Fluir nยบ1 - Renascimentos - Setembro 2018
Fluir
renascimentos
Índice Editorial | José Pacheco Recensão | Joana Pontes Sarah Bakewell, How To Live
Conto
| Julieta Monginho A Ambulância Amarela
Poesia
| Paulo Carvalho Antes do Eclipse
Conto
| Nuno Vaz Índico
Ensaio
| A.M.G.L. Cruz Venice: Memories of a Different Republic
Poesia
| Júlia Lello Dona Script em Honra de Marguerite Duras e Alain Resnais
Entrevista | Ana Marques Entrevista - despertaDOR
Ensaio
| Miguel Real Substituição de Gerações Literárias
Conto
| Elisa Costa Pinto Um Chapéu sob o Céu de Lisboa
Entrevista | Isabela Figueiredo Entrevista - Saí de Moçambique
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
RENASCER E FLUIR José Pacheco Se sou um dos muitos que não prescindem do papel quando se trata da leitura como prazer, um desses que cheiram as folhas dos livros e descobrem, no mero acto de folhear, uma insubstituível experiência táctil, entender-se-á que a minha participação numa revista digital não significa, nem poderia significar, a participação numa espécie de manifesto futurista dos nossos dias; a intenção de modernizar leituras e leitores. Contudo, a natureza desta revista tem as suas virtualidades, de que seria um desperdício não tirar partido. Para já, o baixo custo: criarmos Fluir, requereu, unicamente, computadores, «competências» e muita vontade, e o talento que poderão encontrar nas páginas seguintes. Pensámos nela, desde o início e no seu próprio conceito, como gratuita, o que não conseguiríamos se se tratasse de uma revista em papel. Desejávamos alcançar uma vasta comunidade de leitores em rede, o que a internet possibilita. Assim, sem o intuito de vender ou de se vender, não se preocupando senão com a aspiração a ser interessante e de bom-gosto, num acto livre, puramente cultural, esta revista pretende tornar-se visível para muitos e cada vez mais leitores. O primeiro número tem, como tema agregador, renascimento(s). Em todas as acepções da palavra, quer se trate do sentido histórico, ou filosófico, ou psicológico, ou político, ou literário, e em diversos campos, da entrevista ao ensaio, à poesia, ao conto, ao vídeo ou à ilustração, o que Fluir procurou foi a exposição de variadas, diferentes e, porventura, opostas, experiências de «ressurreição». Uma forma de renascimento terá sido, certamente, para muitos portugueses, o regresso de África: o retorno.
4
Para o bem ou para o mal, entre o que perderam de tudo quanto julgavam ter construído, e o sonho de uma reconstrução no país de origem, para onde voltaram, de que já se não lembravam e se não lembrava deles, que os não compreendeu, mas aceitou, retornar (ou, para as gerações mais novas, «desenraizar-se») foi, de facto, renascer em outro universo. Sob o signo do retorno é feita a entrevista a Isabela Figueiredo (autora de Caderno de Memória Colonial e de «A Gorda», galardoada com o Prémio Literário Urbano Tavares Rodrigues), de uma sinceridade e uma auto-exposição comoventes, e a narração do conto «Índico» (Nuno Vaz), com o seu particular twist. Uma outra entrevista, à designer Ana Cristina Marques, tem, como eixo, a bela, no modo como nos seduz, e terrível no modo como nos captura (qual uma armadilha) «despertaDOR», uma instalação que esteve em exibição na Bienal de Cerveira, onde se apresentou como «uma proposta de renascimento na relação do homem com as outras espécies». Julieta Monginho, num texto sensível, palpitante de empatia, remete-nos para uma inesperada e, contudo, evidente, outra forma de renascimento: a adopção. A partir da sua vivência como jurista que lidou com diversos casos de crianças em processo de adopção, Julieta Monginho fala-nos desse renovar de tudo, completo e complexo, em que, tantas vezes, o próprio nome, símbolo maior da identidade da pessoa, acaba mudando. Ainda uma inesperada e evidente forma de renascimento: Elisa Costa Pinto escreveu um conto sobre os refugiados do passado.
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
A sua inteligência emocional cultiva, aqui, o círculo em que o leitor se deixa afectar, reconstituindo, como só ela, a vivência da perda de raízes, do desamparo, da saudade e do recomeço. A cativante recensão, feita pela cineasta Joana Pontes, de uma biografia de Montaigne, «How to Live», desperta-nos para os ensaios do pensador, como num convite à ressurreição do homem não propriamente esquecido, mas insuficientemente lido; a um reencontro com a serenidade e a luminosidade das suas ideias acerca da vida; e à descoberta do livro, de Sarah Bakewell que no-los devolve como objecto de prazer e apaziguamento. Dois ensaios merecem-nos toda a atenção: um, do romancista e ensaísta Miguel Real, acerca do renascimento do romance português; outro, em inglês, do teórico da política A.M.G.L. Cruz, que, ao tomar como objecto de análise o regime da Veneza renascentista, se interroga sobre se o não poderíamos encarar como um modelo para um renascimento da política contemporânea. Júlia Lello e Paulo Carvalho escolhem-nos como leitores da sua poesia. Sobre poemas, evitemos frustrantes apresentações: nada como lê-los. Deixo para o fim um destaque que convidaria a que saboreassem com as justas surpresa e encantamento. Patrícia Costa, autora da elegante e criativa capa da revista, que dá metaforicamente forma à sua visão do renascer, é uma jovem desenhadora e ilustradora de que ainda muito, garantidamente, se ouvirá falar. A promessa está feita. A todos os que com a generosidade do seu talento e o talento da sua generosidade, graciosamente, nos dois sentidos da palavra, colaboraram no nascimento de Fluir, um agradecimento profundo e sincero;
as desculpas pelo tempo que, contra a nossa intenção, decorreu, desde a entrega dos seus originais até à saída da revista; e o desejo de que o resultado não lhes pareça aquém do que ofereceram. Usufruam, pois, a leitura, com o vosso talento de leitores. Divulguem-na, na medida do vosso gosto e do vosso interesse. Com o vosso talento de lançadores de sementes. José Pacheco
5
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
Bakewell, Sarah (2011), How To Live or A Life of Montaigne in one question and twenty attempts at an answer, London, Vintage Books Joana Pontes Dei com este livro por acaso. Estava na biblioteca do Instituto de Ciências Sociais a folhear um jornal em língua inglesa deixado em cima de uma mesa enquanto esperava por alguém. O título do livro, publicitado na última página do jornal, chamou-me à atenção: How to Live. A tentativa de responder a esta imensa questão apresentava-se em vinte capítulos, escritos a partir da observação da vida e dos ensaios de Michel Eyquem de Montaigne. Mandei-o vir e li-o devagar, quase sempre à noite, altura em que dispunha de tempo e tranquilidade. À medida que avançava, ia antecipando com alguma tristeza o dia da última página. Alguns anos depois, o livro continua na minha mesa de cabeceira. É uma companhia sábia, à qual volto com frequência. Dele passo a falar como leitora comum, amadora, no sentido daquela que ama e tem gosto por, sem quaisquer pretensões de nada mais dizer do que o dar a conhecer. How To Live or A Life of Montaigne in one question and twenty attempts at an answer, foi publicado pela primeira vez em 2010 no Reino Unido, tendo sido traduzido para doze línguas, incluindo o português do Brasil. A autora, Sarah Bakewell, nasceu em Bournemouth, na costa sul da Inglaterra. Filha de pai livreiro e mãe bibliotecária, estudou filosofia na Universidade de Essex e fez uma pós graduação em Inteligência Artificial. Durante dez anos trabalhou na catalogação de livros antigos e raros, dedicando-se, desde 2002, à escrita e ao ensino. Conforme entrevista ao New York Times em Dezembro de 2010, Sarah Bakewell descobriu os ensaios de Montaigne por mero acaso.
6
Procurava um livro em inglês que lhe fizesse companhia durante a longa viagem de comboio que a ia levar de Budapeste a Londres, nos anos 90 do século XX e o único que encontrou foi uma seleção dos ensaios do nobre francês que viveu no século XVI. How To Live é, pois, a biografia de Montaigne. Nascido em 1533 em França, viveu na zona de Périgord no sudoeste do país. Começou a escrever aos 39 anos de idade e fê-lo durante 20 anos, redigindo 107 ensaios de extensão variável, sendo considerado o criador deste género literário. O subtítulo do livro dá-nos a ver a forma como a autora organizou a narrativa: apresenta ao leitor os principais factos da vida de Montaigne, ligando-os às respostas que os ensaios fornecem à premissa inicial, a questão How to Live, central no pensamento do filósofo. Estas respostas, organizadas cronologicamente de acordo com a biografia de Montaigne, dão título aos capítulos. Alguns exemplos podem dar-nos a perceber do que tratam: HOW TO LIVE - Pay attention; Be born; Read a lot, forget most of what you read, and be slow-witted; Survive love and loss; Question everything; Guard your humanity; See the world; Be ordinary and imperfect e Let life be its own answer. Através desta obra, a autora consegue tornar Montaigne acessível a leitores para lá da comunidade de especialistas, ao mesmo tempo que desperta interesse e desejo de conhecer os ensaios. Como refere na apresentação do livro, Montaigne percorreu não só as maiores perplexidades da existência – a morte, a perda, o fracasso – como também os detalhes que dizem respeito ao dia-a-dia, questionando-
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
se, por exemplo, entre outros assuntos aparentemente triviais, como consolar um vizinho entristecido ou tomar conta da casa. O capítulo I trata da libertação do medo da morte, momento central na vida de Montaigne, que ocorre após uma queda quase fatal ao passear a cavalo nas redondezas da sua propriedade. Esta libertação surge como um verdadeiro renascimento e torna-se determinante no seu pensamento e reflexões futuras. Apesar de escritos há mais de 400 anos, num tempo diferente do nosso, a leitura dos ensaios leva-nos com frequência a vivenciar uma inesperada familiaridade que anula a distância entre nós e Montaigne, dando a ideia que nas suas reflexões o filósofo está a falar de nós e para nós. A autora dá exemplos de escritores como Virginia Woolf, Emerson, Gide, Stefan Zweig e Flaubert, e também de gente comum que vêem nos ensaios um espelho magnífico, uma companhia para a vida, o melhor amigo que se pode ter, justamente por ser uma obra de profunda reflexão a partir da própria experiência sobre a condição de se ser humano.
O livro de Sarah Bakewell é, como já disse, sobre o homem e o escritor. Mas é mais do que isso porque tendo sido escrito no século XXI traz as marcas do nosso tempo dando-nos a ver o filósofo à luz do que hoje somos. No final da biografia, ficamos com a convicção que Montaigne viveu cultivando o presente, o único tempo que existe, como notaram os pensadores gregos que o influenciaram, e consciente da impermanência, talvez a maneira mais verdadeira de existir. Após ler este livro, tomei para mim o conselho de Flaubert a um amigo, citado por Sarah Bakewell na introdução, sobre a forma de abordar os ensaios de Montaigne: “Don't read him as children do, for amusement, nor as the ambitious do, to be instructed. No, read him in order to live.” Joana Pontes 17.10.2017
7
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
A Ambulância Amarela
Julieta Monginho
8
Tenho um carro na mesa de cabeceira. Um carro especial, uma ambulância. Uma ambulância amarela. O carro que me transportou da primeira vida para a segunda, no bolso do anoraque azul. O anoraque é minúsculo, podia bem servir ao nenuco da minha irmã Teresa. A mãe mostrou-mo, e mostroume a gaveta onde o guardou. Disse Quando quiseres sentir o que foste na primeira vida, podes abrir a gaveta e pegar no anoraque, ainda conserva o teu cheiro antes de teres nascido pela segunda vez. Queria saber se era um cheiro mau, mas tinha medo. E se fosse parecido com leite azedo ou com bombinhas de mau cheiro como as do carnaval? A mãe reparou no meu medo, disse Não te preocupes, é um cheiro a sombra, mais nada. O cheiro do teu nome antigo. Eu tinha um nome diferente, quando vestia o anoraque e a ambulância amarela era a casa onde morava. Qual foi o meu primeiro nome? A mãe soletrou, e eu fiquei a matutar nas sílabas, na voz que ainda estaria na minha cabeça a entoar o nome, na voz que dentro da cabeça o reconhecia. Vozes escondidas numa nuvem negra, a dormir profundamente, sem despertador que as acordasse. Vozes que conservavam uma atenção que em tempos foi a minha, o cheiro que dantes era o meu – o cheiro do escuro e das quatro paredes húmidas que me cercavam. A mim e aos bichos rastejantes que conviviam comigo, nascidos da noite, e vinham tzz-tzztzz picar-me o corpo, crateras vermelhas por todo o lado, na fotografia guardada com o anoraque azul. Nunca abri a gaveta. O anoraque vai dormir lá dentro tanto tempo quanto o meu primeiro nome dormirá
dentro da minha cabeça. O cheiro do anoraque dorme dentro da gaveta e dorme dentro de mim. Shhhhhh, não façam barulho, não quero que ele acorde, que as borbulhas voltem a nascer da noite, ploc-ploc-ploc. Data, hora, local. Esses não mudam. O papel onde ficam registados não quer saber do momento em que respirei pela primeira vez ao colo da mãe. Mamã, como é que fui do teu coração para a tua barriga? Não foste, filho. A barriga não era minha. Mas, tu sabes, o coração é mais forte, ganha sempre. É para isso que serve a ambulância amarela, em cima da mesa de cabeceira. Para me transportar nos momentos difíceis, quando a cabeça se baralha e quase quase faz acordar o cheiro e as vozes daquela vida que dizem ter sido minha e me põem zangado com o mundo. Zangado comigo, às vezes, por pensar coisas antigas. Zangado com a mãe, porque não soube trazer-me na barriga dela, evitando-me a estranheza de nascer duas vezes. Pego na ambulância, com uma cruz encarnada no lado esquerdo, e enfio-me lá dentro. Começo a respirar melhor, o medo acalma. Penso que, embora o papel seja esquisito, pois muda umas coisas e outras não, e embora seja esquisita a viagem que me trouxe de uma vida para a outra, eu sou um só. Um nome antigo, um nome novo. Uma mãe e um pai, onde havia vozes nunca ouvidas, excepto a dos bichos zing-zing-zing que entravam pelos buracos. As mudanças vieram ter comigo e tornaram a minha vida noutra vida. Sou eu, nas duas vezes em que nasci. Na fotografia guardada junto ao anoraque azul estou sentado no tapete da sala. Tenho a ambulância amarela na mão, mas não olho para ela. Olho para um lugar que não fica em cima nem em baixo, nem de frente nem de
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
lado, um lugar que me pergunta onde estou e não responde. O anoraque está pousado em cima do tapete no chão da casa que é esta, a casa que eu conheço. As almofadas que me seguram ainda estão na cama onde agora durmo e acordo. O anoraque, a ambulância, o tapete, as almofadas, eu, entre os dias passados e o dia em que nasci pela segunda vez. O lugar, afinal, respondia, eu é que ainda não sabia ouvir. Estás aqui, na tua casa verdadeira, com o teu nome verdadeiro. Mamã, foste tu que tiraste a fotografia? Não, foi o teu pai, eu estava mesmo ao lado dele. Só as borbulhas têm cor, na fotografia, eu não tenho cor nenhuma, pareço feito de cera. Não apanhavas sol, na tua primeira vida. Preferia não ter tido essa vida. Tens razão. Mas agora fica aqui guardada. Só vens visitá-la quando quiseres. Nunca mais quero abrir essa gaveta. Ainda não abri a gaveta. Talvez quando for crescido, quando tiver a força do Super Homem. A ambulância amarela está aqui, posso esconder-me nela sempre que quiser. Acho que tive sorte por ter nascido duas vezes e continuar eu.
9
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
Antes do Eclipse
Paulo Carvalho
Não é que um homem não saiba que não está aqui por inteiro e que aqui como qualquer lugar deixará de ser para si um lugar – mas quando entre a película sensível que o cobre e os ossos duros da mão tacteando a figura pressentida de novo o poema se faz carne há veios de pólvora seca convertidos em sangue corrente – e contra isso nenhum eclipse definitivo pode mais do que se eclipsar no instante eterno que desperta no meio dele 17.7.17
10
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
Índico
Nuno Vaz Márcio chegou num paquete. Um barco que não cabia no nosso olhar todo de uma vez. Era, se não me engano, o Príncipe Perfeito, nessa época em que as pessoas faziam viagens morosas, como se todo o universo fosse tempo e mar. Nunca tinha sentido que alguém me tivesse sido trazido pelo mar. Aconteceu com Márcio. [Talvez me seja tão nítida a ideia de que o mar mo deu, porque o mar mo levou, também]. Era um garoto de 5 anos, filho do Senhor Engenheiro que vinha trabalhar nas Obras Públicas, e de Dona Almerinda, uma senhora que usava óculos de sol como se fizessem parte indesmontável do seu rosto. Eu tinha 15 anos. Meu pai era afilhado do Senhor Engenheiro e, por isso, o Senhor Engenheiro levou--me para sua casa. Não me pagavam: ofereciam-me comer e dormir. Exigiam-me apenas que tomasse conta do menino Márcio. Brincava com ele, transformava-lhe os brinquedos em outros mais divertidos, com uma esfuziante imaginação que espantava o Senhor Engenheiro: «Este preto tem cabeça.» Eu passeava com o menino pelo bairro. Conhecia bem os limites da nossa pátria, até onde nos podíamos aventurar. E aventurávamo-nos até à cantina do monhé, onde o sentava nas sacas de arroz, a comer bolachas ou a tocar tambor em latas, enquanto eu jogava matraquilhos com a malta. O Ajit, filho do monhé, o Juca, que viria a tornar-se um grande jogador de futebol na metrópole, o Massinga e o Zé da Maxixe eram os meus companheiros de jogo. Ou então íamos ver os escoteiros descer por uma rampa, em carrinhos de rolamentos. O mais engraçado, porém, era o modo como eu transportava o menino Márcio de um lado para o outro. Primeiro, empurrava-o no triciclo, mas tinha colocado,
junto aos pedais, uma metralhadora de pilhas. Entalara uma pedra sobre o gatilho, que o premia continuamente, fazendo com que a metralhadora disparasse o seu taquetaquetaquetaquetaque ao longo de todo o percurso, como se fosse o tubo de escape de uma mota. O Senhor Engenheiro louvou-me o engenho. «Este preto tem cabeça». A senhora fixou-me com os óculos escuros num inexpressivo elogio. Mas isto não durou muito. Um dia, quando íamos no passeio a grande velocidade, eu empurrando o triciclo por ali fora, taquetaquetaquetaquetaque, um senhor branco, de óculos de massa e balalaica, mandou-nos parar. Parei, orgulhoso. Inesperadamente, o senhor ralhou, obrigando-me a tirar a metralhadora: «Isto é uma arma, não é um tubo de escape. Serve para o menino brincar às guerras, não serve para fingir de mota». Arrancou a pedra que premia o gatilho e atirou-a para longe: «Esta merda tem pilhas. As pilhas gastam-se, percebeste? Is-to gas-tá-pi-lha!» Regressámos, cabisbaixos. Resolvi reinventar o universo: esventrei uma casa de bonecas gigante. Fiz da casa de bonecas o invólucro do triciclo, a carroçaria de um automóvel lindo, a que nada faltava. Havia até um volante com uma ventosa, que eu ajustara ao interior do veículo. Tornei-me uma espécie de chofer, empurrando euforicamente o novo carro do menino Márcio. O Senhor Engenheiro comprou-lhe um boné de «chofer de praça», como dizia. Há fotografias: o menino acenando, de boné na cabeça, do interior do veículo, ou como orgulhoso condutor, posando com o seu rollsroyce. Numa fotografia, estou eu. Ao fundo, à margem, quase em parte alguma, como uma sombra. Por vezes, o Senhor Engenheiro e a Dona Almerinda não sabiam
11
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
12
em que medida podiam confiar em mim. Eu fazia disparates e a minha imaginação nem sempre era isenta de perigos. Na noite de uma grande festa, mandaramme deitar o menino Márcio. Pu-lo na cama, mas o garoto queria luz. Liguei o candeeiro pequeno, na mesade-cabeceira, enrolando uma toalha sobre o abajur, para que a luz se tornasse uma vaga respiração do escuro. «Está bem assim, menino Márcio?» Márcio adormecera, apesar dos risos que nos chegavam de baixo. Acordei sobressaltado, com o Senhor Engenheiro e a Dona Almerinda a sacudirem-me: a toalha aquecera excessivamente e pegara fogo. Havia chamas e fumo cinzento. O Senhor Engenheiro pegou na toalha, com um “Ah” de dor, atirou-a ao chão e pisou-a, repetidamente, até apagar o fogo. «O preto tem cabeça, mas é um miúdo». Nunca me deixavam levar sozinho o menino à praia. Eu tinha pena, porque Márcio, na praia, virava um habitante do mar, um elemento da flora e da fauna marinhas. Entrava na água sem medo e ali ficava sentado, radiante. Aos fins-de-semana, íamos todos: o Senhor Engenheiro, que conduzia o automóvel, a Dona Almerinda, ao lado, de óculos escuros, eu atrás, com o menino ao colo, mais as meninas Mimi e Mitó. O Senhor Engenheiro, de cabelo grisalho, muito magro e branco no seu calção de banho, dizia: «Não há como as águas do abençoado Índico. Na metrópole, não se conhece esta temperatura de água. Garantiamme: 'Ó Senhor Engenheiro, ai, e tal, venha connosco, venha connosco a uma praia do Algarve, que vai ver o que é água quente'. Eu confiava. Mas mal metia o pé no mar, parecia que apanhava um choque eléctrico. Na metrópole não fazem ideia do que é água quente.» Em cada gesto, em cada palavra, em cada observação,
em cada ideia do Senhor Engenheiro, se percebia o quanto ele se prendera a Moçambique. Passeava pela beira-mar, muito esquelético, uma concavidade no peito, a pele branca, como a das alforrecas que ia evitando, e sem pêlos. Naquela altura, o oceano Índico não era senão a água quente e boa que o trouxera. Quando Márcio foi para a escola – os meninos brancos entravam aí pelos 7 anos –, encarregaram-me de lhe levar todas as manhãs, no intervalo do mata-bicho, o leite e o pãozinho com manteiga. E eu ia, descalço, mas com uma fardinha muito limpa. O menino começava a ler e eu tinha imensa vontade de também aprender. Márcio sentava-se comigo no seu quarto, mostrava-me as letras, e eu espantava-me perante o sagrado segredo de as mudar em sons, sílabas e palavras. Ele gostava de fazer de professor. Às vezes ralhava-me, outras vezes dizia “muito bem”, mas a minha aplicação era sempre a mesma, inquebrável. Ofereceu-me um caderno, lápis, borrachas, uma capa em pele, com a efígie de Luís de Camões em relevo. Ensinou-me catequese e números. Eu sentava-me, depois, na minha cama, no quarto que partilhava com dois criados, a decifrar aqueles sinais que ganhavam voz. Os meus livros de adolescência foram, assim, os livros de leitura do menino e a Bíblia. Na 2.ª classe de Márcio, continuava a levar-lhe o matabicho das dez horas. O ritual do pão e do leite era observado por um bando de miúdos. Nesse bando havia Becas, um rufia. Alto e entroncado para os seus 9 anos, temido pelos demais, prometendo murros e pontapés a quem não fizesse os trabalhos por ele, ou não lhe oferecesse dinheiro, mirava-me com os olhos verdes, afiados. Um dia disse-me: «Faz-me cá uma raiva, este preto de merda, todo bem vestido!». E empurroume.
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
«Vai-te embora, ó preto». A cestinha do mata-bicho caiu no chão. Alguns putos, estimulados com a violência do Becas e com a minha reacção de escravo tímido e constrangido, apupavam e pediam: «Po-rra-da! Po-rrada! Po-rra-da!» Márcio, furioso, atirou-se ao Becas, esmurrou-o e fê-lo cair. «Vai-te embora», despachou-me. Sentindo-me um cobarde, deixei-o à mercê do Becas e gazelei rua acima. Nada aconteceu nesse dia, mas o rufia continuava a ameaçar Márcio, aproximando-se de súbito com o seu hálito de miúdo maldoso, «Eh pá, estás lixado! Até te rebento a fuça!» Márcio contou ao pai. O Senhor Engenheiro esperou por Becas, um dia, para lhe dizer que não se atrevesse a tocar no filho nem com um dedo. Becas, forte entre os putos, mas sem um pai que se medisse com o Senhor Engenheiro, acobardou-se, repetindo nervosamente: «Era a brincar! Aquilo era tudo a brincar, eu não lhe ia fazer nada!» E nunca mais se meteu com o miúdo.
os olhos, fitando o barco. Assisti a tudo. Não durou senão um momento. O menino adeusava-me, como se a sua mãozinha espalhasse fumo, chegou-se à borda e caiu ao mar. Vi a súbita aflição. Márcio vinha a tona de água, mas mal a cabeça assomava à superfície, tornava imediatamente a afundar-se. No barco, ninguém sabia nadar. Nem sequer o Senhor Ribeiro, orgulhoso proprietário da embarcação e do boné de marinheiro. Estavam inertes, horrorizados, e fui eu que, àquela distância, me lancei, vestido, ao mar e nadei com raiva. Percebi que me aproximava, ao ouvir os gritos da menina Mimi e de Dona Almerinda. Mergulhei profundamente, peguei no menino, que já não se debatia, trouxe-o à superfície e arrastei-o até ao barco. Fizeram-no vomitar, massajaram-no. Eu espreitava, com os braços sobre a borda. Este episódio não foi senão um sobressalto no estilo de vida tranquilo dos colonos. De um grupo pequenino de colonos. Uma família.
[Lourenço Marques, ouvira eu muitas vezes ao senhor engenheiro, é tudo isto: as acácias vermelhas ao longo das avenidas, os tons únicos do pôr-do-sol, e o mar. E eu pensava, ou sentia mais do que pensava: «O mar que trouxe o menino Márcio». Só muito mais tarde seria, também, o mar que mo tirou].
[A guerra parecia tão irreal em Lourenço Marques, um pesadelo longínquo…].
Certa manhã, um barco minúsculo juntou para um passeio no mar o Senhor Engenheiro, a Dona Almerinda, o Senhor Ribeiro, dono da embarcação, longo de braços e de pernas como um gafanhoto, de boné à marinheiro rolhando a sua cabeça oblonga, o menino Márcio e a Mimi. Eu ficara sentado no areal, de mão em pala a proteger
A guerra não era, porém, irreal e nem mesmo longínqua. O Senhor Engenheiro devia saber mais do que dizia. Dona Almerinda talvez nada soubesse, mas o Senhor Engenheiro..? Quando aquela ronceira vida colonial teve de se romper, transpareceu o que se ocultava sob os chás- canasta, «a voltinha dos tristes», ao domingo, pela Marginal, os passeios até à Costa do Sol ou as férias na Namaacha. E todos vimos. Digo «nós», porque mesmo nós, ou muitos de nós, os que sofríamos na pele negra a desigualdade, ficámos surpreendidos: há diferença entre
13
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
sentir as coisas, e delas tomar consciência. Foi um tempo de libertação e de estranheza. A liberdade é sempre estranha. Dona Almerinda sofreu um ataque. Márcio tinha 17 anos, eu 27. Com o Zé da Maxixe, fizemo-nos às estradas de Moçambique, sem dinheiro no bolso e de mochila às costas. Enfiámo-nos pela nova pátria dentro, para além dos limites da nossa infância. E do nosso orçamento. Aceitámos boleia de camiões, trabalhámos em machambas, inventámos histórias – começara a escrevê-las num caderno –, passámos fome, cantámos hinos libertários. Estivemos dois longos meses fora de casa, mas nunca tão próximos. A nossa casa era Moçambique, inteiro, ou, como se dizia, «do Rovuma ao Maputo». Ao regressar, soubemos que Dona Almerinda tivera um segundo ataque, o qual obrigou a família a pensar seriamente no retorno a Portugal. Márcio já não era o “menino Márcio”, mas só Márcio ou “Camarada Márcio”. Tornara-se parte de Moçambique, como os óculos de sol eram parte do rosto da senhora do senhor engenheiro. «Tu vais com os teus pais?» perguntei-lhe. E ele: «Eu sou moçambicano, tu sabes.» Márcio alfabetizava, à noite, na escola do hospital, e reunia-se regularmente connosco no Grupo Dinamizador do bairro. Enquanto isso, ali ao lado, os pais preparavam contentores para transportar para Portugal a sua parte de Moçambique, a sua vida moçambicana traduzida em móveis, no carro e no rádio gira-discos. Márcio não ia. Discutiu com os pais. Discutiu consigo mesmo. Não podia ir. Estava com 18 anos, a sua partida seria um roubo a Moçambique.
14
[Nada nele se conjugava com um retornado em balalaica, pelas ruas de Lisboa ou de Vila Nova de Famalicão, sentado por cafés, com os olhos baços de passado, brilhando ocasionalmente ao incendiar das memórias: «Ah, aquilo é que era vida! As praias? O céu? Os montes Libombos, a Inhaca? Os tugas sabem lá! Não percebem nada de África!»] Dona Almerinda sofreu novo ataque. E Márcio teve de partir num dos derradeiros paquetes. [Com o alargamento do “retorno”, dali a pouco o modo adoptado passaria a ser o avião, que não deixava perder tempo entre o desfazer de uma vida e o refazer de outra]. Não nos despedimos. No dia da partida não saí de casa, surdo aos toques de telefone. Imaginei-me a subir ao barco grande, para resgatar uma vez mais o puto ao mar. Dizem-me ainda, bastantes anos depois: «Mas ele pode voltar. Como pode o Camarada jurar que ele não volta?» Sei que, ainda que isso venha a acontecer, já não será o mesmo Márcio. Renasceu algures. Ou estarei enganado? E será que, onde quer que viva, nas ruas de Lisboa ou de Vila Nova de Famalicão, esse provável Senhor Engenheiro em que o filho do Senhor Engenheiro se poderá ter transformado, também grisalho, também magro e branco, como seu pai, se lembrará de mim? Do dia em que me defendeu? Do dia em que o salvei? Saberá, onde quer que passe os dias, que será sempre um moçambicano? Ou estarei enganado?
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
Venice; Memories of a Different Republic Tradução para português http://issuu.com/influir/docs/veneza
A.M.G.L. Cruz Introduction Somewhere in his three-volume magnum opus, The Stones of Venice, Ruskin paints an imaginary scene of the founding of the church at Torcello. Not without poetic skill, he describes a lonely island with ruined buildings, stranded in the vast lagoon of Venice, the roar of surf breaking in the distant sandbar audible in the background. A scene of beauty. He continues: Thirteen hundred years ago, the gray moorland (in the distance) looked as it does to this day, and the purple mountains stood as radiantly in the deep distances of evening; but on the line of the horizon, there were strange fires mixed with the light of sunset, and the lament of many human voices mixed with the fretting of the waves on their ridges of sand. The flames rose from the ruins of Altinum; the lament from the multitude of its people, seeking, like Israel of old, a refuge from the sword in the paths of the sea. Reality was more complicated, the agony more prolonged. The inhabitants of north eastern Italy began settling the islands of the Venetian lagoon sixteen hundred years ago, fleeing from the cataclysms associated with the fall of Rome. First came the Gothic invasions which culminated in the sack of the sacred city itself in 410; Saint Augustine's “City of God” was written in response to that traumatic event. But that trauma was psychological compared to what was to come. The vast and prosperous Roman cities of Aquilea and Altinum were repeatedly destroyed and its inhabitants massacred. They found themselves on the path to Rome in the invasion of the Huns (451 - 453), the Gothic wars (535 – 554) and the Lombard invasion (568). By the end Aquilea was reduced to a tiny village and Altinum was so thoroughly wrecked that its
location was only confirmed with 20th archeological techniques. The church of S. Maria Assunta in Torcello was founded in 639 by refugees from Altinum using marble columns and decorations from their church, transplanted by boat together with the body of their patron saint. Similarly, the refugees from Aquilea settled in the island of Grado. The Rialto (Rivoaltus or high bank), the site of the city of Venice we know today, was selected following the Frankish invasion of 810, because of its even greater inaccessibility. The Eastern Roman emperors in Constantinople were unable to help. But that remnant of the Empire survived, if barely. Its citizens, long after they had forgotten Latin, referred to themselves as Romans to the bitter end, as did their mortal enemies the Arabs and the Turks. Today we know it as the Byzantine Empire. It is a historical detail that is critical to the understanding of the soul Venice. For though Venice did not exist at the height of the Roman Empire, it was founded by ancient Romans. It began as an unconquered, and for many generations loyal, outpost of Byzantium. As the rest of medieval Europe went its way, Venice always looked both to the east and to the west. Ruskin, with his picture of a group of pale survivors, gathered for the consecration ceremony of their new church, the flames of the burning cities they left behind reflected on the clouds in the horizon, provides a vivid image of how Venice came to be. For Venice was not founded by idealists seeking Liberty, or a nobleman seeking a kingdom for himself and his heirs, but by refugees trying to stay alive. Whatever their original circumstances on the Italian mainland, these Roman refugees ended up as poor
15
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
Figure 1- View of Santa Maria Assunta in Torcello;. Ruskin climbed the 11th C. bell tower and wrote of the beauty of the lagoon.
16
fishermen, living in wooden houses built precariously on a vast swamp. A description of the early Venetians has come down to us, written by Cassiodorus, the prefect of Ravenna under Theodoric, the Gothic king of Italy (493 – 526). The American historian T.R. Madden, in his recent book “Venice, a New History”, translates it as follows: The inhabitants have only one concept of plenty: that of filling their bellies with fish. Poverty and wealth, therefore, are on equal terms. One kind of food sustains everyone. The same kind of dwelling shelters all. Clearly it all got off to a slow start. At first, the scattered inhabitants of the Venetian lagoon seemed to have lived in a semi-Hobbesian world with each tiny island settlement in a permanent state of conflict with the rest, all claiming a spiritual membership of the Byzantine Empire. However, in the year 697 the twelve local headmen of the lagoon, known as the Tribunes, agreed to elect a common leader. They called him the Doge, from the Latin dux (leader). And so began the story of the Venetian Republic. It was to last, unconquered, more than a thousand years; from the twilight of Classical Rome, to the French Revolution and the advent of Napoleon. In due course, the descendants of those fisherman were to acquire an empire in the eastern Mediterranean. They were to develop modern systems of trade, banking, investment and insurance, becoming fabulously wealthy. They were to spend their wealth producing some of the most sublime schools of architecture, painting and music of all Western culture. None of this could have happened without one further original creation; a unique nonmonarchical system of government. For the Venetian Republic was, up to now and by far, the longest lasting republican state in the history of mankind.
Venice Today Venice is a city of the dead. Calvino uses that refrain in his psychological parables of Venice. Madden describes it as an “exquisite corpse”. To a casual visitor those eminent Venetians, staring severely from oil portraits, seem members of a dead race. Perhaps such impressions arise from the contrast between the past and the present. Venice's physical aspect evidences a past of vigorous commerce, military adventures, lively politics and innovative art. Yet its modern inhabitants, hard to spot among the throngs of tourists, appear to have only one activity; tourism. Venice's transition to a tourist attraction began before the end of the republic. At the time of Goethe 's visit in 1786, Venice was already an obligatory stop for rich travelers from northern Europe, on the semieducational “Grand Tour”. Traditional events such as the carnival and the sensa (“marriage to the sea” ceremony) were made more opulent and extended in duration for the benefit of the visitors. The Doge and his officials became part-time Disneyland actors. The republic was forced to make an inventory of its priceless oil paintings, including those in private hands, to restrict their sale to foreigners. But, commerce and trade, the vital energy source, was dying as Venice was inexorably bypassed by events of modern history; the fall of Constantinople, the Portuguese opening of trade routes to the East, the loss of trading outposts in the Mediterranean, the Industrial Revolution. Nowadays the impression of Venice that greets its millions of visitors is predominantly that of a renaissance and baroque city. It is Proust's urbanization of the sea; a man-made jewel set in the natural beauty of its lagoon. Unlike Florence or Siena, Venice's renaissance buildings are not fortified, a result of the
Fluir nยบ1 - Renascimentos - 2018
Figure 2 - The Venice of today is primarily a museum city and tourist attraction
the absence of civil disturbances that plagued the other Italian city states. And there are more architectural features that are distinctly Venetian. Many of its major buildings have a Byzantine influence; the church of S. Marco (circa 1094) was designed and built by craftsmen from Constantinople, modelled on their own Church of the Holy Apostles (since razed by the Ottoman Turks). Another Venetian peculiarity are the numerous small squares with a (nowadays plugged) central well which correspond to the original island settlements that were later connected by landfill. The wells provided access to central underground cisterns that collected rainwater as underground water in the lagoon is too brackish. Napoleon confiscated many of Venice's artistic treasures and sent them to France. In earlier times, the Venetian Republic had been guilty of such plundering too; S. Marco is full of artworks from the sack of Constantinople in the Fourth Crusade (1204), notably the bronze horses and the porphyry statue of the Tetrarchs. But such was the quality and quantity of great Venetian artists that there is still plenty for visitors to see. Familiar names reel off the tongue; painters such as Bellini, Titian, Tintoretto, Veronese, architects such as Palladio, and composers such as Monteverdi and Vivaldi. The system of government of the old Venetian Republic is less world famous than its artists, but the size of the Great Council chamber in the Ducal palace provides the visitor with an intimation of difference; it was designed to accommodate around 2000 members. The Evolution of a Republic Governments are created and change in response to the ideologies, power elites and external circumstances.
Yet, in Europe, most states had a similar evolution; from feudal to absolute monarchy for example. Initially the Venetian government may not have been very different from a typical medieval Italian city state. But over time it diverged from the practice in the rest of Europe. Many explanations have been proposed; the equalitarian nature of the first inhabitants as alluded by Cassiodorus, the absence of landed wealth (there was little arable land in the lagoon), the anti-aristocratic tendencies of a society of tradesman, etc. The Byzantine empire was too weak to provide leadership. The sovereign power in the early Venetian Republic resided in the Arengo, the assembly of all the adult males. As in the rest of Italy, the early Venetians were an unruly lot and spent much time fighting each other. In addition to electing, the Arengo ended up deposing, exiling, blinding or murdering numerous Doges. The failed Frankish invasion of 810 triggered key developments; the Venetians became more unified, the first Ducal palace was built in the Rialto, the new site for Venice, and Charlemagne agreed to allow Venice to continue as part of the Byzantine empire. The grateful emperor Leo IV sent money and craftsmen from Constantinople to assist in building the new city. Venice became the major commercial entrepot between Byzantium and Europe. Money began to flow in as Venice embarked on its vocation as a country of sailors, businessmen and bankers. With wealth and peace came power, and the Dogeship became an attractive prize. The urge to bequeath your position to your heirs seems almost as strong as the will to power itself; an innate passion as strong today as at the dawn of civilization. Unsurprisingly, and similarly to other medieval republics, many of the Doges of Venice
17
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
Figure 3 - Procession in piazza San Marco by Gentile Bellini c. 1496 (Gallerie dell'Accademia, Public Domain. https://commons.wikimedia.org/w/index.p hp?curid=60483961)
18
tried to make their position hereditary. No stratagem was left untried; from appointing a son as “Vice-Doge”, to enlisting “popular” revolutions or conspiring with foreign invaders. Everywhere else in Europe the dynastic tendency was triumphant even if some republican forms were occasionally retained as in, for example, Florence and its Medici family. In Venice a ruling dynasty altogether avoided. But it was not easy; there were many civil disturbances such as in 976 when a “spontaneous” Arengo set fire to the Ducal palace and killed the would-be dynastic Doge and his infant heir as they tried to escape. The first S. Marco church was also burnt to the ground in this incident, destroying the body of St Mark, the patron saint of Venice. In 1172, following the killing of one more Doge (this time the dispute was over a failed military strategy) the Arengo was persuaded to make the election of the Doge indirect; henceforth it would elect eleven electors who in turn would elect Doge. Why was this believed to promote stability? Because the electors were prominent individuals trusted by the populace for their wisdom and benevolence, often wealthier citizens. They were more knowledgeable in the identification of the right profile for the Dogeship. The principles of indirect election and the existence of a council of “wise men” led to the establishment of the Great Council. Its membership may initially have been based on some sort of elected councilors, but over time it became hereditary and comprised representatives of the wealthiest families in Venice. The Arengo remained theoretically sovereign but gradually fell into disuse; the Great Council became the beating heart of the Venetian Republic, choosing all important government officials from the Doge downwards.
In 1297 Doge Pietro Gardenigo expanded membership of the Great Council to 1100 members; in addition to the wealthy families, impoverished descendants of formerly wealthy families were also represented. The Great Council became around 1% of the population of Venice; for comparison, the modern US House of Representatives comprises 0.0002% of the population. During the expansion, entry was made relatively easy; anybody who claimed they stood for an unrepresented group could become a member without too many questions, diffusing potential class and factional conflicts. After that however, entrance to the Great Council was gradually restricted. In 1323 the famous serrata, or closure, of the Great Council occurred. Henceforth only male descendants of members were allowed, with very few exceptions. And so the Great Council ended up as a hereditary elite, albeit a relatively numerous one based on ancestry, not wealth. Participation in the activities of the Great Council was mandatory. It was too large for decision making; its continuous activity was selecting members of government committees. These committees included the collegio (cabinet of ministers), Pregadi (120member senate to vote on legislation), the Council of 10 (supervision of all government activities) and so on. The committees were the executive government of Venice. Most committee positions had short terms of office, typically of one year. In contrast, the executive powers of the Doge, a lifetime position, were increasingly restricted until he became a largely ceremonial figure. To prevent the creation of factions and corruption, the selection procedures for government positions became famously complex.
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
Figure 4 - The Ducal Palace with the domes of S. Marco in background. The current aspect is predominantly 14th C but the building underwent continuous modifications, restorations, and renovations throughout its long life.
The table below shows the process for the election of the Doge where n is the entire membership of the Great Council. It comprises the successive use of two mechanisms; (1) random lots to reduce college sizes and (2) expansion of colleges through elections (candidates selected in principle from the entire initial pool n). An article by Miranda and Gollmann makes a mathematical argument that this process with its successive rounds of random lots and election is effective in reducing corruption and could have computer science applications in the prevention of infection by viruses.
Table: College sizes and minimum approval numbers for election of the Doge of Venice in 1268
A Modern Perspective Two observations from the above brief and incomplete reference to the Venetian Republic are; (a) a system where only 1% of the population have a voice in government policy is unpalatable to modern Western citizens and, (b) a system from a medieval/early modern city-state is inadequate for a complex modern state with millions of inhabitants and a large territory.
The question proposed is; are there any underlying principles that have a modern application? What if the number n in Round 1 in the above table were the voting population of a small country, say eight million instead of a couple of thousand? The great scientists of history, from Bacon to Bentham, from Mills to Marx, did not perform experiments to prove their theories. Human behavioral experiments with groups of university student volunteers have statistically quantified selected human behaviors but credible experiments to assess systems of government remain lacking. Can we reasonably ignore the experiment of a regime that governed a city of more 100,000 inhabitants and an empire, through myriad economic, social and military challenges for century after century? For in terms of longevity at least the Venetian Republic was a success and, unlike technology, human nature has changed little over the last couple of millennia. Some of the interesting and distinctive features of the Venetian government were; ·Extensive use electoral colleges composed of randomly selected citizens. ·Government by small committees whose members had short, non-renewable terms of office. ·The electoral colleges were given the time and opportunity listen, ponder and discuss the competency of the candidates for the committees. ·Use of complex combinations of random selection and voting by the electoral colleges to combat corruption, factionalism and vote buying. ·Mandatory political participation for a large body of citizens. ·A deep and continual engagement of electors on a variety of government activities.
19
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
Figure 5 - The Great Council chamber in the Ducal Palace
Some of the above features are compatible with the cherished goals of Western democracies such as equal opportunities, rule of law and popular sovereignty. Others are not; the use of electoral colleges drawn by lot is incompatible with the ideal of one person, one vote. There could be ways around such difficulties; a mixed regime that retained universal suffrage for some posts could be envisaged. But it is legitimate to ask why the application of principles of the now-dead Venetian Republic to the modern era should even be considered. In the words of Churchill, is not the current democratic system “the worst form of government, except for all the others”, meaning the best possible form? In practice, the dictum has so far proven to be true, but two hundred years is very young on the timescale of the Venetian Republic. Several risks for Representative Democracy can already be discerned, for example;
20
·Increasing power of special interests – There is a vicious circle whereby sectoral interests increase their income by buying favorable legislation from both current and potential governing parties, thereby enabling them to afford to buy more influence. Sectoral interests are plural and exists in many areas such as political parties, professional bodies, business, agriculture, healthcare, local, etc. Some have rich beneficiaries while others have middle class members, but all have in common the increasing exploitation of outsiders, including those in their areas. ·Difficulty in adapting to changing circumstances – A direct effect of the cross-party dominance of special interests is paralysis of government regardless of which party is in power. Over decades a vast body of legislation has been accreted, designed to deliver the loopholes and favors to the various clients.
Special interests ensure unfavorable laws are hard to enact. The space for decisions that do not clash with the existing legislation is reduced since their annulment or modification would also hurt those interests. ·Rise of automation –A rise in permanent unemployment due to technology is one such risk of changed circumstances. So far technological innovations have created more new jobs than were lost. But there is no demonstrable law that this must always be the case; self-driving vehicles, automated manufacturing and sophisticated “white collar” software could create a perfect storm, eliminating a catastrophic number of jobs. Western countries may be able to provide a minimum standard of living but a serious psychological challenge could arise; can the permanently non-working population lead meaningful lives and will the working elite be prepared to foot the bill without some reward such as exclusive access to power? ·Alienation from the political process – There is a growing suspicion among Western electorates that governments are increasingly aloof. This is correctly attributed to capture by special interests, but the wealthy “elites” fingered are the conspicuous tip of the iceberg. The remaining special interests are often successful in channeling voter dissatisfaction to further enhance their position. The result is frustration and either the total dis-engagement, manifested by high voter abstentions, pervasive tax avoidance and more emigration, or increased voting for extremist parties that are only capable of destruction. ·Local independence movements and the breakup of traditional nation states –Some Western Europeans can also “check out” through separatism. Whilst the material benefits claimed may be exaggerated, it is
Fluir nÂş1 - Renascimentos - 2018
Figure 6 - Lodovico Manin, the last Doge of Venice. Portrait by6 Bernardino Castelli (Museo Correr - Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=12041366)
conceivable that globalization, European unification and the modern economy have rendered the old nationstates less necessary, except to their leaders. As illustrated by the selection process for the Doge in the above table, the Venetians went to extraordinary lengths to prevent government capture by families and the other special interests of their age. Their success, the alternative experience of their European peers and the challenges of modern politics all strongly suggest they may have been on to something. Classical Athens, that rare completed experiment in democracy, succumbed to factions with famously unfortunate results. No system can fully eliminate corruption but modern Western democracies sometimes appear to have been refined for maximal corruption and conflicts of interest. The Venetian mandatory requirement for a personal face-to-face participation in government activities is an intriguing approach to reduce alienation from the political process. It could potentially provide ordinary citizens an opportunity to actively prevent corruption rather than unwittingly abetting it by voting for established parties once every four years. Because it is mandatory there is a small price in individual freedom but such an engagement could be a vital tool in a world where many people have too much spare time or are deprived of the socialization provided by work. Any modern implementation of the principles of the Venetian Republic would be very different from the mechanics of the original. For example, to give an entire population a reasonable probability of meaningful political participation there would have to be many more committees. But modern governments are also far more complex, having taken on board health, education, transport etc. Most such committees
would be local or regional but the resulting decentralization could diffuse separatism and promote ownership. Modern IT and communications could facilitate many of the processes – thought face to face activities in small groups should be retained. The End In 1797 Napoleon gave Venice the option to avoid destruction and a bloody death by committing suicide. The Great Council, or the half of its members that had not fled, met for the last time and approved the sensible option by 512 to 20 votes (5 abstentions). A few tears were shed in that room for the end of a singular thirteen-hundred-year enterprise. Venice has attracted almost every European romantic genius, artist or thinker from the eighteenth century onwards. All wrote their thoughts. Venice's political system initially got mixed reviews. French philosophers, relying on histories of poor scholarship, described it as a sinister aristocratic dictatorship. But these philosophers were advocating radically new scientifically-based republics; they would have been less than human if they had dwelt on the achievements of a republic that had been in existence since the end of the Roman Empire. Recent historians, using the vast documentary evidence available in a bureaucratic state that was never sacked or destroyed by natural disaster, have been much more impressed, notably S. Finer's scholarly The History of Government from the Earliest Times. The Venetian Republic was infinitely more than its political system but everything else was enabled by it. No one disputes the merit of Venice's art and architecture. The time has come to explore one final legacy; its revolutionary political system.
21
Fluir nÂş1 - Renascimentos - 2018
Do any of the principles and techniques of the old Venetian Republic have an application in the modern world? The question cannot be answered without deeper investigation but it is worth asking. Perhaps some of its concepts and lessons can be used to conceive a radically new system of government, never seen before; another Renaissance.
_________________ i- John Ruskin, The Stones of Venice, 1851 – 1853 ii - Thomas F. Madden, Venice; a New History, 2012 iii - Italo Calvino, Invisible Cities, 1974 iv - Johann Wolfgang von Goethe, Italian Journey, 1816-1817 v - Remembrance of Things Past, Marcel Proust, The Sweet Cheat Gone, Trans. C. K. Scott Moncrieff, 1930 vi - M. Miranda and D. Gollmann, Electing the Doge of Venice: Analysis of a 13th Century Protocoli (IEEE Computer Security Foundations Symposium, 6-8 July 2007)
22
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
A Dona
Júlia Lello Ela gosta de ti, como gosta dos gatos: Entre duas espinhas, passa-te a mão pelo pêlo, Vigiando-te os cios, previne os desacatos E vai gerindo os restos com lúcido desvelo. P'ra que atua alforria todo o mundo constate, Deixa que mies alto, à noite, nos telhados. Contanto seja o tempo do repouso das gatas E o gang dos caixotes actue noutros lados E porque não há nada que tanto que tanto te deleite, Consente que persigas os ratos nos esgotos: Mas à porta, de sonsa, deixa-te o pires de leite E uma fofa almofada onde enterres os ossos
23
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
SCRIPT EM HONRA DE MARGUERITE DURAS E ALAIN RESNAIS, ENTRE OUTROS
Júlia Lello
24
Lembras-te principalmente da natureza, que nesse tempo ainda não tinha sido maculada, apenas porque tu não perceberas que ela já o fora. Havia uma envolvência azul que era uma confusa mistura de céu com mar: um azul claro e luminoso essa envolvência, com zonas de verde também, e também grandes espaços brancos. Mas predominava o azul, embora a luz fosse de facto branca. E o espaço era habitado pelo seu dono, o qual estava no centro desse espaço e o espaço no centro de tudo o resto, pois ele sabia que tu o adoravas, e isso conferialhe a divindade, e ele sabia-o, sabia tudo e mesmo assim deixou-te. E apesar disso também tu sabes que foste amada, ele não estava a mentir e no entanto deixou-te. E esse gesto que nunca entendeste é que criou o abismo. Um dia perdeste a luz clara e também a envolvência azul com sequências de branco e também de verde. Perdeste o cenário da felicidade. E perdeste-te então de ti durante muito tempo, primeiro por completo, depois cada vez menos, recuperando pedaço a pedaço sobre as ruínas, reconstruindo dos estilhaços devagar, reconquistando um a um pedaços de território alienados, sem nunca porém teres voltado a recuperar tudo, até hoje, talvez até sempre. Até que subitamente descobriste que poderias aprender com os necrófilos e fazer dos restos mortais um tesouro e uma festa; embalsamar o amor e vesti-lo com galas, para assim mesmo gozá-lo enquanto cadáver; aprisionar o ser amado nas tuas memórias, prendê-lo a objectos e ritos, e assim, de certa forma, secretamente continuar a possuí-lo…da única forma possível. Branca de Neve no seu caixão de vidro, aí jazem os
restos do que foi um amor que não pode medir-se, que ninguém, nem tu própria, consegue já reconstituir. Temos todos de loucos, de voyeurs, de necrófilos, pelo menos um pouco. Fizeste portanto esse funeral, com pompa, e circunstância, também com ironia, obviamente, como convém a um Melodrama. E a estas exéquias chamaram por fim os psicólogos o luto da relação, enquanto que ao produto chamaremos poesia e ao processo Ressureição. ( in: Textos Pretextuais, Lisboa, Europress, 1991)
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
despertaDOR
Ana Marques 1. Fala-me do teu percurso como artista, até chegares a esta escultura. O que te interessou, o que te influenciou, o que te formou - e que outras obras criaste? Nunca me considerei uma artista porque a minha formação é em design de comunicação e tem sido nessa área que mais tenho trabalhado paralelamente à minha profissão na área do ensino. Estou em constante produção, e grande parte do que faço é-o em regime de voluntariado, por isso nem aparece com a minha assinatura. Nos últimos anos, porque estou envolvida num projecto de doutoramento, dei um novo rumo à minha actividade (extra-curricular). Tinha feito um mestrado na área multimédia e continuo nesse caminho. Estava nos últimos anos da licenciatura quando começou a era informática, ainda sem fazer parte dos currículos, e foi a minha curiosidade que me levou a descobrir e a querer aprender sobre essa relação arte/computador, não sem alguma resistência a aceitar a arte computacional, por isso não explorei a programação, hoje com algum lamento por essa opção. A obra com mais exposição mediática foi a Arbor, precisamente por ter esse componente que a diferencia de uma mera escultura: a interactividade. 2. Detenhamo-nos no despertaDOR, exposto na Bienal de Cerveira. O que é esta obra, na sua forma e no seu conceito? Sempre fui uma defensora de todas as vidas e em particular as dos que não têm voz para se defender. Os animais estão nesse grupo e por isso eu tinha de fazer alguma coisa por eles, além de salvar o cão e o gato de rua, vítima de abandono ou violência, tão comuns no
dia-a-dia. Eu, como a maior parte das pessoas, vivemos uma vida sem perceber o dano que causamos aos outros, sem ter noção de que a vida dos outros depende de nós, dos nossos actos, das nossas opções. E cada um de nós pode fazer a diferença. A mensagem é dura – revela a dor que infligimos aos animais para satisfazer prazeres de curta duração: o bife no prato, o espectáculo acrobático no circo, a tourada, os sapatos de pele, os testes em laboratório… São vidas inteiras condenadas ao sofrimento e isso é completamente absurdo no século XXI. Foi isso que quis mostrar quando propus às minhas colegas de projeto (o CADA, na escola) que devíamos mostrar, através dos meios que temos, a realidade atrás das jaulas, das grades – a realidade que 95% das pessoas teimam em não ver. O despertaDOR nasceu na escola e era uma peça analógica, tradicional. Depois alterei-o numa peça autónoma, que pudesse viajar para qualquer lugar onde pudesse passar a mensagem. Os cartazes de papel transformaram-se em vídeos, para os quais convidei alunos de 12º ano (agora alunos de faculdade) a colaborar. O despertaDOR está neste momento a transitar para a sua IV versão. 3. Como se distingue - será, sequer, fundamental distinguir -, no despertaDOR, o manifesto eficaz, isto é, um instrumento de intervenção, e a obra de Arte? Os elementos de intervenção e a arte são indissociáveis. Se assim não fosse, a arte não seria veículo de protesto, de inconformidade, de rebelação (sei que é um erro, substitui a palavra mas isto devia existir). É um instrumento de intervenção sim, incomoda, alerta. Sua intenção é fazer as pessoas pensar, sugerindo que se
25
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
Figura 1 - O despertaDOR na XIX Bienal de Cerveira, em 2017
aproximem pela cor e pela forma e depois, despertar um olhar mais atento para o que se passa no interior dessa estrutura colorida. A arte sempre teve esta vertente de exposição da inconformidade e utilizou todos os seus recursos para o fazer. As novas formas de arte, dentro da média-arte digital, possuem novos meios que devem ser colocados à disposição de causas. Se pensarmos quão longe podem chegar as intervenções que recorrem à internet, encontraremos a resposta que justifica todo o trabalho que se possa ter. 4. O que a levou à criação do despertaDOR? Que sensibilidade, que conhecimento, que consciência? Eu, como a maioria das pessoas, vivi grande parte da minha vida sem a consciência do uso, exploração e violência que exercemos com os animais. Pensei que eram os outros que o faziam pois eu nunca matei, nunca espanquei nem violentei nenhum animal. E sim, fi-lo. Ao consumir, ao assistir a espectáculos, ao comprar produtos que têm animais envolvidos na sua confecção. Isto é, ninguém é isento de causar dor; ao comprar uma mala de pele estamos a pedir que se façam mais e as pessoas não sabem de que modo essas peles são obtidas; os gorros com pompom de pelo, que foram moda este inverno, têm na sua origem uma cadeia de sofrimento horrível, da qual poucos têm consciência. Se eu sei, é meu dever mostrar. 5. Leio o despertaDOR como uma proposta de renascimento da maneira como o homem percepciona os outros animais e se relaciona com eles. É possível esse renascimento? Tem sido um processo central na tua vida?
26
Essa terá sido a maior mudança que aconteceu na minha vida. O despertar para algo que sempre existiu e eu nunca tinha visto. Se isto aconteceu comigo, é possível que aconteça com os outros. O meu maior desejo é que cada vez haja mais pessoas a verem, a mudarem a sua percepção. E eu gostaria de poder contribuir com uma ínfima parte que fosse. O despertaDOR é um dos meus contributos. 6. Chocar as pessoas, magoá-las, fazê-las sofrer, será mesmo um modo de as tocar e as mudar? Sei que o despertaDOR esteve já exposto noutros lugares: a que reacções assististe? Que noção tens daquilo que, efectivamente, o despertaDOR despertou (passe a redundância) em pessoas que se confrontaram com ele? Essa é uma velha discussão e nunca saberemos qual é a resposta correcta. Alguns estão tão perto da mudança, que basta uma pequena acção para que mudem. Outros estão tão longe, tão alheados da realidade que não há coisa que os demova. Isso não faz das pessoas “más pessoas” mas essas são as que contribuem, inocentemente, para a grande chacina. Os meios violentos de revelação podem ter duas consequências: ou fazem mudar e já valeu a pena, ou provocam uma reacção profunda de repulsa que terá como resultado o desprezo e o alheamento ainda maior. Por isso, nunca saberemos de que lado está a razão, por isso, mais vale deixar-nos ser guiados pela sensatez. Neste momento penso que a maior luta é mostrar sem chocar – o que eleva o desafio.
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
Figura 3 - Uma das mensagens veiculada pelo despertaDOR através da Realidade Aumentada
7. Qual prevês que seja o caminho a ser feito pelo despertaDOR? Há projectos, objectivos, expectativas pósCerveira? De acordo com o que acabei de dizer, o próximo despertaDOR IV será uma versão mais leve mas sem nunca perder o conceito inicial – porque os animais merecem que olhemos por eles e os defendamos sempre. Resumo qual tem sido o seu percurso para que se perceba o futuro. A primeira versão do despertaDOR nasceu na escola onde trabalho, com a ajuda fundamental do CADA, e a colaboração de alunos e de outros professores; o despertaDOR II, a sua versão já com elementos digitais, esteve exposto em Alfama, incluído na mostra de trabalhos do 4º retiro do DMAD – aqui tive a oportunidade de conhecer diversas pessoas que o observaram, explorara, para além do olhar; percebi o incómodo mas, principalmente, percebi que algumas pessoas foram tocadas a ponto de mudar a sua alimentação. A versão despertaDOR III, que já inclui Realidade Aumentada, é esta que esteve na XIX Bienal de Cerveira durante dois meses e meio mas, devido à distância, não sei qual terá sido a reacção do público. Depois de Cerveira, esteve exposto do Centro Cultural de Paredes de Coura. Neste momento configura-se o despertaDOR IV e aguardo ter oportunidade para me dedicar a ele.
da mensagem que quero veicular, essa tem tudo menos pouca ambição porque o ambiente e os animais precisam de tudo o que possamos fazer por eles. Tenho projectos para mais intervenções no caminho do despertaDOR mas aguardo a conclusão deste outro pojecto megalómano que é o doutoramento e tudo o que ele tem envolvido. Pretendo continuar o caminho iniciado pela Arbor, em parceria. Pretendo aprofundar a ligação da arte tradicional com a programação e os sistemas digitais, caminho tão interessante e que tem tanto por explorar. Pretendo continuar a desbravar caminho no activismo, esse nunca abandonarei, porque os animais, no nosso mundo, não têm voz.
8. E os teus projectos artísticos, Ana Cristina? Ideias, ambições? Não sou ambiciosa em termos de promoção da minha imagem; sou até bastante discreta. O mesmo não direi
_____________________ www.despertador.eu www.facebook.com/despertador_instalation
27
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
Substituição de Gerações Literárias
Miguel Real 1. INTRODUÇÃO Do ponto de vista da historiografia do romance em Portugal, tem-se assistido, na segunda década do século XXI, sobretudo nos dois anos referidos, a um duplo movimento: – 1. A consolidação e a estabilização dos autores emergidos nas décadas de 70 e 80 cuja obra se tornou vinculativa da historiografia do romance português do final do século XX e princípios do XXI. Referimo-nos a António Lobo Antunes, Lídia Jorge, Mário de Carvalho, Mário Cláudio, Teolinda Gersão, Nuno Júdice, Rui Nunes, João Melo, Hélia Correia e outros, que se juntaram a autores mais antigos, como Agustina BessaLuís, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e outros;
28
– 2. Um conflito mudo por uma certa hegemonia nos media e nos festivais literários entre autores provindos da década de 80 e 90 e novíssimos autores emergidos já este novo século. Referimo-nos, no primeiro caso, a autores como Mafalda Ivo Cruz, Julieta Monginho, Filomena Marona Beja, José-Alberto Marques, Ana Teresa Pereira, Francisco José Viegas, Jaime Rocha, Domingos Lobo, Carlos Vale Ferraz, João Paulo Guerra, José Martins Garcia, Fernando Sobral, Fernando Esteves Pinto, Inês Pedrosa, Manuel da Silva Ramos, Ana Cristina Silva, Mário Máximo, Possidónio Cachapa, Patrícia Reis, Maria Manuel Viana, Luísa Costa Gomes, Manuel Jorge Marmelo, Rui Zink e outros. No segundo caso, referimo-nos a autores como José Luís Peixoto, Gonçalo M. Tavares, João Ricardo Pedro, Ana Margarida de Carvalho, Patrícia Müller, Valter Hugo
Mãe, Paula de Sousa Lima, Valério Romão, Pedro Vieira, Rui Vieira, Bruno Vieira Amaral, Alexandra Lucas Coelho, João Tordo, a série de autores vencedores do Prémio Leya e do Prémio Agustina Bessa-Luís e outros. No romance histórico, sucede exactamente o mesmo, a morte de Fernando Campos e de João Aguiar deixou emergir três novos autores, João Paulo Oliveira e Costa (O Samurai Negro), Isabel Rio Novo (Rio do Esquecimento) e Norberto Morais (O Pecado de Porto Negro), que desafiam uma geração anterior (não em idade, mas na prática do romance) como Deana Barroqueiro (O Espião de D. João II – Pêro da Covilhã), Pedro Almeida Vieira, Sérgio Luís de Carvalho (Ouro Preto) e João Morgado (Vera Cruz). Assim, do ponto de vista historiográfico, assistimos actualmente a uma lenta e gradual substituição de gerações literárias. 2.- NOVOS AUTORES Assim, na nova geração literária do século XX, relevamse os romances publicados em 2015/16 por Tiago Patrício (O Princípio da Noite), João Nuno Azambuja (Prémio UCCLA: Era uma Vez um Homem), Ricardo Fonseca Mota (Prémio Agustina Bessa-Luís: Fredo), David Machado (Índice Médio de Felicidade), João Tordo (O Luto de Elias Gro, O Paraíso segundo Lars D.), Afonso Cruz (Vamos Comprar um Poeta, Nem Todas as Baleias Voam, Enciclopédia da História Universal – Mil Anos de Esquecimento), António Canteiro (Prémio Alves Redol: Logo à Tarde Vai estar Frio), a irrupção meteórica de Ana Margarida Carvalho (Que Importa a Fúria do Mar) e de Alexandra Lucas
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
Coelho (Deus-Dará), o romance de estreia de Isabela Figueiredo (A Gorda), Helder G. Cancela (Impunidade, final de 2014), Joana Bértholo (Inventário do Pó), Valter Hugo Mãe (Desumanização), Cristina Drios (Adoração), Valério Romão (Da Família), Alexandre Andrade (Benoni, O Leão de Belfort), António Tavares (O Coro dos Defuntos), João Ricardo Pedro (Um Postal de Detroit), Cristina Muller (Uma Senhora Nunca) e outros. 3. NOMES FIRMADOS Com nome firmado, publicaram romances os autores Possidónio Cachapa, Rui Zink, Francisco José Viegas (A Poeira que Cai sobre a Terra e Outras Histórias de Jaime Ramos), Cristina Carvalho (O Olhar e a Alma Romance de Modiglianni), Helena Vasconcelos, de cariz feminista (Não Há Tantos Homens Ricos como Mulheres Bonitas Que os Mereçam), Mónica Baldaque (A Raiz Vermelha do Amor), Carlos Vale Ferraz (A Estrada dos Silêncios), Domingos Lobo (O Largo da Mutamba), José-Alberto Marques (Narrativylírica), Patrícia Reis-Maria Manuel Viana (A Gramática do Medo), Ana Teresa Pereira (Neverless, A Casa das Sombras e Outras Histórias, Karen), Maria Teresa Horta (Meninas, final de 2014), Ana Cristina Silva (A Noite não é Eterna), Manuel Dias Duarte (O Primo Bazilio ou os dissolutos absolvidos), Ernesto Rpdrigues (Uma Bondade Perfeita), e outros. Se os autores emergidos nas décadas de 70 e 80 escrevem no horizonte mental e ideológico aberto pelo 25 de Abril (temas principais: Guerra Colonial, Estado Novo, Fim do Império, Liberdade, adaptação de Portugal aos costumes europeus…), os novíssimos autores escrevem segundo um cosmopolitismo
europeísta abordando temas e sentidos novos (questões de género, precariedade laboral, nova família e desagregação da família clássica, vivência nocturna em bairros urbanos, violência individual, alterações climáticas…), ou, dito de outro modo, a nova geração literária escreve para um autor global, criando personagens europeias e pós-imperiais.
29
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
UM CHAPÉU SOB O CÉU DE LISBOA
Elisa Costa Pinto À memória da minha Mãe. A nossa relação com o passado é tão misteriosa. E tão elucidativa. Ela é feita, antes de mais, com o que nunca existiu. Vergílio Ferreira, Pensar
30
Camille (Por vezes sou incauta, esqueço-me da personagem que me cabe representar. Ainda há pouco, quando ela entrou e me foi apresentada pela Sophia, sobressalteime com o seu nome, Sara, e gaguejei o meu, Camille. Estamos agora frente a frente, ela risca os moldes de blusa sobre o azul do organdi, eu prendo a flor de feltro no feltro do chapéu. É difícil não cruzarmos os olhares, o dela, tímido, ou receoso, ou apenas doce. Nervoso? O meu, já recomposto, ensaia a indagação falsamente desatenta. É bonita, veste com elegante simplicidade, quem diria, nesta cidade de gente amarrotada, e percebe-se, na transparência escura dos olhos e na curva suave da boca, que nunca conheceu o inferno. Sara, a portuguesa. Parece que vamos partilhar esta sala de trabalho durante um tempo que eu quero breve, por favor! por favor!, que seja breve, mas quanto tempo? Ela nunca saberá que eu já atravessei o inferno, a palavra “Jude” arremessada contra o meu rosto, pés descalços sobre vidros em chamas e uma estrela amarela ao peito. Nunca saberá que saí de Berlim depois da Kristallnacht a beber o medo, para a minha mãe e o meu pai não verem as lágrimas de sangue nos meus olhos. Nunca saberá do buraco negro onde enterrei o coração, quando soube que o passado era um lugar de cinzas, para sempre suprimido.
Foi nos anos de Paris que o espelho engoliu o meu rosto, até então jovem como o da portuguesa que começa a oferecer-me um sorriso imperceptível, daqueles que aprendi a reconhecer, como um acolhimento, uma aceitação ou uma pena, sobretudo depois da estrela. Mas esse é também um tempo que tenho de esquecer, mesmo a tarde chuvosa em que conheci Madame Yvette, o nome da morada que os meus pais coseram no forro do meu casaco). Sara (Ai que medo de me enganar nos moldes, que medo de começar a cortar. A tesoura é seta que nunca volta atrás depois de disparada. Quem me dera ser como ela, tão segura a manejar a rosa de feltro, como se fosse a jardineira e a dona do jardim. Gostava de poder olhar melhor para o seu vestido, tão bem talhado, nunca vi nada assim, só no cinema e o cinema é uma ilusão sobre tela, um filme é como uma peça de tecido vivo, que morre quando foi desenrolada. Mas eu gosto de cinema, como gosto! Ai, tenho de me concentrar, esta blusa é um exame e eu quero ser aprovada. Deixar o ateliê, trabalhar aqui para a Embaixatriz, aprender, aprender. Aprender! Ela está a olhar para mim, ai as minhas mãos que não podem tremer, firmeza, menina Sara, firmeza. Consegui, os riscos estão direitos, perfeitos, posso dizêlo, e as medidas exactas como se uma grande calma me tivesse guiado a mão. Agora olhámos as duas ao mesmo tempo, ela é tão séria, eu sorri sem querer e nem percebi se ela também sorriu ou apenas inclinou a cabeça. Parece-me triste, ou os olhos é que são tristes. Há olhos assim, sempre com cortinas de sombra, mesmo quando a boca ri. Deve ser impressão, tão elegante, francesa e a
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
trabalhar melhor do que todos os chapeleiros de Lisboa juntos. Ela não sabe, mas eu já tinha ouvido falar na chapeleira parisiense que só trabalha para o corpo diplomático. Ela é que nunca ouviu falar de mim, nem sonha que sou uma aldeã abrigada na cidade. É melhor que não saiba, e como poderia sabê-lo se não conseguimos falar uma com a outra? Melhor assim, o que ia ela pensar de mim? Nem sequer ia acreditar que eu aprendo com os livros, que leio todos os dias até cair de sono. Os livros são o comboio que me leva a todo o mundo, os filmes também, é claro, mas os livros, o que seria eu sem os livros? Pára de pensar, menina Sara, vê se te concentras no que estás a fazer, porque agora é que vai ser a sério. Já fixei os moldes no tecido, já risquei a giz, mas só de pensar que vou meter a tesoura neste organdi fico nervosa. É tão difícil trabalhar o organdi, ainda mais combinado com seda. Também já estava à espera que me dessem um trabalho assim para me testarem. Não, não é impressão, ela está triste, porque disfarça e endireita-se toda quando percebe que eu olho. Ah! Como é que não pensei nisto antes? Será uma dessas refugiadas da guerra?) Camille (O visto para a América nunca mais chega, que angústia, e no entanto começo a habituar-me a esta cidade, que já nem me parece tão acanhada. Quando a Embaixatriz me propôs acompanhá-la ao jantar no Estoril, tive medo, há espiões por todo o lado, e numa festa de anglófilos, é mais certo do que eu me chamar… Cautela, muita cautela, que até o pensamento pode ser vigiado. Não, ela não sabe nada. E em todo este ano em que trabalhámos e almoçámos juntas, nunca aquele olhar brilhante me deu um sinal de desconfiança.
Ela nem sequer sabe que sou alemã, que fugi para Paris e que fui acolhida por Madame Yvette. E desconfio que haveria de gostar de conhecer aquela valente chapeleira que abriu a pequena “Femme Moderne” quando a Casa Chanel a despediu e a mim abriu-me a porta para uma vida totalmente desconhecida. Quando estudava Artes na universidade de Berlim, sabia lá o que era trabalhar, mas no dia seguinte à chegada a Paris, já estava no ateliê de Madame Yvette, a alinhavar chapéus. Aprendi depressa? Que remédio, em escassos meses já experimentava desenhar modelos que Madame elogiava com subtileza. Incentivo ou compaixão? Trabalhava muito, aqueles dias eram um outro tempo, numa outra cidade, e eu com outro rosto, sabia-o diariamente, antes de fechar a porta do quarto alugado. Com cautela, fiz amigos nas esplanadas de Saint Germain onde bebia chá a olhar os transeuntes como se nunca tivesse sido outra, num passado que em sonhos me revisitava – sombrios pesadelos em que os meus pais eram estátuas de cinza e eu corria para eles sem sair do mesmo lugar. Três anos de anestesia. De renascimento? Não chegou a sê-lo. Os braços pantanosos da hidra alemã chegaram a França, que escancarou as portas ao monstro, depois a Paris. Com eles o passado ressuscitado, o terror, as interdições, a estrela amarela, faca cravada no meu peito. Corria para o ateliê, apesar de tudo tranquilizada pela generosidade com que a cidade me acolhera, mas numa manhã, tão vazia como o meu coração, o rapaz do segundo andar, que se cruzou comigo na escada, atirou-me, insolente e maldoso, a humilhação, “Juive”. Foi a primeira de muitas e a senhoria, com pesar – nunca saberei se fingido – disseme que não podia continuar a alugar-me o quarto. Madame Yvette tinha conhecimentos, escondeu-me, trouxe-me documentos falsos – eu nunca mais seria
31
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
Sarah Epstein – e partiria para Bordéus, onde conseguiria um visto que me trouxe até Lisboa. Pára, pára, memória, que não me largas, abriga-te no buraco negro onde enterrei o coração! E Sara fita-me, interrogativa, já não baixa os olhos, que cara terei eu feito sem me dar conta? Cautela, muita cautela, que eu não sei nada desta rapariga, cada vez mais parecida com uma parisiense. É linda, por vezes penso, que tolice, que também ela pode ser judia, mas não em fuga como eu. Quem é Sara, afinal?)
32
Sara (Está triste, bem vejo, às vezes voa pela janela e só deixa atrás a sombra a segurar o chapéu. Gostava de lhe dizer qualquer coisa amigável, pois se já quase conseguimos falar com meia dúzia de palavras e muitos gestos. Mas dizer o quê? Nem sequer posso contar-lhe como estou apaixonada e feliz, seria cruel, agora que sei que vive sozinha em Lisboa. O que terá deixado em Paris? Talvez um noivo, ou talvez, que horror, a memória da família morta na guerra. O António contou-me, ouviu na BBC que os Alemães estão a matar muitos franceses, prendem todos os que resistem e todos os judeus, crianças e tudo, encerrados em campos e mandados para muito longe. Como posso saber se ela não estará assim por falta de notícias, oxalá não seja por uma notícia má. Já gosto dela, já não tenho acanhamento, é quase uma amiga a quem gostaria de contar coisas da minha vida. Agora até tenho vontade de lhe dizer que nasci na Beira Alta, que fui educada em Lisboa pelos meus tios, desde pequenina, que a minha mãe morreu e que essa é uma grande tristeza que não se apaga nunca. Quem sabe se a mãe dela não morreu também, para estar aqui sozinha, longe de casa.
Estamos as duas longe de casa. Levantou-se e foi à janela, parece-me que suspirou, nem olho. Volta a sentar-se e agora oferece-me um grande sorriso, até me pareceu desajustado ou ensaiado. Aponta para o meu vestido, diz “muito elegante” com o sotaque estrangeiro que me faz sempre sentir dentro de um filme, respondo, “merci” e, sem pensar, estendo a minha mão, onde resplandece um losango cravejado de brilhantes, ai!, irresistivelmente, estou a mostrar-lhe o meu anel de noivado. Levanta-se outra vez, ah! dá-me um abraço, o primeiro abraço.) Camille (O que eu andei para chegar a horas e não consegui, até o meu chapéu voou arrastado pelo vento, parece que decidiu ficar em Lisboa. Um eléctrico e outro eléctrico, e ruas e degraus e praças e outras ruas e outras praças a passarem em filme na janela, desfocadas. Na longa paragem do Rossio, a surpresa da cidade a erguer-se bela diante de mim e, pela primeira vez, as fulgurações da calçada são luzes de celebração e não holofotes a cegar-me sem piedade. Aqui estou, uma vez mais a preparar a outra dentro de mim. O bilhete e os documentos que tenho na mala vão levar-me para longe, tão longe da nuvem negra da Europa, que tenho dificuldade em acreditar. Correm rumores sobre a iminente derrota de Hitler, mas também se diz que ele pode invadir a Península Ibérica, nem quero pensar, entre cão e lobo, onde me esconderia? E Sara? Poderia confiar nela? Acho que, pelo menos, não gosta do Salazar, eu bem vejo como muda de expressão quando ele fala na rádio. Mas sei lá se não é para ver como reajo. Não, não pode ser. Triste, tão triste esta velha desconfiada que cresceu dentro de mim.
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
É preciso partir e deixar para trás o meu rosto desfigurado pela tristeza, sei lá se pela indiferença. Não tenho ilusões, nunca recuperarei aquele outro rosto que ficou esmagado em Berlim, mas talvez um dia reencontre uma centelha da paz que habitava a nossa casa da Friedrichstrasse. Sara olha-me, e o seu olhar matinal permanece transparente e hoje está feliz. Ou sou eu que estou quase feliz? Ela abre a carteira para tirar um lenço e, atrapalhadamente, apanha um pequeno jornal que caiu ao chão, fá-lo mergulhar no saco, mas eu vi, tenho a certeza de que vi, é “A Guerra Ilustrada” dos Aliados, nem consigo acreditar, o meu peito explode de alegria, como não acontecia há muito. Ao cabo de dois anos, entendo a razão da proximidade que sempre senti e reprimi, mais do que proximidade, o conforto da presença e do olhar de Sara, a bela portuguesa, que sempre me pareceu uma ilustração bíblica. Olho-a de frente, o sorriso enfim libertado, e tiro da minha carteira os documentos com o visto para a América, confio-os nas suas mãos e ela, inteligente, compreendeu tudo. Abraçamo-nos com comoção.) Sara (Camille atrasou-se, é a primeira vez, sempre tão pontual, que nada de mal tenha acontecido, a PVDE anda em cima dos refugiados, ela anda sombria e nervosa, agora já a conheço e ponho-me a pensar como é possível conhecermos alguém de quem nada sabemos e com quem trocamos tão poucas palavras. O rosto fala e o dela nem sempre, tão fechada dentro do silêncio, há dias em que o chapéu a dançar nas suas mãos diz mais do que a boca ou os olhos.
Gosto de Camille. Gosto dela com um sentimento que desconhecia. Nas horas que passamos nesta sala, ela é uma companheira silenciosa, quase uma amiga. No princípio tão diferentes, fomos descobrindo um lugar de pensamento onde estamos juntas, cada vez mais parecidas. Esse é o lugar de duas raparigas longe de casa, sem mãe, a procurar romper o vento para não ser ele a triturar os nossos sonhos como papéis velhos esmagados por mãos iradas e atirados ao lixo. Ou como flores secas que é preciso arrancar das jarras para as trocar por ramos frescos. É ela que chega, finalmente, vem corada e sem chapéu, mas sorri um “bom dia” português. Senta-se, pega no trabalho e, já tranquila, começa a coser. Olho Camille e não a vejo a ela, sou eu que estou ali, pensativa, a debruar um chapéu de feltro. Foi tanto o que aprendi com ela, acho que sem me dar conta lhe fui copiando o corte da roupa, alguns gestos, a elegância do andar sobre os saltos, o modo de sentar. E fico feliz quando ela elogia a minha roupa, os sapatos, o penteado. Já os meus chapéus nem em sonhos se aproximam dos que lhe saem das mãos. Quem me dera caminhar pelas ruas da Baixa com um chapéu daqueles! E os livros? Quantas vezes aconteceu descobrirmos que lemos os mesmos livros e rimos quando nos apercebemos de que ela, como eu, traz sempre um livro na mala. Não conheço outra rapariga que tenha esse hábito, no ateliê até gozavam comigo, mas depois pediam-me para contar a história. Com os filmes era a mesma coisa, à segunda-feira passava a tarde a contar o filme que tinha ido ver no domingo com os meus primos. E eu, entusiasmada a contar, pressentia os actores que entravam e saíam da sala de trabalho e acenavam para mim. O António parece um actor de cinema, eu acho, nem parece da província, deve ser
33
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
porque é muito inteligente. Ai como eu queria que a Camille o conhecesse. Vou casar-me, nunca mais nos encontraremos e ela sem o conhecer, só lhe mostrei o retrato e ela disse aquele “olalá” que exclama quando gosta muito, e isso raramente acontece. Fiquei vaidosa e feliz. Daqui a menos de um mês, ela partirá para a América, cada vez mais longe de casa e eu partirei para a terra onde nasci. Parece que viajaremos em sentido contrário, mas ambas caminharemos como quem nasce. Cada uma de nós terá muito vento para rasgar, agora com a certeza de que do outro lado é o futuro.) Sara e Camille (O cais é um lugar alegre e triste e eis Camille, alegre e triste.) (Nunca esperei que ela viesse despedir-se de mim.) (Eu tinha de vir despedir-me dela.) (Não parto sozinha, como em Paris.) (Não podia deixá-la partir sozinha.) (Tenho os olhos molhados.) (Caiu-me uma lágrima.) (Aponto para o meu peito e digo, enfim, o meu verdadeiro nome… Sarah.) (Eu sabia. Abraço-a.) (Ela sabia. Abraço-a.) (Entrego-lhe um lenço branco, um coração bordado por mim.) (Entrego-lhe uma caixa com um chapéu de feltro feito por mim.) (Adeus!) (Adeus!)
34
Sara (Esta é a minha terra, a minha casa, o meu chão. Lisboa há-de viver sempre comigo, dentro de mim o brilho azul do Tejo, o som vibrante do eléctrico, o cheiro doce das pastelarias, a luz moderna das montras. A minha prima, tão minha irmã. A minha amiga Sophia. Tudo e todos guardados no cofre do meu coração. Eu já não sou daqui, mas o amor que me fez regressar há-de erguer comigo a casa de hoje e do futuro. Há um frio de Fevereiro a entrar pelas frinchas, e é um frio lavado que me exalta. Abro a janela para o brilho verde dos campos e sei que sou feliz. Visto o casaco comprido, ponho o chapéu que Sarah me ofereceu, olho-me ao espelho e vejo o mesmo rosto que em Lisboa caminhava para a Embaixada. Começo a andar a caminho da padaria e saúdo as mulheres que nascem das portas entreabertas, figuras escuras, paradas de espanto, olhares que já não reconheço. São ainda jovens e respondem à minha saudação, envergonhadas. Assalta-me, num instante que me deixa gelada, a ideia de que elas são eu, se não tivesse partido nunca e, longe do António, sinto-me sozinha, tão sozinha. Continuo em passo mais apressado, os saltos dos sapatos em equilíbrio instável sobre as pedras, e de uma porta estreita uma voz velha de mulher atira-me, irónica, “Vejam só! Uma mulher de chapéu!”) Camille (Corremos para a amurada e vimos, nítida, firme, protectora, a estátua da Liberdade. A água cortada pelo barco não tem o azul do rio de Lisboa, nem a cidade que avistamos ao longe é branca como a que deixámos para trás. Mas todos sorrimos
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
comovidos e um e outro e todos os braços se erguem com lenços a acenar à Liberdade, essa palavra que não ousávamos pensar. Pego no lenço branco de Sara e aceno com força e choro, todos choramos, mas são de alegria estas lágrimas, porque agora tudo será novo e seguro e ninguém correrá atrás de nós para nos aniquilar. É quase noite quando chego à morada de Newark que, depois de uma longa espera, a senhora da Comissão para Refugiados de Guerra me entregou, escrita num cartão, e só agora reparo tê-lo segurado na mão com tanta força que me doem os dedos. Demoro-me à porta do prédio, e deixo o meu coração resgatado bater de expectativa, de alegria e de esperança, num estado de paz que não experimentava desde Berlim. Eis-me, enfim, na Terra Prometida onde ninguém me fará mal. Pego na mala para começar a subir a escada, quando um rapaz, que sai da porta, me olha com aquele esgar que eu tão bem conheço e me atira à cara “Jew”.) (Dezembro, 2017)
35
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
ENTREVISTA
com Isabela Figueiredo 1 - Como foi e o que significou para a Isabel ter crescido em Moçambique? Como era a sua vida, os seus grupos, o que lhe interessava, o que lia? Para responder a esta questão é preciso contextualizar a minha infância. Sou uma filha única e tardia, que foi bastante protegida pelos pais no sentido em que não tinha muita liberdade para andar sozinha na rua nem ter grupos, isso por um lado. Por outro lado, era também, naquela altura em que vivia em Moçambique, demasiado nova para ter grupos. Não esqueçamos que eu vim para Portugal a um mês de fazer 13 anos, portanto não se pode falar de um grupo exactamente: tinha amigas (apenas amigas, não amigos, não me era autorizado conviver com rapazes), normalmente mais velhas do que eu, filhas de outros bancos portugueses que lá viviam. Como era a minha vida? Era a vida normal de uma menina que é protegida, muito bem educada pelos seus pais para superar a classe social à qual eles pertenciam; o objectivo da minha formação, da minha educação, é esse: superar um estigma social que é o dos meus pais, que eram boas pessoas, mas que vinham de uma de uma vida bastante pobre, sobretudo o meu pai em Portugal. O que é que eu lia? Lia tudo, os meus pais não eram pessoas propriamente cultas, embora fossem bem formadas humanamente e religiosamente; não tinham uma cultura que permitisse apoiar as minhas leituras, portanto eu lia tudo, escolhia normalmente os livros pelos títulos, muitos, ou pelas indicações que me davam na Biblioteca Itinerante da Gulbenkian, ou que as minhas amigas tinham lido e de que tinham gostado, e era assim que encaminhava as minhas leituras, não de outra forma.
36
2 - Nessa altura, como imaginava a «Metrópole» e a Europa? Dulce Cardoso, por exemplo, inicia O Retorno com a imagem da Metrópole como um lugar onde as raparigas usavam brincos de cerejas nas orelhas. A Isabel tinha, também, uma Metrópole e uma Europa mitificadas, ideais, ansiadas? Não é fácil essa sua pergunta sobre como é que nós idealizávamos a metrópole. Penso que a questão dos brincos de cerejas venha de um livro que havia na altura, da Verbo Ilustrado, que as meninas liam, chamava-se Os Brincos de Cereja e mostrava ilustrações de uma rapariga com umas cerejas penduradas nas orelhas. Mas havia de facto uma idealização de uma terra, a metrópole, uma terra europeia bem organizada, civilizada, por outro lado também muito ruralizada, ligada àquilo que é o nascimento dos frutos (frutos que nós não conhecíamos, estes frutos europeus, claro, que entre nós não existiam), de árvores, das estações do ano muito diversificadas, que também não tínhamos, porque estava sempre calor, e achávamos que Portugal era o máximo, que Portugal era como a Suíça, eu digo sempre: que era como a Suíça, muito rural, muito bonito, muito verde e muito desenvolvido, muito civilizado 3 – Que Portugal encontrou, quando veio definitivamente? Como foi a sua experiência da vinda? Qual foi a minha experiência de vinda? Foi complicada por sentimentos misturados. Por um lado eu queria vir, porque estava numa idade em que queria ser independente, separar-me dos meus pais, como todos os adolescentes. Por outro lado não queria vir porque me sentia moçambicana e era sempre a
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
minha terra. Quando percebi que tinha de me separar dos meus pais e esse abandono era irreversível, isso magoou-me muito, muito fundamente, e era complicado para mim porque acreditava naqueles ideais de construir uma sociedade nova lá, um país novo, uma coisa diferente; por outro lado, a minha segurança, do ponto de vista físico não estava assegurada, as coisas eram muito perigosas, havia muita violência, havia o perigo de eu ir parar às forças armadas, o que os meus pais queriam evitar, portanto eu queria vir, não queria, mas tinha de vir. Há uma grande ambivalência dentro de mim naquela altura mas o retorno era impossível de evitar. Como é que eu encontro Portugal quando chego? Bem, é um lugar seguro, onde posso ir à rua em segurança, ninguém faz mal, Portugal está ainda, economicamente, desequilibrado, mas viver em paz é sempre importante. Depois, o que vejo na metrópole? Não estava nada à espera de ver aquilo que encontrei; não estava à espera de ver uma terra tão pobre, de as pessoas serem tão atrasadas e sobretudo muito fechadas, com muito pudor, e acho que tudo isso ainda hoje se mantém. As pessoas são conservadoras, fechadas, têm muito pudor, olham muito para os outros, dão muita atenção ao que os outros pensam de si e do mundo, e havia uma pequenez que não esperava encontrar porque esperava uma terra muito, muito desenvolvida, muito civilizada, muito avançada, onde havia tudo aquilo que nas províncias ultramarinas não havia. Quando nós, lá, queríamos uma coisa qualquer, da última moda, onde é que isso existia? Na metrópole, lá, não, portanto obviamente foi uma grande decepção, mas por outro lado era um lugar em paz e isso é inegável.
4 – Moçambique, como tema, é uma presença importante nos seus livros. Para além da temática, de que outra forma sente que Moçambique e a África se tornaram importantes na sua sensibilidade, no seu olhar e portanto na sua escrita? Eu nasci em Moçambique, vivi lá os primeiros 13 anos da minha vida, e os 13 primeiros anos da nossa vida são muito importantes; determinam, provavelmente, tudo aquilo que vamos ser no futuro, portanto o que sou hoje depende daquilo que fui no passado em Moçambique, depende do local do meu nascimento, das características culturais desse local, do contexto colonial no qual eu também nasci e cresci, de tudo daquilo que rodeava esse contexto colonial e que era tropical, e portanto aquilo que sou hoje é o resultado do que fui antes, enquanto menina branca moçambicana, menina branca africana. Não é possível esquecer o meu passado, não estou a esquecer a minha infância que me marca de forma determinante, portanto é natural que, nos meus livros, Moçambique esteja tão presente, ou a forma como o colonialismo se exercia, e depois a forma como se deu a descolonização, como se deu a independência, como se deu o regresso a Portugal: tudo isso foram anos muito traumatizantes cheios de vida, de uma grande riqueza, de experiências e, na verdade, esta riqueza de experiências é que torna um percurso de vida interessante; mas o que quero dizer é que se eu sou escritora, isso precisa de se reflectir na minha escrita; sinto necessidade de reflectir essa experiência de vida, bastante fracturante, naquilo que escrevo, mas não sou uma escritora africana. Considero-me uma escritora portuguesa muito influenciada por um passado colonial.
37
Fluir nº1 - Renascimentos - 2018
5 - Convive com a arte, a literatura, ou poesia africanas e moçambicanas? Há artistas moçambicanos (falo de artistas para que não tenha de restringir a sua resposta à literatura) de que gosta particularmente? Devo dizer que não convivo particularmente com artistas moçambicanos ou africanos. Gosto do João Paulo Borges Coelho, da sua literatura, e da Paulina Chiziane, sobretudo pelo facto de ser uma mulher negra e feminista, o que é um risco. É um risco ser feminista numa terra onde eu noto tanto patriarcado. Em Moçambique, noto que a sociedade é muito patriarcal e, portanto, é um risco para ela; é de uma grande coragem e gosto da coragem dela. Não tenho grandes referências. Saí de Moçambique há muito tempo e o problema é que me apercebi recentemente que não tem um investimento na cultura que justifique o aparecimento de grandes fenómenos culturais. Para haver um investimento na cultura será necessário existir um sério investimento na educação, e portanto isto é uma pescadinha de rabo na boca. Em Moçambique, se a educação não é suficientemente boa, a cultura também não será, e também não aparecerão grandes talentos ou serão raros. Apercebi-me disso na minha última e única estada em Moçambique, no final do ano passado, portanto não tenho muito a dizer sobre este assunto, infelizmente. 6 - Que autores, em geral, foram fundamentais no seu percurso? Muitos portugueses? Muitos de outras nacionalidades?
38
Muitos portugueses, muitos de outras nacionalidades. Portugueses: li os autores do neo-realismo. Nos anos 70 lia-se muito Alves Redol, Manuel da Fonseca,
José Rodrigues Miguéis, Carlos de Oliveira. De outras nacionalidades, li muito autores e autoras britânicos; estou a falar das irmãs Brontë, estou a falar de Virgínia Woolf, Charles Dickens. Li os russos muito cedo: Tolstoi, Dotoyevski, sobretudo clássicos. Portanto os que me influenciaram, diria que foram estes que acabei de referir. 7 - «Memórias Coloniais» é um livro muito crítico em relação a um certo discurso de ex-colonos, saudosos de um «mundo encantador», que a Isabela denuncia. Mas sente alguma nostalgia - não propriamente um desejo do regresso ao passado, mas a saudade de uma vida que lhe marcou a juventude? Ou diria que cortou os laços (até onde possível), resolveu o assunto, e renasceu como portuguesa em Portugal? Pois é isto mesmo, de facto renasci como portuguesa em Portugal, e tenho o assunto, diríamos que a 75% resolvido, e se não cortei os laços é porque não é possível cortá-los, mas tenho a certeza absoluta que não desejo voltar ao passado, que esse passado dourado, esse mundo encantador escondia muita dor, muita injustiça, que eu vi quando era jovem, quando era criança, quando era adolescente, eu vi essa dor, e pude denunciá-la no Caderno de Memórias Coloniais, e não queria voltar a ela, e desejo que Moçambique, o mais depressa possível, consiga ultrapassar os traumas coloniais e tornar-se naquilo que merece ser, que é uma grande terra, um grande país, um país maravilhoso, um paraíso para os moçambicanos e para aqueles que o visitarem. Não desejo regressar ao passado. Estou em Portugal, sou uma moçambicana, filha de portugueses, tive um educação europeia, e hoje se reconhece como uma moçambicana ou como uma portuguesa nascida em moçambique.
FICHA TÉCNICA EDITOR - José Pacheco ILUSTRAÇÃO DA CAPA - Patrícia Costa PAGINAÇÃO - Ana Marques
Fluir nº1 - Renascimentos Setembro 2018, Oeiras
Fluir renascimentos