O Inesc e a agenda brasileira 2003/2006
BrasĂlia, abril/2003
© 2003, INESC
Conselho Diretor Jackson Luiz Pires Machado, presidente Ronaldo Coutinho Garcia, vice-presidente Maria Elisabeth Diniz Barros, 1a secretária Gilda Barbosa Cabral de Araújo, 1a tesoureira Pe. José Ernani Pinheiro, vogal Guacira César de Oliveira. vogal
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editora responsável Luciana Costa programação visual Projetual design gráfico ltda fotografia Ruy Faquini impressão Athalaia Gráfica e Editora ltda
I59
Jussara de Goiás Luciana Costa Ricardo Verdum Selene Nunes
Instituto de Estudos Socioeconômicos. O Inesc e a agenda brasileira 2003/2006. Brasília, 2003
132 p. : il.
Inclui bibliografia.
1. Brasil, políticas públicas. 2. Brasil, política e governo. I. Título.
CDD: 361.1 CDU: 364(81)
Sumário
Apresentação ____________________________________________05
Parte1: O novo cenário brasileiro 1. Introdução _____________________________________________07 2. O novo Brasil exige mudança cultural ________________________13 3. Cenários para a agenda política 2003/2006 ___________________19 4. Cenários para a agenda econômica 2003/2006 ________________29
Parte 2: Os temas prioritários do Inesc 1. Cenários no campo internacional __________________________ 44 2. Cenários no campo da cultura _____________________________49 3. Cenários no campo sócio-ambiental ________________________58 4. Cenários para a questão agrária ____________________________69 5. Cenários para a questão racial______________________________80 6. Cenários para a questão de gênero _________________________89 7. Cenários para a questão indígena ___________________________93
Parte 3: O papel das ongs e do Inesc 1. Introdução _____________________________________________99 2. O surgimento das ongs e sua evolução ______________________ 103 3. Uma breve história do Inesc ______________________________109 4. Pressupostos metodológicos _____________________________ 119 5. Princípios e procedimentos ______________________________ 125 6. A ação do Inesc ________________________________________ 127
Bibliografia _____________________________________________ 130
Apresentação O presente trabalho resultou de um seminário realizado pelo Inesc, em Brasília, nos dias 16 e 17 de dezembro de 2002, quando toda a equipe do Instituto discutiu textos produzidos por especialistas em diversos campos do conhecimento. As contribuições foram feitas por Sérgio Leite, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Questão agrária); Hamilton Faria, do Instituto Pólis (Questão cultural); Sueli Carneiro, do Geledés (Questão racial); Hélcio de Souza, do Inesc (Questão indígena); Guacira de Oliveira, do CFêmea (Questão de gênero); Mariza Veloso, da Universidade de Brasília, e Iara Pietricovsky, gestora do Inesc (Um olhar para o país e para o mundo e Uma breve história do Inesc). Alguns convidados compareceram ao seminário, como Elimar Pinheiro do Nascimento, da Universidade de Brasília (Cenário político); Reinaldo Gonçalves, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Cenário econômico) e José Augusto Pádua, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Cenário Sócio-Ambiental). Com os três, além da apresentação dos textos cedidos ao Inesc, houve debate e troca de informações com a equipe. O Instituto tem pautado suas atividades, historicamente, à margem esquerda do quadro político nacional. Assim, à parte os diversos cenários aqui apresentados, a questão de fundo que permeou todo o seminário diz respeito à atitude institucional do Inesc face a uma inédita situação constituída por um governo popular de claro compromisso com a esquerda e legitimamente eleito em pleito democrático. O objetivo desta publicação é construir a matriz teórica e política que servirá de base para orientar as ações do Instituto.
Iara Pietricovsky José Antônio Moroni Colegiado de Gestão do Inesc
O novo cenário brasileiro 1 - Introdução A eleição de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência da República Federativa do Brasil representa um marco histórico sem precedentes para o país e para a América Latina. Primeiro, trata-se não apenas da ascensão de um líder de extração operária; antes disso, Lula provém do próprio lúmpen da sociedade brasileira. Oriundo de uma categoria social originariamente excluída de qualquer conceito de cidadania, e tendo migrado de uma miserável região do agreste nordestino para a capital econômica brasileira, São Paulo, fez-se operário, tornou-se líder de classe, fundou o Partido dos Trabalhadores, em 1980, e desde então vem operando politicamente dentro dos parâmetros democráticos formalmente constituídos a partir da superação da ditadura militar que vigorou entre os anos de 1964 e 1985. Lula elegeu-se presidente da República depois de uma quarta campanha política. Foi eleito em segundo turno por mais de 60% dos votantes, sendo depositário, portanto, de enormes expectativas por parte de uma população esgotada primeiro pelo processo hiperinflacionário herdado do regime militar, depois pelo voluntarismo forrado de corrupção do ex-presidente Fernando Collor de Mello e, finalmente, por um modelo em que a estabilização da moeda implicou em privatizações em larga escala, estagnação econômica, desemprego crônico, violência social e desesperança.
7 Introdução
A eleição de Lula sobrepôs-se ao temor de que seu Governo promovesse uma ruptura radical do sistema econômico em vigor no Brasil. Afinal, vinha ele de uma tradição partidária de oposição sistemática a todo e qualquer Governo eleito desde o fim do regime ditatorial. O PT conduziu no Congresso Nacional uma sistemática pregação de rompimento com o Fundo Monetário Internacional e pela reestruturação unilateral de todos os contratos relativos às dívidas públicas externas e internas do país. Finalmente, em setembro de 2002, assumindo um perfil de tendência social-democrata na condução das coisas públicas, divulgou uma Carta aos Brasileiros onde se comprometeu com um regime de responsabilidade fiscal e de respeito aos contratos firmados, fossem nacionais ou internacionais. É importante retomar e ter presente os múltiplos significados da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva. Ela é emblemática sob diversos pontos de vista. Reveste-se de vários simbolismos imediatos e mediáticos que devem ser tomados em consideração para qualquer prospecção quanto ao jogo político dos próximos anos. Em primeiro lugar, representa a expressão mais bem acabada da mobilidade social ascendente brasileira. Uma expressão em retardo, na medida em que esta mobilidade ingressou em um processo de fossilização a partir da década de 1980. Os altos índices de crescimento econômico dos primeiros oitenta anos do séc. XX foram substituídos por índices medíocres, aquém da metade dos anteriores. Não apenas a superação desse processo de fossilização, mas também a de uma série de condições particulares da sociedade brasileira, que mantém ainda resquícios do período escravagista que caracterizou a maior parte de sua história, exigirão uma longa série de rupturas. Elas não poderão ocorrer no curto espaço de quatro anos de Governo. É preciso ter, no mínimo, uma perspectiva semelhante à da social-democracia escandinava, que governou durante aproximadamente setenta anos até alcançar o atual –e, em boa parte, em processo de desmonte- estado de bem-estar social. Quando nos referimos a rupturas, não limitamos este conceito aos campos econômico e social. Pensamos mesmo em termos culturais, entendida a cultura como a totalidade do nosso modo de vida e do desenvolvimento humano. Ela parte das nossas raízes, mitos e crenças e segue por nossas instituições, até nosso viver cotidiano e também o nosso mundo imaginário. Sem a estreiteza de um nacionalismo superado e o ufanismo do hino nacional, acreditamos na possibilidade de se construir um país melhor, com dignidade no cenário internacional e qualidade de vida humanizada para seus habitantes. Se a globalização é inevitável, que não seja apenas pela via da redução dos sonhos a uma conta bancária ou à mercantilização da alma, mas pela convivência entre pessoas, sociedades e países, e baseada na interculturalidade solidária de nossas experiências.
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É preciso encontrar a competência política para, dentro da democracia, ser reeleito seguidamente. O horizonte de uma coalizão popular democrática deve ser um horizonte de décadas. Tomando as palavras de Paulo Freire, hoje, como nunca, é necessário exercer a virtude da paciência civilizatória para que se alcance o patamar desejado de uma sociedade mais justa e fraterna.
Não que a desigualdade tenha uma relação automática e direta com o crescimento da violência, mas pode-se sugerir que ambos os termos estão associados no imaginário popular brasileiro. E do ponto de vista teórico, têm relações evidentes, embora ediatizadas.
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Em termos imediatos, todavia, a eleição de Lula é a expressão do cansaço da sociedade com a desigualdade social crescente que se tem traduzido, entre outros, no aumento da violência na sociedade brasileira.1 E também do cansaço da sociedade com uma política de malversação dos recursos públicos e com o frágil compromisso com a erradicação da pobreza. Por isso mesmo, a eleição de Lula é, finalmente, a expressão de um desejo pouco definido de mudança das políticas de estabilidade sem crescimento que o país tem conhecido nos últimos oito anos. É um apelo ao retorno do crescimento econômico que fez do Brasil uma referência no séc. passado. Quando mencionamos cansaço, esgotamento e desejo de mudança da sociedade, não a entendemos como um corpo homogêneo. Temos, certamente, uma parcela da sociedade que não quer ouvir falar em mudanças, uma parcela para a qual tudo tem caminhado bem. E temos outra parcela que não está sequer mencionada, não está integrada ao corpo da cidadania. São os setores excluídos da sociedade. Entre os incluídos, temos os mais críticos e os menos críticos. É preciso relativizar e ponderar as chamadas expectativas da sociedade. Quando afirmamos que a sociedade quer, é evidente que se trata de uma simplificação. A sociedade não é um singular; somos vários. Mas há um sentimento que nos converge em parte ou na maioria, o que não exclui um leque consi derável de divergências. O fato, porém, é que a sociedade quer mudanças, um sentimento claramente traduzido no resultado das eleições de 2002. Ainda que por hora não se obtenha uma reforma do Estado, é possível, com a máquina que aí está, funcionar muito melhor. Nós podemos, com essa máquina, ter programas mais racionais, ações mais efetivas. Vivemos um período de transição, um processo de esgotamento das tentativas de imposição de políticas neoliberais no país e a incapacidade de sua reprodução. Por isso Lula foi eleito. Uma transição significa o quê? Significa que o velho não se reproduz mais, porém o novo ainda não ganhou uma cara. Nós não sabemos como é o novo. E o novo pode ser uma cara velha, pior que a anterior, embora isso não seja provável.
9 Introdução
O Governo Lula não representa apenas uma substituição para melhor dos ocupantes do poder Executivo, mas uma mudança de eixo e de paradigma que, na melhor das hipóteses, dará início, pela primeira vez em nossa história, ao enfrentamento sistemático e substantivo do elitismo, da injustiça estrutural, da exclusão social, da privatização do estado e de outros aspectos perversos da sociedade brasileira. Aproveitar as oportunidades deste momento histórico para avançar na implementação do seu programa de trabalho será o caminho lógico para as organizações da sociedade civil, mesmo que para isso seja necessário selecionar os espaços estratégicos mais favoráveis e promissores. Traduzindo politicamente as considerações acima, pode-se afirmar que o novo Governo deve entender que o país quer mudanças, sem perder a manutenção da estabilidade econômica. A grande questão para Lula, portanto, será a de traduzir este sentimento em políticas públicas e medidas governamentais consistentes, impactantes e coerentes. Neste quadro, a interlocução com os movimentos sociais mais ativos do país será, portanto, de extrema importância. Deve-se ter em vista, no entanto, que Governo é Governo, movimento social é movimento social. Este deverá ser um princípio basilar a nortear as duas partes em jogo. O maior risco que as organizações representativas dos movimentos sociais correm é, ingenuamente, imaginarem que são ou estão no Governo após a eleição de Lula para a Presidência da República. Sendo a recíproca igualmente verdadeira: o Governo Lula, supondo-se representante legítimo do movimento social, e apenas dele, imaginando-o automaticamente cooptado aos seus desígnios, que são de muito maior amplitude. Alguns representantes dos movimentos acreditam ter chegado ao Governo com a eleição de Lula. A grande maioria dos sindicalistas, representantes de ongs e representantes de movimentos sociais, no entanto, acredita que o Governo Lula fará concessões, como já tem feito, às forças políticas conservadoras e reacionárias, mas que essas concessões não irão além do limite a partir do qual o Governo perderia credibilidade. Persistem questionamentos e preocupações com relação a acordos (feitos ou a serem feitos) entre o Governo Lula e o empresariado. Por exemplo, com os meios de comunicação, os banqueiros, os produtores de açúcar e álcool, as multinacionais, os grandes grupos econômicos em bancarrota, etc. A política de ampliação da base de sustentação política do Governo Lula deverá encontrar um limite que permita a governabilidade e, ao mesmo, tempo, a realização de reformas que atendam aos anseios, às esperanças e às exigências da maioria da população.
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Essa confiança na capacidade da nova classe dirigente é importante para a definição de estratégias e táticas de atuação do movimento social, que deve se manter atuante e crescer durante o mandato de Lula, mas não considerar-se adotado pelo Governo ou mesmo eleito como um parceiro preferencial. O movimento social não pode se transformar num braço administrativo auxiliar do Governo federal. A estratégia do movimento social deve ser montada em quatro estágios: 1) definir uma agenda clara de demandas, projetos e programas; 2) definir os interlocutores no Governo federal; 3) extrair compromissos específicos, com prazos determinados; 4 ) cobrar resultados, reconhecer êxitos e criticar fracassos. Para ilustrar, podemos citar dois exemplos de situações que mostram em que ponto se encontravam determinados movimentos sociais no período de transição anterior à posse de Lula. O primeiro refere-se às organizações de defesa de direitos humanos que não lograram definir os interlocutores no Governo de transição, isto é, estão travadas no estágio 2. Isso parece estar ocorrendo com os servidores públicos federais. O segundo caso refere-se ao Movimento dos Sem-Terra, o mais significativo da sociedade civil brasileira, que já definiu os seus interlocutores no Governo Lula e, muito provavelmente, já se encontra no estágio 3 e, quem sabe, caminhando rapidamente para o estágio 4. As ongs que se tornarem um braço auxiliar administrativo do Governo federal tenderão a se debilitar e a enfraquecer o próprio Governo. Partido político é uma coisa, Governo é outra; Governo é poder, movimento social é contra-poder. A cooptação deverá ser rejeitada, ao mesmo tempo em que as ongs devem se propor a colaborar ativamente com o Governo Lula, mas resguardando a independência e a posição crítica. Mantém-se, assim, a regra clássica da política: entregando-se o acordado, mantém-se o beneplácito do apoio crítico; caso contrário, resta a oposição com transigência declinante. O movimento social deve reagir, sempre que necessário, de forma crítica, construtiva e independente. A diferença em relação ao Governo anterior é que agora se abre um campo de colaboração, não obstante seja observada uma taxa de complacência decrescente com o tempo. Não necessariamente uma taxa linear; ela pode cair abruptamente dentro de seis meses. Devemos ter em mente o fato de que o Governo, qualquer Governo, tende a seguir a linha de menor resistência, porque é o caminho mais fácil, especialmente no que diz respeito às negociações com o Congresso Nacional.
11 Introdução
Um líder político tem uma lógica própria. Ele não quer saber de problemas. Ele quer a solução mais fácil, a de menor conflito. A solução da cooperação e da harmonia. No limite, obteríamos a cooperação plena entre as classes sociais, um alargamento da base governamental no Congresso, em que todos acham que são Governo. Não há conflito e, portanto, não há política; então caímos no fascismo. O papel do movimento social e das ongs é o de permanentemente colocar resistência. Devemos cuidar, no entanto, para que a manutenção de posições críticas muito rígidas em relação ao novo Governo não levem à ocorrência dos tradicionais fenômenos de autofagia, divisionismo e maniqueísmo das esquerdas, dos quais temos muitos exemplos históricos. Trata-se de um fio de navalha sobre o qual todos estaremos caminhando. Lula terá que arbitrar ganhos e, principalmente, perdas. O cenário otimista do contrato social contempla, certamente, diferentes tipos de jogos. As lideranças do PT estão sendo francas quando transmitem ao conjunto da sociedade a mensagem de que os desafios são enormes e que não haverá milagres. Da corrente de esperança que dominou o país no início do Governo Lula, permanecerão as idéias-força presentes no pronunciamento de 28 de outubro de 2002: otimismo, firmeza e paciência. Um ator político fundamental neste cenário é o Congresso Nacional, que deverá ter um papel de grande protagonismo nas decisões políticas do Governo Lula. A começar pelo fato de o PT ter obtido, de forma inédita, a maior bancada na Câmara dos Deputados e a terceira maior no Senado. Um grande exercício será a composição de alianças. A possibilidade de construção de uma base parlamentar majoritária, em especial no que tange aos temas cruciais da agenda política nacional, dependerá da capacidade do Governo Lula de trazer o PMDB para uma composição ampla. Este jogo, caso seja bem sucedido para o Governo, poderá significar uma rápida definição sobre temas cruciais, tais como as reformas previdenciária, trabalhista, tributária e política, só para citar alguns dos mais importantes. Cabe ressaltar que estas matérias permaneceram latentes por oito anos, em decorrência da oposição do próprio PT e aliados, além de políticos fisiológicos supostamente aliados à administração do presidente Fernando Henrique Cardoso. Agora, na condição de Governo, o PT tudo fará para assegurar a aprovação desses projetos.
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Os governadores recém-eleitos terão um papel preponderante ou mesmo decisivo na aprovação de tais reformas. A cooptação desses dirigentes deverá ser uma estratégia largamente utilizada pelo novo Governo. Procuramos ressaltar aqui tudo aquilo que nos pareceu mais premente e que deverá ocupar a atenção dos atores sociais, culturais, econômicos e políticos, assim como toda a opinião pública brasileira. Algumas questões, de forma insofismável e muito mediática, como o problema da relação entre o Executivo e o Legislativo ou o processo de mudanças que o próximo Governo deverá ser capaz de implementar, certamente estarão presentes. Outras menos, como a capacidade gerencial do Estado. Será de fundamental importância acompanhar estas questões ao longo dos anos próximos.
2. O novo Brasil exige mudança cultural A cultura tem sido tratada em nosso país como um artigo de segunda classe, dispensável, componente menor do rol das políticas sociais. Não é vista como prioridade estratégica dos Governos, como componente essencial da qualidade de vida e do desenvolvimento humano. Nesta agenda, pensamos cultura como a totalidade do nosso modo de vida – que parte das nossas raízes, mitos e crenças, e segue por nossas instituições, até o viver cotidiano e também o mundo imaginário. Certamente não abordamos todos estes temas; porém, procuramos não limitar a nossa compreensão a um departamento, uma fatia da realidade, mas a um cenário complexo onde pessoas e coletividades vivenciam seu cotidiano e buscam seus sentidos de vida. Sem a estreiteza de um nacionalismo superado ou o ufanismo do hino nacional acreditamos na possibilidade de se construir um País melhor, com dignidade no cenário internacional e qualidade de vida humanizada para seus habitantes. Se a globalização é inevitável – que não seja apenas pela via da redução dos sonhos a uma conta bancária ou a mercantilização da alma – mas pela convivência entre pessoas, sociedades e países baseada na interculturalidade solidária de nossas experiências. Certamente, o mundo mudará pela cultura e não pela sua economia. Como diz Pablo Neruda: “Si se termina el amarillo con qué vamos a hacer el pan?”.
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Um novo Brasil não poderá prescindir da cultura para encontrar o seu rumo, pois terá que acrescentar humanidade à vida das pessoas. É esta a missão mais fascinante da cultura. Sem dúvida, o momento é propício para que se instaure um novo debate no país, que não confine a cultura a um pobre cenário onde as leis de incentivo ganham status de prioridade e a realização dos nossos valores mais caros é impedida pela perversa frieza do mercado. O Brasil da inclusão cultural entenderá cultura como política de Estado, e para isso repensará programas em andamento e, decididamente, tratará de inverter prioridades. Deixará a cultura de mercado para o mercado, enquanto se ocupará preponderantemente do patrimônio cultural, que não tem possibilidade de se afirmar independente da ajuda do Estado e de manifestações culturais vitais à vida nacional. Sem dúvida, este caminho contrariará interesses, a prática do clientelismo cultural e alguns aspectos da governabilidade, pois estará mexendo na hegemonia de grupos que construíram durante muitos séculos um imaginário de nação de mentes colonizadas pelo mundo global e pela visão humana estreita e dominadora das elites. Muitos dos nossos intelectuais caem facilmente no atoleiro da cultura como arte e submetida às leis de incentivo. Artistas perdem completamente a visão do país. O fato é que estamos frente a uma desagregação cultural de grandes proporções. Além de vivermos uma crise de paradigmas no campo do conhecimento – em que sua maior evidência é a incapacidade da inteligência de encontrar soluções para os grandes problemas da humanidade, estamos imersos numa cultura da barbárie. Apesar disso, os grandes eventos, institutos privados de pesquisa e o cinema brasileiro andam muito bem com o dinheiro público. É preciso deixar claro que a nossa compreensão é suficientemente larga para que não limitemos os processos culturais ao mundo dos pobres do país; no entanto, é tempo de definição de prioridades e inclusão no cenário do desenvolvimento humano daqueles que vivem o apartheid cultural. Assim, grandes eventos de caráter público ou grandes produções de qualidade cultural podem e devem ser apoiadas pelo Estado, desde que a maior parte dos santos não fique sem camisa. Não podemos perder este momento privilegiado para que as políticas públicas de cultura assumam importância no conjunto das políticas sociais do país.
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A crise que ora atravessamos não é apenas do capitalismo ou de suas formas de administração, ou mesmo da incompetência dos Governos, mas uma crise que atinge a totalidade da existência de todas as sociedades. Já não é mais possível vivermos e nos desenvolvermos da mesma forma, sob pena de nos auto-destruirmos. É uma profunda crise de valores e de sentidos do nosso modo de vida contemporâneo sustentado no desenvolvimento material, na competição e no individualismo consumista. Alguns países como o Brasil vivem um lado mais dramático deste modo de vida que exclui, elimina e segrega milhões de pessoas e impõe um mundo terrível de fome, violência e discriminação. Chegamos a um ponto limite e para superarmos a crise civilizatória temos que fortalecer a cultura do ser e afirmar identidades e diferenças, além das melhorias materiais e de riqueza do imaginário. A eleição de um novo presidente não significa o melhor dos mundos, mas o renascimento de um processo necessário para revitalizar o sonho e a possibilidade de uma vida diferente. No lugar do tosco pragmatismo econômico das elites, parece surgir um campo fértil para novas vivências comunitárias, o exercício de novos direitos e novas experiências democráticas de gestão e representação. Parece que a nossa subjetividade coletiva volta a fermentar. Um reencantamento da política paira no ar. Trata-se de um momento complexo e inédito: complexo porque o desenho das possibilidades de realizações passará por muitas mediações e caminhos tortuosos – idas e vindas, diálogos e embates, tensões e encontros, erros e tanato. Inédito porque jamais fomos governados por alguém que não tenha saído do celeiro de cartas marcadas das elites culturais ou dos poderosos grupos econômicos. Como disse Antônio Cândido, em artigo na Folha de São Paulo, de 28 de outubro de 2002: “....ricos ..ricos e pobres, radicais e moderados, cultos e incultos lhe abriram um crédito largo de confiança, esperando com certeza que possa contribuir para as transformações de que o país precisa. (...) No Brasil, a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva simboliza a incorporação do ‘quarto Estado’ às esferas que decidem o rumo do país “. Parece não haver dúvida de que o processo do novo Governo terá suas limitações. Moderação, política de alianças, flexibilidade, coalização multiclassista, convergência de vários setores e pacto social parecem ser a marca do novo Governo. Mas seu programa é muito claro: embora pretenda equilibrar contas, controlar inflação e déficits, aposta na promoção do desenvolvimento humano e na inclusão social.
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Se ainda não se sabe o que predominará – as urgências e a voz dos atores ou as necessidades da governabilidade – espera-se que deverão ocorrer reformas e acertos nas políticas sociais. Abre-se, portanto, um grande momento para a construção de políticas de inclusão em todos os campos da sociedade. Isso somente será possível se a sociedade se colocar com seus apelos, pressões, parcerias e formulações a serviço da construção do desenvolvimento humano. Esta é a grande oportunidade neste novo ciclo histórico. Até aqui, foi priorizada a cultura do ter – a economia, a estabilidade da moeda, a inflação. Agora, vivemos a possibilidade de passarmos a um novo patamar: a cultura do ser como condição para o desenvolvimento social. E este é um momento privilegiado para concebermos um novo país. No campo cultural, consideramos quatro importantes princípios: A democracia: defendemos a importância de consolidarmos a democracia, ampliando o caráter democrático das gestões nos âmbitos federal, estadual e municipal; dos órgãos legislativos e dos campos de articulação e representação da sociedade civil, bem como a democracia direta. Aqui é importante desenvolver valores voltados para uma verdadeira cultura participativa. A diversidade: o direito à diferença, seja na afirmação das pessoas, coletividades e do país, garantindo sua identidade no cenário das nações. Iguais, mas diferentes. Este deve ser o nosso lema. O reconhecimento das culturas, suas raízes; o direito à ancestralidade, mas também o direito à invenção; o popular e o erudito; o profissional e o experimental; o vivido e o construído; o tradicional e o moderno – nenhuma cultura autêntica e verdadeira poderá ser negada. Estamos construindo vários mundos possíveis, de várias cores. O mundo do futuro é multicultural e se constrói na interculturalidade entre os diferentes. A paz: não há desenvolvimento humano sem paz; portanto, criar uma cultura da paz e da não-violência é central num cenário marcado por uma cultura que se constrói pela eliminação ou exclusão do outro. A cultura da paz não nega o conflito, a luta, nem reivindica imaginários homogêneos, ou mesmo a paz dos vencidos. A paz é ativa e se constitui como sedimento dos processos culturais democráticos. A paz, mais do que uma palavra de ordem, constitui-se no mais contundente paradigma de uma sociedade para superar a barbárie da civilização.
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A ética: há muitos anos, cresce um movimento pela hegemonia da ética, como dizia Betinho. Não há cultura democrática ou democracia cultural sem a promoção de valores éticos e da moralidade pública. Tanto na sociedade civil como nos Governos, é preciso estabelecer os limites do público e do privado e um comportamento responsável frente aos bens públicos; bom como fiscalizar a atividade parlamentar para que imponha-se a ética na vida pública. Sem prevalecer a ética no mundo da política, o desenvolvimento cultural não se efetivará. A partir destes princípios, podemos definir algumas prioridades para o atual momento:
Prioridades para o atual momento • A construção de políticas públicas de cultura • A inversão de prioridades e a inclusão cultural • A construção da esfera pública da cultura • A implementação de políticas públicas de enfrentamento do processo de mercantilização da cultura • O reconhecimento da identidade do “ser Brasil” • A hegemonia da ética e a consolidação de uma cultura democrática • A democratização dos meios de comunicação • O desenvolvimento de uma cultura participativa • A criação de uma cultura de paz e da não-violência • O reforço do protagonismo jovem e a compreensão das novas sociabilidades • A democratização das leis de incentivo à cultura • A revitalização da utopia e o reencantamento do mundo
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2.1 Políticas públicas de cultura
Precisamos substituir a idéia de políticas culturais pela de políticas públicas de cultura. Políticas culturais são as tradicionais, focadas na cultura em sentido restrito, muitas vezes definidas a partir dos gestores, sem caráter democrático ou público, atendendo especificidades, geralmente voltadas para o desenvolvimento das artes, departamentalizadas em uma secretaria ou ministério. Políticas públicas de cultura envolvem o sentido da constru ção de uma esfera pública não-estatal, participativa, com diálogos e escutas culturais, intersecretariais; é a cultura entendida em sentido amplo. Uma cultura realizada com o esforço de todos e não simplesmente realizada para alguns. Uma cultura construída com vários atores, tradicionalmente não reconhecidos como culturais no sentido restrito da palavra. Envolver-se na criação de políticas públicas de cultura é prioridade no cenário que se avizinha e isso tem muitas implicações: abrir campos de diálogo (nem todos os gestores do novo Governo têm a cultura da conversa, apesar dos apelos presidenciais); estabelecer fóruns ágeis onde Governo e sociedade possam conversar e deliberar, superando assim a cultura inacessível e burocrática que tem marcado os diálogos com gestores públicos; construir, Governo e sociedade, uma esfera pública que possa definir prioridades, formular políticas e fiscalizar ações e relações públicas e privadas. Como o Brasil não tem tradição de políticas públicas, e muito menos no campo cultural, sem dúvida isso será feito com tensões, idas e vindas, mas será fundamental garantir o desenvolvimento de uma cultura do diálogo permanente entre a sociedade civil e o Governo. O Parlamento, modificado e fortalecido pelas últimas eleições, se constituirá em campo privilegiado de debates de temas relevantes, de projetos e de potencial impulsionador de mudanças na cultura política. Será o centro da negociação, das temperaturas políticas, das viabilidades de pactos sociais, pois as reformas e a governabilidade estarão ali referenciadas, sem negar o protagonismo da sociedade que poderá ser relevante nesta conjuntura. Ali, embora conservadores radicais tenham perdido força, ainda é muito marcante a presença do fisiologismo, do “é dando que se recebe”, e de um conservadorismo alheio a mudanças. As entidades da sociedade civil preocupadas com intervenções no campo parlamentar deveriam pensar em formas de atuação voltadas para a geração de novos valores de cultura política no Parlamento, incluindo a sensibilização, as ações simbólicas e a capacitação de parlamentares para a ação legislativa. Enfim, o novo cenário oriundo da mobilização pela democratização exige a construção de um campo político diferenciado, que se inicia pelo diálogo e deve envolver a sociedade na construção de políticas de inclusão.
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Um dos nossos maiores desafios é fortalecer os atores culturais, sua capacidade propositiva para gerar propostas e políticas e impulsionar um clima cultural favorável para repensar o país que queremos. Sabemos que as políticas de inclusão social privilegiarão o combate à fome, a habitação, o saneamento, o transporte urbano, etc. Mas, e este é o papel dos agentes culturais, deve-se abrir espaços para a inclusão da cultura como política relevante. Some-se a isso a importância de se desconstruir a cultura burocrática que constitui a vida das instituições: sabemos que o tempo burocrático e o tempo cultural não combinam, pois a cultura é muito ágil e mutante. Neste sentido, tornar mais ágil o Estado, mais transparente e permeável à sociedade, reforça a importância da reforma administrativa e da reforma do Estado.
3. Cenários para a agenda política 2003/2006 A agenda política nacional dos próximos quatro anos pode ser abordada sob três óticas distintas, que podem ser complementares ou não. São elas a do próprio Governo constituído, a da oposição e a da sociedade civil, particularmente de seus segmentos organizados. Isso não significa que teremos três agendas, mas perspectivas diferentes e mesmo antagônicas: o que é imprescindível para uns é secundário para outros. Cada qual tentará definir a agenda em função de seus interesses e é este jogo que irá definir de fato qual será a agenda política nacional a ser efetivamente cumprida. É impossível pretender esgotar a questão nestas diversas abordagens, mas parece pertinente sinalizar alguns temas, buscando, sobretudo, a sua representatividade. Não se pode esquecer que as eleições presidenciais tiveram como resultado, pela primeira vez na história do país, o fato de que o Executivo Federal estará nas mãos de um líder de esquerda de extração operária e popular, o que atrairá resistências dos segmentos que terão seus interesses contrariados. Neste sentido, o primeiro macrodesafio do Governo Lula será justamente o de introduzir mudanças para satisfazer às expectativas de populares e da esquerda, sem que contrarie em demasia outros interesses que tornem inviável o seu Governo.
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Assim, os cenários do próximo Governo encontram-se, de forma simples, entre o “nada acontecer de novo” (cenário 1), pois os interesses dominantes não permitiram, ou ganhar foros de ingovernabilidade (cenário 2), pois contrariou interesses fortes em demasia para possibilitar o exercício do Governo efetivo. Em qualquer dos casos, haverá uma enorme frustração nacional e internacional. De toda forma, entre os dois extremos encontram-se diversas alternativas com maiores probabilidades de efetivação. Mas estas dependem da evolução de algumas incertezas críticas. A primeira incerteza crítica reside na evolução do contexto econômico internacional. E neste, em particular, da capacidade das economias norteamericana e européia se recuperarem, o que será difícil com o desencadeamento da guerra contra o Iraque. Em caso de recuperação, o Brasil terá oportunidade de aumentar suas exportações, o que será uma forte contribuição para a retomada do desenvolvimento. Em caso contrário, as condições serão pouco favoráveis e o macrodesafio da retomada do crescimento econômico terá mais restrições de realização. A segunda incerteza crítica reside na capacidade do Executivo de obter apoio no Legislativo, sem o qual a governabilidade pode ser comprometida. As condições, neste campo, não são de todo favoráveis. O PT, com sua aliança eleitoral de primeiro turno (PL e PC do B, basicamente), não teria condições de ter maioria parlamentar. Com seus aliados de segundo turno (PPS, PSB, PDT e PTB), melhora sua situação, mas continua em minoria. Portanto, necessita ampliar suas alianças, incluindo, provavelmente, uma parte ou o todo dos outros três partidos importantes no Congresso Nacional – PMDB, PFL e PSDB. Particularmente o primeiro, visto que os dois restantes tendem a ocupar o espaço da oposição. O destino do PMDB, porém, é uma incógnita, dividido que está entre tendências fratricidas – divisão que, até o fechamento deste trabalho, impediu o partido até mesmo de marcar a data de uma convenção nacional para definir seus rumos políticos. O PFL já posicionou-se oficialmente como oposição. As negociações com o PSDB não estão completamente afastadas, mas são sempre difíceis por motivos distintos e conhecidos. Outra dificuldade reside no âmbito dos próprios aliados do segundo turno eleitoral: o PSB e o PPS têm candidatos para as próximas eleições presidenciais, o PDT é um partido dirigido por uma figura temperamental e o PL e PTB são partidos fisiológicos. Portanto, a incerteza crítica é de monta e ninguém pode dizer a trajetória de sua evolução nos próximos quatro anos.
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Conceito vago, sobre o qual reside uma longa discussão teórica, mas do qual não se pode prescindir completamente.
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Finalmente, a última incerteza crítica refere-se ao quadro da governança, mais particularmente à capacidade do PT de implementar políticas que assegurem a estabilidade monetária, produzam a retomada do crescimento econômico e tenham impactos significativos nos campos social e ético. Sobretudo que produzam impactos com efeitos visíveis e aceitos pela opinião pública2. As dificuldades residem na complexidade dos diversos interesses em jogo, mas também na inércia da máquina administrativa e na competência, ainda não provada, de seus gestores futuros. Houve avanço nos últimos anos, mas a capacidade gerencial do Governo passado foi um de seus pontos fracos, em parte pelas resistências às mudanças, que são próprias da Administração Pública. A evolução dessas incertezas críticas, como variáveis de grande poder de influência e grande nível de complexidade, definirá o arcabouço sobre o qual se erguerão os processos decisórios dos múltiplos atores que compõem a cena política. Mas nela situa-se, também, um conjunto de macrodesafios ao Governo Lula, que são aqui apresentados de maneira sintética e que constituem elementos centrais da agenda política.
3.1 Primeiro macrodesafio: Lula assume a Presidência da República com enormes expectativas, administrar as expectativas tanto nacionais quanto internacionais, tanto partidárias quanto populares. Neste último aspecto, é de praxe que a eleição de um Governo de esquerda reflita sobre o aumento de demandas. Os excluídos e preteridos de todos os quilates tendem a ver em Governos deste perfil a possibilidade de resposta às suas demandas nunca respondidas e, em grande parte, reconhecidas como justas pela opinião pública. As demandas populares por emprego, aumento salarial, reforma agrária, habitação, saúde e educação, entre outras, deverão tornar-se cada vez maiores. E mais ainda, se não tiverem sinais claros de construção das alternativas em tempo hábil. Normalmente, as demandas podem ser geridas, mas apenas se forem confrontadas ao casamento da visibilidade de processos com a possibilidade de respostas. A busca do diálogo, a implementação de câmaras temáticas com participação de atores sociais relevantes e de acordos e pactos com os diversos segmentos sociais serão caminhos importantes a serem trilhados, sobretudo no primeiro momento. Será uma enorme inovação na política nacional. Porém, serão irrelevantes se não produzirem resultados e, em especial, se estes não ganharem visibilidade e aceitação da maioria.
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O primeiro macrodesafio do Governo Lula será, portanto, o da sua capacidade de criar um espaço de diálogo e encaminhamento de resolução, a respeito das grandes demandas sociais e econômicas. Em outras palavras, a criação de um espaço de explicitação organizada de demandas e de negociação aberta que possibilite criar acordos consistentes e de alto respaldo social, formalizado ou não. Conselho Geral ou Câmaras temáticas são apenas materializações eventuais que podem vir a vingar ou não. Isto poderia se traduzir, inclusive, em um macrobjetivo de seu Governo: modificar a maneira de governar. Uma espécie de tradução da maneira petista de governar, construída ao longo das diversas experiências de seu partido em Governos locais.
3.2 Segundo macrodesafio: A democracia é uma flor nascente no solo brasileiro. No século XX, ela foi consolidar a democracia mais uma exceção do que uma regra. Com a queda da ditadura militar nos anos 1980, o país conheceu, logo após as primeiras eleições presidenciais livres e diretas, o primeiro choque com a renúncia - impeachment do presidente eleito, Collor de Mello, mas passou bem pela prova. A continuidade democrática foi assegurada com a posse do vice-presidente. O Governo FHC, apesar de todos os males, contribuiu para o processo de consolidação da democracia, garantindo as eleições de sua sucessão e a liberdade de expressão e organização, após ter introduzido a reeleição, algo estranho às tradições brasileiras. Espera-se que o Governo Lula amplie a democracia, rompendo o cerco da cidadania regulada, na medida em que parte da sociedade brasileira encontra-se excluída. Apesar do avanço de nossa legislação e da mobilidade social, uma parte de nossos conterrâneos encontra-se sem possibilidades efetivas de participar da vida política, por falta de meios ou por pura discriminação.
Filósofa e socióloga alemã de origem judaica (1906-1975).
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Esse macrodesafio desdobra-se, na realidade, em um conjunto de desafios articulados; o primeiro dos quais é o de iniciar o processo de erradicação da pobreza, elevando a auto-estima das camadas mais pobres. Condição sine qua non para a participação política, na expressão de Hannah Arendt3. Em seguida, assegurando uma melhor participação e controle da sociedade sobre os órgãos e as ações estatais, com o fortalecimento dos conselhos já existentes e a criação de outros. Neste sentido, a busca de uma intermunicipalidade pode ser uma saída para evitar o nepotismo e o fisiologismo marcantes na municipalidade brasileira, sobretudo nas menores, onde habita um número cada vez maior de pessoas.
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Afinal, é de notório conhecimento que o controle social não é apenas uma condição básica para a ampliação da democracia, como também um sistema imprescindível para assegurar a boa aplicação dos recursos públicos, com redução sensível da corrupção. Uma das questões centrais que se colocam hoje, não só para as organizações não-governamentais como para os movimentos sociais e populares é justamente a ampliação dos espaços democráticos, para o que, necessariamente, é preciso estender a ampliação do espaço político. Nós ainda não progredimos o necessário na definição de uma nova estratégia de participação e de democratização do Estado e da sociedade por meio dos conselhos, sejam eles municipais, estaduais ou federais, que seriam instrumentos privilegiados para a finalidade pretendida. É necessário inventar e implantar uma nova concepção de gestão do Estado para que estes conselhos cumpram efetivamente o seu papel. Nesse sentido, uma reforma do Estado, ainda que restrita, torna-se realmente imprescindível para que os conselhos deixem de exercer apenas um papel de apêndice e passem a operar efetivamente dentro de seus quadros, como forma de ampliar a democracia representativa e participativa. E, de fato, tanto na campanha como no próprio programa de Governo do PT, não são apontados muitos caminhos para essa necessária reforma do Estado. Trata-se de uma contradição, porque a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva era um depositório de todo o movimento em torno de uma democracia mais participativa e com novos formatos de representação popular. Ainda sobre as estratégias do novo Governo, é preciso questionar as iniciativas voltadas para a construção de um novo pacto ou contrato social. Acreditamos que o conceito de contrato social é bem mais amplo, devendo incluir, além dos velhos e conhecidos atores – empresariado, igrejas, sindicalistas e um número reduzido de representantes ligados às organizações não-governamentais – outros que são realmente novos. Por exemplo, representantes da economia informal, das favelas e de movimentos culturais como o hip-hop, e aqueles que participam de toda uma nova discussão sobre gênero. Fica o receio de que o pacto social proposto pelo Governo Lula se assemelhe ao proposto em 1986 na Nova República do Governo José Sarney – um movimento de elite que exclua o restante da sociedade. Isso não pode acontecer. Que venham, no começo, os velhos atores – é impossível evitar. Os novos atores já são visíveis para alguns, enquanto para outros têm visibilidade zero. Haverá, certamente, um processo de incorporação e de afirmação desses novos atores. O fato de se criar um espaço formal, no entanto, pode ser de fundamental importância, desde que não se repitam os velhos vícios.
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E não pode o Governo Lula prescindir de lutar para garantir uma reforma nas legislações eleitoral e partidária para que os partidos políticos se fortaleçam, a impunidade parlamentar se restrinja ao exercício do mandato e a obrigatoriedade do voto se mantenha.
No resultado das eleições de 1986, o PMDB tinha, sozinho, maioria na Câmara dos Deputados.
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No Governo FHC, bastavam os três maiores partidos para constituir a maioria na Câmara. E, de certa forma, os três o apoiavam. A sua base governamental parlamentar foi sempre largamente majoritária ao longo dos oitos anos.
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Não se pode esquecer que um dos fantasmas que assaltam a nossa democracia reside no risco da fragmentação partidária. Se nos anos 1980 necessitávamos de um ou dois partidos para constituir maioria no Parlamento (leia-se Câmara dos Deputados)4, nos anos 1990 este número deslocou-se para dois ou três5. Hoje, os três partidos de maior bancada, se juntos estivessem, não formariam maioria (240 sobre 513). Seria necessário um quarto partido. A tabela 1 mostra a mudança da legislatura passada para a atual. ��������
������������������������������������������������� ����� (*) Considera-se grande partido aquele que tem 50 deputados ou mais; médios, aqueles que têm de 20 a 49; os pequenos são aqueles que têm entre 10 e 19 parlamentares. Os restantes são considerados micropartidos. Trata-se, evidentemente, de uma classificação empírica, mas que tem respaldo político na tradição brasileira.
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Há armadilhas diversas neste processo, não apenas por parte dos partidos e parlamentares que se consideram prejudicados no caso de uma reforma política, mas também na própria concepção de reforma. Confundir, por exemplo, modernidade com voto não-obrigatório é uma delas, sob o argumento, insustentável, de que o mesmo não existe nem nos EUA nem na maioria dos países europeus. Não se pode esquecer que o exercício dos direitos como um dever é uma condição sine qua non no processo de educação política. Disso já sabiam os gregos antigos, que tinham a participação política por parte dos atenienses adultos (no caso apenas do sexo maculino) como um dever de cidadania. A nossa democracia necessita desta obrigatoriedade para sair da adolescência.
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Em 2002, a eleição de um deputado federal do Prona com apenas 279 votos soou no ouvido de alguns como uma enorme distorção do processo eleitoral. O que não deixa de ser verdade, mas nos países europeus há distorções piores.
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7 O governador do Amapá, João Alberto Capiberibe, adotou um sistema de divulgação das licitações, compras e contra tações do Governo na Internet, no seu segundo mandato, que merece ser mais conhecido. É claro que levantou contra si múltiplos e difusos (senão confusos e escusos) interesses.
Outro risco, entre muitos que poderiam ser citados, é cair no alçapão do voto distrital. Se este sistema cria proximidade entre candidato e eleitor, aprisiona a política local e permite, teoricamente, desvios muito maiores do que a atual legislação.6 Talvez uma saída seja o sistema misto (distrital/ proporcional). De toda forma, é preciso ter presente que não existe sistema eleitoral partidário perfeito. Torna-se indispensável, em qualquer processo de reforma, considerar devidamente os traços da cultura nacional. Se não forem minimamente respeitados, ocorrerá aquilo que todos os brasileiros mais ou menos bem informados sabem: a lei é promulgada mas não pega. Finalmente, mas sabendo que estamos longe de esgotar o tema, ganha relevância a questão da transparência, melhor dito, da circulação e acesso às informações por parte dos atores coletivos ou individuais. É fundamental que o orçamento seja legível e acessível aos cidadãos comuns; que o resultado das ações governamentais seja de conhecimento público, em particular, todas aquelas ações que implicam o uso de recursos públicos importantes; que as licitações ocorram em um mercado “sem cartas marcadas”, e assim por diante.7
3.3 Terceiro macrodesafio: O terceiro macrodesafio não será fácil e estará na pauta das discussões, sogarantir a governabilidade bretudo em 2003, mas poderá se prolongar por todo o mandato do presidente Lula. Trata-se da capacidade de articular uma maioria no Congresso Nacional; em princípio, condição sine qua non da governabilidade. Apesar do PT ser o maior partido na Câmara dos Deputados, somados os seus votos com os dos aliados eles ainda não são suficientes para a obtenção de uma maioria tranqüila. Vide, neste sentido, a tabela 2.
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(*) Não se pode esquecer que no momento da abertura da atual legislatura os partidos já estavam modificados, pois alguns parlamentares mudaram ou estão em vias de mudar de partido em função de seus interesses políticos pessoais. Assim, alguns partidos como o PL, entre outros, cresceram, atraindo parlamentares eleitos por outras legendas. O PSD e o PST, por exemplo, fundiram-se com o PTB. A legislação prevê em 2006 restrições para os partidos terem acesso à propaganda eleitoral gratuita, exigindo um mínimo de 5% dos votos nas eleições para o Congresso Nacional, o que estimula a extinção dos micropartidos.
(**) Partidos que não tinham nenhum representante
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A soma dos deputados de todos os partidos que estiveram com Lula no segundo turno (PT, PC do B, PL, PSB, PDT, PTB, PPS e PV) alcança o número de 249, número que corresponde à maioria simples na Câmara. Se o PMDB formar com a oposição que se desenha, reunindo PFL, PPB e PSDB, esta terá maioria pouco mais folgada: 254 deputados. Portanto, atrair o PMDB para a base governamental, assim como parlamentares isolados de outros partidos, será fundamental. Tarefa nada fácil, como é sabido, tendo em vista a natureza deste partido, considerado na literatura política como o partidoônibus, onde qualquer um parece caber. Uma alternativa será a de pinçar, em número suficiente, os divergentes dentro dos partidos que constituírem a oposição. No Senado, a situação não é, igualmente, fácil. Os partidos que apoiaram explicitamente Lula (PT, PDT, PSB, PTB, PL, PPS) somam 30 senadores, faltando 11 para alcançar a maioria. O que o PMDB (19) poderá lhe dar, sobejamente, caso venham a fechar uma aliança.
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(*) Conforme os resultados das eleições de 2002, e lembrando que nestas eleições foram eleitos apenas 2/3 do Senado.
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Assim, é esperado o ingresso do PMDB na base governamental. Mas, somado o fisiologismo deste partido com o de outros presentes na base eleitoral de Lula, como o PTB e o PL, para citar os mais notórios, haverá sem dúvida uma dificuldade adicional para introduzir mudanças, pois, neste caso a boa pergunta é: até onde o PMDB, o PL e o PTB (e mesmo em parte o PSB e o PDT) irão com Lula? Afinal, faz parte deste desafio introduzir novas relações entre o Executivo e o Legislativo. Isso será possível, com uma base parlamentar como esta?
3.4 Quarto macrodesafio: Segundo alguns analistas, entre eles o jornalista Luis Nassif, um dos pontos a gestão do Estado negativos do Governo FHC foi a pouca capacidade gerencial do aparato estatal. A transformação do Plano Plurianual -PPA, com a criação de programas que se refletem no Orçamento e possuem, cada qual, um gerente com nome e endereço, produziu um efeito extraordinário na gestão pública. A administração do PPA se preocupou, centralmente, com a questão dos resultados da ação governamental, distinguindo-os dos produtos que são normalmente observados. Existe hoje um controle físico-financeiro, mesmo que imperfeito, mas inexiste ainda um sistema de acompanhamento e avaliação dos resultados da ação governamental.
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Vai ser de fundamental importância, e será cobrada pela mídia e segmentos sociais diversos, a capacidade governamental de agir e obter resultados consistentes e visíveis em sua ação. Será preciso sair do discurso que imperou no Ministério de Planejamento, mas que não conseguiu se realizar nos outros Ministérios, e implementar um sistema gerencial comprometido com resultados e de forte integração. Está cada vez mais claro para os analistas que existe uma contradição entre a organização governamental, por pastas setorizadas, e os problemas sociais (no sentido amplo) reais, intersetoriais ou multisetoriais. Enquanto os primeiros primam pela simplicidade, os segundos são de natureza complexa. Não se obtém resultados satisfatórios no desempenho econômico do país, na geração de emprego e renda, no combate à pobreza, na ampli ação da participação popular, no aumento da acessibilidade aos serviços públicos e assim por diante, com ações, projetos e programas apenas setorizados. As dificuldades residem, principalmente, nas concepções distintas e mesmo contraditórias que existem em um Governo, sobretudo quando este é formado por atores díspares, produzindo políticas antropofágicas. Mas também na formação dos gestores governamentais, na concepção tecnocrática que impera em boa parte e no arranjado administrativo da máquina governamental que não é afeita a determinadas racionalidades, em geral simples e notórias (veja, por exemplo, o processo de elaboração e, sobretudo, administração do Orçamento e dos gastos públicos em geral). Em resumo, considerando as condições de governabilidade e governança, podemos definir quatro cenários para o Governo Lula, em função das dificuldades externas que venham a se apresentar: 1) As dificuldades se reduzem significativamente, o que permitirá uma travessia para um porto seguro; 2) As dificuldades se mantém sem um agravamento expressivo, o que significará condições precárias e de difícil navegação; 3) As dificuldades externas aumentam, o que forçará o Governo a um recuo e à mudança de rumo; 4) As dificuldades agravam-se expressivamente (guerra prolongada contra o Iraque, por exemplo), reduzindo drasticamente os espaços de governabilidade e governança, o que poderá resultar em naufrágio para o Governo.
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4. Cenários para a agenda econômica 2003-2006 Há três cenários possíveis de médio e longo prazos detectados no plano econômico. O cenário otimista pode ser denominado de contrato social. O pessimista é o da crise de governabilidade. O cenário intermediário é o da alternância de poder. O cenário otimista significa que o Governo Lula logrará uma transição difícil, mas relativamente sob controle, de aproximadamente dois anos. Neste período, poucos resultados objetivos serão alcançados em termos de crescimento de renda, geração de emprego e combate à pobreza. Entretanto, o Governo será capaz de estabelecer os fundamentos da retomada sustentável do desenvolvimento de longo prazo. Para isso, reformas estruturais serão encaminhadas e executadas; reformas essas que representarão uma efetiva ruptura histórica. O Governo Lula vai transitar entre os campos da ruptura e da continuidade. No que se refere à economia, essa ruptura implicará na redução significativa ou na correção de fortes desequilíbrios de estoque e de fluxo de recursos que fazem parte do legado de Fernando Henrique Cardoso. Nesse ponto, os destaques ficam por conta da questão externa e da questão fiscal, bem como da contenção das pressões inflacionárias. Nos dois primeiros anos, apesar de resultados econômicos poucos satisfatórios, o Governo Lula será capaz de incrementar a capacidade governamental de entregar bens e serviços à sociedade, de forma direta ou indireta. Somente na segunda metade do Governo é que, efetivamente, aparecerão os resultados mais evidentes de desenvolvimento econômico e social, bem como das mudanças políticas e institucionais. O cenário otimista do contrato social contempla, então, a permanência do PT, com a reeleição de Lula em 2006 e, portanto, a continuação e o aprofundamento das mudanças históricas e a ruptura definitiva com o modelo neoliberal. O cenário do contrato social é esperado e defendido pelas forças progressistas e de esquerda que, historicamente, têm defendido mudanças e rupturas no Brasil. O contrato social é o cenário da esquerda brasileira. O cenário intermediário é o cenário da direita no Brasil. Neste cenário, o Governo Lula faria mudanças marginais e, portanto, não haveria alterações significativas em termos da estrutura econômica e social. Os resultados seriam medíocres, tanto em termos de crescimento econômico, como de geração de emprego. Lula realizaria, então, um Governo “mais ou menos”.
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A aposta da direita seria, então, que em 2006 haveria alternância de poder. Candidatos mais carismáticos ou atividades mediáticas mais eficazes seriam suficientes para derrotar Lula e o PT nas eleições presidenciais de 2006. Há, atualmente, inúmeras personalidades e forças políticas que apostam neste cenário: dos candidatos e partidos derrotados nas eleições de 2002 aos governadores de estados importantes (São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul), que são candidatos naturais à Presidência da República na próxima eleição. Esse cenário é compatível com a estratégia de mudanças marginais, que focariam a política econômica na manutenção do acordo com o FMI e na paranóia do superávit primário, nas operações de resgate dos grandes grupos econômicos nacionais em bancarrota, na reconfiguração cosmética da ALCA e na promoção das exportações (de produtos primários). Sem a crise atual herdada do Governo Fernando Henrique Cardoso, Lula e o PT não teriam ganho as eleições. O aprofundamento da atual trajetória de instabilidade e crise pode significar que Lula e o PT percam a governabilidade. Este é o cenário de “crise de governabilidade”, e, evidentemente, é pessimista. Este cenário, cuja probabilidade de ocorrência é diferente de zero, faz parte das estratégias dos grupos reacionários e da extrema direita. Este quadro significa a incapacidade do Governo Lula de desmontar as bombas de efeito retardado deixadas por Fernando Henrique Cardoso. A incapacidade se refletiria em crises cambiais recorrentes e crescentes problemas econômicos, sociais, políticos e institucionais. O Governo não lograria aumentar a capacidade do Estado de atender as exigências dos cidadãos. A falta de credibilidade do Governo Lula provocaria a perda de legitimidade do Estado e, portanto, geraria um déficit crítico de governabilidade. O cenário pessimista tem três derivativos. O primeiro é uma crise seguida de impeachment. O vice-presidente assumiria com o compromisso de “empurrar com a barriga” até as eleições de 2006. Nesse caso, contempla-se, inclusive, a antecipação das eleições. O segundo subcenário envolve a solução da crise institucional por meio do parlamentarismo. Nesse caso, há a possibilidade de um parlamentarismo com Fernando Henrique Cardoso como primeiro-ministro. O terceiro subcenário é o de crise institucional sem uma solução tradicional (impeachment ou parlamentarismo), e sim uma situação de caos e conflito social aberto.
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4.1 Conflitos de interesse
A estratégia de criação de uma sólida base de sustentação política para o Governo Lula parece envolver uma ampla gama de atores políticos. A proposta do Pacto Social abarca, na realidade, uma estratégia que procura, pela via da negociação, o consenso. Naturalmente, deve-se reconhecer que numa sociedade de classes como a brasileira, marcada por elevado grau de desigualdade e extraordinária fragmentação de interesses, e com as fortes restrições internas e externas, a montagem de um Pacto Social será, no mínimo, uma árdua tarefa. No processo de cooperarão e conflito, não há dúvida de que o Governo Lula terá que arbitrar os ganhos e as perdas dos diferentes grupos da sociedade. Esse dilema pode ser ilustrado da seguinte forma: o maior salário mínimo e o reajuste salarial do funcionalismo público exigem recursos orçamentários significativos. Ao mesmo tempo, o pagamento de juros da dívida pública é o principal fator de desequilíbrio do orçamento da união. A redução da taxa de juros somente ocorrerá com a menor abertura da conta de capital do balanço de pagamentos, o que contraria os interesses da elite econômica brasileira e do sistema financeiro internacional. Há, nesse caso, um claro conflito de interesses. E mais, o funcionalismo público e os aposentados não estarão na mesma mesa de negociações com os banqueiros e os rentistas. Não há saída, o Governo terá que arbitrar. A sociedade civil organizada (exclusive as organizações patronais e associadas) é aliada natural do Governo Lula. Na hipótese de que a estratégia da maioria das ongs seja a da cooperação independente, é provável que nos cenários de contrato social e alternância de poder a cooperação (sem cooptação) seja o elemento básico da relação com o Governo federal. Esse argumento também se aplicaria, até certo ponto, ao movimento sindical e ao funcionalismo público. Tendo em vista o desmonte do aparelho de estado, a tecnocracia, os militares e o funcionalismo público estão com grandes demandas reprimidas que, mais tempo, menos tempo, cairão no colo de Lula. O mesmo acontece com o movimento sindical. O retrocesso dos direitos sociais nos últimos anos tem gerado um esgarçamento social que atinge a classe trabalhadora via redução de renda, precariedade das condições de trabalho e o espectro do desemprego. No caso do movimento sindical, Lula sinaliza para um processo de negociação das relações capital-trabalho, que poderá gerar um processo de cooperação positivo para ambas as partes ou, então, uma insatisfação generalizada.
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No caso dos servidores públicos, a negociação é limitada claramente por um problema de alocação dos recursos orçamentários. Nesse caso, voltamos ao dilema da redução das taxa de juros (afetando os rentistas e a elite econômica), do custo da promoção da exportação, das operações de resgate dos grandes grupos privados nacionais, do programa de combate à fome, etc. Governar é fazer escolhas. O pacto e a negociação não resolvem esse problema. No que se refere aos vetores políticos que poderiam ser peças de resistência ao Governo, cabe destacar os meios de comunicação e o sistema financeiro. Quanto aos meios de comunicação, não há dúvida de que a concentração desses meios em um número restrito de grandes empresas familiares envolve uma enorme concentração de poder em mãos conservadoras e até mesmo reacionárias. Entretanto, deve-se notar que Lula deve se beneficiar do fato de que alguns desses grupos estão quebrados financeiramente. Nesse sentido, ao longo do Governo Lula, talvez haja uma atitude de crítica moderada por parte dos grandes meios de comunicação. O foco da crítica, muito provavelmente, se concentrará nos elementos (indivíduos e instituições) mais dinâmicos e progressistas da administração federal. Se o Governo atingir um nível crítico de (falta de) credibilidade, é provável que as grandes empresas de comunicação mudem de estratégia e passem a fazer uma oposição no atacado, explícita e demolidora. Com relação ao sistema financeiro, que expressa os interesses dos rentistas, a reação dependerá das políticas monetárias e creditícias do Governo Lula, bem como das políticas de regulamentação do setor. Essa é uma área fundamental para a retomada do crescimento. Há uma série de medidas que não afetam os interesses do sistema financeiro. Muito pelo contrário. Há medidas que não são intrinsecamente conflitivas, como a modernização da Lei das S.A., da Lei das Falências e da Comissão de Valores Imobiliários e os estímulos diversos ao mercado de capitais. A questão central reside, precisamente, na redução da taxa de juros e no aumento da regulação bancária, que provocarão a redução dos lucros absurdos do sistema bancário obtidos nos últimos anos. As decisões são fáceis quando se trata de jogo de soma positiva, mas se complicam quando o jogo torna-se de soma zero (para alguém ganhar, é necessário que alguém perca).
Professor, historiador e ensaísta. Nasceu no Rio de Janeiro, em 20 de setembro de 1913, e faleceu na mesma cidade, em setembro de 87.
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Lula está propondo um mecanismo de conciliação, que ele denominou de Pacto Social. Será que o presidente frustrará as expectativas do povo brasileiro e repetirá o padrão histórico identificado por José Honório Rodrigues8 como de “conciliação e reforma”? Ou será que estamos no início de um novo ciclo histórico, que será marcado pela ruptura com uma trajetória de desigualdade, miséria e injustiça?
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A análise dos cenários do futuro Governo focada na questão econômica examina, inicialmente, duas dicotomias fundamentais que permearão o destino do Governo Lula, e que surgem como incertezas críticas que determinarão a conduta e o desempenho do Governo. A primeira trata da dicotomia mudanças históricas e mudanças marginais. A segunda refere-se à dicotomia voluntarismo e ultra-realismo. Essas incertezas críticas são de natureza estratégica e afetam as esferas econômica, política, social, cultural e institucional. A análise dessas dicotomias é particularmente importante no caso do Brasil, tendo em vista que as condições estruturais e o contexto internacional são muito desfavoráveis. As incertezas críticas, as condições estruturais internas desfavoráveis e as restrições externas indicam que o período de transição do Governo Lula começa, efetivamente, em janeiro de 2003 e poderá prolongar-se por toda a primeira metade do seu Governo. Nos primeiros dois anos, dificilmente, serão obtidos resultados expressivos. O período deve ser de estabelecimento dos novos pilares de um novo modelo. Essa leitura é claramente otimista, visto que pressupõe a predominância de um cenário de retomada do desenvolvimento econômico e social sustentável no longo prazo. Há, no entanto, cenários alternativos, marcados pelo ceticismo e pelo pessimismo. Esses três cenários de médio e longo prazos são analisados mais adiante. O desempenho do Governo Lula dependerá da conduta dos principais atores sociais e políticos. Uma breve análise indica que, no médio e longo prazos, o principal vetor político de resistência, e até mesmo de desestabilização, está localizado nos Governos estaduais. Interesses individuais e partidários transformarão o Pacto Federativo no eixo central dos conflitos macropolíticos. Os movimentos sociais, por seu turno, deverão operar estratégias que evitem, de um lado, a ingenuidade de imaginar que são Governo e, de outro, de serem cooptados e se transformarem num braço administrativo auxiliar do Governo federal. Quando o Governo federal avançar no sentido de mudanças históricas, o movimento social deverá apoiá-lo; quando a conciliação (ou a negociação) levar o Governo a se conter, caberá ao movimento social reagir de forma crítica, construtiva e independente. Essa é a principal implicação estratégica da análise apresentada a seguir.
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4.2 Mudanças históricas O primeiro pronunciamento de Luiz Inácio Lula da Silva como presidente ou marginais? eleito, no dia 28 de outubro de 2002, começa da seguinte forma: “Ontem, o Brasil votou para mudar”. Não resta dúvida, a maioria do povo brasileiro votou contra o Governo Fernando Henrique Cardoso, mais especificamente contra a continuidade de políticas neoliberais que tiveram um impacto negativo sobre a sociedade. No pronunciamento, Lula afirma que a “vitória significa a escolha de um projeto alternativo e o início de um novo ciclo histórico para o Brasil”. Lula é categórico: “A maioria da sociedade brasileira votou pela adoção de outro modelo econômico e social, capaz de assegurar a retomada do crescimento, do desenvolvimento econômico com geração de emprego e distribuição de renda”. Mais adiante, o presidente eleito declara que: “vamos aplacar a fome, gerar empregos, atacar o crime, combater a corrupção e criar melhores condições de estudo para a população de baixa renda desde o momento inicial de meu Governo. Meu primeiro ano de mandato terá o selo do combate à fome.” Mudança é a palavra-chave do novo Governo. O discurso do presidente eleito deixa margem para duas interpretações. Por um lado, o empresariado, os banqueiros e outros grupos conservadores entendem que o Governo Lula pode significar mudanças marginais no Brasil. Nesse caso, não haveria mudanças substantivas na economia, na sociedade, na política, na cultura e nas instituições. O discurso de Lula poderia ser encaixado num modesto compromisso social-democrata, que daria maior dinamismo à economia e reduziria os níveis dramáticos de miséria e desigualdade no Brasil. Por outro lado, o pronunciamento de Lula permite que o movimento social, trabalhadores, desempregados, pobres, excluídos e todos os grupos desfavorecidos da sociedade brasileira apostem nas mudanças históricas. Nesse caso, a expectativa é de que, pela primeira vez na história do Brasil, o colapso de um modelo excludente não seja seguido pela tradicional fórmula da conciliação e reforma adotada historicamente pelas elites, que evitava atender às aspirações de mudanças efetivas. Em contraste, as mudanças históricas significam alterações nas estruturas, processos e relações econômicas, sociais, políticas e culturais. Lula assinala claramente para um conjunto de reformas: previdência social, tributação, legislação trabalhista, estrutura sindical, reforma agrária e reforma política. Na visão conservadora, Lula prosseguiria avançando nas reformas iniciadas pelo Governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso (previdência social, legislação trabalhista e reforma agrária) e realizando as reformas que deixaram de ser implementadas (tributação, estrutura sindical e reforma política).
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Nesse último caso, a expectativa, naturalmente, é que as reformas restrinjam-se a uma conciliação de divergências e envolvam, fundamentalmente, mudanças marginais, que não afetem os interesses das frações dominantes da elite brasileira. Por outro lado, a expectativa das forças progressistas é que as reformas prometidas por Lula impliquem, efetivamente, em mudanças históricas. A reforma da previdência social deve transcender a lógica simplificadora do eqüacionamento financeiro. A reforma agrária deve ser um mecanismo de alterações profundas nas relações sociais no campo, na regularização do território e na estrutura de distribuição de riqueza no país. A reforma política deve ir muito além de problemas como fidelidade partidária e financiamento de campanhas. A reforma da legislação trabalhista e da estrutura sindical deve partir do pressuposto de que o trabalho não é uma mercadoria qualquer e, portanto, deve superar em muito a lógica neoliberal da flexibilização, desoneração de tributos e competitividade. A reforma tributária é vista como um instrumento-chave para se definir a orientação do novo Governo, pois sua configuração geral define quem paga a conta. Nesse caso, espera-se que a reforma tributária seja tanto um instrumento de ajuste macroeconômico, como de distribuição de riqueza e renda.
4.3 Voluntarismo No seu pronunciamento, Lula afirmou que “vivemos um momento decisivo ou ultra-realismo? e único para as mudanças que todos desejamos. Elas virão sem surpresas e sobressaltos. Meu Governo terá a marca do entendimento e da negociação. Da firmeza e da paciência.” Essa afirmação parece fornecer uma salvaguarda para aqueles que estão
Relativo a Pangloss, personagem do romance Cândido, de Voltaire, que professava um otimismo beato e ingênuo e para quem tudo parecia sempre correr às mil maravilhas (v. Enciclopédia e Dicionário Koogan/Houaiss).
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preocupados com atitudes voluntaristas do Governo. Essas atitudes significariam tomar medidas que não teriam condições objetivas de serem executadas, tendo em vista as restrições objetivas, tanto econômicas como sociais, culturais, políticas e institucionais. A habilidade e sagacidade demonstrada no período de transição, bem como a declaração de Lula de que o seu Governo “não pode errar” errar”, parecem indicar que, muito provavelmente, o risco de atitudes voluntaristas é reduzido. Entretanto, há o risco concreto de que o Governo Lula seja capturado pelo otimismo, ou melhor, pela visão panglossiana9 de que as coisas vão dar certo, porque têm que dar certo. É a armadilha criada pelo imperativo psicológico – a ânsia de otimismo e de esperança. O fato é que as condições objetivas são muito desfavoráveis. Tomemos dois exemplos. O primeiro refere-se à volta da inflação de dois dígitos.
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A forte depreciação cambial em 2002, bem como a deterioração das expectativas provocaram uma pressão altista de preços. O índice geral de preços em 2002 foi da ordem de 20% e os índices de preços ao consumidor chegaram a dois dígitos. Isso significa que 2003 será marcado por fortes demandas de reajustes de preços pelos segmentos afetados pela inflação em 2002. Essas demandas ocorrerão independentemente das condições de renda na economia brasileira. Isto é, o provável desempenho medíocre da produção e da renda em 2003 não provocarão inflação de demanda, mas haverá pressões que configuram um quadro de inflação de custo e de pressões por reindexação. Essas observações indicam, na realidade, que o legado de Fernando Henrique Cardoso é um quadro de pressões inflacionárias que reduzirão o grau de manobra do Governo Lula no início do mandato. Há, assim, um processo rastejante de maior desestabilização macroeconômica, que limitará as políticas econômica e social do próximo Governo. Outro exemplo refere-se à dimensão externa da desestabilização macroeconômica. A vulnerabilidade externa é um elemento constitutivo e básico da herança do Governo Fernando Henrique Cardoso. O brutal desequilíbrio do balanço de pagamentos tem sido enfrentado, e parece que continuará sendo, com saldos positivos na balança comercial de bens. Nesse sentido, deve-se notar que a melhora observada ao longo de 2002 se deve, fundamentalmente, à extraordinária queda das importações. Isso ocorreu como resultado tanto do aumento dos preços dos importados (via depreciação cambial), quanto da estagnação da renda interna (de fato, queda da renda per capita). Por outro lado, as exportações brasileiras têm mostrado um desempenho medíocre. O Governo Lula tem se comprometido com a ampliação das exportações, não somente como um fator gerador dos dólares tão necessários ao fechamento das contas externas, mas também como uma fonte de crescimento da produção e do emprego. Entretanto, deve-se notar que as restrições ao crescimento das exportações brasileiras no curto e médio prazos são enormes e, muito provavelmente, crescentes. Pelo lado da demanda, deve-se mencionar não somente o quadro de recessão internacional, como também os indícios de uma nova onda protecionista no sistema mundial de comércio. Pelo lado da oferta, deve-se chamar atenção para o fato de que a perda de competitividade internacional dos produtos manufaturados brasileiros ao longo dos últimos anos deve-se, em grande medida, à ineficiência sistêmica da economia brasileira. O desmonte do sistema nacional de inovações, a desnacionalização, as privatizações (que encareceram o insumos), as taxas medíocres de crescimento da renda e os níveis medíocres de investimento provocaram um desmonte do aparelho produtivo que, por seu turno, levou à perda de competitividade internacional.
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Não há dúvida de que a capacidade de competição de produtos manufaturados brasileiros no mercado internacional, pelo lado da oferta, é limitada, tendo em vista os problemas estruturais. Esses problemas não serão solucionados no curto e médio prazos. Assim, dificilmente pode-se esperar um aumento expressivo das exportações brasileiras de manufaturados no futuro próximo. Com relação às commodities, a queda dos preços internacionais (provocada pelo excesso de oferta e pelo reduzido dinamismo da demanda) configura cenários desfavoráveis, principalmente, para as commodities agrícolas. Nesse sentido, maiores incentivos às exportações podem significar maior redução dos preços internacionais dos produtos brasileiros e, possivelmente, uma queda na receita de exportação em dólares. Isto é, exporta-se uma maior quantidade a preços menores, de tal forma que a receita em dólares reduz-se. No pronunciamento, Lula anunciou coerência com seu discurso de campanha. Ele falou em um pacto social que, contrariamente ao apregoado pelo neoliberalismo, em que era formado basicamente por banqueiros e uma burguesia internacional, vai dividir melhor os assentos na sala que é o Estado, o locus de encontro das classes e dos grupos. Ora, sendo a redução da vulnerabilidade externa uma prioridade anunciada de seu Governo, e sendo a exportação o mecanismo fundamental de redução dessa vulnerabilidade (o que não é necessariamente verdadeiro), faz sentido nomear para o Ministério da Agricultura um competente exportador de soja e para o Ministério da Indústria e do Comércio um competente exportador de frango. A importância maior dessas nomeações é simbólica, já que elas expressam dois interesses de grande peso no Brasil de hoje – o agrobusiness exportador e a indústria orientada para a exportação. Na hipótese de que o projeto de criação da Alca se transforme em um acordo efetivo, permanece a dúvida quanto ao efeito desse esquema sobre a balança comercial brasileira. Na atual configuração do acordo, é de se esperar que os eventuais ganhos associados a melhores condições de acesso aos mercados regionais não compensem os custos derivados da maior vulnerabilidade externa da economia brasileira, que será decorrente do acordo da Alca. No que se refere à revitalização do Mercosul, é provável que as lideranças petistas, ao se defrontarem com a realidade sul-americana, mantenham a retórica da ibero-americanidade, mas se restrinjam a ações e iniciativas de efeitos reduzidos.
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Em contraste com o panglossianismo que pode contaminar os tomadores de decisão no próximo Governo, há a corrente do ultra-realismo. Os ultrarealistas são aqueles que orientam a formulação de estratégias e a implementação de medidas pelo seguinte postulado: “Uma coisa é o que a gente quer, outra é aquilo que podemos”. Nesse sentido, os ultra-realistas tendem a seguir a linha de menor resistência. Tendo em vista as enormes restrições econômicas e institucionais que o próximo Governo enfrentará, há o risco de que os ultra-realistas dominem o núcleo duro da política econômica do próximo Governo. Nesse caso, seguir a linha de menor resistência significará, provavelmente, a implementação de mudanças marginais, com resultados medíocres. Entre o panglossionismo (voluntarismo) e o ultra-realismo (linha de menor resistência) há uma margem de manobra estreita no sentido de se realizar mudanças profundas e graduais. Entretanto, essa via alternativa (ou terceira via) pode se transformar na “terceira margem do rio”, caso o Governo não faça as reformas e mudanças estruturais necessárias, que rompam com a herança do Governo Fernando Henrique. Nesse sentido, pode-se ilustrar o argumento com o caso da reforma tributária. A desoneração das exportações e da produção e a simplificação da estrutura tributária são aspectos importantes. No entanto, é difícil imaginar a resolução da questão fiscal brasileira sem um aumento expressivo da carga tributária (por exemplo, dos atuais 34% para 40% do PIB) e da progressividade (via maior taxação sobre a riqueza e o capital). Não resta dúvida que a reforma tributária é um indicador da vontade e da capacidade do Governo Lula de implementar mudanças profundas e graduais no Brasil. Outro teste decisivo refere-se à questão da vulnerabilidade externa. O aumento das exportações e a substituição de importações são as peças de menor resistência quando se trata de enfrentar os problemas externos. Conforme mencionado, o crescimento das exportações é algo muito duvidoso no futuro próximo. A substituição de importações, por seu turno, poderá ter um impacto positivo sobre a balança comercial, porém isso não é evidente. A substituição de importações pode ocorrer, inclusive, em detrimento do aumento das exportações. Há, ainda, enormes gargalos na estrutura produtiva brasileira que fazem com que, no curto e médio prazos, a substituição de importações poderá provocar efeitos negativos sobre o balanço de pagamentos (via, por exemplo, importação de bens de capital e produtos intermediários).
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A substituição de importações terá um efeito negativo sobre o processo inflacionário e, ademais, envolverá uma transferência de renda dos consumidores para os produtores (isto é, dos trabalhadores e dos pobres para os produtores e os ricos). Deve-se notar, ainda, que devido ao desmonte do aparelho produtivo nacional é provável que no curto e médio prazos o processo de substituição de importações não tenha impacto significativo em termos de investimento e geração de emprego. No curto e médio prazos, é improvável que haja aumentos expressivos dos investimentos orientados para a substituição de importações. Se ocorrerem, esses investimentos tenderão a ter impacto sobre a renda e a produção somente no médio e longo prazos. Ainda com relação à substituição de importações, há duas perguntas importantes: Até que ponto o Governo Lula permitirá a transferência de renda dos consumidores para os produtores? E como a sociedade reagirá ao aumento de preços e à piora na qualidade dos produtos decorrentes da substituição de importações? As incertezas críticas discutidas acima indicam três dilemas importantes. O primeiro refere-se à dicotomia mudanças históricas e mudanças marginais. As forças progressistas apostam e esperam mudanças históricas, que romperão com a herança do Governo Fernando Henrique e com o próprio processo histórico brasileiro de desigualdade, exclusão e discriminação. As forças conservadoras esperam que o Governo Lula faça mais da mesma coisa. Isto é, os conservadores apostam que o Governo focará suas políticas no crescimento das exportações e no combate à inflação. E, portanto, esperam que o Governo continue amarrado às famigeradas metas inflacionárias, ao câmbio flutuante e ao superávit primário. Nesse contexto, de ajustes interno e externo, não haveria margem para políticas de redistribuição de riqueza e renda, nem para mudanças significativas na estrutura de produção. Programas de combate à fome e políticas compensatórias são aceitas (melhor dizendo, toleradas) desde que não se comprometa o programa de ajustes interno e externo. Estratégias ou políticas que transcendam essa lógica (melhor expressa na natureza, nas metas e nos critérios de desempenho do acordo com o FMI) representam risco de conflito social e, portanto, devem ser evitadas, segundo os conservadores e os reacionários. O segundo dilema envolverá o embate permanente (principalmente nos dois primeiros anos do Governo) entre os panglossianos (otimistas crônicos ou irresponsáveis bem-intencionados) e os ultra-realistas (operadores do poder ou sobreviventes oportunistas).
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O confronto entre o voluntarismo e a linha de menor resistência poderá ocorrer no atacado (orientação geral das estratégias políticas) ou no varejo (determinadas esferas do Governo). O maior risco é a ambivalência permanente, a oscilação de um lado para outro que, entre outros aspectos, poderá agravar ainda mais a atual trajetória de instabilidade e crise e, portanto, gerar um déficit de governabilidade. O enfrentamento desses dilemas, que se constituem em incertezas críticas para o Governo, poderá ser realizado a partir de mudanças profundas e graduais. Essas mudanças partiriam do reconhecimento de que as restrições são enormes e que, no curto e médio prazos (2003-2004), dificilmente a economia brasileira sairá da UTI. O fundamental, no entanto, é que nesses dois primeiros anos já se estabeleçam os marcos de uma ruptura histórica. As reformas tributária, agrária e trabalhista serão testes decisivos. O mesmo pode-se dizer em relação à vulnerabilidade externa, isto é, à disposição do Governo de implementar a reversão da liberalização e da desregulamentação nas esferas comercial, produtiva, tecnológica, financeira e monetária das relações econômicas internacionais do país.
4.4 Restrições externas
O Governo Lula enfrentará uma conjuntura internacional particularmente adversa. Isso é verdade tanto na dimensão econômica das relações internacionais, como na política. O crescente tensionamento político internacional tem sido causado, em grande medida, pelas atitudes fortemente intervencionistas e bélicas do Governo Bush. A intransigência de Bush em relação aos acordos internacionais (como o Protocolo de Kyoto) e às organizações multilaterais (ONU, OTAN, etc) tem mostrado que o processo de conflito tem superado o de harmonia e cooperação no cenário internacional. No âmbito da economia internacional, o cenário é claramente desfavorável em todas as suas dimensões. No que se refere ao lado real da economia mundial, a evidência indica que no futuro próximo as locomotivas do sistema estarão com fortes dificuldades para avançar no sentido do crescimento econômico. A economia japonesa continua mergulhada numa profunda crise que se arrasta há mais de uma década. A Europa tem sido incapaz de se proteger, por trás do esquema da União Européia, das adversidades derivadas da globalização. Os Estados Unidos procuram escapar da crise econômica com os pés de barro da financeirização e com o braço forte dos gastos militares.
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As economias dos países desenvolvidos estão enfrentando uma situação tradicional de insuficiência de demanda agregada (consumo e investimento). O excesso de capacidade de produção tem aumentado o risco de uma deflação generalizada, que poderá ter gravíssimas conseqüências em termos de uma recessão de dimensão global. A queda dos preços internacionais das commodities, ao longo dos últimos anos, é um sério indicador da grave situação da economia internacional. O cenário de “cheiro de 1929 no ar” continua presente. A política do braço forte de Bush – a guerra como uma saída para a crise econômica – aumenta ainda mais as incertezas críticas no cenário internacional. Nesse caso, podem ser incluídos os riscos potenciais de uma guerra contra o Iraque e seus efeitos negativos sobre os preços internacionais do petróleo. Poderá ser reproduzida, assim, uma situação similar (ainda que mais grave) àquela observada nos anos 1970, quando houve estagnação e inflação nos países desenvolvidos. O quadro citado envolve restrições fundamentais para países como o Brasil, marcados por forte vulnerabilidade externa e enormes desequilíbrios. A estratégia de ajuste externo por meio da promoção das exportações tenderá a enfrentar sérias dificuldades. Isso deverá ocorrer, principalmente, tendo em vista o risco crescente de que o baixo crescimento da renda mundial estará acompanhado por pressões protecionistas cada vez maiores e pelo acirramento da rivalidade no mercado internacional. No que se refere aos fluxos internacionais de capitais, a evidência indica que a contração da liquidez internacional dos últimos anos deverá continuar no futuro próximo. Assim, o Brasil continuará enfrentando sérias restrições quanto ao financiamento das suas contas externas, tendo em vista que o país dificilmente alterará sua classificação de risco no futuro próximo. Deve-se notar que, durante todo Governo Fernando Henrique Cardoso, o Brasil foi considerado um país de alto risco, que tinha que pagar prêmios elevados para os investidores estrangeiros (o que se manifestava nas altas taxas de juros da economia brasileira). As restrições de crédito internacional deverão se acentuar no futuro próximo. A redução do excedente econômico nos países desenvolvidos implica em menor disponibilidade de capitais para investimento no exterior. Os fluxos de investimento externo direto se contraem quando a economia internacional entra num ciclo recessivo. Ademais, no caso brasileiro, o avanço da privatização das empresas públicas e o extraordinário processo de desnacionalização ao longo do Governo Fernando Henrique implicam em menores possibilidades de entrada de investimento externo direto no futuro.
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Na realidade, a expectativa é que o balanço de pagamentos das empresas transnacionais operando no Brasil seja crescentemente negativo no futuro próximo, particularmente no que se refere à conta de serviços e aos fluxos de capital. A situação econômica internacional desfavorável é um fator ainda mais agravante quando se leva em conta não somente o desequilíbrio do balanço de pagamentos, mas também o enorme desequilíbrio de estoque associado ao passivo externo da economia brasileira (dívida externa e estoque de investimento externo direto). Quase US$ 20 bilhões são enviados todo ano para o exterior, na forma de pagamento de juros da dívida externa e remessa de lucros. Essa saída de capital é, de modo geral, insensível aos instrumentos macroeconômicos tradicionais, como a política cambial e a política monetária. O mesmo ocorre em relação ao pagamento do principal da dívida externa e à repatriação do capital. O serviço do passivo externo apresenta não somente um vazamento de renda para o exterior, como também é o principal fator de desequilíbrio externo da economia brasileira. Para ilustrar com um exemplo da história do Brasil, Getúlio Vargas precisou de mais de 10 anos, no seu primeiro mandato, para reduzir significativamente a vulnerabilidade externa da economia brasileira herdada da República Velha, associada ao elevado nível de endividamento externo. Assim, durante o Governo Lula, o passivo externo (com destaque para a dívida externa) continuará sendo uma restrição fundamental ao desenvolvimento econômico do país.
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Os temas prioritários do Inesc Após a apresentação de uma visão cultural abrangente, que esperamos possa tornar-se concreta no novo Governo, e a construção dos cenários político e econômico, passamos a apresentar as reflexões que o Inesc vem desenvolvendo sobre seus temas prioritários de ação. Cada um destes temas é respaldado em textos analíticos encomendados a especialistas, sobre os quais a equipe desenvolveu suas próprias reflexões, que passaram a permear os textos originais. Assim sendo, destacamos as questões internacional, cultural, ambiental, agrária, racial, indígena, da criança e do adolescente e de gênero. Estes temas fazem parte de uma matriz política onde os campos dos Direitos Humanos, da questão de gênero e da diversidade cultural são transversais aos temas agrário, racial e étnico, crianças e adolescentes etc.
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1. Cenários no campo internacional O Inesc atua em três diferentes dimensões no campo internacional: a questão comercial; a questão relacionada com o sistema financeiro multilateral e privado; e por fim, as questões ligadas aos paradigmas de Direitos Humanos. Em especial, o Instituto atua monitorando os acordos desenvolvidos no chamado Ciclo Social da ONU. A seguir, apresentamos os diferentes eixos e articulações nos quais o Instituto tem participação ativa.
1.1 As Instituições Financeiras Com intensa participação do Inesc, a Rede Brasil, que reúne 64 organizaMultilaterais ções da sociedade civil com o objetivo de intervir nas questões relativas às Instituições Financeiras Multilaterais – IFMs, atuou, em 2002, num cenário de grande movimentação política e financeira no contexto brasileiro. Em pleno processo eleitoral, o Governo brasileiro solicitou um novo empréstimo ao Fundo Monetário Internacional – FMI, no valor de US$ 30 bilhões, o que foi concedido por seu Conselho Diretor. Este novo acordo permitiu uma primeira retirada imediata; e uma segunda, em dezembro de 2002. O restante, US$ 24 bilhões, estará à disposição do Governo de Luiz Inácio Lula da Silva ao longo de 2003. Deste total, US$ 4,6 bilhões estavam em vias de serem liberados, até o fechamento desta edição, destinando-se basicamente à cobertura de débitos com agências financeiras internacionais. Tendo em vista o recente bom desempenho das contas externas brasileiras, é possível, contudo, que o Governo abra mão, por ora, desta parcela. O acordo foi obtido por meio de uma engenharia política sem precedentes, pelo fato inédito de ter sido aprovado e assinado no encerramento de um ciclo governamental. Outros países, como a Coréia do Sul, chegaram a negociar acordos durante o período eleitoral, mas eles só foram efetivados após o resultado das eleições. Ficou caracterizado, assim, um novo modelo de construção de acordos, fechados à revelia da legislação nacional. De acordo com a Constituição brasileira, qualquer acordo financeiro externo deve ser analisado, debatido e aprovado pelo Senado Federal, o que não ocorreu neste caso. Outra característica do acordo firmado entre o Brasil e o FMI é que ele não respeitou a Lei que estabelece o ciclo orçamentário. O acordo prevê a revisão do superávit primário de três em três meses. Com a alteração dos índices da meta de superávit, o orçamento ficou mais contraído. Isto pode inviabilizar ainda mais a execução de políticas sociais capazes de combater as desigualdades sociais e a pobreza, pois exigirá cortes de investimentos e nos recursos destinados a programas sociais.
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Instituições da família Bretton Wodds, criadas no pós-II Guerra, com papéis diferenciados, mas que, no caso de empréstimos, como o mencionado do FMI, acabam atuando em bloco para financiar o pagamento da dívida pública.
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1.2 Comércio internacional
Esse modelo de ação aplicada pelo FMI, pelo Banco Mundial e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento10, instituições onde são obtidos empréstimos que permitem ao governo brasileiro honrar suas dívidas, acaba gerando maior fragilidade, endividamento e retração econômica, criando obstáculos para a realização dos programas de combate à desigualdade e à pobreza. Fica evidente a insustentabilidade deste modelo de ajuste econômico, o que recoloca a discussão sobre uma profunda revisão não só dos conteúdos dos acordos com o receituário recessivo e privatista, como sobre o papel e as estratégias destas instituições no cenário internacional.
No Brasil, o debate sobre comércio internacional, em 2002, foi marcado fundamentalmente pelas negociações sobre a Área de Livre Comércio das Américas - Alca. O cronograma de negociações avançou conforme o previsto no calendário e, em novembro, o Brasil assumiu a co-presidência do processo, juntamente com os EUA. Neste mesmo ano, encerrou-se a fase de negociação de métodos e modalidades de negociação, tendo início, desde outubro, as primeiras discussões em torno de tarifas de base e das listas de ofertas de cada país. O Brasil, governado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, tinha um compromisso com as negociações da Alca. A partir do cenário sucessório incerto, os negociadores brasileiros se esforçaram por garantir, o máximo possível, uma margem de manobra para o próximo governo. O envolvimento do Congresso Nacional brasileiro em debates relativos à Alca foi reforçado a partir da ampliação de medidas protecionistas tomadas pelo governo norte-americano, que recaíram sobre produtos nos quais o Brasil se mostra mais competitivo, como aço e produtos agrícolas. Nesse meio tempo, o presidente brasileiro, em visita à Argentina, deixou claro o intuito do Governo de revigorar as bases do Mercosul. Tais medidas recrudesceram a oposição à Alca dentro do próprio governo. A criação de uma Comissão Especial da Alca, na Câmara dos Deputados, e de uma Subcomissão de Comércio Exterior, pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal, ampliaram os espaços de debate anteriormente capitaneados pelo Executivo e pelo grande empresariado nacional. No Itamaraty, foi realizada uma única reunião da Seção Nacional de Coordenação dos Assuntos Relativos à Alca - Senalca. Este foro padece do hermetismo das informações, só compreensíveis por iniciados.
45 Cenários no campo internacional
A Rede Brasileira pela Integração dos Povos -Rebrip, da qual o Inesc participa na coordenação e é interlocutor junto ao Parlamento, tem capitaneado a pressão social pela abertura e transparência do debate sobre as questões comerciais. Junto à sociedade, o clima diante das negociações é, no mínimo, de cautela. Alguns poucos setores empresariais são francamente favoráveis à criação da Área de Livre Comércio das Américas tal como ela está hoje formatada. Nos movimentos sociais, sindicatos e ongs, congregados em grande medida na campanha contra a Alca, o sentimento é abertamente contrário à existência da mesma, que é vista fundamentalmente como uma estratégia de dominação norte-americana sobre os demais países da região e que só deve piorar as condições de vida da população. O Inesc, por meio da Rebrip, integra essa Campanha que, por sua vez, faz parte da Campanha Continental contra a Alca, capitaneada pela Aliança Social Continental. Durante o encontro paralelo da sociedade civil que ocorreu em Quito, no Equador, em 2002, por ocasião da reunião Ministerial da Alca, foram reforçadas e ampliadas as articulações em torno da Campanha Continental contra esse modelo, com a previsão do estabelecimento, em diversos países, de mecanismos de consulta popular, a exemplo do plebiscito popular realizado no Brasil na Semana da Pátria, no qual mais de 10 milhões de brasileiros se manifestaram contrariamente à existência da Alca. O Congresso, em fim de Legislatura, funcionou em ritmo lento e quase que exclusivamente no primeiro semestre. Todavia, algumas atividades voltadas para o debate do comércio exterior brasileiro foram encaminhadas. O Legislativo é um espaço que deve ser provocado para que os temas comerciais sejam colocados na agenda prioritária. As ongs e os movimentos sociais têm enfrentado dificuldades para institucionalizar e aprofundar seu diálogo com o Itamaraty sobre a questão Alca, de forma a ter maiores informações sobre as negociações do que aquelas repassadas de forma superficial nos briefings oficiais. Um bom exemplo disso é o fato de que os documentos negociados, como regra, não têm sido disponibilizados para as ongs, enquanto têm sido passados regularmente aos empresários. A estratégia da Rebrip é a qualificação da intervenção por meio de estudos realizados pelo grupo nas áreas de interesse e a criação de uma Frente Parlamentar para atuar sobre os temas internacionais.
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1.3 O debate sobre cidadania
O Social Watch –SW nasceu em 1995, após a Conferência Social de Copenhague e a Conferência das Mulheres, ambas promovidas pelas Nações Unidas, com a missão de monitorar, pressionar e influenciar a implementação dos compromissos internacionais assumidos pelos países signatários. O grande desafio desta proposta sempre foi o exercício de articular o plano das decisões internacionais e seus respectivos impactos nos planos nacionais. A coalizão SW é constituída hoje por cerca de 50 países que utilizam as mais diversas estratégias para dar conta de sua missão de monitoramento e de advocacy dos acordos internacionais no plano nacional e vice-versa. Estas ações são apresentadas na forma de publicações, seminários nacionais e internacionais, lobby junto à ONU, acompanhamento das Conferências, elaboração de metodologia comum de acompanhamento, construção de indicadores, etc. O crescimento de sua importância ao longo dos anos foi tão grande que na Conferência Mundial de Revisão, após cinco anos, realizada em Genebra, o Secretário Geral da Rede Internacional SW foi chamado para abrir os trabalhos oficiais.
O Inesc faz parte do GT Referência brasileiro desde 1996. Durante 2002, o Inesc participou de toda as reuniões do grupo, produziu um texto para o relatório brasileiro e participou da Conferência sobre o Financiamento ao Desenvolvimento, no México.
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O Social Watch no Brasil nasceu com o nome Observatório da Cidadania – OC, em 1996, e foi constituído através do Grupo de Trabalho - GT de Referência. O OC é formado por cinco ongs de diferentes qualificações e abrangências temáticas. São elas: SOS Corpo, Inesc11, Centro de Estudos de Cultura Contemporânea -Cedec, Federação dos Órgãos para Assistência Social e Educação -Fase e o Instituto Brasileiro de Análises Socioeconômicas -Ibase, que faz a coordenação Executiva. O objetivo do Grupo de Referência foi construir uma articulação entre as organizações da sociedade civil organizada no plano internacional. O primeiro momento compreendeu a construção de metodologia e indicadores de acompanhamento dos processos de implementação dos acordos no âmbito nacional. Foi neste momento que o grupo brasileiro se organizou, com projeto próprio, de forma permanente. Ele vem atuando segundo as demandas da rede internacional, além de criar mecanismos e instrumentos próprios de análise da realidade brasileira. Durante o período de 1999/2000, os esforços foram concentrados na realização das Conferências Copenhague+5, Cairo+5 e Beijing+5. Em 2001 e 2002, o Grupo esteve focado nos debates ligados às Conferências contra o Racismo de Durbam, na África do Sul, e a do Financiamento ao Desenvolvimento de Monterrey, no México.
47 Cenários no campo internacional
O GT Referência chega ao final de 2002 com uma avaliação das atividades do Observatório da Cidadania - OC, no Brasil, que demonstrou o grande avanço na construção de metodologia, instrumentos e processos de monitoramento e diálogo com diferentes parceiros. Mas ficou evidente a necessidade de promover alterações metodológicas, organizacionais e nos formatos dos produtos. Isto porque a realidade social e política se transformou profundamente tanto no âmbito nacional quanto internacional, gerando novos cenários e perspectivas. O que nos parece claro é que teremos que promover um grande esforço para fortalecer a articulação com outras Redes e Fóruns e dar maior visibilidade aos conteúdos elaborados, para que possamos enfrentar o duro cenário de retrocesso estabelecido no âmbito internacional.
2. Cenários no campo da cultura No Brasil, pensa-se e faz-se muito pouco políticas públicas de cultura. Mesmo as políticas culturais restritas a ministérios ou secretarias de cultura são limitadas. Com o advento das leis culturais, a realização da cultura coube ao mercado e muitos Governos abriram mão de políticas. Restaram linhas de financiamento à cultura, enquanto os grandes temas passavam em branco. Implementou-se uma globalização perversa e acrítica; importamos produtos e modos de ser que banalizam a vida da população; não interferimos na produção dos meios de comunicação; a produção artística se mercantiliza; os valores de convivência não estão em questão; o papel da indústria cultural não é posto em debate. Quase sempre a mesma clientela é beneficiada com os recursos da cultura, principalmente grandes produções e artistas já consagrados ou com potencial de mercado. Deve-se pensar seriamente na inversão de prioridades. Atingir, através de políticas, orçamentos, espaços e atividades, as populações desprovidas das cidades e do interior, fazendo da cultura um fator de integração e de afirmação de identidades, de acesso aos bens, valores e fazer artístico e cultural.
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Para isso, será necessário:
2.1 Criar políticas para Estimular grupos formais e informais, subsidiando-os com pequenos a pequena e média produção valores para impulsionar a criação artística e cultural, o acesso à produção de qualidade e a cidadania cultural de indivíduos, grupos e movimentos culturais. Por exemplo: junto ao combate emergencial à fome poderão ser criados programas e projetos sobre a fome de cultura, estimulando pequenos trabalhos coletivos ligados a esta prioridade. A valorização de pequenas iniciativas culturais deverá atender não somente artistas, mas todo o circuito cultural de criação e acesso ao debate público, e a capacitação para o fazer cultural. Deve ser facilitado o acesso a fundos pelo caráter de subsídio, e promovidas a desburocratização e a disseminação de pontos de inscrição.
2.2 Criar lugares públicos Um dos problemas mais relevantes da exclusão cultural é a ausência para a vida cultural de lugares que possam ser verdadeiramente apropriados pela população para o exercício da sua cidadania cultural – produzir e criar cultura, acesso aos bens e equipamentos, participação nos processos culturais, decisão sobre o fazer cultural, pertencimento à uma comunidade e à ecologia cultural.
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Este é um trabalho que já existe com muito sucesso, como é o caso dos Barracões Culturais da Cidadania, projeto mais importante da Secretaria Municipal de Cultura de Itapecerica da Serra, São Paulo. Inicialmente concebidos para serem construídos com eucalipto e taipa, acabaram recebendo financiamento para sua realização de forma simples e em vários bairros da periferia da cidade. Em 13 pontos da cidade são oferecidas oficinas de teclado, pintura, canto coral, teatro, piano, etc. Constituem-se em pontos de sociabilidade entre jovens e de referência para a população local debater os seus problemas. Estes lugares são pontos irradiadores de cultura em geral e potencializadores da cultura local, com suas festas e tradições, sua criatividade e formação para a cidadania.
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Mesmo nas grandes capitais, como São Paulo, existem perímetros com mais de um milhão de habitantes praticamente sem equipamentos culturais. A criação de equipamentos poderá ser estimulada em todo o país, a baixo custo, com linhas de financiamento próprias, com o apoio do Estado e das prefeituras. Poderão ser pontos de encontro, criação de diversas linguagens, lugares de debate público e apresentações de eventos.12 Por outro lado, as atividades devem sair dos templos tradicionais para a ocupação da rua e da praça, lugares privilegiados para a realização da cultura. Estes espaços, articulados com equipamentos públicos, poderão possibilitar o acesso dos jovens a linguagens artísticas, ao fazer cultural e, também, prepará-lo para o mundo da economia e do mercado de trabalho.
2.3 Criar contribuição para A idéia aqui é estabelecer contribuições progressivas nas leis de incentivo, projetos de inclusão cultural para gerar recursos para projetos de inclusão, e gerando assim a devolução social. Mesmo que as leis de incentivo estimulando parcerias Governoempresas não sejam eliminadas, podem ser criados dois dispositivos importantes para neutralizar o seu funcionamento excludente. Um deles é um fundo para projetos culturais à partir dos incentivos fiscais, de modo a garantir a devolução pública para populações sem acesso à fruição da cultura, como estabelece a nova lei cultural do município de São Paulo proposta pelo vereador Nabil Bonduki. Pode-se também criar uma escala, de acordo com o valor do projeto aprovado, onde automaticamente o recurso cairia num fundo de pequenos projetos culturais. Circulação da obra ou evento, número de vagas gratuitas para cursos, ingressos para show ou teatro, lugares para participar de debates e bolsas gratuitas poderão estimular o projeto a sair de seu circuito limitado onde atende exclusivamente o seu público preferencial.
2.4 Aumentar o orçamento Em um Governo de inclusão a cultura terá que necessariamente ser consida cultura derada estratégica para o desenvolvimento. Com suas leis culturais o Brasil privatizou as políticas de cultura, deixou a realização da cultura nas mãos de empresas enquanto pensa em políticas sociais supostamente mais importantes. O fato é que para intervir na cultura de forma significativa é necessário compreender que não há inclusão social sem inclusão cultural e que cultura é componente vital da qualidade de vida de um país. O desenvolvimento cultural, de responsabilidade do Estado, é impossível de concretizar-se com 0,25 % do orçamento da União, sabendo-se que mais de 70% deste percentual são destinados a custos fixos.
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Ocorrem debates sobre o percentual e propostas que orçam em torno de 2% do orçamento público o percentual que deveria ser direcionado para o setor cultural.
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Nos parece fundamental alterar este percentual de forma a permitir que as ações do Ministério possam ser potencializadas com leis de incentivo reformuladas, fundos de pequenos projetos, linhas específicas de financiamento a projetos sócio-culturais pelos bancos públicos e privados e integração de políticas públicas.13
2.5 Potencializar a integração O debate público, a análise de experiências de desenvolvimento cultural das políticas públicas do Pólis Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais e as propostas do Fórum Intermunicipal de Cultura – FIC - têm concluído sobre a importância da integração de políticas públicas. Por vários motivos: a cultura não é apenas uma dimensão da realidade que requer uma ação departamentalizada; a ação cultural poderá ser ampliada ao aproveitar-se de recursos, equipamentos e programas de outros órgãos que trabalham com políticas sociais; a cultura é cenário onde se movem atores relevantes ou não e experiências de vida e os processos econômicos, religiosos, sociais e políticos trazem inevitavelmente a presença viva da cultura. Assim, cada órgão gestor deve no futuro definir políticas de cultura e mobilizar recursos e agentes culturais. Há uma cultura da saúde, do transporte, da segurança alimentar, da agricultura e da indústria. A criação do Ministério da Cultura, Educação, Ciência e Tecnologia e Comunicações poderia ser positiva, desde que cada secretaria tivesse recursos suficientes para sua ação e não houvesse abandono de uma ou outra área como geralmente acontece. Mesmo partindo da existência de ministérios distintos, pode-se sugerir que a articulação cultura-educação deverá ser caminho necessário para a implantação de políticas de cultura. Culturalizar a escola – educando professores e estudantes para outros processos educativos, para a consciência de que o saber é mais amplo que a escola, abrindo as portas das instituições escolares para a comunidade e a pluralidade de culturas existentes – poderá contribuir para a cidadania cultural. O alcance das políticas públicas de cultura nesta visão transdisciplinar poderá ser potencializado se houver integração de políticas e ações intersecretariais. Muitas secretarias de cultura de municípios brasileiros viveram esta experiência, embora em pequena escala, mas com bons resultados para a população local.
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2.6 Descentralizar A descentralização é tema dos mais relevantes para as políticas públicas a ação cultural de cultura, principalmente se levarmos em conta a impossibilidade de invertermos prioridades e públicos sem atingirmos massivamente a população. A ação cultural descentralizada permite a valorização das identidades e diversidades locais, a valorização e a criação de novos repertórios culturais e o exercício da democracia cultural como realização da cultura por todos. Permite também entender a população não como espectadora dos processos culturais ou consumidora de cultura, mas como participante ativa dos processos culturais. A ação descentralizada não pode ser confundida com mera descentralização de equipamentos como comumente acontece. Deve possibilitar o exercício da autonomia como o fundo comum das políticas públicas e a criatividade como fundadora da cultura.
2.7 Globalização, Este é o momento de definirmos o lugar cultural do Brasil no processo de identidade e diversidade globalização. Se estamos conectados com o mundo desde nossas origens, nem por isso devemos estar abertos a qualquer globalização, especialmente aquela que nos entende apenas como mercado para os produtos globais ou escoadouro da indústria cultural da pior qualidade, das drogas culturais, dos lixos do imaginário. É só vermos os filmes da TV ou grande parte da produção fonográfica ou de livros para sabermos o que não queremos. Se a globalização é irreversível e nada original, é necessário nos abrirmos para uma boa globalização, de qualidade, de seleção com critérios críticos voltados para as ricas trocas interculturais, cosmopolitas, completando-se em outras culturas. É inaceitável o tipo de globalização que mercantiliza nossa vida concreta e imaginativa. É preciso buscar um encontro multicultural das diferenças. Para isso, precisamos abrir um grande debate público sobre o país que queremos – no Governo, no Parlamento, nos equipamentos públicos, nas universidades e escolas e, principalmente, nas ruas. Recentemente, o Grupo de Trabalho de Cultura do Fórum Social Mundial e a Aliança por um Mundo Responsável, Plural e Solidário dirigiram-se para sete pontos da cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, para conversar com a população sobre o mundo e o país que queremos. É necessário reproduzir esta experiência em todos os níveis para gerar uma verdadeira cultura da identidade e da diversidade. É necessário gerar uma cultura do “ser Brasil”. Somos um país rico em diversidade – de origens, regiões, etnias e raças, modos de vida, tribos, religiões, atividades produtivas, criação artística e cultural, formas de gêneros, opções sexuais, escolhas de vida, etc.
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Esse caldeirão de 170 milhões de habitantes criou no mosaico de experiências culturais um modo peculiar de ser, apenas compreendido profundamente a partir do contato com outras culturas do planeta. O Brasil, embora não seja paradigma da diversidade ou da convivência entre diferentes, sabe, de alguma forma, combinar seu sentimento religioso e a vida profana e material; a simplicidade e a informalidade com o respeito solene; o pensamento selvagem e a racionalidade; a convivência da ancestralidade com o moderno; as raízes e a capacidade inventiva; a eficácia com a criatividade; um equilíbrio entre o sofrimento e a alegria; a sensualidade e o movimento corporal, apesar da vida industrial e o rigor do cotidiano; um sentimento de paz em um cenário de desastre; um bom humor mesmo na derrota. Este povo mestiço e aberto a várias influências, oriundo de matrizes culturais indígenas, negras e européias, sofrendo influências de todo o mundo, sempre reelaborando a vida em processos criativos, poderá dar um grande salto, desde que os governantes e a sociedade hajam com responsabilidade cultural. Os processos culturais são plurais, transculturais e em mutação constante. Se as identidades fossem estáticas, estaríamos submetidos às raízes e não abertos à invenção de novas realidades e novos mundos. Mas negar raízes é esquecer que nos fazemos pela memória e pelas heranças culturais. Não podemos perder nossa origem nem esquecer quem somos. Nossa invenção nos diz onde estamos e onde queremos chegar. A invenção nos liberta do passado, atualiza nossos mitos e nos prepara para as possibilidades do novo, do sonho e da utopia. É equivocado pensar em identidades com a ótica da oposição entre popular e erudito. Alguns pensam em cultura apenas como o reforço de manifestações da arte popular, negando o clássico e mesmo o experimental, que não nasceram necessariamente dos mitos e raízes ou mesmo do conhecimento popular. O mais importante é a qualidade cultural e não o lugar de sua origem ou o caráter do processo criativo. No entanto, é vital para nossa cultura fortalecer raízes e boas escolhas, não deixá-las desaparecer no caudal da indústria cultural de má qualidade. Como afirma o documento elaborado durante o Fórum Intermunicipal de Cultura -FIC: “O desenraizamento cultural é um dos principais resultados da globalização; ele desfaz modos de vida local e expropria milhões de indivíduos de suas referências. Todo um processo cultural entra em decadência, oferecendo-se um padrão fabricado pelo consumo, que tem na mídia um emulador permanente, que busca pasteurizar todo e qualquer tipo de diferença.
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Trata-se hoje de incorporar políticas públicas de resistência à globalização cultural, não como ilusão purista de retorno a um passado estático, mas construir um futuro que não seja um modelo padronizado; que admita a existência de modos de vida diferentes que, por sua vez, criam processos simbólicos e culturas também diversas. É preciso impedir que a globalização seja a anulação das diferenças e a integração a um mundo uniforme e desumano. É preciso, pois, garantir o direito à ancestralidade e o direito à invenção”. Assim, Governo, entidades, movimentos da sociedade civil e os vários atores sócio-culturais deverão trazer o debate sobre o lugar cultural do Brasil na globalização. Com esse objetivo, algumas idéias poderão ser implementadas: • Debate público nas várias regiões do país sobre a defesa da cultura brasileira e suas relações com a cultura global; • Políticas públicas de apoio a manifestações culturais da população - ancestrais e contemporâneas, consagradas e experimentais, de origem popular ou não, em todas as linguagens que reforcem o modo de ser Brasil; • Defesa da produção e distribuição de produtos culturais brasileiros do livro, das artes, do audiovisual; • Programas de difusão das línguas portuguesa, indígena e africana; • Defesa da produção da indústria cultural brasileira de qualidade técnica e ética; • Debate público sobre o papel dos meios de comunicação e a construção da identidade brasileira; • Valorização e resgate da cultura alimentar, da medicina e da cultura dos povos que compõem o Brasil. Estes são alguns pontos mínimos de uma agenda para enfocar a questão identitária. É hora de compreendermos que a pura adesão espontânea a valores de outras culturas pode resultar em descaracterização e mesmo em uniformização do imaginário pretensamente universal. Países como a França e Espanha têm hoje políticas de promoção da língua, do patrimônio cultural e histórico e da sua indústria cultural de produtos e imagens frente ao avassalador processo de mundialização. No caso do Brasil, sempre fomos uma fronteira colonial onde consumimos tudo sem critérios.
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Por exemplo, nos últimos anos promovemos uma desenfreada banalização da língua ao importar palavras com similares nacionais. Promover as línguas de nossos ancestrais indígenas, africanos, a língua portuguesa e a contribuição dos imigrantes é importante para nossa identidade. Isto não quer dizer a defesa de um nacionalismo estreito, mas ao contrário, a abertura ao mundo sem a descaracterização da essência e da vitalidade cultural brasileira. Mestre Didi, guia espiritual e líder negro da Bahia, tem uma chave: ”Evoluir sem perder a essência”.
O processo identitário se fortalece com trocas interculturais de qualidade. O nosso imaginário tem sido povoado de ícones do mundo colonialistamercantil, depois pelo racionalismo das nações européias negando nossos mitos e cosmogonias negras e indígenas; e após, pela presença massacrante do american way of life. Pensamos que é o momento de se abrir para outras trocas e estimular relações comerciais e culturais com nações da América Latina, África e Ásia. As políticas públicas de cultura podem conectar-se com a campanha contra a fome e reforçar a cultura alimentar do país, descaracterizada nos anos recentes pelos alimentos fast food e pela variedade de produtos ocos, isto é, sem nutrientes suficientes para a saúde da população. Estas atividades culturais podem gerar renda e se constituir em sustentabilidade cultural do ponto de vista do mercado e da difusão de valores de promoção humana. Os Governos, além de apoio econômico, poderão qualificar agentes culturais envolvidos nestas atividades e apoiar estudos, pesquisas históricas, formação de associações culturais e cooperativas de defesa da cultura. Vale lembrar os projetos do Governo do Acre de valorização da cultura da floresta – Florestania, a cidadania da floresta –, que envolvem desde valores até a realização de feiras com produtos oriundos da floresta amazônica, artes, etc. Particularmente, nas escolas podem ser valorizadas as culturas matrizes do Brasil em todos os seus aspectos, incluindo-as nos currículos e abrindo o espaço escolar para atividades culturais. A afirmação da identidade e da diversidade é a riqueza cultural de um país para se evitar a colonização do imaginário. Não se pode esquecer que mesmo o imaginário brasileiro é pleno de conflitos, pois constituído por valores e símbolos dos vencedores que devem passar pelo crivo do debate público.
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Para finalizar, como disse Boaventura de Souza Santos, professor de sociologia da Universidade de Coimbra, Portugal: “uma vez que todas as culturas tendem a distribuir pessoas e grupos de acordo com dois princípios concorrentes de pertença hierárquica, e, portanto, com concepções concorrentes de igualdade e diferença, as pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza”.
Em versão análoga, dita por Terena, líder indígena do Brasil: FARIA, Hamilton, GARCIA, Pedro. Cadernos de propostas para o século XXI: arte e identidade cultural na construção de um mundo solidário. Polis, São Paulo, p. 15, out. 2001.
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“Eu posso ser quem você é sem deixar de ser quem sou“14.
A construção da universalidade passa pelo particular. Ao me constituir como sujeito, posso me igualar com outro. Se não tivermos consciência da cultura que queremos – pois tanto a valorização de raízes como os valores a serem praticados são escolhas – dificilmente deixaremos de ser o escoadouro da má cultura dos países hegemônicos.
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3. Cenários no campo sócio-ambiental O ano de 2003, para as ongs e movimentos sociais que trabalham no campo democrático e popular, apresentará desde o início uma realidade historicamente inédita, que forçosamente estará no centro da nossa reflexão política e do nosso planejamento estratégico. Não resta dúvida, em sentido bastante prático, que a proximidade com este Governo, em comparação com os anteriores, será muito maior em termos de programas e objetivos, interlocução e conhecimento pessoal dos ocupantes. Algo neste sentido já vinha ocorrendo com alguns setores do Governo Fernando Henrique Cardoso, devendo radicalizar-se com vários setores do Governo Lula. Por este mesmo motivo, não obstante o reconhecimento da grande vitória popular que esta eleição representou, e a realidade do nosso engajamento entusiasmado na mesma, é mais do que nunca importante preservar e defender a autonomia e o senso crítico das organizações da sociedade civil. O natural aproveitamento do potencial concreto desta conjuntura e das possíveis parcerias com o Governo popular não deve se confundir, como já apontamos outras vezes no decorrer desse trabalho, com uma simples adesão à liderança do Executivo. Até porque, como veremos adiante, existem vários riscos e problemas potenciais para a atuação do novo Governo no campo sócio-ambiental que aqui está sendo focalizado.
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Não se trata, por certo, de fazer oposição ao Governo Lula. Isto seria estrategicamente desastroso, ajudando a debilitá-lo diante das forças conservadoras que a muito custo foram derrotadas e dificultando, para nós, o bom aproveitamento das inúmeras oportunidades de ação transformadora que com ele foram abertas. É preciso considerar o novo Executivo como parte do nosso campo, assumindo-se uma postura cuidadosa no exercício da sua crítica, sem nunca esquecer o contexto político mais amplo. Este cuidado não pode significar, porém, um bloqueio da liberdade de crítica, que de fato constitui uma garantia de vitalidade para os Governos realmente democráticos e não pode deixar de ser exercitada de acordo com necessidades estrategicamente estabelecidas. É importante reconhecer, no plano interno, a heterogeneidade da coalizão de forças que elegeu Lula, inclusive no que se refere ao universo interno do PT. O programa de Governo é vago em muitos aspectos, abrindo espaço para que uma série de decisões importantes sejam tomadas através de uma natural disputa política, que esperamos não leve à autofagia que muitas vezes debilitou historicamente o avanço das esquerdas. É provável, neste sentido, que muitas decisões não sejam tomadas através da vitória simples desta ou daquela posição, mas sim através de composições e acordos. Qualquer proposta, além disso, corre o risco de ser derrotada se desconhecer as tendências e limitações da conjuntura nacional e mundial. Por este motivo, um raciocínio estratégico fino se faz especialmente necessário. No campo sócio-ambiental, por exemplo, é fundamental analisar os riscos e as oportunidades que a conjuntura atual oferece. Após anos de hegemonia das políticas neoliberais, que frearam o crescimento econômico do país, desgastaram sua infra-estrutura, transferiram uma enorme fatia da renda nacional para o setor financeiro e ampliaram o desemprego e a pobreza, o Governo Lula deverá ser necessariamente produtivista. A liberação das forças produtivas, como saída para o sufoco do endividamento, é um compromisso básico do novo Governo, tendo sido inclusive a isca essencial para o apoio recebido por importantes setores do empresariado produtivo, cansados dos privilégios concedidos aos agentes financeiros. A reconstrução e ampliação da infra-estrutura também será um imperativo fundamental para alimentar o novo ciclo de crescimento. Diante desta perspectiva, não é difícil imaginar o nervosismo potencial de setores conservacionistas e ambientalistas, que se consideram defensores do mundo natural diante de qualquer avanço da produção humana.
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Para uma visão sócio-ambiental ou de ecologia política, no entanto, é possível levar em conta as nuances e oportunidades de um processo deste tipo, sem deixar de considerar com preocupação os seus riscos potenciais. Uma grande novidade do Governo Lula, por exemplo, deverá ser a ênfase no atendimento das necessidades populares por infra-estrutura e bens de consumo, promovendo a criação de um mercado popular interno alimentado por políticas distributivas. Ao lado do apoio à grande produção exportadora, que se apresenta no curto prazo como a alternativa menos perversa para a busca de moeda forte e a redução da vulnerabilidade externa, o Governo prometeu adotar, como disse no primeiro discurso o presidente eleito, “uma inversão de prioridades no financiamento e no gasto público, valorizando a agricultura familiar, o cooperativismo, as micro e pequenas empresas e as diversas formas de economia solidária”. Apesar da promessa de apoiar o produtivismo em ambas as frentes (infra-estrutura e bens de consumo), é necessário considerar, em termos práticos, o potencial de tensão presente na disputa entre o setor exportador e o setor do consumo popular, tanto no plano econômico, considerando a escassez de recursos orçamentários, quanto no plano sócioambiental. O grande empresariado, herdeiro do elitismo perverso da vida brasileira, deverá reivindicar, em nome do desenvolvimentismo e do exportacionismo, a parte do leão do apoio econômico governamental, evitando na prática a inversão de prioridades mencionada anteriormente. O que apoiar na prática: os grandes exportadores que geram moeda forte ou as pequenas iniciativas locais que geram trabalho e democratizam a renda? As lavouras de soja ou a agricultura familiar de alimentos básicos? A tendência histórica do PT seria apoiar o segundo campo, mas é obvio que isto será objeto de uma forte disputa política. As dimensões ambientais desta disputa são também previsíveis: o grande empresariado, e também partes do médio e do pequeno empresariado, podem reivindicar, em nome do mesmo desenvolvimentismo, um vale tudo produtivo, um afrouxamento dos controles ambientais sobre a produção e das restrições às fontes energéticas sujas. Tudo isso deve ser objeto de uma reflexão estratégica, tanto nos aspectos positivos quanto nos negativos. A vitória efetiva de uma política que priorize o atendimento das necessidades populares, por exemplo, especialmente no campo do saneamento, abre oportunidades extraordinárias para promovermos a justiça ambiental, a qualidade de vida, o combate à poluição e o estabelecimento de padrões sustentáveis de produção e consumo.
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É necessário superar a visão simplista de que existe uma incompatibilidade universal entre o cuidado ambiental e o produtivismo. Nas sociedades de alto padrão de consumo do Primeiro Mundo, onde vive cerca de 1/5 da humanidade, a busca da sustentabilidade requer, efetivamente, que se freie o crescimento econômico e se reduza drasticamente o consumo de recursos naturais.Mas não se pode adotar uma estratégia única de transição para a sustentabilidade. Para a maior parte da humanidade, especialmente para as massas empobrecidas do Terceiro Mundo, a sustentabilidade sócio-ambiental requer o aumento da produção para melhorar as condições materiais de vida e superar a poluição da miséria (como no caso da ausência de saneamento). Não se trata de culpar a pobreza pela degradação ambiental global, como se pretendeu durante a Rio +10, mas sim de promover a busca de uma linha de dignidade social e ambiental como política prioritária de Governo. Um país como o Brasil, no quadro do espaço sócio-ecológico global, possui uma considerável margem legítima de crescimento econômico. Este crescimento, por outro lado, é condição necessária para a sustentabilidade, inclusive ambiental, desde que privilegie padrões de produção e consumo ecologicamente benéficos e seja realmente democrático, promovendo a dignidade da maioria pobre da população ao invés de concentrar renda na elite minoritária (como tantas vezes aconteceu na história do Brasil). Em suma, o produtivismo do Governo Lula apresenta riscos e oportunidades. É preciso estar preparado para resistir a alguns dos seus possíveis impactos perversos, como se discutirá adiante. A prioridade estratégica inicial para as ongs, no entanto, deve ser a de trabalhar pelo “esverdeamento” da agenda social positiva, demonstrando a compatibilidade prática entre o cuidado ambiental e a promoção da justiça, da qualidade de vida e do desenvolvimento humano. É altamente desejável a criação de sinergias e confluências entre boas políticas ambientais e sociais. A política de combate à fome, por exemplo, pode impulsionar a agricultura familiar agroecológica ou agroflorestal, fortalecendo a fixação e a melhoria das condições de vida das comunidades rurais/florestais, assim como o desenvolvimento regional sustentável, inclusive através de uma nova interação entre espaços rurais, urbanos e “rurbanos” (que transitam entre os conceitos de rural e urbano). A reforma agrária, nesta visão, pode ser um instrumento de justiça ambiental e de política ambiental, democratizando o acesso à terra e seus recursos e promovendo a criação de paisagens rurais sustentáveis e equilibradas.
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A política de saneamento, por outro lado, pode ser um instrumento precioso de justiça ambiental, dotando os grandes contingentes marginalizados da população de condições decentes de acesso à água limpa, ar puro, áreas verdes, coleta e tratamento de lixo, espaços livres de poluição forte, etc. Este “esverdeamento” da agenda social positiva, porém, que cada organização da sociedade civil poderá promover e aproveitar de acordo com seu programa de trabalho, não será capaz de resumir a ação do movimento sócio-ambiental em 2003. Será necessário estabelecer também uma agenda negativa ou de resistência. Esta agenda precisará ser estrategicamente inteligente, evoluindo de acordo com as necessidades e a conjuntura. Por exemplo: no médio e longo prazos, uma política de apoio às exportações de recursos naturais para o Primeiro Mundo é maléfica para a sustentabilidade global, pois fortalece a concentração do uso destes recursos nas mãos de uma minoria planetária, alimentando seus padrões de consumo insustentáveis e impedindo a sua redistribuição global para implementar eqüitativamente o desenvolvimento humano dos diferentes povos. Denunciar uma política de exportações desde o primeiro momento, no entanto, seria desconhecer a situação difícil do novo Governo no campo do endividamento de curto prazo. Estratégia melhor seria apoiar a agenda positiva de direcionar fundos públicos para a segurança alimentar e o atendimento das necessidades infra-estruturais da população pobre, que na prática contribui para a redistribuição já mencionada, mantendo-se a questão dos padrões globais de consumo no plano do debate para uma transformação de mais longo prazo. Na política concreta, no entanto, este tipo de estratégia pode inviabilizar-se devido às demandas da conjuntura e às disputas políticas por recursos escassos. Aceitar a continuidade na construção de usinas nucleares ou grandes hidrelétricas, por exemplo, apenas por ser um Governo popular, seria trair o Movimento dos Atingidos pelas Barragens - MAB - e outros movimentos que sempre denunciaram o autoritarismo destes megaprojetos. Não podemos ser ingênuos. O grande capital quer continuar apropriandose do dinheiro publico e as obras de infra-estrutura serão objeto de fortes disputas políticas. É importante aproveitar a presença do Governo popular, e nossa relação com ele, como recursos políticos nesta disputa. É neste momento que a discussão sobre as prioridades do Governo precisará ser colocada com clareza, para além das promessas de jogo de soma positiva (todos ganham) e do clima paz e amor que Lula usou taticamente na sua campanha.
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De toda forma, sem fazer oposição à priori, e estando abertos ao diálogo e ao trabalho conjunto, é fundamental assumirmos uma posição de princípio no sentido de não aceitar a continuidade dos padrões perversos, elitistas e anti-ecológicos que sempre caracterizaram os grandes projetos de infra-estrutura no Brasil, mesmo que sob a roupagem do novo ciclo de desenvolvimentismo. A continuidade da aliança com os movimentos de resistência local, neste sentido, é um imperativo ético a ser seguido. Em resumo, a posição estratégica que parece mais acertada no campo sócio-ambiental para 2003 deve ser a de priorizar o “esverdeamento” e o aproveitamento de todas as oportunidades da agenda social positiva do novo Governo, sem abrir mão, porém, do monitoramento, da crítica e mesmo da resistência, em aliança com os movimentos de base, diante dos aspectos do crescimento econômico que possam ir fortemente de encontro aos objetivos de construir um país justo e sustentável. Para tanto, é necessário avaliar com realismo o potencial sócio-ambiental do Governo popular. Em primeiro lugar, reconhecendo que não se trata de um Governo verde ou mesmo eco-socialista. No programa do PT, por exemplo, é chocante observar a ausência de palavras como florestas, biodiversidade e agroecologia. Mesmo assim, por outro lado, sabemos que existem importantes setores dentro do PT ou próximos ao partido que incorporaram plenamente estas questões. Existem lideranças verdes e eco-socialistas no partido e na coalizão que devem constituir os nossos principais aliados. Há que se considerar, igualmente, que a abertura geral para o diálogo será maior do que nos Governos anteriores. Mesmo as muitas lideranças do PT que consideram a questão ambiental pouco relevante, pelo menos em sentido prático deverão estar mais abertas para o tema do que os tecnocratas do neoliberalismo. De toda forma, o fortalecimento das lideranças especificamente verdes e eco-socialistas constitui um indicador básico na montagem do novo Governo. Neste sentido, a presença da senadora Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente abre um campo extraordinário de ação, mesmo considerando o poder limitado da sua liderança. Do documento preparado pela Secretaria de Meio Ambiente do PT para o programa de Lula, por exemplo, coordenado pela senadora, apenas uma parte pequena foi aproveitada.
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A mobilização inteligente e bem informada das organizações da sociedade civil desta forma, será essencial no avanço destas políticas. O “esverdeamento” do Governo Lula dependerá em grande parte da capacidade estratégica, conceitual e argumentativa dos setores sócio-ambientais. Será preciso demonstrar, com cada vez maior competência, a profunda conexão existente entre a visão ecologista e a transformação democrática da sociedade. Será preciso demonstrar a confluência possível e necessária entre as políticas de desenvolvimento humano, superação da pobreza, qualidade de vida, cuidado ambiental e sustentabilidade. Será preciso, por fim, produzir argumentos fortes contra a continuidade de práticas e projetos econômicos convencionais, em nome de valores éticos e de questões concretas de sustentabilidade e contraprodutividade sócio-ambiental. O fortalecimento organizacional e teórico/argumentativo do Fórum Brasileiro de Ongs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, neste sentido, será crucial, pois só uma articulação política ampla poderá acumular recursos políticos para fazer frente às pressões do grande capital na definição do novo ciclo desenvolvimentista do Governo popular. Após analisar o dilema político de fundo presente nas perspectivas sócioambientais do Governo Lula, que apresenta questões essenciais para a discussão da nossa estratégia para 2003, é necessário abrir brevemente alguns espaços potencialmente estratégicos para o trabalho sócio-ambiental em 2003, buscando apontar sua relevância na nova conjuntura política que se inicia.
3.1 Saneamento Dos temas ambientais, este foi de longe o que ganhou mais espaço no e Justiça Ambiental programa do PT, inclusive lançando mão do conceito de justiça ambiental. Trata-se, de fato, de um campo prioritário, que apresenta uma oportunidade única para aproximar políticas ambientais e sociais. A promoção do saneamento básico significará um grande avanço na qualidade de vida e na redução do impacto ambiental que sua ausência representa para a sociedade brasileira. O saneamento pode associar-se sinergicamente ao combate à pobreza, a democratização das políticas públicas e a consolidação do apoio da maioria ao Governo popular. Os setores sócio-ambientais devem estar preparados para intensas parcerias neste campo, que receberá recursos consideráveis e necessitará de forte apoio na organização da cidadania, para que não ocorra de cima para baixo e de forma assistencialista.
63 Cenários no campo sócio-ambiental
É importante, neste sentido, chamar atenção para o conceito de justiça ambiental, garantindo que as obras de saneamento sejam dirigidas para a maioria injustiçada e para o enfrentamento da dívida social brasileira. E também que estas obras incluam o fechamento dos focos de poluição e degradação que se direcionam, prioritariamente, para os bairros habitados pelas comunidades pobres. Este ponto é necessário porque os setores empresariais já estão se articulando gulosamente para lucrar com estas obras, podendo influenciar a manutenção do sentido elitista que sempre as caracterizou, focalizando os bairros mais ricos e as obras mais fáceis e lucrativas. A questão dos executores das obras, aliás, é outro aspecto que deve ser considerado. A construção civil é geradora de trabalho e renda, mas isso pode ocorrer de forma concentrada, através de grandes empresas e empreiteiras, ou através de cooperativas, pequenas empresas ou agentes da economia solidária. As grandes empresas tendem a favorecer a adoção de padrões de produção ambientalmente descuidados, além de aumentar o custo e reduzir a qualidade das obras em sua busca por lucro fácil (que tradicionalmente incluiu farto uso da corrupção). Para combater esta possibilidade, é necessário que as obras sejam submetidas ao controle social dos orçamentos participativos, das frentes populares pelo saneamento e de outras ações semelhantes. Cabe lembrar aqui a existência, no Brasil, do chamado capital empreiteiro, conceito formulado pelo ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Carlos Lessa, atual presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Trata-se de um capital não-financeiro, não-industrial e nem comercial. O capital empreiteiro ganha, se reproduz e se amplia nas obras públicas. Quanto maiores e mais custosas as obras, quanto mais abertas as possibilidades de corrupção, melhor. Ele dispõe de um lobby extremamente poderoso e usa a situação política de cada momento. O novo ciclo desenvolvimentista que deverá inaugurar-se durante o Governo Lula certamente já despertou seu apetite.
3.2 Agricultura Familiar, A reforma agrária também será prioritária para o Governo, até mesmo Reforma Agrária em termos emergenciais, já que a agricultura familiar, junto com e Agroecologia a construção civil, é uma grande geradora de trabalho e renda. Existe a informação de que Lula comprometeu-se com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra - MST - a assentar em 2003 as 80 mil famílias que estão acampadas no Brasil, além de consolidar os assentamentos já criados no Governo Fernando Henrique Cardoso.
64 O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/2006
Apesar disso, o MST iniciou, mal completados dois meses de mandato do presidente Lula, um novo ciclo de invasões de terras e ocupações de sedes regionais do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - Incra. A intensificação do processo de reforma agrária e a consolidação de assentamentos abrem um espaço extraordinário para a agroecologia, apesar de, significativamente, este conceito não estar presente no programa do PT. O importante, no entanto, é o fato dele estar presente nas publicações e nos discursos de lideranças do MST e de muitos Sindicato de Trabalhadores Rurais, além de apresentar um importante portfólio de experiências bem sucedidas em diferentes regiões. Trata-se, de fato, de um dos movimentos mais profundos de aproximação entre os setores populares e a visão ecologista, tendo em vista que a disseminação das práticas agroecológicas hoje atinge milhares de famílias camponesas. Para que este espaço estratégico de atuação possa desenvolver-se com sucesso, é necessário associar a produção agroalimentar à busca por um desenvolvimento local/regional sustentável. Por exemplo: a produção agroecológica familiar pode ser integrada diretamente às políticas de combate à fome, segurança alimentar, educação popular e desenvolvimento humano. O mesmo pode ser dito das políticas de saneamento básico que, ao contrário do que muitos imaginam, não devem ficar restritas ao espaço das cidades. As áreas rurais, efetivamente, possuem uma carência de saneamento muito maior do que as urbanas, sendo este um dos fatores que favorecem o êxodo rural. O programa do PT – e isso é muito positivo – apresenta o fato de 20% da população brasileira viver no campo como uma oportunidade e não como um problema. A disponibilidade de terras públicas para serem distribuídas para agricultores familiares representa um grande recurso de inclusão social disponível para o poder público brasileiro, e apresenta a vantagem adicional de não fomentar endividamentos e vulnerabilidades externas. Mas, para tanto, é preciso tomar o fortalecimento do mundo rural, em toda a sua multidimensionalidade, como um objetivo geopolítico do campo alternativo. Não faz sentido, considerando a realidade social e geográfica do Brasil, copiar o caminho dos países da Europa e da América do Norte, que quase acabaram com a sua população rural e hoje investem bilhões de dólares por ano para manter o que restou. Tal objetivo, no entanto, apenas poderá ser atingido com uma política integrada que possa reverter o quadro hoje observado, onde, ao mesmo tempo em que se promove o assentamento de centenas de milhares de famílias, um número ainda maior deixa o campo por não conseguir obter condições dignas de vida.
65 Cenários no campo sócio-ambiental
3.3 Florestas, Neste ponto, como já foi dito, o programa do PT foi muito omisso. A nomeação Populações Tradicionais de Marina Silva para o Ministério do Meio Ambiente, no entanto, cria uma e Unidades de Conservação situação extremamente benéfica para uma mudança substantiva das políticas para as florestas e para os grandes biomas brasileiros. Com a considerável redução da bancada ruralista no Congresso eleito em 2002, pode-se esperar que perca alento o esforço político pela deformação do Código Florestal em benefício dos grandes proprietários, confirmando-se a versão atualmente em vigor. Pode-se prever, igualmente, que a conclusão das demarcações das terras indígenas e a defesa destas populações ganharão mais força. Pela sua formação cultural coletiva, e por sua ligação com a Igreja, é pouco provável que os políticos petistas não tenham uma performance melhor neste campo. É um bom momento, portanto, para uma ofensiva em favor dos direitos indígenas. O espaço que deve apresentar maior apoio e crescimento, no entanto, é o da reforma agrária agroflorestal e da defesa das populações extrativistas. O próprio Lula sempre se refere de maneira elogiosa ao movimento das quebradeiras de coco. A ligação da ministra Marina Silva e do PT do Acre com o Conselho Nacional dos Seringueiros -CNS é notória. Pode-se esperar um aumento do apoio às políticas sócio-ambientais de assentamento de populações tradicionais em unidades de conservação de manejo comunitário e sustentável. Este será um campo igualmente promissor para o trabalho de muitas organizações da sociedade civil. É importante garantir, porém, que o aumento no número e no tamanho das reservas extrativistas seja considerado parte integrante do projeto maior de reforma agrária para as regiões com forte presença de biomas nativos, associando-se este projeto com as políticas de combate à fome e de desenvolvimento local/regional sustentável. É fundamental influenciar uma mudança nas ações do Ministério da Reforma Agrária, evitando, especialmente, que a região da floresta amazônica continue a ser utilizada como espaço de reforma agrária convencional, com a divisão individual de lotes e o quadriculamento do espaço que tem sido, efetivamente, um fator intenso de desflorestamento desnecessário.
66 O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/2006
3.4 Considerações
Os campos de ação mencionados anteriormente não representam, obviamente, uma lista exaustiva, mas apenas uma indicação de algumas áreas prioritárias da agenda social positiva do Governo popular que podem ser “esverdeadas” no curto prazo. O caráter prioritário destas áreas pode ser deduzido do exame do programa de Governo e dos nomes indicados para posições de liderança. Estas áreas deverão receber um volume considerável de recursos e deverão ser, desde o início, objeto de um debate aberto e de um acompanhamento participativo por parte da sociedade civil. Elas também permitirão o estabelecimento consistente de diversas parcerias, já que envolverão ações nos planos Legislativo, Executivo e da organização cidadã. Existem tendências na atual conjuntura, por outro lado, especialmente derivadas das necessidades e opções de uma política econômica que decidiu não romper bruscamente com a ordem anterior, que poderão constituir entraves, ou mesmo ataques ativos, contra a busca pela qualidade de vida sócio-ambiental e pela sustentabilidade democrática. Neste caso, as organizações da sociedade civil devem manter a sua autonomia e seu senso crítico, em aliança com os movimentos de base, para questionar ativamente o sentido destas opções com base em argumentos éticos e substantivos que sejam claros e bem formulados. Sempre lembrando a necessidade de evitar a autofagia e garantir, na medida do possível, a continuidade histórica do Governo popular por um tempo indefinido. Isto porque as transformações que precisam ser feitas na sociedade brasileira não serão realizáveis em quatro anos, mas requererão uma hegemonia política popular de longo prazo, garantida por uma contínua obtenção da confiança do eleitorado. Esta visão de longo prazo pode auxiliar na adoção de uma postura de paciência revolucionária, como dizia Paulo Freire. Mas não pode significar uma abdicação de valores, posições ético/políticas e senso crítico. Não se pode exigir do Governo popular uma resolução rápida dos problemas seculares da sociedade brasileira, mas sim a manutenção de um direcionamento e de uma prática que sejam compatíveis com os ideais de transformação moral e social que vieram se acumulando na sociedade brasileira e nas organizações da sociedade civil ao longo das últimas décadas.
67 Cenários no campo sócio-ambiental
4. Cenários para a questão agrária
Os parágrafos imediatamente a seguir estão fundamentados nas conclusões de um artigo escrito por Sérgio Leite em colaboração com Moacir Palmeira. O presente exercício toma, portanto, essas mesmas conclusões como ponto de partida para as reflexões aqui sistematizadas em torno do quadro agrário atual. Ver PALMEIRA, M., LEITE, S. Debates econômicos, processos sociais e lutas políticas. In: COSTA, L.F.C., SANTOS, R.N. (Orgs.). Política e reforma agrária. Rio de Janeiro: Mauad, p. 92-168, 1998.
15
Diferentemente daqueles que, ao longo dos anos 80, pontuavam a obsolescência de medidas e processos relacionados à questão agrária brasileira – aqui especialmente compreendida pela dicotomia reforma agrária/ agricultura familiar –, a agenda praticada durante os anos 1990 mostrou claramente que o tema ainda ofertava um enorme campo de possibilidades. Possibilidades exploradas e concretizadas, sobretudo, através da iniciativa e atuação de diferentes movimentos sociais rurais e suas organizações de apoio e assessoria15. A análise dos processos agrários ao longo dos últimos quarenta anos oferece os elementos necessários para entendermos a configuração assumida pelo tema na transição do regime autoritário para a democracia: a da contraposição entre dois movimentos. Por um lado, a progressiva ilegitimação das formas tradicionais de dominação conduzindo à multiplicação dos conflitos e à ampliação do seu âmbito, fato que se desdobra nas décadas de 1980 e 1990, levando à constituição dos assentamentos rurais.
68 O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/2006
Por outro, as vantagens asseguradas pelo Estado, no bojo da política de modernização da agricultura, atraindo para o setor capitais de diferentes origens e dando lugar a uma poderosa coalizão de interesses, articulada por dentro da máquina pública em torno dos negócios com a terra. Isso pareceu levar a uma espécie de impasse. O primeiro movimento colocou a reforma agrária na ordem do dia. Mas o peso dos interesses agrários dentro do Estado foi suficientemente forte para inibir qualquer tentativa mais séria de realizá-la. No entanto, entre um período (pré-80) e outro (pós-80), algumas descontinuidades, nada desprezíveis, pareceram emergir, redimensionando a temática agrária.
O assessor do Inesc Edélcio Vigna ressalta a “importância do PPA, pois só os projetos ou atividades que o compõem é que necessariamente entram no orçamento. Dessa forma, se uma organização social desejar que os projetos de seu interesse entrem obrigatoriamente no orçamento da União, deve garanti-los, anteriormente, no PPA”. Cf. VIGNA, E. Empréstimos externos influenciam a reforma agrária no Brasil. Nota Técnica n. 71, Inesc, Brasília, p. 5, out. 2002.
16
17 VIGNA, E. O PLDO 2003 e a política agrária. Nota Técnica n. 64, Inesc, Brasília, p. 7, jun. 2002.
Essas descontinuidades remeteram, fundamentalmente (e de modo diferenciado), ao funcionamento de certos aspectos do regime democrático. No que diz respeito à legislação, a descontinuidade corre menos por conta das mudanças de conteúdo do que pelos procedimentos legais, que limitam o grau de arbítrio dos governantes e dos seus funcionários. A liberdade de informação, dependendo do estado das disputas entre agentes da mídia e de outros fatores, contribui, certamente, para a publicização de processos e demandas sociais. Mas a ruptura maior talvez tenha a ver com a autonomização dos poderes. A participação efetiva do Congresso nos processos decisórios, independentemente de sua eventual composição, contribui para dificultar certos procedimentos políticos e administrativos que se davam em circuito fechado. A participação do Congresso abriu espaço à pressão popular. Um dos aspectos que ressaltamos, diretamente relacionado à prática institucional do Inesc, é a focalização sobre as ferramentas e os trâmites que marcam a proposição, votação e implementação do Orçamento Geral da União16. Esse novo locus de enfrentamento de propostas constitui-se verdadeiramente numa arena decisória vital na capacidade de execução de determinadas políticas públicas direcionadas ao campo agrário17. Parece-nos que são, sobretudo, essas descontinuidades introduzidas pela operação do regime democrático que têm pesado na reconfiguração da questão agrária e na incorporação de uma dinâmica nova às lutas que se dão em torno da terra. Se, sob o regime autoritário, intervenções localizadas para resolver esse ou aquele conflito tendiam a esgotar-se nelas próprias, na vigência de um regime político democrático, com movimentos sociais atuantes, seu destino pode ser outro. A experiência dos assentamentos rurais, que têm se transformado numa espécie de prolongamento do campo de luta da reforma agrária, ilustra bem isso. É possível que se esteja criando uma dimensão de acúmulo que torne mais difícil o bloqueio desse longo processo de quebra do monopólio da terra.
69 Cenários para a questão agrária
Mas a consolidação da democracia política por si só não garante a democratização da propriedade da terra; simplesmente abre espaço para que isso ocorra. Instituições democráticas funcionando normalmente, movimentos sociais ativos, opinião pública receptiva e adversários extremados da reforma postos, por várias razões, em atitude defensiva, não eliminam automaticamente aquela presença quase simbiótica dos interesses agrários dentro da máquina do Estado ou mudam a composição de um Congresso em que a vinculação direta ou indireta de parlamentares ao negócio da terra vai muito além da eventualidade de uma bancada ou de um bloco parlamentar, como tem sido a experiência observada nos últimos dez anos. Ou ainda, a prática, como aquela desenvolvida pela administração do Governo FHC, de impor ao Legislativo uma pauta determinada pelo Poder Executivo através de medidas provisórias, também no segmento da reforma agrária, vai de encontro ao efeito positivo das descontinuidades que mencionávamos acima.
4.1 As mudanças em curso
As transformações que se avizinham na estrutura da administração do Governo Federal, bem como na composição parlamentar, seja na Câmara dos Deputados, seja no Senado, podem fortalecer determinados processos desenhados no campo agrário recentemente. Esse fortalecimento, no nosso entender, estará sujeito, todavia, ao complexo jogo de pressões políticas, abrindo a possibilidade, agora mais concreta, de instituições como o Inesc e movimentos organizados avançarem na viabilidade de determinadas questões, numa direção voltada à construção da nova agenda rural. Trataremos a seguir de alguns desses processos, tomando o devido cuidado de pensá-los à luz de um quadro que, se de um lado possibilita esse exercício transformador, de outro mantém certos constrangimentos e contingenciamentos, como os de ordem orçamentária, que não devem ser descartados. O primeiro aspecto a ser aqui examinado, no âmbito da questão agrária, refere-se ao programa de reforma agrária e à implantação de assentamentos rurais. Desde logo é preciso destacar a necessidade de rever parte da legislação infraconstitucional, especialmente aquela derivada do Decreto 2.250, de 11 de junho de 1997, e outras medidas que tendem à uma postura criminalizadora com relação ao processo de luta pela terra. Na realidade, é necessário revisitar a legislação agrária, incluindo nesse movimento a edição de um novo Programa Nacional de Reforma Agrária, que não tome o assentamento de famílias de trabalhadores rurais como apenas um negócio.
70 O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/2006
Conferir, entre outros, MEDEIROS, L., LEITE, S. (Coord.). Impactos regionais dos assentamentos rurais: dimensões econômicas, políticas e sociais. Rio de Janeiro : PDA/UFRJ- Finep, 2002. (Relatório de Pesquisa); HEREDIA, B. et al. Análise dos impactos regionais da reforma agrária no Brasil. Estudos, Sociedade e Agricultura, Rio de Janeiro, n. 18, p. 73-111, abr. 2002.
18
Estudos recentes sobre os impactos locais e regionais proporcionados pela criação de projetos de reforma agrária têm mostrado a capacidade dinamizadora desses núcleos, quer na dimensão econômica, quer ainda nas dimensões políticas e sociais18. Uma dessas dimensões, cruciais ao quadro socioeconômico atual, é a capacidade de geração de novos postos de trabalho. Levantamento feito com 1.568 beneficiários, instalados em assentamentos existentes em nove estados brasileiros, mostrou que a democratização da terra pode cumprir um papel importante na atividade empregatícia, amálgama de qualquer processo de desenvolvimento real. De acordo com a tabela 3, do total da população maior de 14 anos nos projetos pesquisados, 79% trabalhava somente no lote, 11% no lote e também fora do lote, 1% somente fora do lote e 9% declarou não trabalhar. Ou seja, 90% dos assentados maiores de 14 anos trabalhavam ou ajudavam no lote, numa média de três pessoas por lote. Dos que faziam algum trabalho fora do lote (12% do total), 44% o faziam em caráter eventual, 24% em caráter temporário e 31% de modo permanente. É interessante observar ainda que, dos que trabalhavam fora do lote, mais da metade (56%) exercia atividades somente dentro do próprio assentamento, incluindo trabalhos não-agrícolas gerados pela implantação do projeto (construção de estradas e infra-estrutura coletiva, professora, merendeira, agente de saúde, trabalhos coletivos, beneficiamento de produtos, etc).
Graziano da Silva, em trabalho recente, qualifica bem esse aspecto, destacando os alcances e limites do que ele chama de novas questões do rural brasileiro. Cf. SILVA, Graziano J. da. Velhos e novos mitos do rural brasileiro: implicações para as políticas públicas. BNDES. In: Seminário “Desenvolvimento em Debate” – Painel “Desenvolvimento Rural Sustentável”. Rio de Janeiro, p. 28, out. 2002.
19
Abrindo um pequeno parêntese, é preciso lembrar que o trabalho nãoagrícola pode significar, em boa parte dos casos dos domicílios rurais – localizados ou não nos assentamentos rurais – um determinado nível de precariedade. Assim, é necessário tomar cuidado com o incentivo exacerbado na promoção das ocupações não-agrícolas, sem contudo descartar as estratégias de reprodução familiar que passam por atividades pluriativas ou multifuncionais, fugindo da rigidez do modelo produtivista agrícola19. A extrapolação dos dados da amostra para os municípios e para a “mancha” permite perceber que os assentamentos são importantes geradores de emprego. No conjunto das “manchas”, são 45.898 pessoas maiores de 14 anos que efetivamente trabalham nos assentamentos; 93,76% delas somente no projeto (no próprio lote, em outros lotes, ou em outras atividades). Do total das que trabalham, com mais de 14 anos, 42,7% são mulheres, indicando sua ativa participação nas tarefas que envolvem as diferentes atividades do assentamento.
71 Cenários para a questão agrária
Além de gerar empregos para a família, os lotes também geram trabalho para outros. Com base nos resultados dessa mesma pesquisa, verificou-se que quando se considera a contratação de trabalho pelos assentados, 36% dos lotes pesquisados contratam pessoas de fora. Os índices mais baixos de contratação aparecem no Sul da Bahia (14%), Oeste de Santa Catarina (15% para região de Abelardo Luz e 17% para o Extremo Oeste) e Ceará (18%). No Entorno do Distrito Federal, 43% dos lotes contratam. O mesmo índice aparece na Zona da Mata, com variações internas (33% no Brejo, 40% na Mata paraibana e 47% na Mata pernambucana e alagoana).
(*) Inclui pessoas que trabalham só no lote, ou no lote e fora do lote
tabela 4
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A
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B
Pessoas nos assentamentos (todas as idades)
C
Total de Maiores de 14 anos (exclui menores de 14 anos e sem informação. Inclui os “sem idade” que são responsáveis, cônjuges ou genro/nora, provavelmente maior de 14 anos).
D D/B D/A E
Nº de pessoas trabalhando no lote (Inclui todas as idades) % sobre total de pessoas assentadas Nº médio de pessoas ocupadas por lote Maiores de 14 trabalhando no lote (só no lote ou no lote e fora do lote).
E/C
% do total de maiores de 14 anos
E/D
% do total de pessoas que trabalham
E/A
Nº médio de maiores de 14 anos ocupados por lote
72 O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/2006
A referência às “manchas”, na tabela 3, reflete uma delimitação das áreas de estudo de uma dessas pesquisas, indicando regiões do país com elevada concentração de projetos de assentamento e alta densidade de famílias assentadas por unidade territorial, com base na pressuposição de que este procedimento traria maior possibilidade de apreensão dos processos de mudança em curso, potencializando os efeitos regionais identificados a partir da criação dos assentamentos. Estas regiões passaram a ser denominadas “manchas” e sua delimitação geográfica não necessariamente coincide com outros recortes regionais existentes (como, por exemplo, o do IBGE, dos Governos estaduais, do Incra, dos movimentos sociais): o critério para a sua definição foi a existência de um conjunto de municípios vizinhos com concentração relativamente elevada de assentamentos, tanto em número de projetos quanto em número de famílias e em área ocupada, e com uma dinâmica histórica, econômica, social e organizativa comum20. 20 Foram selecionadas seis grandes “manchas”, refletindo a diversidade da realidade brasileira: Sul da Bahia, Entorno do Distrito Federal, Sertão do Ceará, Sudeste do Pará, Oeste Catarinense e Zona Canavieira Nordestina. Para detalhes sobre a metodologia do trabalho, consultar HEREDIA, B. et al., 2002, op.cit.
21
O que estamos querendo ressaltar aqui, com essa noção, é o fato de que a conformação das manchas, contrapondo-se à lógica de desapropriações isoladas que caracterizam a intervenção do Estado na questão agrária, já é, por si, um aspecto relevante das transformações que os assentamentos têm provocado no espaço regional. O Estatuto da Terra foi a primeira legislação a estabelecer uma sistemática de intervenção e de desapropriação e a prever a indicação de “áreas prioritárias de reforma agrária”, mas elas não se tornaram realidade durante o período militar. Uma perspectiva de alteração desse quadro surgiu com a redemocratização, em 1985. A proposta do Programa Nacional de Reforma Agrária - PNRA, pautada sobre o Estatuto da Terra, visava ao estabelecimento de zonas prioritárias de reforma agrária. No entanto, a reação das forças anti-reformistas levou ao abandono dessa idéia. Daí para frente, realizaram-se desapropriações não planejadas que, embora bem mais freqüentes do que no regime militar, ocorreram na esteira dos conflitos e das mobilizações sociais que, com o arrefecimento da repressão, desenvolveram-se mais rapidamente. As medidas que resultaram na criação dos assentamentos do período democrático, sem estarem orientadas para a realização de uma reforma agrária massiva, foram potencializadas por uma certa simultaneidade (pacotes de desapropriações) e por sua concentração nas regiões em que os movimentos atuavam, mesmo não atingindo necessariamente áreas contíguas. A percepção do sucesso do caminho adotado estimulou trabalhadores das cercanias a seguirem na mesma linha, com novas desapropriações sendo feitas, adensando-se os assentamentos em determinadas áreas e levando os movimentos a tentarem repetir a experiência em outras tantas. Assim foram surgindo como que áreas reformadas a posteriori21.
Cf. HEREDIA et al., 2002. Op. cit.
73 Cenários para a questão agrária
“Promover o estabelecimento de zonas reformadas, priorizando a desapropriação por interesse social como instrumento de arrecadação de terras improdutivas”. Cf. PT. Vida digna no campo: desenvolvimento rural, política agrícola, agrária e de segurança alimentar. São Paulo, p.18, 2002.
22
23 A política recente de emancipação e consolidação dos assentamentos rurais efetuada pelo Incra, incluindo a distribuição dos títulos de propriedade das parcelas ocupadas pelos beneficiários pode estar gerando um efeito desagregador. Para poder pagar o valor cobrado pelos títulos, valor calculado com base nos preços praticados no mercado de terras, os assentados começam a esboçar um movimento que consiste em “picotar” o lote, vendendo parte do mesmo. Ou seja, mais uma vez, a “racionalidade mercantil” prevalecente pode estar gerando resultados inversos ao esperado. Para uma argumentação teórica sobre o assunto, ver HIRCHMAN, A. O progresso em coletividade: experiências de base na América Latina. Rosslyn: Fundação Interamericana, 1987; e POLANYI, K. A nossa obsoleta mentalidade mercantil. Revista Trimestral de História & Idéias. Porto, n. 1, p.7-20, 1978.
Ver VIGNA, E. Op. cit. e VIGNA, E. Empréstimos externos influenciam a reforma agrária no Brasil. Nota Técnica n. 71, Inesc, Brasília, p. 10, out. 2002..
24
Um balanço recente e atualizado desse processo é encontradoem MEDEIROS, L. Movimentos sociais, disputas políticas e reforma agrária de mercado no Brasil. Rio de Janeiro : Edur/Unrisd, p. 127,2002.
25
Conferir resultados detalhados sobre o assunto no estudo coordenado por SAMPAIO, O.B.M. Desapropriação agrária pelo rito sumário: justa indenização. Brasília : Incra, p. 133, 2000.
O programa apresentado pelo Partido dos Trabalhadores nas últimas eleições presidenciais deixa explícita, em diferentes passagens, sua orientação no resgate da noção de zonas reformadas22, indo ao encontro dos nossos resultados de pesquisa, que prevêem a multiplicação dos impactos regionais da reforma agrária a partir de áreas com alta densidade de famílias assentadas e não através de uma política pontual e atomizada de assentamentos rurais. O destaque dessa proposição parece-nos fundamental. Ainda mais por centrar esforços na desapropriação por interesse social como instrumento básico da democratização da terra, através da constituição dos projetos de assentamento23. Assim o resgate do grau de centralidade da política de desapropriação é outro aspecto que merece ser analisado cuidadosamente. Uma rápida passagem pela composição orçamentária da “função agrária”24 irá mostrar um peso importante dos recursos alocados (previstos e/ou desembolsados) nas rubricas referentes ao crédito fundiário, tanto para o exercício fiscal de 2002 como para aquele desenhado para 2003. Por crédito fundiário estamos considerando os programas relativos ao Cédula da Terra, Banco da Terra e Combate à Pobreza Rural, ainda que existam diferenças conceituais e instrumentais entre os mesmos. Mas não deixa de ser notória a prioridade atribuída ao instrumento de “reforma agrária via mercado”25 quando contrapomos os recursos deste mecanismo àqueles de implantação e gerenciamento dos assentamentos de reforma agrária propriamente dita.
26
A maior parte dos estudos tem feito tábua rasa a respeito de todo acúmulo recente que se vem obtendo com o processo de desapropriação de imóveis rurais ociosos, por interesse social. Mais do que simplesmente uma alocação de recursos, trata-se de uma política social e politicamente amparada por crescentes camadas de movimentos sociais, que tem revertido na inclusão social de um contingente significativo de brasileiros. Dessa forma, há uma substancial modificação no ritmo processual do instrumental básico à ação desapropriatória, como a efetiva participação do Ministério Público no encaminhamento do processo, que precisa ainda ser aprimorada. Por outro lado, constata-se que a elevação do custo imputado pelos processos de perícia administrativa e judicial tem se concentrado nessa última. Assim, a sustentação do programa, inclusive em termos financeiros, tem passado pela reforma e definição desse instrumental26.
74 O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/2006
A tabela 4, contendo dados de uma detalhada pesquisa realizada em diferentes estados brasileiros, apresenta um quadro de diminuição, ainda que relativa, dos valores praticados pelo Incra na chamada fase administrativa do processo. Uma comparação inicial permitiria colocar que, se comparados aos valores praticados pelo Programa Cédula da Terra (PCT), a possibilidade de, na média, trabalharmos com valores muito próximos, ou até favoráveis à reforma agrária, é bastante alta. � �
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A tabela 5 demonstra ainda que a majoração dos valores ocorre fundamentalmente na fase jurídica, especialmente no parecer que serve de base ao laudo judicial do processo, ainda que, nos poucos casos em que se chega à finalização dos mesmos, as sentenças tenham revelado valores bem abaixo desses últimos.
75 Cenários para a questão agrária
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27
Ver MEDEIROS, L. 2002, Op. cit.
Podemos concluir, portanto, que o instrumental em si da desapropriação não deve ser descartado em nome de uma eficiência maior dos mecanismos de mercado, mecanismos esses que têm sido questionados a partir da experiência recente dos programas de crédito no Brasil e em outros países27. Na realidade, a questão agrária, seja aquela relativa à reforma agrária propriamente dita, assunto mais explorado neste texto, seja aquela referente à agricultura familiar, tem demandado um aprimoramento dos instrumentos de intervenção e sua prática, bem como a construção de uma rede de proteção social e o redesenho do arcabouço institucional sobre o qual as mesmas operam. No primeiro caso, e aqui há outro aspecto das mudanças em curso a ser
28 Ver DELGADO, G.; CARDOSO JR.., J.C. (Orgs.) A universalização de direitos sociais no Brasil: a Previdência Rural nos anos 90. Brasília : IPEA, 2000..
destacado, é o papel fundamental que o programa de previdência social rural tem proporcionado à fixação e ao funcionamento de um enorme conjunto de domicílios rurais situados em regiões desfavorecidas. Fugindo às controvérsias sobre conceitos como rural, agrícola ou agricultura familiar, um estudo recente sobre o tema28 centrou sua bateria sobre a unidade domiciliar beneficiária do programa em tela.
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A sensibilidade em tomar este tema como objeto de pesquisa, além de dar visibilidade a um conjunto extremamente importante de inovações institucionais em matéria de políticas públicas/políticas sociais e seus impactos regionais, permitiu concluir que um dos principais elementos do que hoje é denominado de novo rural ou o novo mundo rural são os idosos. Um dos pontos destacados pelo trabalho é a vertiginosa expansão dos recursos dispendidos com esse programa que, ao eleger a unidade familiar como base da atividade econômica sobre a qual incide o benefício rural, ampliou drasticamente o grau de cobertura da política, para o qual também contou a elevação do piso de meio salário mínimo para um salário mínimo. Dessa forma, o grau de importância e a abrangência do programa, que fundado no recebimento de um salário mínimo mensal (programas universais com flat rate (tarifa plana) reforça a constatação da relação entre o aumento do salário mínimo e o combate à pobreza, ainda que no caso da Previdência estejamos tratando de um sistema de proteção social como lembramos anteriormente. Isto justificaria a conclusão dessa pesquisa sobre a manutenção das transferências extra-programa, socialmente embasadas diante do enorme significado do mesmo sobre o nível de renda, de atividade econômica e condições de vida da população rural brasileira. Particularmente interessante nesse aspecto é a idéia de seguro-agrícola (ou seja, os recursos da Previdência financiando parte do custeio da produção agropecuária) e o estabelecimento de uma linha endógena da pobreza, onde fica comprovada a capacidade, especialmente na região Nordeste, das famílias cujas rendas derivam basicamente da Previdência (caso das famílias com renda até 2 salários-mínimos) de galgarem a um esquema de reprodução ampliada da unidade doméstica. Outro ponto sobre o qual gostaríamos de chamar a atenção é a adoção de um sistema que consolidou sua capacidade de atendimento e seu grau de cobertura não através do tempo de contribuição, mas sim nos benefícios de aposentadoria por idade e no reconhecimento do trabalho dispendido no meio rural. Tal fato tem sido objeto atualmente de forte pressão contrária, tendo em vista os projetos governamentais encaminhados ao Congresso tratando de ampliar a capacidade de arrecadação das contribuições rurais no sistema previdenciário, especialmente naquelas camadas de agricultores familiares ou da pequena agricultura. Guardadas todas e possíveis proporções, poderíamos dizer que, em detrimento de uma postura de orientação keynesiana (implica em intervenção do estado), pautada por programas de bem-estar social, reforça-se uma perspectiva que prioriza o equilíbrio fiscal da política, quando na realidade sistemas de transferências implicam em decisões, legitimadas social e politicamente, em prol de determinados segmentos da sociedade.
77 Cenários para a questão agrária
Isso nos leva ao último ponto deste texto, voltado ao arcabouço institucional dos programas direcionados ao ambiente agrário. Primeiramente, é preciso fazer referência à necessidade de ampliar e tornar mais capilar a política de crédito, especialmente de investimento, que tem sido consolidada através do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar - Pronaf. Com ela, gerou-se igualmente um conjunto de inovações institucionais, como a implantação dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural, que precisam ser aprimoradas no sentido de garantir a efetiva participação dos agricultores familiares no processo decisório das políticas públicas de ordem local voltadas ao desenvolvimento rural e não apenas ao crescimento agrícola. Mas o que nos parece relevante destacar é a localização de tais programas na futura esfera governamental. A problemática agrária estará alocada em ministério próprio, desvinculada daquele destinado a tratar dos assuntos agrícolas. Essa divisão apresenta aspectos positivos e negativos sobre os quais seria desejável uma reflexão mais apurada. Especulativamente, é possível mencionar o risco de termos um ministério centrado, e ainda com poucos recursos, no tema da pobreza; e outro, com recursos e aparelhos institucionais de maior envergadura (como a Embrapa, por exemplo), para tratar da produção de riqueza. Tal divisão fazia sentido num contexto político onde a relação de forças pendia para uma dimensão agrícola conservadora (e com isso, a necessidade de ter um fórum específico para o assunto agrário), contexto que poderia estar configurado de uma forma diferente na conjuntura próxima. No entanto, pesa favoravelmente à separação a dose de realismo ao presumir que uma inversão de poder dessa natureza ainda não seja um passo factível, sendo necessário consolidar e proteger os espaços alcançados para a promoção da política agrária. No entanto, é preciso mobilização para que esses processos que aqui destacamos possam avançar.
78 O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/2006
5. Cenários para a questão racial Tendo em vista ser a missão institucional do Inesc “contribuir para a promoção e o fortalecimento da democracia representativa, participativa, plural, que garanta os direitos humanos, a cidadania, a diversidade, o pluralismo, a sustentabilidade sócio-ambiental e a eqüidade de gênero, mediante a inclusão social, política, econômica e cultural”, consideramos como uma prioridade inicial a introdução da análise da dimensão racial presente em alguns dos temas estratégicos de sua missão, a saber: criança e adolescente, a questão agrária e agrícola e a dos gastos públicos. Em todas essas temáticas há uma dimensão racial que se expressa no diferencial negativo que o racismo e a discriminação agregam aos segmentos a eles expostos, seja pela ausência ou omissão dessa variável - o quesito cor - nos temas em questão, o que compromete a focalização mais qualificada das políticas públicas para atingir metas desejáveis de inclusão social.
5.1 Cenários para Sabe-se, por pesquisas realizadas pelo Instituto de Pesquisa Econômica crianças e adolescentes Aplicada - IPEA, que as crianças e os adolescentes negros compõem o segmento mais pobre da sociedade brasileira. Segundo Ricardo Henriques economista
79 Cenários para a questão agrária
“ao analisarmos a incidência da pobreza a partir das faixas etárias da população vemos que ela se concentra de forma desproporcional entre as crianças. Vemos que 43% da pobreza se concentra em crianças de 0 a 14 anos, sendo que o peso desta faixa etária na população total é de 29%. (...) Na faixa etária de 7 a 14 anos, (...) para cada 100 meninos brancos pobres contamos com 103 meninas brancas, 189 meninas negras e 203 meninos negros.”
29 HENRIQUES, R. Meninas negras na escola: silêncio e horizontes da desigualdade racial brasileira. MIMEO, 2002.
É nítida, portanto, a existência de dois patamares significativamente distintos da pobreza, orientados, de forma direta, pela composição racial da população brasileira.29 Portanto, qualquer enfoque voltado para a temática das crianças e dos adolescentes requer a consideração das desigualdades raciais nela presentes para que as políticas públicas nessa área possam atingir de fato, dentre crianças e adolescentes, os mais despossuídos. Esta questão nos remete diretamente ao problema da focalização nas políticas públicas, ponto em relação ao qual o Inesc, com sua experiência em políticas públicas, pode dar importante contribuição. Segundo Ricardo Paes de Barros economista, os gestores das políticas públicas costumam dizer que para mudar a focalização dessas políticas é preciso mudar a Constituição. Porém, é sua opinião que bastaria uma decisão política do Conselho de Assistência Social para que essa mudança na focalização das políticas públicas fosse empreendida.
BARROS, R.P. Palestra proferida no seminário Relatório do SeminárioCARE/IETS: Erradicar a pobreza: compartilhar o desafio, ocorrido em 14 e 15 de dezembro de 2001, em São Paulo.
30
31
Ibidem.
Isso não ocorre, segundo ele, porque “o Conselho Nacional de Assistência Social segue o que eles chamam de critério histórico”: o dinheiro do passado se divide como sempre se dividiu. Apenas se houver maior aporte de recursos é que se pensa nos pobres.30 Ele usa como exemplo um estudo realizado pelo IPEA sobre como o dinheiro de creches é repartido entre as unidades da federação:“Vimos que a última criança atendida em Santa Catarina tinha renda per capita de 50 reais. Em Pernambuco, a renda da criança era de 5 reais. Então, é tirar dinheiro de um e dar para o outro. Quem está abaixo da média são os estados de Sergipe, Piauí, Ceará, Bahia, Alagoas, Maranhão e Pernambuco. O que é isso? Isso é o Nordeste. Então, o Nordeste é aquele que menos recebe dinheiro (...) Se eu der muito dinheiro para Santa Catarina e pouco dinheiro para o Piauí, não adianta Santa Catarina focalizar perfeitamente e o Piauí não focalizar perfeitamente porque vai ficar tudo mal focalizado.”31
80 O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/2006
Com esse exemplo queremos chamar a atenção para a necessidade de incidência sobre os padrões conservadores e discricionários que orientam a distribuição regional dos recursos destinados para a atenção à infância. É necessária uma ação política sobre órgãos como o Conselho Nacional de Assistência Social para a reversão dos critérios de focalização que historicamente vêm alimentando os padrões de desigualdades sociais. Cabe ressaltar também um tema recorrente na questão do combate à pobreza que é a visão consagrada de que esse combate está inteiramente subordinado à questão do crescimento econômico.
32
BARROS, Ibidem.
Conforme ainda Ricardo Paes de Barros, há duas maneiras de combater a pobreza: via crescimento econômico e via diminuição das desigualdades. Para ele,“uma das conseqüências importantes de se ter um país rico e cheio de pobres é que acabar com a pobreza requer uma quantidade de dinheiro irrisória; porque o problema desse país não é ser pobre, é ter esquecido de um certo pedaço da população. Aquele 1% necessário para acabar com a miséria extrema é um volume de recursos muito pequeno perante a renda brasileira. (...) Se eu quiser reduzir a pobreza no Brasil em 10 pontos percentuais eu preciso que a renda per capita brasileira cresça 35%. Preciso de dez anos de crescimento de mais de 3% per capita ao ano. Ou seja, uns 5% de crescimento ao ano durante dez anos para reduzir a pobreza em 10 pontos percentuais. Isso é uma característica de país rico e desigual, onde o crescimento é pouco efetivo na erradicação da pobreza. No entanto, se o combate for à desigualdade, o Brasil, que seria menos afetado pelo crescimento, é mais afetado pela redução na desigualdade. Se quiser 10 pontos percentuais de redução na pobreza, basta reduzir a desigualdade em 12 pontos percentuais. Ou seja, em termos de porcentagem eu preciso três vezes mais de crescimento do que de combate à desigualdade.”32 A visão hegemônica na sociedade é a de que sem crescimento econômico é impossível combater a pobreza. Ela está fortemente presente inclusive na maioria dos membros do Conselho Econômico e Social, espaço de concertação do Pacto Social proposto pelo presidente eleito. Consideramos fundamental que essa outra tese de combate à pobreza via redução das desigualdades raciais seja considerada com boa vontade pelo que ela acena de possibilidade de redução do tempo necessário para se alcançar resultados positivos na redução da pobreza e sobretudo pelo que ela implica em termos de focalização prioritária das políticas públicas de combate à pobreza nas desigualdades raciais. Ou seja, trata-se de colocar no centro, e como meta das políticas universalistas, a redução das desigualdades raciais.
81 Cenários para a questão racial
5.2 Questões agrária e agrícola
Em relação à questão agrária e agrícola, enfatizamos a problemática específica dos remanescentes de quilombos que, para além do problema de titulação de suas terras ancestrais, necessitam de incentivos tais como: crédito; acesso a tecnologias básicas de produção; estruturas para o escoamento de sua produção que lhes permitam vender seus produtos num mercado melhor, por um preço maior. Nas terras dos remanescentes de quilombos também se incluem outros desafios como a universalização da educação e da saúde. Soma-se a isso a conflituosa situação das comunidades remanescentes de quilombos em disputa pelas suas terras ancestrais com empreendimentos agropecuários, madeireiros e grilagens para fins de especulação imobiliária, que operam para postergar a titulação das terras dos quilombos, um direito conquistado e reconhecido pelo artigo 68 da Constituição Federal.
5.3 Racismo e meio ambiente
Consideramos também que a temática ambiental, apesar de já apresentar algum acúmulo no plano internacional, tem uma dimensão ainda incipiente em nossa sociedade. Trata-se do tema racismo ambiental. Experiências e casos em alguns estados do Brasil e outros lugares nos permitem observar as conseqüências diretas da degradação ambiental para a população negra, em especial para as mulheres e crianças. Em Alcântara, no Maranhão, os acordos para a instalação de bases de lançamento norteamericanas vêm promovendo a desterritorialização e conseqüente desagregação social das comunidades negras quilombolas. Nos EUA, nos bairros de Nova Orleans próximos ao rio Mississipi, as mulheres negras apresentam uma alta porcentagem de câncer de mama por causas que não estão sendo estudadas. As crianças negras são afetadas por problemas respiratórios e asma como conseqüência da poluição provocada pelas grandes indústrias que as autoridades autorizam a instalar-se em bairros periféricos, habitados majoritariamente por populações negras e latinas.
Plataforma da Conferência Regional das Américas- PrepCon da III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância. Santiago do Chile, dezembro 2000.
33
O artigo 14 da Declaração da Conferência Regional das Américas expressa “preocupação porque os povos indígenas e as pessoas de descendência africana, migrantes e outros grupos vulneráveis freqüentemente sofrem a carga da contaminação industrial e a degradação do meio ambiente e a transferência de dejetos tóxicos, o que afeta adversamente sua qualidade de vida e sua saúde.”33
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Há, portanto, um caráter indissolúvel entre miséria/degradação ambiental e vida/meio ambiente. Um levantamento cartográfico da miséria no Brasil localizaria a maioria da população negra do país sobrevivendo às adversidades impostas pelos vários processos de deterioração do meio ambiente, no campo e na cidade. Portanto, entendemos que o conceito de racismo ambiental, e tudo o que ele envolve em termos de exclusão para o desenvolvimento sustentável, deve ser aprofundado à luz das contradições da sociedade brasileira no tocante à questão ambiental.
5.4 Políticas públicas específicas Sobre essa questão, há em primeiro lugar a ausência do segmento racial negro nas rubricas orçamentárias, fato incompatível com a dimensão que a questão racial tem na configuração das desigualdades sociais, apesar do reconhecimento crescente na esfera governamental da identidade entre raça e exclusão social no Brasil, o que coloca como um dos desafios para o próximo Plano Plurianual –PPA- a inclusão de políticas específicas para a população negra no orçamento da União. Dentre as poucas políticas específicas para os negros, destaca-se a medida provisória nº 62, editada recentemente, que destina US$ 9 milhões para o programa Diversidade na Universidade. Trata-se de uma política de fortalecimento e ampliação dos cursinhos pré-vestibulares para negros e carentes, programa que requer monitoramento no que tange à efetiva aplicação desses recursos na política definida. Esse mesmo monitoramento merecem as portarias que estabelecem cotas para negros na administração federal, que espera-se sejam mantidas e ampliadas pelo novo Governo. São elas: 1) a observância, pelos órgãos da administração pública federal, de metas percentuais de participação de afro-descendentes, mulheres e pessoas portadoras de deficiência no preenchimento de cargos em comissão; 2 ) a inclusão de cláusulas de adesão ao Programa Nacional de Ações Afirmativas nas transferências de recursos celebradas pela administração pública federal;
83 Cenários para a questão racial
3) a observância, nas licitações promovidas por órgãos da administração pública federal, de critério adicional de pontuação, a ser utilizado para beneficiar fornecedoresque comprovem a adoção de políticas compatíveis com os objetivos do Programa Nacional de Ações Afirmativas; 4) a inclusão, nas contratações de empresas prestadoras de serviços, bem como de técnicos e consultores no âmbito de projetos desenvolvidos em parceria com organismos internacionais, de dispositivo estabelecendo metas percentuais de participação de afro-descendentes, mulheres e pessoas portadoras de deficiência. 5.5 O Estatuto A aprovação do PL nº 3.198/2000, que institui o Estatuto da Igualdade de Igualdade Racial Racial, em defesa dos que sofrem preconceito ou discriminação em função de sua etnia, raça ou cor se constitui numa das principais esperanças e expectativas dos movimentos negros brasileiros de estabelecimento de um marco legal para uma política nacional de promoção da igualdade racial e de combate ao racismo. Espera-se que o Estatuto da Igualdade Racial se constitua, em âmbito nacional, no marco legal que oriente, normatize e assegure a implementação de um programa nacional de promoção da igualdade racial e de combate ao racismo e à discriminação racial como um objetivo a ser perseguido pela sociedade brasileira de forma sustentada, a despeito de qualquer conjuntura e de qualquer coloração política/ideológica na administração do Estado. Que esse marco legal atenda ao imperativo ético de restituição da plena humanidade aos afro-brasileiros como decorrência dos compromissos assumidos pelo Estado Brasileiro na Conferência de Durban, na África do Sul, em 2001. A agenda que Durban impõe vai muito além das propostas de cotas que vêm monopolizando e polarizando o debate da questão racial no Brasil. Embora seja um dos efeitos positivos da Conferência, as cotas podem reduzir e obscurecer a amplitude e diversidade dos temas a serem enfrentados para o combate ao racismo e à discriminação racial na sociedade brasileira. O que Durban ressalta e advoga é a necessidade de uma intervenção decisiva nas condições de vida das populações historicamente discriminadas. O desafio da eliminação do fosso histórico que separa essas populações dos demais grupos não pode ser enfrentado com a mera adoção de cotas para o ensino universitário. Precisa-se delas e de muito mais.
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Essa percepção conduziu um conjunto de organizações da sociedade civil a elaborar o documento “Subsídios para uma Política Nacional em Favor dos Afrodescendentes”, com o objetivo de oferecer insumos ao Executivo, ao Legislativo e ao Judiciário para a consecução de uma política nacional de promoção da igualdade racial. Essa proposta é subscrita pelas seguintes organizações: Articulação de Mulheres Brasileiras - AMB; Articulação de Organizações de Mulheres Negras; Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação -Cepia; Centro Feminista de Estudos e Assessoria -Cfêmea, Comunidade Bahá’í do Brasil; Criola, o extinto Escritório Nacional Zumbi dos Palmares, Geledés – Instituto da Mulher Negra e o Instituto Brasileiro de Análises Socio-econômicas -IBASE . Esse documento foi em grande parte incorporado ao substitutivo do PL nº 3.198/00 apresentado pelo relator, deputado Reginaldo Germano, e aprovado por unanimidade pela Comissão Especial da Igualdade Racial da Câmara dos Deputados. Espera-se que em breve seja votado em plenário, e em 2003 seja submetido à apreciação do Senado Federal.
CARNEIRO, Sueli. Falta o Congresso. Correio Braziliense, Brasília, 11/01/2002. Coluna Opinião.
34
As organizações que subscrevem a proposta “Subsídios para uma Política Nacional em Favor dos Afro-descendentes” empreenderam também “um levantamento dos projetos em andamento no Congresso Nacional sobre a questão racial e formularam uma agenda mínima de prioridades para as votações, levando em conta os projetos com maior acúmulo no debate público tais como: PL 715/95, de autoria da deputada Telma de Souza (PT/SP), que acrescenta artigo à Lei 7.716/89, que define crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, incluindo dentre os crimes de racismo a prática de injúria, calúnia e difamação; (...) PL 4.833/98, de autoria do deputado Paulo Paim (PT/RS), que dispõe sobre a representação racial e étnica nos filmes e peças publicitárias veiculados pela televisão, para assegurar a participação de artistas afro-descendentes; PL 302/99, de autoria do senador Geraldo Cândido (PT/RJ), que proíbe o uso da expressão “boa aparência” nos anúncios de recrutamento e seleção de pessoal; PL 1.643/99, de autoria do deputado Antero Barros (PSDB/MT), que estabelece reserva de vagas nas universidades públicas para alunos egressos da rede pública de ensino.”34 Impõe-se, ainda, a retomada dos diferentes PLs que regulamentam o procedimento de titulação de propriedade imobiliária aos remanescentes das comunidades quilombolas, na forma do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; bem como a atenção especial às iniciativas que visam à redução da menoridade penal, que atingem negativa e majoritariamente os jovens e adolescentes negros.
85 Cenários para a questão racial
O Inesc buscará contribuir para o avanço da questão racial da seguinte forma: • apoio iniciativas das organizações negras no campo da advocacia; • promoção de um fluxo privilegiado de informações nas áreas temáticas trabalhadas pelo Inesc junto às organizações negras, de forma a capacitá-las para uma incidência maior e melhor qualificada naquelas áreas temáticas, em especial no que diz respeito ao controle social das políticas públicas e dos gastos públicos. • sensibilização das lideranças da Câmara dos Deputados e do Senado para que a temática racial possa efetivamente entrar na agenda nacional, posto que ela se encontra confinada na Comissão Especial sobre a Igualdade Racial sem repercutir nas principais lideranças das duas Casas do Congresso que são as que sinalizam para a socieda de quais são os temas de maior relevância nacional. O mesmo se faz necessário em relação aos sistemas de comunicação das duas Casas. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos realizou, de 1º a 3 de julho de 2002, na cidade do México, o primeiro Seminário Regional de Especialistas para a América Latina e Caribe sobre o Cumprimento do Programa de Ação Adotado em Durban, resultante da III Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância. Este seminário reiterou em suas recomendações aos Estados da região a necessidade de implementação de Planos Nacionais de Combate ao Racismo e à Discriminação Racial que “contenham medidas específicas em favor dos grupos vulneráveis”, entre eles os afro-descendentes, e que, “de maneira especial, se levará em conta a perspectiva de gênero que, em muitas ocasiões, produz discriminações múltiplas”. Recomendou, ainda, “integrar a Plataforma de Durban, suas pautas e aspirações nas metas de desenvolvimento e eliminação da pobreza acordadas pela comunidade internacional nos objetivos do milênio. Os grupos em pauta devem ser sujeitos de especial atenção na superação do déficit educativo; na melhoria da qualidade da educação; na diminuição dos níveis de incidência da AIDs, particularmente nas populações afro-descendentes; e no aumento da participação dos grupos excluídos em seu acesso a fontes de emprego.” A partir de 1990, foram definidas sete metas que tratam de diferentes aspectos inter-relacionados da pobreza, no sentido dos objetivos a serem atingidos até 2015. São elas:
86 O Inesc e a Agenda Brasileira 2003/2006
• Redução da proporção de pessoas vivendo em extrema pobreza em 50%; • Educação primária universal; • Eliminação das disparidades de gênero na educação (2005); • Redução da mortalidade infantil e da mortalidade das crianças menores de cinco anos em 75%; • Redução da mortalidade materna; • Acesso universal a serviços de saúde reprodutiva; • Implementação de estratégias nacionais para o desenvolvimento sustentado até 2005, de forma a reverter as perdas de recursos ambientais até 2015. A Plataforma de Durban estabelece uma nova meta, a oitava, referente à redução ou eliminação das defasagens raciais e étnicas antes de 2015, articulando as sete metas anteriores em relação aos grupos discriminados. A realização desse seminário regional ratifica mais uma vez o compromisso do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos com a proteção dos grupos discriminados e com as metas de superação das desigualdades raciais produzidas pelo racismo e a discriminação na América Latina e Caribe. É também uma convocação aos estados da região a impulsionarem decisivamente as medidas decorrentes da Plataforma de Durban. Entendemos por isso que todas as iniciativas voltadas para o cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados em relação às metas de desenvolvimento acordadas requerem proposições e/ou monitoramento, sobretudo no que diz respeito à observância nas metas de desenvolvimento das recomendações relativas aos afro-descendentes introduzidas pela Conferência de Durban.
87 Cenários para a questão racial
6. Cenários para a questão de gênero O contexto pós-eleitoral coloca algumas questões urgentes para o movimento de mulheres. Os resultados da eleição 2002 revelam que nossa sociedade é hoje mais democrática e que ocorreu, de fato, uma mudança de mentalidade e de valores para significativa parcela da população. Ao conformismo, que marcou de maneira tão forte os últimos quatro anos da política nacional, contrapôs-se a força da indignação, expressa no surpreendente desempenho obtido pela oposição em 6 de outubro e na vitória de Lula no segundo turno. Nas eleições para as Câmaras Federal e Estaduais, e para o Senado, o eleitorado também fez o que pôde e mudou a correlação de forças político-partidárias. Nas eleições 2002, as mulheres saíram fortalecidas como movimento organizado e como população. As questões sociais, as necessidades e as demandas das mulheres tiveram uma relevância sem precedentes. As candidaturas femininas cresceram 50% desde a última eleição, em 1998. O eleitorado respondeu bem e as mulheres conseguiram preencher espaços importantes, obtendo votações expressivas. Em 13 estados, as candidaturas femininas angariaram o primeiro e o segundo lugares nas eleições ao Senado e à Câmara. O desequilíbrio de gênero no Poder Legislativo ficou, portanto, atenuado.
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A imprensa tentou explicar esse fenômeno quantitativamente, alegando que as mulheres representam hoje 51% do eleitorado. Mas a visibilidade das mulheres foi devido a mudanças qualitativas na participação política. Houve uma ruptura com a idéia de que o voto das mulheres é um voto dependente. Isso levou a olhar as mulheres eleitoras como sujeitos com capacidade de decisão. A vontade política das mulheres não foi canalizada somente para os partidos. Nessas eleições, a capacidade dos movimentos feministas e de mulheres de se posicionar e se responsabilizar pelas transformações almejadas aconteceu com bastante antecedência e firmeza. Houve uma participação ativa na construção da Plataforma Política Feminista e na realização da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras. O processo demandou a organização de 26 conferências estaduais e de 20 lançamentos da Plataforma, gerando um debate intenso que renovou a agenda do movimento social e fortaleceu seus atores como sujeitos políticos.
6.1 A democracia radical
Para sustentar as mudanças almejadas, será imprescindível a existência de uma base política organizada, motivada e capaz de dar conta dos desafios que virão. Pela primeira vez no país, estamos diante da possibilidade de uma democracia radical, onde a participação será questão integrante da definição e implementação das estratégias e linhas de desenvolvimento. As mulheres terão um papel fundamental a cumprir, uma vez que são maioria nos espaços de democracia participativa no país. No cenário em que vai se esboçando a construção do novo pacto social (o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social), os atores são, em sua maioria, homens brancos. Entre empresários, sindicalistas, evangélicos, católicos e gente do terceiro setor, vê-se o pequeno quinhão reservado aos movimentos sociais, onde as mulheres negras e feministas estão presentes. Para além da classe trabalhadora e do empresariado, dos trabalhadores rurais e do latifúndio, há novos sujeitos políticos em cena. Os movimentos de mulheres e feministas, o movimento negro, o movimento pacifista, o movimento de gays, lésbicas e travestis e o movimento ecológico são alguns deles. É impossível “refundar” o Brasil sem reconhecer esses novos sujeitos. É hora, portanto, de trabalhar para a mobilização da sociedade; de fortalecer a capacidade de mudar a realidade rumo à democracia e à justiça; de alimentar o sentimento de poder que emana do exercício ativo da cidadania. O futuro vai exigir mais do que alterar a composição político-partidária no Estado, bem mais que eleger um programa político e rejeitar outro.
89 Cenários para a questão de gênero
Exige-se dos movimentos de mulheres, e dos movimentos sociais de uma maneira geral, a necessária preservação da autonomia frente ao Governo. Como diz o sociólogo Francisco de Oliveira, é preciso manter a autonomia para pôr o acento na igualdade, para retirar todas as discriminações e introduzir as classes populares nas instituições mais importantes.
6.2 O papel da sociedade civil
Com a vitória de Lula, cresce a importância da sociedade civil organizada. Os desafios são enormes, visto que somos o país com a segunda maior concentração de renda do mundo e enfrentamos grave situação social. O Governo Lula vai precisar das duas dimensões da sociedade civil organizada: a dimensão crítica e a dimensão do apoio. E o apoio não poderá ser feito sem a dimensão crítica. Nesse sentido, a criação de um novo espaço de diálogo entre a sociedade civil e o Governo – o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – merece alguns comentários. Em primeiro lugar, o Conselho mostra a heterogeneidade da sociedade civil. A despeito da tendência de pensar que a sociedade civil organizada é sempre de esquerda ou progressista, constata-se que ela inclui setores em conflito por interesses bastante diferentes. E esses setores estão representados no Conselho. O presidente Lula se coloca como um negociador que vai possibilitar a criação de pactos. Mas os pactos não se fazem sem conflitos nem sem o estabelecimento de uma ordem de prioridades. Ao examinar o significado das eleições 2002 para a geração-68, é importante lembrar minimamente o que foi essa geração. Antes de tudo, 68 foi o ponto de partida de um longo processo de resistência ao autoritarismo nos espaços públicos e privados e em favor da soberania nacional. Como em uma catarse, forças muito novas surgiam dentro da própria esquerda e fora dela, desejosas de uma nova prática política. Emergia o valor da diferença, da diversidade. O movimento verde e o movimento de mulheres estavam entre essas forças, trazendo como características o pacifismo rebelde contra a cultura e pela criatividade. Trata-se de uma grande reviravolta daquele momento que, no Brasil, se consolida hoje, com a eleição de Lula. Para a geração brasileira de 68, portanto, estamos vivendo uma conjuntura de vitória. A vitória é algo que traz novas energias, novas possibilidades, e a chance de construir as bases de uma sociedade mais justa.
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A eleição de Lula tem importante significado no contexto internacional. Se consideramos que o terrível da globalização é a hegemonia dos Estados Unidos nos campos político, econômico, cultural e bélico, precisamos levar em conta que a vitória do PT, um partido que sempre questionou explicitamente essa hegemonia, não poderia deixar de causar expectativas fora do país. O novo presidente deve deslocar o eixo das questões de mercado para problemas de outra ordem, como a pobreza e a injustiça social, estabelecendo uma interlocução imediata com uma enorme parcela da população deste país e do mundo. O Hemisfério Sul sofre as conseqüências dos ajustes estruturais negociados com base nos interesses do mercado. Os últimos oito anos no Brasil, especificamente, foram de grande ambigüidade democrática: de um lado, o imenso comprometimento econômico, com empobrecimento e perda de soberania; e de outro, a ampliação e o fortalecimento das forças emancipatórias que levaram à vitória de Lula. As possibilidades de seguirmos adiante no processo democrático, frente às questões externas, dependem, em grande parte, da qualidade das negociações entre o Governo e a sociedade civil. Qualidade essa que se adquire com a perspectiva de inclusão daqueles que sempre estiveram fora do jogo da governabilidade, e que será sempre mais sustentável quanto maior for a capacidade política de abrigar as diferenças e diminuir as desigualdades. É preciso requalificar a negociação política interna. Nesse sentido, a presença ou a ausência das mulheres organizadas nos espaços de governabilidade serão indicadores concretos dos rumos da sociedade. Isso significa que o presidente Lula precisará garantir espaço para negociar organicamente com as forças que identificam o patriarcado como supra-estrutura cultural condicionante das desigualdades socioeconômicas entre homens e mulheres. É preciso negociar com o Movimento de Mulheres da mesma forma com que se negocia com as forças sindicais. Existe hoje uma ordenação política muito diferente daquela de 20 anos atrás. O movimento de mulheres conseguiu estruturar-se em torno da questão feminista: promover a igualdade entre homens e mulheres, re-significando as diferenças entre os sexos, e, com maior ou menor intensidade, colocar na agenda da sociedade civil organizada – sindicatos, ongs, partidos -, assim como na do Estado, as questões de gênero. Um dos desafios agora será definir melhor o espaço da ação política feminista no governo do PT. Em termos de identidade, o feminismo continua sendo a principal e talvez a única referência política construída a partir das mulheres.
91 Cenários para a questão de gênero
Força política considerável, as mulheres têm uma ação intelectual e prática de transformação da sociedade que vem dos tempos da Revolução Francesa e, de forma incessante, buscam a compreensão de outras correntes do pensamento humanista para a importância de desconstruir o patriarcado para romper com as desigualdades, o autoritarismo e a violência. Não basta às mulheres o papel de coadjuvantes. É importante que haja espaço político para implementar o projeto feminista na construção desse país.
7. Cenários para a questão indígena As potencialidades oferecidas pela Constituição de 1988, que reconheceu uma série de direitos indígenas, resultaram, no entanto, em avanços muito tímidos no plano concreto da formulação de uma política indigenista. O déficit de regulamentação jurídica nas relações sócio-econômicas entre os povos indígenas e a sociedade brasileira se constitui no principal entrave a ser enfrentado pelo novo Governo.
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O atual desenho do órgão indigenista - a Fundação Nacional do Índio e suas práticas administrativas - reflete claramente o espírito da Lei 6.001 (Estatuto do Índio), elaborada em 1973, durante o regime militar e num quadro jurídico inteiramente antagônico às formulações da Constituição de 1988. Uma legislação específica que viria a substituí-lo de forma harmônica com a Constituição vigente, o Estatuto das Sociedades Indígenas (projeto de lei 2.057/91), permanece em tramitação no Congresso Nacional desde 1991. Os Governos que se seguiram evidenciaram a falta de empenho na aprovação dessa lei, introduzindo paralelamente reformas administrativas que, se por um lado permitiram o início de algumas experiências inovadoras em Ministérios como os da Saúde e do Meio Ambiente, por outro lado fragmentaram definitivamente a ação indigenista, estabelecendo ações de Governo desarticuladas e contraditórias, enquanto paralelamente era imposta à Funai uma severa redução de recursos humanos e materiais.
35 Fronteira Norte (Arco Norte); Oeste Norte (Madeira-Amazonas); Nordeste (Transnordestino) ; Araguaia-Tocantins; Leste; São Francisco ; Transmetropolitano (Rede Sudeste); Sudoeste ; Mercosul (Sul)
A década de 90 viu uma reedição de impactos negativos sobre povos indígenas através dos grandes planos e programas de desenvolvimento governamentais. Recentemente, tivemos os Planos Plurianuais “Brasil em Ação” (96/99) e Avança Brasil (2000-2003), com a visão de “Eixos Nacionais de Integração e Desenvolvimento”35, distribuídos geograficamente por corredores de transporte para o período de 2000 a 2007. Foram assim selecionados 42 empreendimentos considerados estratégicos para melhorar a competitividade econômica do país e reduzir as desigualdades regionais e sociais. São, contudo, empreendimentos que têm um grande potencial de impactar negativamente a vida e o território dos povos indígenas próximos. Existem indicadores concretos demonstrando tendências de continuidade desses empreendimentos no Governo Lula. Temos a perspectiva de execução de um pacote de obras de infra-estrutura na mesma direção dos Programas do Avança Brasil, apontando para o retorno da devastação planejada. Neste contexto, são preocupantes as mortes e agressões sofridas pelos indígenas na área Raposa Serra do Sol, em Roraima, em decorrência da instalação de sedes municipais em meio às malocas indígenas (caso de Uiramutã) e da expansão da ação dos invasores (especialmente o caso dos arrozeiros).
93 Cenários para a questão indígena
Da mesma forma, é escandalosa a atividade criminosa de garimpeiros e madeireiros nas terras dos índios Cinta-Larga, em Rondônia, assim como as violências e humilhações sofridas pelos Xukuru e os Pataxó (especialmente na região de Monte Pascoal, Bahia). Cabe igualmente enfrentar de imediato a situação de penúria e aviltamento sofrida pelo povo Tuxá no estado da Bahia, que aguarda há 16 anos os procedimentos de reparação por sua remoção forçada, causada pela construção da Barragem de Itaparica, bem como a impunidade e a violência implantadas na área Xucurú, no estado de Pernambuco.
7.1 Os grandes desafios
O desafio imediato e inadiável, não só do Governo mas dos povos indígenas e da sociedade brasileira como um todo, é aprovar o Estatuto dos Povos Indígenas (PL 2.057/91), inaugurando-se uma nova regulação infraconstitucional que norteie outros diplomas legais compatíveis. A negociação do novo Estatuto dos Povos Indígenas deverá enfrentar e sobrepor pressões setoriais, oligárquicas e econômicas anti-indígenas – tais como as que se expressam no Congresso Nacional na forma de propostas de emendas constitucionais e projetos de lei ora em tramitação. São exemplos os projetos de lei sobre mineração em terras indígenas, os que visam flexibilizar o rito demarcatório e o marco legal que permite o acesso aos recursos naturais em áreas indígenas. O Estatuto dos Povos Indígenas deverá criar as condições para que se cristalize um novo patamar de inserção dessas populações no projeto nacional de país, a partir da incorporação definitiva da noção de etnodesenvolvimento como arcabouço legal na relação com estes povos. A noção de etnodesenvolvimento está relacionada com uma concepção mais ampla e abrangente das condições de vida, não se restringindo exclusivamente a melhorias econômicas. Envolveria, nesse sentido, uma preocupação com educação básica e capacitação técnica, atendimento à saúde indígena e valorização cultural, assim como o desenvolvimento de atividades que promovam a melhoria das condições econômicas e garantam a sobrevivência e reprodução desses povos. A preocupação com a terra (questão fundiária) e com os recursos ambientais nela existentes é prioridade máxima. Nestes termos, conforme o filósofo da educação e professor da USP, José Mário Pires Azanha, etnodesenvolvimento, quando referido às sociedades indígenas brasileiras, envolveria os seguintes indicadores:
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• aumento populacional, com a segurança alimentar plenamente atingida; • aumento do nível de escolaridade (seja na língua nativa ou no português) dos jovens aldeados; • procura pelos “bens dos brancos” plenamente satisfeita através de recursos próprios gerados internamente de forma não predatória, com relativa independência das determinações externas de mercado na captação de recursos financeiros; • domínio pleno das relações com o Estado e agências de Governo ao ponto da sociedade indígena definir essas relações, impondo o modo como deverão ser estabelecidas. Tais questões são, portanto, os pressupostos para a execução de qualquer projeto nacional que busque uma harmonia com sustentabilidade da nossa sócio-biodiversidade caracterizada pela riqueza dos povos indígenas brasileiros e marca indelével de nossa natureza plurinacional. O etnodesenvolvimento dos povos indígenas, como observou o antropólogo francês Bruce Albert, se dá na inter-relação entre economia, território e situação sanitária, onde reside o nexo ecológico sobre o qual se exercem as pressões adaptativas do contato – tais como a redução territorial, a sedentarização, a concentração demográfica, as perturbações ambientais – e a partir do qual elas podem ser avaliadas e eventualmente corrigidas (Albert, apud Müller, 1997). Em termos gerais, a idéia é discutir a sustentabilidade dos territórios e das próprias populações indígenas, o que vai desde a sobrevivência primária (garantia alimentar) até alternativas para o futuro e os anseios de melhoria da qualidade de vida. Passa, igualmente, por um universo amplo dos desejos e valores que estão em jogo, como a revitalização das tradições culturais, do sentimento de solidariedade, das formas de reciprocidade e partilha; a segurança alimentar; o fortalecimento institucional das organizações indígenas; a participação indígena nos processos decisórios; o desenvolvimento diferenciado; e, em termos amplos, a sustentabilidade econômica, política e cultural. 36 Seminário “Bases Para uma Nova Política Indigenista II”, realizado pelo Museu Nacional, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira -Coiab e a Associação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo -Apoinme.
Em seminário36 realizado no Rio de Janeiro, em dezembro de 2002, as principais organizações indígenas brasileiras apontaram um conjunto de proposições que se constituem no núcleo central de prioridades relacionadas às políticas indigenistas de etnodesenvolvimento que deveriam servir de referência ao novo Governo e serem regulamentadas pelo Poder Legislativo. Entre elas, destacamos, por assunto
95 Cenários para a questão indígena
Terras indígenas: • Exigir prioridade absoluta à regularização fundiária das terras indígenas ainda pendentes; • Rever as áreas indígenas já demarcadas e que vêm passando por aumento populacional ou que tiveram suas identificações inadequadas; • Buscar recursos alternativos para a extrusão de não-índios das terras indígenas; • Resolver os casos de sobreposição de terras indígenas por unidades de conservação e fixar critérios que impeçam novos casos. Economia Sustentável: • Criação de um fundo constitucional para financiar projetos de desenvolvimento indígena; • Gestão participativa indígena deste fundo; • Certificação de garantia da autenticidade dos produtos indígenas; • Linhas de crédito e financiamento, como o Programa Nacional de Agricultura Familiar -Pronaf, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS ecológico), entre outros; • Maior transparência quanto aos recursos obtidos e destinados a projetos de desenvolvimento gerenciados ou estimulados pela Funai; • Projetos geridos por alguns povos indígenas, como o de aproveitamento sustentável de recursos naturais. Pretende-se apoio para promover o intercâmbio e a divulgação de projetos indígenas bem sucedidos, assim como estimular outras iniciativas semelhantes, através de programas que considerem as especificidades regionais, como o Programa Demonstrativo dos Povos Indígenas -PDPI, coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente. • Serviços ecológicos: propõe-se a formulação de um programa e um fundo interinstitucional específico de valoração e remuneração dos serviços ecológicos realizados nas terras indígenas. O fundo seria utilizado de forma solidária, independentemente da região de sua arrecadação, priorizando a recuperação e gestão ambiental das terras indígenas degradadas em todo o país; • Maior conhecimento dos recursos naturais existentes nas áreas indígenas, de modo a permitir sua exploração sustentável; • Regularização urgente da exploração sustentável dos recursos naturais exclusivamente pelos indígenas nas suas áreas, inclusive recursos minerais; • Com relação ao mercado, definir uma forma menos agressiva quanto à filosofia e ao modo de vida indígena. Foi feita a proposta de estimular a organização em cooperativas;
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Nesta primeira fase do Governo Lula, o Programa Fome Zero é uma oportunidade real de obtenção de apoio para muitos povos que vivem em situação de penúria e escassez de recursos naturais. O “Mapa da Fome entre as populações indígenas do Brasil”, publicado pelo Inesc em 1995, mostrou que havia uma situação de fome crônica em 198 áreas indígenas, totalizando uma população de 106 mil pessoas. Esse quadro pouco se alterou. Foi constatado que a situação de fome é maior nas regiões onde as terras indígenas sofrem pressão e invasão mais intensas, ou seja, nas regiões Nordeste, Sul e Centro-Oeste. A maior parte destas terras, além de invadida, foi degradada e ainda não está regularizada. É importante destacar que as políticas públicas indigenistas devem, em primeiro lugar, ter os povos indígenas como interlocutores principais – resguardada a sua sociodiversidade, a variedade de suas formas próprias de representação política e a singularidade de seus movimentos políticos e organizações. O princípio da participação paritária indígena em todos os fóruns e instâncias que afetam diretamente seu destino deve ser um dos norteadores da ação do novo Governo. Para efetivá-lo, o Governo deve disponibilizar recursos para a mobilização dos povos indígenas no exercício da participação democrática, tendo como principal interlocutor o movimento indígena organizado. A formulação dessa política deveria caber a um Conselho de Estado de caráter normativo, deliberativo e supervisor, cuja vinculação institucional deveria garantir sua independência e seu elevado grau de compromisso com os povos indígenas. Numa perspectiva de médio prazo, o Governo Federal pode e deve apoiar a continuidade da reflexão, dentro do Movimento Indígena brasileiro, sobre a construção de um Parlamento dos povos indígenas brasileiros, como espaço para sua articulação, visando a construção de consensos mínimos em questões essenciais para o relacionamento com o Estado brasileiro. É essencial e urgente que a política indigenista passe a ser elaborada de modo integrado, pactuado e solidário, de modo a impedir que os diversos ministérios desenvolvam programas isolados relativos aos povos indígenas. Um dos sinais de compromisso e vontade política do novo Governo em reverter o passivo histórico junto aos povos indígenas seria a assinatura do Decreto que incorpora ao ordenamento jurídico nacional a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho -OIT, cujo texto foi aprovado pelo Senado Federal através do Decreto Legislativo n.º 143, de 20 de junho de 2002. 97 Cenários para a questão indígena
O papel das ongs e do Inesc 1. Introdução Para o Inesc, uma instituição articuladora dos movimentos sociais, a eleição 0o Instituto se constituiu como organização não-governamental no rastro da ditadura e comprometido, basicamente, com os anseios que finalmente elegeram Lula presidente da República. A identidade entre o Inesc e o novo Governo é, portanto, evidente e inevitável. Acima disso, contudo, somos um Instituto suprapartidário, o que é assegurado em nosso estatuto e enquanto sociedade civil organizada. Entendemos que devemos exercer um papel independente e crítico. Um Governo forte é conseqüência de uma sociedade consciente e forte. O poder Executivo deve ser encarado como uma instância executora do projeto que obteve a maioria dos votos do povo brasileiro. Não foi fortuito que o presidente Lula, em seu discurso de posse na Câmara dos Deputados, tenha se referido a si próprio como “o funcionário público número um de meu país”. Essa idéia já é indicativa de um conceito novo em relação ao poder e ao seu exercício.
99 Introdução
A atividade política se reveste hoje de uma nova significação que se encontra disseminada tanto no âmbito do Estado quanto da sociedade. Contemporaneamente, assiste-se a uma profunda mudança da ação política. Há uma descentralização da representação do poder. A ação política, ao invés de definir-se somente através de grupos organizados institucionalmente, passa a expressar múltiplas vozes sociais, antes completamente silenciadas. A construção da ação política passa a pautar-se pelo exercício de escuta dos múltiplos grupos sociais que em sua polifonia definem a sociedade. Ao contrário de algumas profecias pessimistas, em tempos pós-modernos a ação política não sofreu esvaziamento de sentido e eficácia. Senão, renovou sua força e atuação ao ampliar os limites da ação política antes restrita a organizações específicas e cristalizadas, como os partidos ou sindicatos, dentre outras. Ao expandir as fronteiras ou derrubar muros, a ação política atual exige a transformação do sujeito contemplativo, ancorado em verdades absolutas como progresso, mercado, representatividade, dentre outras, em ator social que, inscrito em um grupo concreto articula suas reivindicações a partir de uma rede social que entrelaça interesses individuais e coletivos. Uma das mudanças significativas das práticas sociais e suas representações aponta para uma nova condição pós-moderna da sociedade, o que incide na transformação de determinados valores e práticas que deixam de se orientar por um conteúdo ontológico e inexorável, dado a-historicamente. Os valores como democracia, cidadania, justiça e direitos humanos, estão atravessando o milênio de modo renovado. Passaram de uma idéia fechada em si mesma para um conjunto dinâmico de práticas sócio-políticas entranhadas no cotidiano dos grupos sociais. A dimensão política da vida social revela-se cada vez mais significativa, uma vez que as identidades sociais encontram-se fragmentadas, ocorrendo uma espécie de culturalização da política, o que não a torna nem difusa, nem sem importância; ao contrário, empurra a dinâmica política em direção às práticas culturais, as quais, por definição, são regidas por uma lógica que expõe uma rede de interdependência entre os indivíduos.
100 O Inesc e a agenda brasileira 2003/2006
Esta rede social faz destacar imediatamente a relação entre ação política e espaço público, pois o que está verdadeiramente em pauta no cenário atual é a garantia de acesso ao espaço público, seja para usufruir de um patrimônio social comum a todos, nas democracias modernas, seja para reivindicar participação ou mudança nos critérios de distribuição da riqueza social e cultural gerada por todos. A temática do espaço público torna-se especialmente importante nas sociedades contemporâneas, onde predominam valores e signos midiáticos que enfatizam, sobretudo, as práticas de consumo. Paralelamente, ocorre uma espécie de privatização da vida social, com certo encolhimento das redes de sociabilidades, o que enseja a importância fundamental de se restaurar e revitalizar o espaço público. O espaço público passa a basear-se num modelo intersubjetivo de enunciação, onde os indivíduos adquirem seu justo tom de voz e enunciam suas prioridades e possibilidades. Concretamente, é preciso discutir o acesso ao espaço público. Há muitas maneiras de ocupar tal espaço, formas variadas de participação e diferentes frentes de atuação, como por exemplo, o Parlamento, considerado um dos mais importantes pilares das democracias modernas. A existência de um Parlamento saudável, nutrido por um amplo espectro de informações, com capacidade de representar os mais diferentes interesses da sociedade, é um pressuposto importante para a consistência das democracias modernas. Dentre outras funções, o Parlamento deve ser capaz de elaborar políticas públicas que visem à manutenção das conecções entre os grupos e a comunicação entre as várias instâncias da organização social, não permitindo a exclusão de nenhum grupo e instaurando na vida social princípios jurídicos-normativos de validade universal para todos. Ocupar o espaço público através da atuação no Parlamento significa não apenas possibilitar aos parlamentares trabalharem com um número maior de informações oriundas de fontes diferenciadas, como permitir dar voz a diferentes grupos sociais, os quais, de modo geral, não teriam outros meios de acesso ao espaço público, especialmente em sua especificidade e concretude, no âmbito do Parlamento.
101 Introdução
A atuação das ongs em várias direções e, especialmente no Parlamento, tem provocado uma mudança profunda na cultura política brasileira, não apenas porque contribui para o fortalecimento das políticas públicas, mas também porque permite que tais políticas abarquem de fato a diversidade social presente na sociedade brasileira. Além disso, as ongs que atuam no Parlamento têm provocado uma mudança significativa na cultura política, ao estabelecerem um procedimento diferenciado de negociação política, que quebra a cultura do favor, pois trabalha a partir de uma compreensão da ação política não mais baseada no clientelismo e no personalismo, mas visando à construção do diálogo entre os diferentes grupos que compõem a sociedade e que necessitam viabilizar processos de comunicação entre si e com os poderes públicos institucionalizados. É nesse contexto, e a partir de tais pressupostos, que esta reflexão se ancora para discutir a atuação de uma organização não-governamental específica: o Instituto de Estudos Socioecômicos – Inesc. Propomos uma reflexão crítica em torno da atuação das organizações não-governamentais, especialmente do Inesc, tanto em nível histórico quanto no cenário contemporâneo. O propósito de mapear algumas temáticas que demarquem o percurso desenvolvido pelo Inesc busca conduzir a reflexão não apenas para a trajetória histórica, mas, sobretudo, para o presente, procurando assim exercer uma vigilância permanente do cumprimento dos objetivos do Instituto, numa busca incessante de novos possíveis, novo amanhã, para além do hoje existente.
102 O Inesc e a agenda brasileira 2003/2006
2. O surgimento das ongs e sua evolução O termo organização não-governamental surgiu no âmbito da Organização das Nações Unidas - ONU, criada em 1945. A designação buscava identificar um tipo específico de instituição, diferenciada das instituições governamentais e das empresariais. A partir dos anos 50, especialmente nos EUA e nos países europeus, começa a proliferar a criação de ongs, as quais passam a diversificar sua atuação. No Brasil, as primeiras ongs começam a surgir a partir da década de 1970, justamente com a reativação dos então denominados movimentos populares, ou movimentos de base. O Inesc é criado em agosto de 1979. Antônio Gramsci, escritor e político italiano (1891-1937). Secretário do Partido Comunista Italiano (1924), foi preso em 1926 e libertado em 1937, dias antes de falecer.
37
A partir de meados da década de 70, a obra de Antônio Gramsci37 começa a ter ampla divulgação no Brasil. Os conceitos de sociedade civil e de hegemonia apontam para novas possibilidades de compreensão e reordenamento das atividades sócio-políticas. A década de 70 tem sido caracterizada no Brasil como os anos de chumbo, período de radicalização da ditadura militar, onde a presença do Estado encontrava-se super dimensionada e a sociedade submetida ao mais profundo silêncio. Nesse contexto, sumariamente definido, o conceito de sociedade civil aponta para outras modalidades de organização dos grupos sociais, não vinculadas necessariamente à estrutura partidária, sindical ou estatal. Paralelo a este movimento no plano das idéias, alguns grupos sociais passam a organizar formas alternativas de práticas políticas para viabilizar o alcance de objetivos comuns, relacionados ao cotidiano desses grupos, como por exemplo, a estabilização dos preços dos produtos da cesta básica, a melhoria dos serviços de saúde, educação, transporte coletivo etc. Tal organização dos grupos sociais ocorreu tendo em vista a concorrência de vários fatores, dentre eles a presença das ongs, as quais, neste momento, impulsionam a articulação e o desenvolvimento de estratégias discursivas específicas relacionadas predominantemente às idéias de democracia e cidadania. Constróem, ainda, procedimentos que instauram práticas concretas que permitem não só organizar um conjunto de atividades específicas como também estabelecer uma série de conexões entre os grupos sociais e a dimensão coletiva de sua existência.
103 O surgimento das ongs e sua evolução
Ao longo das décadas de 1970 e 1980, houve crescimento e diversificação dos movimentos sociais, identificados, num primeiro momento, como movimentos populares. Porém, sua ampliação para setores da classe média e alguns segmentos dos extratos mais altos faz com que estes movimentos passem a ser designados não mais como populares, mas sociais, momento em que adquirem uma grande visibilidade social e política. A partir dos anos 1980, os conceitos de movimento social, cidadania, democracia, dentre outros, adquirirem hegemonia em diversos discursos em circulação na sociedade, como aqueles produzidos pelos cientistas, intelectuais, artistas, políticos, etc. Nos anos 90, outras idéias adquirem força, como gênero e direitos humanos e transformam-se em vetores na orientação de condutas sociais e práticas políticas. Os movimentos sociais não apenas ampliam seu escopo como adquirem maior visibilidade social, na mídia, no espaço acadêmico. Despertam a atenção dos partidos políticos e dos órgãos de controle e segurança pública e, principalmente, passam a contar com um aliado poderoso: as ongs. O fortalecimento dos movimentos sociais e das organizações não-governamentais foi significativo ao longo dos anos 80, resultado de muitos fatores, dentre eles o amadurecimento, a maior consciência política dos movimentos sociais e o aprimoramento administrativo-institucional das próprias ongs. Esta nova realidade garantiu-lhes não apenas maior visibilidade no espaço público, mas fundamentalmente transformou-as em novos atores sociais no cenário político. Neste contexto, verifica-se um movimento de consonância entre os movimentos sociais e as ongs, quando sucede, com ambos, uma mudança de atitude. Isto é, de uma presença diluída na sociedade, que se nutria de iniciativas isoladas, passa-se a uma nova condição – a de ator político – legítimo representante de interesses coletivos. As ongs passam a ser portadoras de um capital simbólico específico, advindo de seu contato direto e sua proximidade com os grupos organizados da sociedade, o que se traduz num acúmulo de conhecimentos específicos sobre as práticas sociais e suas representações. Estes fatos imprimem às ongs uma vitalidade própria e uma especificidade social e política que lhes garante uma “autonomia relativa” no campo da política institucional, conforme o pensador francês Bourdieu (1982).
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Tal fato ancora-se justamente na legitimidade que as ongs passam a adquirir, e isto deve-se ao modo como as mesmas mantém uma relação orgânica não só com os movimentos sociais organizados mas com todo tipo de demanda social significativa, do ponto de vista de sua representatividade, no conjunto da sociedade civil. Assim, as ongs não comportam-se necessariamente como entidades de base, mas mantêm de forma sistemática uma base nos movimentos sociais, o que lhes permite uma permanente vitalidade ao incorporar em sua dinâmica institucional valores, interesses, conflitos e consensos reinantes no tecido social em sua plenitude histórica; isto é, no interior dos processos concretos de produção e reprodução da sociedade em sua multiplicidade e complexidade. Nos anos 1990, as ongs alcançaram uma fase de significativa importância política no cenário nacional, atuando no interior do Estado e da sociedade civil, sendo esta última assim designada exatamente por estar organizada e tornar-se capaz de expressar suas demandas sob a forma de proposições concretas. As ongs não contribuem, no entanto, apenas para a organização da sociedade civil, mas também para a democratização efetiva das instituições políticas, ao se constituírem em importantes interlocutores do Estado. Ao longo da década de 1980, as ongs posicionaram-se predominantemente como mediadoras entre a sociedade e o Estado. Com a consolidação do Estado democrático no Brasil, as ongs ampliam e diversificam suas propostas e suas formas de atuação. Novas idéias, propostas científicas e políticas são postas em circulação no conjunto das múltiplas redes discursivas que a sociedade produz. Dentre estas idéias, destacam-se o desenvolvimento sustentável, a globalização, o liberalismo e o neoliberalismo, as novas teorias da identidade e de gêneros, a democracia, os direitos humanos e outras. As mudanças econômicas, políticas e culturais que se consolidaram nos anos 1990 foram de grande monta e imprimiram nova dinâmica à sociedade brasileira que, por sua vez, buscou inserir-se de modo competitivo no mundo dito globalizado. As novas conjunções internacionais, que juntamente com os grandes progressos nas áreas tecnológica e da informática têm gerado extrema concentração da propriedade, da renda e do lucro, e processos avassaladores de exclusão social, como também os novos reordenamentos nas práticas culturais e políticas, fizeram com que as ongs encontrassem novos espaços de atuação e ampliassem suas agendas, entrelaçando em suas perspectivas de trabalho práticas culturais, sociais, políticas e econômicas em nível societário e planetário.
105 O surgimento das ongs e sua evolução
Dessa forma, é possível afirmar que, durante os anos 1990, as ongs sofrem uma sorte de mudanças que incidem não apenas sobre a dinâmica institucional de cada uma, mas sobre o seu modo de inserção na sociedade civil e em sua relação com o Estado. Novamente, encontram-se conexões entre mudanças nos movimentos sociais e nas ongs, ambos passando a assumir uma forma de ação mais universalista, quebrando a predominância de conteúdos localistas, e deslocando a dinâmica de sua pauta do eixo nacional para o eixo internacional. Verifica-se ainda que alguns temas, como direitos humanos e preservação do meio ambiente, tornaram-se de interesse geral e transformaram-se em temáticas transversais, uma vez que são permeáveis aos vários domínios da sociedade e aos vários campos disciplinares. Essas temáticas suscitaram a tomada de consciência sobre processos sociais que possuem uma dimensão universal, sem deixar de possuir, paralelamente, um enraizamento local, seja em suas causas ou em suas conseqüências. No entanto, ao lado da luta pela efetiva implantação dos direitos humanos em todas as sociedades, não se pode descolar esta conduta de práticas democráticas concretas, que implicam no exercício da cidadania e em seus desdobramentos referentes à observação de direitos e deveres concretos, endereçados a todas os grupos sociais da sociedade. Esta reflexão conduz à discussão sobre as possibilidades de concretização de valores universais em configurações sócio-históricas específicas (Elias -1990). Trata-se de, no contexto das sociedades modernas, afirmar o valor da democracia, enquanto regime representativo da maioria, que apesar de todas as precariedades nos princípios, ou nos modos de realização, apresenta como característica vantajosa representar de alguma forma a diversidade social. A construção de um espaço público como a instância política constituída pelo Legislativo é de extrema importância para o funcionamento da sociedade, enquanto totalidade histórica, pois descortina no horizonte da cultura política um cenário social pleno de diferenciações, o que repõe a necessidade radical de vincular as idéias de democracia e diversidade.
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As ongs, atentas aos novos movimentos sociais, aos novos modelos de organização do Estado e da sociedade civil, reordenam sua forma de atuação, sem perder de vista a vigilância crítica relativa à diversidade de grupos sociais que compõem a sociedade e, portanto, à multiplicidade de direitos e deveres dos cidadãos. Tal reflexão propõe a aproximação entre as idéias de democracia e diversidade, o que mais uma vez mais reforça a necessidade de garantir acesso dos diferentes grupos sociais ao espaço público. Neste sentido, é fundamen tal levar em consideração a importância da vigência dos direitos humanos, uma vez que estes devem e podem instituir um modelo de referência normativo, público, plural e universalizante para a organização das condutas sociais. O papel conferido hoje aos direitos humanos pode reforçar a organização democrática da sociedade, dentre outros motivos por destacar o valor da noção de direitos. Segundo o sociológo Janine Ribeiro (1999), “os direitos humanos têm forte papel positivo na medida em que concorrem para que o cidadão moderno se defina a si próprio a partir de seu direito a ter direitos; a partir, portanto, de uma idéia de cidadania na qual a recusa do arbítrio, da dependência da vontade alheia, é crucial”.
Porém, a ênfase nos direitos humanos não pode ser considerada pela medida dos direitos privados, individuais. Estes oferecem ao indivíduo a liberdade de usufruirem dos direitos num sentido ou, então, se tenho o direito de expressão, posso exprimir-me dizendo uma coisa, afirmando outra - ou, ainda, calando-me. Ou seja, trata-se da liberdade negativa reinante nos tempos modernos. Ora, o problema é que tal idéia do direito, fazendo parte de um patrimônio do indivíduo, perde de vista o que pertence à essência mesma dos direitos políticos, se os considerarmos como fundamentalmente vinculados à democracia, isto é, poder do povo. A democracia como um poder constantemente criado pelo povo, um poder em perpétua constituição. Se a democracia é precisamente um regime onde a política é assunto de todos e deve ser decidida por todos, isso implica que os direitos políticos, na demo cracia, devam necessariamente ser, ao mesmo tempo, direitos e obrigações.
107 O surgimento das ongs e sua evolução
Os direitos políticos nas democracias modernas, revigorados pela temática dos direitos humanos, devem estar ancorados nos direitos e obrigações coletivas e devem ser exercidos levando-se em consideração sua dimensão política e pública, e não tomar como medida para os direitos humanos os direitos individuais. O que há de equívoco é considerar que os direitos humanos podem e devem ter como medida os direitos individuais, quando o correto é considerar como referência, além dos direitos individuais, os direitos coletivos; isto é, aqueles direitos que atingem grupos sociais mais amplos. A multiplicidade e a diversidade dos grupos sociais e das práticas culturais e políticas, e, portanto, dos direitos e obrigações, são abundantemente registradas na cultura brasileira e devem servir como referência para a organização da sociedade civil. Uma das modalidades organizacionais atuais efetua-se através de redes sociais, as quais congregam grupos acadêmicos de pesquisa, sindicatos, partidos, diversas representações religiosas, e ligam outros grupos formais e informais da sociedade civil, além da presença constante e sistemática das organizações não-governamentais. Em síntese, as ongs, além de adquirirem maior autonomia, enquanto atores políticos, passam por uma internacionalização de seus objetivos e práticas, que se concretizam, quer nos múltiplos acordos internacionais de cooperação técnica e financeira, quer na participação nas mais variadas redes de organizações e fóruns nacionais e internacionais. No que diz respeito ao Estado, especialmente nos anos 1990, este deixou de ser o único interlocutor e parceiro das ongs. Estas assumem outras e diversas parcerias e passam a interagir com múltiplas vozes e diferentes atores sociais. Neste mesmo diapasão, altera-se o conceito de política, e a maior intensidade de tal transformação incide sobre o modo de ser do procedimento político, o qual passa a incorporar um sentido mais propositivo de ação política, menos personalista e contingente, e mais encarnado em práticas sociais e políticas inseridas de forma radical no cotidiano dos grupos sociais.
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3. Uma breve história do Inesc No final década de 1970, a sociedade brasileira mostrava os primeiros sinais de superação dos constrangimentos impostos pela ditadura militar. A sociedade civil, que esteve anos submetida a rígidas formas de controle, começava a articular as forças sociais dispersas, demonstrando vigor e objetividade na organização de reivindicações específicas que encontram profunda repercussão nos âmbitos nacional e internacional . Dentre eles, destacou-se o Movimento pela Anistia, que obteve resultados fundamentais para a sociedade, especialmente no que concerne à reorganização da cultura e da ciência no Brasil. A Anistia permitiu a volta ao país de muitos intelectuais e artistas que traziam em sua bagagem uma rica e diversificada experiência. Muitos haviam desenvolvido atividades, antes da ditadura, que uniam as perspectivas cultural e política, buscando a emancipação da sociedade em relação a seus laços de dependência externa e condições de igualdade econômica e social no plano interno. Uma das intelectuais que retornam ao Brasil, sem abrir mão de uma consciência crítica e da disposição para lutar a favor dos direitos humanos e pela melhoria das condições sociais, foi Maria José Jaime, a Bizeh. Nascida em Goiás, retornou em 1979 às terras do Planalto Central com um firme propósito: manter aberto o horizonte da política, ampliando seu escopo quer no que se refere às formas de atuação política, ou a novos conteúdos sociais, culturais e econômicos, associados à perspectiva política. No final da década de 70, a sociedade brasileira ensaiava os primeiros passos rumo à normalização democrática. Nesse contexto, começaram a ser formalizados os grupos sociais que se dedicavam ao ordenamento de ações políticas concretas, em consonância com os anseios da sociedade. Em 1979, Bizeh cria o Inesc e, junto com sua equipe, promove a consolidação e o desenvolvimento do Instituto durante 23 anos. Bizeh é parte importante da história relatada a seguir.
109 Uma breve história do Inesc
Biseh Jaime: fundadora do Inesc
O Inesc começou sua atuação vocacional como entidade voltada à consultoria parlamentar. Após três anos de experiência nessa atividade, surgiu a necessidade de ampliação dos horizontes. Isso ocorreu a partir da constatação da importância de estreitar os encontros entre os consultores e os parlamentares, bem como a aproximação e discussão conjunta entre os próprios consultores. Assim, o aprofundamento desse trabalho resultou na necessidade de ampliação do número de consultores. Esses fatos constituem o embrião da formação do corpo técnico do Inesc. O Inesc começou a configurar, com maior nitidez, um perfil institucional que, aos poucos, afirma seu caráter independente e resoluto na defesa de princípios éticos, informando a atividade política.
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Passa a pautar sua atuação não só ancorando-se numa postura institucional, como também articulando-se com outras instituições da sociedade civil, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura –Contag; a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil –CNBB; sindicatos; partidos; academia, etc. É interessante observar que a história do Inesc acompanha a própria história da constituição e atuação das organizações não-governamentais no Brasil. A vocação do Inesc nunca se desvirtuou, sendo firmada com muita convicção desde o início. Por volta de 1981, estabeleceu-se um contato com a Instituição Desenvolvimento e Paz, do Canadá, que aprovou um projeto de financiamento apresentado pelo Inesc. O financiamento visava à promoção de seu desenvolvimento institucional, viabilizando sua autonomia financeira. Posteriormente, contatos com outras instituições internacionais foram realizados, e viabilizados outros projetos e financiamentos. A autonomia financeira concretizou-se por volta de 1982-1983. Neste mesmo período, devido, entre outros fatores, à maior estabilização financeira, o Inesc entrou em rota de plena expansão. Especialmente nesse momento, uma das opções significativas do Inesc foi priorizar a questão indígena como área temática que merecia atenção especial, tendo em vista a gravidade do genocídio das populações indígenas, seu estado de miséria e abandono. Essa realidade suscita até hoje, no corpo técnico do Inesc, a consciência de uma atuação urgente com relação a esses grupos sociais. Também, dentro desta mesma lógica, a temática agrária é introduzida como questão estruturante para a ação política, na medida em que começavam os movimentos em torno do direito à terra e da realização da reforma agrária. Depois de desfrutar de uma posição mais consolidada no interiordo Congresso Nacional, o Inesc começou a ganhar projeção fora do Parlamento e a estabelecer contatos sistemáticos com outras entidades congêneres. Tais fatos conduziram ao crescimento da instituição, tanto no que se refere ao seu corpo técnico quanto às suas formas de atuação. No período das Diretas-Já, o Inesc já apresentava um perfil mais definido, uma atuação reconhecida dentro e fora do Congresso Nacional; um aumento significativo do número de funcionários e a ampliação das áreas temáticas consideradas foco de atenção privilegiada.
111 Uma breve história do Inesc
Assim, foi criada a área de direitos humanos, que já englobava questões indígenas assim como aquelas relativas às formas de solidariedade internacional a todos os países que estavam em guerra na América Latina. O Inesc se aproximou dos movimentos sociais para além dos índios e camponeses e começou a atuar junto aos seringueiros e extrativistas da Amazônia brasileira, tendo realizado o primeiro Congresso Nacional de Seringueiros, que contou com a presença de um dos maiores líderes deste movimento, inclusive seu ícone, Chico Mendes. A temática dos direitos humanos sempre foi central nas preocupações e nos debates travados pelo Inesc. Desde o começo, o Instituto manteve contato com entidades de direitos humanos, inclusive algumas foram criadas junto com o Inesc. Por exemplo, passou-se a articular contatos diretos com a Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, com várias entidades de Brasília, e também com o Clamor, grupo de São Paulo. Nesse momento, quando estavam em marcha no Brasil os processos de abertura democrática, o Congresso Nacional voltou a assumir relevância no cenário político, onde o jogo das forças políticas vivas da sociedade começava a se manifestar. O Inesc passou a ocupar um lugar de grande importância no cenário político nacional ao desempenhar o papel de intermediário entre a sociedade civil e o Estado e entre as outras ongs e o Congresso Nacional. Os papéis de aglutinador e articulador desempenhados pelo Inesc fizeram com que seus horizontes e atuação alcançassem a América Latina, através de contatos e trocas com entidades relacionadas à temática dos direitos humanos. No período compreendido entre 1983 e 1986, o Inesc encontrou campo fértil de trabalho, diversificando suas atividades tanto no Parlamento quanto na sociedade civil. Em relação ao trabalho com os parlamentares, novas estratégias de aproximação entre os deputados e a sociedade foram viabi lizadas. Todos os relatos sobre o Inesc enfatizam a busca incessante de aprofundar a reflexão e a atuação em torno das áreas temáticas tomadas como objeto de interesse, e a tentativa permanente de incluir novas áreas, ampli ando as possibilidades de ação do Inesc. Nos anos 1986 e 1987, o Inesc aprofundou seu trabalho no âmbito do Congresso Nacional. Começava, naquele momento, a preparação para a Assembléia Nacional Constituinte. O INESC adquiriu, nesse período, maior consistência institucional, assumindo atitudes enquanto ator político.
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Assim, o Instituto ganhou as ruas, aproximando-se mais do cotidiano do povo, que em suas múltiplas misturas e seus variados arranjos evidenciavam o verdadeiro tecido social da realidade brasileira. É interessante frisar que o Inesc, nesse momento, diversificou suas atividades, atuando na assessoria a parlamentares; conduzindo a ação no Legislativo; assessorando prefeitos do campo progressista; participando de ações no âmbito do Executivo, intensificando o contato com outras entidades e concretizando uma ação no interior da sociedade civil. Desta forma, o Inesc buscou realizar um trabalho substantivo em todas as suas frentes, inscrevendo em suas atividades um caráter crítico-reflexivo e um compromisso com a construção democrática. Movido por tais prerrogativas, o Inesc procurou desenvolver ações concretas no espaço público. Buscou, inclusive, fortalecer a própria idéia de espaço público, propondo a organização de uma nação constituída de cidadãos, onde todos podem e devem participar do seu destino histórico. Em 1986, o Inesc promove mudanças institucionais e administrativas qualitativas, ao redimensionar sua gestão financeira. Os procedimentos financeiros mudaram de orientação e passaram a ser operados, tão somente, com os recursos já adquiridos e instruídos em caixa, tendo sido implantados uma política orçamentária e um planejamento financeiro. O Inesc começava então um aprofundamento rumo à sua profissionalização e ao fortalecimento institucional. Logo depois desse movimento, começou a organização da Constituinte. A participação do Inesc foi intensa e de grande importância no que diz respeito à sua atuação em relação às questões indígena e agrária e às primeiras iniciativas em relação ao meio ambiente. O Inesc, depois disso, passou a incorporar os temas indígena, ambiental, dos sem-terra e a discussão dos direitos humanos, que mais tarde sofreram um desmembramento temático com a incorporação das questões da criança e do adolescente, violência, etc. O trabalho na Constituinte aprofundou a dinâmica interna do Inesc, ao consolidar seus procedimentos de trabalho, aprofundar sua atuação nas áreas temáticas e processar os conteúdos por meio de textos que fossem instrumentos de ação política. Essa consolidação se expressava na articulação que o Inesc construiu com as Redes e Fóruns da sociedade civil organizada, que incluem as ongs, os movimentos sociais e sindicatos, onde o Instituto ocupa, ainda hoje, posição privilegiada na maioria deles.
113 Uma breve história do Inesc
Vimos que o Inesc aprofundou e diversificou suas ações, mantendo firme sua posição de luta frente às áreas temáticas eleitas como campos de trabalho, tais como as questões indígena, agrária, de direitos humanos, meio ambiente, criança e adolescente e questões internacionais (comércio, sistema financeiro, tratados internacionais). Além disso, foi deflagrado um trabalho de intensa produção de informação, por meio da elaboração de boletins, livros e revistas que ganharam repercussão nacional. Hoje, a linha editorial é bem maior e a distribuição é feita nacional e internacionalmente. Em síntese, durante o período compreendido entre 1986 e 1989, quando o Inesc completou 10 anos, apesar das condições de trabalho ainda precárias e da intensidade das tarefas a serem cumpridas, havia uma crença inexorável e uma determinação resoluta nos objetivos e nos resultados do trabalho implementados. Esses haviam alcançado uma consolidação e adquirido, de forma consistente, legitimidade política e prestígio profissional. De 1989 a 1992 foram anos difíceis que arrefeceram os ânimos e reduziram as perspectivas: foi a chamada era Collor. No entanto, de modo surpreendente e revigorado, a própria sociedade, por meio de seus vários grupos organizados, começou a se mobilizar em torno da questão do impeachment do Presidente da República. Foi constituído, nesse momento, o Movimento pela Ética na Política, que se desdobrou no Movimento Ação e Cidadania e este, por sua vez, organizou-se por meio da Campanha Contra a Fome e a Miséria, e pela Vida. A presença do Inesc foi marcante e vital para a renovação dos horizontes políticos, que começavam a ser gestados naquele momento. O Inesc viveu essa espécie de vácuo político e crise institucional do Estado de forma madura. Isso ocorreu porque o Instituto já detinha uma experiência consistente, por já ter enfrentado situações de extrema dificuldade, como o período da ditadura. Assim, o mais positivo desse momento é que foi retirado dele uma poderosa
lição: era preciso reformular a concepção de política e, conseqüentemente, o método e as práticas políticas. Fatos significativos haviam ocorrido: a queda do muro de Berlim, em 1989; as mudanças realizadas na Europa do Leste; a transnacionalização do capital, cada vez mais incisiva; as mudanças no plano da cultura, com o surgimento de novos atores sociais demarcados por identidades micrológicas, definidas a partir das idéias de gênero, sexualidade, etnia, etc.
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Dessa forma, as concepções políticas que propunham como referência básica grandes sistemas totalizantes tornaram-se inoperantes frente às novas realidades. Era preciso construir uma proposta de ação política que se aproximasse dos movimentos mais sutis e profundos da cultura. Assim, tornou-se viável estreitar as idéias de ética e política, produzindo um grande rendimento para o maior amadurecimento da cultura política brasileira. Era preciso rever as práticas de intervenção política, aprofundar os conhecimentos e se mostrar propositivo no enfrentamento das questões nacionais de interesse público. Não podíamos mais nos manter em posturas defensivas. A sociedade civil brasileira era chamada a assumir a responsabilidade por seu destino. Mais uma vez, o Inesc exerce sua liderança, sua capacidade de articulação política, congregando as várias entidades como ongs e outras como a CNBB. Esse conjunto de organizações envidou esforços para que a construção democrática estivesse assentada sobre o exercício público e ético da política, tendo em vista a plenitude da cidadania. Com a criação do Movimento pela Ética na Política e o lançamento de seu manifesto, o Inesc foi designado para a secretaria do Movimento e, logo em seguida, vieram as denúncias contra o então presidente Fernando Collor. O Movimento pela Ética tinha algumas normas, e não tinha uma direção. Era composto por uma secretaria e algumas entidades. Havia o manifesto e com base nele cada organização tinha autonomia para realizar, na sua entidade, nos seus estados, atividades que convergissem para aqueles princípios que estavam ali delimitados. O Inesc teve participação ativa todo o tempo. Nossa primeira manifestação foi uma passeata em Brasília, que saiu da Ordem dos Advogados do Brasil -OAB- e foi até o Congresso Nacional. O movimento cresceu e tomou todo o país. Aí veio o impeachment, um dos momentos de maior experiência cidadã vivido pelos brasileiros. É assim que, a partir de uma reflexão sobre a ética na política, e a constatação de dificuldades e desigualdades sociais, econômicas e políticas existentes na sociedade brasileira, começava a ser delineada uma ação política no interior da sociedade, buscando enfatizar a mediação pública entre sociedade e Estado. Esse período foi muito importante, na medida em que o Inesc participava, promovia, articulava conexões políticas, passando a compreender então, política como capacidade dialógica.
115 Uma breve história do Inesc
Foi decisiva a participação do Inesc na implantação e eficiência tanto do Movimento pela Ética na Política quanto na Ação Contra a Fome e a Miséria e pela Vida. Como conseqüência de sua atuação, o Inesc cumpriu um papel fundamental no processo de consolidação democrática, ao contribuir para a maior visibilidade da sociedade civil, permitindo seu acesso às instâncias de decisão política. A percepção e o reforço às formas de solidariedade existentes na sociedade brasileira mostraram-se de extrema importância. Dentre outras conseqüências, ajudaram a reverter estereótipos sobre nós, brasileiros, vistos como portadores de um individualismo primitivo, cujo valor supremo é a vantagem pessoal, e a sociedade percebida através do signo da violência. O Movimento pela Ética na Política e a Ação Contra a Fome e a Miséria e pela Vida estavam referendados pelo conhecimento das profundas distorções e desigualdades presentes na estrutura social brasileira. Embora o Inesc tenha diversificado e ampliado suas estratégias de atuação, nunca abandonou seus princípios básicos de defesa dos direitos humanos e a luta permanente pela construção democrática. Tampouco arrefeceu sua participação no Parlamento, buscando sempre torná-lo o mais representativo possível da dinâmica e da diversidade da sociedade. O Inesc contribuiu com a Campanha atuando na organização, na viabilização financeira, na ação política e na elaboração de uma pesquisa importante sobre a situação de fome entre os povos indígenas do Brasil. O Mapa da Fome dos Povos Indígenas do Brasil tornou-se referência para a incorporação dos povos indígenas nesse debate e na tomada de consciência sobre a real situação dos mesmos, muitas vezes idealizada pelos cidadãos. Ao longo de vinte e três anos, o Inesc desempenhou uma missão política de profundo significado, pois sua atuação, especialmente no interior do Parlamento, transformou-o em um ator político que amplia a legitimidade do espaço público no cenário político. Um dos principais objetivos foi o de tornar o Parlamento mais representativo da sociedade. Ao longo dessas duas décadas, o Inesc concretizou formas promissoras para transformar o Parlamento em um espaço público mais democrático. Embora o objetivo seja fazer com que o Congresso se torne cada vez mais democrático, isso é algo que, obviamente, não temos condições de cumprir sozinhos. Essa é uma tarefa de toda a sociedade. Nós somos uma parte da sociedade que está lá dentro, lutando por isso, mas ancorada na sociedade civil organizada.
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No momento atual, o Inesc mantém a firme convicção de sua missão política no interior do Parlamento e sua vocação para promover o agenciamento e a articulação junto a vários grupos sociais dispersos na realidade brasileira. O Inesc acredita que a cidadania passa pela capacidade de aperfeiçoamento dos mecanismos de controle social, da construção do sentido do público e do campo dos direitos humanos como eixos fundantes de um novo indivíduo e de novos valores societários. Como resultado do seu amadurecimento, o Instituto passou a especificar, com instrumentos de ação cada vez mais depurados, sua atuação junto ao Parlamento, como a ação desenvolvida junto à Comissão de Orçamento, para acompanhamento e avaliação permanente da implementação das políticas sociais do Governo federal. O Inesc se transformou na instituiçãoreferência sobre o funcionamento do ciclo orçamentário, o uso do dinheiro público e os mecanismos de controle sobre o mesmo. O Inesc educa cidadãos e capacita organizações para que exerçam o direito e o dever do controle sobre o orçamento público e sobre as políticas públicas de interesse público. Entre as questões mais recentes que vêm desafiando o Inesc, existem os temas relativos ao debate internacional, repartidos em três grandes blocos: aquele relativo ao chamado “Ciclo Social da ONU”, onde consideramos todo o processo dos anos 1990 onde foram construídos novos princípios que orientam a ação dos Estados-Nação membros das Nações Unidas -o chamado campo dos Direitos Humanos de última geração -; um segundo campo que foi o debate sobre as instituições financeiras multilaterais e as dívidas externa e interna; e um terceiro, inaugurado neste início de século, que são os debates sobre integração comercial. O Inesc aceitou o desafio de se aprofundar nestes temas, participando ativamente de todos os processos a eles relativos, atuando em todos os espaços, oficiais ou não-governamentais, monitorando e tentando perceber as tendências das discussões, as repercussão internas das decisões internacionais, tanto no âmbito orçamentário quanto no das políticas sociais. Sobre os rumos do Inesc, pretendemos continuar evoluindo como entidade, assim como evoluímos nesses vinte e três anos, na medida em que refletimos sobre o nosso conteúdo político e organizativo. Enquanto a sociedade brasileira vai mudando, novas demandas vão sendo formuladas. Hoje, a sociedade tenta intervir sobre o próprio processo legislativo, para democratizá-lo.
117 Uma breve história do Inesc
O Parlamento federal continua sendo um espaço privilegiado do trabalho do Inesc por ser aquele que permite a maior participação dos diferentes setores da sociedade brasileira, na defesa de seus interesses e do interesse público. Além disso, o Inesc tem promovido seminários com representantes qualifi cados dos círculos científicos, políticos e da sociedade civil em geral. Igualmente, tem participado de fóruns de discussão permanentes sobre temas de interesse coletivo, como dívida externa, a questão agrária, a exclusão social, etc. Mantém um diálogo sistemático com outras ongs, sindicatos, universidades e outras entidades nos âmbitos nacional e internacional. O Inesc está firmemente ligado às organizações do campo democrático, popular e progressista, atuantes na construção de um mundo mais justo, solidário e igualitário. Confirmando a proposta de diversificação das ações e da construção de parcerias, o Inesc, atualmente, está sediando a Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, e é responsável pela secretaria desta Rede. Também participa da coordenação das principais Redes, Fóruns e Grupos de Trabalho temáticos que existem no país e nos espaços internacionais, participando ativamente do Fórum Social Mundial. Enquanto ator político, o Instituto viabilizou novas práticas políticas para ampliar o acesso dos mais diferentes grupos sociais ao espaço público, visando, dessa forma, ao exercício concreto da cidadania. Foi assim que o Inesc construiu uma experiência sólida, não perdeu o rumo político, não esqueceu de seus objetivos primordiais e, em consonância com os tempos pós-modernos, mantém acesa a luz da utopia na busca por um mundo melhor para todos os habitantes do planeta.
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4. Pressupostos metodológicos Sabe-se que o mundo global apresenta uma interdependência complexa, em permanente mudança nas conexões entre as esferas da sociedade, entre os grupos e entre as nações. O sociólogo português Boaventura Santos (1996) propõe que sejam examinados os processos de globalização e localização, buscando não perder de vista que os procedimentos e mecanismos de globalização têm um modo específico de inserção em cada realidade histórica concreta, como é o caso das diferentes nações. É fundamental, portanto, não perder de vista as relações entre o local e o global, o singular e o universal, o nacional e o internacional. Faz-se necessário, em cada caso particular, examinar o modo específico de entrelaçamento entre esses fatos ou dimensões. Nesse sentido, as ongs têm procurado trabalhar com valores universalistas, como sociedade civil, democracia, cidadania e direitos humanos, sem contudo deixar de examinar o modo como tais idéias são enraizadas e incorporadas à dinâmica das sociedades nacionais. Diante da complexidade da sociedade atual, não se deve considerar nem o Estado, nem a sociedade civil, como blocos monolíticos. A diversidade de interesses e de posições é rica e garante a possibilidade de múltiplos arranjos sociais, políticos e econômicos. Assim, a democracia deve garantir condições iguais de acesso aos equipamentos e procedimentos sociais que permitam o exercício da cidadania por todos os grupos sociais. Nesse sentido, a democracia, além de garantir a igualdade de acesso aos serviços públicos, deve exibir a diversidade dos grupos sociais, suas formações e perspectivas diferenciadas, viabilizando a concretização de objetivos variados e específicos. Não se deve ignorar que é o cidadão o verdadeiro ator da democracia, e não o Estado, o que enseja a consolidação crescente da sociedade civil. Este é um dos pressupostos básicos que têm orientado a ação do Inesc. As ongs, de modo geral, e o Inesc, de modo particular, têm pautado suas ações lutando, através de ações concretas, por uma sociedade civil autônoma e dinâmica, encorajando o fortalecimento de diferentes expressões, cujos objetivos visam à emancipação política, econômica e social dos mais diferentes grupos sociais.
119 Pressupostos metológicos
Decorrente desses pressupostos, surge um princípio fundamental referente à necessidade permanente de construção da autonomia da sociedade civil e da capacidade dessa sociedade se somar às iniciativas do Estado. Isto significa, ainda, a construção e ampliação do espaço público e a transformação das demandas sociais em proposições políticas concretas. As ongs têm tido um papel fundamental enquanto atores na construção de uma esfera pública ampliada. Como atores políticos, têm desempenhado um papel crucial para a consolidação democrática, ao possibilitarem maior consistência nas relações entre a sociedade e o Estado, ou ainda, por viabilizarem a capilaridade dos mecanismos de poder do Estado no interior da sociedade. Ou seja, as ongs concretizam uma relação de mediação entre os poderes constituídos do Estado e a realidade vivida por grupos sociais portadores de uma experiência social cotidianamente produzida e reproduzida no interior da sociedade. O Inesc tem organizado sua ação não apenas como ator político, mas também como ator social, enquanto produtor de conhecimento e de informações empíricas relevantes sobre a realidade brasileira. Há, hoje, um conjunto sistemático de informações geradas pelas ongs como um todo, assim como pelo Inesc, que atualmente constitui um acervo significativo concernente à melhor compreensão da realidade brasileira. O outro princípio fundamental que sustenta o modo de ação do Inesc diz respeito à construção, articulação e ampliação do espaço público, através da organização efetiva de grupos sociais, como mulheres, crianças, idosos, pequenos produtores urbanos e rurais, além de todo grupo social excluído, quer culturalmente (como os gays e exilados de todo tipo), quer economicamente, como aqueles que estão à margem do mercado de trabalho. Essa atuação se concretiza em dois níveis: primeiro, através da busca de relacionamento entre o conhecimento total da sociedade e o conhecimento relativo a universos sociais mais específicos; o segundo nível de atuação refere-se à construção de estratégias que articulam o procedimento democrático geral da sociedade às reivindicações específicas da realidade micrológica. Este modo de atuação das ongs tem uma conseqüência concreta que é a capacidade de reconhecer a demanda social. Dessa experiência, tem resultado dois desafios: o primeiro refere-se à construção e ampliação permanentes do espaço público; o segundo diz respeito à articulação de ações coletivas intra e inter grupos sociais existentes na sociedade.
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Vencer tais desafios significa fortalecer a existência de uma sociedade verdadeiramente democrática e multicultural, onde o discurso da diferença não seja uma mera retórica, cuja cilada é o autoritarismo dissimulado ou explícito. Alguns pressupostos equivocados devem ser apartados do horizonte político e pragmático das ongs e, igualmente, do Inesc. Trata-se do significado e alcance da ação implementada pelas ongs. Estas não devem almejar a substituição da ação do Estado; não devem e não podem, igualmente, se transformar em meros parceiros complementares à ação deficitária dos Estados. Não se trata de substituição, mas de deslocamento da compreensão da atividade política, que passa da atitude de dependência em relação ao Estado às formas alternativas de organização política da sociedade civil. Mais do que buscar substituir ou complementar a ação do Estado, as ongs, e o Inesc em particular, postulam-se como aliados na busca da governabilidade da sociedade brasileira. Governabilidade que deve ser entendida não só como o exercício do poder ou a função executiva do Governo, mas algo mais amplo que abarca “todas as condições necessárias para que esta função se possa desempenhar com eficácia, legitimidade e respaldo social”, conforme Gelson Fonseca Júnior, representante do Brasil junto à ONU. É através de uma substantiva governabilidade que é possível alcançar uma verdadeira democratização das gestões públicas: o aumento do grau e do modo de participação dos cidadãos em processos decisórios das políticas nacionais. As ongs têm lutado obstinadamente para promover a participação plena ou cidadã, a qual é vista como um processo capaz de gerar uma nova dinâmica na organização social, fomentando a participação e a intervenção popular nas políticas públicas. Tal participação não deve se esgotar no âmbito de projetos setoriais, mas deve se relacionar, diretamente, com questões mais amplas, tais como a democratização, a equidade social, a cidadania e a defesa dos direitos humanos. Nesse sentido, requer sobretudo a democratização do poder no que se refere ao uso de recursos financeiros e sobre a definição e implementação de políticas públicas.
121 Pressupostos metológicos
A participação da sociedade civil na gestão das políticas públicas é fundamental no estabelecimento de uma ordem democrática sólida, especialmente se concordamos com o economista Paul Singer (1977), que diz: “o Estado preside uma economia que sem dúvida é de mercado, mas também uma administração pública que é democrática e que deve estar ao serviço da maioria dos cidadãos, sem distinção entre os que têm e os que não têm capital”.
Atualmente, verifica-se no Brasil, e em nível internacional, que os processos de globalização têm sido acompanhados por processos de concentração de renda, exclusão social, aumento da miséria e da pobreza. “A pobreza, hoje, não deve ser vista apenas como herança do passado. Está em curso uma nova produção da pobreza, resultado do modo de crescimento econômico e das características da evolução social, assim como das políticas postas em prática. Deste ponto de vista, cabe falar não só da pobreza, mas sim de um processo ativo de empobrecimento: não só aumenta o número de pobres, mas se aprofunda a pobreza”. (Singer 1997 – p. 38)
A constatação das afirmações acima referidas conduz à necessidade premente de se construir procedimentos políticos que introduzam preceitos éticos e ações eficazes na organização de objetivos e interesses específicos dos grupos sociais. A necessidade de uma ação sistemática, organicamente apoiada em práticas sociais concretas, capaz de revelar a especificidade dos grupos sociais, torna-se cada vez mais urgente frente aos mecanismos de globalização, como o incentivo às “forças cegas” do mercado e ao consumo, o que pode ameaçar as bases de solidariedade, fundamentais para a reprodução razoável do tecido social. Os ditos processos de globalização, que transformaram o cidadão em mero consumidor, provocaram uma brutal concentração das atividades econômicas, do capital e da renda, e aumentaram sobremodo a pobreza, o que em conjunto tem trazido muitos resultados nefastos para a sociedade. Uma conseqüência social bastante visível é o aprofundamento dos processos de exclusão social, quer econômica, quer simbólica: processos que levam ao individualismo em todos os níveis, à individualização da demanda social, à perda de identidades coletivas, à fragmentação da sociedade. Na sociedade contemporânea, mais do que em outros períodos históricos, faz-se necessário incrementar e dinamizar a participação coletiva nas instâncias públicas de decisão, sobre o destino e a história dos grupos sociais.
122 O Inesc e a agenda brasileira 2003/2006
Nesse sentido, o Parlamento, enquanto instância de decisão política, cujo funcionamento satisfatório garante as bases da sociedade democrática, requer a presença sistemática de grupos organizados da sociedade civil. As atividades políticas não devem se restringir apenas à participação dos cidadãos nos momentos de campanha eleitoral, quando de modo geral ocorre uma ritualização da política, que condensa um momento de grande vitalidade para a sociedade. Essa vitalidade, porém, ocorre de forma intermitente e, por si só, não garante a predominância dos procedimentos democráticos na gestão da política. Além da necessidade de realização de campanhas eleitorais transparentes, com apresentação de propostas concretas e viáveis, urge a manutenção das atividades políticas, garantido-lhes continuidade e possibilidades efetivas de realização, além de impulsionar as forças sociais capazes de congregar objetivos coletivos e interesses comuns, isto é, praticar o exercício da política, o que implica, necessariamente, em arranjos grupais e minimamente institucionalizados. É preciso assim estabelecer conexões mais plausíveis entre as práticas políticas e a vivência cotidiana dos grupos sociais, vinculando de modo definitivo política e cultura. É preciso ampliar a capacidade de organizar “propostas políticas plausivelmente sustentadas por valores e princípios culturalmente vigentes”.
(Fonseca Júnior 1998). Igualmente importante é a relação entre a política e o cotidiano, pois as práticas políticas deveriam emergir do cotidiano e a ele retornar sob a forma de gestão pública dos interesses individuais. A regularidade da prática política suscita seu desenvolvimento e dinamismo, quer no interior da sociedade, quer no âmbito do Parlamento, o que concorre para a diversificação dos “cenários do poder”, segundo o antropólogo francês Georges Balandier (1980); isto é, além dos rituais políticos, que por definição são esporádicos, como campanhas e eleições, é preciso construir procedimentos que mantenham diálogos entre os diferentes grupos sociais, ou as partes envolvidas e as instâncias políticas.
123 Pressupostos metológicos
A importância da atuação das ongs no Parlamento, e em particular do Inesc, que defende os interesses de grupos considerados “minorias sociológicas”, como os grupos indígenas, crianças e adolescentes, mulheres, dentre outros, transparece na garantia de representação da diversidade social e do diálogo entre diferentes atores políticos, pois só dessa forma a prática política reveste-se de legitimidade, sendo esta compreendida como um “espaço de proposições possíveis” numa determinada conjuntura política. (Fonseca Jr. - 1998) Assim, o poder e as instâncias de manifestações das práticas políticas só poderão expressar e conduzir à justiça se forem legítimos, o que requer a ampliação do espaço de proposições, de enunciação por parte dos mais diferentes grupos sociais, permitindo a justa inclusão de todos, pois só assim se pode gerar o legítimo espaço do exercício do poder. O Inesc, enquanto organização não-governamental que tem desenvolvido uma ação sistemática junto ao Parlamento - subsidiando deputados na elaboração de políticas, fornecendo informações e conhecimento técnico sobre temas especializados, participando de audiências públicas, dentre outros procedimentos, tem procurado contribuir para a ampliação e consolidação do espaço legítimo de exercício do poder. Podemos, então, concordar com o pensador contemporâneo Quentin Skinner, que “o campo do possível, em política, regra geral, está circunscrito ao seu potencial de legitimação”. (Skinner, 1998). Conforme afirmou-se no início desta proposta de reflexão, a atividade política tem renovado sua força como prática social, o que tem suscitado um conjunto significativo de mudanças na cultura política brasileira, e mesmo em nível internacional, com a crescente importância que ganham o direito internacional e as cortes internacionais de justiça. Atualmente, tanto a política quanto a cultura revestem-se de uma nova densidade, o que impulsiona os grupos sociais a organizarem novas formas de sociabilidade, de resolução dos conflitos e de alternativas de cooperação. Tais posturas repõem no universo do possível a construção de uma sociedade onde as idéias e práticas da política, da justiça e da ética convivem juntas, mantendo ao mesmo tempo a perspectiva universalista dos direitos humanos e a concretude da prática política como ação substantiva no espaço público inserido em uma sociedade histórica específica.
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O modo como o Inesc tem pautado sua ação tem sido orientado pelos pressupostos acima discutidos, e que se transformam em princípios e objetivos institucionais rigorosamente desdobrados em procedimentos que evidenciam a modalidade intrinsecamente democrática da gestão interna do Inesc, sua forma de atuação, assim como suas relações com a sociedade e com o Estado.
5. Princípios e procedimentos Do ponto de vista específico do Inesc, tem-se reforçado o trabalho com temas que concretizam os esforço coletivos de construção da cidadania. O Inesc entende que não é realista imaginar um cenário de mudanças profundas. Avalia que é preciso - e possível - nortear suas atividades para a construção e promoção da democracia, pela defesa e garantia dos direitos humanos, pelo pluralismo e pela alteração das relações de gênero na sociedade brasileira. Estes temas se colocam para o Inesc não como definições genéricas, mas como objetivo institucional que deve ser buscado cotidianamente, em todos os seus programas de trabalho. A democracia deve ser encarada como um valor universal e estratégico para a afirmação e construção de uma sociedade justa. O Inesc entende a construção da democracia como um processo permanente e procura contribuir neste processo dentro do seu campo específico de trabalho. O Instituto acredita ser necessário estimular e fortalecer, na sociedade, uma clara consciência sobre a importância do Congresso Nacional como instituição fundamental para garantir e consolidar a democracia participativa, caminho para a edificação da democracia solidária, base de uma sociedade justa. O pluralismo é básico para a consolidação da democracia, para o respeito dos direitos humanos, para o exercício da cidadania. Pluralismo aqui entendido, principalmente, como aceitação e respeito às diferenças. Diferenças étnicas, culturais, políticas, de sexo, de religião. A luta pela garantia dos direitos humanos sintetiza um esforço coletivo pela construção e busca de uma sociedade democrática e que garanta o desenvolvimento sustentável. É um projeto de futuro sem prazo para ser atingido, mas que deve ser concretizado em ações do presente.
125 Princípios e procedimentos
A concepção de direitos humanos que norteia o trabalho do Inesc é ampla. Incorpora os conceitos da universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos. Ou seja, não é mais possível admitir, em nenhuma hipótese, a distinção entre os direitos individuais da pessoa humana, os direitos dos povos e os direitos econômicos e sociais. A Conferência de Viena, realizada em junho de 1993, significou um salto em relação à classificação dos direitos (os chamados direitos de primeira, segunda e terceira geração), afirmando a indivisibilidade dos mesmos, reconhecendo inclusive o direito ao desenvolvimento, o direito a um meio ambiente equilibrado que garanta o futuro das próximas gerações e os direitos da mulher, entre outros. Quando falamos de relações de gênero, devemos buscar compreender o peso específico de cada variável e a relação entre elas. É necessário, então, considerar, na análise e no planejamento, quais os caminhos que podem facilitar a luta contra a injustiça social e sexual do trabalho. Mais ainda: assumir uma perspectiva de gênero na realidade específica do Brasil exige uma tomada de posição sobre prioridades. E não há dúvida de que aqui, como na maior parte do mundo, falar em relações de gênero significa falar na condição da mulher, e, principalmente, assumir um compromisso com as reivindicações das mulheres, lutando contra a discriminação a que estão submetidas e pela garantia de seus direitos. Na prática, todas estas questões estão inter-relacionadas. São questões específicas que conformam uma agenda que, em escala global, expressa os interesses humanos também globais. Por isso, é importante saber articular e fazer a ligação estratégica da intervenção política em todos os espaços. Da atuação na base, passando pelo plano institucional e ligando-se aos movimentos da sociedade civil no âmbito internacional. É evidente que a atenção maior deve estar sempre voltada para a realidade concreta e a conjuntura interna. Também não se pode perder de vista a especificidade de cada temática de trabalho e o processo histórico de sua formação. Estes princípios básicos do Inesc orientam todas as suas atividades. E, se pensarmos em termos de uma matriz, perpassam, verticalmente, todos os temas de atuação: política agrária e agrícola; índios; meio ambiente; criança e adolescente; orçamento público; comunicação e cooperação internacional. O trabalho desenvolvido em cada área temática tem como princípios básicos a incorporação em suas atividades da perspectiva de gênero, o aprofundamento da democracia, o pluralismo, a garantia legal e o respeito concreto aos direitos humanos.
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Estes objetivos, portanto, definem o Instituto como uma organização que tem como fundamento de sua ação a prática política, a educação e a informação, além de seu papel como ator político nos cenários nacional e internacional. Sendo assim, sua missão institucional é contribuir para a promoção e o fortalecimento da democracia representativa e participativa, dos direitos humanos, da cidadania, da pluralidade política, da diversidade cultural, da eqüidade de gêneros e da sustentabilidade sócio-ambiental. Para tanto, monitora e avalia políticas e orçamentos públicos, elabora e acompanha proposições legislativas, articula-se com outras organizações da sociedade civil, tendo como espaço prioritário de atuação o Congresso Nacional.
6. A ação do Inesc Orientado pelos seus princípios e por sua missão institucional, o Inesc desenvolveu uma metodologia de trabalho que expressa sua ação bifocal: o acompanhamento, a articulação e a intervenção junto à sociedade civil, de um lado; e do outro lado, o acompanhamento, a articulação e a intervenção no âmbito do Congresso Nacional. Dentro do Congresso Nacional, o acompanhamento se dá através dos seguintes passos: • Solicita a relação de proposições legislativas com bases em suas temáticas; • Decide quais proposições vai acompanhar no Congresso Nacional; • Identifica os setores contrários às proposições no Legislativo e no Executivo; • Elabora o perfil parlamentar das comissões e divulga-o para as organizações ligadas à temática; • Solicita cópia de projetos; • Organiza o acompanhamento de acordo com os temas; • Analisa o conteúdo das proposições; • Elabora propostas (emendas, substitutivos, etc.) frente às proposições contrárias aos direitos; • Elabora notas técnicas e promove sua discussão junto a parlamentares e entidades; • Alimenta um banco de dados com resumos;
127 A ação do Inesc
• Mobiliza organizações da sociedade civil com interesse na temática, elaborando em conjunto a posição e a estratégia a ser adotada no acompanhamento da tramitação, em especial nos momentos decisivos; • Atualiza o quadro de proposições legislativas prioritárias por temática; • Socializa as informações legislativas, por segmento ou temática, durante todo o processo e produz publicações para o aprofundamento temático; • Consolida a argumentação favorável ou contrária; • Monitora a tramitação de proposições nas comissões e discute com os atores legislativos (relator, assessores de parlamentares, secretários, formadores de opinião nas comissões); • dentifica e articula parlamentares que formam opinião nas comissões, bancadas e no conjunto do Congresso Nacional; • Qualifica a ação dos parlamentares debatendo as propostas com eles ou seus assessores; • Articula frentes parlamentares e/ou bancadas para garantir a aprovação de proposições; • Provoca seminários e/ou audiências públicas sobre projetos polêmicos; • Organiza audiência de representantes de movimentos sociais com parlamentares ou com presidentes das Casas Legislativas; • Acompanha a votação de proposições nas comissões e no plenário; • Articula a assinatura de parlamentares para garantir o envio ao plenário das propostas que tenham sido derrotas nas comissões; • Articula a obstrução de votação de proposições contrárias aos direitos; • Provoca a criação de Comissões Parlamentares de Inquérito - CPIs e atua no seu processo de constituição e funcionamento. Na sociedade civil, a atuação do Inesc segue os seguintes passos: • Elabora o plano anual de atividade de forma articulada com as ongs e os movimentos sociais que têm ação articulada e parceira com o Instituto; • Propõe agenda de intervenção para o movimento social e as ongs em assuntos relativos ao Parlamento; • Realiza oficinas educativas sobre o Parlamento e como se deve atuar dentro do mesmo; • Participa permanentemente de Fóruns, Redes, articulações mais amplas ou grupos de trabalhos dentro dos temas prioritários do Inesc; • Participa das coordenações e secretarias executivas dos Fóruns, Redes, etc; • Difunde as proposições legislativas e o perfil dos parlamentares junto ao movimento social e as ongs; • Incentiva os diferentes setores da sociedade civil a atuarem no Congresso Nacional, fazendo lobby ou estimulando a mobilização social em momentos estratégicos da pauta do Parlamento;
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• Elabora e difunde artigos, textos mais aprofundados, livros e informações rápidas de interesse do movimento social e das ongs, através da grande impressa e de publicações próprias, voltadas para a formação e informação dos públicos estratégicos do Inesc (cerca de 7 mil nomes de entidades; políticos; lideranças políticas, sindicais e sociais; professores; órgãos governamentais, entre outros); • Elabora Notas Técnicas sobre as proposições de interesse da sociedade civil organizada; • Abre espaço na pauta das Comissões Técnicas do Congresso Nacional para que as representações organizadas possam fazer a defesa de suas propostas, mediante a realização de audiências públicas; • Agenda encontros com lideranças políticas, presidentes de Comissões Técnicas, relatores de projetos de lei e parlamentares, para a discussão de temas de interesse do movimento social e das ongs; • Promove ações de sensibilização, informação e articulação junto à sociedade civil para monitorar os gastos públicos sociais e atua junto aos poderes Executivo e Legislativo, com a finalidade de aumentar os recursos do Orçamento da União destinados às políticas sociais.
129 A ação do Inesc
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