticas relacionadas com os direitos humanos, mas sim, encontrar algumas dimensões significativas que possam traduzir inovações, indicar processos de mudanças e desafios para a construção de um país mais justo e sustentável. Analisaremos também o Pronasci, principal programa de segurança pública do governo federal e o expressivo debate público e ideológico ocorrido no Brasil em razão da publicação do III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH). O atualizado conceito de direitos humanos expresso no PNDH, relacionando-o às dimensões da democracia, do desenvolvimento e das desigualdades, provocou uma grande reação conservadora de setores da sociedade, delimitando as novas e velhas fronteiras de luta nesse campo.
DIREITOS HUMANOS: DO QUE ESTAMOS FALANDO?
ALEXANDRE CICONELLO Advogado, mestre em Ciência Política, especialista em Direitos Humanos pela American University (Humphrey Fellow), assessor de direitos humanos do INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos, membro da coordenação da Plataforma Dhesca Brasil.
A luta por direitos é uma construção histórica. Eles não são dados, mas sim conquistados por aqueles/as que vivem situações de opressão, invisibilidade e violação. Os direitos só existem, portanto, pela contínua luta de sujeitos políticos pelo reconhecimento de suas identidades, ao longo da história, e por uma luta redistributiva dos recursos gerados pela sociedade. Trata-se de um movimento dinâmico de lutas e avanços que eleva progressivamente a comunidade internacional a novos patamares de liberdade, igualdade, respeito e dignidade. No Brasil, durante o governo Lula, a sociedade civil brasileira esteve envolvida em um grande debate conceitual e político envolvendo os direitos humanos. Isso se deu durante a 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos que ocorreu em dezembro de 2008 e culminou no lançamento do III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) em dezembro de 2009. A publicação do Programa por meio de um decreto presidencial provocou uma reação de setores conservadores da sociedade e de representantes de corporações e de interesses econômicos (como os latifundiários e as grandes empresas de comunicação) contra algumas ações previstas no Programa e também contra o próprio conceito de direitos
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humanos. Para alguns, os direitos sexuais e reprodutivos, o direito humano ao meio ambiente e o conceito de integralidade e universalidade dos direitos não fazem parte dos direitos humanos, que são considerados pela visão liberal, como restritos e excludentes. No entanto, trata-se de um conceito político e jurídico, baseado em Declarações e Tratados internacionais, que derivam da máxima expressa no art 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Além disso, estamos falando de um conceito normativo e operacional que impõe obrigações ao Estado brasileiro (e aos seus/suas representantes, gestores/as, servidores/as). Obrigações pactuadas tanto na comunidade internacional como na própria sociedade brasileira e se expressam por meio de um sistema jurídico-normativo, que os indivíduos, os governos e a comunidade internacional devem respeitar e promover. Por direitos humanos entendem-se não só os direitos civis e políticos (previstos nos artigos 5º e 14º da nossa Constituição), mas também os direitos sociais, econômicos, culturais, ambientais, sexuais e reprodutivos (previstos nos artigos 6º, 7º e nas seções especiais da nossa Constituição, bem como em outras normas nacionais e internacionais). Ou seja, direitos humanos significam direito à educação e saúde pública de qualidade; moradia adequada; direito a viver uma vida sem violência; poder votar; liberdade de expressão e associação; participação política; direito de poder expressar a sua sexualidade e decidir sobre sua vida reprodutiva; direito a viver em um meio ambiente saudável etc. Cabe dizer, que muito se avançou após a Constituição Federal de 1988 na construção de um arcabouço legal de garantia de direitos. Contudo, pouco se avançou na efetivação de direitos dentro de um contexto de grandes desigualdades. No caso da sociedade brasileira, essa dimensão é essencial. Não há como falar em direitos sem considerar o ambiente de desigualdades estruturais, que faz com que certos sujeitos de direitos (em razão de fatores como cor, sexo, faixa etária, orientação sexual, etnia etc.) tenham maiores dificuldades de acessar direitos ou tenham seus direitos negados e violados. Combater a pobreza no Brasil ou as desigualdades de renda passa necessariamente pelo entendimento de que aqui ambas têm relação com as variantes de cor e sexo. As mulheres negras são as mais pobres e têm menor grau de escolaridade, enquanto os homens jovens e negros são os que mais sofrem com a violência, por exemplo. As inaceitáveis distâncias que ainda separam negros de brancos em pleno século XXI se expressam no microcosmo das relações interpessoais diárias e se refletem nos acessos desiguais a bens e serviços, ao mercado de trabalho, à educação – que persistem apesar das melhorias nos indicadores tomados para o conjunto da população –, bem como ao gozo de direitos civis, políticos, sociais e econômicos.
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PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS (PNDH): REAFIRMANDO OS DIREITOS HUMANOS EM UM CONTEXTO DE CRESCENTE INTOLERÂNCIA Com o processo preparatório e realização da 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, ao longo de 2008, instalou-se um grande debate sobre as prioridades que o Estado brasileiro deveria assumir na área de direitos humanos. Para representantes do poder público, organizações da sociedade civil e movimentos sociais foi um momento para avaliar essa situação e estabelecer diretrizes e metas para o novo Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH. Desde o início, o principal desafio político e metodológico da construção do III PNDH foi o de construir um programa que considerasse a indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos em todas as suas dimensões. Três delas foram consideradas estruturantes na construção do Programa: a universalização dos direitos em um contexto de desigualdades, o impacto de um modelo de desenvolvimento insustentável e concentrador de renda na promoção dos direitos humanos e a questão da violência e da segurança pública. As principais críticas recebidas pelo Programa vieram dos grupos mais conservadores da sociedade: latifundiários, grandes empresas de mídia e setores da Igreja Católica e das Forças Armadas. Isso porque o Programa estabelecia como diretrizes e ações, entre inúmeras outras: a criação de uma Comissão da Verdade para esclarecer as violações de direitos ocorridas no contexto da repressão política no Brasil; apoiava a aprovação de projeto de lei que descriminalizasse o aborto; propugnava pela não ostentação de símbolos religiosos em repartições públicas da União; propunha a elaboração de um projeto de lei para institucionalizar a mediação como ato inicial das demandas coletivas fundiárias em áreas rurais e urbanas; e propunha algumas ações relacionadas a democratização das comunicações no país. Ou seja, o Programa tocou em questões sensíveis aos interesses dos grupos dominantes no país: a função social da propriedade, a democratização dos meios de comunicação, a laicidade do Estado. Além disso, ousou priorizar um processo de transparência quanto aos tristes acontecimentos promovidos pelo Estado durante a ditadura militar: mortes, tortura, perseguição, desaparecimentos. Formulado de maneira transparente, dentro de um processo que envolveu grande participação popular, consultas públicas e conferências municipais, estaduais e nacional, com a presença de 14 mil representantes do poder público e da sociedade civil, o PNDH III caminha no sentido da efetivação de uma política real de Direitos Humanos. Infelizmente, a ofensiva levada a cabo por setores conservadores de nossa sociedade
OS AVANÇOS E CONTRADIÇÕES DAS POLÍTICAS DE DIREITOS HUMANOS NO GOVERNO LULA
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disseminou uma visão anacrônica dos direitos humanos. O debate sobre o PNDH III tem sido sistematicamente tolhido pelos meios de comunicação comerciais, que dão voz a apenas um lado, reforçando os argumentos que apontam para a necessidade de construção de uma mídia plural e democrática. Devemos louvar a iniciativa do governo Lula, capitaneada pela Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), de construir de forma participativa e democrática o III Programa Nacional de Direitos Humanos. Entretanto, o Decreto nº 7.177, de 12 de maio de 2010 que alterou importantes ações previstas no PNDH, tratou-se de uma clara capitulação do governo federal frente à pressão de setores conservadores da Igreja Católica e de outros grupos religiosos, dos latifundiários, das poucas empresas que controlam a mídia e as comunicações no país e de setores das Forças Armadas. O resultado da desinformação e de uma campanha difamatória promovida por esses setores da sociedade, especialmente pela mídia, teve rebatimento no debate eleitoral, no qual o tema do aborto e a defesa dos valores cristãos passaram a ser o núcleo da disputa presidencial, promovendo a intolerância e o medo na população. A ideia de um Estado laico ficou comprometida durante esse processo. Mesmo com as alterações realizadas, o PNDH dá um passo adiante na promoção dos direitos no Brasil, comparado com os programas formulados durante o governo FHC (PNDH I - 1996 e PNDH II - 2002), e concretiza o que já está previsto nos inúmeros tratados internacionais que o Brasil ratificou no âmbito das Nações Unidas e do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. O grande desafio dos novos governos será implementar as diversas ações previstas no PNDH, promovendo políticas que garantam uma vida melhor para todos/as brasileiros/as.
A AGENDA SOCIAL DO GOVERNO LULA E O PPA 2008/2011
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O segundo Plano Plurianual (PPA) do governo Lula (2008/2011), que reúne o planejamento de todos os programas e ações governamentais e que consolidou as prioridades políticas que se iniciaram no primeiro mandato, está estruturado a partir de três eixos centrais: g Crescimento Econômico, impulsionado pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC); g Educação de Qualidade, por meio do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE); g Agenda Social, com ênfase nas transferências condicionadas de renda, associadas às ações complementares de fortalecimento da cidadania e dos direitos humanos, da cultura e da segurança pública.
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Diferentemente da concepção do PNDH (que ainda é uma peça de ficção), o PPA (que é o principal instrumento gerencial do governo) considera como direitos humanos ou direitos da cidadania as ações voltadas para populações historicamente discriminadas ou expostas a situações de vulnerabilidade, como população negra, crianças e adolescentes, pessoas com deficiência, quilombolas, mulheres e povos indígenas. Ou seja, reúne toda a política implementada pelas Secretarias Especiais da Mulher, da Promoção da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Uma primeira crítica que podemos fazer sobre a concepção de direitos humanos no PPA é a visão reducionista dos direitos. Para o governo federal, a política de direitos humanos é aquela voltada para os chamados segmentos vulneráveis da população e não um conjunto amplo de políticas que garantam um patamar mínimo de dignidade e direitos fundamentais na área da educação, saúde, assistência social, previdência, segurança pública, cultura, trabalho etc. Ou seja, a visão de direitos humanos prevista no PNDH não foi a perspectiva adotada pelo conjunto do governo Lula ao longo de seu mandato. Contudo, dentro da estratégia contida no PPA, de redução das desigualdades sociais por meio de programas de transferência de renda, podemos dizer que o governo Lula obteve um grande sucesso. Desde 2003, houve uma queda significativa da pobreza e da desigualdade de renda no Brasil, em razão dessas políticas, em especial, a valorização do salário mínimo que atingiu o seu maior valor real em 20 anos, a ampliação dos beneficiários/as do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e a expansão do Programa Bolsa-Família. O conjunto dessas políticas, aliada à ampliação dos investimentos e ao crescimento econômico, também ajudaram a dinamizar a economia interna, gerar postos formais de trabalho e conseqüentemente reduzir as desigualdades de renda. De 2003 a 2010, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego e do Ministério da Fazenda, foram gerados 14 milhões de empregos. A queda da desigualdade de renda tem sido mostrada em diversos estudos do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas-IPEA. No gráfico abaixo, sobre o índice de Gini, que mede a desigualdade de renda entre as famílias, podemos verificar uma queda significativa da desigualdade que caiu de 0.586 em 2002 para 0.538 em 2009.
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OS AVANÇOS E CONTRADIÇÕES DAS POLÍTICAS DE DIREITOS HUMANOS NO GOVERNO LULA
GRÁFICO 1 – COEFICIENTE DE GINI: 1995 A 2009
0.599
0.60
0.597 0.599
0.597
0.58 Coeficiente de Gini
GRÁFICO 2 – PERCENTUAL DE PESSOAS COM RENDA FAMILIAR PER CAPITA INFERIOR ÀS LINHAS DE POBREZA E INDIGÊNCIA, BRASIL: 2001 A 2008
0.592 0.591 0.586
40,00
0.580
35,00
35.17
34.40
Pobreza
35.79
33.70
30,00
0.568
Indigência 30.82
0.565
0.56
26.75
0.558
0.72 ponto de Gini (x100) ao ano
0.551
22.59
0.53 (x100) ponto de Gini (x100) ao ano
0.538
15.28
15,00
13.99
15.20 13.20
11.49
10,00
0.52 1994
1998
2002
2006
24.24
20,00
0.544
0.54
25,00
2010
Já o gráfico 2 a seguir, nos mostra a grande redução do percentual de pessoas com renda per capita inferior às linhas de Pobreza e Indigência. De 2003 a 2009, aproximadamente 28 milhões de pessoas saíram da pobreza. Isso significa uma melhoria real nas condições de vida e a garantia de uma série de direitos para uma parte expressiva da população, como o direito à alimentação, moradia etc.
8.65 7.57
5,00 2001
Fontes: PNAD Microdados 1995 a 2009. Nota: Brasil, salvo área rural dos seguintes estados: Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima. Elaboração: IPEA
9.44
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
Fonte: IPEA. Elaboração: ASSEC / MP
Os recursos públicos destinados às políticas sociais, especialmente as políticas de transferência de renda, tiveram um aumento significativo durante todo o governo Lula. No gráfico a seguir, podemos verificar o aumento dos gastos do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), de 2003 a agosto de 2010. A execução financeira acumulada do MDS durante o período analisado foi de R$ 202,83 bilhões. A execução financeira desta pasta em 2009 (R$ 34,25 bilhões) foi 35,6% superior ao seu desempenho em 2004 (25,27 bilhões).
82
83
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OS AVANÇOS E CONTRADIÇÕES DAS POLÍTICAS DE DIREITOS HUMANOS NO GOVERNO LULA
GRÁFICO 3 - EXECUÇÃO FINANCEIRA DO MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME BRASIL - VALORES REAIS (EM R$ BILHÕES) ATUALIZADOS PELO IGP-DI/FGV - ANO BASE: 2003 A AGO/2010
A proposta de lei orçamentária para 2011, enviada pelo governo federal ao Congresso Nacional, prevê que 22% de todo orçamento federal seja destinado ao pagamento de juros e amortizações da dívida pública, como podemos verificar pelo gráfico abaixo. Os recursos previstos para pagar juros, em 2011, correspondem a mais de cinco vezes o investimento federal em educação.
34,25
25,27
29,97
30,57
30,07
GRÁFICO 4 – PROJETO DE LEI ORÇAMENTÁRIA PARA 2011 – PREVISÃO DE DESPESAS POR FUNÇÃO (EXCLUINDO O REFINANCIAMENTO DA DÍVIDA PÚBLICA)
26,32 19,59
IMDS
7,79
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
Fonte: Siga Brasil / Senado Elaboração: INESC. Nota: (1) A execução financeira é calculada a partir da soma dos valores pagos “restos a pagar não processados pagos” de um mesmo exercício financeiro (2) Na execução financeira de 2003 não foram incluídos os “restos a pagar não processados pagos”. Nesse ano, foram considerados apenas os valores pagos. A explicação é que em 2002 a pasta estava associada ao ministério da Previdência.
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Apesar do volume de recursos executados pelo MDS ser expressivo, essa quantia é quase seis vezes menor do que o Setor Público Consolidado gastou com juros da dívida pública de 2003 a agosto de 2010, segundo os dados do Banco Central (R$ 1,2 trilhão acumulado). Assim, o gasto com juros tem uma direção oposta ao investimento na promoção dos direitos humanos, isto é, ele abastece o bolso dos que já são privilegiados economicamente. Essa é uma das maiores contradições do governo Lula: de um lado, obteve bons resultados na redução da pobreza, ampliação da participação popular e de algumas políticas sociais relevantes, mas do outro, manteve uma política econômica calcada na maior taxa de juros do mundo, que drena os recursos que deveriam ser destinados à educação, saúde, assistência social, previdência, cultura etc. De 2003 a 2010 o governo federal pagou 1,2 trilhões de reais em juros e amortização da dívida pública, excluindo o refinanciamento. Esse gasto significou aproximadamente, 15 vezes o gasto com o principal programa social do governo no período, o Bolsa Família, que atinge mais de 11 milhões de famílias.
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Fonte: Auditoria Cidadã da Dívida
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OS AVANÇOS E CONTRADIÇÕES DAS POLÍTICAS DE DIREITOS HUMANOS NO GOVERNO LULA
Paradoxalmente à evolução dos indicadores sociais durante o governo Lula, nunca antes os bancos que operam no Brasil tiveram lucros tão vultuosos. Assim, no capitalismo contemporâneo, os juros da dívida pública pagos pelo fundo público ou a conhecida despesa “serviço da dívida” do orçamento estatal (juros e amortização) são alimentadores do capital portador de juros por meio dos chamados “investidores institucionais”, que englobam os fundos de pensão, os fundos coletivos de aplicação, as sociedades de seguros e os bancos que administram sociedades de investimentos1.
CRIAÇÃO DE NOVAS INSTITUCIONALIDADES PÚBLICAS PARA PROMOÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS A vitória na eleição em 2002 para a Presidência da República do Partido dos Trabalhadores, aliado histórico dos movimentos sociais na luta pela redemocratização e por direitos no Brasil, foi vista como uma oportunidade por parte de vários movimentos sociais. Assim, atendendo demandas do movimento, o Governo Federal criou três importantes Secretarias especiais, ligadas à Presidência da República: a Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e a Secretaria Especial de Políticas para Mulheres (SPM). Com status de ministério, essas Secretarias são órgãos executivos articuladores de ações de promoção dos direitos humanos, da igualdade racial e de gênero dentro do governo federal e com as demais institucionalidades públicas. No âmbito da Secretaria
de Direitos Humanos são articuladas as políticas voltadas para a criança e o adolescente, pessoa com deficiência, população LGBT, proteção de defensores de direitos humanos ameaçados, pessoa idosa, combate ao trabalho escravo etc. Outro avanço importante foi o processo de realização de diversas conferências nacionais de políticas públicas. Desde 2003, tem aumentado, e muito, o número de conferências realizadas em todo o país em razão do maior estímulo do governo federal a esse mecanismo de participação. Entre os anos de 2003 e 2010 foram realizados perto de 60 conferências nacionais que envolveram cerca de 4 milhões de pessoas, entre representantes da sociedade civil (sindicatos, Ongs, movimentos sociais, entidades de profissionais, empresários etc) e dos poderes públicos municipal, estadual e federal. Somente nas etapas nacionais dessas conferências foram produzidas por volta de 5.000 deliberações públicas. Grande parte delas foi incorporada no desenho de diversas políticas públicas setoriais (IPEA, 2007, p. 20)2. Cabe mencionar também, que a própria existência de órgãos executivos no governo federal, acabou influenciando a estrutura federativa, com a criação de espaços semelhantes em estados e municípios. Contudo, há um grande desafio para consolidar o processo de institucionalização dessas políticas. Para tanto, esses novos órgãos precisam ser dotados de recursos (humanos, financeiros, gerenciais) que os empoderem e lhes permitam promover a implementação de políticas universais dentro de suas áreas de atuação. Analisando os recursos efetivamente executados pelas Secretarias Especiais, durante todo o governo Lula, podemos verificar variações anuais positivas do investimento para a efetivação dos direitos humanos e a promoção de políticas para as mulheres e para a igualdade racial.
TABELA 1 – EXECUÇÃO FINANCEIRA DE SECRETARIAS ESPECIAIS DO GOVERNO FEDERAL SELECIONADAS – VALORES REAIS ATUALIZADOS PELO IGP-DI/FGV (AGO/2010) – R$ MILHÕES 2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
SECRETARIA ESPECIAL DOS DIREITOS HUMANOS
38.89
62,11
59,6
78,93
82,03
102,76
105,84
164,44
SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICA PARA MULHERES
5,15
19,70
21,92
22,99
30,25
44,74
36,12
74,25
-
17,09
17,87
23,18
21,67
18,87
29,23
19,14
SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS DE PROMOÇÃOP DA IGUALDADE RACIAL
86
87
Fontes: Siga Brasil / Senado Federal Elaboração: INESC. Nota: A execução financeira é calculada a partir da soma dos valores pagos “restos a pagar não processados pagos” de um mesmo exercício financeiro
1. Ver, nesse sentido, a Nota Técnica nº 165 do INESC “Os limites do orçamento público para consolidar e expandir direitos”, elaborada por Evilásio Salvador, maio de 2010, acessível em www.inesc.org.br.
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2. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2007) ‘Objetivos de Desenvolvimento do Milênio: Relatório Nacional de Acompanhamento’, Brasília: IPEA.
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Até meados de outubro de 2010, a execução orçamentária das secretarias de Direitos Humanos, Políticas para as Mulheres e Promoção da Igualdade Racial em 2010 eram respectivamente: R$ 164,4 milhões, R$ 74,2 milhões e R$ 19,1 milhões. Esses valores, já atualizados pela inflação, mostram um crescimento percentual para essas secretarias, respectivamente, de 312,2%, 1.342,3% e 19,4% com relação aos seus orçamentos no início da série (no caso da Igualdade Racial, a base é 2004). No período, o investimento acumulado da Secretaria Especial de Direitos Humanos foi de R$ 656 milhões. A Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres somou R$ 255,1 milhões e a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial executou um total de R$ 147,04 milhões. Juntas, as três secretarias investiram R$ 1,09 bilhão no período analisado. O gráfico 5 deixa mais claro o gasto ascendente das três secretarias.
GRÁFICO 5 – EXECUÇÃO FINANCEIRA DE SECRETARIAS ESPECIAIS DO GOVERNO FEDERAL SELECIONADAS – VALORES REAIS ATUALIZADOS PELO IGP-DI/FGV (AGO/2010)
R$ milhões
PERCENTUAL
R$ 134,01
92,58%
DIREITOS DA CIDADANIA
R$ 6,69
4,63 %
CULTURA
R$ 4,04
2,79%
R$ 144,75
100%
ASSISTÊNCIA SOCIAL
140,00 120,00
102,76
100,00 80,00
78,03
60,00
62,11 39,89 5,15
2003
88
VALORES EM BILHÕES
164,44
160,00
20,00
TABELA 2 - COMPARAÇÃO DOS VALORES PREVISTOS NO PPA 2008-2011 POR TRÊS FUNÇÕES SELECIONADAS FUNÇÃO
180,00
40,00
Embora a evolução dos recursos executados pelas três secretarias seja muito positivo, indicando uma progressiva realização dos direitos humanos, como apregoa o PIDESC, o volume total é ainda bastante baixo quando comparado com outras áreas do governo. Podemos dizer que há uma certa concentração dos recursos federais em programas de transferência de renda, existindo um descompasso entre os recursos previstos para os programas de transferência de renda e os recursos destinados para políticas promotoras da igualdade, como a igualdade racial, de gênero e para as populações “vulneráveis” ou com histórico de discriminação, que são foco da SDH. Se compararmos os valores previstos no PPA 2008-2011 para a função “Assistência Social” com os valores previstos para as funções “Direitos da Cidadania” e “Cultura”, podemos verificar a ênfase excessiva dada aos programas de transferência de renda dentro da Agenda Social.
19,70 17,09
2004
82,03
74,25
59,06
17,87
2005
44,74
30,25
21,92
105,84
36,12
TOTAL
29,23 23,18
2006
18,97
21,67
2007
2008
19,14
2009
2010 (até out)
SECRETARIA ESPECIAL DOS DIREITOS HUMANOS SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICA PARA MULHERES SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS DE PROMOÇÃOP DA IGUALDADE RACIAL
Fonte: Siga Brasil / Senado Elaboração: INESC. Nota: A execução financeira é calculada a partir da soma dos valores pagos “restos a pagar não processados pagos” de um mesmo exercício financeiro
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Fonte: Mensagem presidencial PPA 2008-2011
Os valores previstos para a função “Assistência Social”, são executados basicamente, por meio dos programas e ações desenvolvidos pelo MDS – Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Em 2009, dos R$ 33,12 bilhões previstos a serem executados pelo MDS, foram destinados para os programas e ações de transferência de renda, a saber, Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada, Renda Mensal Vitalícia e a concessão de bolsa do PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) R$ 30,63 bilhões. Isso significou 93% do orçamento do MDS previsto para 2009.
OS AVANÇOS E CONTRADIÇÕES DAS POLÍTICAS DE DIREITOS HUMANOS NO GOVERNO LULA
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A estratégia de concessão de bolsas tem se ampliado muito nas políticas públicas federais. Aliada à exigência de condicionalidades (renda, idade, deficiência, permanência de filhos/as na escola etc), esse modelo tem o apoio do Banco Mundial, que vê nesse tipo de proposta uma inovadora forma de assistência social na América Latina. Como outro exemplo, o Pronasci – Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, parte da Agenda Social do governo Federal, prevê um montante de R$ 2.050 bilhões para 2011. Desse valor, 54%, ou R$ 1.107 bilhões3, foram previstos para a concessão de bolsa-formação para policiais militares e civis, agentes penitenciários, guardas-municipais, bombeiros e peritos criminais. Em que medida a destinação privilegiada de recursos para programas de transferência de renda e a estratégia de concessão de bolsas têm se dado à custa da estruturação e manutenção de outros programas e ações federais? Em que medida esses programas estão promovendo um avanço significativo e permanente na realização dos direitos dos cidadãos/ãs brasileiros/as? Sabemos que a transferência de renda operada pelo Programa Bolsa Família contribuiu para a redução da pobreza no Brasil. Contudo, será que a ampliação dessa estratégia para outras áreas, como no caso a bolsa-formação para as forças policiais no âmbito da segurança pública, reduzirá a violência no país? A partir dessa provocação, passaremos a analisar outro importante programa do governo federal, nesse período, o Pronasci.
determinados territórios excluídos de cidadania e da presença do poder público. Nos estados do Rio de Janeiro e Pernambuco, em algumas faixas etárias, o número de homicídios de jovens negros atinge mais de 300 mortes por 100 mil5. Dentro desse quadro, a principal resposta do governo Lula para o problema da segurança pública no Brasil foi a criação do Pronasci – Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, instituído pela Lei 11.530 de 24 de outubro de 2007 e implementado em 2008. Seu objetivo é articular ações de segurança pública para a prevenção, controle e repressão da criminalidade, estabelecendo políticas sociais e ações de proteção às vítimas. A Lei que instituiu o Pronasci é muito inovadora ao definir como diretrizes: g
g g g
g
DIREITO À SEGURANÇA PÚBLICA E O PRONASCI
90
A magnitude da violência na América Latina e, em especial, no Brasil é extremamente preocupante. Nosso país é o sexto país do mundo em número de homicídios (25,2 homicídios por 100 mil habitantes)4. Isso significa aproximadamente 50.000 homicídios por ano. Essa situação é muito diferente em outros países. Nos Estados Unidos são 6 homicídios por 100 mil, na França e Portugal, 0,7 e 1,6 respectivamente. No México, país com características semelhantes ao Brasil, são 9,3. Outro dado importante é a característica da distribuição da violência letal no Brasil. Ela tem uma dimensão racial, territorial, etária e de gênero. Isso significa que as vítimas da violência letal são na sua grande maioria homens, jovens, negros e que vivem em
g g
Promoção dos direitos humanos, intensificando uma cultura de paz, de apoio ao desarmamento e de combate sistemático aos preconceitos de gênero, étnico, racial, geracional, de orientação sexual e de diversidade cultural; Valorização dos profissionais de segurança pública e dos agentes penitenciários; Participação de jovens e adolescentes, de egressos do sistema prisional, de famílias expostas à violência urbana e de mulheres em situação de violência; Observância dos princípios e diretrizes dos sistemas de gestão descentralizados e participativos das políticas sociais e das resoluções dos conselhos de políticas sociais e de defesa de direitos afetos ao Pronasci; Participação e inclusão em programas capazes de responder, de modo consistente e permanente, às demandas das vítimas da criminalidade por intermédio de apoio psicológico, jurídico e social; Promoção de estudos, pesquisas e indicadores sobre a violência que considerem as dimensões de gênero, étnicas, raciais, geracionais e de orientação sexual; Garantia da participação da sociedade civil.
3. Ver, nesse sentido, a Nota Técnica nº 172 do INESC, elaborada em parceria com o CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria “Segurança Pública com Cidadania: uma análise orçamentária do Pronasci”, dezembro de 2010, acessível em www.inesc.org.br.
Cabe ressaltar que, excetuando os gastos com salários, previdência e manutenção do Departamento de Polícia Rodoviária e do Departamento de Polícia Federal (da ordem de R$ 4 bilhões, inseridos no Programa Apoio Administrativo), o Pronasci se configura, desde 2008, como o principal programa de segurança pública do governo federal, investindo mais de R$ 1 bilhão de reais por ano. Apesar disso, a previsão do volume de recursos destinados para todos os programas federais da função “Segurança Pública” para 2010 foram da ordem de R$ 6,5 bilhões. Somente a título de comparação, isso significa por volta 0,56% dos recursos do orçamento fiscal e da seguridade social para 2010, da ordem de R$ 1,149 trilhão,
4. Os dados estatísticos sobre número de homicídios no Brasil e no mundo foram extraídos de: Ramos, Silvia. Morte brasileira: a trajetória de um país. In: Diálogos sobre Violência e Segurança Pública. Rio de Janeiro: Observatório da Cidadania 2009. Edição Especial.
5. Dado extraído de Ramos, 2009. Ver referência completa acima.
NUNCA ANTES NA HISTÓRIA DESSE PAÍS...? UM BALANÇO DAS POLÍTICAS DO GOVERNO LULA
OS AVANÇOS E CONTRADIÇÕES DAS POLÍTICAS DE DIREITOS HUMANOS NO GOVERNO LULA
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os gastos previstos com juros, encargos e amortizações da dívida pública para 2010 são de R$ 279 bilhões, ou 24% dos gastos federais para 2010. Ou seja, em 2010, o governo federal pretendia gastar 43 vezes mais com a dívida pública do que com segurança. O principal impacto esperado com o Pronasci é a redução da violência letal no país. Nesse sentido, foi estabelecido no PPA (2008-2011), como meta do programa, a redução da taxa de homicídios no Brasil em 2011 para 12 por 100 mil habitantes, sendo esperado um índice de 14 em 2010 e 17 em 2009. Visando alcançar essa meta e tendo em vista as características da violência letal no país foram estabelecidos quatro focos prioritários dos programas, projetos e ações que compõe o Pronasci:
Como articular essas diversas iniciativas dentro de uma concepção de segurança pública como um direito de cidadania é um dos principais desafios do Pronasci. Esse desafio está também associado à consolidação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) e de um sistema de gestão participativa, por meio do Conselho Nacional de Segurança Pública (CONASP), e dos conselhos estaduais, municipais e comunitários. Cabe reconhecer a importância da realização da I Conferência Nacional de Segurança Pública (Conseg), em 2009, e da rearticulação do CONASP, como mais dois espaços participativos de reivindicação, busca de consensos e compromissos do poder público e sociedade civil com vistas a construção de uma política pública cidadã no campo da segurança pública no Brasil.
PRIORIDADE DO PRONASCI: CONCESSÃO DE BOLSA-FORMAÇÃO PARA POLICIAIS g g
g g
92
Foco etário: jovens de 15 a 24 anos; Foco social: jovens e adolescentes egressos do sistema prisional ou em situação de moradores de rua, famílias expostas à violência urbana, vítimas da criminalidade e mulheres em situação de violência; Foco territorial: regiões metropolitanas e aglomerados urbanos que apresentem altos índices de homicídios e de crimes violentos; Foco repressivo: combate ao crime organizado.
Nesse sentido, foi criado o conceito de Territórios Vulneráveis ou Territórios da Paz, que seriam regiões com altos índices de criminalidade e homicídios, onde se daria de forma prioritária a implementação das diversas ações do programa: ações preventivas (policiamento comunitário, por exemplo), repressivas, políticas sociais e também a realização de obras de infra-estrutura previstas no Programa de Aceleração do Crescimento – PAC. Para que essa ação focada no território e na juventude dê resultados, é necessária a atuação conjunta do governo federal, governos estaduais, municípios, órgãos do sistema de justiça e também organizações da sociedade civil. Esse difícil, mas necessário, arranjo institucional tem sido criado aos poucos, por meio da adesão voluntária dos entes federativos ao programa, a partir da celebração de convênios com o Ministério da Justiça. O principal desafio da política de segurança pública no país, portanto, é a articulação entre os entes federativos e os órgãos de justiça (poder judiciário, ministério público, defensoria). Os estados são responsáveis pela gestão e manutenção das polícias militar e civil. O governo federal pela Polícia Federal, a Polícia Rodoviária e, mais recentemente, pela Força Nacional de Segurança. Os municípios, além de possuírem guardas municipais, são os principais responsáveis pela implementação de políticas sociais locais. São diversas polícias, iniciativas, competências, modelos de gestão que ainda não compõem um desejado Sistema Único de Segurança Pública.
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A principal ação do Pronasci é a concessão de bolsa-formação para policiais, agentes penitenciários, guardas municipais, bombeiros e peritos. 54% da previsão orçamentária do Pronasci para 2011, ou R$ 1,107 bilhões, estão alocados nessa rubrica. Para 2010, a meta foi conceder bolsas para 90.000 profissionais da segurança, de acordo com o anexo de prioridades e metas da Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2010 (Lei 12.017/2009). A valorização e qualificação dos profissionais da segurança tem sido, portanto, o foco do programa, por meio do oferecimento de uma bolsa-formação, no valor de R$ 400, que funciona também como uma complementação de salário, desde que cumpridas as seguintes condições: g g g
Receber salário bruto de até R$ 1.700,00; Não ter cometido e nem ter sido condenado pela prática de infração administrativa grave e não possuir condenação penal nos últimos cinco anos; Frequentar cursos de formação e educação continuada oferecidos pelo Ministério da Justiça.
A intenção de valorização profissional também é explícita na Lei que instituiu o Pronasci, estabelecendo que os estados e municípios que aderirem ao projeto bolsa-formação devem garantir uma remuneração mensal não inferior a R$ 1.300,00 aos profissionais de segurança. No entanto, a grande questão é a qualidade dos cursos de formação habilitados pelo Ministério da Justiça. Eles realmente estão contribuindo para a formação de profissionais de segurança pública com o foco na cidadania, nos direitos humanos, na prevenção e no uso da inteligência nas ações de repressão? Qual é o impacto dessa formação e da complementação salarial na redução dos índices de violência letal nos “territórios da paz”?
OS AVANÇOS E CONTRADIÇÕES DAS POLÍTICAS DE DIREITOS HUMANOS NO GOVERNO LULA
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Como essa iniciativa se articula com a necessidade de mudanças estruturais da forma de organização e ação das forças policiais no país? É importante desenvolver mecanismos sistemáticos de monitoramento e avaliação desses cursos e também de acompanhamento dos bolsistas para que possamos considerar o impacto dessa ação, tanto na valorização e capacitação dos profissionais de segurança pública, como também na redução dos índices de criminalidade no país.
COMBATE AO RACISMO INSTITUCIONAL: UMA PRIMEIRA AUSÊNCIA Uma crítica recebida pelo Pronasci quando da sua criação foi com relação à falta de uma ação explícita de combate ao racismo institucional no Programa. Embora tenha sido um avanço o estabelecimento do combate sistemático ao preconceito étnico/racial como uma diretriz do Programa, ela não foi concretizada na forma de ações específicas. A população negra e especialmente os jovens negros vivem em um ambiente de grande insegurança pessoal, que se reflete tanto na maior probabilidade de serem vítimas de violência interpessoal, como vítimas do próprio aparato repressivo do Estado, no qual a tortura e as execuções sumárias ainda estão longe de serem erradicadas. Cabe ressaltar que, historicamente, a principal política do Estado direcionada a população negra foi a política da repressão e do controle, operacionalizada pelos aparatos de força e segurança do Estado. A face mais visível do Estado para negros e negras no Brasil, sempre foi a policial e repressora. O racismo institucional é um dos grandes entraves à eliminação das desigualdades raciais e à pobreza no Brasil. As práticas discriminatórias estão naturalizadas na forma como as organizações se estruturam e definem seus procedimentos internos. O racismo institucional, nas instituições públicas, impede que as políticas universais sejam igualitárias na prática; na verdade elas beneficiam negros/as e brancos/as de forma diferenciada. Isso é muito explícito no âmbito do sistema de justiça e na atuação das forças policiais.
REDUÇÃO DA VIOLÊNCIA PRODUZIDA PELOS AGENTES DO ESTADO: UMA SEGUNDA AUSÊNCIA
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Quando analisamos os indicadores de violência, uma pergunta importante que devemos fazer é quem está morrendo e quem está matando no Brasil. Para além da violência inter-pessoal gerada por inúmeras causas, um importante agente da violência letal é o próprio Estado, ou mais precisamente, seu braço armado, a polícia. Em 2007, somente no estado do Rio de Janeiro a polícia matou mais de 1330 pessoas6. Esses números também são altíssimos em outros estados da federação como Pernambuco, São Paulo e Espírito Santo.
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A título de comparação, em 1997, ocorreram 300 mortes pela polícia do Rio de Janeiro configuradas como “autos de resistência”. Esses números vêm aumentando muito ao longo dos anos. Segundo o IPEA7 “a alta letalidade da ação policial dificilmente pode ser explicada apenas como ‘uso legítimo da força’, pois o número de policiais mortos em serviço é relativamente baixo diante da morte de civis – 17 na capital e 26 no total do estado –, o que indica que houve abuso da violência letal.” O Pronasci não possui nenhuma ação explícita de redução da violência das forças policiais (incluindo as execuções sumárias e tortura). Não existem ações estruturais de reforma das polícias, como a desmilitarização da Polícia Militar e a unificação das polícias civis e militares. Ou seja, o programa não busca alterar o caráter ainda repressivo, não cidadão, militarizado e fragmentado das forças policiais no país. Portanto, faz-se necessário, entre outras medidas: g g g
Criar ouvidorias de Polícia com independência e autonomia para exercer controle externo das atividades policiais; Dotar as corregedorias das polícias de recursos humanos e materiais suficientes para o desempenho de suas atividades, ampliando sua autonomia funcional; Fortalecer ações de combate às execuções extrajudiciais realizadas por agentes do Estado, assegurando a investigação dessas violações.
Ações devem ser implementadas no sentido de integração das polícias, com ênfase nas ações preventivas na atividade policial, tornando a polícia garantidora de direitos e não perpetradora de violações. O impacto dos cursos de formação na redução do número de execuções sumárias, intimidações e prática de tortura praticada pelas polícias tende a ser pequeno se não for aliado a uma política de combate à impunidade e de tolerância zero às práticas de tortura dentro das corporações. Vontade política e mudanças estruturais devem existir para transformar essa realidade. É preciso definir metas de redução destas práticas e do grau de letalidade na atividade policial. A desmilitarização da polícia militar e do corpo de bombeiros (responsável também pela execução de atividades de defesa civil) é uma mudança estrutural que poderia tornar a polícia mais próxima do cidadão. Os policiais são treinados dentro de uma lógica militar de enfrentamento, hierarquia e ordem. Esse paradigma não se adequa mais a necessidade de uma polícia cidadã, comunitária, que deve ver o cidadão como sujeito de direito e não como um possível suspeito de atividade criminosa. A atual estrutura militarizada 6. Dados do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (ISPRJ). Essas ocorrências são consideradas como autos de resistência, o que torna mais difícil a apuração e punição dos responsáveis. 7. IPEA. Brasil. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA (2009) “Brasil em Desenvolvimento: Estado, Planejamento e Políticas Públicas”, Brasília: IPEA, 2009, 772 p.
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favorece a lógica da repressão e do controle, que se reflete na criminalização da pobreza e no racismo institucional. Cabe destacar também que a cultura institucional e legitimada da tortura durante a ditadura militar, ainda está impregnada nas práticas policiais. A opção por uma anistia e uma transição democrática, que não estabeleceu uma Comissão da Verdade e que não condenou criminosos torturadores presentes na estrutura do aparelho do Estado, reflete-se hoje na leniência da polícia militar em encaminhar as denúncias de tortura, maus tratos e com a dificuldade de condenar maus policiais que praticam tortura ou mesmo execuções sumárias. Por outro lado, quando falamos em reformas estruturais das polícias não podemos deixar de indicar a necessidade de unificação ou uma melhor articulação das polícias civis e militares. Enquanto as polícias militares são responsáveis pelo policiamento ostensivo, a repressão e a preservação da ordem; as polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, são responsáveis pela função de polícia judiciária e a apuração de infrações penais. São estruturas diferentes, com funções diferentes, com dificuldade de articulação e pensamento estratégico comum. Essa estrutura dual e desarticulada favorece a impunidade. Os crimes dificilmente são investigados devidamente, transmitindo para a população uma sensação de injustiça e desesperança. Assim, transformar a segurança pública no país a partir da perspectiva dos direitos humanos passa por mudanças estruturais das forças policiais: unificação, desmilitarização, maior articulação institucional, policiamento comunitário, maior ênfase na inteligência, perícia, investigação e valorização profissional. Para que isso aconteça, interesses corporativos terão que ser enfrentados visando o interesse público de reformularmos nossas polícias para que sejam promotoras da cidadania. Cabe dizer, que durante o governo Lula, a SENASP – Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça e o Pronasci não colocaram a reforma das polícias como prioridade na construção de uma política de segurança pública com cidadania.
OS MOVIMENTOS DE DIREITOS HUMANOS, A REAÇÃO CONSERVADORA DAS ELITES, A LAICIDADE DO ESTADO E O GOVERNO LULA
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Durante o governo Lula, com a criação em 2003 da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), ligada à Presidência da República e o apoio do governo federal na organização e realização das últimas três conferências nacionais8, a participação dos movimentos de direitos humanos na elaboração e monitoramento das políticas nessa área aumentou. Em 2004, a relação do governo com os movimentos de direitos humanos
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em razão da realização da IX Conferência Nacional foi muito tencionada e criticada, tendo atingido outro patamar de respeito e autonomia durante a XI Conferência Nacional, realizada em 2008 e que teve como objetivo a revisão e atualização do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH). A Conferência foi organizada de forma democrática e participativa pela SEDH, Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados e pelas organizações e movimentos de DHs, articulados pelo FENDH – Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos. Esse processo também provocou o ressurgimento na esfera pública de organizações como a Tradição, Família e Propriedade – TFP – e a super exposição de posicionamentos ultra-conservadores na mídia, como o do jurista Ives Gandra Martins para quem o PNDH III seria um “decreto preparatório para um regime ditatorial”. Essas forças que durante a ditadura foram simbolicamente articuladas pelo lema TFP, ganharam uma nova roupagem e voltaram a se articular sob um discurso neoliberal conservador. Para esses grupos, liberdade de expressão se restringe ao direito das grandes empresas de comunicação de utilizar o espaço público das comunicações no país; quem ousa falar sobre democratização das comunicações é visto como um apologista da censura e do obscurantismo; quem defende qualquer ação afirmativa para a população negra no país é considerado racista e apologista do ódio racial. O PNDH seria um documento anti-cristão e os direitos sexuais e reprodutivos não seriam considerados direitos humanos. Lamentavelmente, setores conservadores da Igreja Católica, através da Comissão Regional em Defesa da Vida do Regional Sul 1 da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) chegou a chamar o Presidente Lula de novo Herodes. Em carta assinada em 28/01/2010, 67 bispos católicos afirmaram que no PNDH III: “Há propostas que banalizam a vida, descaracterizam a instituição familiar do matrimônio, cerceiam a liberdade de expressão na imprensa, reduzem as garantias jurídicas da propriedade privada, limitam o exercício do poder judiciário, como ainda correm o perigo de reacender conflitos sociais já pacificados com a lei da anistia.” Esses posicionamentos da CNBB e de seus membros indicam o fechamento de um ciclo que floresceu durante as décadas de 70 e 80 e se aproximou dos ideais cristãos de solidariedade, humanismo e emancipação. Embora tenha havido uma verdadeira revolução progressista na Igreja Católica latino-americana impulsionada pelos ventos da Teologia da Libertação, a “contra-revolução” conservadora, vinda do Vaticano, foi rápida e bem-sucedida. A ação da Igreja Católica hoje no país não é a mesma dos anos 70 e 80. As CEBs (Comissões Eclesiais de Base) que foram a base para o nascimento das ongs políticas no 8. As Conferências de Direitos Humanos no Brasil sempre foram organizadas de forma independente pelas organizações da sociedade civil em parceria com a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados e outros parceiros, como órgãos do Ministério Público. Para saber mais, acesse www.direitos.org.br
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país, praticamente não existem mais. A guinada conservadora da Igreja vem produzindo efeitos devastadores para o avanço de direitos ao bloquear as demandas de movimentos sociais e associações de defesa de direitos no país, como o movimento feminista, de DST/Aids e LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis). Dentro desse contexto, impulsionado pelo debate eleitoral em 2010 pautado pela religião, não podemos deixar de mencionar o expressivo crescimento da bancada evangélica no Congresso Nacional. Segundo dados do DIAP – Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar9, a bancada evangélica eleita em 2010 possui 73 parlamentares, sendo 70 deputados/as e 03 senadores. Para o DIAP “diferentemente da eleição de 2006, em que a bancada foi reduzida à metade, nesse pleito o índice de reeleição foi recorde. Dos 36 parlamentares existentes, 34 foram reeleitos. A estes se somarão os 39 novos parlamentares, mais que dobrando o número de representantes evangélicos”. De outro lado, o processo de construção e defesa do PNDH III, provocou uma grande articulação dos movimentos de defesa dos direitos humanos no Brasil, que englobam diversas redes, fóruns, organizações e movimentos sociais. Além de suscitar uma defesa inquestionável dos direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos e o fortalecimento de uma agenda de luta visando a) à universalização dos direitos; b) o combate à violência em todas as suas expressões, desde a violência letal contra jovens negros à criminalização dos movimentos sociais; c) a instituição de uma Comissão da Verdade para apuração das violações de Direitos cometidas durante a ditadura militar; d) o fomento à cultura em direitos humanos por meio de processos educativos; e e) o questionamento desse modelo de desenvolvimento predatório que concentra renda, viola direitos e destrói o meio ambiente, escolhido pelo Brasil. As organizações e redes de direitos humanos constituíram uma campanha pela integralidade e implementação do PNDH III10. Lamentavelmente, o governo Lula optou por modificar trechos do PNDH por meio do Decreto nº 7.177, de 12 de maio de 2010. De forma unilateral, o governo Lula, que durante os oito anos de mandato incentivou a participação popular, cedeu rapidamente à pressão desses grupos. De um lado, o PNDH provocou a formação de uma agenda comum para os movimentos de direitos humanos e uma indicação clara para as políticas públicas no país, de outro, a rearticulação de grupos conservadores e a super exposição na esfera pública de posicionamentos claramente contrários à promoção dos direitos e à redução das desigualdades e da discriminação no Brasil. Para que lado a balança irá pender nos próximos anos, ainda é uma incógnita.
9. DIAP. Radiografia do Novo Congresso: Legislatura 2011-2015. Série Estudos Políticos, Ano V, Brasília/DF, dezembro de 2010. 10. Para saber mais acesse www.pndh3.com.br
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A politica externa brasileira nos oito anos do governo Lula: Legados e licoes para a insercao do Brasil no mundo
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DANILO MARCONDES DE SOUZA NETO Mestre em Relações Internacionais e professor de graduação em Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-Rio).
INTRODUÇÃO: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE OS OITO ANOS DE GOVERNO LULA E A TRADIÇÃO DE POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA
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ma análise sobre os oito anos do governo Lula não poderia deixar de incluir uma reflexão sobre os impactos desse mesmo governo na política externa e na inserção do Brasil no mundo. Os dois mandatos exercidos por Lula na Presidência fornecem um legado para a diplomacia brasileira que se projeta para além dos oito anos transcorridos. A política externa do governo Lula tem sido avaliada de maneira variada pelos estudiosos brasileiros. José Augusto Guilhon Albuquerque identifica a existência de três agendas diferentes que, apesar de distintas, funcionam de maneira compatível, ainda que acabem por perseguir objetivos que se apresentam como conflitantes. A primeira seria uma agenda tradicional, relacionada aos objetivos tradicionais buscados pela diplomacia brasileira, como por exemplo, a não submissão aos EUA e a busca por um “ambiente externo favorável ao crescimento e à estabilidade da economia brasileira” (ALBUQUERQUE, 2005, p. 91). As duas seguintes são a agenda pessoal, que estaria ligada a uma busca por um protagonismo no plano internacional como forma de proporcionar uma liderança doméstica ao Presidente e, por fim, uma agenda ideológica, na qual a ascensão de Lula e do Partido dos Trabalhadores ao governo deveria estar vinculada à utilização da diplomacia como “instrumento para promover o advento de uma nova ordem mundial destinada a superar o atual processo de globalização e seu principal propulsor, a supremacia global americana” (ALBUQUERQUE, 2005, p. 92). Para outros analistas, a chegada ao poder do governo Lula em janeiro de 2003 deve ser destacada pela mudança que provocou na política externa brasileira. Mudança esta simbolizada pela incorporação de uma agenda social na política externa, e também pela adoção de uma postura mais assertiva em relação à reforma de instituições multilaterais (SOARES DE LIMA & HIRST, 2006, p. 22). Alguns analistas, no entanto, defendem que não houve uma ruptura em termos de política externa entre os governos Fernando Henrique Cardoso e Lula, uma vez que o último deu continuidade a algumas iniciativas já tomadas na administração do primeiro. Podemos identificar, no entanto, certas mudanças de metas, de forma que os dois governos, apesar de representarem tradições diplomáticas distintas, mantiveram dois objetivos em comum: a busca pelo desenvolvimento econômico e a autonomia (VIGEVANI & CEPALUNI, 2007, p. 275). 1. As reflexões presentes nesse artigo se beneficiaram da troca de idéias e dos ensinamentos fornecidos por Mônica Herz, Leticia Pinheiro, Kai Michael Kenkel, Matias Spektor, Monica Hirst, Maria Regina Soares de Lima e Antonio Jorge Ramalho da Rocha. Agradeço a Marilene de Paula, da Fundação Heinrich Böll, pelo convite para a realização do artigo. A responsabilidade pelos erros e omissões é exclusivamente minha.
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Ainda sobre a diferença entre os governos FHC e Lula, Almeida Filho cita a contribuição de Maria Regina Soares de Lima (2004), que identifica no governo FHC um modelo de credibilidade, e no governo Lula, um modelo de autonomia. O modelo de credibilidade envolveria a aceitação da globalização, a realização de reformas de cunho neoliberal, baseadas no Consenso de Washington e a percepção de que países médios como o Brasil não teriam excedentes de poder no plano internacional. Essa estratégia de credibilidade estaria voltada para a atração de investimentos externos, apresentando esses países médios como “politicamente confiáveis na medida em que se associam às principais normas e regimes internacionais” (SOARES DE LIMA, 2004 apud ALMEIDA FILHO, 2009, p. 71-72). Em contraponto ao modelo anterior, o segundo modelo enfatiza a busca pelo desenvolvimento com autonomia em relação às normas de liberalização neoliberais, e é caracterizado pela percepção de que países médios têm condições de exercer poder no mundo, mesmo que o sistema internacional possua uma potência hegemônica. A adoção do modelo de autonomia implica ainda que o país se encontre pronto para exercer um papel de protagonista no sistema internacional (idem). Em uma análise semelhante à anterior, Alexandre Nina define a política externa do governo Lula não como uma busca de adaptação à ordem internacional vigente (como forma de adquirir credibilidade), mas sim como a adoção de uma política externa flexível, baseada na busca de diversificação de parcerias econômicas e com uma ênfase no plano interno em programas sociais (NINA, 2006, p. 5). O modelo de autonomia seguido pela política externa do governo Lula foi definido por Vigevani & Cepaluni (2007) como “autonomia pela diversificação”, definido como: A adesão do país aos princípios e às normas internacionais por meio de alianças Sul-Sul, inclusive regionais, e de acordos com parceiros não tradicionais (China, Ásia-Pacífico, África, Europa Oriental, Oriente Médio etc...), pois acredita-se que eles reduzem as assimetrias nas relações externas com os países mais poderosos e aumentam a capacidade negociadora nacional (VIGEVANI & CEPALUNI, 2007, p. 283).
Podemos identificar uma diferença entre os governos FHC e Lula em relação ao posicionamento brasileiro a respeito do multilateralismo. O governo FHC seria caracterizado por uma ênfase na obediência às regras (representada, por exemplo, pela adesão aos regimes internacionais), e o governo Lula enfatizaria a participação ativa na produção dessas mesmas regras. Segundo Amado Cervo, no governo Lula o multilateralismo permanece como um valor importante na política externa, por representar a melhor alternativa para um país nas condições do Brasil. No entanto, a postura adotada em relação ao multilateralismo não é de confrontação, reforma ou submissão, mas sim a de “penetrar a ação das estruturas
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hegemônicas do capitalismo de modo a ser parte do jogo de reciprocidades internacionais, do comando e dos benefícios” (CERVO, 2008, p. 103). Essa nova postura multilateral se traduziria ainda em dois elementos – a busca pela construção de meios e a realização de fins –, que seriam duas estratégias necessárias para que o Brasil pudesse substituir uma política idealista kantiana (presente no governo FHC)2 por uma política realista baseada na “busca da reciprocidade real das relações de interdependência” (CERVO, 2008, p. 103). Alguns desses meios e fins serão analisados nas seções seguintes desse artigo. Após essa breve introdução sobre diferentes perspectivas teóricas a respeito da política externa brasileira, podemos citar a atuação crescente de outros órgãos e agências na condução e na elaboração da política externa. Dentre esses atores destacamos o envolvimento cada vez maior do Congresso Nacional, como ilustrado nos debates sobre: a participação na MINUSTAH (sigla em francês para Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti, criada em 2004), em que foi criticada a participação do Brasil, inclusive questionada a continuidade da presença brasileira no Haiti; o caso da aprovação da adesão da Venezuela ao Mercosul, em que membros da oposição postergaram a votação para pressionar o governo; e a postura crítica de alguns parlamentares em relação ao posicionamento frente à Cuba, Irã, Honduras e Bolívia, sendo este último quando da nacionalização da exploração dos hidrocarbonetos em 2005 promovida pelo governo Evo Morales. Nesse aspecto, destacamos que uma maior politização da política externa não necessariamente se traduz em maior democratização da mesma (PINHEIRO, 1997, p 6). Para que haja uma real democratização da política externa é necessário que outros atores se interessem em debater política externa de forma que a mesma possa contribuir para a busca do interesse nacional, seja ele qual for.
O GOVERNO LULA E A POLÍTICA EXTERNA: EM BUSCA DE UM MAIOR PROTAGONISMO INTERNACIONAL
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Nas eleições presidenciais de 2002, o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito presidente com 52,8 milhões de votos no segundo turno. Em artigo publicado em agosto de 20023, o Presidente, ainda na condição de candidato já defendia a intenção de garantir por meio da política externa do seu futuro governo, a presença soberana do Brasil no mundo. Como parte do esforço para tornar isso fosse possível,
2. Segundo Cervo, essa política de idealismo kantiano presente no governo FHC correspondia a uma “visão de mundo harmonioso e padronizado, cujo ordenamento brotaria da negociação”. O autor afirma ainda que essa visão de ordenamento de mundo acabou se revelando uma utopia, de forma que, a percepção dessa visão distorcida levou a opinião pública a substituir nas eleições presidenciais de 2002 um governo neoliberal por um governo de esquerda (Cervo, 2008, p. 103).
a atuação internacional do Brasil nos últimos oito anos foi caracterizada por uma forte diplomacia presidencial4, beneficiada pela imagem positiva que o presidente Lula adquiriu internacionalmente. Sua presença foi importante para afirmar o compromisso do Brasil com o desenvolvimento, justiça e equidade social a nível global, colocando para sua sucessora o desafio de decidir de que forma irá lidar com o seu legado na política externa. Tanto a continuidade quanto uma eventual revisão da política externa e da atuação internacional do país acarretarão em conseqüências para a inserção internacional do Brasil. Como na área econômica o governo Lula continuou adotando uma política ortodoxa presente no governo anterior. Na busca pela diferenciação em termos de política externa ele tornou-se alvo de debate e discussão, seja por meio de críticas e contestações, ou por elogios e manifestações de apoio. Longe de adotar uma das duas visões, a posição defendida nesse artigo é a de que a existência de um diálogo e uma maior atenção à política externa durante os oito anos do governo Lula é um fator positivo para a inserção do Brasil no mundo, porque estimula o debate nacional a respeito das decisões e dos rumos a serem tomados na área de política externa, como será ilustrado nas considerações a respeito do envolvimento no Haiti. Uma das iniciativas da diplomacia brasileira que mais suscitou repercussão, tanto a nível doméstico quanto internacional, foi a aproximação com o Irã, refletida na troca de visitas presidenciais ao longo de 2009 e 2010, e na postura brasileira favorável ao desenvolvimento de tecnologia nuclear por parte daquele país. A diplomacia brasileira procurou explicitar que defendia o direito do governo iraniano de possuir um programa nuclear para fins pacíficos e condenava o discurso anti-semita e de negação do Holocausto por parte do presidente iraniano. No entanto, a proximidade entre Brasília e Teerã atraiu críticas de alguns membros da comunidade internacional, como Estados Unidos e Israel, e também de alguns setores domésticos. A aprovação da resolução 1929 pelo Conselho de Segurança da ONU em junho de 2010, estabelecendo sanções comerciais ao Irã nas áreas de material militar e tecnologia nuclear, comprometeu o esforço brasileiro de buscar uma aproximação comercial com o país e também os esforços de mediação de Brasil e Turquia. Apesar do fracasso nas negociações, o envolvimento brasileiro revelou uma disposição do país em estabelecer canais de diálogo sul-sul, demonstrando também que defende o direito dos países em desenvolvimento de estabelecer programas nucleares para fins pacíficos, como previsto no Tratado de Não-Proliferação Nuclear. Além da aproximação com o Irã, a busca por um maior protagonismo internacional retomou um tema da política externa brasileira que remonta ao final da Segunda Guerra
3. “Carta Internacional”. n.114, ano X, agosto de 2002, p. 9.
4. Para uma análise da diplomacia presidencial ver Eduardo Scolese & Leonencio, Nossa Viagens com o presidente: dois repórteres no encalço de Lula no Planalto e no exterior, Rio de Janeiro, Record, 2006 e Sergio Danese, Diplomacia presidencial, Rio de Janeiro, Topbooks, 1999.
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Mundial e até mesmo à Liga das Nações: a obtenção de um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. O tema havia adquirido força internacionalmente em meados dos anos 1990 e retornou às discussões na ONU em 2005, na expectativa de que o aniversário de 60 anos da instituição pudesse instaurar nos países-membros o ímpeto reformista. No que diz respeito à reforma do Conselho de Segurança, um elemento central que precisa ser tratado pelo Brasil e demais países interessados em assentos permanentes é o fato de que, enquanto uma ampliação do órgão pode torná-lo mais democrático na sua composição, um aumento no número de membros, seja de permanentes ou não-permanentes, não irá diretamente torná-lo mais rápido e eficiente para tratar dos desafios relacionados à manutenção da paz e da segurança internacional. O aumento no número de membros pode representar inclusive uma maior restrição sobre que assuntos o Conselho irá debater, simbolizando uma diminuição e não um aumento das suas atividades. Mesmo criando um maior grau de representação para o Sul, a expansão em termos de assentos permanentes pode não necessariamente significar que as questões de interesse desses Estados serão debatidas pelo Conselho (BOULDEN, 2006, p. 9). Para o Brasil, a obtenção de um assento permanente poderá tornar o país alvo de pressão por parte dos demais atores, e não necessariamente um ator mais poderoso e influente em relação aos temas internacionais. A busca por um assento permanente poderá ainda comprometer os objetivos de longo prazo de fortalecimento e consolidação da unidade política da própria América do Sul, já que não existe um consenso regional em prol da candidatura brasileira, principalmente na Argentina, o principal parceiro do país na região.
A OPÇÃO PELA AMÉRICA DO SUL
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Apesar dos esforços de aproximação entre o Brasil e os outros países da região incluírem a criação do Mercosul em 1991 e o 1º Encontro de Chefes de Estado da America do Sul em 2000, a maioria dos analistas destacam que com o governo Lula a região foi alçada a um status de prioridade sem precedentes: “mais do que a circunstância do Brasil, a América do Sul é a referência para a inserção brasileira no mundo do século que se abre” (SANTOS, 2005, p. 19). Segundo Galvão (2009, p. 76): “coube ao governo Lula assumir a sul-americanidade como herança histórica e, gradativamente, institucionalizar a ideia de América do Sul por meio de discursos e ações”. Um dos exemplos dessa institucionalização foi a criação de uma Subsecretaria-Geral para América do Sul no Itamaraty e da Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA)5, em Cuzco em 2004.
Apesar de constituir uma opção estratégica em relação a outros fóruns, a identidade sul-americana não possui um caráter excludente, pois: “ a) (...) não exclui laços bilaterais ou multilaterais com os outros países da América Latina, do continente americano ou do mundo, b) porque não exclui a pluralidade intrínseca à própria América do Sul e ao Brasil, cuja identidade é plural também” (GALVÃO, 2009, p. 71). Esse componente não excludente da identidade sul-americana irá atuar em benefício da política externa brasileira que, mesmo enfatizando o fortalecimento da América do Sul, não irá comprometer seu caráter universalista: “essa dimensão regional da diplomacia brasileira é complementada por uma vertente universalista. O que não deixa de refletir a natureza aberta, inclusiva, da nossa opção pela América do Sul”6. Cabe resssaltar que a diplomacia brasileira irá se destacar pela promoção de iniciativas de cooperação entre a América do Sul e os países árabes e os países do continente africano, simbolizada pelas cúpulas bi-regionais realizadas no período. Seguindo a lógica apresentada anteriormente, durante o governo Lula, a escolha da América do Sul pode ser identificada como ponto de partida para uma nova inserção internacional do país, acarretando assim, segundo analistas, uma mudança no posicionamento brasileiro, mudança esta que envolve uma ênfase no aspecto político da integração, com a busca do fortalecimento da região como pólo alternativo de poder em um mundo unipolar. Dentre as mudanças no posicionamento brasileiro, destacamos primeiro, um envolvimento na resolução de crises regionais, como forma de manter afastada a presença dos Estados Unidos, e, segundo, uma ênfase na integração produtiva e física da região (SOARES DE LIMA, 2007, p. 38-39). No entanto, apesar da mudança de ênfase, os limites da liderança brasileira são demonstrados pela ausência de instituições que possam resolver essas crises. A ausência ou o pouco poder de decisão desse tipo de instituição é ainda fruto de uma tradição soberanista presente na região e da qual o Brasil faz parte (idem). Apesar de ter suscitado algumas controvérsias em relação ao caráter do regime político liderado pelo presidente Hugo Chávez, o processo de incorporação da Venezuela ao Mercosul, aprovado pelo Senado brasileiro em dezembro de 2009, consolidou a estratégia brasileira de fortalecer e unificar política e comercialmente a América do Sul. Sobre a Colômbia, enquanto o Brasil expressou reservas quanto ao estabelecimento de bases americanas em território colombiano, o país deu um passo importante ao procurar uma posição mais atuante em relação ao conflito no país, buscando agir como mediador e se envolvendo em iniciativas de liberação de reféns das FARC.
105 5. Na Primeira Reunião de Energia Sul-Americana, realizada em 16 de abril de 2007 na Venezuela, a denominação CASA foi substituída por UNASUL (União de Nações Sul-Americanas). Em 23 de maio de 2008, em reunião em Brasília, os representantes dos 12 Estados-membros assinaram o tratado constitutivo de formação da UNASUL. Ver: http://www.mre.gov.br/portugues/ imprensa/nota_detalhe3.asp?ID_RELEASE=5466. Acesso em 9 de outubro de 2010. 6. Discurso do ministro Celso Amorim no Conselho Mexicano de Assuntos Internacionais - COMEXI, 28 de novembro de 2007. Resenha de Política Exterior do Brasil. n. 101, 2º semestre de 2007, p. 166.
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A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA NOS OITO ANOS DO GOVERNO LULA : LEGADOS E LIÇÕES PARA A INSERÇÃO DO BRASIL NO MUNDO
Em termos da institucionalização na região, uma iniciativa importante ocorreu com a criação, em 2008, do Conselho Sul-Americano de Defesa (CSD), parte da União SulAmericana de Nações (UNASUL)7. O órgão tem como objetivos articular uma posição comum entre os países sul-americanos a respeito de operações de paz e crises humanitárias, promover o intercâmbio de experiências entre os Estados nessa área, realizar exercícios militares que simulem crises humanitárias, estimular a integração e o fortalecimento da indústria de defesa na região, fomentar a confiança mútua entre os membros e contribuir para a cooperação frente a desastres naturais, entretanto, não se propondo a ser uma aliança militar. O Conselho reflete a maturidade dos países da região em assumirem a resolução dos problemas e das crises políticas regionais, sem a interferência de países externos, principalmente dos Estados Unidos.
A DIVERSIFICAÇÃO DE PARCERIAS Além da aproximação com os países do entorno regional, nos oito últimos anos, a diplomacia brasileira também consolidou a postura de procurar aproximação com países que possuem o mesmo perfil e que compartilham interesses comuns aos do Brasil. O interesse comum pela reforma do Conselho de Segurança levou o país a estabelecer o G-4, uma iniciativa de cooperação que inclui Brasil, Alemanha, Índia e Japão, e que apresentou uma proposta de reforma do Conselho de Segurança, com a inclusão de membros permanentes e não-permanentes. Apesar de estarem respaldados pelas suas contribuições às Nações Unidas, sejam elas de ordem orçamentária ou relacionadas às operações de paz, os quatro não foram bem-sucedidos na sua reivindicação, principalmente pela resistência dos membros permanentes do Conselho, e também pela forte oposição de países localizados nos seus entornos regionais como Itália, China, Coréia do Sul, Paquistão, México e Argentina. Como outros exemplos de parcerias, podemos destacar também o Fórum Índia, Brasil e África do Sul (IBAS), criado originalmente em junho de 2003 pela Declaração de Brasília e também a iniciativa dos BRICS8 (Brasil, Rússia, Índia e China) cujo primeiro encontro oficial ocorreu em 2009. Mesmo que os BRICS ainda não tenham adquirido status de organização formal, o grupo tem sido uma voz cada vez mais importante
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7. A proposta de criação do Conselho foi uma iniciativa brasileira apresentada em 15 de abril de 2008, durante reunião em Brasília, tendo sofrido resistência por parte da Colômbia. O Conselho foi estabelecido durante a reunião de presidentes da UNASUL na Costa do Sauípe (Brasil) em 16 de dezembro de 2008. Disponível em http://www.esg.br/uploads/2009/07/decisao-estabelecimento.pdf. Acesso em 10 de outubro de 2010. 8. Originalmente o acrônimo BRICS foi criado pelo economista do Banco Goldman Sachs, Jim O’Neill na publicação intitulada “The World Needs Better Economic BRICs” Global Economic Papers, n 66, 2001. Disponível em: http://www2.goldmansachs. com/ideas/brics/building-better-doc.pdf Acesso em 3 de outubro de 2010.
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reivindicando mais espaço no sistema internacional para os países emergentes da (dita) periferia. Uma questão fundamental para este último bloco será a definição do futuro dos países envolvidos: se eles continuarão sendo parceiros ou se tornarão competidores, já que existem pontos de fricção e de afastamento em diversos aspectos, como direitos humanos e democracia, reforma do Conselho de Segurança, acesso a mercados e a recursos energéticos, proliferação nuclear e questões fronteiriças. A emergência de China e Índia poderá ofuscar o próprio papel do Brasil e das empresas brasileiras, principalmente em regiões como o continente africano e a própria América do Sul. No caso da África, a região se constituiu como uma prioridade do governo Lula, tendo o presidente realizado 11 visitas ao continente (até junho de 2010) e aberto novas embaixadas nos países africanos9. Historicamente a região tem sido alvo do interesse da diplomacia brasileira, seja pela proximidade cultural, pela contribuição da matriz africana à formação do povo brasileiro e pela proximidade lingüística, pelo interesse comercial em buscar no continente mercados e oportunidades para as empresas e produtos brasileiros, ou até mesmo, o interesse em garantir a segurança de um ambiente geográfico comum, o Atlântico Sul. Durante o governo Lula, além desses fatores, a aproximação foi motivada pelo reconhecimento da importância do peso do continente africano dentro de fóruns multilaterais (54 dos 192 membros da ONU são países africanos), pelo interesse de estabelecer alianças (como ilustrado pela Cúpula América do Sul-África10) e também pelo reconhecimento de uma dívida histórica do Brasil para com o continente, ilustrada no discurso11 do presidente Lula na Ilha de Goreé, no Senegal, em 2005, em que pediu perdão pela escravidão. A postura para com o continente africano poderá ser entendida também pelo princípio da não indiferença, afirmado pela diplomacia brasileira e que será analisado posteriormente no presente artigo. No que diz respeito aos países desenvolvidos, o Brasil foi incluído pelos membros do G-8 no Outreach-Five, um grupo de países em desenvolvimento (Brasil, China, Índia, México e África do Sul) convidado originalmente a participar do encontro do G-8 em 2005 e com os quais os cinco têm procurado desde então estabelecer relações próximas. Curiosamente, o G-20, uma iniciativa co-patrocinada pelo Brasil, tem adquirido cada vez mais relevância no cenário internacional, vindo até mesmo a substituir a importância do G-812 como fórum de negociação internacional para assuntos da economia mundial. Dentro do G-20, o Brasil teve atuação destacada na III Cúpula do G-20 Financeiro, realizada em Pittsburgh (EUA) em setembro de 9. Até novembro de 2009, foram criadas durante o governo Lula 35 novas embaixadas, sendo 13 embaixadas localizadas na África (Mauritânia, Guiné, São Tomé e Príncipe, Tanzânia, Congo, Etiópia, Camarões, Togo, Benin, Burkina Faso, Zâmbia, Guiné Equatorial, Botsuana). Fonte: MRE. 10. O primeiro encontro da Cúpula foi realizado em novembro de 2006, na Nigéria. Para mais informações, ver: http://www2. mre.gov.br/asa/. Acesso em 3 de outubro de 2010. 11 “Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante visita à Ilha de Goreé, Senegal, no dia 14 de abril de 2005”, Resenha de Política Exterior do Brasil, a.32, n.96, 1º semestre de 2005, p. 117-188.
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2009, na qual os países em desenvolvimento passaram a ter mais voz e voto dentro do sistema financeiro internacional, principalmente no Fundo Monetário Internacional (FMI). Em relação à Europa, em julho de 2007, Brasil e União Européia estabeleceram uma parceria estratégica manifestando o interesse em promover maior cooperação política, principalmente em áreas de interesse comum, como a reforma da ONU, combate aos efeitos das mudanças climáticas, produção e comércio de agrocombustíveis e aumento do comércio bilateral. Apesar da importância desse acordo, as negociações entre a União Européia e o Mercosul permanecem paralisadas desde sua suspensão em 2004, devido a divergências comerciais, principalmente quanto às criticas do Brasil aos subsídios europeus. Especificamente em relação à Alemanha, o governo Lula deu continuidade aos esforços de cooperação iniciados no governo anterior, nesse caso o Plano de Ação que estabeleceu uma parceria estratégica, em fevereiro de 2002. Além dos interesses comuns, como a reforma do Conselho de Segurança e os agrocombustíveis, a Alemanha é o principal parceiro econômico do Brasil na Europa (FERES, 2010, p. 185-186). Uma parceria estratégica foi estabelecida também entre o Brasil e a França, em 2006 e consolidada em 200813, sendo o principal interesse de cooperação daquele país o desenvolvimento do submarino de propulsão nuclear brasileiro. Em relação aos Estados Unidos, apesar do fim do governo Bush e do início do governo Obama conferirem novos ares para a relação bilateral, algumas diferenças de posicionamento, ilustradas pela crise em Honduras e pela presença norte-americana na Colômbia, essa relação não se constitui como o eixo central da política externa brasileira. Porém permanece, ainda assim, como cordial, devido aos inúmeros interesse econômicos, aliado às novas agendas de cooperação quanto ao comércio de agrocombustíveis e à possibilidade de reincorporação de Cuba ao sistema inter-americano, através de intermediação brasileira (HURRELL, 2010, p. 143).
A CONTRIBUIÇÃO À PAZ E À SEGURANÇA INTERNACIONAL: O ENVOLVIMENTO NO HAITI
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Dentre as iniciativas implementadas pela diplomacia brasileira nos últimos oito anos, merece destaque a contribuição do Brasil aos esforços da comunidade internacional, representada pelas Nações Unidas, em relação ao Haiti. O Brasil assumiu em 2004 a liderança do componente militar da MINUSTAH, oitava missão da ONU no Haiti em um espaço de onze anos (1993-2004)14 e baseada no capítulo VII da Carta das Nações
Unidas. Trata-se de uma missão complexa, pois as gangues que estavam contribuindo para a desestabilização do país não concordaram em se desarmar quando ela foi criada. A MINUSTAH pode ser entendida como uma missão de imposição da paz, envolvendo ações ofensivas (em relação às gangues), manutenção da paz tradicional e estabilização, além de assistência humanitária (MORNEAU, 2006, p. 74). A participação brasileira na missão foi destacada como parte dos compromissos do país como membro da ONU, solidariedade para com um país-irmão do continente americano e também como contribuição para manutenção da segurança e da estabilidade na região da América Latina e Caribe. Apesar da liderança na missão não qualificar automaticamente o país para assumir um assento permanente, o seu envolvimento permite que o Brasil tenha maior participação nas discussões sobre planejamento e formulação das missões de paz (cada vez mais complexas), desempenhando funções como proteção de civis, ajuda humanitária e reforma das instituições estatais. Após o terremoto de 12 de janeiro de 2010, o Brasil reforçou seu compromisso com o Haiti, dobrando o contingente brasileiro na MINUSTAH (totalizando 2.400 homens) e tornando-se um dos primeiros países a desembolsar os recursos prometidos para o processo de reconstrução. Frente ao aumento da atenção da comunidade internacional para com o Haiti no pós-terremoto, o Brasil tem procurado manter a posição de destaque e de influência em relação à resolução do problema de fragilidade estatal naquele país. O envolvimento brasileiro atraiu um interesse sem precedentes da mídia nacional e da sociedade civil em relação a uma iniciativa de política externa no campo da segurança internacional. Enquanto o governo apresentou o envolvimento como uma contribuição importante ao esforço da comunidade internacional de estabilização e reconstrução do país, já antes do terremoto de janeiro de 2010, a mídia vinha reportando as críticas quanto ao estabelecimento da missão (após a retirada do poder do presidente Jean Bertrand Aristide) e às próprias políticas elaboradas pelas Nações Unidas e por outros doadores internacionais no país. Além da projeção na mídia, a participação brasileira ganhou repercussão devido ao posicionamento crítico de diversos atores nacionais, como algumas organizações da sociedade civil (movimento dos trabalhadores rurais sem-terra, movimentos e organizações promotoras de direitos, movimento negro e organizações campesinas) e também de partidos políticos (incluindo partidos de esquerda). A articulação entre
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13. Para o Plano de Ação da parceria ver: http://www2.mre.gov.br/dai/b_fran_193.htm Acesso em 3 de outubro de 2010.
14. Dentre as missões anteriores constam: MICIVIH (International Civilian Mission in Haiti), resolução da Assembléia Geral 47/208 de abril de 1993; UNMIH (United Nations Mission in Haiti), resolução 940 do Conselho de Segurança de agosto de 1993; UNSMIH (United Nations Support Mission in Haiti), resolução 1063 do Conselho de Segurança de junho de 1996; UNTMIH (United Nations Transition Mission in Haiti), resolução 1123 do Conselho de Segurança de julho de 1997; MIPONUH (United Nations Civilian Police Mission in Haiti), resolução 1141 do Conselho de Segurança de novembro de 1997; MICAH (International Civilian Support Mission in Haiti), resolução 54/193 da Assembleia Geral de dezembro de 1999 e MIF (Multinational Interim Force), resolução 1529 do Conselho de Segurança de fevereiro de 2004.
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12. Em 2009, o chanceler brasileiro declarou inclusive a morte do G-8 como bloco. Ver: “G-8 morreu, não tenho dúvida, diz Amorim” Folha de São Paulo, 13 de junho de 2009.
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movimentos sociais no Brasil e lideranças e movimentos sociais no próprio Haiti ilustra também que os processos de democratização da política externa estão em andamento. Em termos regionais, a importância da atuação do Brasil no Haiti deve ser destacada também pelo aspecto da cooperação sul-americana em matéria de defesa, já que os países sul-americanos, principalmente os do Cone Sul, ocupam uma posição de destaque na MINUSTAH, tanto em termos de contingentes quanto de oficiais de Estado-Maior. A cooperação inclui consultas regulares, coordenação política e o estabelecimento de posições comuns em relação ao Haiti. Contudo, o principal desafio para os países da região e principalmente para o Brasil será o de manter a presença e uma contribuição consistente, tendo em vista que muitos aspectos da reconstrução e recuperação do país estão fora de seu controle, como, por exemplo, os recursos necessários para o desenvolvimento da economia haitiana, que provêm na sua maioria dos países desenvolvidos. Apesar dessas dificuldades, não podemos negar que o envolvimento na MINUSTAH proporcionou o estabelecimento de laços entre o Haiti e os países da região, diminuindo o isolamento regional em que ele se encontrava. Por meio da missão no Haiti, o Brasil tem promovido internacionalmente uma nova forma de atuação em prol da resolução de conflitos e de situações de fragilidade internacional. Essa nova forma baseia-se na busca de soluções, a partir das raízes do conflito e na afirmação de que a resolução dos problemas pela via militar e de segurança devem ser combinadas com a promoção da justiça social e do desenvolvimento econômico e, na qual, os atores locais tenham espaço para opinar e definir as estratégias de reconstrução de suas próprias sociedades. Por fim, o envolvimento na missão ressalta também um aspecto doméstico importante a ser observado na diplomacia brasileira nos últimos oito anos: a incorporação das Forças Armadas à política externa e ao projeto do Brasil para a região. Um exemplo importante dessa incorporação foi o lançamento, no final de 2008, da Estratégia Nacional de Defesa (END)15, o segundo documento a tratar da política nacional de defesa lançado no governo Lula (o primeiro documento foi lançado em 2005). A Estratégia nos faz refletir sobre o papel que o país pretende desempenhar no sistema internacional. Os impactos poderão ser sentidos no aumento da cooperação militar e de defesa na América do Sul e nos países de língua portuguesa e no interesse em um maior envolvimento do país em missões de assistência humanitária e operações de manutenção da paz. Uma etapa ainda a ser alcançada é a formulação de um livro branco de defesa16 iniciativa que os demais países da América do Sul, como Argentina e Chile já produziram.
Assim como, um fortalecimento maior do Ministério da Defesa, objetivo que já vem sendo desenhado ao longo dos últimos oito anos. O interesse do país em um maior protagonismo internacional, fruto da crença das elites brasileiras de que ele está destinado a ocupar um lugar de destaque nesse cenário, demanda uma reavaliação do seu posicionamento em relação ao princípio da não intervenção e da participação em missões de capítulo VII, isto é, em missões que contemplam a possibilidade de uso da força para fins do cumprimento do mandato estabelecido pelas Nações Unidas. A oportunidade de o Brasil estar ocupando um assento permanente no Conselho de Segurança até o final de 2011 permitiria que o país continuasse a ter uma atuação importante no sistema internacional. Contudo, a complexidade dos temas discutidos no Conselho, principalmente em relação a situações de fragilidade estatal, exigirá que o país reavalie também algumas de suas posições. A experiência no Haiti demonstra que o Brasil pode oferecer uma contribuição relevante à redefinição de normas relacionadas à intervenções, ao destacar a importância de se tratar das raízes do conflito e ao enfatizar a participação da população local nos esforços de estabilização e reconstrução. No entanto, o país ainda se mostra resistente a normas e conceitos emergentes como a segurança humana e a responsabilidade de proteger, por identificá-los como interferências dos países desenvolvidos na forma como os países em desenvolvimento devem lidar com suas crises e problemas internos. Como alguns analistas já reconheceram, o interesse por uma maior projeção internacional pode levar o país a uma maior aceitação dessas mesmas normas (KENKEL, 2008)
CONCLUSÃO: A AFIRMAÇÃO DE UMA NÃO INDIFERENÇA E OS SEUS DESAFIOS Por fim, após a exposição e análise de algumas das iniciativas implementadas nos últimos oito anos do governo Lula, cabe desenvolvermos uma conclusão trazendo reflexões a respeito de uma das principais ideias presentes nesse governo Lula: a adoção do princípio da não indiferença e atuação por meio de uma diplomacia solidária. Segundo analistas, a adoção desses princípios pode ser entendida como motivada pela própria trajetória pessoal do Presidente e seus esforços a favor do combate à fome, que levaram a uma ênfase em prol das causas sociais também na política externa17 (SOARES DE LIMA, 2005, p. 22; ALMEIDA FILHO, 2009, p. 82).
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16. A terminologia livro branco, do inglês white book ou white paper, se refere a um documento em que um Estado explicita publicamente a sua posição em relação a uma determinada política. No caso das políticas de defesa, a elaboração de um livro branco tem a intenção de promover a transparência e a construção de confiança mútua perante a comunidade internacional.
17. O Brasil lançou em setembro de 2004 na sede das Nações Unidas a Ação contra a Fome e a Pobreza, uma iniciativa voltada para analisar mecanismos inovadores de financiamento ao desenvolvimento a fim de reduzir a fome e a pobreza no mundo. A iniciativa foi fruto de um esforço inicial (de janeiro de 2004) dos presidentes do Brasil, Chile e França, juntamente com o Secretário-Geral da ONU, e exemplifica a prioridade que a política externa brasileira tem dado aos esforços de mobilização em prol da erradicação da fome e da pobreza. Em nível nacional essa também é uma prioridade defendida pelo governo Lula. Para mais informações sobre a iniciativa, ver: http://www.mre.gov.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1053. Acesso em 24 de fevereiro de 2010.
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15. Disponível em: http://merln.ndu.edu/whitepapers/Brazil_Portuguese2008final.pdf Acesso em 8 de outubro de 2010.
A afirmação dos princípios éticos foi expressa pelo Chanceler Amorim em seu discurso de posse, no qual o diplomata afirmou que a política externa do governo que se iniciava seria: “uma política externa (...) embasada nos mesmos princípios éticos, humanistas e de justiça social que estarão presentes em todas as ações do governo Lula18” (IPRI/FUNAG, 2003, p. 51). O discurso do ministro Amorim ecoou as Próprias palavras do Presidente Lula em seu discurso de posse: “no meu governo, a ação diplomática do Brasil estará orientada por uma perspectiva humanista19 (IPRI/FUNAG, 2003, p 39). É novamente nas palavras do ministro Amorim que identificamos o aparecimento de um discurso que vincula o princípio da não intervenção, um dos princípios constitucionais que regem a política externa brasileira, com um princípio de não indiferença: A diplomacia brasileira pauta-se pelo princípio da não ingerência em assuntos internos, consagrado em nossa Carta. O governo do presidente Lula tem associado a esse princípio básico uma atitude que descrevemos como a não indiferença. Temos prestado nosso apoio e solidariedade ativos em situações de crise, sempre que somos solicitados e consideramos ter um papel positivo20.
O princípio da não indiferença foi apresentado também pelo próprio presidente Lula como um dos princípios pelos quais se baseia a diplomacia brasileira durante o seu governo: Não aceitamos como fato consumado uma ordem internacional injusta (...). Nossa atuação diplomática é fundada na defesa de princípios, mas também na busca de resultados. Tem uma dimensão utópica sem deixar de ser pragmática. (...) Em um mundo globalizado e independente, nossa contribuição à paz e à democracia é determinada pelo princípio da não indiferença21.
A afirmação da não indiferença aparece também vinculada à noção de diplomacia solidária, em que o país procuraria atuar sem a presença de interesses nacionais, mas motivado por princípios solidários e de consciência moral (SEITENFUS, 2008, p 54). Tanto a não 18. Discurso do embaixador Celso Amorim, por ocasião de sua posse como Ministro de Estado das Relações Exteriores, em Brasília, 1º de janeiro de 2003.
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19. Discurso do Senhor Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na sessão de posse, no Congresso Nacional, em Brasília, 1º de janeiro de 2003. 20. “Discurso proferido pelo ministro Celso Amorim por ocasião da XXXV Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos ‘Tornando realidade os benefícios da democracia’, realizada em Fort Lauderdale, EUA, no dia 6 de junho de 2005”, Resenha de Política Exterior do Brasil, a.32, n. 96, 1º semestre de 2005, p. 174.
indiferença quanto a diplomacia solidária foram reivindicadas nos casos do envolvimento brasileiro no Haiti22, no continente africano e também em relação à Bolívia (quando da nacionalização da exploração dos hidrocarbonetos). Contudo, no caso brasileiro, a não indiferença carece de uma institucionalização maior que identifique os seus limites e abrangência, de forma a permitir uma articulação melhor da sua operacionalização (SEITENFUS et al., 2007, p. 22). Esse argumento encontra eco ainda na análise de Souza (2008, p.16): “O governo desenvolve mais na prática do que na teoria o que chama de não indiferença e por isso ainda não oferece um quadro seguro para a avaliação baseando-se nesse critério”. A operacionalização da não indiferença é reconhecida, portanto como um elemento crucial que precisa ser abordado quando se reivindica a adoção de uma política externa motivada por considerações éticas. Após as considerações anteriores, a respeito dos argumentos éticos de algumas das posições brasileiras nos últimos oito anos, destacamos que a reivindicação de uma atuação ética por parte do governo pode servir para mobilizar certos setores da sociedade (mídia, academia, sociedade civil e movimentos sociais) a exigir que a política externa atue de maneira coerente com os princípios e ideais assumidos pelo Estado brasileiro. Uma atuação que transcenda, por exemplo, os compromissos iniciais com o Haiti ou com o continente africano. A afirmação de uma política externa ética acaba por estabelecer um padrão pelo qual essa área poderá ser avaliada (DUNNE & WHEELER, 1998, p. 870). Uma vez que uma política internacional seja apresentada, considerações éticas não podem mais ser tratadas como irrelevantes e precisam ser confrontadas, fazendo com que certos grupos de pressão possam atuar em prol de que o governo tome determinadas iniciativas em vez de outras (ABRAHAMSEN & WILLIAMS, 2001, p. 261). A afirmação de uma não indiferença em relação ao Haiti tem o potencial de estimular na sociedade o reconhecimento de que não se pode ser indiferente também em relação a outras situações de crise ou de conflitos, estimulando a adoção de posturas mais rígidas por parte da diplomacia brasileira em relação a países com os quais o Brasil possui relações próximas ou busca aproximar-se, como Cuba, Coréia do Norte, Sudão, Zimbábue e Irã. Como apresentam Dunne & Wheeler (1998, p. 870), o desafio aos Estados que se propõem a seguir uma política externa ética é garantir a consistência da sua política, aplicando os mesmos princípios em todos os casos. As considerações anteriores nos levam a acreditar que a afirmação de uma não indiferença e a adoção de uma postura pautada pela ética têm o potencial de gerar desdobramentos não antecipados pelos formuladores da política externa brasileira, quando estes decidiram
21. Discurso do presidente Luis Inácio Lula da Silva na cerimônia de formatura da turma “Celso Furtado” (2002) do Instituto Rio Branco, em 1º de setembro de 2005. Disponível em: http://mundorama.net/2005/09/01/discurso-do-presidente-luiz-inacio-lula-da-silva-na-cerimonia-de-formatura-da-turma-celso-furtado-2002-do-instituto-rio-branco-palacio-itamaraty-brasilia-df-01092005/m. Acesso em 25 de fevereiro de 2010.
22. “Discurso do ministro das Relações Exteriores, embaixador Celso Amorim, na sessão de abertura da Reunião Internacional de Alto Nível sobre o Haiti, em Brasília, 23 de maio de 2006”, Resenha de Política Exterior do Brasil, a.33, n.98, 1º semestre de 2006, p. 170.
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explicitar os argumentos ético-normativos da diplomacia. Esses desdobramentos podem levar ao questionamento de alguns posicionamentos do país em temas como não intervenção, democracia e direitos humanos e proteção do meio-ambiente. Permanece ainda em aberto a forma como a diplomacia irá responder a esses estímulos, caso eles se materializem, no entanto, os oito anos de diplomacia do governo Lula, revelam que o Brasil tem capacidade para fornecer contribuições importantes aos principais problemas enfrentados pela comunidade internacional, sejam eles de ordem econômica, ambiental ou de segurança. Entretanto, o interesse em um maior protagonismo na cena internacional irá fazer com que a comunidade internacional exija do Brasil o cumprimento das suas capacidades. Está é a principal lição que deve ser tomada em relação aos oito últimos anos de diplomacia brasileira.
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REFLExoES SOBRE A POliTICA EXTERNA EM DIREITOS HUMANOS DO GOVERNO LULA
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CAMILA LISSA ASANO E LUCIA NADER Camila Lissa Asano é bacharel em relações internacionais e mestre em ciência política. É assistente de programa da ONG Conectas Direitos Humanos e professora do curso de relações internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap). É também co-Secretária Executiva do Comitê Brasileiro de Direitos Humanos e Política Externa. Lucia Nader é cientista política, bacharel em relações internacionais e pós-graduada em organizações internacionais e desenvolvimento pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris (SciencesPo), França. É coordenadora de relações internacionais da ONG Conectas Direitos Humanos e empreendedora social pela Ashoka Empreendedores Sociais.
E
m oito anos (2003-2010), não há dúvida de que o governo Lula tenha conquistado espaço e responsabilidades no cenário internacional. Não há dúvida, também, que sua política externa em direitos humanos tenha ganhado visibilidade, despertando interesse de governos de outros países, de acadêmicos, de defensores de direitos humanos, de setores da mídia, entre outros. Em alguns casos, foi considerada controversa e polêmica, como nas declarações do Presidente Lula sobre o apedrejamento de mulheres no Irã, apenas para citar um exemplo recente2. No entanto, os oito anos de política externa do governo Lula contribuíram para o avanço dos direitos humanos no mundo? É a esta pergunta que esse artigo visa responder. A resposta a essa indagação passa necessariamente pela análise de outras perguntas ligadas à política externa em direitos humanos do governo Lula. Nos últimos oito anos, o Brasil: a. Aumentou seu protagonismo no cenário internacional e o utilizou para a melhoria da situação dos direitos humanos em âmbito global? b. Foi referência para outros países na efetivação dos direitos humanos e, com base nisso, disponibilizou-se a trocar experiência e cooperar com estes? c. Contribuiu para aumentar o ônus político internacional de governos que violam sistematicamente os direitos fundamentais? d. E, finalmente, contribuiu para o fortalecimento e efetividade do sistema multilateral de direitos humanos?3 O presente artigo aborda tais questões e busca, assim, tecer reflexões sobre a contribuição da política externa do governo Lula para a promoção e proteção dos direitos humanos em âmbito global.
1. As autoras agradecem Jefferson Nascimento, Lilian Krohn, Marília Ramos e Victo da Silva Neto por suas colaborações à elaboração deste artigo. Agradecemos também a Rosana Miranda pela leitura prévia realizada. 2. Em agosto de 2010, diante da possibilidade de morte por apedrejamento da iraniana Sakineh Ashtiani, acusada de adultério, o Presidente Lula declarou que “se essa mulher está causando incômodo, nós a receberíamos no Brasil de bom grado”. Acreditamos que com essa declaração, Lula tenha subvertido o papel da vítima e fechado os olhos para as sistemáticas violações de direitos humanos do regime iraniano. Saiba mais em http://www.conectas.org/index.php/Noticias/view?n=622, acesso em 15 de outubro de 2010 – Nota pública divulgada pela ONG Conectas Direitos Humanos. 3. Seria importante analisar a contribuição do Brasil também nos sistemas regionais de direitos humanos, como no Sistema Interamericano (OEA) e, em menor grau, nos âmbitos que tratam de direitos humanos no Mercosul. No entanto, nesse artigo trataremos apenas do sistema multilateral (ONU).
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O BRASIL COMO ATOR GLOBAL: PROTAGONISMO, RESPONSABILIDADES E QUESTIONÁVEL PREVALÊNCIA DOS DIREITOS HUMANOS DURANTE O GOVERNO LULA, O BRASIL AUMENTOU SEU PROTAGONISMO NO CENÁRIO INTERNACIONAL E O UTILIZOU EM PROL DA MELHORIA DOS DIREITOS HUMANOS EM ÂMBITO GLOBAL?
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Pode-se afirmar que o Brasil aumentou seu protagonismo internacional e é hoje um ator político global relevante. Participa e se faz ouvir em diversos foros e negociações internacionais, sejam esses de comércio, meio ambiente, direitos humanos, entre outros. Esse novo papel e espaço do Brasil nas relações internacionais não é fruto apenas de oito anos de governo Lula. No entanto, indubitavelmente intensificou-se e se tornou mais evidente durante essa gestão, que com base na estabilidade doméstica e numa política externa ambiciosa e assertiva, criou e soube aproveitar oportunidades no cenário internacional. No âmbito doméstico, a estabilidade democrática e econômica deu ao Brasil credenciais para pleitear o papel de ator global. No âmbito externo, tanto a afirmação da multipolaridade, como a relativamente tranqüila passagem do Brasil pela crise financeira global iniciada no final de 2008, foram oportunidades que colocaram o Brasil em posição privilegiada. Tais credenciais e oportunidades foram bem aproveitadas por uma política externa guiada, segundo seus formuladores, por diretrizes de “não-alinhamento automático”, de democratização do sistema internacional, de fortalecimento das relações sul-sul e de integração regional. Segundo o Ministro Celso Amorim, “nos oito anos do governo Lula, o Brasil desenvolveu uma diplomacia independente, sem subserviências e respeitosa de seus vizinhos e parceiros. Uma diplomacia inovadora, mas que não se afasta dos valores fundamentais da nação brasileira – a paz, o pluralismo, a tolerância e a solidariedade”4. Para Tullo Vigevani (2007), “Lula da Silva utiliza uma estratégia que poderia ser batizada de ‘autonomia pela diversificação’, enfatizando a cooperação sul-sul para buscar maior equilíbrio com os países do Norte, realizando ajustes, aumentando o protagonismo internacional do país e consolidando mudanças de programa na política externa”5. Como decorrência dessa política, espaços foram criados, conquistados e ocupados pelo Brasil. O G-20, constituído durante a reunião ministerial da OMC de Cancun em 2003, é um bom exemplo.
Foi criado por intenso protagonismo do Brasil, visando a incluir novos países nas negociações sobre liberalização dos mercados agrícolas dos países ricos. De alguma forma, busca alterar o padrão das negociações comerciais multilaterais ao tentar torná-las mais democráticas6. Outro exemplo é a criação do Fórum IBAS – Índia, Brasil e África do Sul, também em 2003, como esforço de coordenação política para aproximar as posições dos três países em instâncias multilaterais, promover o desenvolvimento da cooperação comercial, científica e cultural no âmbito sul-sul, bem como a democratização de esferas de tomada de decisão internacional7. O governo Lula ampliou seu protagonismo e buscou democratizar o sistema internacional, ao diversificar alianças e transitar entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Com isso, o Brasil adquiriu também responsabilidades que incluem a proteção dos direitos humanos em âmbito global. Cabe ressaltar aqui que tal responsabilidade não é apenas decorrência de maior protagonismo internacional, mas, antes disso, uma obrigação constitucional derivada do artigo 4º, II, da Constituição Federal. Ele determina que o Brasil deve reger-se em relações internacionais pela prevalência dos direitos humanos. Essa responsabilidade é também decorrência de diversos tratados internacionais do qual o Brasil é parte. Assim, a prevalência dos direitos fundamentais deve conduzir as relações bilaterais, regionais e multilaterais do Brasil. Em conseqüência, os direitos humanos deveriam ser o cerne da atuação internacional do Brasil nesse novo protagonismo e como ator político global relevante. Infelizmente, em muitos casos não o foi. Em alguns âmbitos e situações, o governo Lula teve iniciativas louváveis, principalmente no que diz respeito aos direitos econômicos e sociais e ao direito ao desenvolvimento. Em outros, suas posições foram altamente questionáveis, tendo deixado os direitos humanos a reboque de uma política externa que opôs pragmatismo a princípios. Bilateralmente, por exemplo, ao diversificar seus interlocutores, o governo Lula se aproximou de regimes democráticos e não-democráticos, incluindo governos que notoriamente violam de forma sistemática os direitos fundamentais de seus cidadãos, como Coréia do Norte, Sudão, Irã e Guiné-Equatorial. Não se questiona aqui a legitimidade e valia de tais aproximações, mas sim o papel que os direitos humanos ocuparam no estreitamento da relação do Brasil com esses países. Infelizmente, a partir da análise de discursos e posturas assumidas pelo governo Lula, constata-se que a proteção dos direitos humanos nem sempre prevaleceu em tais relações.
4. Discurso do Ministro Celso Amorim na abertura do Debate Geral da 65ª Sessão Assembléia Geral da ONU, 23 de setembro de 2010. Disponível em < www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/discurso-do-ministro-celso-amorim-na-abertura-do-debate-geral-da-65a-sessao-assembleia-geral-das-nacoes-unidas-2013-nova-york-23-de-setembro>, acesso em 12 de outubro de 2010.
6. Segundo Marcelo Oliveira, “Em suma, ao derrotar os dois maiores pilares do protecionismo e da subvenção dos países ricos contra a concorrência agrícola do mundo em desenvolvimento, o Brasil parece ter aberto o caminho para que as decisões da Rodada Doha sejam mais ambiciosas no terreno agrícola. E, certamente, ao liderar o G-20, passou a figurar entre os grandes players globais nas discussões sobre comércio internacional no século XXI.” OLIVEIRA, Marcelo Fernandes de. Alianças e coalizões internacionais do governo Lula: o Ibas e o G-20. Revista Brasileira de Política Internacional. Dezembro 2005. Brasília, Vol. 48, número 2.
5. VIGEVANI, Tullo, CEPALUNI, Gabriel. A política externa de Lula da Silva: a estratégia da autonomia pela diversificação. Contexto Internacional, Rio de Janeiro, Dezembro 2007, Vol. 29, número 2.
7. Em “Sobre IBAS”, no site oficial da iniciativa. Disponível em <www.forumibsa.org/interna.php?id=1>, acesso em 12 de outubro de 2010.
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Regionalmente, o Brasil tomou posições variadas em âmbitos de direitos humanos da OEA - Organização dos Estados Americanos e do Mercosul. Nesse último, o governo Lula teve papel decisivo na criação, em 2004, da RAADH - Reunião de Altas Autoridades de Direitos Humanos8 - que tem como objetivo desenvolver a integração de políticas de promoção dos direitos humanos. – e foi protagonista de iniciativas interessantes, nesse âmbito, relacionadas com educação em direitos humanos, direitos das crianças, adolescentes e idosos, entre outras. Em âmbito multilateral, particularmente no sistema de direitos humanos da ONU, o governo Lula foi ativo, tanto no Conselho de Direitos Humanos, do qual é membro desde 2006, como na Assembléia Geral. No entanto, adotou posições questionáveis e ambíguas no tratamento de violações de direitos humanos em países específicos, como na Coréia do Norte, Sri Lanka e República Democrática do Congo9. Conclui-se, preliminarmente, que, durante o governo Lula, o Brasil aumentou seu protagonismo internacional e assumiu responsabilidades no que se refere aos direitos humanos. No entanto, esse maior protagonismo e novas responsabilidades nem sempre foram utilizados ou guiados pela prevalência dos direitos humanos na política externa brasileira.
O BRASIL COMO REFERÊNCIA: EXPERIÊNCIAS EXITOSAS E PERSISTÊNCIA DE DESAFIOS DURANTE O GOVERNO LULA, O BRASIL FOI REFERÊNCIA PARA OUTROS PAÍSES NA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E, COM BASE NISSO, DISPONIBILIZOU-SE A TROCAR EXPERIÊNCIA E COOPERAR COM ESTES? Nos últimos anos, o Brasil registrou avanços significativos no que tange direitos econômicos e sociais. Isso é especialmente verdadeiro com relação ao combate à pobreza e à fome. Segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, 20,4 milhões de brasileiros saíram da pobreza, entre 2003 e 200910. Com relação ao combate à fome, de acordo com relatório da ONG ActionAid, divulgado em outubro de 2010, o Brasil lidera lista de 29 países em desenvolvimento no que diz respeito ao combate à fome e, de acordo com o relatório, nos últimos 6 anos, diminuiu em 73% a desnutrição infantil11.
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Soma-se a resultados expressivos a vontade do governo Lula em disseminar sua experiência e engajar a comunidade internacional na luta contra a pobreza e a fome. De acordo com o governo, programas que fazem parte da estratégia Fome Zero, por exemplo, estão hoje sendo replicados ou estudados em países como Argentina, Paraguai, Guatemala e Haiti. No âmbito das Nações Unidas, o governo Lula assinou acordos sobre cooperação em alimentação escolar com países do Caribe e da África12. Em 2004, o Brasil conseguiu ainda que fossem aprovadas Diretrizes Voluntárias para o Direito Humano à Alimentação, pela FAO - Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação. Ainda segundo o governo, tais diretrizes foram referendadas por 188 países. No mesmo ano de 2004, em parceria com os governos de França, Chile e Espanha, o Brasil lançou na ONU a “Ação contra a Fome e a Pobreza”, acompanhada de Declaração que contou com o apoio de 110 países13. Os progressos promovidos pelo governo brasileiro também foram notados pelo relator especial da ONU para o direito à alimentação, Olivier De Schutter. O relatório publicado após sua visita ao Brasil, em outubro de 2009, destaca avanços na realização do direito à alimentação desde 2002. O relator credita essa melhoria ao estabelecimento de leis e instituições, juntamente com a criação e expansão do programa Fome Zero e o apoio à agricultura familiar. De Schutter, por outro lado, indicou que grandes desafios persistem e, neste sentido, teceu 13 recomendações ao governo brasileiro para melhor garantia do direito humano à alimentação14. O reconhecimento e a disseminação da experiência brasileira nessa área estão muitas vezes relacionados ao cumprimento dos ODMs - Objetivos de Desenvolvimento do Milênio da ONU, especialmente àquele relacionado à erradicação da pobreza extrema e da fome. Segundo o PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o Brasil já cumpriu o objetivo de reduzir pela metade o número de pessoas vivendo em extrema pobreza até 201515. Durante a Cúpula das Nações Unidas sobre os ODMs, ocorrida em setembro de 2010 em Nova Iorque, a experiência brasileira foi considerada exemplo e países como Estados Unidos, Espanha e Nicarágua demonstraram interesse em negociar parcerias com o governo brasileiro relacionadas ao combate à fome16. Por fim, segundo o Ministério das 11. Relatório Action Aid. Who is really fighting hunger?. Divulgado em outubro 2010. Disponível em : <www.actionaid.org/ assets/pdf%5CHungerfree%20Scorecard%20-%20final%20without%20embargo.pdf>, acesso em 20 de outubro de 2010. 12. Segundo informações disponíveis em <www2.mre.gov.br/cgfome/>, acesso em 10 de outubro de 2010. 13. Segundo informações disponíveis em : <www.un.org/News/briefings/docs/2004/lula040920.doc.htm>, acesso em 4 de outubro de 2010.
8. A 18ª Sessão da RAADH, última sob o governo Lula, aconteceu de 18 a 20 de outubro de 2010, em Brasília. Mais informações disponíveis em : <www.direitoshumanos.gov.br/2010/10/20-out-2010-autoridades-em-direitos-humanos-do-mercosul-aprovam-nota-de-apoio-a-normalizacao-democratica-do-equador-no-encerramento-da-18a-raadh-nesta-4a-feira-20>, acesso em 22 de outubro de 2010.
14. Relatório A/HRC/13/33/Add.6 , disponível em português em: < http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/ publicacoes/alimentacao-adequada/GT_ALIMENTACAO_Relatorio_Relator_Especial_sobre_direito_alimentacao_Missao_Brasil_ outubro_2009.pdf>, acesso em 1 de outubro de 2010.
9. Algumas dessas posições são analisadas mais adiante neste artigo.
15. PNUD, Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Disponível em: < www.pnud.org.br/odm/objetivo_1/>, acesso em 4 de outubro de 2010.
10. Pesquisa Fundação Getúlio Vargas/Centro de Políticas Sociais. A nova classe média: o lado brilhante dos pobres, Disponível em: <www.fgv.br/cps/ncm/, acesso em 15 de outubro de 2010.
16. Mais informações disponíveis em :< www.fomezero.gov.br/noticias/brasil-e-destaque-nas-discussoes-da-onusobre-combate-a-pobreza-e-a-fome>, acesso em 15 de outubro de 2010.
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Relações Exteriores, existem hoje mais de 200 projetos de cooperação técnica executados pelo Brasil em países da América Latina, da África e da Ásia, muitos dos quais teriam impacto direto sobre os Objetivos do Milênio ODMs. Assim, é possível afirmar que com relação ao combate à fome e à pobreza, analisados sob a perspectiva de direitos, o governo Lula foi referência, atuou internacionalmente para disseminar sua experiência e engajar outros países e disponibilizou-se a trocar experiências e apoiar projetos17. Infelizmente, não se pode dizer o mesmo com relação a direitos civis, particularmente no que se refere ao sistema prisional e à violência institucional. Atualmente, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. São quase 500 mil pessoas em situação de privação de liberdade, sendo que mais de 160 mil são presos provisórios18. Más condições das unidades prisionais são predominantes e práticas de maus-tratos e tortura são uma realidade inegável. O Comitê da ONU sobre Combate à Tortura afirmou, em 200819, que nas prisões brasileiras há “uma superpopulação endêmica, condições esquálidas, calor insuportável, falta de luz e confinamento permanente (...) assim como um nível generalizado de violência e falta de supervisão adequada, o que leva à impunidade”. No campo das execuções sumárias, arbitrárias e extrajudiciais, o Brasil também está longe de ser uma referência e, sob o governo Lula, continuou a receber inúmeras recomendações da ONU com o intuito de melhorar a situação. Recentemente, Philip Alston, relator especial da ONU para o assunto, alegou que o combate às execuções sumárias, arbitrárias e extrajudiciais não é apenas de responsabilidade dos governos estaduais, cabendo ao governo federal tecer esforços nesse sentido. Afirmou, por exemplo, que o governo federal deve implementar medidas mais eficazes que condicionem a transferência de fundos aos estados a ações tomadas por esses para reduzir execuções extrajudiciais pela polícia20.
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17. Em outros temas, que não o combate à fome e à pobreza, vale aqui ressaltar a criação recente do Departamento de Cooperação Internacional pela Secretaria de Direitos Humanos (SDH) do governo federal. Segundo a SDH, o objetivo desse departamento é “fomentar e qualificar o diálogo entre o Brasil e países do sul sobre direitos humanos, compartilhar melhores práticas, realizar intercâmbio, troca de experiências e pesquisa no âmbito dos direitos humanos, com base em recursos disponíveis e nos que ainda devem ser mobilizados através de parcerias internacionais bilaterais e também junto a organismos multilaterais”. Em 2009, teriam sido firmadas parcerias para projetos com Guiné-Bissau, sobre registro civil de nascimento e educação e com Togo, sobre exploração sexual de crianças e adolescentes. Projetos estariam em elaboração com Haiti, sobre direitos das pessoas com deficiência, com Cabo Verde, para o fortalecimento da Comissão Nacional de Direitos Humanos e com Colômbia, sobre mútuo fortalecimento de instituições que visam a garantir os direitos humanos de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais. Informação disponível em: <www.itamaraty.gov.br/temas/ direitos-humanos-e-temas-sociais/metas-do-milenio/objetivos-de-desenvolvimento-do-milenio/?searchterm=objetivos%20 desenvolvimento%20milenio>, acesso em 22 de outubro de 2010. 18. Justiça Criminal: o que fazer. Uma agenda para o próximo governo. Disponível em: <www.conectas.org/web/images/ anexos_noticias/20101001192129.pdf>, acesso em 12 de outubro de 2010.
Assim, conclui-se que se, por um lado, o governo Lula conseguiu resultados e tornou-se referência internacional no combate à fome e à pobreza, por outro, não obteve o mesmo êxito no que se refere aos direitos daqueles privados de liberdade e à violência institucional. Nesses últimos, não apenas não é referência, como vem sendo reiteradamente cobrado pela comunidade internacional.
O BRASIL NA RELAÇÃO COM ESTADOS VIOLADORES: DIÁLOGO, OMISSÃO OU CONIVÊNCIA DURANTE O GOVERNO LULA, O BRASIL CONTRIBUIU PARA AUMENTAR O ÔNUS POLÍTICO INTERNACIONAL DE GOVERNOS QUE VIOLAM SISTEMATICAMENTE OS DIREITOS HUMANOS? Ao aumentar seu protagonismo e diversificar suas alianças e interlocutores em âmbito internacional, o governo Lula expandiu as relações do Brasil com Estados não-democráticos, conhecidos por violar sistematicamente os direitos fundamentais. Nessas relações, disse sempre privilegiar o diálogo e “a discrição” a “reprimendas ou condenações públicas”21 de abusos aos direitos humanos cometidos por outros Estados. Segundo o Ministro Celso Amorim, esse não seria o melhor caminho para se avançar na proteção dos direitos humanos. Ainda segundo Amorim, em discurso proferido recentemente na abertura da 65ª sessão da Assembléia Geral da ONU, “o diálogo e a cooperação são mais efetivos para assegurar o exercício dos direitos humanos do que a arrogância baseada em uma suposta superioridade moral auto-conferida”22. No entanto, em diversas ocasiões, mostrou-se tênue o limite entre diálogo, discrição e cooperação, e omissão e conivência. Mais do que isso, o governo Lula parece ter negligenciado situações históricas, como o fim do apartheid na África do Sul e de ditaduras na América Latina, onde a pressão internacional, em alto e bom tom, foi fundamental. Em diversas ocasiões, colocou o conceito de não-interferência acima de princípios básicos da dignidade humana. Alguns exemplos recentes relacionados aos direitos humanos em Cuba, Guiné-Equatorial e Irã, ilustram tais questionamentos. No início de 2010, o Presidente Lula visitou Cuba, logo após a morte de um dissidente cubano, por greve de fome. Quando questionado sobre o episódio e o fato de outros
19. Relatório CAT/C/39/2, março 2009, sobre visita ao Brasil, realizada em 2005, por peritos independentes do Comitê da ONU contra a Tortura que visitaram 28 centros carcerários e delegacias nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Minas Gerais e no Distrito Federal.
21. Nota Pública: Pela vida de Sakineh Ashtiani, mais uma vítima do regime iraniano. Conectas Direitos Humanos. Disponível em: <www.conectas.org/index.php/Noticias/view?n=622>, acesso em 15 de outubro de 2010.
20. Relatório A/HRC/11/2/Add.2 divulgado em março de 2009 e disponível em http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/ G09/126/22/PDF/G0912622.pdf?OpenElement, acesso em 22 de outubro de 2010.
22. Discurso de 23 de setembro de 2010. Disponível em: < www.itamaraty.gov.br/videos/discurso-na-onu/?searchterm= assembleia%20geral%20discurso>, acesso em 24 de outubro de 2010.
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dissidentes terem afirmado que apelaram ao governo do Brasil para que intercedesse em seu favor, Lula pediu respeito às decisões do governo de Cuba. Condenou, ainda, o uso da greve de fome por dissidentes e comparou presos políticos a presos comuns, alegando que “a greve de fome não pode ser utilizada como pretexto de direitos humanos para libertar pessoas. Imagina se todos os bandidos que estão presos em São Paulo entrarem em greve de fome e pedirem liberdade”23. Ainda recentemente, ao ser questionado sobre a aproximação e visita do Presidente Lula à Guiné-Equatorial24, país governado pelo ditador Teodoro Obiang Nguema Mbasogo desde 1979, o Ministro Celso Amorim afirmou que “negócios são negócios” e que “os direitos humanos são uma pregação moralista”25. Por fim, há poucos meses, o Presidente Lula, quando indagado sobre qual papel o Brasil poderia ter no episódio da condenação à morte, à época por apedrejamento, da iraniana Sakineh Ashtiani, o Presidente Lula afirmou que “(...) se começar a desobedecer às leis deles para atender aos pedidos dos presidentes, daqui a pouco há uma avacalhação”26. Sobre o mesmo episódio, disse ainda que “se essa mulher está causando incômodo nós a receberíamos no Brasil de bom grado”27, subvertendo a posição da vítima e fechando os olhos para as violações sistemáticas aos direitos humanos perpetradas pelo regime iraniano28. Não se trata aqui de promover uma visão ingênua das relações internacionais, que recriminaria qualquer tipo de aproximação e diálogo com países não-democráticos e que violam de maneira sistemática os direitos humanos. Trata-se de preocupação com relação ao lugar que ocupam os direitos humanos na política externa brasileira. Trata-se, ainda, de desconforto ao assistir governos ditatoriais se aproveitarem da maior visibilidade e protagonismo do Brasil no cenário internacional para se fortalecerem. Finalmente, trata-se de questionar quais os fins que objetivam as aproximações do Brasil com tais países. Infelizmente, podemos afirmar que o governo Lula não contribuiu para aumentar o ônus político internacional de governos que violam sistematicamente os direitos humanos. 23. Lula compara dissidente cubano a bandido comum em São Paulo, O Globo, 10 de março de 2010, disponível em http://oglobo.globo.com/mundo/mat/2010/03/09/lula-compara-dissidente-cubano-bandidos-em-sao-paulo-916026907.asp, acesso em 24 de outubro de 2010. 24. A visita ocorreu no início de julho de 2010, mais informação disponível em : <www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/visita-do-presidente-lula-a-guine-equatorial-malabo-4-e-5-de-julho-de-2010>, acesso em 2 de outubro de 2010.
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Ao contrário, em determinadas ocasiões acabou por legitimar a ação desses países ao protegê-los com o manto do diálogo e da cooperação. Não há dúvida de que o “diálogo franco”, que propõe Amorim, poderia ser uma alternativa válida. No entanto, tal diálogo pressupõe que o Brasil reconheça as violações praticadas pelos países dos quais se aproxima e coloque-se a favor da responsabilização dos violadores e da reparação às vítimas29. Caso contrário, o Brasil corre o risco de legitimar tais violações, o que é moral e constitucionalmente repreensível, além de por em xeque o espaço que vem conquistando internacionalmente.
O BRASIL NO SISTEMA ONU DE DIREITOS HUMANOS: ATUAÇÃO OFUSCADA POR AMBIGUIDADES DURANTE O GOVERNO LULA, O BRASIL CONTRIBUIU PARA O FORTALECIMENTO E EFETIVIDADE DO SISTEMA MULTILATERAL DE DIREITOS HUMANOS? A contribuição da política externa do governo Lula para a proteção dos direitos humanos em âmbito global também pode ser avaliada à luz de sua contribuição ao fortalecimento do sistema internacional criado para protegê-los30. Como já indicado, este artigo se aterá ao sistema multilateral de direitos humanos das Nações Unidas, especialmente ao Conselho de Direitos Humanos (CDH ou Conselho), principal órgão do sistema ONU para o tema. Ao se fazer um balanço da atuação do Brasil no CDH, sob o governo Lula, observa-se que a contribuição da política externa brasileira ficou aquém do potencial conquistado pelo país ao afirmar seu protagonismo nas relações internacionais. O Brasil é membro do CDH desde seu estabelecimento em 2006, quando substituiu a desacreditada Comissão de Direitos Humanos. Como um dos 47 Estados-membros do CDH, o Brasil vem desempenhando papel ativo e importante nesse órgão. Uma das razões para isso está no reconhecimento internacional de avanços internos em matéria de direitos econômicos e sociais, tratados anteriormente nesse artigo. Como um desdobramento de sua política doméstica no plano externo, o governo Lula promoveu no Conselho iniciativas relevantes relacionadas a esses e outros direitos.
25. Amorim defende visita de Lula à Guiné-Equatorial, O Estado de São Paulo, 5 de julho de 2010,l disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,amorim-defende-visita-de-lula-a-guine-equatorial,576542,0.htm, acesso em 20 de outubro de 2010. 26. Lula descarta atender pedidos da internet sobre iraniana, O Estado de São Paulo, 28 de julho de 2010, disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,lula-descarta-atender-pedidos-da-internet-sobre-iraniana,587306,0.htm, acesso em 24 de outubro de 2010. 27. Lula apela ao líder do Irã para enviar condenada à morte por apedrejamento ao Brasil, Folha de São Paulo, 31 de setembro de 2010, disponível em http://www1.folha.uol.com.br/mundo/775799-lula-apela-ao-lider-do-ira-para-enviar-condenada-a-morte-por-apedrejamento-ao-brasil.shtml, acesso em 20 de outubro de 2010. 28. Nota Pública: Pela vida de Sakineh Ashtiani, mais uma vítima do regime iraniano. Conectas Direitos Humanos. Disponível em: <www.conectas.org/index.php/Noticias/view?n=622>, acesso em 15 de outubro de 2010.
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29. VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos humanos à sério, São Paulo, O Estado de São Paulo, 25 de agosto de 2010, disponível em http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100825/not_imp599992,0.php, acesso em 21 de outubro de 2010. 30. A base deste sistema encontra-se na normativa internacional de direitos humanos. A Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU de 1948 juntamente com os pactos e tratados celebrados nas Nações Unidas constituem o núcleo duro desta normativa. Assim, o sistema internacional de direitos humanos é composto por órgãos e mecanismos internacionais responsáveis pelo monitoramento de seu cumprimento por parte dos Estados. Vale lembrar que há ainda os sistemas regionais de direitos humanos, que por razões de foco não serão tratados neste artigo. Sobre sistema internacional de direitos humanos, ver Alston (1992), Lindgren Alves (1994), Piovesan (2010), entre outros. Sobre sistemas regionais, ver Heyns, Padilla e Zwaak (2006) e Piovesan (2007).
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A convocação de uma sessão especial sobre os impactos da crise financeira mundial nos direitos humanos, em 2008, é um bom exemplo31. Merece também destaque a promoção do direito à saúde por meio do acesso a medicamentos, presente em diferentes resoluções de autoria brasileira ao longo dos quatro anos de existência do CDH32. Iniciativas no campo do combate a discriminação racial também foram promovidas pelo Brasil nos últimos anos, como a apresentação de resolução33 no Conselho sobre a incompatibilidade entre democracia e racismo. A atuação brasileira em direitos humanos na ONU reforçou diretrizes da política externa do governo Lula em diferentes aspectos. A predominância das alianças com países em desenvolvimento estabelecidas pela delegação brasileira nas negociações no CDH em contraponto à chamada postura hegemônica ocidental deriva das diretrizes de promover a democratização do sistema internacional e de favorecer as relações sul-sul. Soma-se o fato de o Brasil ter privilegiado, no Conselho, mecanismos que visaram a universalizar o tratamento empregado pelas Nações Unidas aos direitos humanos, como a Revisão Periódica Universal (RPU) - mecanismo pelo qual todos os 192 Estados que compõe a ONU passam por uma revisão de sua situação de direitos humanos. Como afirmou o Ministro Amorim, a RPU deveria ser privilegiada já que “ali se busca o tratamento não seletivo, objetivo e multilateral dos direitos humanos em todos os países-membros da ONU”34. Ainda no intuito de comprometer os Estados de forma universal e equitativa a garantir os direitos fundamentais, o Brasil logrou que o CDH aprovasse Metas Voluntárias em Direitos Humanos35. Sob esta perspectiva, o Brasil teria contribuído ao fortalecimento do sistema internacional de direitos humanos ao ter pleiteado e conquistado um assento como membro do Conselho e ter sido ativo ao introduzir temas importantes em sua agenda. Além disso, para o governo, conta-se o fato do país ter primado pela democratização e não-seletividade na forma como os direitos humanos são tratados pelo órgão. Vale ressaltar que, com relação a estes dois últimos pontos, é preciso ter cautela na avaliação de que necessariamente levam a resultados positivos, já que a preferência pela RPU não pode dar-se sob o sacrifício de outros mecanismos do Conselho. Há diferentes situações que demandam reações também distintas da comunidade internacional. Não se pode partir do pressuposto de que todos os países do mundo violam direitos da mesma forma, nem que todos estão dispostos ou tecem esforços para combater tais violações.
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31. Resoluções A/HRC/S-10/1 e A/HRC/RES/12/28.
No entanto, há casos graves em que as posições brasileiras não favoreceram ou até mesmo enfraqueceram a capacidade do Conselho de Direitos Humanos da ONU em atuar diante de violações no mundo. Posições ambíguas adotadas pela delegação brasileira durante o governo Lula frente a resoluções multilaterais que tratam de violações ocorridas em países específicos sustentam esta preocupação. Os casos das resoluções do CDH sobre violações sistemáticas de direitos na Coréia do Norte e no Sri Lanka são paradigmáticos e significativos. Na Coréia do Norte persistem violações classificadas pelo relator da ONU ao país, o tailandês Vitit Muntarbhorn, como “tanto flagrantes quanto endêmicas”36. Mesmo assim, em 2009, o Brasil se absteve na votação no CDH de resolução37 que, além de reconhecer as violações existentes, renovou o mandato do relator especial da ONU que se dedica a monitorar e documentar os abusos ocorridos no país. Ao justificar a abstenção, o governo brasileiro alegou concessão de uma “janela de oportunidade” à Coréia do Norte, que no final de 2009 passaria pelo crivo da Revisão Periódica Universal. No entanto, o regime norte-coreano não aceitou nenhuma das mais de 160 recomendações feitas a ela no âmbito da RPU por diversos países, incluindo as recomendadas pelo Brasil. Assim, em 2010, quando o injustificável tornou-se insustentável, o governo Lula voltou a apoiar a resolução multilateral do CDH sobre este país asiático. No caso do Sri Lanka, país devastado por 25 anos de conflito armado que resultou em números alarmantes de mortos e deslocados internos, o Brasil associou-se ao próprio governo cingalês e a outros Estados não-democráticos como Argélia, China, Coréia do Norte, Cuba, Irã, Mianmar, Síria e Sudão38 para que uma resolução39 débil no reconhecimento das violações e silenciosa quando a responsabilização destas fosse aprovada. Nesse mesmo texto, que contou com co-patrocínio brasileiro, foi evocado o princípio da não-interferência em assuntos domésticos, dando fôlego ao superado argumento da proteção da soberania dos Estados em detrimento da dignidade humana. Os responsáveis pela política externa brasileira em direitos humanos buscam justificar tais posições ao reiterar que a cooperação e o diálogo são caminhos mais eficazes para a melhoria da situação de direitos humanos do que a mera condenação. E que, seguindo a diretriz de não-alinhamento automático da política externa brasileira, o Brasil avalia caso a caso a posição a ser tomada, levando em consideração os diferentes contextos e momentos, inclusive com vistas a evitar a seletividade no CDH40.
32. Resoluções A/HRC/RES/2/107, A/HRC/RES/2/108, A/HRC/RES/6/29, A/HRC/RES/12/24 e A/HRC/RES/12/27.
36. Vídeo do pronunciamento do Relator Especial da ONU para os direitos humanos na Coréia do Norte. Disponível em: http://www.un.org/webcast/unhrc/archive.asp?go=100315 , acesso em 15 de outubro de 2010.
33. Resolução A/HRC/RES/2/106.
37. Resolução A/HRC/RES/10/16.
34. AMORIM, Celso. Atuar com discrição é a expressão da natureza conciliadora do brasileiro, São Paulo, Folha de São Paulo, 15 de agosto de 2010. Mais informações disponíveis sobre a RPU em: www.ohchr.org/EN/HRBodies/UPR/Pages/UPRMain. aspx , acesso em 5 de outubro de 2010.
38. A lista completa de co-patrocinadores da resolução em questão sobre direitos humanos no Sri Lanka está no relatório da 11ª Sessão Especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU e está disponível em: http://www2.ohchr.org/english/bodies/ hrcouncil/specialsession/11/index.htm , acesso em 16 de outubro de 2010.
35. Resolução A/HRC/RES/9/12.
39. Resolução A/HRC/S-11/1.
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Há, porém, fragilidades nesta argumentação. A primeira delas é que a cooperação pressupõe uma via de mão dupla entre aqueles que a oferecem e o país receptor. Em outros termos, qualquer país com o qual o Brasil se disponha a cooperar, precisa provar que está disposto, aberto e comprometido, por meio da cooperação, a melhorar a situação dos direitos humanos. Ademais, o fim de práticas violadoras por parte de regimes repressivos requer o reconhecimento da existência dos abusos, seguido pela identificação dos responsáveis e do compromisso de mudanças dentro de um prazo determinado. Caso contrário, a cooperação torna-se um conceito vazio, um fim em si mesmo e um cheque em branco aos governos que violam sistematicamente os direitos humanos. Outra fragilidade é no que se refere à seletividade denunciada, mas, no entanto, também praticada pelo Brasil. No tratamento das violações aos direitos humanos nos Territórios Palestinos Ocupados, o Brasil praticamente abandona sua política de não-alinhamento automático ou mesmo de combate à seletividade no tratamento de casos de situações específicos. Embora a situação nos Territórios Palestinos Ocupados seja preocupante e a ação do CDH extremamente necessária, há de se reconhecer que existe um desequilíbrio no espaço ocupado na agenda do Conselho e na postura adotada pelo Brasil. Desde sua criação, cinco das treze sessões especiais do CDH trataram de tais violações. Se considerarmos as sessões regulares, mais de 1/3 das resoluções sobre situações específicas foram sobre os Territórios Palestinos Ocupados. Em todos os casos levados à votação, o Brasil se posicionou a favor, inclusive deixando claro que esta é uma bandeira dos países do sul que conta com histórico e sistemático apoio brasileiro. Mudando o enfoque, há uma outra dimensão da atuação brasileira que caminha no sentido contrário ao fortalecimento do sistema internacional de direitos humanos. Trata-se da forma como, muito recentemente, o governo Lula reagiu às manifestações de relatores especiais do Conselho de Direitos Humanos da ONU que visitaram o Brasil. Em 2009, dois posicionamentos do governo brasileiro diante da apresentação de relatórios sobre o Brasil pelos relatores especiais da ONU para o direito à alimentação e para execuções extrajudiciais, sumárias e arbitrárias ilustram tal fato. No último caso, por exemplo, o Brasil afirmou, em Genebra, que “em relação à alegação de que os dados oficiais não são confirmados, se o relator especial dedicasse dez minutos de seu tempo para acessar a internet ele teria encontrado, por exemplo, pesquisas independentes realizadas pela Universidade de São Paulo (...). Caso ele prefira fontes na língua inglesa, como parece ser o caso, ele poderia ler na The Economist (...)”41. Não se está aqui questionando o direito do 40. Segundo o Ministro Amorim, “o acompanhamento cuidadoso, não movido por preconceitos, de nossas votações no CDH revela que estas estão longe de obedecer a um padrão uniforme e tomam em conta uma variedade de fatores. AMORIM, Celso. Atuar com discrição é a expressão da natureza conciliadora do brasileiro, São Paulo, Folha de São Paulo, 15 de agosto de 2010. 41. Vídeo do pronunciamento disponível em http://webcast.un.or20.g/ramgen/ondemand /conferences/unhrc/eleventh/ hrc090605pm2-eng.rm?start=00:44:28&end=00:49:58. Acesso em 5 de outubro de 2010.
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governo de não concordar com os métodos de trabalho ou com as avaliações que estes especialistas fazem sobre o país. Preocupante, porém, é a forma depreciativa, com uso de linguagem agressiva e ofensiva, pela qual o Brasil decidiu expressar tais discordâncias, o afastando do posicionamento tradicional de valorização e diálogo construtivo com os relatores especiais da ONU. Ao versar sobre a atuação do Brasil no CDH, Rubens Ricupero observa que esta vem se “notabilizando pela cumplicidade com a sinistra aliança responsável pelo bloqueio de todas as tentativas de investigação ou pressão para alívio das vítimas de violações maciças dos direitos mais elementares”42. A análise das posições e votos adotados pelo Brasil neste Conselho nos leva à conclusão preliminar de que, apesar de importantes iniciativas temáticas, a atuação do Brasil no CDH torna-se altamente questionável no que diz respeito ao tratamento de violações de direitos humanos em países específicos e, recentemente, ao tratamento dispensado a alguns relatores especiais. Ou seja, o maior protagonismo internacional do Brasil nem sempre foi guiado pelo princípio de prevalência dos direitos humanos nas suas relações internacionais, quando analisada sua atuação no principal órgão de direitos humanos do sistema multilateral.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesse artigo, buscamos demonstrar que não há dúvida de que o Brasil tenha assumido maior protagonismo internacional durante o governo Lula. Conquistou espaços, ampliou sua voz e assumiu responsabilidades ao implementar uma política externa guiada pelo não-alinhamento automático, pela democratização do sistema internacional, pelo fortalecimento das relações sul-sul e pela integração regional. No entanto, a proteção internacional dos direitos humanos ficou muitas vezes esquecida, negligenciada ou à reboque de interesses outros. Em algumas ocasiões, a luta por mais visibilidade e espaço internacional parece ter-se tornado um fim em si. Com base em resultados expressivos, o governo Lula tornou-se referência internacional no combate à pobreza e à fome. Disseminou sua experiência e se dispôs a cooperar com outros países. Mas se foi referência nessa temática, não o foi em outras, especialmente no que se refere ao sistema prisional e violência institucional. Nesse caso, foi objeto de análise e alvo de diversas recomendações da comunidade internacional. 42. Rubens Ricupero completa dizendo ser “sugestivo que em direitos humanos o Brasil se afasta de sua proclamada identificação com os valores latino-americanos. Em posição contrastante com a da Argentina, do Chile, do México, que honram as melhores tradições da América Latina, o governo brasileiro se tem alinhado nessa matéria aos mais notórios violadores como Cuba e Paquistão.” RICUPERO, R. À sombra de Charles de Gaulle: uma diplomacia carismática e intransferível A política externa do governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), Revista Novos Estudos, Julho 2010, número 87.
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Em suas relações com países não-democráticos e que violam sistematicamente os direitos humanos, o governo Lula privilegiou o diálogo e louvou a soberania. Diz tê-lo feito por acreditar na diplomacia discreta e “sem superioridade moral”. Infelizmente, em certos casos, os limites tênues entre diálogo, omissão e conivência ficaram patentes. No sistema multilateral de direitos humanos, o governo Lula foi protagonista de iniciativas importantes. No entanto, em prol da universalidade no tratamento de questões de direitos humanos, contribuiu, em alguns casos, para o enfraquecimento de mecanismos internacionais de direitos humanos. Foi ambíguo com relação ao reconhecimento e tratamento de violações sistemáticas a direitos humanos em países específicos. Condenou a seletividade, mas também a praticou em determinadas situações. Essas são reflexões, não exaustivas, sobre os últimos oito anos. O que será feito daqui para frente pelo Brasil no espaço que ocupou no âmbito internacional dependerá não só da vontade política dos governantes, mas também do fortalecimento da participação cidadã e controle democrático da política externa brasileira, especialmente aquela relacionada aos direitos humanos. Para tanto, deve-se aumentar o acesso à informação e fortalecer a transparência e os canais de participação na formulação e implementação dessa política43. Falhas devem ser superadas e o comprometimento internacional do Brasil com a promoção e proteção dos direitos humanos, fortalecido. Pois por mais legítimos que sejam, o pragmatismo político e a intenção de reconfiguração da geopolítica internacional não podem negligenciar a prevalência dos direitos humanos na política externa. Ao contrário, devem ser pensados e estar a serviço desse fim maior. No caso do Brasil, isso não é meramente uma escolha, mas sim uma obrigação constitucional - decorrente do artigo 4º, II - bem como responsabilidade adquirida pelo país ao ser parte de diversos tratados internacionais de direitos humanos.
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ALMEIDA, Paulo Roberto de. Pensamento e ação da diplomacia de Lula: uma visão crítica. Revista Política Externa. São Paulo: Editora Paz e Terra. Set/Out/Nov 2010. Vol.19, número 2. 43. Organizações da sociedade civil têm apresentado propostas nesse sentido, como, por exemplo, os compromissos propostos aos presidenciáveis pelo Comitê Brasileiro de Direitos Humanos e Política Externa, “Direitos humanos e Política Externa: Compromissos aos candidatos à Presidência da República Federativa do Brasil – 2010”. Disponível em: www.dhpoliticaexterna.org.br/download_atividade.php?id=28b3678a55d36883ca7921034435f760.pdf&nome=Compromissos %20aos%20presidenci%E1veis2010_DHePolExterna_CBDHPE.pdf , acesso em 23 de outubro de 2010.
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A POLiTICA ECONoMICA DURANTE O GOVERNO LULA (2003-2010): CENaRIOS, RESULTADOS E PERSPECTIVAS LAURO MATTEI E LUIS FELIPE MAGALHÃES Lauro Mattei é Professor dos cursos de Graduação e de Pós-Graduação em Economia da UFSC. Luis Felipe Magalhães Economista formado pela UFSC e pesquisador do IELA-UFSC.
INTRODUÇÃO
e
m seu primeiro pronunciamento como presidente eleito do Brasil, feito no dia 28 de outubro de 20021, Lula iniciou sua fala da seguinte forma: “ontem o Brasil votou para mudar, sendo que nossa vitória significou a escolha de um projeto alternativo e o início de um novo ciclo histórico para o país. A maioria da sociedade brasileira votou pela adoção de outro modelo econômico e social, capaz de assegurar a retomada do crescimento econômico, do desenvolvimento com geração de emprego e distribuição de renda”. Obviamente que esse discurso fazia referência à crise em que a economia brasileira se encontrava mergulhada nos últimos anos do governo FHC, o qual assumidamente adotou um conjunto de políticas “ortodoxas” sempre com o pretexto de manter a estabilidade macroeconômica. Parte dessas políticas, por mais que tenham atingido seu principal objetivo – o do controle inflacionário – geraram fortes contradições internas, destacando-se o baixo crescimento do PIB, a elevação do desemprego e a expansão da exclusão social, fatores agravadores de instabilidades econômicas e políticas. O discurso do presidente eleito contradiz, em parte, a famosa “Carta aos Brasileiros” emitida pelo mesmo LULA meses antes das eleições, momento em que assumia o compromisso com as elites financeiras nacionais e internacionais de manter os contratos, cumprir as regras do jogo e dar continuidade à política macroeconômica de controle inflacionário do governo anterior baseada no regime de metas inflacionárias e de geração de superávits primários, ou seja, dar seqüência ao que estava sendo feito e propor algumas reformas que não haviam sido encaminhadas pelo governo FHC. Esse aspecto ficou mais evidente ainda no discurso de Lula no dia 10.12.2002 no Clube de Imprensa dos EUA (Washington). Dizia o presidente eleito: “meu governo vai se pautar pela responsabilidade fiscal, pelo combate à inflação e pelo respeito aos contratos e acordos.... precisamos de uma atitude construtiva por parte da chamada comunidade financeira internacional... estejam certos de que todas as instituições e empresas responsáveis encontrarão no Brasil um ambiente seguro e estável para investir.” Era tudo o que o sistema financeiro internacional queria ouvir! Portanto, qualquer discussão sobre a política econômica durante o governo Lula não pode deixar de considerar esses aspectos que são determinantes nos instrumentos adotados já no início do novo governo. Isso não significa dizer que a política adotada foi uma mera continuidade do regime anterior. É exatamente esse percurso que o presente texto
1. Lula foi eleito em segundo turno no dia 27.10.2002
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pretende desenvolver, ou seja, apontar como o caminho inicialmente delineado foi sendo implementado, com o objetivo de observar a existência de elementos de continuidade e de rupturas em relação ao governo anterior. E nada melhor para isso do que analisar o comportamento de um conjunto de variáveis macroeconômicas. Para tanto, o artigo está organizado em três seções, além dessa breve introdução. Na primeira delas, faz-se uma recuperação rápida da política econômica e do cenário macroeconômico herdado pelo governo Lula. A segunda seção discute os instrumentos fundamentais de política econômica adotados durante o período 2003-2010 e seus principais resultados. Finalmente, a terceira seção apresenta as considerações gerais e as perspectivas para o próximo período.
A POLÍTICA ECONÔMICA HERDADA PELO GOVERNO LULA
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O ideário neoliberal reinante em todos os continentes ganha mais força na agenda política brasileira e assume contornos concretos em 1995, quando FHC assume a residência do Brasil. A partir de então, o movimento político-ideológico antes referido se instaura na vida econômica e política nacional. O governo FHC que, durante a campanha eleitoral de 1994 havia prometido retirar o país de sua condição subdesenvolvida, na verdade terminou seu segundo mandato no ano de 2002 em uma grande crise. O “Plano Real” implantado em julho de 1994 contém o suporte básico de toda política macroeconômica adotada pelo governo FHC no período entre 1995 e 2002. Devido à restrição de espaço não vamos discutir aqui o conjunto de medidas que fazem parte do referido plano. Apenas vamos detalhar os principais aspectos que dizem respeito ao processo de continuidades com o qual a carta de Lula anteriormente mencionada faz referências, bem como alguns resultados do desempenho macroeconômico das políticas adotadas, que mergulharam o país numa grave crise econômica, particularmente nos dois anos que antecederam às eleições gerais de 2002. Na esfera econômica buscou-se recuperar o crescimento econômico através da adoção de um cardápio de políticas de ajuste estrutural ancorado em quatro pilares básicos: na desregulamentação bancária e financeira; na liberalização comercial, com ampla abertura da economia do país aos produtos e bens do exterior; na estabilização dos preços, via política cambial fixa; e na redução da participação do Estado na economia, através de um vultoso programa de privatização de empresas estatais. Essas políticas se mostraram adequadas aos seus propósitos até 1997 quando uma nova crise se instaurou tendo como epicentro os países asiáticos. Neste caso, observaram-se fortes movimentos especulativos em várias praças financeiras, culminando em
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fuga de capitais, particularmente nos países em desenvolvimento. Este fato abalou os mercados globais e afetou negativamente o cenário internacional favorável do início da década de 1990. Desta forma, os ataques especulativos contra as moedas locais forçaram a adoção, por parte de vários países, de uma política cambial flexível. Assim, Brasil (1999), Chile (1999), Rússia (1998) e Argentina (2001) flexibilizaram o câmbio visando evitar retração do crescimento e fuga dos investidores externos, bem como desequilíbrios no Balanço de Pagamentos. Particularmente no Brasil, em janeiro de 1999 troca-se o modelo de câmbio fixo pelo regime flutuante, além de serem adotadas as metas de superávit primário para a esfera fiscal, como forma de afastar temores sobre a capacidade do país de honrar seus compromissos e, ao mesmo tempo, garantir a continuidade dos investimentos externos necessários à retomada do crescimento econômico. Neste sentido, é importante observar que a política econômica do governo FHC foi um pouco diferente em seus dois mandatos. No primeiro, o governo esbanjou recursos, provocando um substancial déficit fiscal, além de acumular US$ 100 bilhões de déficit em contas correntes, levando o país a um estado de solvência (quebra) às vésperas das eleições de 1998. Diante disso, volta-se à estratégica clássica do socorro ao FMI, o qual emprestou, antes do processo eleitoral daquele ano, US$ 41 bilhões, cuja conta chegou já no início do segundo mandato (janeiro de 1999). Como as reservas do país se esgotaram rapidamente, “o mercado impôs a desvalorização do real”, provocando mudanças na lógica em curso até aquele ano. Atendendo ao FMI, que passou a exigir um maior controle fiscal, aprovou-se a Lei de Responsabilidade Fiscal e adotou-se o sistema de metas inflacionárias e de câmbio flutuante. Uma das principais conseqüências dessa política macroeconômica adotada durante todo governo FHC é que o Estado brasileiro passou a ficar refém do capital especulativo nacional e internacional, o qual se alimentava com as elevadas taxas de juros (as maiores do mundo) praticadas pelo país. Com isso, essa opção política acabou gerando as condições necessárias para que ocorresse uma hegemonia do capital financeiro sobre a economia brasileira. Dentre os principais problemas desse período destacam-se: desequilíbrios das contas governamentais (no período entre 1994-2002 houve uma inversão da ordem de US$ 17 bilhões na balança comercial, registrando um déficit anual médio superior a US$ 2 bilhões e provocando um déficit anual médio ao redor de US$ 25 bilhões, totalizando um acumulado nos oito anos de cerca de US$ 200 bilhões); elevação enorme das dívidas interna (no período FHC passou de R$ 70 bilhões para R$ 892 bilhões) e externa (atingiu R$ 250 bilhões no ano de 2002) devido ao elevado peso do pagamento dos juros (custo médio anual de R$ 100 bilhões); dívida líquida do setor público
A POLÍTICA ECONÔMICA DURANTE O GOVERNO LULA (2003-2010): CENÁRIOS, RESULTADOS E PERSPECTIVAS
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(cresceu de 30,4% do PIB em 1994 para 58,6% em 2002); baixíssimo crescimento do PIB; elevação do desemprego (cresceu de 4,8% em 1994 para 8,3% em 2002); redução do poder de compra do salário mínimo (caiu de US$ 110 em 1995 para US$ 80 em 2002). Paralelamente a esse movimento na economia, o governo FHC atuou fortemente também na esfera política. Neste caso, foi intensificado o processo de privatização das empresas estatais, símbolo do último período de prosperidade vivido pelo país (década de 1970), além da reforma do Estado, processo que extinguiu muitos dos instrumentos necessários para implementar um modelo de desenvolvimento que o país requeria. Foi neste contexto que Lula venceu as eleições em 2002, com a promessa de implantar um “novo modelo de desenvolvimento” para o país. Para atingir tal objetivo, desde o início, o novo governo teve que lidar com um duplo desafio: por um lado, reconstruir o caminho herdado pelas amarras da “onda neoliberal” e, por outro, conviver com uma situação de instabilidade e vulnerabilidade provocada pela expansão sem limites do capital financeiro.
A POLÍTICA ECONÔMICA DURANTE O GOVERNO LULA Por englobar um período relativamente longo (oito anos), este texto não se deterá sobre detalhes específicos de uma determinada fase, especialmente nos momentos de crise quando instrumentos de política macroeconômica são revistos. A idéia geral aqui é apresentar a linha mestra da política econômica do governo Lula e, na seqüência, discutir alguns de seus principais resultados.
ESTRATÉGIAS E POLÍTICAS ADOTADAS
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De uma maneira geral, pode-se dizer que a estratégia e, consequentemente as políticas econômicas adotadas, está atrelada à dinâmica de cada um dos dois mandatos do governo Lula. E este fato não deixa de guardar relações com as próprias equipes que comandaram a área econômica do governo. Assim, deve-se lembrar que durante o primeiro mandato, além do Banco Central (BC), outros importantes setores da estrutura governamental estavam ocupados por pessoas-chave fortemente atreladas aos princípios ortodoxos convencionais. Nesse caso, destaca-se a própria Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda, a quem cabia orientar as grandes linhas políticas do governo na área econômica. Esta composição, não esqueçamos, tinha como comandante chefe o Ministro da Fazenda, Antônio Palocci, que havia coordenado a campanha eleitoral de Lula e
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articulado junto aos setores financeiro e empresarial a carta de compromissos antes mencionada. Este, ao ser questionado após as primeiras medidas anunciadas, justificou-se da seguinte maneira: “o governo não pode fazer um “cavalo-de-pau” em um transatlântico em movimento”, o que sugeria que não seria feita nenhuma manobra na rota da política econômica em curso. Este fato se concretizou ainda no primeiro ano do primeiro mandato do governo Lula com o lançamento do documento produzido pela Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda intitulado “Política Econômica e Reformas Estruturais”2. Nele assume-se que o melhor caminho para a retomada do crescimento econômico seria aprofundar as linhas mestras da política anterior, fazendo pequenos ajustes e dando maior consistência a mesma. Além disso, reivindicava-se que esses aspectos deveriam ser prioridade na agenda econômica do país. Com isso, fica evidente que a política econômica no início do governo Lula não é somente uma continuidade como também uma tentativa de aprofundar o uso dos mecanismos ortodoxos oriundos da filosofia macroeconômica neoliberal, a qual encontra guarida no Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, bem como na própria Federação dos Bancos Brasileiros (Febraban), entidades que clamavam por “reformas institucionais” durante as crises ocorridas entre os anos de 1999 e 2002. Não esquecendo o clamor dessas organizações, no primeiro momento o governo aposta todas as suas fichas em três reformas: da previdência, tributária e monetária, particularmente na definição da autonomia do Banco Central. Nesse caso, não se deve esquecer também que todas essas propostas faziam parte da carta de compromissos do governo FHC com o FMI assinada em Agosto de 2002 (auge da crise), a qual foi renovada pelo Governo Lula em Fevereiro de 2003. Assim, fica mais fácil de entender porque o transatlântico não podia mudar de rota, segundo a concepção palocciana. A reforma previdenciária, visando atender aos ditames dos organismos multilaterais, previa uma “desresponsabilização” do Estado em relação ao funcionalismo público, abrindo espaço para os planos de previdência privada. Neste sentido, essa proposta era claramente excludente e sem qualquer possibilidade de equacionar a sustentabilidade financeira do sistema de previdência social no longo prazo. Registre-se que essa proposta foi parcialmente aprovada, sendo que ao longo de todo o período do governo Lula o assunto não foi solucionado adequadamente. Já a proposta de reforma tributária estava contaminada pelo argumento neoliberal da necessidade da “desoneração da produção”, o qual esconde o verdadeiro problema: a manutenção de estruturas tributárias desiguais. Este é o discurso dominante no seio do 2. Disponível em http://www.fazenda.gov.br/portugues/releases/2003/r030410.doc
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grande empresariado nacional, explicitado por diversas organizações. Mas essa questão também diz respeito ao ideário da racionalização dos gastos governamentais e a geração de grandes superávits comerciais e fiscais. Acreditava-se, com isso, que melhorias na capacidade de gasto do governo seriam essenciais para recuperar a confiança junto aos investidores internos e, sobretudo, externos. Finalmente, a questão da independência do BC foi colocada no centro da agenda da reforma monetária. Como restou ao programa de estabilidade apenas o manuseio das taxas de juros, optou-se por dar autonomia (antiga reivindicação dos mercados financeiros) ao Banco Central para arbitrar o controle inflacionário do país. Com isso, transfere-se à autoridade monetária o poder de definir “as metas de inflação” e a consequente taxa de juros, bem como definir a taxa de câmbio. Desta forma, nota-se que o ideário da independência do BC – que na prática significa atrelá-lo aos interesses das forças de mercado – retirou do conjunto do governo e, particularmente, do Presidente da República, o poder de definir soberanamente os destinos da política econômica do país. E isso ficou evidente em várias passagens quando o presidente desejava uma redução das taxas de juros, mas o Banco Central a elevava. Essas contradições serão mais bem visualizadas quando analisarmos o comportamento das taxas de juros em todo período considerado. Parte desta estratégia de política econômica começou a mudar a partir de 2005-2006, quando o ministro Palocci e alguns de seus principais auxiliares de convicções mais ortodoxas deixaram a equipe econômica do governo Lula, ganhando maior consistência em 2007 com a implantação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Agora sob o comando de uma equipe econômica mais identificada com o crescimento da demanda interna e aproveitando as condições internas e externas favoráveis, adotaram-se alguns instrumentos de política econômica mais flexíveis no sentido de impulsionar o consumo, ainda que as principais linhas básicas da política do período anterior permanecessem em voga. Com isso, nota-se que se inicia uma lenta recuperação da capacidade estatal de interferir na dinâmica econômica, particularmente no que diz respeito aos investimentos. Trata-se, portanto, de uma tentativa de política econômica de retomar o ideário do desenvolvimento, porém sem quebrar o processo de acumulação de capital a partir da lógica das “finanças”. A manutenção também neste período de taxas de juros em patamares elevados comparativamente ao mercado global é apenas mais um indicativo que a política de crescimento econômico que poderia levar à conformação de um modelo de desenvolvimento sustentado ainda não está no centro da estratégia global do país, uma vez que continua refém dos interesses do sistema financeiro. Em síntese, podemos dividir a política econômica do governo Lula em duas fases. A primeira delas, que cobre praticamente todo primeiro mandato (2003-2006), é marcada pelo aprofundamento da agenda neoliberal, dando a essas políticas um caráter ortodoxo
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conservador. A segunda fase, que denominaremos de liberal-desenvolvimentista e que cobre todo segundo mandato (2007-2010), é marcada por uma intervenção mais forte do Estado na economia, recuperando sua capacidade de investimento, além de orientar os investimentos privados no sentido de ampliar a infraestrutura básica do país. Mesmo assim, o comando da política econômica ainda continuou refém do mercado financeiro. Para isso, em muito contribuiu a ação do BC que, ao invés de atuar decisivamente na implantação de uma estratégia consistente e sustentável de autodefesa dos interesses do país, permaneceu refém dos interesses do mercado financeiro nacional e internacional.
ALGUNS INDICADORES DE DESEMPENHO DA POLÍTICA ECONÔMICA NO PERÍODO Levando-se em consideração as características da política econômica, anteriormente mencionadas, torna-se necessário lançar luz sobre uma relevante questão: se a estratégia do governo Lula, particularmente no primeiro período, seguiu a linha mestra da política econômica do governo anterior, o que explicaria então o ciclo expansivo que se observou após 2003? Uma das explicações consistentes para esse fenômeno está conectada aos movimentos da economia global, ou seja, explica-se o fato pela ótica externa da economia, com implicações diretas sobre a dinâmica interna do país. Assim, verifica-se que entre 2003 e meados de 2008 ocorreu uma conjuntura internacional amplamente favorável, tanto em termos de transações comerciais como em relação ao fluxo de investimentos e disponibilidade de crédito. Grande parte desse movimento esteve condicionado pelo processo de expansão das duas maiores economias mundiais, EUA e China, destacando-se o forte crescimento da economia chinesa. Com uma demanda em expansão, a China ampliou enormemente suas taxas de investimento, transformando-se no país com as maiores taxas de crescimento do PIB. Para isso, passou a demandar mais commodities no mercado internacional, especialmente as de origem agroindustrial. Com isso, desencadeou-se um processo correlato sobre os preços desses produtos, que entraram em rota ascendente e favoreceram os países com participação neste mercado específico. O Brasil, particularmente, se aproveitou desse momento de expansão da economia mundial e conseguiu obter saldos expressivos na balança comercial em todo o período, processo este puxado mais pela elevação dos preços do que pela expansão do quantum exportado. De qualquer forma, os resultados mostravam um saldo comercial favorável da ordem de R$ 24 bilhões em 2003, o qual passou para mais de R$ 46 bilhões em 2007. Com a crise de 2008 e 2009 houve uma forte retração desses saldos, conforme gráfico I. De qualquer forma, esse foi o fator determinante para o equilíbrio externo da economia brasileira.
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Em grande medida, essa ampliação das exportações ocorreu através do aumento das commodities agroindustriais no quantum exportador, destacando-se a soja, carnes, açúcar, suco de laranja, etc. Isso reposicionou internamente, inclusive, o setor do agronegócio, que acabou tendo um papel de destaque no Governo Lula. Assim, pode-se dizer que o aumento das exportações, além de gerar os dólares necessários ao ajuste das contas externas, transformou-se em uma fonte de crescimento da produção e do emprego doméstico em diversos setores de atividade.
GRÁFICO I – EVOLUÇÃO DA BALANÇA COMERCIAL NO GOVERNO LULA (FOB, EM MILHÕES DE U$$): 50 Saldo da Balança Comercial (FOB, em US$)
45 40 35 30 25 20 15 10 5 2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
Fonte: Banco Central do Brasil, 2010.
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Todavia, sabemos que esta estratégia apresenta sérias limitações, particularmente em períodos de crises econômicas, como a que se abateu sobre a economia mundial a partir de 2008. Neste caso, países que apresentam baixo grau de competitividade e que têm suas pautas de exportações baseadas em commodities com pouco valor agregado, como foi o caso brasileiro, são os mais afetados. Assim, quando os termos de troca tornam-se desfavoráveis a essa pauta de exportações, os efeitos sobre a balança comercial passam a ser imediatos. Esse aspecto já está presente na balança comercial do país a partir de 2009. Esse movimento das exportações até 2008 atuou decisivamente no sentido de elevar as reservas internacionais e, com isso, permitir um ajuste externo da economia brasileira, com a dívida externa do setor público sendo zerada ainda no ano de 2007, ou seja,
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de uma taxa dessa dívida de quase 15% do PIB em 2003, atingiu-se um saldo positivo recentemente, com o Brasil emprestando, inclusive, recursos ao próprio FMI nos anos de 2008 e 2009. Mas esse processo de ajuste também está relacionado à estratégia interna que durante todo o governo Lula esteve voltada ao controle inflacionário, uma vez que esse governo entendia ser esta a principal premissa para a governabilidade3. Esse controle inflacionário foi obtido através de um ajuste fiscal rigoroso, principalmente no primeiro mandato, e de manuseio consistente da taxa de juros, ambos instrumentos de política econômica com efeitos sobre a dinâmica interna da economia brasileira. Do ponto de vista fiscal, as negociações do Governo Lula com o FMI (início de 2003) resultaram em elevações das metas do superávit primário4. Com isso, a meta de inflação, que em 2002 era de 3,5%, passou para 4% em 2003 e 5,5% em 2004, retornando ao patamar de 4,5% a partir de 2005. Esses ajustes se devem ao fato de que o governo não estava conseguindo cumprir as metas, situação já iniciada ainda em 2001. Ou seja, entre 2001 e 2004 o regime de metas inflacionárias não correspondeu aos acordos com autoridades monetárias internacionais. Paralelamente ao arrocho fiscal, via metas elevadas de superávit primário, o sucesso no controle inflacionário também pode ser creditado ao controle de preços exercido pela política monetária, cuja variável de ajuste se resumiu a taxa de juros. Essas taxas de juros foram expansivas durante praticamente todo primeiro mandato do Governo Lula, sofrendo uma inflexão a partir de 2006 para novamente se tornar ascendente a partir da crise financeira de 2008-2009, conforme pode ser observado no gráfico II. A taxa básica de juros da economia brasileira, a taxa SELIC, é fixada pelo Comitê de Política Monetária (COPOM), órgão do Banco Central. Essa taxa definida pela autoridade monetária é crucial, uma vez que a partir dela são definidas outras taxas de juros relativas aos diversos tipos de financiamento (consumo interno e endividamento das famílias) e de operações financeiras (aplicações em atividades produtivas ou em ativos financeiros). Essa taxa mantém também uma relação com as contas externas do país: resultados deficitários em transações correntes são normalmente revertidos com a elevação dos juros, visando atrair capitais, processo este controverso, uma vez que capitais de curto prazo podem acabar agravando o déficit devido à volatilidade dos mesmos.
143 3. Essa é uma premissa fortemente condicionada pela abordagem ortodoxa que pressupõe que desajustes fiscais geram dúvidas sobre a capacidade de pagamento do governo, as quais estimulam a fuga de capitais e, conseqüentemente, geram a crise do balanço de pagamento. Para tanto, a saída é reforçar o ajuste fiscal, elevando o superávit primário. 4. Receitas menos despesas do governo, excetuando-se o pagamento dos juros da dívida pública.
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GRÁFICO II – EVOLUÇÃO DA TAXA DE JUROS SELIC NO GOVERNO LULA 20 Taxa de juros Selic - fixada pelo Copom (% a.a.)
18 16 14 12 10 8 6 4 2 2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
Fonte: Banco Central do Brasil, 2010.
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Nesta lógica, nota-se que durante todo o período do governo Lula essa taxa alternou diferentes movimentos. Entre 2003 e 2005 manteve uma trajetória crescente atingindo 18% no final do último ano. Esse movimento acelerado taxa de juros está associado ao processo de expansão da economia que gerava pressões de preços. Para manter esses preços dentro do regime de metas, a política de juros passou a ser extremamente rígida. Como resultado, foram gerados efeitos negativos sobre as atividades econômicas. Além disso, verifica-se que, entre 2006 e 2007, houve uma redução expressiva, com as taxas se situando no patamar de 11%, para no ano seguinte se elevar para 13,75%. Aqui, novamente o movimento de preços, associado à necessidade de ajustes externos, fez com que as autoridades monetárias mantivessem a taxa básica em patamares elevados. Como os efeitos da crise global afetaram o desempenho do lado real da economia a partir do segundo semestre de 2008, a taxa Selic entrou em uma rota descendente em 2009, passando para 8,75%, o menor patamar desde 1999, quando o regime de metas foi implantado. Como a economia reagiu rapidamente aos estímulos governamentais durante a crise (elevação de crédito e expansão da demanda interna), projetando uma elevação do crescimento econômico para o ano de 2010, o COPOM, mantendo o princípio de que altas taxas de crescimento econômico repercutem negativamente sobre o índice de preços e que estes só podem ser controlados mediante expansão da taxa de juros, mais uma vez elevou a taxa básica para um patamar de 10,75%.
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Obviamente que esse movimento da taxa básica de juros teve efeitos imediatos sobre o controle inflacionário, prioridade número um do governo Lula, conforme mostramos anteriormente. Assim, a inflação caiu de um patamar de 9%, em 2003, para próximo de 4%, em 2009, sendo que a partir de 2006 as taxas de inflação atenderam rigorosamente ao regime de metas, ficando dentro dos limites estabelecidos. Deve-se registrar, todavia, que esse comportamento da taxa de juros também provoca alguns efeitos correlatos. Por um lado, atua favoravelmente no sentido de atrair capitais para o país, tanto em termos de Investimento Direto Externo (IDE) como de investimentos em carteiras. De fato, entre os anos de 2005 e 2008, nota-se uma forte expansão do IDE, sendo que no último ano esses investimentos atingiram a cifra de R$ 45 bilhões. Num primeiro momento, isso poderia ser interpretado como sendo extremamente positivo, porém diante das circunstâncias específicas do país5, é de se supor que em momentos de agravamento da conjuntura financeira internacional a vulnerabilidade econômica brasileira ficasse mais exposta6. Por outro lado, a taxa de juros também é um elemento decisivo para a expansão das atividades produtivas internas, tendo em vista sua incidência sobre os custos do crédito destinado à produção. Neste caso, o gráfico III mostra o comportamento do PIB ao longo de todo o governo Lula, destacando que a economia brasileira apresentou um movimento na forma clássica do “stop-and-go”, alternando pequenos ciclos de crescimento, com reduções expressivas na seqüência. Isso fez com que o país se situasse entre aqueles com as menores taxas médias de crescimento em toda a América Latina no primeiro decênio do Século XXI. Esse movimento “stop-and-go” pode ser explicado pela ótica externa – crescimento interno muito dependente da conjuntura econômica internacional, especialmente quando ocorre aumento na demanda de commodities – e pela ótica interna – expansão do crédito doméstico com o objetivo de aumentar a produção e o consumo, como foi o caso da política econômica anticíclica adotada para enfrentar a crise financeira global, e controle rígido da inflação, via uma política monetária restritiva, com elevação das taxas de juros.
5. Deve-se lembrar que a partir do momento que a liberalização econômica passou a ser a regra (Governos Collor e FHC), o afrouxou os controles sobre os fluxos financeiros e de capitais, ficando sujeito aos movimentos especulativos e ao humor Brasil do mercado internacional. Essa política facilita a fuga de capitais durante momentos de pânicos ou crises, além de contribuir para gerar instabilidade cambial. 6. Essa vulnerabilidade externa pode ser combatida com o aumento de ativos com liquidez internacional (reservas), combinadas com políticas econômicas domésticas que protejam a moeda nacional frente aos ataques especulativos. Registre-se que esse aspecto melhorou bastante no segundo mandato, sendo que em 2009 as reservas externas do país ultrapassaram o patamar de US$ 200 bilhões, definitivamente uma marca histórica.
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GRÁFICO III – EVOLUÇÃO DA TAXA DE CRESCIMENTO DO PIB NO GOVERNO LULA
GRÁFICO IV – EVOLUÇÃO DA DÍVIDA LÍQUIDA DO SETOR PÚBLICO NO GOVERNO LULA (EM MILHÕES DE R$)
7 1600
PIB - Deflator implícito var. anual (% a. a.)
6 5
1400
1200
4
1000
3
800
2 1 0
Dívida líquida do Setor Público (em milhões R$)
600 400
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
-1
200 2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
-2
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Fonte: Banco Central do Brasil, 2010.
Fonte: Banco Central do Brasil, 2010.
Finalmente, uma implicação nada desprezível é o grande impacto da taxa de juros sobre a dívida pública líquida (Gráfico IV), que é a soma de tudo aquilo que o conjunto dos órgãos do Estado brasileiro (governo federal, estados, municípios e empresas estatais) deve. A origem dessa dívida diz respeito à: financiamento de novos gastos públicos em bens e serviços em qualquer nível de governo; gastos com juros sobre as dívidas contraídas em períodos anteriores; e gastos do governo central com a política econômica (monetária e cambial). Após a estabilidade econômica (Plano Real) ocorreu um crescimento enorme da dívida pública líquida, e o fator impulsionador desse crescimento não foram os novos investimentos públicos, mas sim as taxas de juros e os custos da política monetária e cambial. O crescimento da dívida interna ocorre porque, com a moeda sobrevalorizada, o país passou a apresentar grandes déficits, principalmente nas transações correntes, que incluem pagamento de juros e serviços e as remessas de lucros para o exterior. Para equilibrar as contas, buscou-se atrair capitais através de taxas de juros altíssimas, criando-se um círculo vicioso que faz a dívida interna líquida atingir valores absolutos espantosos.
Como o controle inflacionário é prioridade do governo e está todo assentado no manuseio da taxa de juros, seus reflexos são cada vez maiores sobre o endividamento público. Neste sentido, observa-se que a dívida líquida iniciou sua escalada vertiginosa após 1994, ano que se situava em R$ 70 bilhões. Em 1999 essa dívida passou para R$ 400 bilhões e em 2002 atingiu R$ 892 bilhões. Já no último mês de agosto de 2010 atingiu R$ 1 trilhão e 400 bilhões, sendo que o governo gasta atualmente, em média, R$ 150 bilhões ao ano com pagamentos de juros dessa dívida. Assim, quanto maior a taxa de juros maior será esse montante anual de gasto com amortizações. Aqui está uma questão essencial quando discutimos as duas dívidas, a externa e a interna. A dívida externa até antes de ser liquidada tinha uma taxa de juros que não passava de 2%, enquanto a dívida interna é regulada pela taxa SELIC. Esta remunerou extraordinariamente os detentores dos títulos da dívida pública, conforme podemos verificar ao analisar o movimento dessa taxa durante o governo Lula, fato comum também durante o governo FHC. Como a amortização dessa dívida exige quantias anuais elevadas, o governo acaba tendo que cortar gastos que poderiam ser direcionados para áreas essenciais, como saúde, saneamento, habitação, educação e infraestrutura. Mesmo com todas essas contradições resultantes dos instrumentos de política econômica, o gasto social no governo Lula aumentou consideravelmente até a crise de
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2008-2009. De uma maneira geral, nota-se que esse gasto passou de 11.9% do PIB, em 2002, para 13.45%, em 2008. Em grande medida, essa expansão se deve ao fato de que o governo efetivamente priorizou o combate à pobreza através de programas focalizados de transferência de renda, com destaque para o Bolsa Família, que atualmente está atendendo mais de 12 milhões de famílias qualificadas como pobres. Registre-se que nas negociações com o FMI em 2003, o governo Lula introduziu algumas condicionais sociais, visando diminuir restrições fiscais no sentido de propiciar condições para atender algumas das metas sociais de seu plano de governo. Na verdade, esta posição não é nova nas negociações, uma vez que o FMI vem atendendo a esses pleitos desde 1999, quando ocorreu a negociação com países asiáticos afetadas pela crise econômica que se abateu sobre aquela região.
CONSIDERAÇÕES FINAIS E PERSPECTIVAS PARA O PRÓXIMO PERÍODO
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A análise da política econômica do governo Lula, conforme afirmamos no início deste texto, não pode ser feita desconectada de uma contradição central: por um lado, logo após eleito, Lula afirmava que o povo queria um outro modelo econômico e social capaz de gerar crescimento e emprego e distribuir melhor a renda e, por outro, assumia o compromisso de manter a estabilidade macroeconômica do país, que foi atingida através de uma política exorbitante das taxas de juros. Do ponto de vista do emprego, observa-se uma grande mudança no período do governo Lula em relação ao anterior. Neste caso, houve uma inversão no mercado de trabalho, com os postos formais de trabalho atingindo, no ano de 2009, 52% da População Economicamente Ativa (PEA), percentual que se situava em 44% no ano de 2001. Com isso, estima-se que ao longo dos oito anos do governo Lula foram criados mais de 12 milhões de empregos formais, destacando-se o grande desempenho do mercado formal de trabalho entre os anos de 2005 e 2008, quando foram criados, em média, 1,5 milhões desse tipo de emprego por ano. Esse movimento do mercado de trabalho gerou efeitos correlatos sobre o comportamento dos salários, particularmente do salário mínimo, que tiveram ganhos reais durante todo período. Por ainda ser um preço monetário balizador da taxa real de salários na economia, esse crescimento real do salário mínimo desencadeou efeitos positivos sobre a participação dos salários na renda nacional, com uma evolução de 0,400, em 2002, para 0,425, em 2007. Esse avanço na participação dos salários sobre a renda nacional teve também um efeito auxiliar no sentido de reduzir a desigualdade de renda do país. Com isso, verifica-se
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que entre 2002 e 2009 houve uma efetiva redução da desigualdade de renda, com o Índice de Gini caindo de 0,59 para 0,54. Essa queda da desigualdade da renda deve-se, fundamentalmente, a maior desconcentração da renda do trabalho e aos efeitos das transferências públicas de renda (aposentadorias, pensões, bolsa Família e programa de benefício de prestação continuada). Apesar disso, não devemos esquecer que o Brasil ainda situa entre os países com a maior desigualdade de renda no mundo. Já do ponto do crescimento econômico o desempenho do governo Lula poderia ter sido melhor, considerando-se o cenário mundial amplamente favorável, conforme mencionado anteriormente. De qualquer forma, nota-se que ao longo dos oito anos do último governo a economia brasileira apresentou um crescimento médio anual de 3,46%. Se compararmos esse percentual médio com aquele apresentado pelos oito anos do governo FHC (2,4%), o resultado é bastante favorável ao governo Lula. Todavia, esses percentuais situam o Brasil entre os países com as menores taxas médias de crescimento do PIB dentre todos os países da América Latina no primeiro decênio do Século XXI. No entanto, esse desempenho poderia ter sido ainda pior, caso as medidas de política econômica adotadas após a crise de 2008 não tivessem gerado alguns efeitos positivos. Dentre essas políticas, destacam-se a intervenção governamental, via bancos públicos, na esfera creditícia, no sentido de financiar o setor produtivo privado nacional, bem como o consumo das famílias, como forma de sustentar a demanda agregada; e a ação da política monetária, tanto em termos da redução das taxas de juros como na liberalização dos depósitos compulsórios que antes eram recolhidos ao BC, evitando-se movimentos especulativos sobre a situação de liquidez do sistema financeiro do país. Mas as medidas anticíclicas mais efetivas ocorreram na esfera fiscal, quando o governo decidiu manter seus gastos, especialmente no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e nas transferências de renda, inclusive aumentando os atendimentos do Programa Bolsa Família; bem como reduzir tributos indiretos em vários setores. Essas ações de política econômica fizeram com que o Brasil fosse um dos “países emergentes” menos afetado pela crise financeira global. Mas isso não significa que não existem problemas e correções necessárias. Nesse sentido, alguns desafios permanecem na ordem do dia para o próximo governo. Dentre eles, destacam-se: a. Setor Externo: por um lado, torna-se necessário reduzir a volatilidade da taxa de câmbio como formar de estimular as exportações e reverter a tendência forte de queda da balança comercial observada após o início da crise de 20082009 e, por outro, é fundamental reverter também a tendência atual da composição da pauta de exportações que ainda tem participação expressiva de produtos primários e com baixo valor agregado;
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b. Política de Investimento Produtivo: é necessário estimular os investimentos (públicos e privados) no sentido de elevar a taxa de investimento da economia brasileira que se situa num patamar muito baixo (ao redor de 17% do PIB) comparativamente a outros países (na Coréia do Sul essa taxa supera 40%); c. Redução consistente da taxa de juros: é urgente e necessário diminuir as diferenças entre as taxas de juros praticadas internamente e as taxas do mercado internacional, evitando-se com isso o crescimento explosivo da dívida líquida do setor público e suas conseqüências deletérias sobre as finanças públicas;
GUIMARÃES, J. A nova economia política do Governo Lula. Revista Teoria & Debate, n.72, pp.27-31, Julho/Agosto de 2007. PAULA, João A. A economia política da mudança: desafios e equívocos do início do Governo Lula. Belo Horizonte (MG): Autêntica editora, 2003. PAULA, L.F. Uma alternativa de política econômica para o Brasil. Cadernos da Fundação Adenauer, n.2, 2003. PAULANI, Leda. Brasil delivery. São Paulo (SP): Editora Boitempo, 2008.
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