Pensando uma agenda para o Brasil desaямБos e perspectivas
PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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© 2007, INESC Instituto de Estudos Socioeconômicos/INESC. Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas._ Brasília, 2007 132 p.:il Inclui referências bibliográficas ISBN 978-85-87386-09-0 1. Brasil, políticas públicas. 2. Brasil, política e governo. I Título. CDU: 364(81)
COORDENAÇÃO EDITORIAL
COLEGIADO DE GESTÃO
EQUIPE
Atila Roque Luciana Costa
Atila Roque Iara Pietricovsky José Antônio Moroni
Alessandra Cardoso Alexandre Ciconello Ana Paula Felipe Edélcio Vigna Eliana Graça Jair Barbosa Jr. Luciana Costa Lucídio Bicalho Ricardo Verdum
REVISÃO E EDIÇÃO
Ana Cris Bittencourt PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO
Guto Miranda FOTOGRAFIAS (GENTILMENTE CEDIDAS)
Agência Brasil – Radiobrás Marcus Vini TIRAGEM
2.500 exemplares
CONSELHO DIRETOR
Armando Raggio Caetano Araújo Fernando Paulino Guacira César Jean Pierre Leroy Jurema Werneck Luiz Gonzaga de Araújo Neide Castanha Pastor Ervino Schmidt
IMPRESSÃO
Gráfica Athalaia
INSTITUIÇÕES QUE APÓIAM O INESC
ActionAid; Charles Stewart Mott Foundation; Christian Aid; EED; Fastenopfer; Fundação Avina; Fundação Ford; Instituto Heinrich Böll; KNH; Norwegian Church Aid; Oxfam Novib; Oxfam GB
Seminário “Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas” Brasília, 26 e 27 de junho de 2007 Permitida a reprodução, desde que citada a fonte.
Realização
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Apoio
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Sumário Apresentação
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AT I L A R O Q U E , I A R A P I E T R I C O V S K Y E J O S É A N T Ô N I O M O R O N I
Sinais opostos e dúvidas: a marca do início do segundo governo Lula
6
JOÃO SICSÚ
Desenvolvimento como liberdade: quais caminhos?
20
CELIA LESSA KERSTENETZKY
Controle cidadão, ferramenta contra a corrupção política
34
L Ú C I A AV E L A R
Lula, o PT e a política: a danação de Fausto
46
FRANCISCO DE OLIVEIRA
Discriminação e violência – obstáculos na conquista dos direitos
52
SUELI CARNEIRO
Direito à segurança, um desafio para o Brasil
68
S I LV I A R A M O S
Direitos humanos, desigualdades e contradições
86
PAULO CÉSAR CARBONARI
Ousadia com doses de ponderação, receita da política externa de Lula
104
MARIA REGINA SOARES DE LIMA
Ambigüidade acompanha negociações comerciais brasileiras
116
ADHEMAR S. MINEIRO
Programação do seminário
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Apresentação Um outro Brasil é possível
É com enorme prazer que o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) traz a público esta coletânea, resultado do seminário Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas, concebido com os objetivos de provocar discussão e gerar subsídios para a reflexão sobre os caminhos alternativos de desenvolvimento que representem um contraponto ao modelo atualmente hegemônico. O seminário, realizado em Brasília nos dias 26 e 27 de junho de 2007, foi dividido em quatro blocos: modelos de desenvolvimento; participação e controle social; direitos humanos e desigualdades; e política internacional. Contou com a participação de estudiosos(as) e representantes de organizações da sociedade civil. Em grande medida, esta publicação é parte de um esforço empreendido desde longa data pelo Inesc, juntamente com um conjunto de organizações e redes da sociedade civil brasileira, de ampliação do marco das discussões sobre desenvolvimento e democracia. Acreditamos, como sempre, que é preciso romper os limites do possível e não perder o impulso utópico que desde sempre embalou as lutas sociais no Brasil. A ladainha da falta de alternativas e o conformismo diante das tragédias sociais evitáveis não podem mais continuar. Reinventar o desenvolvimento à luz da democracia, da sustentabilidade e dos direitos humanos é, provavelmente, o principal desafio do século XXI. Essa é uma tarefa de muitos e exige disposição para o diálogo e para o debate que contemplem a diversidade das relações sociais em nossas sociedades, em particular na sociedade brasileira. Os artigos reunidos neste livro formam não apenas um diagnóstico inquietante dos problemas com os quais a sociedade brasileira se debate, mas, sobretudo, abrem um leque de questões e desafios, rompendo com as falsas dicotomias que têm pautado as políticas econômicas e sociais governamentais, ancoradas há pelo menos duas décadas nos paradigmas neoliberais.
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Sem a pretensão de erigir modelos, os trabalhos apresentados no seminário deixam claro que o país que temos – e as políticas públicas, sejam elas econômicas ou sociais – são o resultado de escolhas conscientes, ou inconscientes, em benefício de uns e em detrimento de outros. As desigualdades persistentes, a violência seletiva e a concentração de riquezas nas mãos de poucos não são dados inevitáveis da realidade. E, sobretudo, evidenciam a urgência de superar um modelo que separa em mundos diferentes o econômico do social, com graves conseqüências para a democracia e os direitos humanos. O Inesc espera, dessa forma, fomentar o debate, cada vez mais urgente, sobre a questão do desenvolvimento democrático em um contexto de rápidas mudanças e desafios para o Brasil. Colegiado Diretor do Inesc Atila Roque Iara Pietricovsky José Antônio Moroni
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Sinais opostos e dúvidas: a marca do início do segundo governo Lula A primeira versão deste capítulo foi escrita em abril de 2007
JOÃO SICSÚ Professor-doutor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) www.ie.ufrj.br/moeda/sicsu – jsicsu@terra.com.br
O primeiro mandato do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003–2006) foi marcado por uma política econômica conservadora, que privilegiou o controle da inflação. Manter a inflação sob controle é fundamental. Contudo, há diversas formas de fazer esse controle. O governo Lula optou por tocar o “samba de uma nota só”: elevar a taxa de juros básica da economia. Esse é um instrumento eficaz: funciona! Se a taxa de juros de curto prazo é alta e é esperado que seja mantida nesses patamares, haverá uma forte propensão ao investimento financeiro em detrimento do investimento produtivo – o que causa redução do ritmo de crescimento econômico e desemprego. Sentindo a falta de procura por seus produtos, o empresariado se inibe para reajustar preços. O “samba de uma nota só” é funcional, mas perverso, causa desemprego. Nesse “samba”, sem perversidade, não haveria funcionalidade. Em grande medida, a inflação brasileira dos últimos anos foi impulsionada pelos chamados preços administrados. São preços insensíveis a variações da oferta e da demanda, tais como: energia elétrica, telefonia, transporte urbano, pedágio, planos de saúde, etc. Tais preços têm variado, em média, a uma velocidade significativa – o dobro dos chamados preços livres, como mostra a Tabela 1. Portanto, o que o Banco Central do Brasil fez foi manter sob forte pressão baixista os preços livres – sensíveis a variações da taxa de juros e à oferta/demanda – para que o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e considerado o índice oficial da inflação brasileira porque é adotado pelo regime de metas de inflação, fosse mantido em patamares aceitáveis. Alternativamente, caso o governo federal, em conjunto com os governos estaduais e municipais, tivesse uma política de administração dos preços administrados, a inflação brasileira e a taxa de juros determinada pelo Banco Central do Brasil – que ainda é muito alta, como mostra a Tabela 2 – seriam menores. Mas, para tanto, seria necessário abandonar o “samba de uma nota só”. PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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Tabela 1 – Variação do IPCA, preços livres e administrados no período 2000–2006 (em %) IPCA
64.62
Preços livres Preços administrados
50.67 103.20
Óleo diesel
207.17
Passagem de avião
205.00
Correio
150.00
Gás de botijão
146.51
Pedágio
133.74
Energia elétrica residencial
129.70
Ônibus interestadual
111.67
Ônibus urbano
111.16
Taxa de água e esgoto
109.98
Gás encanado
107.55
Ônibus intermunicipal
105.03
Gasolina
102.26
Óleo
101.67
Álcool
98.66
Telefone fixo
97.74
Navio
81.38
Plano de saúde
80.04
Telefone público
78.53
Metrô
74.88
Fonte: IBGE.
Tabela 2 – Taxa de juros básica média no ano (em %) 2000
17,59
2001
17,48
2002
19,10
2003
23,29
2004
16,25
2005
19,13
2006
15,29
2007
12,68 (até 21/6)
Fonte: Banco Central do Brasil.
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PERDAS E DANOS Além da política monetária de elevadas taxas de juros, o primeiro mandato do governo Lula caracterizou-se por ampliar a abertura financeira da economia brasileira – iniciada na primeira parte da década de 1990 e aprofundada durante os governos de Fernando Henrique Cardoso (1994–1998/ 1999–2002). Embora essas medidas não tenham tanta visibilidade quanto as elevadas taxas de juros, são danosas à economia. São danosas porque, cada vez mais, deixam a determinação da taxa de câmbio (um preço estratégico) submetida ao humor e às expectativas das grandes instituições financeiras internacionais e nacionais. O fluxo livre de entrada e saída de capitais – convertidos de dólares em reais no movimento de entrada e de reais em dólares no movimento de saída – valoriza ou desvaloriza a taxa de câmbio de acordo com o humor de 30, 40 ou, no máximo, 50 financistas instalados em São Paulo, Nova York, Londres e Frankfurt. Tais movimentos enfraquecem, portanto, o poder público, no caso o Banco Central do Brasil, como instituição capaz de fazer uma política cambial compatível com a defesa do balanço de pagamentos e com a exportação de produtos manufaturados. Durante o primeiro mandato do governo Lula, várias medidas foram adotadas para ampliar a financeirização internacional da economia brasileira. Duas dessas merecem destaque. A primeira foi a isenção para estrangeiros de impostos sobre ganhos financeiros obtidos com a aquisição de títulos públicos – o que, obviamente, aumenta a atratividade dos títulos públicos federais, traz capitais estrangeiros para o país e valoriza a taxa de câmbio. A segunda medida foi o fim da cobertura cambial integral1 sobre as exportações. Agora, o empresariado exportador pode deixar até 30% das receitas das suas vendas aplicadas no exterior. Essa medida, no momento, tem sido inócua porque, obviamente, os empresários exportadores estão internalizando as suas receitas integralmente com o objetivo de valorizar o seu capital, aplicando-o tanto na bolsa de valores como em títulos públicos. Os efeitos danosos da flexibilização da cobertura cambial sobre as exportações serão sentidos exatamente no momento em que houver uma nova fuga de capitais para o exterior – cujas conseqüências são conhecidas: desvalorização cambial abrupta, inflação, elevação da taxa de juros, corte de gastos públicos e pedido de socorro/submissão às condicionalidades do Fundo Monetário Internacional (FMI). Nesse momento, os financistas estarão retirando do país os recursos que comandam e o empresariado exportador exercerá o seu direito de manter 30% das receitas de suas vendas no exterior: se experts em finanças estão retirando seus recursos, por que o empresariado exportador faria o contrário?
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Cobertura cambial é a obrigação de internalização de dólares resultantes de vendas no exterior (exportações). PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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Em resumo, essa medida impôs a mesma lógica de movimento do capital financeiro a 30% do capital comercial referentes às exportações. Cabe mencionar que diversos países em desenvolvimento pesquisados possuem cobertura cambial integral sobre as exportações: Tailândia, Venezuela, Malásia, África do Sul, Índia, Chile, Colômbia, Argentina, Coréia do Sul e Marrocos. A administração fiscal brasileira durante o primeiro mandato do governo Lula também contribuiu para manter a economia semi-estagnada e para perpetuar as características e limitações dos direitos sociais nos modelos focalizados. As altas taxas de juros e a formação de elevados superávits primários combinados com o baixo crescimento econômico geraram distorções alarmantes na distribuição orçamentária realizada pelo governo federal. O que foi gasto, em média, em um ano para pagar o serviço da dívida demoraria 10 anos para ser gasto em educação; oito anos na rubrica assistência social; e cinco anos na rubrica saúde. Essa análise é confirmada por fonte oficiais: ... os dados relativos ao desempenho corrente das finanças sociais federais demonstram que o movimento de disputa distributiva no interior do orçamento público federal se dá a favor dos juros e encargos da dívida pública, em detrimento de todas as demais categorias de gasto. (Ipea,2007, p.12) Se, por um lado, o esforço de geração de superávits fiscais primários limitava os gastos em saúde e educação, por exemplo; por outro, as elevadas taxas de juros impunham gastos financeiros ao governo superiores aos superávits primários, aumentando a dívida pública. Resumindo: a política fiscal foi incapaz de impedir o aumento da dívida pública e foi concentradora de renda, como mostra a Tabela 3. Gastos públicos nas rubricas saúde, educação, assistência social e organização agrária tendem a ser distribuidores de renda enquanto gastos com despesas financeiras são concentradores de renda. Tabela 3 – Evolução dos gastos do governo federal (em bilhões de R$ correntes) 2003
2004
2005
2006
8,4
13,9
15,8
21,5
Saúde
27,2
32,9
36,5
39,7
Educação
14,2
14,5
16,2
17,3
Segurança pública
2,4
2,8
3,0
3,4
Organização agrária
1,4
2,6
3,6
4,2
Despesas com pagamento de juros
145,2
128,3
157,2
163,5
Superávit primário
66,17
81,11
93,5
90,11
Assistencia social
Estoque da dívida
913,14
956,99
1002,48
1067,36
Dívida/PIB
53,72%
49,29%
46,67%
45,95%
Fonte: Siafi – STN/CCONT/Geinc e Banco Central do Brasil.
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Esse programa orçamentário é muito limitado para reduzir as desigualdades de renda e patrimoniais existentes no país, que são socialmente inaceitáveis. É muito limitado também para promover um amplo programa social de equalização de oportunidades e acessos a direitos básicos, tais como: saúde, educação, segurança pública, moradia, cultura e lazer. As melhoras somente são sentidas pelos analistas que valorizam, excessivamente, casas decimais, como mostra a Tabela 4, segunda coluna. Embora a desigualdade tenha se reduzido (redução do índice de Gini) no Brasil, esta se refere basicamente às rendas do trabalho. As remunerações decorrentes do trabalho estão menos desiguais porque houve elevação real do salário mínimo e redução do desemprego. Mas os salários ocupam uma parcela cada vez menor do PIB. Em 2000, representavam 32,1%; em 2004, caíram para 30,8%, segundo dados do IBGE. Tabela 4 – Coeficiente de Gini no Brasil e em países selecionados Ano
Coeficiente Gini – Brasil
Coeficiente de Gini de alguns países selecionados em anos recentes
Comentário Mede o grau de desigualdade existente na distribuição de indivíduos, segundo a renda advinda do trabalho, de benefícios previdenciários e de outras transferências públicas. Seu valor varia de 0, quando não há desigualdade – as rendas de todos os indivíduos têm o mesmo valor – a 1, quando a desigualdade é máxima – apenas um indivíduo detém toda a renda da sociedade e as rendas de todos os outros indivíduos são nulas.
1995
0.600
Dinamarca
0,25
1996
0.602
Suécia
0,25
1997
0.602
Noruega
0,26
1998
0.600
Alemanha
0,28
1999
0.593
Canadá
0,33
2000
n.d.
França
0,33
2001
0.596
Bélgica
0,33
2002
0.589
Suíça
0,34
2003
0.583
Espanha
0,35
2004
0.572
Reuno Unido
0,36
2005
0.569
Estados Unidos
0,41
Fonte: Siafi – IpeaData e Relatório do Desenvolvimento Humano da ONU, 2006.
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NOVOS RUMOS O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado pelo governo federal no início do ano, é um importante sinal e, talvez, o início de uma mudança de rota, ainda que muito tênue. Há no PAC uma novidade importante de concepção, que representa um rompimento com a era Malan–Palocci: o Estado e ações de governo passaram a ser vistas como necessárias e eficazes para promover o crescimento econômico. O PAC é um programa que apenas visa ao crescimento, nada mais – é uma mera constatação, e não uma crítica. Crescer é fundamental para que sejam destravadas as portas da redução das desigualdades e da promoção da justiça social. Com crescimento econômico, aumentam a arrecadação do governo e sua autoridade política que auxiliam na tomada de decisões mais ousadas e verdadeiramente redistributivas, tais como aumentar, vigorosamente, os gastos nas rubricas saúde, educação, previdência social etc. O PAC representa uma mudança de concepção do governo Lula em seu segundo mandato: expressa uma nova forma de pensar a relação entre duas instituições essenciais para o desenvolvimento social de um país: o Estado e o mercado. Tais instituições devem interagir por meio de ações de governo para estimular o crescimento econômico e promover justiça e segurança social. Com o PAC, o governo tenta reequilibrar a disputa sobre os rumos da economia brasileira, que estava comandada, exclusivamente, por idéias estagnacionistas e concentradoras de renda. O programa descarta a idéia de que o Estado ocupa o lugar da iniciava privada, de que o investimento público expulsa o investimento privado da economia – fenômeno conhecido na academia como crowding-out2. Pelo contrário. O PAC adota a concepção do crowding-in:3 o investimento público atrai o investimento privado real para a economia Na concepção do crowding-out, o investimento público expulsa o investimento privado e/ou causa inflação pelo excesso de demanda. Na alternativa crowding-in, não haverá excesso de demanda porque a taxa potencial de crescimento anual do PIB da economia brasileira será superior a 5% se o conjunto de investimentos públicos proposto no programa for realizado. Um ponto crucial do programa foi a ampliação do escopo da política fiscal que, até então, tinha objetivo restrito: tão-somente reduzir a relação dívida/PIB, como mostra a Tabela 3. A política fiscal do PAC objetiva também promover o crescimento – objetivo consagrado pelas políticas fiscais keynesianas nos anos de ouro
2 Na concepção do crowding-out, a economia somente pode crescer a uma determinada taxa considerada natural dada uma série de condições estruturais e legais, que não podem ser alteradas no curto prazo. Significa que a taxa potencial de crescimento do PIB está dada pelas condições passadas, tratadas como perenes. 3
O crowding-in baseia-se na possibilidade de alteração da taxa de crescimento potencial do PIB. Assim, o investimento público não expulsaria o investimento privado; ao contrário, abriria espaço para sua expansão.
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do capitalismo durante o século passado. Nesse quesito, é fundamental (tal como foi proposto no PAC) que o investimento público seja financiado pela redução do superávit primário e/ou pela redução das despesas financeiras do governo. A redução de gastos correntes como fonte de financiamento dos gastos com investimentos públicos poderia ser uma medida inócua. Por exemplo, uma pessoa empregada que recebe, de forma indevida, um benefício do programa Bolsa Família, realiza gastos, gera empregos nas fábricas de bens de consumo. Cortar esse benefício (uma medida correta) para transformá-lo em gasto de investimento é o mesmo que desempregar nas fábricas de bens de consumo para empregar na construção de estradas, por exemplo. A regra de contenção dos gastos públicos com pessoal contida no PAC foi uma concessão (in)devida às pressões de cunho liberal, que desejam restringir o tamanho do serviço público, como mostra o Quadro 1. Tal medida não representa garantia de ausência de descontrole fiscal. Porém, limita a capacidade de o governo fortalecer o Estado, contratando pessoal qualificado que poderia receber remunerações adequadas. Limita a capacidade de conceder reajustes ao funcionalismo público para que o Estado possa manter em seus quadros pessoal de primeira linha. O PAC é, fundamentalmente, um programa de gastos de investimento público para estimular o crescimento. A regra estabelecida para conter gastos com pessoal não tem qualquer conexão técnica com seu objetivo, é tão-somente uma concessão (in)devida às pressões do pensamento conservador, muito presente na mídia que deseja o Estado mínimo. Um país em processo de crescimento vigoroso e continuado precisará contratar para o serviço público mais e melhores engenheiros, fiscais, policiais, professores, médicos... que devem ser muito bem pagos. Quadro 1 – Controle da expansão da despesa de pessoal da União Descrição: limitação do crescimento anual da folha de pessoal (incluindo inativos) à taxa de inflação (IPCA), acrescida de um índice real de 1,5% ao ano, resguardados os acordos consolidados na legislação até o fim de 2006. Medida a ser implementada a partir de 2007, por 10 anos. Fonte: Ministério da Fazenda, Programa de Aceleração do Crescimento, p.12. Disponível em www.fazenda.gov.br
ESTAGNACIONISTAS NA FRENTE Basicamente, há uma clara disputa por dois modelos econômico-sociais dentro e fora do governo. De um lado, um modelo desenvolvimentista-distributivista; de outro, um modelo estagnacionista-concentrador – este último formado por duas vertentes: (i) muitas instituições do sistema financeiro nacional e internacional e (ii) aquela que atua na economia real, cujos atores são as empresas agrominerais exportadoras. PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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O segundo modelo tem sido hegemônico. Suas “verdades” são repetidas nos jornais (sofisticados e de massa), nas revistas (semanais ou de fofocas televisas), nas rádios (AM e FM) e nas emissoras de televisão (de canal aberto ou fechado). São repetidas também nas universidades, nos cursos de graduação e pós-graduação. É um movimento coordenado que exerce influência em diversas frentes, seja na intelectualidade, seja no modo de pensar da pessoa comum, pouco informada. É um movimento volumoso e persistente. Seu método principal é o da repetição: idéias são repetidas de forma incessante até que sejam transformadas em pensamentos que são deglutidos com sabor. Esse movimento orquestrado pelos estagnacionistas é tão vigoroso que faz com que grande parte de trabalhadores(as) se sinta culpada pelo seu desemprego, já que não foi capaz de se qualificar. Esse movimento também faz com que muitas pessoas acreditem que para acabar com a pobreza bastaria esterilizar as mulheres pobres. Dificultar a procriação das pessoas pobres seria a solução e não, como é o correto, construir mecanismos de ascendência e estabilidade de renda e social. Os financistas mantêm elevadas taxas de juros; seja a taxa de juros básica definida pelo Banco Central do Brasil, seja o spread cobrado pelas instituições financeiras privadas, mesmo em operações de baixíssimo risco, como o crédito consignado. Tal modelo é estagnacionista porque: (i) mantém a atratividade dos ativos financeiros vis-à-vis o investimento produtivo; (ii) não reduz, de forma significativa, as despesas financeiras do governo federal que devem financiar o investimento público e programas sociais; (iii) gera um clima de desânimo generalizado; (iv) atrai para o país recursos financeiros em quantidade tão volumosa que, apesar de o Banco Central estar comprando dólares em quantidade que jamais comprou, o câmbio se valoriza a tal ponto que estimula uma verdadeira reestruturação produtiva da economia brasileira rumo ao passado da primarização. Mesmo com a valorização do câmbio, grandes empresas do segmento agromineral exportador fortalecem-se e têm ocupado o lugar de proeminência da indústria (cujo pecado original é agregar valor). Apesar da valorização cambial, tem sido possível exportar produtos básicos porque, como é sabido, os preços das commodities subiram muito nos últimos anos em conseqüência da demanda decorrente do crescimento mundial contínuo e elevado. Em termos de valor, a pauta de exportações brasileira já é principalmente constituída por produtos primários ou semi-elaborados. O Brasil é um dos maiores exportadores de carnes do mundo (bovina, suína e de frango). E também de café verde, açúcar, álcool, milho, algodão, couro bruto, fumo, soja, suco de laranja, toras de madeira, amêndoa, minério de ferro etc. Em grande medida, a exportação desses produtos é responsável pelos elevados saldos comerciais do país no exterior.
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A serviço do modelo estagnacionista-concentrador, os financistas utilizam o argumento da suposta produtividade, advinda de uma vocação natural do Brasil para a produção de produtos básicos ou semi-elaborados, para explicar o elevado saldo comercial brasileiro. Isso explicaria a valorização cambial (dólar barato) – e não a elevada taxa de juros, cujos responsáveis são esses financistas e que, ao fim e ao cabo, acaba por beneficiar as suas instituições. O modelo estagnacionista é concentrador de renda porque faz uma enorme transferência via orçamento: cerca de R$ 150 bilhões por ano são pagos a título de serviço da dívida pública – dados confirmados pela seguinte análise de órgão governamental: ... observa-se que se cresce a carga tributária em relação ao PIB, crescem bem menos que proporcionalmente os aportes fiscais para o gasto social e para investimentos diretos. A diferença de crescimento dessas variáveis pode ser explicada pelo peso crescente dos juros sobre a dívida. Com isso, tem-se uma situação explícita de transferência de renda do lado real da economia para o lado financeiro... . (Ipea, 2007, p.12) E, ademais, tal modelo é concentrador porque estimula a constituição de um sistema produtivo de ricos (donos dos grandes negócios agromineradores) e classe trabalhadora desqualificada com baixa renda. No final de tudo, é o modelo das ricas instituições financeiras, dos usineiros e bóias-frias cortadores(as) de cana.
POR UM OUTRO MODELO O modelo desenvolvimentista é distributivista. Busca estimular tanto o mercado interno como as exportações de produtos manufaturados. Apoiar o crescimento econômico no mercado interno é fundamental porque a demanda doméstica pode ser, em grande medida, controlada pelo governo, por meio de seus gastos.
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Apoiar o crescimento exclusivamente nas exportações é deixar o emprego doméstico flutuando ao sabor de ciclos da economia internacional. Além disso, a ampliação do mercado doméstico possibilita a universalização do acesso a bens de consumo à sociedade brasileira. O crescimento apoiado na industrialização – que tende a ser intensiva em trabalho, possibilita a formalização das relações trabalhistas, o aumento da arrecadação de impostos, gera empregos mais qualificados e com remunerações mais elevadas, desenvolvimento tecnológico e necessidade de inovação – é o único caminho rumo à redução das desigualdades e elevação da renda do trabalho. Assim como o bóia-fria necessita do usineiro para sobreviver, a classe média precisa da indústria para emergir, existir e crescer. Além de ser concentrador de renda, o modelo estagnacionista tem se mostrado bastante nocivo ao meio-ambiente. Tem-se devastado natureza para se obter pastos. Tem-se devastado natureza para se obter plantação de soja. Não há a menor dúvida que, por vezes, a natureza deve ser substituída. Tratam-se de escolhas. Portanto, projetos e critérios devem ser elaborados para que custos e benefícios possam ser medidos. Se, por um lado, a natureza não pode ser considerada um santuário intocável, podendo ser substituída; por outro, não pode ser substituída sem que custos sejam inferiores aos benefícios que possam ser distribuídos à sociedade no curto e no longo prazos. Além do sacrifício não planejado do meio-ambiente, as exportações brasileiras são muito pesadas e valem pouquíssimo. Exportar peso sacrifica, demasiadamente, estradas e portos. Uma tonelada de soja custa apenas U$ 200; de milho custa U$ 75; e de algodão, U$ 50. Para se fazer uma comparação com produtos elaborados brasileiros, a tonelada do carro popular custa U$ 5.500 . Segundo o presidente Lula, em discurso em outubro de 2006, para trabalhadores (as) da Zona Franca de Manaus, “um chip vale mais que uma tonelada de minério de ferro ou um caminhão de soja” . As operações tapa-buraco de estradas do governo são necessárias, mas serão sempre insuficientes. As exportações brasileiras têm crescido de forma demasiada nos últimos anos. Significa que mais e mais caminhões supercarregados vão trafegar em nossas estradas a cada ano e engarrafar os portos brasileiros. Portos e estradas estarão sempre com filas de caminhões. O ponto fundamental a ser discutido não é somente a precariedade da infra-estrutura brasileira, mas qual a infra-estrutura adequada àquele modelo de crescimento econômico e desenvolvimento social escolhido (o estagnacionista-concentrador ou o desenvolvimentista-distributivista ?).
ESPERANÇA E DESÂNIMO A tensão nas camadas mais bem informadas da sociedade e no governo reside na dúvida, nos sinais nebulosos emitidos. Se, por um lado, o governo mantém desenvolvimentistas em postos-chave da administração pública; mantém também estagnacionistas em outros tantos. Se, por um lado, apresenta um
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programa de aceleração do crescimento com uma nova visão fiscal, desenvolvimentista; mantém uma política estagnacionista de juros elevados, câmbio supervalorizado e gastos sociais limitados. Os próprios discursos do presidente nos meses de janeiro e fevereiro de 2007 permitiam variadas interpretações e dúvidas; e geram, simultaneamente, esperança e desânimo. O modelo de crescimento econômico, com taxas elevadas e repetidas, mais bemsucedido entre os países em desenvolvimento tem sido o asiático. Grosso modo, é um modelo de reduzidas taxas de juros, de câmbio flutuante, administrado de forma que suas exportações sejam bastante competitivas e seus gastos públicos concentrados em educação, infra-estrutura e absorção/geração de tecnologia. Os asiáticos têm obtido sucesso: os dez países que mais cresceram nos últimos 20 anos são todos asiáticos. A Argentina tem tentado adotar o mesmo modelo desde 2003, seu sucesso é indiscutível, tem crescido a uma taxa superior a 8% nesses últimos quatro anos. E, em 2007, está crescendo a esse mesmo ritmo. Porém, o Brasil precisa mais do que crescimento econômico, esse é apenas o ponto de partida para o objetivo final que deve ser o desenvolvimento social. Devemos copiar o modelo de crescimento econômico asiático para alcançar o desenvolvimento social dos países nórdicos. Idealmente, o crescimento econômico proposto no PAC deve ser impulsionado pelo conjunto de políticas macroeconômicas: fiscal, monetária e cambial. Um crescimento impulsionado por essas políticas, acionadas de forma coordenada, aumenta a probabilidade de se tornar sustentável, duradouro. A política monetária deve se tornar compatível com o PAC. A política cambial também. O governo está diante de um significativo problema. Será preciso iniciar, desde já, um processo de compatibilização das políticas macroeconômicas. Será necessário iniciar um processo complexo e difícil. Complexo porque requer enfrentamento com os setores estagnacionistas, e difícil do ponto de vista operacional, porque uma desvalorização cambial sempre poderá causar pressões inflacionárias que, por vezes, cobram elevados dividendos políticos. Será necessário iniciar uma política de desvalorização cambial que, a médio prazo, recupere uma taxa compatível com as exportações de manufaturados. Uma política agressiva de aquisição de reservas por parte do Banco Central associada a uma política de esterilização é o caminho, e já foi iniciado – mas ainda se mostra insuficiente. Ademais, há uma barreira que deve ser observada. O custo para o carregamento de reservas por parte do setor público é a diferença entre a taxa de juros doméstica e a internacional – muito alta no Brasil – e isto reforça a necessidade de uma redução mais acelerada da taxa de juros básica, a taxa Selic. As medidas tributárias adotadas recentemente pelo Ministério da Fazenda, aumentando as alíquotas de tributação sobre os importados, são corretas, mas insuficientes. O problema central é, de fato, a taxa de câmbio. A valorização cambial tem sido defendida pelos estagnacionistas até como uma forma de “higienizar” a economia: retirará da economia os empresários improdutivos. Argumento lamentável (porque despreza os empresários falidos e as pessoas desempregadas). PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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A realidade já destruiu este argumento: o Brasil é extremamente produtivo no setor de calçados, produz a baixo custo produto de boa qualidade. Mas as fábricas calçadistas exportadoras fecharam as portas desde que a taxa de câmbio era de R$ 2,10. Um alerta importante – se as taxas de crescimento prometidas pelo PAC forem alcançadas e a taxa de câmbio se mantiver extremamente valorizada, o resultado já é conhecido. Haverá, inicialmente, redução do saldo comercial com o exterior (o que já está acontecendo) e, posteriormente, perda de saldo em transações correntes e início de um novo período de fragilidade cambial. Enfim, o PAC é um ponto de inflexão na trajetória das políticas econômicas do governo Lula. Contudo, é necessário adequar as demais políticas monetária e cambial ao objetivo do crescimento, que tem que se tornar uma obsessão nacional. Afinal, um país que verdadeiramente quer se desenvolver, deve pensar grande e, portanto, buscar compatibilizar objetivos múltiplos: estabilidade monetária, crescimento econômico, equilíbrio do balanço de pagamentos, equilíbrio das contas públicas e justiça e segurança social. O crescimento econômico e a conseqüente solidez orçamentária da União são as condições básicas e necessárias para a viabilização da transformação social de que o Brasil precisa. Sem crescimento econômico, não há espaço para a viabilização de programas sociais de profundidade e abrangência capazes de promover justiça e segurança social para todas as pessoas. O projeto desenvolvimentista-distributivista visa estabelecer uma rota de crescimento econômico a taxas elevadas e continuadas em condições de manejamento ambiental adequado e aprofundamento do desenvolvimento social. Por desenvolvimento social deve ser entendido: (i) o pleno emprego; (ii) a universalização do assalariamento formal; (iii) a proteção social para o(a) cidadão(ã) – criança, dona-de-casa, estudante, desempregado, empregado, formal ou informal, urbano ou rural, aposentado, inválido, portador de necessidades específicas etc. A proteção social inclui o acesso irrestrito e de qualidade aos sistemas formais de educação e de saúde, aos benefícios previdenciários tradicionais, ao seguro-desemprego e aos programas de assistência social (que devem ser conformados para atender às camadas sociais mais vulneráveis e, portanto, propensas à miserabilidade). Esse projeto de desenvolvimento social vem sendo prejudicado e atacado pelos estagnacionistas com a seguinte argumentação: o gasto social imposto no orçamento desde a Constituição de 1988 é responsável pelo aumento da carga tributária, de déficits públicos, da incapacidade de o governo realizar investimentos, do elevado custo-Brasil e, ainda, da estagnação brasileira dos últimos anos. As palavras a seguir são ilustrativas do viés estagnacionista:
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Muito embora já tenha passado por duas reformas desde a Constituição de 1988, o sistema [previdenciário] brasileiro continua com graves desequilíbrios financeiros, mesmo tendo ainda parcela reduzida de população idosa. Essa limitação vem se agravando continuamente e representa, hoje, verdadeiro sorvedouro de recursos públicos, limitando a capacidade de investimento do Estado brasileiro e exigindo elevada carga tributária. (Proença Soares, L.H., IN: Tafner, P.; Giambiagi, F., 2007)
REFERÊNCIAS INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Políticas sociais: acompanhamento e análise, 1995-2005. Edição especial. Brasília: Ipea, 2007. GOVERNO FEDERAL. Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Brasília: Ministério da Fazenda, 2007. Disponível em <www.receita.fazenda.gov.br>, acesso em 19 de setembro 2007. TAFNER, P.; GIAMBIAGI, F. (Orgs.) Previdência no Brasil: debates, dilemas e escolhas. Rio de Janeiro: Ipea, 2007.
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Desenvolvimento como liberdade: quais caminhos?
CELIA LESSA KERSTENETZKY Professora titular da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
A gestão macroeconômica levada a cabo pelos últimos governos brasileiros1 produziu a almejada estabilidade econômica. Porém, além de não se coadunar com uma estratégia de crescimento econômico, representou uma pesada restrição ao desenvolvimento social brasileiro. Sob certos e importantes aspectos, essa gestão agravou nossa questão social. A manutenção de juros elevados – importante coadjuvante da estabilização da moeda – apresentou-se como um dos fatores que contiveram o crescimento econômico. Por outro lado, foi também responsável pela elevação do serviço da dívida pública, tornando-se, portanto, um importante condicionante da política fiscal, que persegue superávits primários para financiá-lo. Superávits primários têm representado cortes em investimentos públicos e restrições à expansão dos gastos sociais. Dadas as fortes restrições sobre o orçamento social, a estabelecida prioridade na expansão da cobertura da assistência a famílias em condição de pobreza e pobreza extrema tem requerido realocações dos gastos sociais em favor de programas de garantia de renda, como o Bolsa Família. Pateticamente, o reforço ao principal programa de transferência de renda do governo federal – sem dúvida, importante e justificável – não tem, contudo, rendido o alcance pleno de seus objetivos. Parte não desprezível da população elegível ainda não foi atingida e o valor do benefício está congelado desde 2003. Ao mesmo tempo, tem deixado deficitárias outras áreas sociais importantes, como a educação, a saúde e a questão fundiária – as assim chamadas “portas de saída”.
1 Refiro-me aos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995–2002) e aos dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003–2010)
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De fato, a anunciada expansão dos gastos em educação no bojo do Programa de Desenvolvimento Educacional do atual governo projeta essa mesma expansão em um horizonte temporal demasiadamente longo. Isso porque está amarrada, de um lado, pelo foco nos programas de transferência de renda, e de outro, pela gestão macroeconômica. Desse modo, a expansão de gastos projetada não é proporcional à penúria de nossa performance educacional, seja medida em anos médios de escolaridade, seja em termos do tamanho da jornada escolar, seja ainda em termos da qualidade dessa educação – desempenho pífio que muito afeta, e seguirá afetando, qualquer projeto de desenvolvimento. Certamente, o crescimento econômico poderia trazer alívio a essas pesadas restrições. Entretanto, uma estratégia de desenvolvimento que se contente com uma bem-definida e bem-sucedida estratégia de crescimento econômico é claramente insuficiente. Dão testemunho disso os vários períodos de crescimento econômico que não se fizeram acompanhar por melhoras distributivas, seja da renda, seja de indicadores de condição de vida – os quais melhoraram apenas muito lentamente nos períodos de franco crescimento econômico. É preciso, pois, pensar a questão do crescimento econômico em concomitância com seu objetivo último, o desenvolvimento social, e explorar as conexões e interações. Adicionalmente, se ampliarmos o foco da análise para o âmbito global, notaremos que a descrição da gestão macroeconômica na qual estamos enredados e que trava o crescimento econômico poderia servir para narrar experiências de países tão dissímiles sob outros aspectos quanto o Brasil e a Namíbia. Tal similitude pode, em parte, ser explicada pelo fato de o crescimento de países em desenvolvimento estar fortemente regulado por regras do jogo ditadas por organismos internacionais e, em última instância, pela atenção ao fluxo global de capitais. De fato, as regras do jogo ditadas por organismos transnacionais vão na direção de uma crescente liberalização dos mercados – de maior liberdade para os fluxos de bens, serviços e capitais. A liberalização dos mercados solicita uma gestão monetária-fiscal ortodoxa, que acaba por ser adotada pelos países em desenvolvimento, de modo mais ou menos voluntário – quer como contrapartida à assistência por eles requerida da parte dos organismos transnacionais, quer, simplesmente, como um conjunto de princípios irretorquíveis da boa gestão pública, necessários para angariar a confiança dos mercados. Sendo assim, pensar o desenvolvimento requer não apenas problematizar a relação entre política macroeconômica e desenvolvimento social no âmbito de sociedades particulares. Mas também a questão de política global referente à concepção de regras do jogo que abram oportunidades para o desenho local de um modelo de desenvolvimento. No que se segue, serão apresentados alguns cenários possíveis de relação cooperativa entre política econômica e desenvolvimento social, e uma concepção de desenvolvimento mais abrangente do que a baseada na renda ou em indicadores sociais, apontando algumas vantagens relacionadas à sua adoção, ao
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fornecer a perspectiva de uma integração sem mediação entre desenvolvimento e desenvolvimento social. Ainda neste artigo, algumas idéias serão esboçadas no que diz respeito ao espaço global como crucial – facilitador ou obstaculizante – ao processo de desenvolvimento dos países não-desenvolvidos.
ESPAÇOS LOCAIS A relação entre política econômica e desenvolvimento social pode ser pensada em várias dimensões. Um cenário possível situa a relação entre política econômica e desenvolvimento social em uma dimensão que poderíamos chamar de longo prazo, para sublinhar o fato de estarmos pensando em um modelo de desenvolvimento. No interior de um modelo de desenvolvimento, as políticas sociais podem ser pensadas como intimamente articuladas com as políticas econômicas, sejam macro ou microeconômicas. Seu caráter e função seriam determinados por um modelo mais amplo, dentro do qual estariam também assinaladas funções específicas para as políticas econômicas. Um dos estudiosos mais importantes dos estados de bem-estar social contemporâneos, Gosta Esping-Andersen (1990), argumenta que tal conceito tem de ser compreendido e avaliado a partir do tipo de integração existente entre política econômica e política social. Isso é, em vez de pensarmos em políticas sociais que, de algum modo, compensam ex-post os resultados do mercado, a sugestão é analisar as combinações ex-ante possíveis de políticas sociais e econômicas na produção agregada de bem-estar. Na verdade, Esping-Andersen observa que a provisão de bem-estar nas sociedades contemporâneas é compartilhada por diferentes instituições, tais como a família, o mercado (via consumo) e o Estado. Se adotarmos essa perspectiva, sugere ele, poderemos classificar as sociedades em termos das diferentes combinações dessas instituições nelas existentes. De tal visão origina-se sua idéia de que há, contemporaneamente, no mundo ocidental três regimes de estados do bem-estar social, que enfatizam, respectivamente, o mercado, a família e o mundo do trabalho, e o Estado, como as instituições principais na provisão de bem-estar para suas populações. Um exemplo de articulação não meramente compensatória entre políticas econômicas e políticas sociais – reveladora de um regime de bem-estar social centrado em políticas públicas – é a integração entre políticas ativas de mercado de trabalho e políticas de desemprego que ocorre em países escandinavos. Nesses países, a reinserção de trabalhadores e trabalhadoras no mercado de trabalho é combinada com programas de qualificação e requalificação profissional e um generoso seguro-desemprego, com alta taxa de reposição e longa duração. A dinâmica é a seguinte: pessoas desempregadas qualificam-se a receber um seguro-desemprego e também a ingressar em programas públicos de treinamento da força de trabalho; a intervenção pública, entretanto, não se limita a garantir sua renda e qualificação. Também se faz presente na coordenação do PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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mercado de trabalho, unindo as duas pontas, a oferta e a demanda, a partir da informação sobre as necessidades de qualificação por parte de potenciais empregadores. Claramente, elementos de políticas sociais tradicionais e de políticas microeconômicas (de mercado de trabalho) estão aqui combinados de modo a promover bem-estar. Outro exemplo, da mesma Escandinávia, é a política de ampliação da taxa de participação feminina no mercado de trabalho acoplada a políticas públicas de care – creches públicas em tempo integral com profissionais qualificados e assistência pública às pessoas idosas. Com a expansão desses serviços públicos, as mulheres intensificaram sua participação no mercado de trabalho e também sua qualificação, revelando uma modalidade de entrosamento entre políticas de assistência e mercado de trabalho, de modo a aumentar o bem-estar de importantes segmentos da sociedade. Ainda outro exemplo, mais importante no caso sueco, é o da expansão do emprego público no setor de provisão de bem-estar social – care, educação, saúde etc. Atualmente, cerca de 20% do emprego na Suécia é público e localizado, principalmente, na provisão de serviços relacionados ao bem-estar social. Parte da sustentação financeira do estado do bem-estar advém, portanto, de impostos pagos por seus próprios empregados – sem mencionar, naturalmente, os efeitos multiplicadores de renda e emprego e da própria base fiscal gerados por esses empregos públicos. Adicionalmente, é importante notar que a adoção desse modelo de desenvolvimento pela Suécia não a fez menos “eficiente”, se a julgarmos, a partir dos cânones de mercado, em termos de crescimento econômico, da taxa de participação da força de trabalho e da produtividade do trabalho: tais indicadores suecos são comparáveis aos indicadores americanos. Porém, em contraste com o modelo americano, o bom desempenho econômico sueco tem sido compatível com baixos patamares de desigualdade de renda (os mais baixos do mundo), revelando um modelo solidarístico de bem-estar social. Na verdade, se levarmos em conta exclusivamente a distribuição da renda inicial, os rendimentos brutos dos indivíduos, a desigualdade de renda sueca é semelhante à americana. Porém, se observarmos a distribuição da renda disponível desses indivíduos, seus rendimentos brutos menos os impostos pagos e mais as transferências recebidas, concluiremos que a baixa desigualdade de renda sueca deve-se, fundamentalmente, à ação redistributiva do Estado, por meio de suas políticas públicas e da forma como as financia. Além de oferecer uma orientação geral em termos do modo de integração entre políticas econômicas e aquelas mais diretamente sociais, de algum modo, o modelo de desenvolvimento escolhido poderia também estabelecer balizamentos gerais para a política macroeconômica quanto a limites para a taxa de juros, para a apreciação do câmbio e para a taxa de inflação que fossem compatíveis com objetivos de curto prazo de redução de pobreza e de desigualdades; ou, alternativamente, estabelecer mecanismos compensatórios para políticas
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de juros e de câmbio que exercessem efeitos indesejáveis do ponto de vista desses objetivos. Nesse último caso, essas políticas seriam adotadas apenas se não inviabilizassem a possibilidade de adoção de mecanismos compensatórios. Conceito de desenvolvimento É possível conceber ainda um segundo cenário para a relação entre política econômica e desenvolvimento social. O propósito de adotarmos essa perspectiva seria a possibilidade de pensar um conceito de desenvolvimento mais direto, não necessária ou exclusivamente aferido por meio da variável renda e, portanto, pelo acesso ao consumo de bens e serviços, dentre estes os serviços públicos. Um conceito com tais características foi defendido por Amartya Sen (1999), é o conceito de desenvolvimento como liberdade.2 A ênfase na liberdade humana real corresponde à ênfase não exatamente nos meios para a realização humana, mas nas próprias realizações e na liberdade para realizar (Kerstenetzky, 2000). Inicialmente, Sen foi levado a desenvolver essa idéia a partir da observação de que a dimensão convencional de aferição do desenvolvimento, a renda per capita dos países, é opaca quanto às realizações efetivas das pessoas, quanto à qualidade da vida efetivamente vivida. Ainda que certamente importante como meio de realizações, a renda não passa de um veículo possibilitador. Além disso, nem todas as realizações são adquiríveis no mercado: por exemplo, estar livre de doenças preveníveis ou de mortalidade precoce depende de controles de saúde pública e de saneamento básico; estar adequadamente alimentado pode depender de provisão pública quando há uma situação de carência de alimentos. Observando, a propósito, as diferentes realizações de moradores e moradoras do Harlem e de Bangladesh, Sen conclui que, embora os primeiros tenham uma renda per capita muito mais elevada, possuem uma expectativa de vida significativamente inferior à dos últimos, justamente por não terem acesso garantido a serviços públicos de saúde. Finalmente, condições individuais ou sociais podem fazer com que diferentes indivíduos convertam a mesma renda em realizações díspares. Por exemplo, a mesma renda à disposição de jovens e de pessoas idosas é convertida em realizações muito diferentes, em função das necessidades especiais do segundo grupo, em particular seus gastos com saúde. O espaço avaliatório do desenvolvimento e da pobreza deveria ser o espaço das realizações, segundo Sen. Dois aspectos passam a interessar na análise do desenvolvimento: o que de fato as pessoas conseguem realizar com os recursos a que têm acesso, e se elas tiveram liberdade para escolher suas realizações.
2 O que se segue nesta seção é parcialmente uma reprodução dos argumentos de Sen e parcialmente um desdobramento desses argumentos segundo minha elaboração pessoal sobre eles, em particular, a reflexão sobre o papel da cultura pública.
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Nessa concepção alternativa, as pessoas são mais ou menos pobres e desiguais em termos de suas realizações, os seres ou fazeres que alcançam. O que elas são ou o modo como estão – se bem-alimentadas e adequadamente abrigadas e protegidas, se livres de doenças preveníveis, se bem-informadas, se não se envergonham de se apresentar em público são alguns exemplos de “estados” – e as atividades que desenvolvem – se participam da vida da comunidade, se realizam um trabalho gratificante. Além disso, essa concepção quer captar se esses estados de coisas e atividades resultam de uma real liberdade de escolha ou se foram as únicas opções que as pessoas de fato tinham, se são realizações que as pessoas têm razão para valorizar ou se foram as únicas realizações disponíveis. Dessa forma, a realização humana estaria sendo captada diretamente em sua extensão e também por meio da aferição da liberdade de escolher entre ser diferentes pessoas ou estar em diferentes condições e fazer diferentes atividades. Nesse sentido, quanto mais livres, cidadãos e cidadãs de um país, mais desenvolvido esse país pode se considerar. É interessante observar que a ênfase no ser/fazer em contraste, por exemplo, com o ter, revela uma ampliação da idéia de realização humana em relação a quando tal realização é traduzida exclusivamente em termos de padrões de consumo ou padrões de vida. Esse aspecto é importante também quando observamos a atenção que a liberdade de ser e fazer recebe, quando entra em foco o aspecto da expectativa de realizações, dos direitos. Nesse sentido, Sen nota que somos mais livres mesmo quando não “realizamos” nossa liberdade: uma pessoa saber que não será impedida de se locomover, de sair e de voltar para sua casa, sua cidade, seu país, ou que pode se candidatar a um cargo eletivo, torna-a mais livre do que quando não tem essas opções, mesmo que jamais as realize. Na verdade, ela será tanto mais livre quanto mais opções tiver e sua realização, ou não, depender de seu livre-arbítrio. Porém, a ênfase no ser/fazer em detrimento do ter é importante, sobretudo, quando consideramos a pluralidade de traduções que a noção de desenvolvimento pode acomodar, como desenvolvido a seguir. Escolhas sociais plurais De fato, a concepção do desenvolvimento com liberdade pode acomodar distintas escolhas sociais, compatíveis com valorações igualmente distintas da dimensão consumo, uma vez que questiona a equivalência automática entre bemestar e consumo. Esse tema tem merecido a atenção de organizações que se ocupam de questões ambientais e que enfatizam o problema da insustentabilidade ambiental de uma alternativa de bem-estar que se proponha a generalizar para todo o planeta os padrões de consumo alcançados pelos países desenvolvidos – em particular, pelos grupos sociais mais aquinhoados nesses países. Ao preservar uma sensibilidade com relação à pluralidade de escolhas sociais possíveis, tal abordagem permite entender opções feitas por sociedades particulares, que podem ser consideradas não-desenvolvidas do ponto de vista
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dos indicadores tradicionais de renda e realização econômica, mas não sob outros aspectos, capturáveis nessa abordagem sob a etiqueta dos direitos e da liberdade real de escolha. Observar o que essas sociedades estão fazendo e como de fato caminharam na direção da liberdade pode ser revelador de caminhos a serem perseguidos e idéias a serem difundidas. Por exemplo, a experiência de escolha social sobre desenvolvimento levada a cabo pelo estado de Kerala, na Índia. Trata-se de um estado de cerca de 32 milhões de habitantes, que alcançou realizações importantes do ponto de vista da abordagem da liberdade, ainda que seja considerado “não desenvolvido” na perspectiva da renda. Kerala é uma das regiões do mundo não economicamente desenvolvido onde as pessoas vivem mais, são mais saudáveis, têm as mais baixas taxas de analfabetismo e possuem as mais eqüitativas relações de gênero, sendo o estado menos corrupto da Índia. Além de muito populoso, o estado de Kerala é também diverso em termos étnicos e culturais, e está imerso em um país onde os indicadores sociais são muito ruins. Essas características revelam a fragilidade de argumentos que sustentam a noção de que estados do bem-estar social avançados seriam unicamente possíveis em sociedades não apenas ricas e pequenas como também com populações étnico-religiosamente homogêneas. Além do pluralismo potencial da concepção de desenvolvimento como liberdade para lidar com diferentes escolhas sociais quanto a valores, há outras vantagens a serem apontadas. Essas dizem respeito à sensibilidade dessa noção para lidar com outras fontes de variação entre pessoas e grupos. São as variações físicas, sociais, étnicas, culturais e locacionais. Ao enfatizar a extensão da liberdade no lugar dos meios para a liberdade (recursos vários, entre os quais a renda), Sen revela uma preocupação particular com a variabilidade inter-individual e entre grupos sociais, e com a influência dessa variabilidade sobre realizações e liberdades para realizar. Diferentes pessoas, por conta de suas diferentes condições físicas, convertem os mesmos recursos, os meios para a liberdade, em realizações diferentes, as extensões da liberdade: pessoas idosas, de posse da mesma renda que pessoas jovens, realizam menos que estas, por conta de suas relativamente mais frágeis condições de saúde; mulheres grávidas, em contraste com as demais, têm exigências maiores para atingir graus de realização equivalentes; pessoas com metabolismos diferentes vão requerer diferentes quantidades de alimentos para estarem igualmente bem-nutridas, e assim por diante.
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Luz nas variáveis Do ponto de vista de variações mais propriamente sociais, a idéia de desenvolvimento como liberdade pode iluminar distintas formas de privação de liberdade a que estão submetidos diferentes grupos em sociedades particulares. É um fenômeno geralmente reconhecido que as desigualdades socioeconômicas assumem, em diferentes sociedades, feições diferentes, atingindo, em cada lugar, grupos específicos, transformando características adscritícias desses grupos em “ativos” (fontes de valor) ou “passivos” (fontes de desvalorização). Dentre as variáveis que singularizam grupos e os distinguem dos demais, são destacadas quatro a seguir. 1. O lugar onde vivem: no meio rural ou no meio urbano; em uma determinada região e não em outra; na periferia da cidade ou no centro da cidade; na favela ou no bairro; em locais com epidemias; em climas áridos. Desenvolvimento como liberdade e pobreza como privação de liberdade podem captar diferenças de desenvolvimento/privação decorrentes não apenas do acesso diferenciado a recursos relacionados à localização. Mas também aspectos menos diretamente observáveis relacionados a formas de discriminação que restringem a liberdade de realização de grupos e pessoas em locais específicos. Morar em favela no Rio de Janeiro é um fator de empobrecimento, não apenas porque moradores e moradoras não têm acesso a serviços públicos de qualidade e estão sujeitos a várias formas de violência. Também pelo preconceito com que essas pessoas são vistas e se vêem, o que diminui sua liberdade de ser e fazer. Por exemplo, a liberdade de circular em qualquer lugar da cidade, não sofrer discriminação no mercado de trabalho e em qualquer outra situação quando revelar seu endereço – ainda que essas liberdades estejam formalmente asseguradas. O insulamento resultante do estereótipo e do estereótipo internalizado pode reforçar outras formas de privação, ao desconectar o morador de laços sociais e redes que poderiam ampliar sua liberdade de realizar, e mesmo alterar, sua concepção do que pode significar “realização humana”.
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2. O grupo socioeconômico a que pertencem: diferentes classes sociais, ocupações, condição de cidadania não apenas influenciam o acesso a recursos. Também fazem com que recursos iguais se convertam em realizações desiguais, uma vez que essas são influenciadas por normas e costumes compartilhados em cada grupo e também pelas percepções recíprocas de diferentes grupos. Dentre essas normas, lembra Sen, estão as relacionadas à igualdade entre os sexos, a natureza dos cuidados dispensados às crianças, o tamanho da família, os padrões de fecundidade etc. 3. O sexo, o grupo etário, racial, étnico, cultural ou religioso: há formas de realização/privação associadas a esses diferentes pertencimentos, sobretudo as associadas a estereótipos e internalização de estereótipos. Por exemplo, no caso de crianças negras, o acesso a recursos educacionais iguais pode não garantir a igualdade de realização educacional se levarmos em consideração os efeitos de estereótipo que afetam negativamente a sua performance, na presença e na ausência de discriminação direta. 4. As perspectivas relativas: privação em meio à abundância, acrescentando à privação material o sentimento de vergonha e, às vezes, de redundância, e mesmo, inutilidade do ponto de vista social, como possivelmente ocorra com desempregados crônicos em pujantes economias de mercado.
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Enfim, o potencial da abordagem da liberdade para lidar com essas variações parece significativo. Um aspecto interessante diz respeito a poder considerar a liberdade um valor não apenas do ponto de vista instrumental – ao permitir a realização de um conjunto abrangente de seres e fazeres – como também intrinsecamente – visto que liberdade é um bem em si mesma e deve contar entre as “realizações humanas”. Esse aspecto parece singularmente importante por sua atenção ao valor intrínseco dos direitos, que se relacionam também a questões de identidade. Finalmente, entre as liberdades valiosas, Sen conta a liberdade de agir e de mudar as condições nas quais se vive, aquelas que representam não apenas o nosso desejo de realizar estados e coisas e termos a liberdade para isso, como também o quanto valorizamos o próprio agir para provocar mudança social, que preserva nossa condição de agentes. Conhecimento local A abordagem do desenvolvimento como liberdade, com sua sensibilidade particular para a heterogeneidade humana e para as formas de associação humanas, atribui especial importância ao conhecimento local das realidades de pessoas, grupos e sociedades específicas, sobre o qual as organizações da sociedade civil possuem notável vantagem comparativa, justamente porque atuam diretamente a esses indivíduos e grupamentos. É importante que desenvolvam metodologias adequadas para captar as experiências variadas das quais participam privilegiadamente – a abordagem da liberdade pode oferecer o quadro conceitual geral para que essas organizações, então, refinem indicadores de privações de realizações e de liberdades para realizar, e identifiquem quais privações de direitos são especialmente relevantes para quais grupos. Nesse sentido, algumas experiências foram levadas a cabo recentemente na direção de operacionalizar a abordagem e de desenvolver uma metodologia que permita a estimação da privação de liberdade. São análises preliminares que, entretanto, revelam vantagens e desafios do uso dessa nova forma de aferição de desenvolvimento, pobreza e desigualdade (Balestrino, 1996; Santos e Kerstenetzky, 2007). Cultura pública A abordagem da liberdade parece, pois, singularmente adequada para captar desenvolvimento/privação de pessoas, grupos sociais e sociedades. Entretanto, é inegável a importância da dimensão da cultura pública na determinação das diferenças entre pessoas e grupos, em termos de “ativos” – aspectos que geram valor – ou “passivos” – aspectos que desvalorizam. Essa dimensão relaciona-se, fundamentalmente, ao aspecto subjetivo das realizações, o qual, para o seu alcance, requer a mobilização de recursos objetivos. Desse modo, emerge uma questão crucial para a concepção de políticas públicas desenvolvimentistas ou redutoras de privações. Qual o plano adequado de intervenção para a correção da situação: redistribuição de recursos para PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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compensar déficits de realização decorrentes de privações “objetivas” (recursos) e “subjetivas” (percepções e autopercepções); promoção de reflexão pública sobre o que deve ou não ter valor, portanto sobre a própria atribuição de valor? Possivelmente, a resposta é “os dois planos”. Porém, o segundo plano, da atribuição de valor, tem merecido pouca atenção na discussão sobre desenvolvimento: trata-se de pensar, criticamente, a cultura pública – as normas e crenças compartilhadas na sociedade, responsáveis pelas percepções recíprocas e autopercepções, negativas e positivas – como algo passível de questionamento, sobretudo em sua capacidade de criar e destruir ativos (como o “passivo” “ser favelado”, “ser negro”; os “ativos” “ser branco”, “ser morador de bairro”). Por exemplo, a questão racial na abordagem da liberdade seria enfrentada via: miscigenação?, valorização do atributo “ser negro”?, não atribuição de valor à dimensão cor? É verdade que a questão é bem complexa, pois há uma questão racial-social (pobreza é negra) e uma questão racial-identitária (identidade étnico-cultural negra, ligada a uma reconstruída origem comum). Porém, é atravessada também pelo problema da cultura pública e sua peculiar maneira de “atribuir valor”.
ESPAÇOS GLOBAIS Regras do jogo importantes são estabelecidas no âmbito global, não no local. Se um país não se ajusta a essas regras, além de não aceder a empréstimos ou a garantias de credibilidade – concedidas por organismos de financiamento e “credenciamento”, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial – vê-se diante da contingência de ser excluído como roteiro de destinação de capitais e de minguarem suas chances de financiamento ao processo de desenvolvimento. Nesse ambiente, políticas de controle de capitais são percebidas como opções arriscadas, resultando em perdas adicionais de autonomia de projetos nacionais de desenvolvimento – perdas maiores ainda que normalmente associadas à falta de liberdade de controlar. Realidade ou ficção, poucos se atrevem a tentar, e mesmo quando tentativas ousadas são bem-sucedidas (casos recentes da Malásia, da China e do Chile), permanece o receio de que há algo peculiar a essas experiências que não asseguraria sua replicabilidade. É necessário mudar a convenção. Entretanto, a mudança de convenção requer uma reforma precedente, em profundidade, nas instituições de financiamento transnacionais. Em primeiro lugar, na direção de uma maior democratização dessas instituições, para que os pontos de vista das populações de países em desenvolvimento sejam também considerados na concepção da agenda desses organismos e do marco regulatório que propõem para o sistema econômico global (Stiglitz, 2002). Em segundo lugar, o que vem a ser um corolário da condição anterior, a mudança de convenção requer a concepção de políticas públicas globais que, de fato, aumentem a liberdade dos países e de suas populações para empreender
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e implementar as escolhas sociais que julguem adequadas. Uma política com tais características seria uma regulação transnacional do movimento de capitais que impusesse uma taxa a movimentos especulativos de capitais, como a taxa Tobin. Uma vez imposta transnacionalmente, essa regulação aumentaria a margem de manobra dos países para implementar suas escolhas sociais. Essa mesma taxa poderia, ainda, financiar um fundo público global para prover uma renda básica de cidadania global (Dymski; Kerstenetzky, 2007). Pensar a questão do desenvolvimento requer, antes de mais nada, selecionar o plano de análise e, portanto, os elementos que serão tomados como constitutivos do desenvolvimento: renda per capita, desenvolvimento social ou, mais amplamente, liberdade para realizar e para exercer a humana condição de agente. Requer ainda uma definição espacial – local, nacional ou global –, observando-se, contudo, que a dimensão global se constitui hoje em importante injunção para projetos locais e nacionais de desenvolvimento. Do modo como integramos esses elementos, notamos que a expansão da liberdade de realização de indivíduos e grupos em sociedades específicas depende, em parte, do grau de liberdade de estados nacionais para implementar políticas públicas expansivas dessa liberdade. Estas, por sua vez, dependem, em parte, da existência de um ambiente de cooperação global que, por meio de um sistema regulatório global, democratize os benefícios da crescente integração econômica entre os países. A política democrática em todos esses planos é essencial para garantir que a liberdade de realização respeite, de fato, as escolhas sociais.
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REFERÊNCIAS BALESTRINO, Alessandro. “A note on functioning-poverty in affluent societies”. In: POLITEIA, 1996. DYMSKI, G.; KERSTENETZKY, C. Lessa. The ethnics of financial globalization. Mimeo, 2007. ESPING-ANDERSEN, G. The three worlds of welfare capitalism. Princeton: Princeton University Press, 1990. KERSTENETZKY, C. Lessa. “Desigualdade e pobreza: lições de Sen”. In: REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS, 2000, p. 15-42. SANTOS, L.; KERSTENETZKY, C. Lessa. Pobreza como privação de liberdade: o caso da favela do Vidigal no Rio de Janeiro. Mimeo, 2007. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. STIGLITZ, J. Globalization and its discontents. New York and London: W.W. Norton & Company, 2002.
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Controle cidadão, ferramenta contra a corrupção política L Ú C I A AV E L A R Professora titular de Ciência Política do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília; ex-professora da Unicamp; pesquisadora do CNPq
Quando Putnam escreveu sobre capital social relacionando a ele bom desempenho governamental, profetizou: países de tradição ibérica não alcançarão bons governos porque não têm (e nem terão) sociedade organizada densa e comprometida com a coisa pública e com a cobrança do bom desempenho de governantes. Para ele, esse é um legado de países cujos sistemas representativos carregam estreitos vínculos entre representantes e pessoas representadas. Nesses países, antigas formas de organização do mundo do trabalho (as guildas), a era pré-capitalista, sem ethos de competitividade e de mobilidade social, forjaram relações horizontais de natureza muito mais solidária do que no mundo capitalista. A hipótese de Putnam é que a confiança mútua, gérmen por excelência de grupos solidários, estaria presente nessas sociedades, desdobrando-se em uma sociedade civil forte e comprometida com os negócios públicos. Tal profecia acabou gerando críticas contundentes, em vista do determinismo histórico nela contido. A organização da sociedade em grupos voltados para a política pode ser inventada e reinventada, desde que haja liberdade de reunião, associação e conscientização política, por meio de inúmeros instrumentos pedagógicos plantados nessa sociedade (Avritzer, 2004; Abers, 2000). Mas quanto à outra hipótese de Putnam, há relativo consenso entre especialistas: quanto mais a sociedade se organiza, mais cobra dos governos e governantes. Em contextos de relações verticais, como o do clientelismo autoritário, dificilmente haverá accountability.1 As evidências mostram que, embora recente, a sociedade civil dos países latino-americanos experimenta formas vibrantes de organização, com clara emergência do controle cidadão, como no caso brasileiro (Ciconello, 2006). 1
NE: expressão utilizada pela sociedade civil organizada equivalente a controle cidadão ou controle social.
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Há que se levar em conta que nem todas as correntes da teoria democrática apostam no papel central da sociedade civil em relação ao aperfeiçoamento democrático. Algumas delas acreditam que as mudanças políticas só ocorrem quando as confrontações dos interesses diversos se dão no plano das instituições. Outras, adeptas da democracia participativa e deliberativa, centram aí suas esperanças, ampliando, ao máximo, o arco de participantes. Se esses não se conscientizam por meio dos recursos que a maior escolaridade lhes oferece, resta-lhes o aprendizado pela dinâmica da participação. Afinal, uma das hipóteses centrais nos estudos da participação política é: “quanto mais se participa, maior a consciência política; e, quanto maior a consciência política, mais se participa” (Pizzorno, 1966). Os exemplos históricos estão aí para confirmar o pressuposto: unir ciência e consciência não é apenas uma receita do marxismo; há também os agentes pedagógicos – partidos, sindicatos, movimentos, ONGs etc. – no trabalho de ensinar, divulgar a importância da política na vida cotidiana, desde o início do século XIX, no mundo ocidental e, em particular, na Europa ocidental. Partindo do pressuposto que a sociedade brasileira já vem se organizando há algumas décadas, nosso objetivo é discutir como os grupos da sociedade civil vêm praticando a accountability vertical – aquela que cobra dos governos que façam o que deveriam fazer. A tarefa do controle cidadão não é fácil diante do Estado patrimonial brasileiro que, segundo uma feliz expressão de Mino Carta, relembrando Faoro, é “um sol que nunca se põe”. Conceber o modo de operacionalizar o controle sobre esse Estado, com suas relações particularísticas e clientelistas, capturado pelos políticos, grupos corporativos e lobbies empresariais – não seria esse o grande desafio para os grupos interessados no exercício da accountability? Para apresentar nossa discussão, em primeiro, lugar trataremos de definir “controle cidadão” ou “controle social”. Em seguida, apresentaremos alguns pressupostos de natureza conceitual, de modo a contextualizar o problema em tela. Mais adiante, teceremos considerações sobre o papel da sociedade organizada na sua relação com o Estado.
DEFINIÇÕES O’Donnell (1999) ofereceu em numerosas publicações definições de accountability, enfatizando a importância de mecanismos institucionalizados para limitar o abuso de poder em todas as áreas da vida política. Por exemplo, entre a sociedade e o Estado – controle cidadão vertical – ou entre poderes do Estado – em ações de controle horizontal. Ao definir o controle social ou accountability nos países chamados de “novas democracias”, esse autor refere-se ao fato que, neles, embora as eleições devessem funcionar como um instrumento de controle vertical, nem sempre isso ocorre. E questiona: as eleições punem os maus políticos? Há nesses países liberdade de opinião e de associação, acesso
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amplo a diferentes fontes de informação, de modo a articular demandas e, eventualmente, denunciar mal-feitos de autoridades públicas? Há mídias livres que funcionam como instrumentos de controle social? Esse conjunto de questões nos inspira a refletir sobre uma realidade crítica quanto à efetividade de tais instrumentos de controle. As mídias são comprometidas em um país onde as elites tradicionais encontram instrumentos para seu controle, de modo que há sérias dúvidas quanto à sua imparcialidade. O direito de opinião está efetivamente assegurado? Quem não conhece as dificuldades para se publicarem matérias com temas avessos à linha editorial e política da maioria de jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão, entre outras? Mais ainda, se há o direito de associação, uma realidade que cresceu enormemente no Brasil nos últimos 40 ou 50 anos, qual a visibilidade alcançada por esses atores? Ao contrário, os movimentos sociais são mal-vistos. O “poder popular” é tido como obscuro, vestígios de “marxismo atrasado”; as ONGs ganharam espaço quando se tornaram foco de corrupção política de alguns governos que, inadequadamente, transferiram recursos para seus grupos preferidos. Para quem, então, a accountability vertical é bem-vinda? Os partidos políticos, jamais acostumados com quaisquer tipos de cobrança, fogem desses grupos. A classe política goza de total independência em seus mandatos. Mesmo o governo federal – eleito em 2002 e reeleito em 2006, ao se distanciar de suas raízes na sociedade, obstrui o controle cidadão. Os grupos organizados têm, sim, uma entrada maior, mas ainda rarefeita em termos de controle social. Os governos estaduais não são exemplo de porosidade em relação aos grupos organizados da sociedade. Algumas prefeituras, onde a sociedade é mais organizada, começam a responder ao eleitorado. A impunidade talvez seja o lado óbvio da ausência do controle cidadão. Há muito a fazer para que se cobre um mínimo de punição para políticos, funcionários, juízes e assessores corruptos. As vias de acesso são fechadas e há uma hierarquia que obstrui o julgamento imparcial. Os que chegam a ser punidos são políticos laterais, que não têm centralidade nacional. São punidos os recém-chegados, como se pertencessem à outra casta. E, de certo modo, pertencem. A mobilidade social e política no Brasil é recente. Martins (2002) mostra em seu estudo que entre os recém-chegados estão professores(as) e lideranças de movimentos sindicais, diferentes de empresários, profissionais liberais e fazendeiros, que constituem o grupo de políticos tradicionais. Há mesmo uma realidade social e política em mudança, na qual se misturam políticos de origem social distinta ou de classe social distinta. Como sabemos, a distância social é um abismo quase intransponível e as instituições sabem como punir esses “outros”. Ao apresentar definições, encontramos campos nos quais a accountability deve ser construída. Fox (2001) oferece proposições conceituais que nos ajudam a precisar ainda mais o universo de significados relacionado à definição de accountability: 1) a relação entre processo democrático e accountability é politicamente contingente; 2) a transparência é necessária, mas não suficiente para que ocorra accountability; 3) além disso, ela é eminentemente relacional e relativa. PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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Sem controle Seguindo esse caminho, analisemos situações nas quais a democracia e o controle cidadão nem sempre ocorrem. 1. Um dos aspectos que refutam tal proposição e tornam problemático esse caminho analítico é o seguinte: nas sociedades onde o poder político foi construído sob a lógica do poder tradicional e de natureza patrimonial, as instituições do Estado são controladas por representantes que, embora eleitos, não governam necessariamente para a população que representam, mas para a reprodução de seu próprio poder. Assim, é restrito o acesso da população, dada a feição hierárquica dos poderes do Estado.2 As práticas de corrupção impedem que governos democráticos façam o que deveriam fazer. Ao contrário, distribuem vantagens, ou, por que não, prebendas aos grupos aliados, redistribuindo-os de maneira particularística. “Quando o Estado não redistribui, a população responde com violência”, dizia Linz. A violência difusa é uma resposta da sociedade, diante da impunidade dos atores políticos e do não-atendimento aos direitos sociais. A sociedade organizada ainda é impotente para reverter esse quadro? É melhor manter essa pergunta em aberto, em vez de apresentá-la como uma afirmação. Sob esse Estado, a democracia convive com milhões de pessoas que não têm direito à participação simplesmente porque não têm condições de compreender o significado da política em sua vida. Esse é um dos maiores desafios para os grupos que praticam accountability. Segundo Linz, a democracia fracassará se não houver tal compreensão por parte da população. Conflitos redistributivos podem até ocorrer ao se apreender que igualdade e justiça são inerentes à democracia. Mas sem tal conhecimento, o que se tem é a violência difusa, imobilizadora do Estado. 2. Embora necessária, transparência não é suficiente para que ocorra accountability. Samuels (2004) compara o Brasil com os Estados Unidos e conclui que a accountability entre nós é quase inexistente. Contudo, é evidente que hoje se exige mais transparência nas ações políticas, sem que haja correspondente punição para corrupção, acordos e negociações suspeitas no âmbito das burocracias públicas entre classe política, grupos lobistas e outros. Há que se aprofundar o controle da sociedade sobre o Estado para que a lei seja cumprida e as sanções sejam efetivamente aplicadas.
2
Recentemente, um senador da República de vários mandatos procurou um grupo de especialistas da política para discutir se não haveria algum modo de garantir que as pessoas eleitas prestassem contas de seus atos ao eleitorado. Segundo ele, alcançado o mandato, o representante pode fazer tudo o que quiser, sem que ninguém proteste. Desolador, segundo ele.
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As raízes da impunidade e das ações políticas nebulosas remontam às instituições fundadoras do nosso poder político. Em um país de grande extensão territorial, dividido em propriedades latifundiárias, onde o dono da terra exercia inúmeros papéis – como produtor da riqueza material para a sobrevivência de todas as pessoas, empregador, juiz que fazia a lei e a exercia com suas milícias particulares –, quem teria o poder de punição para esse indivíduo que chamava a si todas as instituições (Cintra, 1971 e 1974)? Difícil discordar de quem afirma ainda estarmos em vias de “construção institucional”. Por exemplo, uma das tarefas é a independência dos tribunais em relação à classe política, de modo que a lei seja aplicada e a punição aos atos ilegais tenha o destino que se espera em um país democrático. É nesse campo que o controle social deve ser aprofundado: que não haja conluio entre a classe política e quem aplica a lei, de modo que os poderes funcionem independentes uns dos outros e o verdadeiro controle horizontal se torne uma realidade. 3. O controle social é relacional entre atores e instituições (Fox, 2001). Esse é um dos aspectos menos presentes nos países de baixa accountability. Se alguns aspectos da vida política vão se tornando objeto de controle cidadão, outros são mantidos insulados e apresentam opacidade. São os casos dos bancos centrais, ministérios como os das Finanças e as Supremas Cortes. Nas relações das instituições governamentais com bancos multilaterais, no gerenciamento das dívidas externas, nos empréstimos e na prestação de contas com, por exemplo, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Banco Mundial, como saber se os resultados correspondem às dívidas contraídas? A corrupção nesse âmbito também é grande, indo para cofres particulares o que deveria ser aplicado em políticas sociais.
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O que surpreende é que mesmo parlamentares eleitos não têm acesso a esses enclaves governamentais insulados. Um estudioso da dívida externa brasileira teve de valer-se de sua condição de parlamentar na Câmara Federal para obter dados sobre a dívida externa. Conseguiu trazer dados de Washington para realizar seu trabalho, já que esses não estavam disponíveis à população brasileira (Arantes, 2002). Os exemplos se sucedem. Vários ministérios do Executivo federal, além de secretarias de estados ou de municípios, contemplam organizações da sociedade com verbas para trabalhos em parceria. É o caso das ONGs. Essas, algumas cívicas, outras nem tanto, recebem enormes parcelas dos cofres públicos, sem auditorias para cobrar o bom serviço contratado. À semelhança do Estado patrimonial, os mesmos valores e práticas são reproduzidos nessas operações pouco transparentes nas quais, em geral, os receptores são membros dos partidos, companheiros, parentes ou compadres. Nada que se distancie muito das imagens do clientelismo e do corporativismo estatal. Portanto, o controle social é relativo, podendo ser observado em maior ou menor grau, e espera-se que seja ampliado até instâncias ainda não tocadas, e que exigem muito mais organização da sociedade para que se limite o uso do poder. Se compararmos Brasil e Argentina, veremos que esta apresenta uma sociedade muito mais exigente e que cobra mais dos seus governantes. No entanto, a ausência de transparência das ações políticas impediu que ali se reduzissem os índices de corrupção. Os resultados sobre os direitos sociais foram devastadores. No Brasil ocorreu o mesmo, mas aqui o controle cidadão é muito menor, com conseqüências semelhantes no âmbito dos direitos humanos e das privações sociais.
SOCIEDADE CIVIL E ESTADO Focalizando esta discussão, nosso objetivo é problematizar o controle da sociedade civil em relação às instituições do Estado, como os Legislativos, os Judiciários e os Executivos, considerando, ainda, o controle que deveria ser exercido em um sistema federativo.3 Particularmente nas décadas recentes, os Legislativos têm merecido baixa credibilidade da população brasileira. Ações de controle, julgamentos e divulgações de comportamentos espúrios raramente resultam em punições. Porém, é rarefeita a cobrança sobre os mandatos, quase sempre sem divulgação sistemática para que a sociedade avalie a qualidade da representação. Os escândalos de corrupção não resultam em punição, como já dissemos.
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Creditamos a Jonathan Fox suas “Proposições para discussão”, no texto a que temos nos referido (2001).
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Uma das explicações possíveis é apresentada por Rouquié (1984): integrantes da classe política, do Estado e do setor público vêm, no geral, das classes médias, com aspirações sociais elevadas, e nem sempre defendem as instituições representativas e o setor público. A porta de entrada para os cargos públicos é o diploma de ensino superior, verdadeiro passaporte para tais funções. Rouquié indaga: trata-se de pilhagem dos cofres públicos ou é um meio de dividir benefícios do crescimento da riqueza do país com os novos segmentos recém-integrados às camadas superiores da sociedade? Na mesma direção, O’Donnell questiona se não é por ocasião das crises econômicas por que passaram os países em desenvolvimento que esses representantes propuseram como alternativa comer até a medula o que havia nos cofres públicos, sem a menor sensibilidade com a questão social. Não estaria aqui um dos núcleos de ação da sociedade civil, o monitoramento dos mandatos dos legislativos? Veja-se o caso do orçamento da União. Há ações em andamento durante a sua elaboração, mas essas permanecem na sua execução? Se todo orçamento público reflete uma intenção política, é tarefa inadiável pressionar no sentido social. Com todas as falhas, sabe-se hoje que podemos celebrar avanços muito maiores que no passado, principalmente em relação aos Legislativos. Mas e quanto aos Executivos? Em estudo recente sobre as auditorias de municípios realizadas pela Controladoria Geral da União (CGU) – órgão do governo central para monitorar a aplicação de recursos transferidos aos municípios com menos de 450 mil habitantes –, encontrou-se que a densidade de organização da sociedade civil é inversamente proporcional aos índices de corrupção. Já que os recursos transferidos são os das áreas de Educação e Saúde, tal estudo conclui que “quanto maior o desenvolvimento socioeconômico e a intensidade associativa, menor o índice de corrupção nos municípios, quando considerados os programas de Educação e Saúde” (Weber, 2006). Nos municípios menores e piores, de baixa qualidade de vida, com lideranças políticas clientelísticas e baixa densidade associativa, o desvio de recursos públicos chega à totalidade dos casos. Nos municípios em que o Orçamento Participativo tornou-se um instrumento real de controle orçamentário, os avanços foram evidentes. Mas na maioria grassa o clientelismo autoritário que, freqüentemente, resiste a pressões da sociedade organizada. O que dizer, então, de municípios onde os votos são comprados e a população é dependente? Os executivos estaduais e o federal seguem a mesma lógica da opacidade. Raramente, tem-se conhecimento de como as secretarias estaduais e os ministérios aplicam seus recursos. Sim, não há tradição nesse tipo de ação, mas ainda pode ser criada. Talvez, os judiciários sejam uma das instâncias de maior insuficiência do controle social. De todos os poderes, eles são os de maior opacidade. Freqüentemente, a ascensão na carreira deve-se a critérios políticos e personalistas. Não PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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seria demais afirmar que neles há nepotismo, uma espécie de estirpe real, aristocrática, na própria autodefinição de alguns de seus membros. Na sua maioria, resistem ao controle externo. A própria Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) rejeita o controle externo. Mendez (2000) aponta que – em alguns estágios da transição para a democracia – as Cortes obtiveram a confiança da sociedade em razão do papel desempenhado no julgamento de violações dos direitos humanos durante os períodos ditatoriais. Mas esses momentos não são freqüentes, em grande medida em virtude da pouca independência dessas Cortes em relação aos governos eleitos. No caso brasileiro, é comum a repercussão obtida pelos processos levados às Supremas Cortes contra políticos acusados de corrupção – entretanto, até hoje não houve uma condenação sequer. Nesse, como em outros casos, o Judiciário age contra a população. Quanto ao meio-ambiente, um estudo sobre redes internacionais de advocacy (Keck e Sikkink, 1998) afirma que, no Brasil, há mecanismos legais e organizações da sociedade que impediriam, por exemplo, a devastação de florestas. Contudo, a morosidade do Judiciário torna-os largamente ineficazes. De todo modo, os grupos ambientalistas de proteção aos direitos do uso da terra ganharam aliados internacionais e puderam projetar a luta em um patamar de muito maior visibilidade, nacional e internacional. Por mais que se discuta a reforma do Judiciário, esse ainda parece um objetivo muito distante. Além disso, não há representações na sociedade civil com força corporativa suficiente para seu controle. Mas há pressões de entidades internacionais de direitos humanos exigindo ações efetivas contra a violação de direitos, a corrupção, a violência policial, as execuções em presídios, em morros e em movimentos agrários. Quando algumas vozes se levantam contra a dependência do Judiciário em relação à classe política e aos governos, esse se fecha ainda mais no controle de nomeações, promoções e remoções. É largamente conhecido o caso de um membro do Ministério Público, Luís Francisco: perseguido e ameaçado no estado de Tocantins, só foi removido para Brasília porque houve interferência de sua família na Comissão de Direitos Humanos diante da possibilidade de ele vir a ser assassinado. São casos de exceção, porque, no geral, o que se tem são remoções favoráveis a cargos mais prestigiosos, em lugares de vida menos árida. Uma iniciativa do deputado Paulo Renato Souza (PSDB/SP) merece ser mencionada. Em 2007, ele apresentou à Câmara dos Deputados uma proposta de emenda constitucional (PEC) para a criação do Tribunal Superior da Probidade Administrativa. Um tribunal exclusivo para julgar crimes contra a administração pública, constituído por autoridades como ministros, parlamentares, governadores, desembargadores, prefeitos de capitais e de grandes cidades. Seria um tribunal com 11 membros indicados(as) pelo Superior Tribunal Federal (STF). Inspirado na “Audiência Nacional” da Espanha, seria um órgão de accountability horizontal, pois serviria para auxiliar o Supremo no julgamento de causas como crimes de terrorismo e corrupção. Se iniciativas desse teor são muito bem-vindas, por
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que não considerar a presença de membros da sociedade civil que expressariam posições da população, que não tem meios para expor sua indignação diante de atos corruptos impunes das “altas rodas”? Como aponta Barber (2005), nas democracias robustas,há civilidade – respeito e empatia – por pessoas envolvidas em grupos cívicos, mesmo em ações relacionadas com controle social horizontal. Originalmente, o sistema federativo foi concebido para o exercício do controle horizontal. No entanto, dado o grau de autonomia dos estados federados, mesmo após a centralização estatal promovida por Vargas, a partir de 1930, raramente isso acontece. Fox (2001) lembra que organizações transnacionais no campo de direitos humanos, meio-ambiente, direitos de minorias e direitos das mulheres são exemplos de bons aliados no exercício do controle social.
ACCOUNTABILITY E DEMOCRACIA Se os processos democráticos estão sempre em construção, o mesmo ocorre com a accountability. Sabemos dos aspectos problemáticos das democracias nos países de grande desigualdade social, cujos desafios são, precisamente, aqueles pertinentes também à construção progressiva do controle da sociedade em relação aos governos e governantes. Podemos perguntar: em quais áreas o controle das organizações cívicas deveria se concentrar? Poderíamos pensar em estratégias práticas de controle cidadão sobre as instituições públicas para que respondam às necessidades de suas respectivas populações? Não há receituário possível, mas diante do que foi aqui considerado, poderíamos cogitar possibilidades de tornar a sociedade civil real e efetivamente cívica. E as possibilidades são infinitas! Uma primeira questão poderia ser: quão efetivo tem sido o controle social sobre os orçamentos municipais, estaduais e federais, particularmente no que se refere aos investimentos sociais, como as políticas de educação e de saúde? Nenhum candidato às eleições deixa de prometer prioridade sobre tais políticas. Mas qual tem sido a prioridade real dos investimentos nessas áreas? Por acaso, os respectivos executivos não continuam tendo o monopólio de decisão sobre tais políticas? Se os legislativos desempenham um papel de influência relativa, como tem sido tal relação? Construir o controle cidadão nessa instância seria também cobrar transparência das ações governamentais e, nesse caso, há pouquíssimo trabalho acumulado (Fox, 2001). Alguns grupos organizados e ONGs em reduzido número de municípios acompanham a execução orçamentária como um modo de contribuir para a democratização. Não são muitos, mas são exemplares. Tal acompanhamento acaba provocando um aumento da transparência do poder público, e construindo, pedagogicamente, a cultura da accountability. Se há grupos que iniciaram esse trabalho, por que não divulgar sua ação? Por que não trabalhar com a repercussão dos bons exemplos? PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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Outra questão: por que não reunir esforços entre organizações diferentes para debater dados produzidos no campo da implementação das políticas públicas? E por que não fazer parcerias entre grupos da sociedade organizada, grupos de pesquisa e fundações interessados em avaliar o que se tem feito nas várias esferas da administração pública? Levando em conta a natureza desse trabalho, que exige colaboração de muitos(as) especialistas, a idéia é a cooperação de esforços – por exemplo, linhas de pesquisa de cursos de pós-graduação que contemplassem avaliações de políticas públicas e posterior divulgação aos grupos e mídias interessados. Parece absurda a pergunta, mas o quanto sabemos sobre os investimentos públicos? O controle cidadão, construído nessa direção, pode proporcionar a mais essencial das tarefas de cobrança, porque todos os investimentos ganhariam mais transparência e, além disso, saberíamos, afinal, quais são as reais preferências de governantes e da classe política.
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Lula, o PT e a política: a danação de Fausto
FRANCISCO DE OLIVEIRA Professor titular (aposentado) de Sociologia do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e coordenador-executivo do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da Universidade de São Paulo
Examinar uma agenda para o Brasil exige, antes de tudo, fixar os contornos , as dimensões e os limites da conjuntura em sentido amplo, e não na caricatura em que economistas enquadraram o conceito. Essa conjuntura ampla responde a se já saímos das encruzilhadas abertas pela indeterminação, resultado das políticas desde Collor de Mello, enfaticamente levadas a cabo por Fernando Henrique Cardoso e mantidas por Luiz Inácio Lula no primeiro mandato. As encruzilhadas sugeriam que algumas possibilidades estavam abertas, mas não determinadas. O primeiro mandato de Lula e o segundo, que já tem dez meses, sugere que a indeterminação foi superada pela escolha de um dos caminhos que se ofereciam; a sobredeterminação mais geral – para recuperar uma sugestão do filósofo francês Louis Althusser –, é dada pela mundialização/globalização, que propiciou a desnacionalização da política e a despolitização da economia, o declínio dos estados nacionais e sua perda de autonomia, o feroz ataque aos direitos trabalhistas. Desde a ditadura militar, contrario sensu, movimentos populares-políticos que culminaram na Constituinte, passando antes pela formação de um partido de massas de orientação socialista e de centrais sindicais amplas, e do ressurgimento do movimento camponês – com vigor inusitado para um país que havia realizado uma ampla reforma agrícola ersatz da reforma agrária –, uma espécie de “direção moral” gramsciana ditava a agenda política, incluindo-se aí a enorme abertura para o social, a mudança da economia e um novo papel para o Judiciário e o Ministério Público De novo em termos do cientista político Antonio Gramsci, uma socialização da política talvez sem paralelo na história brasileira. O Fausto brasileiro ganhava músculos, em uma rara combinação na história nacional de movimentos democráticos e populares, equação nem sempre bem realizada no passado, da qual resultou sempre a longa “revolução passiva” brasileira. Esse Fausto ancorou primordialmente no Partido dos Trabalhadores (PT) e personificou-se em Lula. Nosso próprio obreirismo viu nisso o cumprimento das promessas da História.1 PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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BRASIL, MOSTRA SUA CARA O Rubicão estava ali para ser atravessado não por um César ávido de poder, mas pelas forças fáusticas que domaram e derrotaram a ditadura militar, como sugerido no artigo O momento Lênin (Oliveira; Rezek, 2007), na brecha da indeterminação. O falso Fausto atravessou-o, não para conquistar Roma, mas para entregar-se a ela; em vez dos cavalos de fogo da transformação, uma capitulação camuflada pela esmola às pessoas pobres. O que significam R$ 160 bilhões de pagamento de juros da dívida pública interna perante os R$ 8 bilhões do Bolsa Família no ano da des-graça de 2006 ? E um tucano na presidência do Banco Central, blindado como “ministro” para estar acima das pessoas comuns? E dois grãos-duques do empresariado nas pastas da Agricultura e do Desenvolvimento? E a demissão de Carlos Lessa do BNDES por ser desenvolvimentista? E os escândalos que envolvem figuras importantes do PT ? E o presidente transformado em general do etanol e vendedor-mór do Brasil ? Ari Barroso responderia na década de 1940: tudo isto quer dizer Brasil! A sobredeterminação globalizadora/mundializadora responde pela colonização da política pela economia, mas não carece das escolhas internas que aplainarão o caminho para a completa desnacionalização da política e despolitização da economia. O PT mesmo formou a maior resistência ao avassalamento cardosiano, impedindo a total privatização das empresas estatais, das quais Petrobras e Banco do Brasil eram as “bolas da vez”, da Previdência Social e o achaque aos direitos trabalhistas. Cardoso não pôde mexer na Previdência do servidor público, enquanto Lula o fez sem quase nenhuma resistência. Um Rubicão atravessado, agora sim, por um César, pequeno decerto, ávido de poder, e transformista, pois utilizou as forças fáusticas para anulá-las – em fenômeno previsto por Max Weber no estudo do carisma – anulou a política, abrindo caminho para completar a obra de erosão das forças do trabalho, vergastadas pela poderosa revolução técnicocientífica, que banalizou o trabalho e recuperou as frações expulsas da força de trabalho para a acumulação de capital, na forma, evidentemente, de acumulação primitiva, ou de espoliação, ou ainda de mercadoria sem equivalência. Na forma das cooperativas de catadores de lixo que, em tucanês, diz-se “resíduos sólidos recicláveis”. Falto das forças fáusticas, agora reviradas sobre elas mesmas, na forma de uma “hegemonia às avessas”, a política – a pequena política de Gramsci ou a política policial do filósofo francês Jacques Rancière – derivou para o biopoder do filósofo francês Michael Foucault. A hegemonia às avessas é a utilização do Fausto para derrotar as forças que o elegeram, derrotar a “direção moral” imprimida pe-
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Lembro, só para recordar, que à saída da reunião de formação do PT no Colégio Sion, em São Paulo – e parece que faz um século! – , Leôncio Martins Rodrigues, um dos raros ativistas trotskistas in altri tempi, vibrava, contaminando a mim próprio e ao filósofo José Arthur Giannotti: finalmente, a realização dos sonhos dos trotskistas: um poderoso movimento de trabalhadores em associação com os intelectuais!
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los movimentos democrático-populares da era das invenções políticas, pagar os R$ 160 bilhões de serviço da dívida pública interna em 2006; deixar a política para as pessoas pobres, dada sua irrelevância; eleger usineiros de açúcar como “heróis” da sociedade brasileira; realizar os objetivos das classes dominantes conduzidas, agora, pelos dominados; uma economia de política, não uma economia política, que se resume na frase do próprio pequeno César: “governar para os pobres é fácil, porque eles pedem muito pouco”.2 Todas as ações sociais são biopolíticas, são emergenciais, e daí se caminha para um permanente estado de exceção e, na velha definição de Carl Schmitt, o soberano é quem define a exceção: Lula é esse soberano. É ele quem diz se o presidente do Senado, Renan Calheiros ( PMDB–AL), deve ser salvo. É ele quem retira suas próprias medidas provisórias, que já são excepcionais, para limpar a pauta do Congresso e avançar na votação da prorrogação da Contribuição Provisória sobre a Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira (CPMF) – que, de provisória, virou permanente. Ações sociais para recortar a sociedade em carentes, deficientes, sem-teto, sem-renda, sem-terra, sem-comida: para anular a potência da reivindicação da parcela de pessoas que não têm direito, nos termos de Rancière. Não é o enfrentamento da pobreza: é sua funcionalização, é sua gestão. Nada mais neoliberal: não se deve esquecer que foi o Milton Friedman, um dos mais ortodoxos monetaristas de Chicago, quem inventou a renda-família, quando assessorava a ditadura de Augusto Pinochet, no Chile. Tratava-se de um expediente para exatamente desuniverlizar as reivindicações, logo depois de um governo como o de Salvador Allende – que se tinha erguido justamente sobre o oposto. Mas como todo governo tem por obrigação manter o monopólio da violência legal, as ações sociais focadas tentam satisfazer demandas sociais como elemento de controle político.
DOSES HOMEOPÁTICAS DE CONSENSO Isto nos aproxima de outro tema: participação e controle. Mesmo nas formas extremas ditatoriais, o Estado necessita legitimar-se diante da população dominada. O exemplo de Pinochet e sua “bolsa-família” deveria bastar, mas não custa insistir no ponto. Como nos ensinou o “pequeno grande sardo”, de Gramsci, nenhuma dominação se mantém por longo tempo apelando apenas para a violência e a coerção. Uma mínima dose de consenso é requerida , e há sempre formas muito variadas de obtê-lo. As ações sociais são uma dessas formas, talvez a mais eficaz, exatamente porque atende a situações de exceção, e, portanto, tornam-se unívocas, um terreno para o consenso negativo. Ninguém negará que o conflito de classes no
2 Discurso do presidente Luiz Inácio Lula em junho de 2006, em Contagem, Minas Gerais, em palestra para a classe trabalhadora da região, em plena campanha pela reeleição. PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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Brasil – como nos Estados Unidos (EUA), que são os inspiradores das ações afirmativas – passa pela cor–etnia, assim como nos ensinou a saudosa Beth Lobo, que “classe tem sexo”, que a dominação de classe ganha mais eficácia quando se realiza aproveitando a discriminação de sexo – ou de gênero, como se diz hoje em sociologuês politicamente correto. Assim, a discriminação é que se ergue em estatuto da política, para reafirmá-la e não para negá-la. Quem pode ser contra as políticas afirmativas, como cotas para pessoas negras nas universidades ou as políticas do Bolsa Família, quando é evidente que o sistema brasileiro jamais dará conta de aumentos do salário real que dispensem a caridade governamental e que as pessoas negras são quase impedidas de entrar nas universidades públicas? Curioso é que as pessoas pobres sabem disto: ninguém se fia mais em que as oportunidades estão abertas: as letras politizadas das músicas dos guetos pobres falam disso abertamente. Um aviso às organizações não-governamentais (ONGs): entidades que nasceram como vocalizações do que o sistema interditava, até porque o léxico político não as alcançava, estão se transformando em produtoras de um consenso negativo na forma da institucionalização das políticas sociais ditas afirmativas. No Brasil, como na África do Sul – que, aliás, são os lugares de ensaio de uma nova forma de dominação, a “hegemonia às avessas” –, etnia se confunde com a classe, mas o combate às diferenças étnicas não tem eficácia. Em primeiro lugar, porque a pobreza é negra, ou mulata, ou parda, como dizia a antiga classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Logo, combatendo-se a pobreza de classe, combate-se a discriminação étnica, como de novo a África do Sul nos mostra e mesmo a chamada “burguesia negra” dos EUA. Quando a política se dirige por estatutos do biopoder, não se anula a pobreza de classe, apenas se faz um novo recorte entre pessoas negras e mulatas. O filme “Infância roubada”, que se passa na África do Sul, em Johannesburgo, mostra um seqüestro realizado por uma gangue de pobres, negros, evidentemente, em uma família rica...negra ! A discriminação não desapareceu, apenas mudou de classificação: agora, a classe determina a hierarquia, e não mais a cor! No Brasil, está acontecendo o mesmo. A discriminação de classe se apresenta revestida de preconceito de cor e de região: então, ser nordestina, negra e mulher é a suma teológica brasileira! Mas vejamos a ação do Bolsa Família: estudos recentes do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e de seus ideólogos – liderados por Paes de Barros – mostram uma diminuição da desigualdade. Loas à política do Bolsa Familia! Mas o que essa diminuição não diz é que se trata de diminuição nas remunerações do trabalho, e que essas vêm perdendo para as rendas do capital na distribuição funcional da renda ! Então, de qual diminuição da desigualdade está se falando ? Qualquer estatístico sabe que o decil mais alto é sempre aberto, pois apenas se pode fechá-lo por critérios convencionais. Em uma sociedade
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tão desigual como a brasileira, o decil superior aberto esconde qualquer possibilidade de mensurar-se a efetiva desigualdade. Isto é a América Latina, Brasil y compris, pois se sabe hoje, graças à revista Forbes – deletéria publicação gringa para louvar a ideologia burguesa mais rasteira –, que o homem mais rico do mundo é um mexicano. Toda essa contrafacção se dá sem nenhuma base social ? Seria ingênuo pensar que a política policial ou a pequena política tem esse poder. De fato, há uma mudança na sociedade brasileira que autoriza e cauciona a política das diferenças – nosso Flávio Pierucci tem um artigo clássico em que já chamava a atenção para o problema, Armadilhas da diferença – assim chamada em bom sociologuês: a intensa urbanização posicionou, lado a lado, no espaço metropolitano, pessoas ricas e pobres. A antiga discriminação espacial, de que são exemplos acabados os bairros da City em São Paulo, já não segrega, pois a força de trabalho é requerida em todos os lugares do espaço urbano. Então, como nos mostra Mariana Fix (2007), a nova discriminação não busca, utopicamente, separar pessoas ricas e pobres. Busca aproximá-las espacial e socialmente separá-las. Até porque empregadas domésticas, garçons, motoristas, motoqueiros são necessários e devem morar perto – e a própria população pobre quer morar perto do trabalho – mas socialmente separados. Assim, “cidade global” são os novos edifícios auto-suficientes, inteligentes, onde somente se entra pelas garagens, mediante total identificação: “sorria, você está sendo filmado”. Com agências bancárias em seu interior, até agência dos Correios. Um ícone da “cidade global” é um edifício na zona da Berrini, em São Paulo, que tem não apenas um heliponto, mas um verdadeiro aeroporto de helicópteros, que faz ali mesmo o check in de executivos que vão ao exterior ou a outros estados, sem necessidade de passar pelo check in das empresas nos aeroportos de uso comum. Em poucas palavras, para terminar, a intensa mudança na estrutura de classes, a erosão da classe trabalhadora formal, a informalização em larga escala, a formidável concentração da renda, a escandalosa ostentação de riqueza, criou uma vitória do capitalismo de graves conseqüências. O “levar vantagem em tudo” do gênio canhoto da seleção de 70 transformou-se no bordão de uma parte considerável da sociedade. É isso que cauciona a danação do Fausto.
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Discriminação e violência – obstáculos na conquista dos direitos SUELI CARNEIRO Doutora em Filosofia da Educação, diretora do Geledés – Instituto da Mulher Negra
É de Joaquim Nabuco a compreensão de que a escravidão marcaria, por longo tempo, a sociedade brasileira porque ela não teria sido seguida de “medidas sociais complementares em benefício dos libertados, nem de qualquer impulso interior, de renovação da consciência pública.” Na base dessa contradição, perdura uma questão essencial acerca dos direitos humanos: a prevalência de uma concepção de que certos humanos são mais ou menos humanos do que outros e, por conseqüência, a naturalização da desigualdade de direitos. Se algumas pessoas estão consolidadas no imaginário social como portadoras de uma humanidade incompleta, torna-se natural que não participem, igualitariamente, do gozo pleno dos direitos humanos. Uma das heranças da escravidão com a qual contribuiu, posteriormente, o racismo científico do século XIX – que dotou de suposta cientificidade a divisão da humanidade em raças, estabelecendo hierarquia entre elas e conferindo-lhes estatuto de superioridade ou inferioridade naturais. Dessas idéias decorreram e se reproduzem as conhecidas desigualdades sociais que vêm sendo amplamente divulgadas nos últimos anos no Brasil. O pensamento social brasileiro tem longa tradição no estudo da problemática racial e, no entanto, na maior parte de sua história, as perspectivas teóricas que o recortaram respondem, grandemente, pela postergação do reconhecimento da persistência de práticas discriminatórias em nossa sociedade. Nadya Castro Araújo inventaria o percurso por onde o pensamento social brasileiro sobre as relações raciais foi se transformando a partir das diferentes óticas pelas quais foi abordado, iniciando-se pelo pessimismo em relação à configuração racial miscigenada da sociedade brasileira, corrente no fim do século XIX até as primeiras década do século XX – como atestam pensadores como Sílvio Romero, Paulo Prado, Nina Rodrigues, entre outros –, passando pela visão idílica sobre a natureza das relações raciais constituídas no período colonial PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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e determinantes na predisposição racialmente democrática da sociedade brasileira – que tem em Gilberto Freyre sua expressão maior e mais duradoura. Comparecem, ainda, visões que situam a questão racial como reminiscências da escravidão, fadadas a desaparecer tanto mais se distancie no tempo daquela experiência histórica, ou ela é situada como subproduto de contradições sociais maiores, ditadas pela análise materialista dialética que as informava, como explica Florestan Fernandes. Para Castro, nessa leitura : a desigualdade racial era descrita como um epifenômeno da desigualdade de classe. Mesmo ali onde estereótipos e preconceitos contra negros eram expressamente manifestos, eles eram analisados antes como atos verbais que como comportamentos verdadeiramente discriminatórios. (1998) O novo ponto de inflexão nessa análise emerge na obra do sociólogo Carlos Hasenbalg. Pela primeira vez, as desigualdades raciais são realçadas a partir de uma perspectiva em que discriminação e racismo são tomados como variáveis independentes e explicativas de tais desigualdades. Essas concepções conformam as duas matrizes teóricas e/ou ideológicas em disputa na sociedade. De um lado, o mito da democracia racial, ao desracializar a sociedade por meio da apologética da miscigenação, presta-se, historicamente, ao ocultamento das desigualdades raciais. Como afirma o Hasenbalg, esse mito resulta em “uma poderosa construção ideológica, cujo principal efeito tem sido manter as diferenças inter-raciais fora da arena política, criando severos limites às demandas do negro por igualdade racial” (Hasenbalg, 2002). De outro lado, a força do pensamento de esquerda que, ao privilegiar a perspectiva analítica da luta de classes para a compreensão de nossas contradições sociais, tornam secundárias as desigualdades raciais, obscurecendo o fato da raça social e culturalmente construída ser determinante na configuração da estrutura de classes em nosso país. Essa inscrição e subordinação da racialidade no interior da luta de classes foi iniciada inspirando perspectivas militantes que buscam articular raça e classe como elementos estruturantes das desigualdades sociais no país. Mais recentemente, economistas vêm qualificando a magnitude dessas desigualdades a ponto de, neste momento, podermos afirmar que vivemos em um país apartado racialmente. De fato, as disparidades nos Índices de Desenvolvimento Humano (IDHs) encontradas para pessoas brancas e negras indicam que o segmento da população brasileira autodeclarado branco apresenta em seus indicadores socioeconômicos (renda, expectativa de vida e educação) padrões de desenvolvimento humano compatíveis com os de países como a Bélgica; que o segmento da população brasileira autodeclarado negro – pessoas pretas e pardas, segundo classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – apresenta um IDH inferior ao de inúmeros países em desenvolvimento como a África do Sul que, há menos de duas décadas, erradicou o regime de apartheid.
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Sociologia e economia são áreas que vêm consolidando uma nova percepção sobre a importância da racialidade na configuração das desigualdades sociais no Brasil, tornando-a variável estrutural para a compreensão e superação do problema social. Apesar disso, as duas ideologias, o mito da democracia racial e a perspectiva da luta de classes têm, portanto, em comum a minimização ou o não-reconhecimento e/ou a invisibilização da intersecção de raça para as questões dos direitos humanos, da justiça social e da consolidação democrática, permanecendo atuantes como elementos que dificultam a inscrição da erradicação das desigualdades raciais nas políticas públicas.
GOVERNO LULA E QUESTÃO RACIAL Reconheça-se, a bem da verdade histórica, que Fernando Henrique Cardoso – em coerência com sua produção acadêmica sobre a pessoa negra – foi o primeiro presidente na história da República brasileira a declarar, em seu discurso de posse, que havia um problema racial no Brasil e que era necessário enfrentá-lo com audácia política. Em conseqüência, foi em seu governo que as primeiras políticas de inclusão racial foram gestadas e implementadas, sendo grandemente impulsionadas pelo processo de construção da participação do Brasil na Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância – realizada em Durban, África do Sul, em 2001. Em linha de continuidade e acrescido das propostas organizadas no documento Brasil sem Racismo, o presidente Lula aprofunda esse compromisso com a erradicação das desigualdades raciais. Pode-se dizer, no entanto, que o primeiro mandato do governo Lula caracterizou-se por gestos simbólicos de grande envergadura e tibieza na implementação das medidas concretas de promoção da igualdade racial. Dentre os gestos simbólicos, destacam-se: a presença de Matilde Ribeiro na equipe de transição de governo; a presença de Paulo Paim na primeira vice-presidência do Senado Federal; as nomeações de Benedita da Silva na pasta de Assistência Social; Gilberto Gil na de Cultura; e Marina Silva, na do Meio-ambiente; a criação da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, com status de Ministério, sob a liderança de Matilde Ribeiro; as presenças de Muniz Sodré e de representante da Articulação de ONGs de Mulheres Negras Brasileiras no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES); e a indicação do ministro Joaquim Benedito Barbosa Gomes para o Supremo Tribunal Federal (STF). Inegavelmente, em nenhum outro governo houve a presença desse número de pessoas negras ocupando postos de primeiro escalão, em franca sinalização para a sociedade de uma política de reconhecimento e inclusão das pessoas negras em instâncias de poder. Se, historicamente, as ações de governo sempre são consideradas demasiadamente tímidas perante as expectativas dos movimentos sociais, nesse caso, há decisões importantes sobre o tema que avançam em relação ao que já foi realizado anteriormente. PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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AVANÇOS, FRACASSOS E RECUOS O exemplo mais emblemático das ambigüidades do governo no trato da questão racial está no seu tratamento no Plano Plurianual (PPA) .No artigo “O recorte de raça no Plano Plurianual 2004–2007 com transversalidade de gênero e geração”, de Iradj Egrare, a primeira constatação do autor é a “ausência generalizada da transversalidade de raça nas políticas públicas brasileiras.” Ele observa que o PPA 2000–2003 incluiu dentre os seus 28 macro-objetivos apenas um definido como cultura afrobrasileira. Para o autor, isso reflete a visão governamental de tratar “as características da população afrodescendente como mera peculiaridade cultural”, ressaltando que a “promoção da cidadania dos afrodescendentes extrapola qualquer valorização restrita ao campo da cultura, permeando os campos da segurança pública, prevenção e superação da violência, acesso a serviços de educação, saúde, lazer, esporte, transporte, moradia, dentre outros” (Egrare, 2007, p.3). O trabalho de Egrare busca identificar as tendências expressas no processo de elaboração do PPA 2004–2007. Nesse sentido, ressente-se da análise da forma fi nal adquirida pelo PPA. Aponta o confinamento ou restrição do tema das desigualdades raciais ao item 9 (desafio) das 12 diretrizes do Mega-objetivo I: Inclusão social e redução das desigualdades sociais. Tal confinamento traduz-se, para o autor, em inexistência de perspectiva transversal no tratamento do tema. Egrare evidencia, ainda, as disparidades entre o PPA e o documento Plano Brasil de Todos. O silenciamento e ocultamento das variáveis de raça e gênero no Plano Plurianual contraria a suposta vontade política expressa no documento. No artigo “Os dois níveis do racismo institucional”, de Mário Theodoro, esse aparente paradoxo identificado por Egrari alcança explicação. Como o título do artigo já anuncia, Theodoro identifica o próprio Estado brasileiro como agente reprodutor das desigualdades raciais em dois aspectos: pela ação e pelo funcionamento da máquina estatal. No plano da ação, apesar da conquista dos movimentos negros de conseguirem inscrever a redução das desigualdades raciais entre os grandes desafios do PPA 2004–2007, adverte o autor que, ao contrário do que ocorre com outros desafios, esse “não se traduziu em programas finalísticos e ações específicas. Manteve-se como Programa de Gestão, o que, na prática, o engessa como intenção e inação.” Theodoro analisa, ainda, contradições semelhantes presentes em outros instrumentos da ação governamental, como a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA) e no eixo relativo ao funcionamento da máquina para concluir que: para alterar a lógica que orienta o Estado brasileiro no trato da questão racial é mister: refundar a questão racial no Brasil; resgatar o aparato legal e institucional vigente; introduzir a transversalidade e a idéia da promoção da igualdade racial como vetor básico da ação dos ministérios e demais órgãos do Poder Executivo; introduzir ações de formação do corpo técnico federal para a problemática da desigualdade racial.
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A visão de Theodoro, bem como os desafios por ele arrolados, dão uma dimensão dos desafios que emergem para os movimentos negros para realizar uma ação política eficaz no campo das políticas públicas de corte racial. O gesto concreto de vontade política em relação a um problema social envolve, além do reconhecimento do problema, a alocação de recursos para a viabilização dessas políticas, pois, tal como conclui Theodoro, o que temos até o momento é: um desafio norteador da ação do governo. Falta-lhe no entanto conteúdo. Deveria se desdobrar em diferentes programas finalísticos com indicadores fixados, e esses programas devem ser desmembrados em ações setoriais com metas especificadas. Metas e indicadores que tenham uma dimensão maior, do tamanho do desafio. Propor programas e ações – indicadores e metas – implica em direcionamento de recursos para o desafio já existente. (2004) Dentre os principais avanços está a promulgação da Lei 10.639/03, em 9 de janeiro de 2003, que alterando a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e passou a instituir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-brasileira. Um marco no sentido de introduzir na educação brasileira uma forma de valorizar a participação de afro-brasileiros(as) na história do país, bem como de resgatar os valores culturais africanos. Além da instituição da temática no currículo, o decreto também inclui no calendário escolar, conforme o artigo 79-B, o 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra. Porém, o presidente Lula vetou artigo da lei segundo o qual as disciplinas História do Brasil e Educação Artística deveriam dedicar pelo menos 10% do seu conteúdo programático à temática negra. Esse artigo foi considerado inconstitucional por não observar os valores sociais e culturais das diversas regiões do país. Também foi vetado artigo que determinava que os cursos de capacitação do professorado contassem com a participação de entidades do movimento afrobrasileiro, de universidades e de outras instituições de pesquisa pertinente à matéria. Esse artigo foi considerado ilegal por incluir na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional assunto estranho a essa lei que, em nenhum dos seus artigos, faz menção a esses cursos. Segundo o Ministério da Educação, os parâmetros curriculares nacionais do ensino fundamental e médio já orientam que a diversidade cultural, étnica e religiosa esteja nos currículos. No entanto, os avanços na implantação dessa lei vêm dependendo dos mesmos atores de sempre, os movimentos sociais – é o caso da representação do Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara) e de outras entidades ao Ministério Público Federal para a implementação da Lei 10.639 em todo o país. Uma das vitórias dessa iniciativa é o fato de o juiz da infância do Rio de Janeiro, Guaraci Viana, ter intimado: PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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o MEC e demais órgãos competentes da capital a cumprirem já a lei federal que manda ensinar história africana e cultura afrobrasileira nos colégios.Viana acatou ação movida por entidades do movimento negro, liderada pelo Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA). (O Globo, 2007) Na área da saúde, celebra-se a aprovação, por unanimidade, pelo Conselho Nacional de Saúde da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Tal decisão representa o reconhecimento, pelo governo brasileiro, das iniqüidades raciais presentes no acesso à saúde que expõem, desproporcionalmente, pessoas negras à mortalidade e à morbidade por causas preveníveis e evitáveis. Dentre elas, destacam-se: a mortalidade infantil de crianças até 1 ano de idade; o descaso com a prevenção e atenção em relação às doenças prevalentes entre a população negra, como diabetes, hipertensão arterial, anemia falciforme e miomatoses; os números superiores de mortalidade materna entre mulheres negras resultantes das diferenças percebidas pelos estudiosos do tema, para pior, na assistência à gravidez, ao parto e ao puerpério. Esse conjunto de fatores está enquadrado pelos especialistas da área de saúde no conceito de racismo institucional que se refere à: incapacidade coletiva de uma organização em prover um serviço apropriado ou profissional às pessoas devido à sua cor, cultura ou origem racial/étnica. Ele pode ser visto ou detectado em processos, atitudes e comportamentos que contribuem para a discriminação por meio de preconceito não intencional, ignorância, desatenção e estereótipos racistas que prejudicam determinados grupos raciais/étnicos, sejam eles minorias ou não. (CRE/UK, 1999, p. 2 apud Werneck, 2004) Como no caso da Lei 10.639/03, a implementação dessa política, onde ocorre, deve-se à ação de sensibilização de profissionais de saúde pelas organizações dos movimentos sociais, em especial, de mulheres negras. O reconhecimento do racismo institucional pelo governo como uma questão estratégica no combate ao racismo e na reprodução das desigualdades raciais tem sua expressão também no Projeto Combate ao Racismo Institucional – uma parceria entre Ministério do Governo Britânico para o Desenvolvimento Internacional (DFID) e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), em cooperação com prefeituras municipais e organizações da sociedade civil da região Nordeste. Por meio desse programa, as instituições públicas poderiam se capacitar para superar os entraves ideológicos, técnicos e de natureza administrativa, que dificultam o enfrentamento dos efeitos combinados do racismo e do sexismo, poderosos obstáculos ao acesso ao desenvolvimento. Infelizmente, esse convênio acaba de ser encerrado.
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Porém, até o momento, outros programas governamentais de significativa importância para a população negra fracassaram. Foi o caso do Primeiro Emprego, que previa o incentivo às empresas como um mecanismo de combate à discriminação de jovens pertencentes a grupos discriminados, como negros, mulheres e deficientes. Contudo, é na área da segurança pública que os jovens negros encontram-se mais expostos a uma matança que se assemelha ao genocídio, com absoluta inação por parte do governo. Percebe-se, por fim, o recuo do governo em relação aos projetos de lei que prevêem a reserva de cotas para pessoas negras, índigenas e estudantes oriundos(as) de escolas públicas e ao Estatuto da Igualdade Racial – que desencadearam uma ofensiva conservadora jamais vista na sociedade brasileira.
REAÇÃO CONSERVADORA Não obstante, o dilema social representado pelo negro liga-se à violência dos que cultivaram a repetição do passado no presente. (Fernandes, 1988) A possibilidade de aprovação de dispositivos legais que institucionalizariam a política de cotas e de promoção da igualdade racial motivou o manifesto assinado por parcela da intelligensia nacional endereçado ao Congresso Nacional, “pedindo-lhes que recusem o PL 73/1999 (PL das Cotas) e o PL 3.198/2000 (PL do Estatuto da Igualdade Racial)”. Alegam que o Estatuto e as cotas raciais rompem com o princípio da igualdade e ameaçam a República e a democracia. Como vimos apontando em diferentes artigos – e aqui cabe novamente reiterar –, as políticas de ação afirmativas têm sido implementadas em uma diversidade de países. Têm sido praticadas para atender a diferentes segmentos da população que, por razões históricas, culturais ou de racismo e discriminação, foram prejudicados em sua inserção social e participação igualitária no desenvolvimento desses países. PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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Além dos EUA, temos exemplos na Inglaterra; Canadá (indígenas, mulheres e negros); Índia (a Constituição de 1948 previu medidas especiais de promoção dos dalits, os intocáveis); Colômbia (indígenas); Malásia (o grupo étnico majoritário, buniputra); União Soviética (4% das vagas da Universidade de Moscou para habitantes da Sibéria); Israel (falashas, judeus de origem etíope); Alemanha (mulheres); Nigéria (mulheres); Sri Lanka; África do Sul; Austrália; Nova Zelândia; Noruega; Bélgica (imigrantes); Líbano (participação política das diferentes seitas religiosas); China; e Peru. Recentemente, foi anunciada a proposta de um projeto de lei ao Parlamento indiano para duplicar o número de vagas para minorias no sistema de cotas em universidades federais. Segundo o projeto, quase metade das vagas nas faculdades profissionalizantes públicas serão destinadas às castas mais baixas e às classes chamadas de “tradicionalmente desfavorecidas”. Atualmente, 22,5% das vagas nas faculdades são reservadas para dalits e estudantes tribais. Segundo o novo projeto, o número de vagas reservadas vai passar para 49,5%. A Índia é um dos países que mais nos causa inveja em termos de crescimento econômico e desenvolvimento científico e tecnológico. Provavelmente, parte essencial dessa performance se deva ao investimento efetivo feito no desenvolvimento de seus recursos humanos, por meio da educação. Enquanto essas medidas especiais para a promoção de grupos “desfavorecidos” existem como política de Estado na Índia, desde 1948; no Brasil, as ações afirmativas patinam em um debate escapista, fundado na defesa de suposta meritocracia, escondendo o desejo de permanência de um status quo que, historicamente, produz privilégios, reproduz e amplia as desigualdades raciais e retarda o desenvolvimento. No entanto, essas iniciativas são ocultadas pelos grupos contrários às cotas. Mais que isso, ao focarem sua crítica tomando por referência exclusiva a experiência estadunidense, buscam angariar para suas teses o benefício indireto do suposto ou latente sentimento antiamericano, tão em voga no mundo. Forçam, assim, a associação de dependência da população negra brasileira às teses dos movimentos negros afro-americanos como expressão de imperialismo cultural de segunda linha e construção de uma problemática inexistente no Brasil. Em nenhum país onde as cotas foram aplicadas tem-se notícia de a medida ter sido capaz de provocar tamanha hecatombe. Mas, curiosamente, esses intelectuais temem que isso possa ocorrer precisamente no país da “democracia e cordialidade racial”. Os intelectuais contemporâneos contrários ao Estatuto consideram que: “Se [o Estatuto] entrar em vigor, representará uma mudança essencial nos fundamentos políticos e jurídicos que sustentam a nação brasileira” (Folha de S. Paulo, 2006). Como apontamos, as cotas foram adotadas em países desenvolvidos e em desenvolvimento, sem que, em nenhum deles, fossem abalados os seus fundamentos políticos e jurídicos.
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Esses intelectuais aferram-se ao princípio universalista liberal vigente no início do século XX, escamoteando a contribuição de pensadores contemporâneos – tais como Norberto Bobbio, John Rawls, Charles Taylor, entre outros – , que alargaram as noções de democracia e igualdade e deram sustentação teórica para muitas das experiências de ações afirmativas adotadas no mundo. Intencionalmente, esse artifício oculta as ressignificações empreendidas pela ciência política, as definições substantivas que elas adquiriram na formulação daqueles que buscam teórica e politicamente a equalização de direitos. Norberto Bobbio nos mostra sob quais condições é possível assegurar a efetivação dos valores republicanos e democráticos. Para ele, impõe-se a noção de igualdade substantiva, um princípio igualitário porque ‘‘elimina uma discriminação precedente.’’ Bobbio compreende a igualdade formal entre os seres humanos como uma exigência da razão que não tem correspondência com a experiência histórica ou com uma dada realidade social. Significa que “na afirmação e no reconhecimento dos direitos políticos, não se pode deixar de levar em conta determinadas diferenças, que justificam um tratamento não igual. Do mesmo modo, e com maior evidência, isso ocorre no campo dos direitos sociais.” (Bobbio, 1992, p. 71). Em Rawls, a noção de diferença irá sustentar tanto o reconhecimento da desigualdade como seu reconhecimento como fundamento da realização da igualdade entre desiguais. Conforme ele: “o princípio [da diferença] determina que a fim de tratar as pessoas igualitariamente, de proporcionar uma genuína igualdade de oportunidades, a sociedade deve dar mais atenção àqueles com menos dotes inatos e aos oriundos de posições sociais menos favoráveis. A idéia é de reparar o desvio das contingências na direção da igualdade.” (Ralws, 2002, p. 107). Para além das contribuições da ciência política, a jurisprudência nacional tem dado sustentação às teses defendidas por ativistas anti-racistas. O caso de Siegfried Ellwanger, condenado pelo crime de racismo por edição de obra antisemita, é emblemático nessa direção. Em primeiro lugar no acórdão desse caso, o ministro Gilmar Mendes defende que a Constituição compartilha o sentido de que “o racismo configura conceito histórico e cultural assente em referências supostamente raciais, aqui incluído o anti-semitismo.” O ministro da Defesa, Nelson Jobin, recusou o argumento da defesa, segundo o qual judeus seriam um povo e não raça e, por isso, não estariam ao abrigo do crime de racismo como disposto na Constituição. Entendeu o ministro que essa visão “parte do pressuposto de que a expressão racismo usada na Constituição teria conotação e um conceito antropológico que não existe.” A ministra Ellen Gracie, por sua vez, resolveu – ao contrário do que professam cientistas nacionais empenhados em desconstituir as pessoas negras de sua racialidade histórica – apoiar as teses dos que consideram que “não somos racistas”, que “É impossível, assim me parece, admitir-se a argumentação segundo a qual se não há raças, não é possível o delito de racismo”. PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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E, por fim, o ministro do STF, Marco Aurélio Mello, indica que construir a igualdade requer, em princípio, reconhecer a desigualdade historicamente construída: “Temos o dever cívico de buscar tratamento igualitário a todos os cidadãos, e isso diz respeito a dívidas históricas. O setor público deve, desde já, independentemente da vinda de qualquer diploma legal, dar à prestação de serviços uma outra conotação, lançando em editais a imposição em si de cotas, que visem contemplar as minorias” (Correio Braziliense, 2001, p.5), alertando ainda que as chamadas minorias não dizem respeito à questão numérica, mas à questão de acesso às oportunidades. Mas intelectuais empenhados no combate às cotas e ao Estatuto passam, intencionalmente, ao largo de todo esse acúmulo democrático – qual sejam, os novos direitos conquistados por novos sujeitos políticos em diferentes arenas – que teve como palco privilegiado a agenda social das Nações Unidas cumprida durante a década de 1990. Esta se concluiu com a Conferência contra o Racismo, realizada em Durban, em setembro de 2001, da qual emergem os compromissos assumidos pelo Brasil, como país-membro das Nações Unidas, de avançar em uma agenda de promoção da igualdade racial, da qual o Estatuto seria marco legal. O Plano de Ação da Conferência de Durban insta os Estados a elaborarem “programas destinados aos afrodescendentes e destinem recursos adicionais a sistemas de saúde, educação, habitação, eletricidade, água potável e medidas de controle do meio ambiente, e que promovam a igualdade de oportunidades no emprego bem como outras iniciativas de ação afirmativa ou positiva.” Porém, se o alvo prioritário dessa ofensiva conservadora são as cotas para pessoas negras, em particular, e as políticas de promoção da igualdade, em geral, essa investida e a retórica que a acompanha ameaçam, indiretamente, os novos direitos que vêm sendo conquistados pelos novos sujeitos políticos no processo de consolidação e expansão da experiência democrática – na qual se empenham há décadas os movimentos sociais e as organizações não-governamentais – dentre esses, o direito à diferença. Vale lembrar que muitas dessas conquistas foram consagradas em instrumentos internacionais que obrigam os Estados-membros das Nações Unidas, ou lhes recomendam, a implementar políticas públicas corretoras das desigualdades, prevendo, até mesmo, tratamento diferenciado a grupos vulnerabilizados como forma de promoção da igualdade de oportunidades. Nesse sentido, no plano dos compromissos internacionais assumidos pelo governo brasileiro, exigiria a aceitação da concepção clássica de igualdade defendida por esses intelectuais, que ignora os pactos, tratados e convenções assinados pela ONU, como, entre outros, a Convenção Internacional sobre Todas as Formas de Discriminação Racial, 1965; a Conferência de Beijing, 1995; o Plano de Ação da Conferência Regional das Américas, em Santiago do Chile, 2000; a Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, em Durban, África do Sul, 2001. De todos, o Brasil é signatário e deve prestar contas dos avanços alcançados em cada caso.
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No plano nacional, no limite, a se levar às últimas conseqüências as posições por eles defendidas, estariam em questão também vários dispositivos constitucionais ou infraconstitucionais, tais como o que institui tempo diferenciado de aposentadoria para as mulheres; o artigo 93 da Lei 8.213/91, que determina a contratação de pessoas com defiências físicas por empresas com 100 ou mais empregados(as); a lei de cotas para mulheres nos partidos políticos; e rever o Título II – Dos direitos e garantias fundamentais, Capítulo II – Dos direitos sociais, artigo 7°, inciso 20, “proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei.” Sim, pessoas negras não necessariamente são deficientes físicas e nem mulheres em sua totalidade, mas a discriminação racial funciona como um freio a uma competição igualitária, fazendo com que a competição entre pessoas negras e brancas pelas oportunidades sociais se processe como na imagem largamente utilizada pelos movimentos negros nacionais para descrever esta situação: em que se tem dois competidores em largada em que um se acha engessado e outro livre e bem-condicionado. Essa é uma das funções da discriminação de base racial, assegurar essa vantagem competitiva a membros do grupo racial tratado como superior. Atuando em larga escala e impunemente, como se assiste no Brasil, produz como efeito de poder os padrões de desigualdade que conhecemos entre pessoas negras e brancas. É essa trava que os instrumentos internacionais reconhecem e, a partir deles, recomendam políticas específicas aos Estados, bem como os dispositivos nacionais mencionados. Papel da mídia O livro Não somos racistas, de Ali Kamel, coroa a saga heróica que o diretor executivo do jornalismo da Rede Globo vem empreendendo contra as cotas e demais políticas específicas para pessoas negras nos editorias do jornal O Globo. Acompanham-no nessa jornada outros veículos de grande porte, como os jornais O Estado de São e Folha de São Paulo, que, em um de seus editoriais, posicionou-se contra as cotas “por princípios filosóficos”, sem precisar de qual filosofia ou de quais princípios tal posicionamento devesse o seu fundamento. Quando é um diretor executivo do maior veículo de comunicação que tenta estabelecer o “discurso competente” sobre a identidade nacional e suas contradições, este ato opera como uma senha perfeitamente compreendida no país em que “quem pode, manda e quem tem juízo, obedece”. Na esteira do ativismo racial de Ali Kamel passam a se manifestar, em uníssono, diferentes vozes, saturando a esfera pública com o seu mantra, uma locução amplamente garantida pelos principais veículos de comunicação e informação. O ataque que começou contra o Estatuto e as políticas de cotas para pessoas negras e índigenas nas universidades expandiu-se para todas as políticas de promoção da igualdade racial, tendo por alvo fundamental a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, liderada pela ministra Matilde Ribeiro. No âmbito da violação dos direitos culturais da população negra, sobrou até para o ministro Gilberto Gil: PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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no artigo “Cultura de bacilos”, de Bárbara Gancia, no qual a colunista critica a decisão do ministro Gilberto Gil de apoiar grupos comunitários envolvidos com o movimento hip hop como forma de promover, segundo o ministro, “novas formas de expressão da latente criatividade dos pobres do país” (Folha de S. Paulo, 2007). A proposta do ministro não é inédita, consiste apenas em elevar ao patamar de política pública federal experiências exitosas que vêm sendo desenvolvidas por bandas de rap, grafiteiros e dançarinos do movimento hip hop, em parceria com organizações da sociedade civil ou poderes públicos locais, que vêm fazendo a diferença para a inclusão social de muitos(as) jovens das periferias. Do interior do movimento hip hop, emergiram expressões musicais hoje consagradas, caso dos Racionais MCs, um fenômeno de vendagem no Brasil; MV Bill, Thaíde e DJ Hum, entre outros. Para além do impacto na cena musical do país, o movimento hip hop fez emergir lideranças juvenis que têm no rap, no grafite e no break – tripé que estrutura a cultura hip hop – os veículos para a mobilização de jovens para a reflexão sobre os temas que mais afligem o seu cotidiano, como a violência, as drogas, a exclusão social, o exercício protegido da sexualidade, paternidade e maternidade responsáveis, a discriminação racial. Atuam em escolas da rede pública e privada, em faculdades e presídios. Alguns se tornaram gestores de políticas públicas inclusivas para a juventude; outros estão fazendo carreiras universitárias ou mantêm-se no protagonismo juvenil, aprofundando o seu compromisso com os direitos humanos e a inclusão social. Para muitos, a participação no movimento hip hop funcionou como um antídoto que lhes permitiu escapar do caminho mais fácil da marginalidade social. No entanto, no artigo citado de Gancia, a colunista considera desperdício de dinheiro público investir nesse protagonismo por entender que hip hop não é cultura, que o rap é lixo musical, sugerindo, como ela diz, que “tais gênios musicais” seriam ligados ao tráfico de drogas. O que lhe dá autoridade para definir o que seja ou não cultura? De onde ela extrai o direito de desqualificar, de uma penada, uma expressão cultural forjada na resistência de jovens à exclusão social, por meio da qual eles se afirmam como produtores culturais e agentes de cidadania? O segundo caso é a entrevista do cartunista Jaguar, que, a pretexto de criticar a idéia de “politicamente correto”, diz que os humoristas hoje estão muito certinhos porque com “essa coisa de não poder chamar crioulo de crioulo, (...) criou-se um limite e, se a gente passa um pouco, leva pito. Eu não levo mais porque sou velho e sou o Jaguar. Aí as pessoas dizem: “Ah, é o Jaguar, deixa ele” (Folha de S. Paulo, 2007). Jaguar é o mesmo que declarou orgulhar-se de ter destruído a carreira de Wilson Simonal, acusado por ele e pela turma do Pasquim de ser dedo-duro do regime militar – o que determinou o ostracismo a que Simonal foi submetido até o fim de sua vida. Por iniciativa da Ordem dos Advogados de São Paulo (OAB– SP), foi promovida, tardiamente, a sua reabilitação moral, quando foi provado
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não haver nenhum indício que sustentasse aquela acusação. No entanto, diante dessa evidência, a reação de Jaguar foi: “Ele era tido como dedo-duro. Não fui investigar nem vou fazer pesquisa para livrar a barra dele. Não tenho arrependimento nenhum” (Revista Bundas, 2002). O choque de tal declaração provocou a seguinte pergunta do jornalista Giulio Sanmartini: “(...) onde ele [Jaguar] buscou o direito de ser acusador e juiz e destruir um homem?”. Bárbara Gancia e Jaguar são exemplos de pessoas públicas que se comprazem em exercitar um poder de nomear e julgar, derivado exclusivamente de uma posição de hegemonia de classe e de raça, que lhes assegura a circulação privilegiada de suas idéias e posições, que dispensam a si mesmos o conhecimento efetivo sobre o que opinam, sentindo-se garantidos por imunidade ou complacência em caso de erros de avaliação. É daí que advém o seu poder de acusar, julgar e destruir. Para rappers, breaks, grafiteiros, considerados “bacilos” e pessoas negras tratadas como objeto preferencial do deboche de humoristas, resta indignarem-se na página de leitores(as) dos jornais ou exigirem um direito de resposta, que raramente é ofertado. Desqualificação da luta No combate que parcelas das elites nacionais travam contra as políticas de promoção da igualdade racial, elas se servem da desqualificação pública dos movimentos negros e seus parceiros e aliados, da negação do racismo e da discriminação racial, da deslegitimação acadêmica de estudos e pesquisas que, há décadas, vêm demonstrando a magnitude das desigualdades raciais e a utilização de experiências genéticas para consubstanciar a miscigenação e a negação da pessoa negra como sujeito social demandador de políticas específicas e seu direito democrático de reinvindicá-las. Estamos diante de velhas teses a serviço de novas estratégias que pretendem nos levar de volta à edílica democracia racial. Hoje, como ontem, as estratégias são as mesmas. Como nos mostrou Florestan Fernandes, “A resistência negra nas décadas de 1930, 1940 e parte de 1950 suscitou o reacionarismo das classes dominantes, que logo denunciaram o “racismo negro”! (1988). Disse Marx que a história só se repete como farsa. A originalidade do Brasil está em repetir a farsa. Como na década de 1930, parcelas das elites, dentre elas intelectuais conhecidos, organizam-se novamente para orquestrar uma reação branca a um suposto “racismo negro”, que é o sentido dado a eles às reivindicações dos movimentos negros por inclusão social mediante políticas específicas que atuem na correção das desigualdades raciais. A desqualificação ou criminalização dos movimentos sociais é uma prática autoritária consagrada na nossa tradição política. Causa espanto que seja utilizada sem cerimônia por aqueles que se manifestam em defesa dos princípios da igualdade, da democracia e do pacto republicano. Diz Demétrio Magnoli: “A Secretaria é um órgão conservador, de direita. O Estatuto cria uma vasta burocracia: eis a fonte do “otimismo” de diversas ONGs negras que PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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se autodenominam movimentos sociais. Eles estão defendendo as suas carreiras e o seu futuro político e pecuniário, às custas dos negros” (Rets, 2007). A propagação de um suposto racismo negro foi nomeada pelo sociólogo e ativista Carlos Medeiros de técnica de “fabricação do medo”. Com esta, ele ilumina o posicionamento público de certos intelectuais repentinamente atacados pela “síndrome de Regina Duarte”. Eles estão com medo: de militantes negros, da racialização da sociedade, das políticas públicas e, finalmente, da possibilidade da queda da República em função das políticas raciais. Diante do exposto, a “síndrome de Regina Duarte” de certos intelectuais requer que se busquem explicações em outros lugares. O que há a temer nesse medo é: que haja alguma disposição “escondida” em segmentos da população branca – e que somente esses intelectuais percebem ou conhecem – de defender seus privilégios, como reagiram setores da elite nacional ao projeto de Joaquim Nabuco de “emancipação dos escravos”. Proposta tímida, que ainda evitava falar em abolição. No entanto, “Apesar da moderação, o projeto foi derrotado. Não sem antes Nabuco ser sutilmente ameaçado pelos líderes escravistas. “Na nossa província, resistiremos até às armas”, afirmou o deputado Martim Francisco, de São Paulo, acrescentando que propostas como aquela podiam “concorrer para alterar e prejudicar a paz do país”.
BALANÇO Os avanços alcançados principalmente no reconhecimento da problemática da desigualdade racial ensejam a atual reação conservadora que busca, com monumental aparato, deter esse processo e, sobretudo, restabelecer os velhos mitos que nos levaram à situação atual. São neo-gilbertofreireanos, que entram em ação em ativismo de novo tipo sobre a questão racial. Na guerra que combatem contra as medidas de promoção da igualdade de oportunidades segundo a raça ou a cor, vale tudo. Na revista Veja foi publicado que: “Após a abolição da escravatura, em 1888, nunca houve barreiras institucionais aos negros no país. O racismo não conta com o aval de nenhum órgão público. Pelo contrário, as eventuais manifestações racistas são punidas na letra da lei” (Revista Veja, 2007). Alguém reconhece que é do Brasil que a revista fala? Assiste-se, portanto, neste momento, a um ativismo de novo tipo: um suposto anti-racismo que se afirma pela negação do racismo existente. Convergem nessa estratégia posições de direita e de esquerda, em que classe social ou cordialidade racial retornam aos discursos para nublar as contradições raciais. Um classismo de direita, como o defendido por Ali Kamel, insurge-se contra as evidências de discriminação racial, insistindo que pessoas negras e brancas são igualmente pobres, por isso, discriminadas igualmente. Soma-se a ele um classismo supostamente de esquerda, que o consubstancia, como na fala de Demétrio Magnoli, para quem a pauta de reivindicações dos movimentos negros é conservadora e de direita.
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Essa estratégia se beneficia também de um contexto de refração dos movimentos sociais em geral, e em particular dos movimentos negros, criando condições positivas para prosperarem velhas ideologias a serviço de novas estratégias de retorno ao passado. Essa ofensiva traz em seu bojo uma convocação à sociedade para um enfrentamento das políticas raciais. Teme-se que essa avalanche conservadora seja suficiente para amedrontar os setores governamentais alinhados com a promoção da igualdade racial e alimentar e potencializar os antagonistas, promovendo o retrocesso das políticas raciais no segundo mandato do governo Lula.
REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. CASTRO, Nadya Araújo. Trabalho e Desigualdades Raciais: hipóteses desafiantes e realidades por interpretar. In: CASTRO, Nadya Araújo; BARRETO, Vanda de Sá (Orgs.). Trabalho e desigualdades raciais. São Paulo: Annablume, A cor da Bahia, 1998, p. 25. EGRARE, Iradj. O recorte de raça no Plano Plurianual 2004-2007 com transversalidade de gênero e geração, 2007. FERNANDES, Florestan. Luta de raças e classes. In: FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. São Paulo: Revista Teoria e Debate, n. 2, março de 1988. GANCIA, Bárbara. Cultura de bacilos. In: FOLHA DE S. PAULO, edição de 16 mar 2007. HASENBALG, Carlos. Democracia racial, uma hipótese. In: TRABALHOS PARA DISCUSSÃO, n. 128, ago 2002. KAMEL, Ali. Não somos racistas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. MAGNOLI, Demétrio. In: FOLHA DE S. PAULO, edição de 12 jan 2006. MELLO, Marco Aurélio. A igualdade e as ações afirmativas. In: CORREIO BRAZILIENSE, edição de 20 dez. 2001, p. 5. MOTTA, Nelson. Entrevista com cartunista Jaguar. In: REVISTA BUNDAS, edição de 2002. O GLOBO. Coluna do Ancelmo Góes, edição de 15 jun 2007. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 107. REVISTA VEJA, edição n. 2011, de 6 jun 2007. REVISTA RETS. Entrevista com Demétrio Magnoli, edição de 24 mar. 2006. Disponível em: http://arruda.rits.org.br/rets/servlet/newstorm.notitia.apresentacao.ServletDeSecao?codigoDaSecao=10&dataDoJornal=1143223056000. Acesso em 20 out 2007. THEODORO, Mário. Os dois níveis do racismo institucional. In: JORNAL IROHIN, Brasília, ano IX, n.6, agosto/setembro 2004, p. 15-16. PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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FO TOS MARCUS VI NI ( AFROREGAEE– CANTAGALO/ RJ )
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Direito à segurança, um desafio para o Brasil
S I LV I A R A M O S Cientista social e pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes (CESeC/Ucam)
Neste artigo, será apresentado um panorama geral da violência no Brasil, especialmente da violência letal, e indicadas as principais características de sua distribuição, focalizando faixa etária, gênero, cor, classe e, principalmente, território. Serão analisadas as principais respostas da sociedade civil brasileira a esse fenômeno e indicadas quais linhas de força explicam a baixa presença de participação de organizações não-governamentais e movimentos sociais em relação às políticas de segurança e às polícias. Finalmente, serão identificadas as maiores lacunas e as experiências mais inovadoras e criativas nesse campo. No Brasil, 50 mil pessoas são assassinadas por ano. Nossas taxas de mortes violentas estão entre as mais altas do mundo há mais de duas décadas. Passamos de 11,7 homicídios por 100 mil habitantes, em 1980, para 26,9, em 2004, como mostra o Gráfico 1. Países da Europa Ocidental têm taxas inferiores a três mortes intencionais por 100 mil habitantes e os Estados Unidos encontram-se na faixa de cinco a seis mortes. Gráfico 1 – Homicídios no Brasil: números absolutos e taxas por 100 mil habitantes de 1980 a 2004
Fonte: Sistema de Informação sobre Mortalidade – Datasus. PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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IDADE, GÊNERO, COR E CLASSE: INDICADORES DE RISCO Uma característica marcante no panorama brasileiro é a concentração dos homicídios na população jovem. Na faixa etária de 15 a 24 anos, as taxas são extraordinariamente mais altas do que as verificadas para a população como um todo. A tendência, como se observa no Gráfico 2, é nacional, ocorrendo mesmo nos estados com taxas de violência letal mais baixas. Entre pessoas não-jovens, 9,6% do total de óbitos são relacionados a causas externas. Entre pessoas jovens, as causas externas são responsáveis por 72,1% das mortes. Os homicídios respondem por 39,7% das mortes de jovens de 15 a 24 anos; os acidentes de transporte respondem por 17,1%; e os suicídios por 3,6% (Wiselfisz, 2006). Em alguns estados, a taxa de homicídios de jovens ultrapassa os 100 por 100 mil habitantes jovens. Quando examinamos algumas áreas urbanas pobres, focalizando jovens, encontramos taxas de mais de 200 homicídios dolosos por 100 mil habitantes. Gráfico 2 – Taxa de homicídios por 100 mil habitantes em diferentes estados brasileiros em 2004: jovens e população total
Fonte: Sistema de Informação sobre Mortalidade – Datasus.
Sexo também é um fator explicativo importante para compreender características do fenômeno. Seguindo um padrão predominante no cenário internacional, não só as mulheres, como mostra o Gráfico 3, mas as jovens representam uma proporção pequena das vítimas de violência letal. Como se sabe, mulheres são as vítimas mais freqüentes de violências interpessoais (domésticas e conjugais) e são as principais vítimas de lesões corporais. Uma cultura machista contribuiria, portanto, não só para a quantidade assombrosa de mortes violentas entre jovens do sexo masculino, mas também para explicar o perfil da vitimização feminina.
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Gráfico 3 – Percentual de homicídios por sexo no Brasil em 2004: jovens e população total
Fonte: Sistema de Informação sobre Mortalidade – Datasus.
Paralelamente à idade e ao gênero, estudos têm identificado a existência de uma dramática concentração de mortes violentas na população negra (somatório das pessoas classificadas como pretas e pardas), indicando que a distribuição desigual de riquezas e recursos sociais (educação, saúde, saneamento) entre pessoas brancas e negras no Brasil acaba por provocar outro tipo de desigualdade, aquela na distribuição da morte violenta. Assim, são os negros e, entre estes, os mais jovens, as vítimas preferenciais da violência letal. As taxas de homicídios para homens negros são significativamente mais altas em todas as idades, a partir de 11 anos, embora muito mais acentuadas de 18 a 26 anos, como apontado no Gráfico 4. A taxa para jovens brancos de 24 anos, por exemplo, é muito alta, quase 50 por 100 mil habitantes. Porém, a taxa para jovens negros da mesma idade é ainda mais alta, chegando quase ao dobro: 90 por 100 mil habitantes, evidenciando um forte fator racial nessas dinâmicas. Significa que classe social e escolaridade também são fortes fatores explicativos para risco de morte violenta intencional de jovens do sexo masculino no Brasil. Gráfico 4 – Taxa de homicídios (por 100 mil habitantes) de homens segundo cor/raça e idade no Brasil em 2004
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Combinadas, as variáveis idade, gênero, cor e classe social também são um fator de risco para ser considerado suspeito pela polícia. Os jovens pobres, predominantemente negros, moradores de favelas e das periferias dos grandes centros são os suspeitos preferenciais da polícia. Pesquisa realizada pelo CESeC/Ucam, na cidade do Rio de Janeiro, em 2002, revelou que 57,9% das pessoas paradas pela polícia, andando a pé na rua, têm de 15 a 29 anos. Por sua vez, considerando pessoas paradas em todas as abordagens policiais, os negros sofrem revista corporal em 55% das vezes em que são abordados contra 32,6% das vezes quando os brancos são abordados (Ramos; Musumeci, 2005). A distribuição das próprias operações policiais são variáveis por bairro, predominando as abordagens a pé na rua, com revistas corporais, nas áreas pobres e blitz de automóveis, quase sempre sem revistas corporais, nas áreas mais ricas.
GEOGRAFIA DA MORTE Como se sabe, nas regiões metropolitanas do país, a criminalidade violenta cresceu predominantemente em favelas e bairros pobres das periferias urbanas. Nessas áreas, especialmente a partir da década de 1980, instalou-se o tráfico de drogas e os conflitos entre facções rivais que disputam o controle de um mercado altamente lucrativo. Também ao longo dos anos, cresceram a violência e a corrupção policiais, umbilicalmente ligadas ao tráfico de drogas. Nesses territórios, pobres e carentes de serviços públicos, registram-se os mais altos índices de violência letal. Nas cidades brasileiras mais violentas é possível identificar uma geografia da morte, onde as principais vítimas são jovens negros e pobres. A desigualdade na distribuição da violência letal entre os diversos bairros do município do Rio de Janeiro é expressiva. Os bairros da zona sul da cidade (Copacabana, Ipanema, Leblon, Lagoa, Jardim Botânico e Barra da Tijuca), onde vivem pessoas com maior poder aquisitivo, apresentam as mais baixas taxas de homicídios. Ali são comuns taxas que variam de 4,7 a 10 homicídios por 100 mil habitantes, próximas dos padrões norte-americanos. Já os bairros da zona oeste e do subúrbio, que reúnem regiões pobres repletas de favelas (Acari e Santa Cruz, Complexo do Alemão, Vigário Geral e Parada de Lucas, por exemplo), chegam a registrar taxas de até 84 homicídios por 100 mil habitantes. Essa distribuição configura a presença de dois padrões radicalmente diferentes na mesma cidade: a uma distância de 40 minutos entre os bairros mais pobres e os mais ricos, entre as pessoas mais bem-servidas pela presença do Estado e onde este se ausentou por longos anos, a ponto de grupos armados manterem controle total sobre territórios inteiros de áreas de favelas. Na prática, são dois países convivendo na mesma cidade. Também são duas polícias e duas políticas de segurança.
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Manchas territoriais de concentração de mortes violentas nos bairros pobres e nos aglomerados de favelas igualmente se evidenciam em cidades onde estudos sistemáticos têm sido desenvolvidos, como os do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) sobre a violência letal em Belo Horizonte.
JUSTIÇA CRIMINAL, POLÍTICAS DE SEGURANÇA E POLÍCIA Com quais políticas públicas de segurança o país tem respondido ao fenômeno da crescente violência urbana? Nos mais de 20 anos desde que o processo de transição da ditadura militar teve início (1985), o setor que menos progrediu em relação à modernização e à democratização foi o de Justiça Criminal, em particular o das instituições policiais (Leeds, 2005). Apenas na segunda metade da década de 1990 começaram a se registrar os primeiros esforços sistemáticos de elaboração de políticas públicas de segurança, baseados em uma perspectiva contemporânea identificada com a combinação eficiência/direitos humanos. Até então, a maioria dos governos relegava o tema às esferas corporativas das próprias polícias (Soares, 2000). O silêncio em relação à escalada de violência letal predominou também em amplos setores intelectuais, na mídia e mesmo nas organizações não-governamentais, durante a década de 1980 e parte da década de 1990. Efetivamente, nos contextos acadêmico e universitário, salvo raras exceções, é relativamente recente a criação de centros de pesquisa voltados para os temas da violência com foco em segurança pública. O perfil socioeconômico das principais vítimas da violência letal e sua baixa capacidade de pressão política podem ajudar a explicar o despertar tardio dos governos, da mídia e da sociedade civil brasileira para o tema da segurança pública e para a necessidade de se investir em modernização, controle e democratização das instituições de polícia. A maioria das polícias civis e militares nos estados da federação foi se degradando e algumas se tornaram violentas e ineficientes.
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O crime organizado – que se estrutura em torno do tráfico de armas e drogas por meio de mecanismos em diversas esferas – corrompeu amplos segmentos das corporações policiais, em certos casos atingindo desde as bases às chefias (Lemgruber; Musumeci; Cano, 2003). Há estados onde a violência policial afeta as corporações e vitimiza as populações pobres, que se vêem encurraladas entre a violência dos grupos armados de traficantes e a violência e a corrupção policiais. Segundo dados de 2006 da Secretaria de Segurança Pública, no estado do Rio de Janeiro, a polícia é responsável por 14% das mortes violentas intencionais. Os “autos de resistência” – as mortes registradas como decorrentes de confrontos com a polícia – aumentaram 280% em seis anos (de 289 em 1999 para 1.063 em 2006), denotando um crescimento extraordinário do uso da força letal pela polícia. Tal como as taxas de homicídios na cidade, a violência policial também assume uma geografia específica: concentra-se fortemente na zona oeste e no subúrbio, nas áreas mais pobres da cidade. Em 2006, os batalhões dos subúrbios do Rio (3o, 9o, 16o e 22o BPMs) mataram 357 civis enquanto os batalhões da zona sul (2o, 19o, 23o e 31o BPMs) mataram 34. A mesma desproporção havia ocorrido em 2003 (Ramos; Musumeci, 2005). A baixa presença de organizações de direitos civis nessas áreas alia-se a uma “naturalização” da idéia que conflitos em favelas com vítimas civis podem ajudar a compreender porque esses números são espantosamente elevados em algumas regiões. O fenômeno do uso excessivo de força letal pela polícia é um problema grave em vários estados da federação. Muitas polícias estaduais nem mesmo divulgam estatísticas sobre mortes ocorridas em ação. Em São Paulo e em Minas Gerais, onde há dados, políticas de redução da violência policial letal vêm sendo implementadas. Em São Paulo, as mortes em confronto com policiais caíram significativamente: de 573 em 2004 para 300 em 2005 <www.ssp.sp.gov.br>. Em Minas, tiveram pequena redução: de 103 em 2004, para 99 em 2005 (dados do Comando de Policiamento da Capital). Nesses dois estados, os governos têm igualmente desenvolvido esforços para diminuir progressivamente a violência letal em geral. As características das mortes em confronto são indicadoras das suas dinâmicas. Estudo minucioso dos autos de resistência (Cano, 1997), focalizando os anos de 1993 a 1996, na cidade do Rio de Janeiro, revelou que as vítimas são majoritariamente jovens do sexo masculino (de 15 a 29 anos, com ênfase na faixa de 20 a 24 anos) e que 64% são negros (pretos e pardos), contrastando com a presença de 39% de negros na população carioca. O estudo também mostrou que as mortes decorrentes das ações policiais concentram-se em favelas, que quase a metade dos corpos recebeu quatro disparos ou mais e que 65% dos cadáveres apresentavam pelo menos um tiro nas costas ou na cabeça – configurando casos de execuções sumárias. O fato é que, no Rio de Janeiro, a violência policial encontra-se fora de controle dos comandos superiores.
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À proporção que a “licença para matar” foi concedida aos policiais que atuam nas favelas e bairros pobres, abriu-se um amplo terreno para o crescimento da corrupção e para os chamados “acertos” ou “arregos” entre traficantes e agentes policiais (Soares; Bill; Athayde, 2005). Em relação às políticas de segurança, têm havido experiências importantes no Brasil. Recentemente, alguns municípios passaram a incorporar pesquisadores e organizações da sociedade civil na elaboração e execução de políticas públicas (Sento-Sé, 2005). O caso de Diadema (SP) – que reduziu as taxas de homicídio, roubo e furto a partir de uma política integrada de ação policial, controle de bares e programas dirigidos a jovens – é o mais emblemático, por ter tornado uma área estigmatizada da região metropolitana de São Paulo em um caso-modelo, que vem sendo copiado por muitos municípios do país (Guindani, 2005). No âmbito dos governos estaduais, ainda que as ações de redução da violência sejam fortemente concentradas nos esforços de repressão, algumas iniciativas importantes de modernização das polícias têm acontecido. O caso mais bem-sucedido é o de Minas Gerais: há alguns anos, a Polícia Militar mantém convênio com o Crisp para monitoramento da criminalidade. Em 2005, a Secretaria de Defesa Social criou o Instituto de Gestão em Segurança Pública (Igesp), que integra as polícias com órgãos do sistema de justiça criminal (Ministério Público, varas da infância, sistema penitenciário etc.). Em reuniões mensais, comandantes responsáveis pelas áreas prestam contas de metas estabelecidas e definem novos objetivos a serem cumpridos, nos moldes do CompStat, de Nova York <www.nypd.gov>. O governo de Minas implantou, também, em 16 favelas de Belo Horizonte e região metropolitana um programa integrado de policiamento e ações de prevenção focalizadas em jovens de 15 a 24 anos, chamado Fica Vivo. Graças a essas ações, as taxas de homicídio começaram a declinar em 2005, em movimento contrário ao de 13 anos anteriores, quando essas taxas só cresciam. Em São Paulo, desde 2000, os homicídios mostram um declínio significativo, tendo ocorrido, até o fim de 2006, uma redução da ordem de 50%. As razões para essas quedas têm sido muito debatidas, mas pouco consenso foi obtido até este momento. Entre as principais ações, mencionam-se: forte redução de armas em circulação, graças à campanha do desarmamento e às apreensões feitas pela polícia; investimentos contínuos, nesses cinco anos, de modernização e treinamento da polícia, em especial na delegacia de homicídios; investimentos em segurança pública; aumento da taxa de encarceramento; programas de redução de homicídios por grandes municípios. Em âmbito nacional, em 2002, durante o processo das eleições presidenciais, o Partido dos Trabalhadores (PT) apoiou a elaboração do Programa Nacional de Segurança, com amplo processo de consultas e a participação de especialistas de vários estados. Pela primeira vez, o país contou com um programa que propunha combinar políticas sociais e preventivas com políticas policiais PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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e repressivas e controle e modernização das polícias, com o desenho do Sistema Único de Segurança Pública. Contudo, passado o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, uma parte ínfima das propostas foi cumprida e o programa foi virtualmente abandonado. A Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), criada na gestão de Fernando Henrique Cardoso, operou recursos ainda menores que os do governo anterior. O Fundo Nacional de Segurança Pública, para investimentos em todo o país, contou, em 2006, com aproximadamente R$ 170 milhões. Em contraste, apenas no estado de São Paulo, o orçamento da segurança pública correspondeu a R$ 6 bilhões. Se planejamentos e ações integradas de segurança pública em âmbito nacional ocorrerão ou não, em grande medida, isto dependerá da capacidade de pressão que a sociedade for capaz de exercer para que os governos, nas três esferas, reconheçam a urgência dos temas da violência e da segurança pública. Com raras exceções, as respostas governamentais ao fenômeno da violência – independentemente de orientação partidária – parecem ser, ainda nesses primeiros anos do novo século, a lentidão e baixa qualificação. Em larga medida, prevalece a naturalização da violência, favorecida pela quase incapacidade de vocalização de suas principais vítimas, as populações marginalizadas. A despeito de experiências importantes em alguns estados, predominam, como padrão em todo o Brasil, instituições policiais que não fizeram a transição da proteção do Estado, como era seu papel na ditadura militar, à proteção de cidadãs e cidadãos, especialmente as pessoas pobres, que, muitas vezes, são tratadas como inimigas (Leeds, 2006). Em termos nacionais, inexiste qualquer diretriz que possa ser chamada de política nacional de segurança pública.
ESTATUTO DO DESARMAMENTO E MÍDIA Em 2003, entre as respostas da sociedade civil, um importante passo foi dado para reduzir as mortes por armas de fogo. Sob a liderança de organizações não-governamentais – que mobilizaram grandes manifestações públicas, a articulação com parlamentares comprometidos com políticas de paz e o apoio de parte importante da mídia – foi aprovado no Congresso Nacional o Estatuto do Desarmamento. Este prevê dispositivos para controlar a venda e a posse de armas de fogo e proibir o porte. Milhares de armas foram recolhidas (segundo o Instituto Sou da Paz, 430 mil armas de fogo foram entregues até o fim de 2005), em uma inédita campanha nacional em favor da paz. Em outubro de 2005, um plebiscito nacional perguntou se a população concordava com a proibição da venda de armas de fogo em território nacional, a maioria disse “não”. A despeito do resultado negativo dessa etapa da implementação do estatuto, o fato de uma “política de segurança” ter se iniciado em organizações da sociedade civil, ter recebido a atenção dos meios de comunicação, ter saído vitoriosa em votação no Congresso e se tornado política de Estado pode ser considerado um caso
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paradigmático na área de controle da violência no Brasil. Contudo, certamente, ainda falta um balanço sobre quais foram os principais erros dos proponentes do desarmamento, e as principais linhas de força em jogo, nessa campanha em que uma vitória fácil que se previa tornou-se uma derrota retumbante. É digno de nota o importante papel que os meios de comunicação têm desempenhado no agendamento de políticas públicas de segurança e no controle externo das polícias (Ramos; Paiva, 2005). A despeito dos problemas que ainda persistem na cobertura sobre criminalidade e violência, os principais jornais do país fizeram profundas mudanças nos últimos anos, alterando, significativamente, o estereótipo do “repórter policial”. Nos grandes jornais, os repórteres que cobrem a área de criminalidade e segurança pública não são exclusivos da área de “polícia” e buscam, crescentemente, ouvir fontes não-policiais nas matérias investigativas. Além disso, diversos jornais se tornaram verdadeiras ouvidorias de polícia, sendo as únicas fontes de denúncia da violência ou corrupção policiais. Os jornais têm sido muito importantes também para pressionar governos a agendarem políticas de segurança na pauta prioritária das políticas governamentais.
NOVOS MEDIADORES No contexto das respostas civis à violência, pode-se vislumbrar um importante e recente processo de mobilização de jovens de favelas e bairros de periferia. São projetos ou programas locais baseados em ações culturais e artísticas, freqüentemente desenvolvidos e coordenados pelos próprios jovens. Exemplos dessas iniciativas são os grupos Olodum e Timbalada, em Salvador; o AfroReggae, o Nós do Morro, a Cia. Étnica de Dança e a Central Única de Favelas (Cufa), no Rio de Janeiro – além de centenas de agrupamentos mobilizados em torno da cultura hip hop nas periferias de São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife, Brasília e São Luís. Por meio de diferentes linguagens, como música, teatro, dança e cinema, esses grupos expressam idéias e perspectivas da juventude das favelas. Ao mesmo tempo, buscam produzir imagens alternativas aos estereótipos da criminalidade associados a esse segmento da sociedade e “disputam” os jovens dessas áreas com o tráfico de drogas, exercendo uma sedução ligada ao glamour da arte, à visibilidade e ao sucesso. No que diz respeito à violência e à criminalidade, a maioria dessas iniciativas se equilibra entre a denúncia da violência policial, de um lado, e a busca de autonomia em relação ao despotismo dos grupos armados de traficantes, de outro. Alguns desses grupos procuram exercer papéis de mediadores na guerra entre facções do tráfico de drogas e assumem, abertamente, a missão de “tirar jovens do tráfico” (Neat; Platt, 2006; Soares; Bill; Athayde, 2005; Bill; Athayde, 2006). Mas essa não é, necessariamente, uma regra comum a todos. Por exemplo, o grupo Nós do Morro, do Rio de Janeiro, recusa a discussão sobre o tráfico de drogas e não aponta qualquer PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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compromisso associado à criação de alternativas à criminalidade entre seus objetivos <www.nosdomorro.com.br>. Outras iniciativas, por sua vez, assumem posições até mesmo ambígüas em relação ao mundo do crime. É o caso de grupos de hip hop que se identificam com os manos presos e se concentram na denúncia de que a criminalidade é associada, como estereótipo, aos jovens negros das periferias. Tais iniciativas – aqui identificadas como novas mediações nas respostas à violência – não são, fique claro, as únicas nem, necessariamente, as mais eficientes para tirar jovens do tráfico. Hoje, um número incontável de grupos religiosos, especialmente de orientação pentecostal, dedica-se à conversão religiosa de jovens que ingressaram no crime. Além disso, em favelas e bairros pobres proliferam escolinhas de futebol e programas esportivos voltados para combater o ócio, descobrir talentos e criar alternativas profissionais. Mesmo no campo da cultura desenvolvem-se inúmeros projetos de dança, circo, música e teatro, tanto governamentais como privados, voltados para o lazer e a profissionalização de adolescentes. As marcas específicas dos novos mediadores são: a liderança dos grupos pelos próprios jovens oriundos das favelas e a produção de um discurso na primeira pessoa; a capacidade de expressar signos com os quais os jovens das favelas se identificam e, ao mesmo tempo, de criar modelos que recusem as imagens tradicionais dos jovens das favelas; a criação de novas metáforas por força das histórias de vida; a capacidade de transitar na grande mídia e na comunidade, entre diferentes classes socais, facções e governos – transitar entre o local e o universal. Por último, os(as) jovens mediadores não podem ser tomados como exemplos de espíritos contemporâneos sintonizados com os valores da modernidade. Formam grupos heterogêneos, mas, predominantemente, masculinos. Evidentes traços de misoginia ou de homofobia podem ser observados nas práticas e nas construções discursivas de vários desses grupos, assim como na cultura hip hop (Júnior, 2003; Soares; Bill; Athayde, 2005). A despeito de todos os problemas, os grupos de jovens de favelas têm sido a principal fonte de denúncia, reflexão e discussão, em âmbito nacional, sobre as relações de jovens com a polícia, o racismo policial e a discriminação que jovens das favelas e das periferias sofrem diariamente – não só nas relações com a polícia, mas com empregadores, a grande mídia e todos que se baseiam nos estereótipos de jovens da periferia como associados à criminalidade e à desonestidade. O projeto Juventude e Polícia, desenvolvido pelo AfroReggae, em Minas Gerais, em parceria com o CESeC/Ucam, é o exemplo mais expressivo das possibilidades abertas pelas intervenções diretas de movimentos socais em processo de adoção de políticas de segurança democráticas e contemporâneas e em processos de reforma da polícia (Ramos, 2006). Em 2002, a Banda AfroReggae produziu um videoclipe para a música “Tô Bolado” (que conta a história da chacina de Vigário Geral), com sucessivas imagens de violência policial, configurando uma franca oposição do AfroReggae à polícia). No mesmo ano, um dos
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membros-fundadores do grupo foi alvejado por um tiro de fuzil, em operação policial comandada pelo Batalhão de Operações Especiais da PM (Bope), do Rio de Janeiro, dentro de Vigário Geral. Quase todos os jovens ligados ao AfroReggae tinham experimentado situações de violência, corrupção e humilhação por parte de policiais, compondo um vasto repertório de ódios e ressentimentos que constituía uma caudalosa cultura antipolícia no grupo. Surpreendentemente, no final daquele ano, a coordenação da entidade procurou o CESeC/Ucam, e disse que gostaria de elaborar um projeto com a polícia (e não contra a polícia, como seria de se esperar). Um projeto de invasões culturais nos batalhões foi apresentado à Fundação Ford, que o aprovou imediatamente. As negociações com a Polícia Militar do Rio de Janeiro se frustraram após meses de tentativas e não foi possível desenvolver a proposta naquele estado. Em 2004, a Secretaria de Defesa Social e a Polícia Militar de Minas Gerais convidaram o AfroReggae e o CESeC para desenvolverem o projeto nos batalhões de Belo Horizonte. O projeto foi desenvolvido durante todos os anos subseqüentes e, em 2007, encontra-se em processo de institucionalização pela PMMG, que o transformará em um programa regular de polícia.
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Aspectos inovadores Em geral, esses grupos e projetos caracterizam-se por quatro aspectos inovadores no repertório de princípios das entidades de direitos humanos, das ONGs e do campo da esquerda, na qual as iniciativas da sociedade civil brasileira tradicionalmente se inscrevem, descritos a seguir. 1. Estão interessados no mercado e, ao contrário das ONGs tradicionais, buscam alternativas de renda e emprego para seus(suas) integrantes, além de inserção no mercado e profissionalização. Nesse sentido, criam uma cultura oposta à do “sem fins lucrativos”, que caracteriza as ONGs brasileiras (Landim, 1988). Alguns grupos operam com duas identidades jurídicas simultâneas: uma como ONG (a partir da qual recebem doações de fundações internacionais e nacionais) e outra como empresa cultural (para contratos de shows, discos ou filmes). Embora reafirmem o pertencimento ao campo do trabalho social, alguns grupos procuram depender cada vez menos das doações internacionais, buscando sustentação como empresas culturais que disputam o mercado. 2. Têm um forte componente de investimento nas trajetórias individuais e nas histórias de vida. Valorizam o campo simbólico da subjetividade e investem na formação de artistas e líderes, cuja fama passa a servir como modelo. Em uma contra-operação de criação de estereótipos, procuram construir imagens fortes de jovens favelados que, contrariando a profecia, tornaram-se cineastas, artistas de teatro ou músicos. Em outras palavras, nesses grupos, as estratégias de mídia, o
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sucesso e a fama são entendidos como ingredientes políticos de ativismo. Usam, insistentemente, a grande mídia e buscam parcerias com grandes conglomerados de comunicação, aparecendo não só como artistas, mas como lideranças que falam em nome de jovens das favelas. Sendo assim, eles se afastam do modelo sindical e associativo de esquerda, no qual a cultura do coletivo impera sobre os desvios individualistas. 3. Têm um forte componente de afirmação territorial, sendo freqüente que os nomes dos grupos, as letras das músicas, as camisetas e as roupas reafirmem, permanentemente, os nomes das comunidades de origem (Vigário Geral, Vidigal, Cidade de Deus, Pelourinho, Candeal, Alto Vera Cruz, Alto do Pina etc.). Curiosamente, a intensa e reiterada afirmação de compromisso territorial não se traduz em bairrismo ou nacionalismo. Combinam o amor à comunidade com a adesão aberta a signos da globalização (CocaCola, Nike etc.) e produzem conexões entre o local e o universal via internet, sites e revistas. Atribuem alta prioridade aos intercâmbios com outras comunidades (incluindo jovens de classe média), às viagens nacionais e internacionais. 4. Assumem um forte componente de denúncia do racismo e de afirmação racial negra, seja nas letras das músicas, nas indumentárias ou nos nomes (AfroReggae, Cia. Étnica, Negros da Unidade Consciente, Mano Brown, Zé Brown etc.). Sem necessariamente pertencerem ao movimento negro, esses jovens se referem, permanentemente, em músicas ou entrevistas, ao fato de serem negros e favelados. A negri-
tude e o pertencimento à periferia encontram uma fórmula curiosa que combina denúncia com orgulho (racial e territorial), muitas vezes cantada e dançada em uma explosão de alegria, como ocorre com o Olodum, a Timbalada e o AfroReggae. Isso os situa em posição oposta à do silêncio sobre a problemática da desigualdade racial (que predomina nas expressões culturais tradicionais, como o samba, e nas expressões culturais jovens) e, ao mesmo tempo, em uma posição diferente da tradicional denúncia do racismo usada pelo movimento negro, baseada na idéia de vitimização. As expressões “auto-estima” e “atitude” são as que melhor definem, em linguagem nativa, a idéia que se pretende forjar novas imagens associadas a jovens negros(as) das favelas. Juntamente com o fenômeno de criação das ONGs locais, identificado por analistas das favelas (Pandolfi; Grynzspan, 2003), esses projetos e iniciativas – heterogêneos e não articulados entre si, mas que crescem, consistentemente, em várias cidades – vêm se tornando importantes, não só como pólos de construção de uma cultura alternativa ao tráfico, mas como mediadores, como tradutores entre a juventude das favelas, de um lado, e governos, mídia, universidades e, muitas vezes, atores internacionais, como fundações e agências de cooperação, de outro. Estabelecem pontes entre os mundos fraturados representados pela cidade formal e pela favela. Freqüentemente, são os únicos pontos de contato para quem pretende entender o que se passa com jovens moradores(as) de bairros pobres das cidades.
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RESPOSTAS E PERSPECTIVAS Organizações da sociedade civil brasileira, especialmente aquelas associadas a movimentos sociais, foram decisivas para a construção de políticas públicas de respostas à Aids, à saúde da mulher e à reforma psiquiátrica, para dar exemplos no campo da saúde. Também em relação às políticas ambientais, ONGs e ativistas socais foram e têm sido importantes na construção de respostas brasileiras no setor. No entanto, no campo da segurança pública, ainda predomina a pequena participação por parte da maioria dos atores da sociedade civil organizada nas discussões sobre reforma das polícias, desarmamento, políticas de segurança e outros temas centrais para a democracia brasileira. Provavelmente, a tradição de esquerda desses atores, combinada com heranças da luta contra a ditadura, quando a polícia era vista como parte do aparelho repressivo do Estado, têm sido influências que ajudam a explicar essa omissão ou desinteresse. Além das organizações de jovens de favelas, alguns segmentos dos movimentos sociais, como o movimento homossexual, têm feito importantes avanços, como a exigência de policiamento e proteção respeitosa e adequada às especificidades da homofobia. Em abril de 2007, entidades do movimento homossexual, com apoio da Secretaria Especial de Direitos Humanos (Sedh) e da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), realizaram, no Rio de Janeiro, o primeiro Seminário Nacional de Segurança Pública e Combate à Homofobia. Nesse encontro, reuniram policiais das 27 unidades da federação, gestores de segurança pública, especialistas, parceiros acadêmicos e ativistas gays, lésbicas e transgêneros de todo o país. Tendo sido um primeiro passo no sentido de aproximar a agenda do movimento homossexual à agenda de reformas da polícia, o encontro foi extremamente positivo e significou um passo histórico. Tudo indica que o movimento homossexual desenhou uma espécie de método que pode ser usado por outros movimentos no futuro. O movimento de mulheres, que teve ativa participação na adoção de um modelo considerado de vanguarda internacional em reformas de polícia, as Delegacias de Atendimento à Mulher, concentrou seus esforços na aprovação da Lei Maria da Penha – que altera as bases de funcionamento não só da polícia, mas de todo o sistema de justiça criminal (polícias, MP, justiça e sistema penitenciário). Contudo, várias questões não relacionadas especificamente à violência contra a mulher têm ficado de fora das agendas feministas, principalmente as da violência letal – que atinge, preferencialmente, pessoas do sexo masculino – e as da reforma da polícia. O movimento negro também deveria estar diretamente implicado no tema da violência, considerando que as variáveis raciais estão fortemente presentes na identificação dos jovens negros moradores da periferia como as principais vítimas e os principais autores de violência. Da mesma forma, o contingente policial brasileiro é predominantemente negro, sendo o racismo institucional um problema ainda mais complexo entre policiais negros (Ramos; Musumeci, 2005).
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Mas, nos últimos anos, pouco tem sido agregado de participação de organizações comprometidas com a luta contra as desigualdades raciais no campo de democratização das polícias. As grandes ONGs, que no Brasil foram decisivas para criar agendas na vida política brasileira, como a luta contra a fome, a ética na política ou a responsabilidade social de empresas, permanecem, em grande medida, defensivas em relação aos temas da segurança pública e da polícia. Implicados na tragédia da violência como principais vítimas e como principais autores, jovens das periferias terão, necessariamente, um papel decisivo nas respostas para reduzi-la. Alguns grupos, na condição de novos mediadores, parecem demonstrar, ainda que localizadamente, ser possível oferecer respostas criativas em um campo com pequena tradição participativa de entidades civis. Tais novidades não deveriam ser desprezadas por quem pretende acompanhar as saídas que a sociedade brasileira vai produzir nos próximos anos para enfrentar a violência e construir caminhos para a segurança e a justiça.
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RAMOS, Silvia; PAIVA, Anabela. Mídia e violência: como os jornais retratam a violência e a segurança pública no Brasil. In: Boletim Segurança e Cidadania. Rio de Janeiro: CESeC/Ucam, v. 9, p. 1-16, 2005. RAMOS, Silvia; MUSUMECI, Leonarda. Elemento suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. RAMOS, Silvia. Juventude e polícia. In: Boletim Segurança e Cidadania. Rio de Janeiro: CESeC/Ucam, v. 5, n. 12, 2006. SENTO-SÉ, João Trajano. Prevenção da violência: o papel das cidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. SOARES, Luiz Eduardo; BILL, MV; ATHAYDE, Celso. Cabeça de porco. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. SOARES, Luiz Eduardo. Meu casaco de general: quinhentos dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2006: os jovens do Brasil. Brasília: Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura, 2006.
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Direitos humanos, desigualdades e contradições
PAULO CÉSAR CARBONARI Coordenador nacional de Formação do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), mestre e professor de Filosofia
E aprendi que se depende sempre De tanta, muita, diferente gente Toda pessoa sempre é as marcas Das lições diárias de outras tantas pessoas. (Gonzaguinha, “Caminhos do Coração”)
A compreensão da desigualdade que marca profundamente a sociedade brasileira é um exercício difícil, sobretudo se nos propusermos a uma abordagem que exceda à descrição factual e caminhe na direção de refletir sobre as motivações fundamentais. O exercício fica ainda mais difícil se nos propusermos a fazer a leitura sob a ótica dos direitos humanos. A dificuldade se nos configura como desafio de ensaiar uma leitura, dando por conhecidas diversas realidades subjacentes. Por dever metodológico, lembramos que uma leitura é sempre e somente uma leitura e não a leitura. É sempre em perspectiva, interessada, ideológica (no bom sentido). É sempre, e nunca além disso, mais uma palavra. Sendo assim, desde sua origem, está aberta ao diálogo, à crítica. Este é o espírito que nos move a tomar parte do diálogo proposto sobre uma agenda para o Brasil. A construção da reflexão se socorre em vários subsídios. Por isso, para algumas pessoas pode parecer repetitiva e até remissiva. Mesmo assim, optamos por fazê-la desta forma, uma espécie de reforço à memória em uma abordagem diferente para as mesmas questões. O tema que nos foi proposto será refletido nos seguintes pontos: o primeiro se dedica a elucidar o enfoque da leitura; o segundo se dedica a apresentar, ironicamente, algumas questões, que são mais contradições da situação; o terceiro se dedica a identificar o que entendemos como desafios programáticos para subsidiar a luta pelos direitos humanos. A leitura da relação entre desigualdade e direitos humanos toma como objeto histórico a desigualdade e os direitos humanos como um enfoque de leitura. Por isso, antes de mais nada, convém que coordenemos o foco de nossa leitura, expondo elementos que balizarão a atenção que daremos à desigualdade. PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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INTERAÇÃO MULTIDIMENSIONAL O núcleo dos direitos humanos radica-se na construção de reconhecimento. Dizer isso significa posicionar os direitos humanos como relação – antes de posicioná-los como faculdade dos indivíduos. Significa dizer que mais do que prerrogativa disponível, direitos humanos constituem-se em construção que se traduz em processo de criação de condições de interação multidimensional. Esquematicamente, a interação dá-se em planos ou dimensões diversas e múltiplas: interpessoal (singular), grupal-comunitária (particular), genéricoplanetária (universal), conjugando cotidiano e utopia, cultura e natureza, ação e reflexão, entre outras. Em outras palavras, os direitos humanos nascem da alteridade, nunca da mesmice ou da mesmidade. Em termos históricos, os direitos humanos afirmam-se pela luta permanente contra a exploração, o domínio, a vitimização, a exclusão e todas as formas de apequenamento do humano. Constituem a base das lutas pela emancipação e pela construção de relações solidárias e justas. Por isso, o processo de afirmação dos direitos humanos sempre esteve, e continua, profundamente imbricado às lutas libertárias construídas ao longo dos séculos pelas pessoas oprimidas e vitimadas para abrir caminhos e construir pontes de maior humanidade. Isto porque, a realização dos direitos humanos é um processo histórico, assim como é histórico seu conteúdo (Carbonari; Kujawa, 2004). O conteúdo dos direitos humanos pode ser circunscrito sob dois domínios, ambos como racionalidade prática (embora não exclua aspectos de natureza teórica): um normativo (ético e jurídico), outro político. O conteúdo normativo contribui para determinar o agir. Quando dizemos que o normativo se desdobra em ético e jurídico, pretendemos localizar os direitos humanos em um intervalo – como reserva (Apel, 2004) – crítico entre a Ética e o Direito –, mesmo que muitas posições insistam em tê-los como éticos ou políticos. Em nosso entendimento, localizá-los em um ou outro destes extremos significa reduzir seu conteúdo. Comumente, encontram-se posições que insistem em advogar a centralidade do aspecto jurídico (Habermas, 1997). Todavia, todo o processo de positivação de direitos é também de seu estreitamento. Contraditoriamente, toda institucionalização dos direitos gera condições, instrumentos e mecanismos para que possam ser exigidos publicamente, mas também tende a enfraquecer a força constitutiva e instituinte, como processo permanente de geração de novos conteúdos, de novos direitos e de alargamento permanente do seu sentido. Ademais, a positivação dos direitos não significa, por si só, garantia de sua efetivação; por outro lado, se não fossem positivados, haveria ainda maior dificuldade, já que a sociedade não disporia de condições públicas de ação. No sentido ético, direitos humanos constituem-se em exigências basilares referenciadas na dignidade humana dos sujeitos de direitos. Significa dizer que não são transacionáveis em quaisquer circunstâncias e, ao mesmo tempo, condições
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postas a toda efetivação histórica (PUC/RS, 2007). Por isso, insistimos em dizer que direitos humanos, sob o ponto de vista normativo, estão num intervalo crítico entre Ética e Direito. O aspecto político dos direitos humanos nos remete para dois desdobramentos: o primeiro contempla os aspectos necessários a sua realização; o segundo denota uma carga de escolhas necessárias. No primeiro sentido, os direitos humanos são entendidos como parâmetro dos arranjos sociais e políticos, visto que sua realização (ou não) é indicativa da qualidade política e social da vida de um povo. A realização dos direitos humanos, como responsabilidade fundamental do Estado – que deve garantir, respeitar, promover e proteger todos os direitos, além de reparar as violações – põe-se como tarefa política – neste sentido, concreta, cotidiana e, ao mesmo tempo, utópica. Assim, o Estado passa a se constituir no espaço público por excelência, a quem cabe desenvolver ações (políticas públicas, com o perdão da redundância, já que seria impossível qualquer política que não fosse pública) pautadas pelos direitos humanos: os direitos humanos, por um lado, ao limitarem o poder do Estado, exigem que supere a posição de soberano plenipotenciário que dirige a cidadania (ou a não-cidadania) e seja entendido como dirigido pela cidadania e para a cidadania; por outro, exigem do Estado que seja agente realizador (nunca violador, como é comum em nossas plagas) dos direitos – é seu dever fundamental realizar direitos. Em matéria de direitos humanos, a ação política estaria centrada na presença de todos os agentes, tanto na deliberação como na implementação, como sujeitos (autores, portanto, nunca somente atores). Significa que a cidadania em geral, e especialmente a cidadania ativa e organizada, ganha centralidade fundamental no processo político. É ela instituinte de forma permanente. Note-se que é da constituição fundamental da cidadania ser plural. Há uma diversidade constitutiva da cidadania que não a deixa ser enquadrada em modelos simplificadores e negadores; antes, exige a visibilidade e a presença dos diversos no espaço comum. Os direitos e a participação da cidadania no processo político, antes de ser uma concessão, são direitos – para lembrar da já clássica expressão de Hannah Arendt da cidadania como direito a ter direitos. A dimensão política dos direitos humanos convoca todos os agentes à ação. No segundo sentido, a realização dos direitos humanos exige escolhas políticas. O primeiro aspecto da escolha remete para a dimensão da garantia e da promoção dos direitos humanos. A base da escolha remete para a decisão que dá primazia às pessoas, em detrimento das coisas, dos bens, do patrimônio (Herrera Flores, 2000; Lima Jr., 2001). Em termos concretos, significa vocacionar o processo de desenvolvimento da sociedade, centrando-o na pessoa, o que torna secundárias as relações privadas, de mercado, de propriedade e de patrimônio a serviço das pessoas – os modelos capitalistas de desenvolvimento em geral modelam as vontades para que entendam a escolha pelas coisas como uma escolha pelos direitos humanos. PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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O segundo aspecto da escolha remete para a dimensão da proteção e da reparação dos direitos humanos. A base da escolha remete para o reconhecimento da existência de seres humanos em situação de maior vulnerabilidade (o que já é, de alguma forma, indicação de desigualdade), além do reconhecimento de que existem violações dos direitos que geram vítimas – sejam as vítimas sistêmicas da histórica exploração e expropriação, sejam as vítimas, hoje banalizadas, da violência. Vítimas existem em conseqüência da negação de direitos, de sua não-realização. Vítimas são todos os seres humanos que estão numa situação na qual é inviabilizada a possibilidade de produção e reprodução de sua vida material, de sua corporeidade, de sua identidade cultural e social, de sua participação política e de sua expressão como pessoa, enfim, de seu ser sujeito de direitos (Dussel, 1998; Dussel, 2001; Ifibe, 2006). Vítimas e grupos vulneráveis existem porque a reprodução da vida (humana e em geral) está interditada pela postura predatória, patrimonialista, privatista e individualista; porque vale mais o “poder de compra” – capacidade de consumo – do que a pessoa (às vezes, tão ou mais descartável que as coisas); porque a racionalidade hegemônica é cínica e ignora as vítimas e as alteridades, é a racionalidade calculista e instrumental, essencialmente concorrencial – o outro é “inimigo”; porque o crescimento das “burocracias privadas e privatistas” constrange os Estados (e a cidadania) e inviabiliza a atenção aos direitos, pondo-os a serviço da segurança da reprodução do próprio capital e da manutenção dos interesses privados – sobretudo das transnacionais – em detrimento das demandas públicas e universais por direitos, que passam a ser entendidas puramente como serviços. E, finalmente, porque as posições contestatórias ou mesmo os problemas graves e comuns a todos (como a questão ambiental) são entendidos como desajustes sistêmicos a serem absorvidos (como controle de risco) ou simplesmente eliminados, combatidos (vide a criminalização da luta social). Reconhecer a existência de vítimas e de grupos vulneráveis exige posicionar a ação no sentido de protegê-los e repará-los. Todavia, isso, de longe, pode ser pautado por posturas que se traduzem em clientelismos e paternalismos de todo o tipo.
O BRASIL E SUAS “OPÇÕES” A segunda parte da reflexão dedica-se à identificação das contradições fundamentais que ainda aguardam respostas. Diríamos que são aqueles pontos cruciais da agenda de direitos humanos que persistem. As transições vividas pela sociedade brasileira nos últimos anos se configuram quase que como partidas de um lugar para um não-lugar, ou para lugar algum, que seja efetivamente novo e que abra espaço para a justiça social e a efetivação dos direitos humanos. Nesse sentido, a problemática brasileira dos direitos humanos é mais persistente do que emergente – mesmo sabendo que sua persistência se apresenta como emergência e indica a urgência de seu enfrentamento, sobretudo se a pretensão estiver calcada na busca efetiva de sua realização na vida de cada uma e de cada um dos brasileiros(as).
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Mais do que descrever as questões – o que já fizemos em outras oportunidades (Ceris, Mauad, 2007; Misereor et al, no polo) –, vamos nos ater a enunciar questões que ajudem a refletir sobre a situação. O alerta sobre a desigualdade estruturante, que constitui um fosso que cinde a sociedade brasileira, já é antigo e foi diagnosticado por Machado de Assis, no início do século passado, quando dizia que um é o Brasil oficial e outro é o Brasil real. Abordaremos as questões com uma carga, talvez exagerada, de ironia, recurso clássico – Sócrates é um bom exemplo – para “desnudar” e abrir o diálogo. Pela desigualdade A desigualdade não é um fenômeno circunstancial no Brasil, seja sob o aspecto da organização social, econômica, política ou cultural. Parece ser uma opção estruturante da vida brasileira, que se reproduz como estratégia de integração (ou de desintegração) social. Dois exemplos são plásticos para tal compreensão. A colonização eliminou indígenas – processo ainda comum em nossos dias – por terem sido considerados inaptos e renitentes à submissão às formas de trabalho. Em troca destes, foi-se à África. A escravidão separou os “bem-nascidos” do trabalho e submeteu ao trabalho, à força, milhões de expatriados, comercializados como “peças” (coisas). A herança da Casa Grande e Senzala, como diagnosticou Sérgio Buarque de Hollanda, não foi resolvida como integração social e cooperação, com o advento da abolição – aliás, uma das últimas no continente. Pelo contrário, a estratégia do branqueamento novamente optou por manter as elites apartadas do trabalho e por atrair milhões de imigrantes europeus (depois, asiáticos) para substituir a mão-de-obra negra nas lavouras, depois convocada massiçamente às cidades. Os milhares de negros africanos e seus descendentes foram, literalmente, descartados. O mito da democracia racial contribuiu para amalgamar o fosso, construindo a idéia de que a cordialidade é característica das relações: racismo: isto não existe, é conversa de negros desajustados – o discurso é exatamente o mesmo hoje, quando entra em pauta o Estatuto da Igualdade Racial ou as cotas para o ingresso de afrodescendentes nas universidades, por exemplo. O Brasil optou por (não) integrar negros e indígenas. Aqui está uma das raízes da desigualdade. O sexismo se reproduziu de forma aviltante para as mulheres, consideradas “necessárias” à reprodução biológica, não mais do que isso. A mesma separação que reduziu o espaço de vida das mulheres ao privado, enquanto homens (brancos e “bem-nascidos”) faziam a vida pública, mantém-se como diferença crassa de remuneração entre mulheres e homens no trabalho, na baixíssima presença de mulheres em postos de direção da política e da economia, por exemplo. Do mundo da casa, as mulheres, aceitas no trabalho, foram confinadas a tarefas extensivas às do lar, como o cuidado da casa dos outros (trabalho doméstico), de crianças, pessoas idosas e com deficiência (serviços sociais em geral), para ficar em tipos emblemáticos. A força da violência doméstica e sexual, a qual milhões de mulheres são diariamente submetidas, é não mais do que uma versão perversa do sexismo machista que separa as mulheres da integração cooperativa da sociedade. PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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Portanto, não é de estranhar que a pobreza e a miséria, manifestações generalizadas da desigualdade – e da violação sistemática dos direitos humanos – nunca podem ser tomadas apenas de forma genérica. No Brasil, têm cor e sexo. Ademais, tentativas de sua superação – e nos últimos anos o esforço para tal tem sido óbvio – redundam insuficientes, visto que, em geral, parecem chegar a resultados positivos na redução da desigualdade nos indicadores gerais, porém, mantêm-se praticamente inalteradas quando lidas com cor e sexo. Honestamente, é difícil de acreditar que o Brasil já fez uma opção fundamental pela superação da desigualdade – mantendo-se vazia a consagrada expressão liberal da igualdade de todas as pessoas perante a lei. Um olhar macro-histórico (e também micro-histórico) evidencia exatamente o contrário. O problema da desigualdade continua sendo um problema para pessoas mais fracas, que nunca saíram do lugar onde nasceram (nem mesmo para registrar-se ou para serem registradas), que ainda não conhecem os Estados Unidos ou a Europa. Problema delas! Afinal, é patente sua falta de iniciativa, sua preguiça congênita. Parecem vocacionadas à pobreza. Quando se levantam para exigir lugar na sociedade, fazem-no de forma equivocada – usam a força, ocupam a propriedade privada, querem ficar em lugares que atrapalham grandes e necessários projetos de desenvolvimento, querem cotas, reparação, cadeia para maridos e companheiros – daí ser legítima a repressão, a criminalização... a eliminação. É incrível como se arranjam motivos para que a sociedade as mantenha (ou as elimine), de forma legítima, fora da sociedade como um problema social (Ribeiro, 2000; Locke, 1978; Kant, 1995; Dussel, 1993). A minoridade das minorias, a rigor, é obra delas mesmas, visto ainda não terem tomado em suas próprias mãos a tarefa da maioridade. Cinismo crasso, hipocrisia pura, nomes que traduzem posturas e leituras deste tipo. Cinismo e hipocrisia estão na base da opção pela desigualdade, que é também uma opção contra os direitos humanos, como universais – eles até existem, mas não para certos tipos, que só supostamente são humanos – este discurso é tão significativo que é exatamente o mesmo que esteve na base das justificativas de Auschwitz. Pela violência A violência também não é um fenômeno social contemporâneo – por mais que agregue facetas e crueldades particulares em nossos tempos. É marca estruturante das relações sociais, políticas, econômicas e culturais brasileiras. Os mesmos aspectos apontados como bases da desigualdade são mostras da recorrência histórica da violência. O Brasil foi constituído na base da violência – da cruz e da espada (Vieira, 1975; Suess, 1992). A violência, assim como a desigualdade, tem cor, idade, sexo e classe. São os homens negros, jovens e pobres as maiores vítimas da violência atual e também o maior contingente da população carcerária – mesmo nas instituições socioeducativas para adolescentes (Koinonia, 2005).
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A tortura e a impunidade estão disseminadas na cultura e constituem um círculo vicioso que alimenta a violência. A presença da tortura, de forma sistemática, nas delegacias e nas casas de detenção é prova da forma arcaica de abordagem da segurança. Associados a elas estão os grupos de extermínio e as execuções sumárias e extrajudiciais patrocinadas tanto por civis como por policiais. A impunidade se alastra em função da baixa resolutividade do sistema de Justiça e Segurança e, sobretudo, quando atinge as pessoas mais pobres, com baixa escolaridade, negras, gerando a sensação de que basta ter dinheiro para não ser pego. Casos emblemáticos de chacinas, quando não resolvidos satisfatoriamente, geram, em escala, a idéia de que há tolerância para certos crimes, sobretudo os cometidos contra as pessoas mais pobres, de um lado, ou as patrocinadas pelos mais ricos, por outro. A resposta à violência, em geral é tão ou mais violenta, além de espasmódica. Sempre que um fato grave e amplamente divulgado ocorrer, as instituições aparecem com o mesmo discurso: endurecimento das penas, ampliação do encarceramento, redução da maioridade penal. Passado o espasmo, tudo continua como dantes. Por isso, é deveras estranho dizer que a violência é uma opção. Sim, é uma opção quando a sociedade não resolve o mais fundamental da violência, suas raízes. Sim, é uma opção quando a sociedade não dota o Estado de uma política consistente, permanente e pautada pelos direitos humanos. Sim, é uma opção quando os dirigentes do país parecem não encontrar outra solução para o problema que não seja a repressão – necessária para certos tipos de violência, sobretudo a organizada; insuficiente para boa parte da chamada, eufemisticamente, de violência miúda. Dessa forma, a violência segue como uma forma contraditória de (des)integração social, que, funcionalmente, colabora para resolver (pela contenção) as mazelas da desigualdade.
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Pelo conservadorismo recessivo Há uma compreensão recorrente e disseminada de que defender direitos humanos é fazer a defesa de “bandidos e marginais” – discurso que está na base da criminalização da luta social e que se amplia em momentos de crise. A tendência da opinião pública, patrocinada, em grande medida, por setores da mídia e por lideranças políticas, é de reagir com propostas que advogam o endurecimento das medidas penais e a tolerância com o recrudescimento da ação policial – é o velho hábito de tratar questão social como caso de polícia. As posturas autoritárias e conservadoras que marcam as relações sociais e institucionais insistem em educar a cidadania para que não seja cidadã. Renova o discurso do soberano auto-instituído (ou posto como representante de alguma divindade) como detentor exclusivo dos direitos a quem a cidadania (ou a não-cidadania) deve obrigações. Daí a palavra fácil, em oposição aos direitos, de que somente há direitos em conseqüência de deveres, sendo os deveres identificados à sujeição, ao tributo, à submissão; e os direitos às concessões, benesses, dádivas. É deste tipo de consciência que nascem expressões como: direitos humanos sim, mas somente para os humanos direitos. Em outras palavras, direitos humanos somente para quem cumpre bem seus deveres e se adequam à ordem estabelecida. Definitivamente, será possível querer direitos assim? Ora, querer direitos desta forma é não querê-los. Rigorosamente, posturas desse tipo são refratárias aos direitos humanos. Insistem em rejeitar a idéia de que o advento dos direitos humanos abriu uma nova perspectiva para a compreensão de tudo isso. Ignoram que os direitos nasceram da rebeldia, da insurreição, da luta contra a ordem que não abria espaço para o cidadão e a cidadã. Sem muito esforço de memória, basta lembrar que foi num contexto deste tipo que foram proclamados em uma de suas primeiras versões, pela Assembléia Nacional francesa pós-revolucionária. Mais recentemente, foi contra o arbítrio da ordem autoritária que gerou a Segunda Guerra Mundial, que foram invocados e reconhecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). No Brasil, foi contra a ditadura (eufemisticamente autoproclamada de revolução) que foram invocados e semearam germens de liberdade e de igualdade. Hoje, é contra os arbítrios, as exclusões, as opressões e os apequenamentos de todo tipo que são exigidos. Mas para posturas conservadoras, esta não é uma leitura aceitável, é acusada de ser uma leitura “ideológica”. Impede o reconhecimento de que, em termos históricos, desejar direitos é, acima de tudo, não querer só deveres, ou melhor, que deveres têm deveres como contraprestação a direitos. Isto talvez explique porque direitos humanos são tão incômodos aos que, supostamente, entendem-se humanos direitos, portadores quase exclusivos da humanidade que distribuem a quem concordar com eles. É como se houvesse uma “reserva” privada e privativa de direitos humanos. Na tentativa de escapar dos conservadorismos, e de seu cinismo dogmático, até como forma de advogar outras maneiras de enfrentar os dilemas da desigualdade e da violência, ensaiamos três argumentos a seguir.
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Primeiro: direitos humanos correlacionam direitos e deveres de uma nova maneira, dando ao dever um sentido que se sustenta como contrapartida dos direitos: é porque há direitos, pessoas, sujeitos, cidadãos, com direitos que tem sentido os deveres (de quem tem a responsabilidade para garantir e realizar os direitos e de todas as pessoas que têm direitos como devidos às demais). Significa que, no plano institucional, para garantir direitos, exige-se que o agente público por excelência, o Estado, cumpra deveres – é o soberano que está submetido ao dever, não a cidadania; no plano interpessoal, os direitos de uns têm sentido como direitos dos outros, como direitos de todas as pessoas. Segundo: querer direitos como um dever traduz o móbile básico da ação prática (ética e política). Querer direitos não é uma escolha que se faz pautando-se pela circunstância. Somente um querer que pauta seu agir pela dignidade humana sempre como fim é um querer direitos como um dever. Se na base do agir está a preservação e a promoção da dignidade, resulta necessário (um dever) que toda ação esteja orientada pelo dever de preservar e promover a dignidade humana em todas as circunstâncias. Querer direitos como um dever limita, portanto, a liberdade como querer qualquer coisa e a qualquer custo. A rigor, é a raiz da liberdade, porque a faz emergir da relação com o outro, que também é ser de dignidade e direitos. A liberdade deixa de ser exercida como faculdade do indivíduo isolado e passa a ser exercida como construção em relação com outra pessoa – supera-se a idéia de que minha liberdade vai até onde começa a da outra pessoa, ambas, se começam, é no mesmo lugar. Terceiro: direitos humanos exigem pautar a atuação mais como instituinte do que como instituído. Querer direitos é mais do que pretender que normas ou padrões sejam efetivados – por mais que isso seja necessário – e mantidos (o instituído); é agir para que todo o processo seja permanentemente instituinte. Nesse sentido, querer direitos é estabelecer relações práticas (institucionais e interpessoais) que mobilizem, permanentemente, todos os quereres e todos os sujeitos dos quereres para manter aberto e em construção o processo de alargamento do sentido de ter direitos e o sentido dos direitos. Na dimensão institucional significa pôr a lei e a ordem a serviço da justiça e da paz; na interpessoal significa agir sempre pautado pelo reconhecimento, cooperação e solidariedade. Ora, se os argumentos que aduzimos à complexidade da reflexão que abrimos têm algum sentido, então fica compreensível porque é tão difícil aos humanos direitos entender que direitos humanos não são um privilégio, uma concessão. Por outro lado, torna-se também muito difícil aos que são entendidos por aqueles como tortos aceitar que direitos humanos são privilégio, concessão. Sociedades democráticas ao menos garantem a uns e a outros que, sem querer direitos como dever, seria impossível sequer divergir. Isto remete para o querer direitos como base, até para quem defende que isto é um privilégio. Em suma, parece não ser possível um querer diferente do querer direitos para todas as pessoas, indistintamente. PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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IDENTIFICANDO DESAFIOS Os desafios que apontamos nascem do esforço de fazer convergir o enfoque e a leitura da situação e os consideramos fundamentais para fortalecer a luta pelos direitos humanos no Brasil – sem prejuízo de outras lutas. É mais uma reflexão programática do que a apresentação de uma pauta para a ação imediata. Novamente, recolhemos as propostas do mesmo texto que serviu de referência para o ponto anterior, atendo-nos a um breve enunciado do sentido de cada desafio, sem reapresentar, novamente, os argumentos que os justificam – remetemos ao texto já referido para o conhecimento desses aspectos. Fortalecimento da organização popular A organização popular é uma das expressões mais fortes da luta por reconhecimento da dignidade e pela realização dos direitos humanos, para além da luta por interesses corporativos específicos. São as organizações populares que mantêm vivo o processo de resistência ao modelo de desenvolvimento que exclui e propõe o alargamento do conteúdo dos direitos humanos e a ampliação dos espaços de participação, dando visibilidade a sujeitos de direitos ignorados e vulnerabilizados pela sociedade. Daí que, fortalecer a organização popular é, sobretudo, ampliar as condições para a realização dos direitos humanos. Significa dar vazão e expressão às contradições estruturais que marcam sociedades profundamente desiguais e assimétricas. Significa gerar condições para lidar com a mediação de conflitos de forma participativa e programática. Significa, sobretudo, acreditar que os sujeitos de direitos são todos os seres humanos e que somente eles poderão saber qual é a melhor maneira para efetivamente realizá-los. Novas estratégias de luta A organização popular de luta pelos direitos humanos tem presença significativa na sociedade brasileira. Nas últimas décadas, têm se diversificado em formas e em estratégias de luta. Entre as organizações que atuam especificamente em direitos humanos, surgem novos atores (ONGs e movimentos sociais), que passam a incorporar a agenda dos direitos humanos, além de organizações que tematizam e especificam os direitos humanos de forma consistente, sobretudo abrindo a exigência para o diálogo com o tema da igualdade racial, de gênero, de orientação sexual, de geração. Ademais, ampliam-se os espaços de articulação (redes, fóruns, e outros). Por outro lado, há segmentos da organização social que ainda estão mais distantes da incorporação da agenda de direitos humanos – o movimento sindical em geral, por exemplo. Compreender o sentido e a diversidade das formas organizativas e das estratégias de luta é tarefa fundamental para fazer avançar a luta pelos direitos. Talvez o maior desafio na construção de novas estratégias de luta esteja na ampliação da capacidade de mobilização social em torno da agenda de direitos humanos, enfrentando as travas culturais conservadoras consistentes na opinião pública.
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Ampliar as fendas e, sobretudo, popularizar a adesão positiva e o reconhecimento amplo da população com os direitos humanos impõe-se como desafio estratégico, seja para ampliar a base de apoio da luta, seja, principalmente, para gerar condições de ampliar a efetivação dos direitos. As novas estratégias de luta pelos direitos humanos exigem a construção de uma agenda diferenciada, que passa pela reflexão sobre o sentido dos direitos humanos – as concepções que são construídas a partir delas – e, sobretudo, pela explicitação de novos conteúdos e de novas estratégias. Significa que a tarefa somente poderá ser cumprida se forem ampliadas a capacidade de diálogo e a construção conjunta desses diversos agentes e processos organizativos. Apostar no sombreamento ou na fragmentação só contribuiria para desmobilizar e abrir espaço para o oportunismo do retrocesso. Nova institucionalidade de proteção A construção de uma institucionalidade pública de proteção dos direitos humanos exige enfrentar desafios de fundo. Estes se desdobram no sentido da organização da forma de ação do Estado, quando da efetivação de espaços públicos (não-estatais). O Brasil já deu passos significativos na direção de dotar a sociedade e o Estado de condições para lidar com os direitos humanos, assumindo a responsabilidade com a sua realização, bem como com a reparação de violações. Todavia, é preciso reconhecer que ainda está longe de, efetivamente, dar conta do conjunto das demandas do tema. Nessa direção, assumir com força e conseqüência as deliberações da IX Conferência Nacional de Direitos Humanos (de 2004), que acumulou um conjunto de propostas concretas para a efetivação do Sistema Nacional de Direitos Humanos, é o primeiro grande desafio. Tal proposta, além de fazer um diagnóstico dos problemas institucionais de fundo, apresenta um conjunto de medidas para enfrentar a situação, seja aprimorando instrumentos, mecanismos, órgãos e ações que já existem, seja para efetivar outros. Outro desafio é o de incorporação efetiva dos direitos humanos no conjunto das políticas públicas – junto com o aprimoramento e a ampliação de ações de políticas públicas específicas de direitos humanos. A construção de uma política nacional de direitos humanos exige, entre outras medidas, a atualização do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH). Mas vai além dela, o esforço maior está em, efetivamente, compreender e implementar ações e direitos humanos em todos os espaços de ação pública, superando a idéia de que o órgão de governo (federal) de direitos humanos (a Sedh) é que, sozinha deverá fazê-lo. Ou o processo resulta de um esforço do conjunto do governo e do poder público, ou permanecerá como ação importante, mas à margem, pontual, residual e isolada. Entender que entre as tarefas primeiras do Estado está o compromisso com os direitos humanos é um dos maiores esforços políticos da agenda pública. Fazer esse exercício com ampla e qualificada participação das organizações da sociedade civil é mediação essencial para que os sujeitos de direitos humanos sejam os autores das medidas que serão implementadas para atender seus direitos.
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Enfrentamento do modelo excludente de desenvolvimento A exclusão social é marca histórica do processo de desenvolvimento implementado no Brasil. Em geral, as estratégias para enfrentá-la têm proposto para a sociedade que a saída é o crescimento econômico. Todavia, mesmo com crescimento econômico positivo, ainda que baixo, o que se tem visto é que, sozinho, esse não dá conta de enfrentar a desigualdade. Até porque, resulta no seu contrário, o aumento da concentração de renda e da exclusão social. Sem uma ampla e forte ação de distribuição da renda e da riqueza – o que não se faz somente com políticas de transferência de renda como programa público –, dificilmente se poderá reverter o processo e garantir um desenvolvimento sustentável e solidário, capaz de abrigar toda a população brasileira. O aprofundamento do modelo neoliberal de organização do Estado e da economia e de inserção do país no processo de globalização tem contribuído mais para agravar a situação do que para enfrentá-la. O cumprimento dos compromissos com o ajuste estrutural já não depende de acordos com instituições internacionais (FMI, por exemplo), visto que parece ter sido incorporado à prática política. O Brasil ainda não foi capaz de construir uma alternativa de desenvolvimento própria, feita a partir da autodeterminação do seu povo e como um direito – mais que uma ação unicamente da iniciativa livre do mercado, como preceituam os instrumentos internacionais de direitos humanos. Pensá-lo com esses pressupostos e no contexto da integração regional e de cada vez maior globalização, com postura soberana, é a questão que se impõe. Construir um amplo processo capaz de gerar novas bases para o desenvolvimento, entendido como um direito humano e como uma mediação para a realização de todos os direitos humanos de todas as pessoas é a urgência que se apresenta e que precisa se traduzir em compromisso dos agentes sociais, políticos, econômicos e culturais. Segurança como direito O enfrentamento da violência que marca, profundamente, as relações sociais exige construir políticas de segurança pública pautadas centralmente pelos direitos humanos. Mais do que isso, exige o desafio de encontrar estratégias e alternativas para enfrentar a violência com práticas de mediação de conflitos, a exemplo de iniciativas que já existem em alguns lugares do país; com abordagem integrada de políticas de diversas ordens; com a ampliação da oferta de serviços públicos fundamentais (presença do Estado); todas completadas com o incentivo ao processo de organização social e comunitária em iniciativas diversas. A reconstrução do tecido social, dilacerado pela pobreza, pela desigualdade e pela violência, exige mais do que atuações de detenção ou de contenção – necessárias para o combate ao crime organizado, entre outras formas, mas insuficiente diante da violência cotidiana, maior causadora de sofrimento e morte. A implementação de programas de capacitação de agentes públicos e das organizações da sociedade civil para atuar na mediação de conflitos mostra-se como alternativa consistente e que ajuda a construir processos de promoção da organização comunitária e de proteção social. PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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Obviamente, essas medidas não são suficientes diante da violência, sobretudo àquela patrocinada pelo crime organizado – para a qual deverão ser construídas alternativas de abordagem baseadas na inteligência policial, associadas à capacitação dos agentes de segurança. Todavia, poderão abrir caminhos para que as próprias comunidades encontrem meios adequados e que redirecionem a própria ação dos agentes públicos de segurança a seu favor. O enfrentamento da violência exige mais do que força. Requer inteligência (policial), organização comunitária e políticas públicas adequadas e de ampla cobertura social, pelo menos. Promoção da igualdade e da justiça social Esta emerge como grande desafio da sociedade brasileira. São pressupostos fundamentais desta tarefa: a compreensão de que a diversidade é marca da dinâmica social e há que ser valorizada; de que o conflito é salutar e positivo como elemento de explicitação das diferenças de toda ordem e de busca de construção de consensos; de que a participação de todos os agentes sociais é exigência; de que o enfrentamento dos entraves estruturais que reproduzem a desigualdade é urgência; e da necessidade de buscar alianças estratégicas para a transformação. Enfrentar a agenda da desigualdade exige conjugar, de forma consistente e profunda, os aspectos que transversalizam o debate, sobretudo questões de gênero, étnico-raciais, geracionais e de classe, entre outras. As medidas a serem adotadas não podem confrontar esses aspectos, forçando a sociedade a ter que optar por um deles. Significa encontrar medidas de integração social que ultrapassem a simples acomodação de interesses e o recorrente escamoteamento do debate. Nesse sentido, à luz dos direitos humanos, a inclusão social – sinônimo de enfrentamento das desigualdades – exige uma abordagem que preserve a diversidade e a promova, gerando espaço para que a criatividade popular se desenvolva e ganhe lugar. Mas isso implica enfrentar, de forma consistente, o tema da concentração da propriedade e da riqueza (rural e urbana); da ampliação da oferta de trabalho – em diversas formas; e, sobretudo, da ampliação da oferta e do acesso a serviços públicos universais e de qualidade que sejam efetivados como políticas públicas de direitos humanos. Mais ação e menos retórica Direitos humanos podem se tornar um conteúdo retórico e facilmente ouvido das mais diversas bocas – seja para promovê-los, seja para criticá-los. Os diversos agentes têm discursos diferentes. Nem todos os que falam de direitos humanos referemse ao mesmo conteúdo. A prática é o campo da política e é nela que se pode identificar sua verdade. Neste sentido, é exatamente agindo que se poderão superar as contradições. A política não se esgota na técnica de compor interesses, é bem mais do que isso: é a prática de enfrentar de frente os conflitos e de construir os consensos baseados em argumentos. Por isso, mais do que retórica, precisa-se de ação política. Essas idéias gerais valem sobejamente para os direitos humanos. Nos últimos anos, têm-se acumulado muitas propostas, sugestões, análises. Falta a coragem solidária para fazer com que as intenções se transformem em ações.
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Por uma nova cultura de direitos A idéia que resume o conjunto dos desafios sugeridos para o enfrentamento da situação à luz de uma compreensão dos direitos humanos traduz-se na construção de uma nova cultura dos direitos humanos. Falar de cultura é falar de construção de um modo de ser, no sentido clássico de um ethos, de uma nova ética, uma ética dos direitos humanos. É dessa forma que se poderão reforçar, em termos de direitos humanos, atitudes básicas que caracterizam a humanidade: a indignação e a solidariedade. A primeira mobiliza para a reação; a segunda para a ação. Juntas, põem em marcha a geração de condições para que a sociedade encontre caminhos até a dignidade de cada uma e de todas as pessoas. Se isso não passa de uma crença, como preferem os céticos e os cínicos, sempre de plantão na exigência de objetividade e de respostas prontas para tudo, que assim seja. Afinal, que seria do tópos, sem u-tópos – o que seria do lugar atual, sem uma utopia – um ainda-sem-lugar! Aliás, em matéria de direitos humanos, talvez esta seja a maior aposta: acreditar sempre e de novo que a humanidade vale mais, muito mais do que qualquer preço – melhor, vale exatamente por não ser possível atribuir-lhe qualquer preço. Até porque, construir uma cultura dos direitos humanos é reconstruir relações – superar a indiferença – e abrir espaços de diálogo em vista de maior humanização. Acreditar é condição para agir. Agir é a mediação para transformar. Transformar tem sentido como construção do novo, sempre, de novo.
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Ousadia com doses de ponderação, receita da política externa de Lula MARIA REGINA SOARES DE LIMA Professora e pesquisadora do Laboratório de Pesquisas em Comunicação Política e Opinião Pública (Iuperj); coordenadora acadêmica do Observatório Político Sul-americano (Opsa); e professora do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da PUC-Rio. mrslima@iuperj.br
A estabilidade da política externa brasileira faz parte daquele conjunto de mitos que, de tão repetidos, acabam se tornando verdadeiros, validados por um competente discurso diplomático que nunca deixou de vincular à tradição eventuais inovações conceituais e de posicionamento da política internacional do país. Até que ponto o governo de Luiz Inácio Lula da Silva inovou na política externa? Uma resposta a essa pergunta exige examinar, em linhas gerais, quais foram os seus principais eixos no passado recente e até que ponto esses continuam balizando as orientações da política externa no presente. Durante a Guerra Fria, a política internacional do país posicionou-se sobre dois eixos: a dimensão Leste-Oeste e a Norte-Sul, conforme examinado a seguir.
GUERRA FRIA No eixo Leste-Oeste, referido basicamente ao maior ou menor alinhamento aos Estados Unidos (EUA), quando as orientações do país estavam mais claramente condicionadas à dinâmica política e às orientações ideológicas das coalizões internas, o Brasil conheceu três posições (tais categorias foram elaboradas por Fonseca JR., 1998): Ocidental puro: adesão irrestrita aos valores do Ocidente e aliança estratégica com os EUA (período Dutra, no imediato pós-guerra, quando uma ativa política de exclusão e supressão das forças políticas de esquerda combinouse com um alinhamento incondicional a Washington); Ocidental qualificado: adesão política ao Ocidente, defesa da democracia representativa liberal, mas exercícios de diferenciação com relação ao alinhamento com os EUA (segundo mandato de Vargas, governo Juscelino Kubitschek e governo Jânio Quadros, quando se constitui a coalizão desenvolvimentista, que combinava ativismo econômico estatal, protecionismo comercial e abertura ao capital estrangeiro); PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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Ocidental autônomo: desenho de uma identidade internacional própria para o país, com diversificação das relações exteriores e exercício de posições próprias com relação aos EUA. O modelo foi experimentado em duas situações políticas distintas. Por um lado, quando se combinou a vigência da democracia com o desenvolvimento da identidade de Terceiro Mundo – caso da Política Externa Independente do governo Goulart. Por outro, quando à diversificação de parceiros foi adicionado um projeto de potência na vigência do regime militar – caso do Pragmatismo Responsável do governo Geisel. No eixo Norte-Sul, referido às relações centro-periferia, as posições brasileiras oscilaram em função da variação da inserção econômica internacional, em especial a comercial, bem como das mudanças nas agendas e arenas multilaterais de negociação configuradas basicamente pelos países centrais. Grosso modo, no período que vai da constituição do sistema multilateral de comércio à criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), o Brasil encenou três repertórios de atuação, descritos a seguir. 1. Demanda pela reforma da ordem liberal de comércio com base no princí-
pio de que é injusto tratar desiguais como iguais. Como uma das lideranças do Terceiro Mundo, no G-77, o Brasil destacou-se na luta pela atenuação da cláusula de Nação mais Favorecida (regra da não-discriminação) para fazer face à condição adversa daqueles países no regime comercial e pelo tratamento diferenciado e não-recíproco (criação da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento/Unctad e introdução do Sistema de Preferências Generalizado). 2. Limitação de danos, em que o Brasil buscou como estratégia negocia-
dora retardar medidas que diferenciassem os países em desenvolvimento (graduação) e introduzissem cláusulas de condicionalidade no tratamento de Nação mais Favorecida nas negociações de barreiras não-tarifárias e códigos de acesso: subsídios, salvaguardas; anti-dumping. A oposição à introdução dos novos temas e disciplinas, em campos como propriedade intelectual, investimento e serviços, também fez parte da estratégia defensiva de países como Índia e Brasil. A posição brasileira refletiu a diferenciação entre os países da periferia e a perda de coesão do G-77 (Rodada de Tóquio, no Acordo Geral de Tarifas e Comércio/Gatt). 3. Na década de 1990, com a crise da dívida e a adesão dos países da periferia
ao Consenso de Washington, a coalizão terceiro-mundista se fragmentou. O governo Collor encenou um repertório distinto, caracterizado como de adesão incondicional às regras comerciais emergentes e abertura unilateral do comércio (Rodada Uruguai e adesão à OMC).
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PÓS-GUERRA FRIA As transformações da macro-estrutura de poder nas décadas de 1980 e 1990 são cruciais para se entender a mudança de paradigma internacional do Brasil nesse período. Os múltiplos efeitos daquela transformação sistêmica até hoje se fazem sentir. Mas cabe assinalar duas conseqüências por seu impacto na inserção internacional de países intermediários, como o nosso. Por um lado, a remoção de obstáculos políticos e territoriais à expansão global do capitalismo como conseqüência da eliminação da oposição na política internacional, do desaparecimento do contra-modelo do socialismo – fenômeno expresso pelo conceito de globalização. Por outro, a crise do Terceiro Mundo, resultado de uma combinação de fatores, dos quais os mais relevantes foram: crise da dívida externa, crise fiscal e exaustão do modelo prévio de crescimento voltado para o mercado interno, com base na estratégia de substituição de importações. A conseqüência política dessas mudanças foi erodir a coalizão terceiro-mundista – uma das principais balizadoras da diplomacia econômica do Brasil desde a década de 1970. O efeito combinado da globalização do capitalismo e da crise do Terceiro Mundo sobre a periferia capitalista foi provocar uma diferenciação estrutural. Isso porque alguns daqueles países passam a se integrar mais fortemente à economia internacional, por meio da participação nas novas cadeias produtivas que impulsionam a expansão do capitalismo na periferia, e a formação de economias emergentes, os assim chamados Brics (grupo de países emergentes, como Brasil, Índia e África do Sul, entre outros, que devem superar as maiores nações até 2050). Por outro lado, assiste-se à fragmentação e à involução política e econômica de outros Estados, que passaram a integrar aquele conjunto de “Estados falidos”, assim denominados pela política externa norte-americana. No plano global, o fim do socialismo não se seguiu à vitória da ordem liberal, mas de um capitalismo mercantilista, em que o exemplo mais expressivo foi a transformação do Gatt/OMC de uma instância de liberalização multilateral no pós-Segunda Guerra – a partir da difusão de princípios de não-discriminação –, em uma arena de regulação da competição entre os países capitalistas, de imposição de disciplinas em uma série de áreas de interesse daqueles países e de proteção dos seus interesses agrícolas. Na atualidade, são os emergentes como Índia e Brasil, com interesses ofensivos na liberalização comercial agrícola, os principais defensores do regime multilateral de comércio. Também mercantilistas são os tratados bilaterais de livre-comércio, capitaneados pelos EUA que, ao criarem áreas preferenciais, garantem uma reserva de mercado aos produtos de origem daquele país. Nos planos regional e doméstico também se observaram transformações relevantes nas décadas de 1980 e 1990. Uma das mais significativas foi a redemocratização política, que permitiu ao Brasil universalizar suas relações internacionais, simbólica e materialmente representada, seja pelo reconhecimento de Cuba, seja pela aproximação inédita com Argentina e a criação do Mercosul. PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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Todas essas transformações internacionais e domésticas tornaram sem efeito um dos parâmetros centrais na definição de sua identidade internacional: qual seja, o eixo Leste-Oeste referido ao alinhamento à política externa dos EUA. Com relação à dimensão Norte-Sul, a mudança na estratégia de inserção internacional e a reestruturação e diferenciação da periferia modificaram o patamar de inserção do Brasil nas arenas de negociação econômica multilateral.
ALIANÇA DE CONVENIÊNCIA No plano regional, a democratização e a exaustão da estratégia de substituição de importações e do modelo prévio de desenvolvimento de economia fechada levaram à adoção de um modelo de regionalismo aberto, que se tornaria dominante na década de 1990. A configuração de relações cooperativas com a Argentina e a consolidação dos processos de abertura econômica – que então se iniciavam na região – estão na origem desse movimento e são sua principal motivação. O caso específico do Mercosul representou uma aliança de conveniência entre os setores favoráveis à abertura econômica. O acordo funcionaria como uma solda para consolidar as iniciativas de abertura comercial. Os setores desenvolvimentistas, apesar de bastante enfraquecidos pelo fortalecimento das políticas orientadas pelo mercado, viam no Mercosul um instrumento importante para aumentar o poder de barganha do Brasil e da Argentina nas negociações internacionais. Dessa forma, o novo regionalismo da década de 1990, cujo paradigma foram os acordos de livre-comércio, surgiu de duas motivações convergentes naquele momento: uma reação defensiva à globalização produtiva e financeira e a intenção deliberada de demonstrar à comunidade de negócios a credibilidade dos programas de estabilização econômica e das reformas de mercado então adotadas pelos países periféricos. Na América Latina, tal movimento representou uma mudança do modelo de desenvolvimento prévio, voltado para o mercado interno, e a adoção de uma estratégia de inserção “competitiva” na economia globalizada. Não é mera coincidência que o Chile, o país sul-americano com o maior grau de abertura econômica, seja também aquele que exibe o maior número de acordos daquela natureza. Ainda que o Brasil tenha também aderido à onda das reformas pró-mercado dessa década, sua implementação não foi tão generalizada nem tão profunda como ocorreu em outros países, como a Argentina. Em um contexto de hegemonia neoliberal na América Latina, o Brasil foi retardatário e não implementou o pacote completo das reformas, em vista de ter sido um dos casos mais bemsucedidos da estratégia de crescimento anterior. Esse legado desenvolvimentista persistiu nas práticas e nas visões de alguns segmentos relevantes políticos, burocráticos, econômicos e sociais. Uma vez que os paradigmas anteriores de política externa perderam muito de sua funcionalidade, duas visões do papel do Brasil no plano externo podem ser detectadas no âmbito da comunidade de política externa.
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Em estudo realizado no início de 2000, sobre a visão de diversos setores de elite, observou-se um relativo consenso com relação à valorização de um papel protagônico para o Brasil (Souza, 2002). Mas tal como no passado, as elites se dividiam quando se tratava de apontar estratégias concretas de inserção internacional. Nesse particular, dois modelos apareciam, configurando-se alternativas distintas de política externa (Lima, 2005). A primeira delas tem por objetivo a busca da credibilidade internacional, visto que o foco é de fora para dentro. A globalização é considerada o principal parâmetro para a ação externa, mas seus benefícios dependem da implementação de reformas internas que expandam a economia de mercado e promovam a concorrência internacional. Tal estratégia parte da constatação que o país não possui “excedentes de poder” e, portanto, só o fortalecimento dos mecanismos multilaterais serão capazes de atenuar eventuais condutas unilaterais. No que se pode denominar de uma estratégia da credibilidade, a autonomia nacional é vista como conseqüência da colaboração do país na governabilidade internacional por via da sua cooperação na criação de normas e instituições internacionais. Nessa percepção, o país deve ajustar suas expectativas e compromissos internacionais às suas capacidades reais. A estratégia oposta, que pode ser denominada de autonomista, combina o objetivo de projeção internacional com a garantia de maior grau de flexibilidade e liberdade para a política externa. Critica a avaliação positiva dos frutos da liberalização comercial e os resultados benéficos da adesão aos regimes internacionais. Essa visão preconiza uma política ativa de desenvolvimento e a necessidade de articulação de um projeto nacional capaz de superar as desigualdades e os desequilíbrios internos. Preconiza uma inserção ativa com base na aliança com países cujos interesses sejam semelhantes e que estejam dispostos a resistir às imposições das potências dominantes. E vai contra a tese da “insuficiência de poder” e da “postura defensiva” daí decorrente. Uma preocupação entre os defensores de uma estratégia autonomista é que o Brasil não dispõe de elementos de dissuasão militar nem poder de veto no Conselho de Segurança da ONU que possam respaldar negociações comerciais com parceiros mais poderosos. Como a dimensão soberanista é marcante nessa visão, prevalece certa relutância em aceitar arranjos multilaterais que impliquem delegação de autoridade a instâncias supranacionais. As duas estratégias de inserção internacional do Brasil apontam para modelos alternativos de potência média que o país poderia encenar no cenário de pós-Guerra Fria, segundo setores das elites. Por um lado, aquele calcado no conceito de “autonomia pela participação”, cuja ênfase recai no desempenho de um papel clássico de potência média no sentido de adesão e colaboração às instituições e normas multilaterais que se desenham na atualidade e o exercício de um papel construtivo na governabilidade internacional (Fonseca Jr., 1998). O outro modelo tem por inspiração os paradigmas autonomistas prévios, mas deles se diferencia pelo componente ofensivo, e não defensivo, no ordenamento mundial. Em especial, pela afirmação da necessidade de articulação da PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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ação coletiva de países intermediários, como o Brasil, com vistas à transformação dessa ordem pela mudança das normas internacionais vigentes, combinada à construção de pólos regionais de poder. Contribui, assim, para atenuar a excessiva unipolaridade do sistema internacional do pós-Guerra Fria. Com alguma simplificação, poder-se-ia dizer que essas duas visões de “potência média” guardam semelhança com as orientações da política externa no período pós-Guerra Fria. A gestão externa do governo Fernando Henrique Cardoso estaria mais próxima do modelo da “credibilidade pela participação na ordem” e a de Luiz Inácio Lula da Silva do modelo da “autonomia pela mudança da ordem”.
INOVAÇÕES1 A principal influência intelectual na concepção da política externa do primeiro governo do PT são as idéias contidas no modelo da “autonomia pela mudança da ordem”. Naturalmente, a origem intelectual da política externa não garante sua completa implementação. Na prática, a política externa não apenas tem que fazer face aos legados existentes, mas também às restrições advindas do comportamento dos demais países. O governo Lula deu continuidade à política restritiva macroeconômica de seu antecessor. Mas inovou tanto na política social como na política externa. Nesta última, contudo, também se observou relativa continuidade em vista de sua natureza como questão de Estado e por envolver longos processos de negociação, que podem perdurar por mais de uma década. Nas eleições presidenciais de 2006, porém, a política externa foi alçada, pela oposição, à condição de tema político-partidário. De modo geral, as críticas se concentraram na necessidade de se abandonar os arroubos terceiro-mundistas do governo Lula e se retornar às relações com os países desenvolvidos, em particular os EUA e a União Européia. O curioso é que na orientação externa do governo Lula não se encontra indícios de um afastamento com relação nem a uns nem as outras. Até porque, a estrutura diversificada do relacionamento econômico externo não aconselharia uma concentração em qualquer um dos grandes parceiros. A verdade é que o atual governo, tal como sucedera no anterior, não se mobilizou com relação à constituição da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), no que, de resto, foi acompanhado pelos EUA – nem conseguiu fechar um acordo Mercosul/União Européia, novamente por dificuldades de ambos os lados. Que inovações podem ser apontadas na política externa do governo Lula? Talvez um traço distintivo seja uma maior assertividade no plano internacional, que se manifestou na quebra de certos dogmas da diplomacia brasileira
1 Algumas das idéias aqui apresentadas foram desenvolvidas em trabalhos anteriores de minha autoria. Sobre isso, ver: Observatório da Cidadania, 2003 e Carta Capital, 27 de dezembro de 2006.
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– como a disposição ao ativismo na região sul-americana, transpondo a fronteira convencional entre assuntos domésticos e internacionais. Ao ousar mais, naturalmente se expôs mais. Foi o caso da candidatura a um assento permanente no Conselho de Segurança, que figurou como prioridade estratégica da política externa e motivou uma ampla investida rumo aos países do Sul. Mas acabou tendo impacto negativo sobre a capacidade de coordenação regional. Faltou apoio às postulações brasileiras a cargos de direção na OMC e no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). A chegada ao poder de governos de esquerda na América do Sul não gerou, necessariamente, alinhamentos automáticos. Na verdade, as dificuldades de cooperação regional foram ampliadas, visto que esses governos, ao contrário dos governos conservadores, tendem a ser mais sensíveis ao atendimento das demandas de suas respectivas sociedades – independentemente do efeito que suas ações possam ter sobre a cooperação regional. O caso mais emblemático foi a eleição de Evo Morales na Bolívia e a nacionalização dos hidrocarbonetos, em maio de 2006, atingindo diretamente os interesses da Petrobras naquele país. Contudo, a resposta brasileira de procurar o diálogo, e não a confrontação, como queriam setores ponderáveis da opinião pública, representou um dos pontos altos da política externa do governo Lula ao preservar um relacionamento estratégico para o país. Nesse episódio, evidenciou-se o descompasso entre o peso regional do país e sua influência de fato, agravado pela própria assimetria estrutural que reacendeu antigos temores de hegemonia na América do Sul. Outros fatores também devem ser arrolados no diagnóstico das dificuldades de coordenação regional enfrentadas pelo Brasil: a falta de articulação de uma posição comum com a Argentina na questão da reforma do Conselho de Segurança da ONU – ainda que os dois países tenham reconhecido a legitimidade das postulações recíprocas; a nova ordem geopolítica sul-americana com o crescente protagonismo de Hugo Chávez – em particular, após sua vitória no plebiscito revogatório de 2002; a oferta, pelos EUA, de acordos bilaterais, no formato de Acordos de Livre Comércio, aos países menores da região; o descompasso entre as altas expectativas dos vizinhos e as ofertas cooperativas brasileiras; a percepção generalizada na região do enfraquecimento político do governo Lula; e a autoproclamada liderança regional brasileira. Contudo, em alguns casos, os problemas de coordenação foram gerados pela falta de ações mais ousadas. A política externa custou a reconhecer a necessidade de medidas atenuantes da assimetria estrutural entre os sócios menores no Mercosul (Uruguai e Paraguai) e os maiores (Brasil e Argentina). A instituição do Fundo de Convergência Estrutural, em 2006, teve esse objetivo, em uma situação de quase implosão do bloco. A ausência brasileira na crise entre Uruguai e Argentina, para preservar o relacionamento estratégico com a última, no contencioso originado pela instalação das processadoras de celulose perto da fronteira uruguaia, também integra esse conjunto de ausência de decisões da política externa. Da mesma forma, o governo PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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Lula manteve um certo legado soberanista de pouca disposição à delegação e à criação de instituições e normas com características de supranacionalidade. A criação da Comunidade Sul-americana de Nações, posteriormente denominada Unasur, não preencheu esse vácuo institucional – ainda que tenha criado uma estrutura propícia a iniciativas nas áreas de energia e infra-estrutura, campos com grande potencial de cooperação regional.
HIPOCRISIA E ALTO PREÇO Grande parte da energia negociadora brasileira esteve voltada para a mudança de regras seja no campo comercial, seja no âmbito do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A criação do G-20 – na reunião de Cancún, México, em 2003 – representou o renascimento da coalizão terceiro-mundista. Agora, porém, centrada nos interesses agrícolas dos países em desenvolvimento e na explicitação da hipocrisia da posição negociadora dos países desenvolvidos. Sua criação recuperou o papel já desempenhado anteriormente de “intermediário” entre os “fracos” e os “fortes”. Por outro lado, a novidade na negociação de Doha foi o papel demandante da liberalização dos mercados agrícolas dos EUA e da Europa, em função da alta competitividade das exportações brasileiras, além da manutenção da agenda negociadora tradicional de acesso a mercados e fortalecimento das normas multilaterais. Contudo, o preço da liderança da coalizão do Sul foi abrir mão das demandas máximas em prol da coesão, em vista da diferenciação estrutural entre os parceiros. Na postulação a um assento permanente no Conselho de Segurança, a política externa reiterou aspiração histórica da comunidade de política externa nacional. A inovação, em parte motivada pelo conjunto de obrigações que tal postulação implica, materializou-se no comando brasileiro de uma força de paz no Haiti. Nesse caso, o país se dispôs ao exercício de um papel mais intervencionista, em face de uma situação de instabilidade crônica que poderia reverberar sobre seu perímetro de segurança. Não foi assim na década de 1990, quando nos abstivemos de apoiar, no âmbito do Conselho de Segurança, o envio de uma missão multinacional àquele país. Contudo, tal inovação foi pouco discutida no âmbito doméstico, ainda que com dose razoável de incerteza com relação ao histórico de sucesso de operações desse tipo. Nas relações com os EUA e a União Européia, prevaleceu a continuidade: forte conteúdo econômico e orientação pragmática, em vista de evidente importância dessas duas áreas para as exportações brasileiras e para os investimentos no país. As dificuldades de se obter um acordo Alca–Mercosul e União Européia–Mercosul derivam, do lado brasileiro, da complexidade e custos difusos que tais acordos envolvem por conta do impacto das eventuais obrigações assumidas em diversas áreas e temas de política doméstica. Os TLCs negociados com os EUA são acordos de livre-comércio apenas no papel e na retórica liberal. A rigidez das regras de origem e as concessões em diversas
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disciplinas e temas, como compras governamentais, regras de investimento e propriedade intelectual, incidem diretamente na capacidade de os parceiros desenvolverem políticas industriais. É de causar surpresa que o Brasil não tenha uma política industrial ativa. Com a União Européia, as obrigações futuras são de tal ordem que implicariam não apenas legislação específica, mas também mudança constitucional. Já no segundo mandato do governo Lula, a aproximação com os EUA, na cooperação em programas de biocombustíveis e energias alternativas, gerou relativo estranhamento em alguns parceiros sul-americanos – em especial, Venezuela e Argentina. Mas foi acompanhada de gestos positivos de reforço da aliança com os dois países. Uma vez mais, manifestou-se o estilo conciliador de política externa do governo atual, na direção de não aprofundar contenciosos com os vizinhos sul-americanos.
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Dimensões político-eleitorais Da mesma perspectiva, a polêmica eleitoral em torno da direção da política externa esteve fora do lugar. As relações com o mundo desenvolvido não foram abandonadas em função da ênfase conferida aos países do Sul. O que não se observou de fato foi a busca de exclusividade ou aliança preferencial com um lado ou com o outro. Até porque, há muito a política externa abandonou a idéia de alianças preferenciais ou automáticas, exatamente pelas características estruturais da distribuição equilibrada do comércio do país com as quatro macrorregiões: União Européia, América do Norte, Ásia e América do Sul. O que, sim, ocorreu foi um esforço em estabelecer parcerias estratégicas com países do Sul, como foi o caso da iniciativa Fórum de Diálogo Brasil, Índia e África do Sul (Ibas), reunindo, além do Brasil, África do Sul e Índia; em retomar relações tradicionais, praticamente abandonadas no governo anterior, como com a África; e em estimular novos relacionamentos como ocorreu com os países do Golfo. Finalmente, o debate eleitoral em 2006, coincidindo com a crise do Mercosul, revelou duas dimensões novas que têm mais a ver com a sociedade e a política doméstica do que propriamente com a política externa. A primeira, e quase óbvia, está no fato de que a diversificação e a complexidade de nosso relacionamento internacional demandam o respaldo de atores privados e públicos no mundo da política, da economia, da mídia, da academia e dos movimentos sociais em geral – se é que as ações da diplomacia devem produzir os melhores
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efeitos. A diplomacia é instrumento de indução e apoio, mas são as ações dessa pluralidade de atores que conferem densidade à iniciativa diplomática. A pluralidade de atores envolvidos na política externa naturalmente aumenta as dificuldades de sua coordenação doméstica. Cabe ressaltar que a inclusão da política externa no ciclo político-eleitoral não necessariamente ampliou seu grau de prestação de contas à sociedade. Nesse particular, mesmo que tenha diminuído o tradicional insulamento na formulação da política externa do governo Lula, a condição atual do Partido dos Trabalhadores (PT), de partido do governo, retirou do Legislativo um dos principais mecanismos de seu controle político. Ao contrário da política externa do governo de Fernando Henrique Cardoso, que teve na oposição liderada pelo PT um valioso instrumento de controle legislativo, a fragmentação da oposição no governo atual e sua pouca qualificação nos assuntos internacionais não têm contribuído para aumentar o grau de prestação de contas da política externa. Por outro lado, a maior abertura da política externa desse governo aos movimentos sociais e organizações da sociedade civil pode gerar o risco de cooptação, caso tal participação não esteja, de algum modo, articulada às forças político-partidárias e sua atuação no Congresso Nacional. A segunda dimensão é mais problemática. Revela erosão da coalizão doméstica responsável por um dos patrimônios da política externa contemporânea: a aproximação com a Argentina e a criação do Mercosul. Em um movimento virtuoso,
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aquela iniciativa reuniu, em uma aliança heterodoxa, segmentos favoráveis à abertura econômica e aos setores desenvolvimentistas. A erosão dessa coalizão original explica a fragilidade do consenso na sociedade com relação aos rumos da política de comércio exterior, e mesmo da integração regional. As conseqüências são: integração rasa; aparente abandono de uma estratégia de aprofundamento da integração; falta de instituições supranacionais; protecionismo difuso enfrentado pelos produtos de nossos parceiros comerciais; e saldos quase mercantilistas da balança comercial com nossos principais parceiros.
Talvez, um dos principais desafios da política externa do governo Lula neste segundo mandato seja recriar a ampla coalizão que sustentou a inserção internacional do país na fase de substituição de importações. Nesse particular, alguns passos já foram dados pelo governo, seja para destravar o acesso de nossos parceiros ao mercado brasileiro, seja para criar oportunidades e garantias aos investimentos de longo prazo na região. Medidas que, aliás, vêm acompanhadas de um saudável pluralismo da política externa – marca de nossa atuação internacional ao longo da história.
REFERÊNCIAS FONSECA JR., Gelson. A legitimidade e outras questões internacionais; poder e ética entre as nações. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1998. LIMA DE, Maria Regina Soares. “Aspiração internacional e política externa”. In: Revista Brasileira de Comércio Exterior, nº 82, janeiro/março de 2005. _________. “Na trilha de uma política externa afirmativa”. In: IBASE, Observatório da Cidadania, Relatório nº. 7. Rio de Janeiro: Ibase, 2003. __________. “Decisões e indecisões: um balanço da política externa no primeiro governo do presidente Lula”. In: Carta Capital. São Paulo: 27 de dezembro de 2006. SOUZA DE, Amaury. A agenda internacional do Brasil: um estudo sobre a comunidade brasileira de política externa. Rio de Janeiro: Cebri, 2002.
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Ambigüidade acompanha negociações comerciais brasileiras ADHEMAR S. MINEIRO Economista, técnico do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) e assessor da Secretaria Executiva da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip)
Desde o fim do ano passado, vimos uma forte movimentação do governo brasileiro em geral, e do Ministério das Relações Exteriores em particular, na tentativa de retomada das negociações da Rodada de Doha, negociações comerciais na Organização Mundial do Comércio (OMC). O impasse central, como é sabido, dá-se em torno da tentativa de abertura de mercados e redução de subsídios, em produtos agrícolas, dos países de maiores mercados, particularmente os EUA e a União Européia, em troca da abertura do mercado de produtos industriais e serviços dos países em desenvolvimento. Na verdade, essa equação não é nova, já se deu antes, nas negociações, hoje suspensas, tentando criar a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), e nas congeladas negociações entre o Mercosul e a União Européia. Em todos esses casos, a posição central brasileira foi uma busca firme pela expansão das possibilidades de negócios para a grande agricultura comercial de exportação brasileira – com limites para proteger elementos que permitissem políticas de desenvolvimento industrial e a capacidade de regulação interna nos setores de serviços e nos temas ligados à propriedade industrial, à defesa da concorrência e aos investimentos que, embora não muito firmes e/ou extensos, foram questionados pelos negociadores. Essa contradição é interessante, especialmente no momento em que as discussões internas no Brasil apontam para a questão do crescimento econômico, em especial pelo lançamento do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). De um lado, existe o objetivo do crescimento econômico e, de outro, a idéia de priorizar a ampliação da opção preferencial pelo mercado externo, pelos saldos comerciais, que não podem garantir o crescimento acelerado, como mostrado nos últimos quatro anos. Por maior que seja o dinamismo do setor exportador nesse período, foi limitado para alavancar o crescimento econômico, como mostra a Tabela 1. PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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Tabela 1 Ano
Exportação Importação Saldo (em US$ comercial
(em US$ milhões)
milhões)
(em US$ milhões)
Exportações + importações
Cresc. das exportações (anual, em %)
(em US$ milhões)
Cresc. do saldo comercial (anual, em %)
Cresc. de exportações + importações
Cresc. do PIB (anual, em %)
(anual, em %)
2002
60.362
47.237
13.125
107.599
2003
73.084
48.305
24.780
121.389
21,1
88,8
12,8
1,9 0,5
2004
96.475
62.813
33.662
159.288
32,0
35,8
31,2
4,9
2005
118.308
73.606
44.703
191.914
22,6
32,8
20,5
2,3
2006 137.470
91.396
46.074
228.865
16,2
3,1
19,3
2,9
Tais limitações refletem, nas negociações comerciais, uma ambigüidade que tem marcado o governo atual desde seu início: entre a manutenção da ortodoxia monetária e financeira na gestão da política macroeconômica – o que implica juros altos, câmbio apreciado e enorme esforço exportador para tentar minimizar a fragilidade das contas externas, gerada pela liberalização financeira, e dos movimentos de capital; e os sonhos de um crescimento econômico mais acelerado e a redução das taxas de desemprego – o que implicaria políticas industriais ativas e ênfase no mercado interno. Esse é o ponto central das breves idéias que aqui se tentará desenvolver. Uma das principais novidades relativas ao governo eleito em 2002, e reeleito no ano passado, foi uma maior abertura no que diz respeito às informações e a momentos de participação na formação da posição negociadora brasileira em vários processos nos quais o país se envolveu. Assim, foram abertos espaços de integração e diálogo – algumas vezes, formais; outras, ainda informais – com organizações da sociedade e com o setor empresarial. Foram criados também espaços formais de participação no interior das delegações negociadoras, em particular no processo de negociação relativo à tentativa de criação da Alca. Entretanto, vale aqui o registro de que o grau de formalização e de transparência parece ter sido, o tempo todo, inversamente proporcional aos interesses dos negociadores brasileiros, capitaneados pelo Ministério das Relações Exteriores, de caminhar rapidamente para um acordo. Comparando os processos, a transparência e a formalização foram bastante amplas no processo de discussão para a criação da Alca, com a participação formalizada em delegações negociadoras, a partir da reunião do Comitê de Negociações Comerciais da Alca, em Trinidad e Tobago, no finalzinho de setembro de 2003. A transparência foi ampla, mas os mecanismos de participação informal no processo negociador entre o Mercosul e a União Européia foram acelerados ao longo de 2004. No que diz respeito às negociações no interior da OMC, da Rodada de Doha, em geral, houve razoável informação e transparência. Mas, a partir do travamento do processo negociador em meados de 2006, e do papel ativo do
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Brasil em tentar a retomada das negociações e a chegada a um eventual acordo – a partir do envolvimento direto e ativo do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim –, as informações tornadas públicas sobre o que efetivamente se estava negociando foram se tornando escassas, e a participação, mesmo informal, inviabilizada. Outra novidade, não menos importante – mas esperada em relação a este governo e ao conjunto de forças que o compõe –, foi não assumir diretamente os dogmas liberais, e se mover com razoável pragmatismo nos processos negociadores em que esteve envolvido. O mesmo pensamento econômico liberal hegemônico (que levou à constituição da agenda da OMC na década de 1990 e aos processos de negociação para a criação da Alca ou entre o Mercosul e a União Européia), reafirmava, permanentemente, a convicção de que o livre-comércio e o livre fluxo de capitais podem, juntos, gerar um ambiente econômico capaz de estimular o desenvolvimento e responder às demandas sociais. Em geral, a pressão sobre os países menos desenvolvidos dá-se no sentido de que se integrem mais no fluxo internacional de comércio e tornem possíveis as transferências financeiras relacionadas aos pagamentos de dívidas e outros passivos externos, e ao fluxo e refluxo internacional dos capitais financeiros. Nesse modelo geral, a opção dada a esses países é a integração nos fluxos do comércio internacional pela produção de commodities. Podem ser commodities industriais, mas, principalmente, produtos primários agrícolas e minerais, com a exceção, no primeiro caso, daqueles produtos que podem afetar interesses de produtores em economias hegemônicas, como o algodão nos EUA ou o açúcar na Europa. Normalmente, a produção dessas mercadorias é intensiva em utilização de área e recursos naturais, e especialmente agressiva ao ambiente. Além disso, a defesa da concentração de países mais pobres nessas produções representa um retorno de quase 50 anos no debate econômico – uma volta à velha discussão sobre os termos de troca. As commodities têm seus preços determinados pelo chamado mercado internacional, pelos grandes consumidores e pelos controladores do circuito de comercialização – a maioria dos quais são corporações transnacionais, com a exceção de uma ou outra commodity, como o petróleo. Por outro lado, a concentração de sua produção nesses bens faz com que tais países se tornem importadores de outros bens industriais, e os serviços a eles associados (assistência, desenvolvimento tecnológico, design, propaganda e outros), fornecidos por empresas (de novo, corporações transnacionais), que podem fixar seus preços – dado o controle que têm sobre a tecnologia, a mídia, o poder financeiro e outras vantagens. Trata-se de uma velha e bem conhecida discussão, com uma roupagem nova. Aparentemente, o governo brasileiro não aceitou passivamente como cenário da negociação que o modelo liberal se cumpriria automaticamente, como se supunha anteriormente – que, em um momento mais ou menos próximo, os frutos do processo de liberalização comercial apareceriam, com ganhos de PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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eficiência e de uma inserção positiva para todos. Ao contrário, aceitando a posição imposta pelo modelo, de um exportador de commodities, quis negociar exatamente os ganhos dessa posição, evidenciando uma postura muito mais pragmática do que a reles concordância ideológica com os supostos e conseqüências do modelo, como orientação geral para sua participação nos processos negociadores nos quais o país esteve ou está envolvido.
POLÊMICA ESTRATÉGIA EXPORTADORA A ênfase no comércio internacional, e mais que isso, em áreas nas quais é aparentemente possível seguir obtendo ganhos no curto prazo – como o mercado de commodities, pode determinar um desenho de projeto de desenvolvimento econômico, mesmo que este não esteja claramente esboçado. A partir dessa percepção, surgem três grandes perguntas: qual a natureza de um processo de funcionamento da economia derivado desse tipo de alavancagem? Quais os efeitos desse processo no longo prazo sobre a sociedade brasileira? Qual o fôlego que pode ter tal processo em um país como o Brasil? Provavelmente, não há uma resposta segura às indagações. Entretanto, cabe considerar alguns elementos que podem ajudar nessa reflexão, especialmente sobre os efeitos sociais. O primeiro, e importante, é a contradição entre a produção de um saldo exportável de produtos de consumo alimentar e uma população com carências alimentares. Não estamos aqui falando de uma cesta de produtos exportáveis composta de frutas exóticas, vinhos ou carnes suntuosas. Mas de produtos básicos de alimentação, como soja, milho, carne bovina, aves, cítricos e outros. Existe algum grau de contradição entre a expansão da exportação dessa cesta de produtos básicos de alimentação e a expansão da renda da população mais pobre, seja pelo crescimento econômico puro e simples, seja pela redistribuição de renda. No curto prazo, políticas de crescimento que acelerassem o incremento da renda da população de mais baixa renda, permitindo a elevação de seus padrões alimentares, poderiam ter como conseqüência a redução de excedentes exportáveis para atender a esse aumento da demanda interna. Além disso, a transformação da quase totalidade da grande produção agrícola comercial em commodities exportáveis provoca uma vinculação entre preços (em moeda nacional) no mercado interno e preços (em divisas) no mercado internacional. Tal transformação faz com que variações positivas de preços no mercado internacional, com impacto positivo sobre a receita das importações, tenham impacto negativo sobre a renda real da população mais pobre, que vê seu poder de consumo diminuir nesses casos. No momento atual, fala-se até em uma “globalização da inflação”, exatamente pelos efeitos da liberalização comercial e das baixas inflações nacionais – que fazem com que os reflexos das altas de preços motivadas pelo comércio internacional sejam mais visíveis internamente nos vários países.
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Classe trabalhadora prejudicada Outro efeito que decorre da inserção internacional baseada em produtos de baixo conteúdo tecnológico é a pressão por uma “espiral” de redução dos custos da mão-de-obra, seja remuneração, sejam outras conquistas e/ou direitos legais da classe trabalhadora, vistos apenas como custo. Se em uma economia menos dependente da dinâmica do comércio internacional e menos exposta aos movimentos desse comércio, incrementos de renda de assalariados(as) são transformados dinamicamente em aumento do volume de vendas – gerando aumento da produção em uma trajetória virtuosa: em uma economia exposta às exportações de outros países e dependente de uma dinâmica exportadora, aumentos de renda da classe trabalhadora e/ou de seus direitos e conquistas passam a ser vistos, principalmente, como novos aumentos de custos, que dificultam a capacidade de competição das empresas. O que pode parecer uma complicada discussão de economistas é traduzida na linguagem empresarial sobre o aumento do “custo Brasil” como mais um argumento contra as conquistas trabalhistas. Em um país com os padrões desastrosos de concentração da renda nacional, como o nosso, curiosamente, a inserção internacional pela via da ampliação dos fluxos de comércio introduz mais um elemento contrário à melhoria da remuneração da população trabalhadora em geral e à obtenção de conquistas nos setores mais organizados, que têm poder de negociação – a redução da chamada competitividade de nossos produtos, especialmente aqueles de mais baixo conteúdo tecnológico, pelo impacto do custo da mão-de-obra no valor final dos produtos. Meio-ambiente em risco É preciso considerar ainda a questão ambiental, e os efeitos da estratégia exportadora sobre os recursos naturais. Parte dessa estratégia está baseada na possibilidade de uso intensivo dos recursos naturais do país. Grande extensão de terras potencialmente agricultáveis, disponibilidade de extensões territoriais a baixo custo, abundância de água em grande parte do território, sol durante todo o ano, e pouca ou nenhuma ocorrência de catástrofes naturais são uma inegável vantagem competitiva brasileira, além da ocorrência de recursos minerais que a própria extensão territorial torna possível. Porém, o uso intensivo visando ao comércio internacional de parte importante dessa potencialidade competitiva implica degradar, em curto espaço de tempo, uma situação peculiar que poderia permitir tranqüilidade às gerações futuras em um mundo onde esses recursos terão cada vez mais valor. Ao exportar recursos minerais ou produtos agrícolas, estamos exportando recursos naturais, já que muito dessa produção exportável embute água, terra, recursos energéticos fornecidos a preços baixos para viabilizar a capacidade dinâmica das exportações. Os efeitos destrutivos da construção de barragens para a produção de energia mais barata; da exploração mineral em grandes extensões territoriais do Brasil são apenas exemplos. Talvez o mais gritante no período recente seja PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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a expansão da grande agricultura comercial sobre as áreas de parques e florestas, sobre as formas de produção e de viver mais tradicionais no interior brasileiro. Essa é impulsionada pelo dinamismo do padrão de inserção comercial internacional do país, especialmente em produtos como soja, algodão e bovinocultura, que provocam aspectos negativos do ponto de vista ambiental e da segurança pública – como o aumento da violência causado pela expansão dessas culturas na fronteira agrícola no Norte, Centro-Oeste e Nordeste. Sem contar o efeito de longo prazo que a expansão da grande agricultura comercial tem sobre a concentração de terra e o agravamento dos problemas sociais e de violência no campo brasileiro. Natureza perversa A tentativa oficial de coordenar, em um projeto de desenvolvimento, os interesses expansivos e ofensivos da grande agricultura comercial de exportação com um modelo que torne a agricultura familiar, ao mesmo tempo, viável e dinâmica é, muitas vezes, inviabilizada pelo próprio dinamismo econômico da grande agricultura comercial voltada às exportações – tão importante para a estratégia de geração de grandes superávits comerciais de curto prazo no país. A insistência em uma inserção exportadora de baixo conteúdo tecnológico deve ser vista também pelos efeitos que pode ter sobre as prioridades da educação e do impulso ao desenvolvimento de geração de tecnologia e conhecimentos no país. Efetivamente, se pode ser vista como uma estratégia, é de natureza absolutamente perversa do ponto de vista das prioridades e da definição de uma estratégia de educação para o país. Não apenas porque esse tipo de opção de crescimento depende pouco da população com maior escolaridade – porque não se pretende desenvolver uma capacidade própria intensiva de geração de conhecimento e tecnologia, já que esse tipo de estratégia demanda pouco nessa área e parte dos “pacotes” tecnológicos são importados. Mas também porque sua própria dinâmica tem baixa capacidade de inclusão da população nacional no sistema educacional formal – mas nada impede que isso seja feito, basta uma decisão política. Para além dessa questão, a baixa prioridade à pesquisa e ao desenvolvimento de tecnologia nesse padrão de inserção internacional requer poucos investimentos nessas áreas e gerar poucas oportunidades de trabalho em uma área potencialmente nobre – a de desenvolvimento de tecnologia e ciência. A insistência em uma estratégia comercial internacional ofensiva nos fóruns internacionais de discussão, a exemplo da OMC, como parte da estratégia de ajuste do setor externo nacional e de contornar os estrangulamentos da vulnerabilidade externa da economia brasileira, se, de um lado, configura a definição de uma estratégia de desenvolvimento, por outro, baseia-se em elementos do que poderíamos chamar de uma competitividade perversa pelos seus efeitos sociais, ambientais e no mundo do trabalho no país.
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MODELO DE DESENVOLVIMENTO IMPLÍCITO? As opções tomadas nos processos de negociação nos quais o Brasil está ou esteve envolvido (tendo sido a Alca um dos mais importantes), e que privilegiam os interesses da grande agricultura comercial de exportação, vinculam-se, ao menos passivamente, a uma estratégia possível de integração. Esta reforça a manutenção da subordinação aos centros econômicos hegemônicos e às empresas a eles vinculadas. Tais opções inviabilizam, ou no mínimo dificultam, estratégias alternativas de desenvolvimento, que têm como objetivo ou motor o combate à exclusão social e o atendimento de demandas da maior parte da sociedade: a população trabalhadora. Entretanto, a partir do governo Lula, essa estratégia que mantém o privilégio dos interesses da grande agricultura comercial exportadora não ocorre sem conflitos. No conjunto de interesses a serem considerados no processo negociador, também faz parte da estratégia do novo governo contemplar as possibilidades de obter margem de manobra para maior autonomia da estratégia nacional de desenvolvimento e incorporação de alguns dos interesses da agricultura familiar na estratégia de integração internacional. A incorporação desses novos elementos às preocupações dos negociadores brasileiros amplia as contradições da estratégia negociadora brasileira; ao mesmo tempo, permite a ampliação de argumentos e maior mobilidade em um cenário de múltiplos e simultâneos processos negociadores. A escolha da estratégia exportadora como opção para contornar as restrições externas pode não ser definitivamente uma estratégia de desenvolvimento. Mas, efetivamente, vai esboçando um desenho de política de crescimento, que pode ter fôlego curto em um país das dimensões do Brasil. Porém, quando levada adiante, tal estratégia tem importante influência nas definições das posições negociadoras brasileiras nos processos nos quais o país está envolvido, particularmente no âmbito da OMC. Cristalizadas na forma de acordos, podem ter efeitos de longo prazo sobre os desenhos da economia e da sociedade brasileira. As conseqüências podem ser bastante complicadas do ponto de vista de pensar uma sociedade e uma economia menos desigual e mais justa. O mesmo ocorreria em relação aos efeitos que podem ser imaginados sobre o futuro de indicadores ambientais, educacionais, de padrões de remuneração e relações de trabalho e de saúde no país, entre outros. PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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O dinamismo de uma inserção comercial internacional baseada em produtos de baixo conteúdo tecnológico e intensivos em recursos naturais e ambientais é contraditório com a definição de um projeto de desenvolvimento que se queira capaz de gerar um dinamismo próprio, baseado na expansão do mercado interno e na ampliação da inclusão social. Esses são elementos fundamentais sobre os quais deveríamos nos debruçar, pois nem sempre ficam claros, quer para uma sociedade que, às vezes, parece ansiosa por uma busca de dinamismo econômico a qualquer preço, quer para um bloco de forças políticas que chega ao poder e tem de governar com estratégias de desenvolvimento em disputa. Exatamente neste último ponto reside o perigo de, pelo pragmatismo de decisões tomadas por um elemento que deveria ser apenas um dos componentes da estratégia geral de desenvolvimento, possa-se desenhar a estratégia geral com todos os riscos embutidos. A parte definindo o todo, e condicionando, a partir da estratégia de inserção comercial, todos os elementos de mudança de uma sociedade, teria domadas as forças que buscam a transformação social e econômica pela imposição de supostas necessidades pragmáticas. Apontar esse perigo permite recompor a capacidade de pôr na ordem do dia, novamente, a discussão clara e explícita de qual projeto de desenvolvimento se quer construir. Permite retomar a disputa dos projetos e, ainda, pôr a questão do comércio internacional – e as definições macroeconômicas ou diplomáticas que sobre ele são feitas – dentro dos marcos de um projeto mais geral de país, do qual a estratégia exportada é apenas parte, e como tal deve ser pensada em relação ao conjunto da estratégia de desenvolvimento. Pensar dessa forma permite identificar graves problemas potenciais nas definições feitas hoje nos processos negociadores nos quais o país está envolvido, particularmente a OMC, e nas suas dramáticas conseqüências sobre o futuro do país e seus indicadores de desenvolvimento. Essa estratégia, se é para ser vista como tal, aparenta conter fortíssimas contradições com uma agenda social explícita do novo governo, e também, a partir do lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), com a agenda econômica. Por isso, é necessário reposicionar as questões dessa agenda como centro das preocupações – e a inserção comercial internacional como uma componente a tornar possível efetivar essa agenda social no futuro, e não inviabilizá-la.
LIMITES E DESAFIOS A definição implícita de um modelo de desenvolvimento a partir da inserção exportadora parece definir os rumos gerais da política de comércio exterior do país. O que acaba definindo também as políticas referentes às negociações comerciais nas quais o país vai se envolvendo, individualmente ou como parte de blocos – como o Mercosul – e coalizões, como o G-20 (bloco de países envolvido nas negociações da OMC, liderado pelo Brasil).
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Isso é bastante complicado, pois, em vários processos de negociação comercial, acaba vinculando diretamente a participação do Brasil, e dos seus negociadores, aos interesses dos principais exportadores, especialmente a grande agricultura comercial de exportação, os produtores de produtos agrícolas processados e as mineradoras e indústrias associadas ao processamento de minérios. Portanto, há interesses restritos dentro da complicada estrutura social brasileira, mas, evidentemente, poderosos do ponto de vista exclusivamente econômico. Entretanto, existem, ao menos, quatro elementos importantes que operam no sentido de contra-restar, de alguma forma, esse tipo de posicionamento da diplomacia comercial brasileira. O primeiro, que deveria ser levado em consideração, especialmente neste momento, é que existe uma demanda de longo tempo na sociedade brasileira pelo crescimento econômico. Para vários setores, são demandas pela “qualidade” do crescimento, isto é, a velha discussão sobre o desenvolvimento, o crescimento como forma de viabilizar o atendimento dos direitos da população, com ênfase na população mais pobre e excluída. Como adiantado, o modelo exportador tem limitada capacidade de transmitir dinamismo para o restante da economia, de alavancar crescimento acelerado. E, neste momento, isto parece que não é somente expressão de desejo do governo. Foi materializado como política de governo no PAC. Assim, passa a existir uma contradição entre dois distintos objetivos de governo, e isso dá margem ao debate. O segundo elemento é que as conseqüências das posições tomadas nas negociações comerciais não se materializaram. Nenhuma das principais negociações nas quais o país está envolvido chegaram a seu término. Mas vale observar que alguns setores importantes de apoio ao atual governo ou, pelo menos, fundamentais para sua vitória eleitoral no ano passado – como a agricultura familiar e o movimento sindical ligado ao setor industrial – poderiam ser fortemente prejudicados: por dificuldades crescentes para funcionar; pela redução da atividade e conseqüente desemprego; pelo “sucesso” de algum desses processos de negociação, caso levado a termo. Assim, essa outra oposição prática aos resultados de uma negociação levada adiante e concluída com os parâmetros atuais não pode ser desprezada pelos seus eventuais impactos políticos e sociais. O terceiro elemento diz respeito à política de transparência em relação às organizações da sociedade brasileira sobre os conteúdos e as formas dos processos negociadores nos quais o Brasil se vê envolvido. Desde sua primeira posse, em 2003, o atual governo se comprometeu com a transparência nas ações. Essa transparência, ao menos nos casos das negociações comerciais, muitas vezes se confrontou com a pressa ou a estratégia de tentar concluir alguns dos processos negociadores. As tentativas de reanimar e fechar as negociações da Rodada de Doha da OMC são o melhor exemplo nesse sentido, posto que capitaneados pelo próprio ministro das Relações Exteriores. Mais uma vez, as tentativas de chegar a um termo nos processos negociadores parecem se confrontar com os compromissos de transparência. Talvez porque, de alguma forma, o fechamento PENSANDO UMA AGENDA PARA O BRASIL: DE SA FIOS E PERSPECTIVAS
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dos processos negociadores, nos termos impostos, implica perdas para vários setores que, se não têm capacidade para definir uma agenda dos conteúdos da negociação, podem ter forças para formar coalizões que possam resistir ao fechamento de negociações que indiquem prejudicá-los de alguma forma. Esse é mais um elemento importante a ser levado em consideração, especialmente por definir, mais claramente, as relações entre governo e organizações da sociedade, que, se já existem, precisam ser mais formalmente estabelecidas. Finalmente, existe um componente que, por vezes, confronta as estratégias específicas voltadas às negociações comerciais no sentido estrito e as estratégias de integração regional em uma escala mais aprofundada. O discurso de setores do empresariado confrontando uma estrutura em construção e ainda frágil, como o Mercosul, e a possibilidade de conclusão de processos negociadores nos quais o Brasil se encontra envolvido é só um exemplo desse tipo de contradição. Assim, é preciso considerar que os processos de integração regional (e aqui se deve fazer referência mais diretamente a agenda de relações e integração Sul-Sul da diplomacia brasileira) envolvem não só interesses políticos nacionais estratégicos, quando e onde existam. Envolvem, também, interesses importantes de setores do empresariado nacional, voltados estrategicamente para os ganhos que esses processos de integração regionais podem resultar e que não devem ser desprezados– como integração de cadeias de produção e fornecimento de insumos importantes, aproveitamento de extensão territorial e recursos naturais, etc. E não devem ser desprezados exatamente pelo confronto com negociações comerciais, cuja perspectiva está mais voltada à obtenção ampliada de acesso a mercados. Portanto, esse elemento que diz respeito ao processo de integração pode ser, em parte, acoplado ao plano das negociações comerciais, mas pode, também, entrar em conflito com esses mesmos processos, a depender de seus conteúdos. Tais análises permitem uma noção importante de elementos que podem servir para contrabalançar a estratégia negociadora adotada até aqui nas negociações comerciais nas quais o país se achou envolvido neste último período. Essa estratégia pode não ser facilmente compreendida e, por vezes, parecer sinuosa – apesar da explicitação de objetivos razoavelmente claros. Embora direcionada e assentada em interesses econômicos e objetivos macroeconômicos poderosos, com os reflexos de sustentação política que dela resulta, não está livre de forças que podem funcionar como vetores em outros sentidos. Por isso mesmo, a resultante da ação nem sempre parece tão evidente, especialmente ao final dos processos, quando talvez as perdas eventuais com a conclusão dos processos negociadores comecem a ficar tão ou mais claras quanto os ganhos alardeados no seu início pelos setores mais diretamente interessados/envolvidos no tema.
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Programação do seminário Pensando uma agenda para o Brasil: desafios e perspectivas
PRIMEIRO DIA: 26/6/2007 Manhã Tema: modelos de desenvolvimento Objetivo do painel: discutir as características e problemas do modelo de desenvolvimento que tem orientado as políticas econômicas e sociais do governo brasileiro nos últimos anos e quais seriam as alternativas. Conferencistas: João Sicsú – UFRJ e Célia Lessa – UFF Moderadora: Eliana Magalhães – Inesc Tarde Tema: participação e controle social Objetivo do painel: fazer um balanço do estado atual dos mecanismos institucionais e processos de participação e controle social utilizados ao longo dos últimos anos, buscando refletir sobre as possibilidades de ampliação da democracia participativa na elaboração, implementação, monitoramento e avaliação das políticas públicas. Conferencistas: Lucia Avelar – UnB e Chico de Oliveira – USP Moderador: José Antônio Moroni – Inesc
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SEGUNDO DIA: 27/6/2007 Manhã Tema: direitos humanos e desigualdades Objetivo do painel: ao longo das últimas décadas, verificamos um claro avanço nas políticas de direitos humanos, agora visto à luz do conceito ampliado dos Dhescas. Várias políticas públicas foram criadas dando institucionalidade a direitos, como o da alimentação adequada, da defesa da agricultura familiar, da segurança alimentar, entre outras. Assim, os Dhescas foram incorporados no debate sobre o modelo de desenvolvimento, mas, embora sua força simbólica seja significativa, a sua força política segue sendo relativamente frágil. O painel vai discutir essas premissas, identificar avanços e retrocessos recentes no debate sobre direitos e avaliar os desafios para as organizações sociais, movimentos e ONGs para avançar nessa agenda e aproveitar as oportunidades conquistadas. Conferencistas: Sueli Carneiro – Geledés, Sílvia Ramos – CESeC/Ucam e Paulo Carbonari – MNDH Moderador: Atila Roque – Inesc Tarde Tema: Política Internacional Objetivo do painel: analisar o contexto da política externa brasileira diante das propostas de integração nos âmbitos regional e global, e o papel da sociedade civil. Conferencistas: Maria Regina Soares – Iuperj e Adhemar Mineiro – Rebrip Moderadora: Iara Pietricovsky de Oliveira – Inesc
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