Jogos e Cultura. brincando com jogos tradicionais.

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BRINCANDO COM JOGOS TRADICIONAIS FABIÁN MARIOTTI

Jogo e Cultura



Jogo e Cultura

BRINCANDO COM JOGOS TRADICIONAIS FABIÁN MARIOTTI


M342b

Mariotti, Fabián Brincando com jogos tradicionais. Jogos e cultura / Fabián Mariotti. - Tramandaí: Do autor, 2020. 37 p. ISBN 978-65-00-05691-4

1. Jogos. 2. Brincadeiras. 3. Cantigas populares. I. Título II. Autor

CDU: 79:784.67 Bibliotecária Responsável Grazieli Demoliner CRB10/2332

Revisão Gráfica: Cristina M. de Oliveira Contato com o autor: www.fabianmariotti.com


ÍNDICE

Prefácio

Pág. 7

Introdução

Pág. 9

Histórias

Pág. 13

Tio João e o papagaio mais grande do mundo Aquelas tardes, na calçada Dias chuvosos

Pág. 21

Pág. 29

Coisas de meninas e meninos Teatro e lendas

Pág. 39

Pág. 49

Brincando com esferas

Pág. 55

Mais alguns velhos jogos

Pág. 61

Pág. 15



PREFÁCIO

Em boa hora, o Mestre Fabián Mariotti compila, nesta obra, a nível latinoamericano, o quase universo dos diversos jogos e brincadeiras infanto-juvenis, tanto urbanos, quanto rurais, nos quais consistiam em os folguedos de nossas crianças há meio século. Explicamos o “em boa hora”, pois, como se sabe, o progresso e a tecnologia, a par de trazerem ao homem moderno um sem número de comodidades, nesse mesmo embalo, estão proporcionando, aos borbotões, um novo tipo de passatempo que nada tem a ver com a nossa cultura. A substituição dá-se de modo solerte, quase imperceptível, contando com a eficácia efetiva (e por demais danosas) da lei do menor esforço. Tanto assim, que hoje é rara a cena espontânea que registre crianças brincando em grupo, nos pátios das casas, nas calçadas, ou nas praças públicas. Parece que todas elas, como se num passe de mágica, resolveram postar-se à frente de modernos televisores, assistindo a filmes ou desenhos animados inspirados e gerados em longínquos países, em tudo muito longe de nós. Isto para não falar nos videogames e outros alienantes inventos do gênero, onde estranhos monstros provocam destruições hecatômbicas de não se sabe o quê. Quanto ao computador, ainda é de ser aceito, com reservas, é claro, por ser instrutivo e introdutor à modernidade. Há uma tendência que insiste em empurrar as pessoas para o ócio1, quando melhor seria oferecer-lhes condições propiciadoras de um lazer2 sadio.

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e 2 Para nós, lazer e ócio são conceitos sutilmente diferentes. A diferença fundamental entre ambos está no dinamismo, na ação propositada e livre, buscando um resultado prazeroso, em relação ao lazer, ao contrário do que ocorre com o ócio, onde a inação e a neutralidade volitiva são suas características marcantes.


Neste particular, a obra do Mestre Mariotti, se fosse assim possível referir, “ensina a ensinar” o retorno àquelas práticas tão saudosas e tão puras, que encantaram a infância dos mais antigos. E, o “ensina a ensinar” justifica-se plenamente, quando se sabe que a populaçãoalvo das brincadeiras infantis, que agora vem à tona, é o professorado, os especialistas em recreação, enfim, todos aqueles abnegados que dedicam sua vida a formar vidas melhores para os pequenos de hoje, os quais, oxalá, venham a ser os adultos de amanhã!

João José de Oliveira Machado


INTRODUÇÃO

O propósito deste livro é apresentar, principalmente a docentes, pais e recreacionistas, uma série de brincadeiras vistas sob uma dupla perspectiva: a fase lúdica propriamente dita, abordada de por um reconhecido especialista, Mestre Fabián Mariotti. Fabián colocou seus conhecimentos e experiências quanto à seleção, dinâmica de brincar e possibilidades recreativas, incluindo suas próprias experiências do passado; abre a perspectiva de transladá-las para a atualidade, buscando dar ao texto um enfoque estético motivacional no âmbito educativo. Este enfoque tem uma vantagem: enumeram-se e explicam-se brincadeiras, mas não como uma “receita”. Cada brincadeira apresenta-se, sim, coligada a algum tempo e a algum espaço; porém, a alegria de criar e recriar que é atemporal. São relatos de episódios que se somam a pesquisas bibliográficas com referências históricas, curiosidades, anedotas, lendas e costumes que caracterizam a brincadeira. Cabe destacar a relação das possibilidades pedagógico-didáticas que possui quanto ao seu valor disparador, tanto para atividades físicas quanto para motivação lúdica, a leitura reflexiva e o ponto de partida para a abordagem de outros temas curriculares: pode constituir-se num aglutinador para uma ótica transversal da educação em geral. Diante do exposto, cabe uma reflexão: O conceito de inteligência fica enriquecido com investigações atualizadas que oferecem um panorama distinto do tradicional. No seu livro “Estruturas da mente”, o Dr. Gardner define a inteligência como “a habilidade de resolver problemas da vida real, a habilidade para encontrar e criar novos problemas e as habilidades para oferecer um produto ou serviço que seja valorizado, pelo menos, por uma cultura”. Sustenta que o ser humano tem muitas formas de ser inteligente e cita, entre outras, a inteligência linguística (leitura, escrita, comunicação verbal); a inteligência naturalista (leitura do mundo natural); a inteligência lógico-matemática (abstração para o cálculo, para considerar proposições e


hipóteses); a inteligência cinético-corporal (uso do corpo para expressão, o esporte, os trabalhos manuais); e a inteligência artística (aptidões para a música e artes plásticas). Ao brincar, tanto da forma tradicional quanto na atual, criando ou impondo as regras, é possível integrar muitos tipos de inteligência e criar uma verdadeira rede interdisciplinar e integradora que leva a uma formação total mediante um enfoque lúdico. Concordo com a educadora chilena Marta Castillo que, em uma reportagem, colocou: “Com as novas tendências, a criança deixa de ser o ‘decorador’ de tabuadas. Já não fica mais submetido a um mestre, em posição distante, e longe ficaram os célebres puxões de orelha. Agora o tom do discurso desapareceu e tudo tem alguma utilidade. Trata-se de que cada um desenvolva ao máximo as capacidades com as quais nasceu”. Sem deixar dúvidas, brincamos assumindo o ponto de vista proposto, diluímos as situações excludentes, compulsivas e estigmatizastes da velha escola e abro as portas a uma nova forma de educar, de motivar, de chamar ao encontro humano o ensino e a aprendizagem com alegria. Esta alegria não é velha nem nova: é um estado, uma capacidade de reação que o homem possui frente ao prazer. Que existam tecnologias e instrumentos novos que possam provocá-la, o que não invalida as velhas experiências, pois podem complementar-se. Tomando como exemplo a literatura, este fato se comprova com os chamados contos clássicos, que coexistem e têm boa aceitação com contos modernos. Talvez algumas brincadeiras devessem ser recriadas ou atualizadas em seus rituais, porém nunca abandonadas. É também possível que as idades de determinadas preferências de propostas lúdicas não coincidam com as antigas, porque as crianças vivem hoje num mundo diferente, mais acelerado e mutável, sendo influenciadas pelo ritmo e temas que oferecem os meios tecnológicos. Porém, o brincar é um meio tão elástico que pode adaptar-se com êxito a novos objetivos, materiais diversificados, espaços e tempos mais flexíveis.


Sintetizando: Brincando com jogos tradicionais é uma história onde antigas brincadeiras são protagonistas, e o leitor resgatará, com sua criatividade, a antiga e infalível felicidade de festejar com alegria o encontro humano, pois a satisfação de compartilhar nunca sairá de moda. Celebremos, então, o brincar!



HISTÓRIAS

Um belo dia, não recordo exatamente quando, decidi fazer uma boa limpeza no sótão da minha casa. Na realidade, não sei por que guardo tantas coisas lá?! Acredito que seja um “guardador” crônico de lembranças e tralhas. - Vou tirar todas as coisas inúteis que tenho amontoadas aqui! Há tantos papéis velhos, recortes, fotos...! Preservarei somente o que servir, o resto queimarei e, se houver algo que tenha utilidade, hoje mesmo doarei. Esse foi meu propósito inicial, porém... vejam só o que aconteceu! Tomei a decisão da grande limpeza e subi pela escada de caracol, munido de escovas, espanador, panos e sacolas de lixo, firme e decidido como um soldado que vai à guerra. Quando vi as coisas que haviam ali, não pude concretizar meu propósito. Entre o pó e as teias de aranha, olhava-me um cavalinho de balanço com a pintura desgastada, mas irradiando um sorriso alegre. Num canto, o primeiro triciclo, com suas rodas tortas e seu guidão enferrujado. O armário da minha avó, que havia perdido um pé nas mudanças e agora se sustenta graças ao suporte de dois tijolos, me provocando para abrir suas portas repletas de coisas esquecidas. De uma maleta de papelão surgia uma etiqueta de onde se podia ler uma inscrição desvanecida, redigida com tinta azul e grandes letras de imprensa: FOTOGRAFIAS. Peguei o espanador e o pano e, entre espirros, retirei a poeira que cobria todos aqueles objetos carregados de história. Logo deixei meu equipamento de limpeza em um canto e me prostrei: não tocaria em mais nada, absolutamente nada. Levantei a bandeira da rendição: um lápis preso a uma folha de papel em branco! A partir deste punhado de coisas, faria o resgate do mundo de minha infância. - Vou brincar de contar brincadeiras, as brincadeiras esquecidas, porém, não perdidas! As brincadeiras que ainda podem ser praticadas, sem descartar as que a moda, a


publicidade, a televisão e o cinema propõe, disse a mim, sem desprezar o computador ou as novidades engenhosas que nascem mediante a união da tecnologia e o sempre vigente canal de criatividade. Vou brincar de contar brincadeiras, para que não percamos em nossos sótãos recordações e se animem a voltar, talvez remoçadas e modificadas, com outros matizes de fundo, eternas em seu propósito comum de recriar. Dispus-me a escrever. Escrever ali mesmo, sentado sobre um engradado de refrigerante vazio, com as mãos e os olhos preparados para ver, tocar, descobrir. Lembrar sons e cheiros e até o sabor dos bolinhos que mamãe preparava se tivesse me comportado bem. Escrevi num caderno usado que encontrei, encapado com um papel teia azul e etiqueta com meu nome, escrito com garranchos infantis. Nesse havia folhas em branco, melhor dizendo, em amarelo, pois o tempo não perdoa nem o papel! Escrevi com um lápis de ponta grossa, sem me importar nada com esse detalhe, pois, ao final, passaria tudo a limpo nessa maravilha chamada computador. O importante era caçar as recordações rapidamente, nesta excursão ao passado espontâneo e impensável, antes que fugissem. Fluíram imagens e se fizeram ideias esparsas, quase codificadas, para serem decifradas em frases com significado.


TIO JOÃO E O PAPAGAIO3 MAIS GRANDE DO MUNDO

- Vamos construir o maior papagaio do mundo! – Sugeriu o tio João naquela tarde de outono. - Verdade?! – Perguntei com surpresa. - Sim ... se não for o maior será um dos maiores! - Como é que vamos fazer? - Ah, é um segredo! Mas, se quiseres, poderemos descobrir juntos. Terás que conseguir duas taquaras grandes, alguns papéis de seda colorida, e um barbante para pipa. O que faltar, a cola e o rabo, nós mesmos fabricaremos. Esclareço que, naquele tempo, não se vendiam pandorgas prontas, como hoje em dia. Fabricá-las fazia parte da diversão. A minha começou um pouco antes: justamente no momento em que me propus a conseguir os materiais, especialmente as taquaras. Como morávamos no centro da cidade, tive que ir até o rio para cortá-las. Eram enormes... cortei duas, imaginando que o maior papagaio do mundo requereria, pelo menos, este material. A dificuldade estava em levá-las para casa. Carregá-las de pé era inconveniente, pois poderia bater em algum telhado ou arrebentar um fio elétrico. Se as arrastasse, poderiam ser pisadas. Se as levasse na horizontal, corria o risco de espetar algum transeunte, principalmente quando dobrava esquinas, já que as pontas das taquaras faziam a curva antes dos meus olhos. Fazendo piruetas para que não acontecessem incidentes como os citados, finalmente cheguei ao destino, sem dramas de consciência por algum dano causado a alguém. Quando estava tudo pronto, inclusive a permissão de papai, combinei com tio João para armarmos o ‘papagaio’. Que aventura inesquecível! Primeiro cortamos a taquara grande e extraímos quatro varas iguais para armar o esqueleto; logo as cruzamos para poder amarrá-las bem no meio. Assim formamos os vértices de um octógono e, a partir deles, com fio,

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Também conhecido no Brasil como quadrado, arraia, pipa, pandorga e cafifa.


demarcamos o perímetro da figura. A superfície surgiu quando cobrimos a pandorga com papel de seda, dobrando e unindo com capricho as bordas de papel sobre a figura. Não podíamos exagerar colocando cola demais, pois poderia não voar. Meu tio a enfeitou com franjas e juntou corretamente as tiras (os três fios que vão desde o corpo do papagaio até a união com o fio que vai esticá-lo). O rabo foi preparado com tiras de lençol velho que mamãe deu. - Vamos testá-lo, falou titio. E, como quem vai a uma guerra, pegou a pipa da mesma maneira que um escudo. Fomos até a margem do rio, onde havia espaço suficiente para soltá-la. Levamos algumas das tiras do lençol velho, pois, se o rabo fosse curto, poderia cabecear. O perito em papagaios deu-me as instruções para sustentação do artefato e, após duas ou três tentativas, o papagaio ... subiu!! Foi uma sensação maravilhosa que vivemos! Mesmo que atualmente as pipas se vendam já prontas, é muito mais emocionante incorporar à brincadeira o trabalho de fazê-las. Antes de continuar minhas histórias, dou-lhes todos os detalhes, remetendo-me aos especialistas. Assim descreve a arquitetura de um papagaio (típico), o argentino Arturo Franco: “Uma armação de taquaras convenientemente alisadas, seis ou oito que constituem o diâmetro de um círculo multicolorido de papel comum ou de seda, que colado às taquaras, levando na parte superior um trio de tiras e duas franjas na parte inferior para o rabo, que devem ter exatamente o mesmo comprimento, porque disto depende muito a estabilidade, constituindo um papagaio”. Minha fixação por pipas, que nasceu naquela tarde de outono junto com tio João, nunca mais morreu. Encanta-me vê-las cortando o céu! Vejo-as de muitas formas, planas ou tridimensionais. Eugenio Pereyra Salas, chileno, cita outros materiais, como o tecido, usados na forma de balão, arco, pera, cruz, estrela, aves variadas, pavões e águias. Hoje, aos


materiais tradicionais, se incorporam o plástico e o isopor. No oriente, existem em forma de monstros e dragões. Em alguns países, pelo crescimento das cidades, foram proibidos por certo tempo, devido aos transtornos causados na rede elétrica. Porém, o papagaio continua seu voo pelos lugares mais limpos do céu, sem decair o entusiasmo daqueles que os construíam ou soltavam. Também me interessei pela história da pandorga4. Quem haveriam sido os inventores desses pássaros de papel? Pesquisando nos livros, obtive duas versões. Conforme alguns historiadores, foi um general chinês chamado Huan Sin quem o construiu 200 a.C. Em contrapartida, outra bibliografia atribui o invento a Arquitas de Tarento (440-360 a.C. ???), informando que seria posterior (se for d.C, precisa ser escrito 360-440, pois agora é crescente a contagem). Porém, parece-me confiável a primeira versão que detalha que o general chinês utilizou o artefato para anunciar a chegada de reforços a uma praça sitiada. Poderia considerar-se, entretanto, como uma das brincadeiras mais antigas que até hoje tem utilização em todo o mundo. Particularmente na China, é uma atividade muito cultuada pelos adultos, que organizam torneios e concursos para os aficionados. Além disso, no nono mês do ano, se realiza a Festa da Pandorga, na qual participa muita gente. Não foi somente diversão no oriente. Era também utilizado para resgate de náufragos, para investigações meteorológicas, em experiências de física e aerodinâmica. Os ocidentais demoraram mais para encontrar, nos ‘pássaros de papel’, utilidades que vão muito além do entretenimento. Existem anedotas que vinculam o papagaio com a ciência e, mesmo que vocês talvez já as conheçam, sempre faz bem refrescar a memória. Benjamin Franklin, o inventor norte-americano, utilizou o papagaio para comprovar e fundamentar a função dos para-raios. Num dia de tempestade, esse cientista juntou ao papagaio que soltava uma chave metálica e pode observar de que maneira este acessório atraía raios. Essa experiência possibilitou-lhe a invenção do para-raios. Porém, como 4

Também chamada: Na Argentina, barrilete, cometa; no México, papalote; na Bolívia, volador ou cometa; na Colômbia, cometa, barrilete, pandero, farol; na Espanha, cometa, birlocha, dragón; no Japão, Tako (polvo).


complemento, a experiência teve uma vítima: outro investigador quis fazer algo semelhante a Franklin e morreu eletrocutado. Guillermo Marcono, muitos anos depois, utilizou uma pipa como antena para captação da primeira transmissão transatlântica de telégrafos sem fios. Porém, minhas pesquisas não acabam aqui, porque constatei outros dados! Quando ocorreu o grande terremoto de São Francisco, por volta de 1906, montaram uma câmera fotográfica sobre um papagaio para fotografar vistas panorâmicas dos danos causados. A pandorga foi, como vimos, brincadeira, instrumento de festa e de experiências científicas. E não acaba aqui, porque também teve valor ritual nas festas cerimoniais de alguns países. Em Java, no Ano Novo, os pais constroem papagaios com os nomes de seus filhos. Quando bem no alto, cortam o fio para que os maus espíritos persigam a pipa e deixem seus filhos em paz. No Japão, contam que se soltava um papagaio em forma de peixe, cada vez que nascia uma criança. Termino estas referências históricas com dados mais atuais: Foi em torno do ano 1980 que um grupo de famosos pintores argentinos, residentes em Buenos Aires, pintou pipas para vender em benefício do Patronato da Infância. E ainda mais: quando meus amigos e eu nos tornamos peritos na arte de fazer voar nossas engenhocas, mandávamos mensagens aos céus pelo cordão umbilical das pipas. Essa outra possibilidade chamava-se “o telegrama”. Cortávamos um círculo de papel com um buraco e escrevíamos as mensagens, passávamos o fio da pandorga pelo buraco e, enquanto iam ganhando altura, impulsionávamos o papel para cima até que, finalmente, subia por obra do vento. O ‘telegrama’ também servia para algumas mensagens românticas, cheias de ingenuidade e outras mais práticas: por exemplo, pedidos às nuvens para que fossem embora, fazendo que no dia seguinte houvesse sol porque teríamos uma festa ao ar livre;


ou fazer pedidos aos anjos para nos ajudarem em uma prova difícil de Matemática. Enfim, entre textos como estes e algum outro como “Maria, te amo até o céu!”, transcorriam alegremente os dias ventosos de outono, até que os anos e as obrigações nos impediram de continuar.



AQUELAS TARDES NA CALÇADA

Nem bem abri uma gaveta do armário capenga, no sótão, uma estranha cobra espreguiçou-se frente a meus olhos: era a grossa corda de pular, finalmente liberada de sua prisão, desenroscando-se como que pedindo para voltar a usá-la. Deu-me vontade de brincar outra vez, mas estou um pouco pesado e fora de forma... Preferi pular com a memória. Lembrei-me, então, daquelas tardes, depois de fazer os deveres, se tivéssemos nos comportado bem, tínhamos permissão para sair um pouquinho e brincar na calçada. Primeiramente tínhamos que lanchar, tomar banho, vestir roupas limpas e pentear-se bem. - Brinquem sem sujeira! - era a recomendação impossível de atender que mamãe dava a mim e a meu irmão. Na calçada, reuniam-se as meninas de um lado e os meninos de outro. Raramente brincávamos juntos. E de que brincávamos? A simples visão de uma corda foi capaz de ativar minhas lembranças...

Pulando.

Muitas vezes pulávamos corda. Era muito divertido e havia variações: individual, para frente ou para trás, com um pé só, alternando um e outro, cruzando a corda, dando duas voltas em um único salto, enquanto os amigos contavam quantos acertos antes de se enrolar na corda. Quando perdíamos, tínhamos que passar a corda para o próximo e começar a contabilizar os saltos “bons” para saber, finalmente, quem ganhou. Para mim, o mais divertido era quando brincávamos juntos com uma corda maior. Dois ficavam batendo a corda e outros entravam e saiam, conforme combinado previamente. Sempre alguém se enrolava e sofria as represálias dos demais, saindo da


brincadeira e dando lugar ao próximo da fila. Quem batia a corda pedia substituição para poder saltar também, nem sempre com bons resultados. Também brincávamos de pula-corda: enquanto dois batiam a corda, cantávamos “Salada, saladinha, bem temperadinha, sal, limão, foguinho (acelerando o ritmo) ”. Os outros pulavam, um de cada vez, aumentando o ritmo progressivamente. Outra variante era chamada “cobrinha”. Amarrávamos a corda, presa a um extremo perto ao solo, dando impulso para simular a forma e o movimento de uma serpente. Tinha que se saltar no meio da cobrinha, sem pisá-la. Era uma brincadeira breve, acabava em poucos minutos. Um elemento tão simples e barato como alguns metros de corda proporcionavanos tanta diversão!

Bilboquê.

Quase todos conhecem este brinquedo, porque não perdeu sua importância, melhor dizendo, como tantos outros, jogar bilboquê reaparece, como uma moda temporária e depois volta a sumir por algum tempo. Consiste em uma esfera de madeira, presa a um barbante de uns 40 cm que, por sua vez, fixo a um pino. A ponta do pino encaixa justinha no buraco da esfera e o outro extremo é torneado como empunhadura. Segurando o brinquedo por esta, precisa-se que encaixar o pino no buraco. Os resultados dependem da prática, para poder descobrir o movimento justo e preciso que permita o encaixe, que certamente não é fácil. Temos que mover primeiro a esfera como um pêndulo e, por fim, concluir com um impulso para cima, acompanhado por outro movimento que dirija o pino na direção correta: um verdadeiro desafio de coordenação visual e motora.


Curiosidade: no México, fabricam-se bilboquês clássicos e outros com uma variante típica. Ao invés da esfera, torneiam um sombreiro mexicano e é ele que se encaixa no pino. E tanto estes como os tradicionais acabam atraindo mais quando pintados. Quanto ao modo de jogar, as possibilidades de variação são tantas quantas permita o brinquedo e a imaginação de quem o maneja. As crianças mais pobres fabricavam bilboquês com sucatas: uma lata, um palito e um fio eram suficientes naqueles tempos em que a criatividade supria as condições econômicas.

Ioiô.

O ioiô, como o bilboquê, também vai e vem em diferentes momentos da história dos brinquedos e das brincadeiras, seguindo os ditames da moda e dos fabricantes engenhosos que lhes agregam atrativos. Basicamente é um círculo cortado no seu perímetro, de maneira tal que possa amarrar-se ali um barbante, em torno de 1m de comprimento. Para fazê-lo subir e descer, tem um anel que se prende no dedo médio do jogador, impulsionando-o para cima e para baixo com a mão. Para descrever melhor como é um ioiô, vamos compará-lo com um alfajor, imaginando que suas camadas estivessem unidas no centro: o fio deveria se enrolar onde está o recheio doce. O ioiô também tem muitas variantes ou “figuras”. Lembro-me da volta inteira, da volta dupla, do cachorrinho, meio mundo, pêndulo e tantas outras. Faziam-se, de vez em quando, concursos onde participavam adultos que ressuscitavam experiências juvenis com verdadeiras demonstrações de habilidade.

Pião.


Dois ou mais jogadores desenhavam um círculo no chão onde o pião era lançado e deveria ficar rodando sem sair dos limites da linha. Se saísse fora, o jogador perdia. Outra prova de habilidade era fazer o pião “dormir” na palma da mão (ficar girando num mesmo ponto sem cair).

O elástico.

Duas crianças ficam frente a frente, numa distância em torno de 1 m. Um elástico preso pelos extremos une ambas na altura dos tornozelos. As outras formam uma fila. A primeira criança salta com um pé ao outro lado do elástico e volta saltando sobre o outro. O elástico vai sendo elevado, e o jogador repete os saltos. O elástico vai subindo cada vez mais. Quando não consegue saltá-lo, o jogador perde e passa a segurar o elástico. Ao encerrar, todas cobram prendas das que jogaram pior. Outra forma é que o jogador salte e ponha uma perna no espaço interno do elástico, volte a saltar e coloque as duas. No terceiro salto, passa para o outro lado. Regressa trocando de perna. Como na anterior, o elástico é elevado até que se torne impossível saltar. Neste jogo, desenvolve-se o equilíbrio, a capacidade psicomotora e a concentração.

Amarelinha.5

É um dos jogos mais antigos e mais difundidos em grande parte do mundo. Não se sabe com certeza onde se originou, porém se encontra seu rastro desde longínquos tempos na Ásia e na Europa, desde onde se estendeu a toda América. Relaciona-se, às vezes, pela forma que toma em alguns países, com as chamadas brincadeiras “lineares”, conhecidas nos tempos das civilizações Egeia, Grega e Romana. Atualmente é uma

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Conhecida como: Sapata, Academia. Avião, em Alagoas; Amarelinha, em São Paulo; Amarela noutros estados do sul.


brincadeira infantil; porém, em sua origem, era de adultos, podendo ter conotações ritualísticas e estar relacionada à Astrologia, já que em algumas versões conserva o número de 12 quadrados. A pedrinha6 usada para marcar espaços poderia ter o significado do sol poente no último quadro. Em uma das versões comentadas, a ‘amarelinha’ teria sido inventada por um monge espanhol, significando o nascimento, a vida com todas as suas alternativas e, finalmente, a morte. Pode ser jogada no pátio, no terraço, na calçada ou na escola. É mais praticada por meninas, mas, ocasionalmente, meninos também brincam. Quando a amarelinha7 ou antecessores eram entretenimentos de adultos, era jogado somente por homens. Na Espanha e na América Colonial, era brincadeira de soldados e militares. Existem muitos desenhos diferentes de amarelinhas e muitas variações da brincadeira, ainda que todas tenham algo em comum. Em uma das formas mais simples, desenha-se um retângulo que pode ser em torno de 75 cm x 125 cm a 150 cm; divide-se em 6 superfícies, numeradas de 1 a 6 no sentido horário. Joga-se a pedrinha no número um e se vai pulando em um pé só, de quadrinho em quadrinho. Se a pedrinha cair num limite, ou o corpo sair totalmente do espaço limítrofe, deve-se reiniciar. No número três, descansa-se e, no seis, denominado mundo, pode-se apoiar os dois pés, ficando em silêncio. Os adversários tentarão fazer o jogador rir ou chorar. Se acontecer, ele perde e é substituído por outro jogador. Caso contrário, vence e obtém pontos. Às vezes, o jogo é denominado de ‘céu’: joga-se a pedrinha começando pelo quadro um, pula-se para o dois e continua indo e voltando, sem falar. Ao voltar ao dois, recolhe-se a pedrinha, tirando-a para fora desse quadrinho, e assim sucessivamente. 6

Em outras tradições também se utiliza couro grosso, taco de sapato. Vidro redondo e pesado de fundo de garrafa, objetos planos de madeira ou metal. 7

Chamada: Marelle, em França; La peregrina, em porto Rico; Luche ou El cajón no Chile; Golosa ou Coroza, na Colômbia; Rayuela o Tejo, na Argentina; Reina Mora, Pata Coja, Inferáculo, Coscojita ou Coxcojilla, na Espanha; Tejo, nas Canárias; Jogo do Homem, Jogo da Mulher, da Macaca, do Diabo, do Homem Morto, do Gargalo, em Portugal; Mondo, em Itália; El juego de la vieja , na Venezuela. Ascolias, os gregos; Jogo do Odre, os romanos.


Outra modalidade é: as crianças formam equipes, e o jogador ganha pela sua equipe. Podem estabelecer regras segundo as quais se perde: jogar a pedra num número não correspondente, pisar no limite, apoiar os dois pés num quadro fora da ordem, e muitas outras criadas pelas crianças. Outro formato de ‘amarelinha’ é em espiral, chamada caracol na Argentina. O desenho em caracol também estará dividido em quadros onde se pula um a um, com ou sem pedrinha. Se conseguir voltar do centro até a chegada, sem erros, o jogador escolhe um quadrinho, no qual cada vez que brincar poderá descansar, e não poderá ser tocado por adversários. A mais conhecida e difundida forma é a que inicia com dois quadrinhos ou retângulos; na próxima fila, um quadrinho e assim alternada e sucessivamente até chegar a dez, sendo que o último, chamado de ‘céu’ (glória ou mundo); terá um formato semicircular. A quantidade de quadrinhos pode variar de acordo com a cultura regional. (9-12). Primeira versão: joga-se a pedra no primeiro quadrado, a uma pequena distância, saltando em um pé só, se atravessa o segundo e o terceiro, no quarto e quinto, afastam-se as pernas e pousam ambos os pés; um no sexto, dois no sétimo e oitavo, um no nono e dois no céu. Dali se retorna da mesma maneira, até o segundo quadrado onde se pega a pedrinha e salta fora. Joga-se a pedrinha no segundo e pula-se do primeiro ao terceiro, repete-se o caminho até chegar ao oitavo. Se vencer, escolhe um quadrinho que servirá de descanso, e não poderá ser pisado pelos adversários. O que obtiver mais quadrinhos será o vencedor. Segunda versão: joga-se a pedra no primeiro quadro, saltando em um pé só e empurrando de quadro em quadro, vai e vem. Após, o segundo, até chegar ao céu. Dali, muitas vezes, não se regressa; porém, às vezes se regressa, conforme combinado. Obtémse um quadrinho pessoal chamado de ‘casa’. Da mesma maneira que nesta segunda versão, é praticado na Venezuela uma variação da amarelinha, chamada ‘grou’, aludindo ao fato de que este animal está sempre parado em um só pé.


Descrevemos as formas mais difundidas, porém podemos admitir uma infinidade de alternativas. Além do prazer da brincadeira, desenvolve na criança, entre outras coisas, o equilíbrio e a capacidade de concentração. Dentre as pessoas consultadas, cem por cento, inclusive adultos, citaram a amarelinha com grande entusiasmo.



DIAS CHUVOSOS

Havia dias melancólicos: os chuvosos... Consequentemente, não podíamos brincar na calçada, e nem sempre tínhamos interesse pela leitura, após termos feito as tarefas e estudado a tarefa escolar. Por sorte, sempre havia alguma mãe que dava permissão a seu filho para convidar os amigos em sua casa. A recomendação já não era tanto “não se sujem”, mas “não sujem a casa, não façam muito ruído e não baguncem”. Sempre seguidas de outras recomendações: “guardem tudo no seu lugar antes de saírem”. Aceitas estas condições, iniciávamos a escolha da brincadeira. Haviam muitas opções:

O vejo-vejo.

- Vejo-vejo. - O que vês? - Uma coisa - Que coisa - Maravilhosa - De que cor? - .......

Tinha que adivinhar que objeto era que o grupo contrário havia escolhido, tendo, por exemplo, uma determinada cor. Às vezes acabávamos discutindo, porque os objetos tinham que ficar permanentemente no local (imóveis). Inventávamos variação da brincadeira, adaptando-a também para adivinhar contos, histórias ou outras leituras, e começávamos com uma fórmula mágica inventada:


- Leio, leio - O que lês - Uma coisa - Que coisa? - Maravilhosa - Do quê se trata? - Busque a pista pela casa.

O procedimento era assim: o grupo que adivinhava saía do ambiente, enquanto o outro combinava sobre um livro, história ou personagem conhecido na Literatura ou revistas em circulação. Escreviam uma pista num papelzinho, dobravam e escondiam. Quando já estava no esconderijo, entrava outro grupo para procurar a pista, orientado pelas expressões “frio-frio”, quando estava distante, “está esquentando”, quando se aproximava; “quente-quente”, quando muito próximo e “queimou! ”, quando a mão tocava a pista. Então se lia a pista, por exemplo: ‘voa’. E após, mediante perguntas, tinha que se adivinhar se era um pássaro, um super-herói voador, um tapete mágico ou o balão da história de Júlio Verne. Esta brincadeira era mais divertida do que a do tradicional ‘vejovejo’, e acredito que, com as mudanças impostas pelo tempo, permanece-se brincando de maneira parecida, apesar de não termos patenteado esta fórmula mágica que criamos! Também brincávamos de adivinhar nomes de livros, personagens ou filmes com mímica, e esta brincadeira nunca foi esquecida, pois atualmente a televisão exibe programas em que adultos e crianças participam, sempre demonstrando satisfação.

Trava-línguas, adivinhas, acalantos e afins.

Esses dias chuvosos eram propícios também para as brincadeiras de ‘trava-línguas’, adivinhações, e outros passatempos como acalantos, parlendas, etc.


Trava-língua8:

- Galinha que cisca muito borra tudo o que quebra o caco, pois agora você diga certo, sem fazer buraco, aranha arranhando a jarra e o sapo socando o saco.

Não vá fazer palhaçada arrumação de macaco, cuidado! Não erre o tema, e gancho pra quem é fraco: “Aranha arranhando a jarra e o sapo socando o saco”

- Num ninho de mafagafos, seis mafagafinhos há; quem o desmafagatizar bom desmafagatizador será.

- O rato roeu a roupa do rei de Roma; a Rainha raivosa roeu o rabo do rato.

8

Trava-língua: tipo de parlenda que consiste em um verso, palavra ou expressão, na maioria das vezes de pronunciação difícil e cuja repetição depressa provoca deturpação dos termos.


Adivinhas:

Uma árvore com doze galhos cada galho com trinta ninhos. Cada ninho com sete passarinhos? A semana

Dizem que sou rei e não tenho reino; dizem que sou louro e cabelos não tenho; dizem que ando mas não me movo; acerto os relógios; sem ser relojoeiro. O sol

Capinha sobre capinha, capinha do mesmo pano; se eu não te disser agora, não acertas nem para o ano. Cebola

Eu fui feito com pancada, só sirvo se for bem torto; vou procurar quem está vivo espetadinho num morto?


O anzol

Acalantos9:

Boi, boi, boi, boi da cara preta; pega essa criança, que tem medo de careta.

“Que tem filhos nos braços por força há de cantar; quantas vezes a mãe canta com vontade de chorar.”

Parlendas10:

Serra, serra, serra pau; serra esta menina que come mingau. Serra o pau, serrador; Serra esta menina que está com calor.

9

Acalanto: canção de ninar, cantigas para embalar no berço ou nanar as crianças pequenas para adormecer. Parlendas: ditos ou rimas sem música, destinados a ensinar alguma coisa, divertir a própria criança ou criticar outra. 10


Pé- de- pilão, carne seca com feijão; o ferreiro faz a forca mas não faz o gavião.

Mnemonias11

Um, dois, feijão com arroz, três, quatro, feijão no prato, cinco, seis, feijão pra nós três, sete, oito, feijão com biscoito, nove, dez, feijão com pastéis.

Uma, duna, tena, catena bico de pena, sola, solada, gurupi, gurupá; conte bem que são dez!

Contar piadas era outra diversão, como brincar de moinho, damas, bingo e outros antigos jogos de mesa. Agora me lembrei de uma brincadeira que minha mãe inventou, para nos entreter nesses dias chuvosos. Encima de uma mesa rústica de abrir, numa superfície grande e lisa, mamãe desenhava uma série de círculos de tamanhos variados. Dentro dos círculos haviam diferentes pontuações: quanto menor o círculo, maior a pontuação. Num canto estava escrito saída e em lugares chave diferentes (próximos aos círculos de maior pontuação), 11

Mnemonias: Tipo de parlendas ditas ou recitadas pelas próprias crianças, com o fim de fixar números ou nomes.


espaços onde se desenhavam caveiras. Brincávamos com botões de igual tamanho e forma, mas de cores distintas e os impulsionávamos com um “tickle” (uma batidinha com o dedo médio e o polegar). O botão não podia ser simplesmente empurrado, somente jogado com o “tickle”. Cada jogador tinha três oportunidades. Se o botão parasse em um círculo com pontos, era contado a seu favo; porém, tinha que ficar totalmente dentro. Se parasse no local da caveira, os pontos obtidos eram anulados. Podia se brincar num tempo previamente combinado ou até que um dos jogadores somasse 200 pontos, por exemplo. Era muito interessante! Claro, se em casa não houvesse uma mesa útil como a de mamãe, valia comprar uma tábua lisa. E, falando de mesa útil, também lembro que púnhamos aquela mesa de pernas para cima, imaginando um barco. Nela construíamos uma vela de lençóis e pescávamos, com varas fabricadas com paus, linhas e cabides os brinquedos que anteriormente tínhamos espalhado pelo chão. Imaginávamos peixes-rei, sardinhas, tainhas, bagres, etc, sem importar se eram de rio ou de mar, de locais frios ou tropicais. Neste mar de fantasia, tudo era permitido!

Estórias de terror.

Ao anoitecer, especialmente nas depreciáveis noites de vendaval, nunca faltavam as sessões de estórias de terror que, supostamente, traziam inconvenientes para toda a família, já que, como ficávamos amedrontados, a solução era enfiar-se no meio da “grande cama” onde sentíamos a segurança e o calor da proximidade de nossos pais. Se falo no plural é porque acontecia o mesmo para todos, e nos era dito sempre o mesmo: “que seja a última vez que contam essas bobagens, caso contrário não se reunirão mais!”. Irremediavelmente, de tempos em tempos, as estórias surgiam como fantasmas e nos envolviam em tramas pavorosas. Algumas estórias eram quase lendas populares, pois muitas pessoas as conheciam ou davam veracidade. Lembro-me, por exemplo, da estória da mulher de branco e a da aposta, que circulavam como verdadeiras e logo contarei. Claro que, nestes tempos de TV a cabo e seriados de terror cheios de efeitos e sons


impactantes, essas estórias parecem tão inofensivas e inocentes que os leitores vão cair na

gargalhada.

Independentemente

disso, parece-me que, nas

fogueiras de

acampamento, seguem surtindo efeito e mais de um valente rapazote sai chorando e aproximando-se dos adultos.

A mulher de branco

O jovem José, muito conhecido na região, foi ao baile que, em todos os sábados, era organizado no clube de seu bairro. Naquela noite, em especial, chamou-lhe atenção uma moça sozinha, muito jovem, que não era das proximidades; usava um vestido branco comum, enfeitado por uma rosa vermelha. Era loira, magra e muito pálida e dizia chamarse Maria Estela. José convidou-a para dançar e ficou com ela a noite toda: era atraente e sua conversa, apesar de breve, era interessante; parecia conhecer muito bem o lugar. José perguntou por seu endereço, na intenção de visitá-la, enquanto ela tirava, de uma bolsa de lantejoulas prateada, um lápis e um bloquinho. Escreveu um endereço, arrancou a folha, dobrou-a em quatro e entregou-lhe. Pela madrugada, José ofereceu-se para acompanhá-la, sendo que ela negava energicamente enquanto saía caminhando veloz e solitariamente por uma rua escura. O rapaz não ficou tranquilo e, no dia seguinte, decidiu ir até a casa dela para perguntar se havia chegado bem e novamente a convidar para manter a amizade. Abrindo o bilhete que ela lhe entregou, percebeu que era muito longe. Subiu na bicicleta e, após uma difícil procura, encontrou a casa: uma habitação simples, pintada de branco. Imediatamente perguntou por Maria Estela, sendo que o homem que o atendeu ficou sério. - Maria Estela era minha filha, que faleceu há dez anos... Tinha acabado de completar quinze anos. Foi uma tragédia para nossa família... - Perdoe-me, senhor! Desculpe-me, mas, por favor, me descreva como ela era para ver se corresponde a mesma pessoa que eu conheci! - Era loira, magra ... olhe, temos uma foto na cruz de seu túmulo.


José agradeceu, pediu desculpas e dirigiu-se ao cemitério para conferir. Chegando lá, começou a procurar, até que finalmente encontrou o que buscava. A fotografia estava ali: era ela! Porém havia algo ainda mais estarrecedor: sobre a esquife, estava o vestido branco, uma rosa vermelha e a bolsinha de lantejoulas prateada entreaberta, de onde pode muito bem ver o bloquinho e o lápis que Maria Estela havia usado na noite anterior. Pegou-o com cuidado e, quando abriu o bloquinho, faltava a primeira folha.

Sempre ficávamos amedrontados ao ouvirmos esse conto. E, lá dos túneis de minha memória infantil, eis que já surge outro conto de terror:

A aposta

Dois jovens, num dia de inverno, fizeram uma aposta para saber quem teria coragem de passar sozinho por todo o cemitério numa noite de lua cheia. O desafio foi aceito: esperaram a chegada da meia noite e, munidos de sobretudo e cachecol, se dispuseram na empreitada. Mas, como provariam que realmente tinham ido até o fim? Decidiram de comum acordo que, para provar, deixariam um prego na madeira que protegia uma tumba. O primeiro jovem, portando prego e martelo, saiu para cumprir sua missão. Passados alguns minutos, ele não regressava. Preocupado, seu amigo lhe chamava sem obter resposta. Pensando que fosse tramoia (uma ‘pegadinha’), aguardou alguns instantes para ver o que se sucedia, encontrando uma cena horripilante: seu amigo havia chegado ao destino; porém, ao pregar, descuidadamente, prendeu seu cachecol. Provavelmente, quando iniciava o regresso, sentiu que estava preso. Aumentando seu pavor, deve ter pensado que alguma ‘alma penada’ quisesse detê-lo, ofendida pela brincadeira de pregar na tumba. Conta-se que, com o coração em pânico, não resistiu e morreu no ato.

Outro jogo que gostávamos era:


O jogo da forca

Jogo de mesa, ainda atual. Desenha-se uma forca; ao lado, marcam-se tantos traços quantos corresponderem ao número de letras de uma palavra (secreta), registrando somente a primeira letra dessa palavra. O desafiante, tentando adivinhar a palavra secreta, através de sucessivas tentativas, nomeará diferentes letras. Cada vez que pronunciar uma letra inexistente, o “carrasco” desenhará uma parte do corpo de um boneco, pendurando-a na força. No momento em que o boneco ficar completo, o desafiante terá perdido e continuará jogando como enforcado, até que consiga acertar uma palavra. Se,

ao

contrário,

adivinhar a palavra, será o novo “carrasco”. As crianças que não têm uma ideia tão trágica da morte, e se divertem muito com esta brincadeira. Sugerimos, como variantes, partindo-se (sem o desenho da ‘forca’) de um corpo personagem, ao qual vá se acrescentando vestuários específicos masculinos ou femininos; ou, do ‘esqueleto’ de uma casa, na qual vá se desenhando janelas, portas, jardim, inclusive os moradores. Os professores podem criar diferentes personagens ou apelar para a imaginação dos alunos, tornando mais positivo, um jogo tão “dramático” (o da ‘forca’).

Bom, creio que seja o suficiente para terminar o capítulo ‘Dias Chuvosos’ e passar para brincadeiras mais dinâmicas, que desfrutávamos em ‘Dias de Sol’.


COISAS DE MENINAS E MENINOS

Conforme falado anteriormente, algumas brincadeiras não eram compartilhadas entre meninos e meninas porque, segundo eles, eram “coisas de meninas” ou, pior ainda, “coisas de mulheres”. Um exemplo desta discriminação machista era nas brincadeiras de roda ou similares. Mas tudo mudou tanto! Atualmente as tarefas do lar são divididas igualmente, os maridos trocam fraldas de bebês e vão às compras, coisas que antes eram de exclusividade feminina. Deixando a ‘teoria’ de lado, recordemos aquelas brincadeiras:

O caranguejo (aos pares, dançavam e cantavam)

Caranguejo não é peixe, caranguejo peixe é; caranguejo só é peixe Na enchente da maré.

Bate palma, palma, palma, bate pé, pé, pé; caranguejo só é peixe na enchente da maré.

Caranguejo é presidente, goiamum é capitão; aratu por mais pequeno inspetor de quarteirão.


Passa, passa, passará. (Esse é o estribilho entoado na brincadeira)

Passa, passa, passará. O de trás ficará a porteira está aberta para quem quiser passar.

Passa um... Passam dois ... Passam três .... Ficou!

Nessa brincadeira, eram escolhidos dois, representando um anjo e um diabo, e um terceiro que era a “máquina”, ou seja, a guia do trenzinho formado pelo restante das crianças que correspondiam aos vagões. O anjo e o diabo formavam uma ponte, escolhiam duas coisas, cores ou situações diferentes e levantavam os braços, como sinal da porteira, informando que estavam prontos. Então, o trenzinho passava, entoando os versos citados, e no momento combinado, a porteira prendia alguma criança, e faziam uma pergunta: - Do que você gosta mais, laranja ou maçã? Ou, vermelho ou azul? Ou, da rosa ou do jasmim? Havia infinitas possibilidades, porém era somente uma por jogo. Conforme a resposta, o “vagão” do trenzinho postava-se, sem saber, atrás do anjo ou do diabo. Finalmente, quem tivesse o número maior de “vagões” ganhava e aí que se revelava quem havia vencido: o anjo ou o diabo.


Outra maneira de determinar o vencedor da brincadeira, requeria o uso da força: amarrava-se bem firme na cintura da companheiro da frente. Cada grupo faria força até inclinar a outra fileira e, consequentemente, não era necessário dizer quem teria vencido.

Bom barquinho

Os jogadores faziam uma fila, um atrás de outro, com as mãos nos ombros de quem os antecedia. A certa distância, ficavam dois jogadores, formando um arco com os braços, representando o céu e o inferno; porém, estes ‘lugares’ eram substituídos pelo nome de duas frutas.

Cantam:

Bom barquinho, Bom barquinho, Deixarás passar, carregados de filhinhos Para ajudar a criar.

Quando chegam perto do arco, param. O jogador da frente vem de mãos dadas com outro que representa a mãe ou o pai. Então canta:

Eu peço, meu bom barquinho, Licença para passa; Qu’eu tenho muitos filhinhos, Não posso mais demorar.

Os que formam o arco, respondem, cantando:


Passarás, passará, Que algum deles há – de ficar; Se não for o da frente Há – de ser o de detrás”.

Passavam, sob o arco, vários, ficando preso o último, quando acabava a canção. Perguntavam a ele: quer maçã ou pera? E conforme a resposta, ia para trás do jogador que representava a fruta mencionada, que seria inferno ou céu.

Carneirinho, carneirão

Era uma roda de crianças, de mãos dadas, dançando e gesticulando de acordo com a letra. Cantavam:

Carneirinho, Carneirão, neirão, neirão, olhai pro céu, olhai pro chão, pro chão, pro chão.

Mandou dizer, rei, meu senhor, senhor, senhor, que todos se levantassem tassem, tassem.

Carneirinho, carneirão, etc.

Mandou dizer, rei, meu senhor, senhor, senhor,


tue todos se deitassem, Tassem, tassem.

Carneirinho, carneirão, etc.

Brincar de estátua.

Todos formavam uma fila e quem fosse escolhido “pegador”, puxava pela mão, um de cada vez, e jogava com força. O jogador, ao terminar o impulso, caía imóvel na posição final; caso se movesse ou risse, perdia. As tarefas (prendas) estabelecidas dependiam do local da brincadeira que podia ser a escola, a casa de alguém, ou nas calçadas. Esta brincadeira pode ser recriada, conforme uma versão contada por um amigo: ele brincava com dois ou três amigos. Quando caíam, o “pegador” aproximava-se e perguntava: - Quem és? O outro respondia tentando ser o que a sua posição lembrasse. Por exemplo, se houvesse caído com a espinha curvada dizia: - Um velho. Era formulada sempre a mesma pergunta, porém um era eleito e tinha que inventar uma estória sobre seu personagem. Os jogadores sentavam-se no chão e o eleito relatava a estória de sua estátua. O relato tinha que ser curto e divertido, caso contrário, os outros vaiavam. Terminado o relato, ou impedida de continuar, trocava de papel com outro que contaria outra estória. Era feita uma eleição do melhor.

As fitas

Cada uma das crianças tomava uma cor de fita: azul, branca, roxa, verde, vermelha, amarela, etc. Uma era a Mãe das fitas, outra o Anjo bom, e a terceira o Anjo mau.


As crianças permaneciam sentadas. Ao lado, em uma das extremidades, ficava a Mãe das fitas. Num ponto afastado o Anjo bom; e, no extremo oposto, o Anjo mau. Nenhum dos anjos sabia que cores escolhiam as fitas. Vinha o Anjo Bom; batia palmas... Mãe das Fitas: - Quem bate? Anjo bom: - Sou eu, o Anjo bom. Mãe das fitas: - Que desejas? Anjo bom: - Uma fita Mãe das fitas: - De que cor? O Anjo bom dizia uma cor qualquer. Se acontecesse que uma das crianças escolheu aquela cor, levantava-se e acompanhava para o céu. Se aquela não existia, respondia: Mãe das fitas: - Não tem. O Anjo bom saia para o seu lugar e vinha então o Anjo mau e estabelecia-se o mesmo diálogo. Aquele dos anjos que acertasse, levava a criança correspondente à cor. Os anjos iam e vinham, até que saíam todas as fitas. Ganhava a que tivesse maior quantidade.

As comidinhas.

DA CIDADE

As meninas sempre brincam de mamãe, limpando o espaço que constituía a “casinha”, preparam a comida, cuidam de suas bonecas como as mães cuidam delas. Atualmente, especialmente nas grandes cidades, muitas mães trabalham fora, às vezes, cozinham ou outra pessoa o faz; podendo ser o pai, já que nos casamentos há compartilhamento de funções. As bonecas já não são apenas imitação de bebês, porém


existem algumas com aspecto de adultas, que não necessitam ser cuidadas, apenas imitadas no vestuário, uso de cosméticos, etc. As cozinhas, muitas vezes, até possuem utensílios com comidas ou frutas de plástico. De qualquer forma, brincar de comidinha é sempre um atrativo, ainda que com essa modernidade toda. Tempos atrás, havia dois tipos de cozinha: as que faziam comidas “de mentirinha”, e algumas de metal, com verdadeiros forninhos, onde se podia até colocar carvão. As primeiras eram para as menores. As que já podiam manipular fogo sonhavam com o segundo tipo. Nas primeiras, imaginava-se que algumas pedras, um pouco de areia, folhas de árvores ou plantas de jardim fossem comestíveis, e eram preparados como tal. As de metal geralmente traziam uma ou duas panelas, uma chaleirinha e uma leiteira. Com isto, as meninas faziam comida com pedacinhos de verdura que as mães lhes davam, conforme o cardápio do dia. Havia chocolate que era servido em pequenas taças. Muitas vezes, pediam farinha e com água faziam uma massa para bolinhos, roscas e tortas, que aparentavam comer. De vez em quando, a mamãe as assava, e então comiam.

DO CAMPO

Nair, uma senhora consultada, conta-nos que, quando criança, vivia com a família no campo. Como eram pobres, fabricavam seus próprios brinquedos. Para cozinhar, cavavam buracos no chão de terra, cheios de carvão ou galhos secos, sobre os quais colocavam uma espécie de grelha de arame encontrado no galpão. Em panelas velhas, faziam comidas, que até podiam ser digeridas. Quando havia muito vento, construíam uma proteção para evitar que o fogo apagasse. Então chamavam de quiosque, imitando os adultos. Recriar esta brincadeira hoje, promove uma atitude de dramatização de situações do cotidiano que permanecem ainda vigentes, estimulando, em consequência, a psicomotricidade.

Bonecas artesanais.


DO CAMPO

A mesma Nair relata-nos que fabricavam bonecas com espigas de milhos. Com a palha (folha que envolve a espiga) faziam as saias. Na ponta, trançavam os cabelinhos do milho e retiravam alguns grãos para formar o rosto. Com lápis coloridos desenhavam olhos, boca e nariz. Conforme o tamanho da espiga, era a idade da boneca. Ela chegou a ter uma família inteira de bonecos. Quando os milhos secavam ou apodreciam, eram enterrados numa cerimônia pomposa e geralmente o irmão mais velho era o padre.

NA CIDADE

Muitas senhoras consultadas, na faixa etária entre 65 e 78 anos, nos relataram que fabricavam suas próprias bonecas com porongos. Algumas eram pintadas, outras cobertas de papel, sobre os quais desenhavam o rosto. Faziam um enchimento com farinha e água (o melhor era cozido até tomar consistência vítrea), preenchiam a cabeça e cravavam um pau. Deixavam secar e endurecer o enchimento e formavam o tronco com retalhos de tecidos que suas mães lhes davam. Na parte de cima, construíam os braços e, na parte de baixo, as pernas, com arames também cobertos de tecidos. Costuravam a roupa com o papel do boneco: bebê, menino, menina, ou até adulto. Outras construíam a cabeça com uma bola de borracha maciça, enfiavam uma agulha de tricô e nela armavam o corpo. As meninas da mesma época, cujos pais pudessem comprar bonecas, esmeravamse em costurar os vestidos. Relata-nos Paulinha que seu bebê tinha vários trajes e sua boneca, um figurino para qualquer necessidade social. Brincar sozinha ou acompanhada, era sempre imitar o papel da mãe. Quando se visitavam, conversavam sobre as roupas de seus filhos, contavam anedotas baseadas no que observavam de seus irmãos.


Apesar de que atualmente os brinquedos são mais acessíveis, seria interessante recriar estas técnicas, que podem incrementar a capacidade manual e a imaginação criativa.



TEATRO E LENDAS

Evidentemente fui correndo buscar minha coleção de lendas! Ela, sobrevivente dessa espécie de caos chamado sótão, estava bem conservada e coberta com uma velha toalha que protegia os livros do pó e de insetos. A coleção estava alinhada em um estante parecendo soldados perfilados para um desfile: todos encapados na mesma cor e com etiquetas de identificação. Um dos meus passatempos prediletos era ler essas lendas e imaginar cada situação, para posteriormente dramatizá-las com meus amigos, brincando de artistas. As opções eram muitas, afinal, dez volumes de forma quadriculada, ricamente ilustrados e com conteúdo imperdível. Peguei um ao acaso. O conteúdo da primeira lenda misturou-se com aquelas experiências de preparar e apresentar um espetáculo, com os diversos detalhes, conforme relato. Mas primeiro, conheçam uma das lendas que representamos com grande êxito de plateia e bilheteria, pois cobrávamos uma moedinha para dar o direito a assistir. O público estava garantido: pais, avós, irmãos dos atores pagavam rigorosamente os dez centavos requeridos.

As manchas do sapo

Os sapos, como sabemos, possuem manchas no corpo. Porém, há muitos e muitos anos, quando Deus os criou, seus corpos eram verdes, suaves e lisos. Não se enxergava nem sequer uma manchinha. Certa ocasião, Deus decidiu promover uma festa. Mas, se viessem todos os animais da criação seria em demasia, começou por convidar somente os pássaros. O encargo da organização do festejo ficou por conta dos anjos que aceitaram com alegria, pois se sentiam, de certo modo, meio pássaros.


As encarregadas para distribuir os convites foram as libélulas, que apesar de não serem pássaros, agradeceram por participar. Ágeis e leves, não lhes parecia trabalhoso visitar todos os ninhos. Alguns dias antes do previsto, os pássaros começaram os preparativos: banharamse em águas perfumadas, alisaram as penas e lustraram os bicos para brilharem radiantes. Dentre eles, dois tico-ticos, que foram mirar-se no espelho do lago, bem próximo do local, onde vivia um sapo de lombo verde, liso e brilhante, como todos os sapos daqueles tempos. Como a dupla de tico-ticos estava alegre, rindo com entusiasmo, o sapo questionou: - Olá amigos! Qual o motivo de tamanho alvoroço? O que está acontecendo? - O quê, não sabes? Vamos para Festa dos Pássaros. Deus convidou todas as aves e estamos nos preparando para voar ao céu. - E nós, batráquios, não podemos participar? - Nada disso! É somente para nós, que temos asas, penas, ninhos entre galhos de árvores. Aliás, música é o que não vai faltar, pois muitos de nós sabemos cantar. O sapo entristeceu-se. Gostava tanto de música! Apesar de Deus ter-lhe dado uma voz rouca, pensava não lhe fazer falta ser soprano ou tenor, pois os barítonos e contraltos também eram necessários em um coral ou numa ópera, por exemplo. Mas, logicamente, ele era um batráquio, que não tinha nem asas, nem penas e nem morava nos ramos das árvores, portanto não estava na lista dos convidados. Deprimido ao ponto de chorar, escondeu-se entre as moitas para que os tico-ticos não o enxergassem e pôs-se a planejar como poderia participar também, escondido em algum ponto imperceptível para escutar a música que tanto amava. Enquanto meditava, dois quero-queros pousaram próximo dali. - Quero-quero, disse um deles, estás pronto para a festa? - Quase, quase, compadre. - Boa ideia, não? - Excelente! Será um verdadeiro festival de música! - Ensaiaste bem?


- Compadre, eu ensaio todos os dias como você. Faço gargarejos para limpar a voz e já estou praticamente pronto. - Dizem por aí que o condor vai levar uma guitarra. Ela está escondida na Pedra Vermelha. - Que beleza! E ele sabe tocar? - Certamente, roubou de um andarilho, mas antes cuidou muito bem como se maneja o instrumento. Como tem boas unhas e ouvido para música, está desempenhando divinamente. - Vamos compadre, está ficando tarde. - Quero-quero ... Quero-quero ... – gritavam enquanto davam um rasante. O sapo escutava atento. Uma guitarra, pensou, poderia ser um bom esconderijo. E a Pedra Vermelha fica bem pertinho. Em poucos saltos posso subir e meter-me lá dentro. Assim fez o sapo, escondendo-se num canto oco do instrumento. Algumas horas mais tarde, chegou o condor, muito elegante; agarrou o instrumento e decolou. Que emocionante! O sapinho nunca havia voado e pareceu-lhe fantástico. Sempre escondido, pode observar a maravilhosa festa, onde as araras, os pardais, os bem-te-vis, andorinhas, caturritas e até o pica-pau cantavam e dançavam ao ritmo da guitarra. Finalmente, cansado, o condor decidiu dar uma voltinha. Mas de tão cansado que estava, no meio do voo, suas pernas ficaram bambas soltando a guitarra que caiu num penhasco próximo. - Ai, ai, ai... ui, ui, ui... queixava-se o sapo entre tombos e piruetas, já que, no meio da confusão, caiu do oco da guitarra e se retorcia de dor. Cheio de feridas, algumas maiores outras menores, não lhe faltavam pancadas por todo o corpo. Resultado final: carregaria manchas pelo resto da vida! E, se não bastasse, todos os sapos nascidos a partir deste dia fatídico, carregam manchas por todo o corpo.

Terminada a leitura da lenda, iniciava-se a grande missão: a ideia era dramatizá-la para toda a vizinhança; mas geralmente os espectadores não passavam do círculo familiar.


Alcançado êxito na primeira encenação, repetíamos toda a função com várias lendas que nos serviam como argumentos para atuar, cobrar os dez centavos de entrada e desfrutar das glórias com as quais os pais nos brindavam: um chocolate quente com bolachinhas, ao término da peça, estimulando assim nossa vocação teatral (e talvez como sinal de retribuição por termos os deixados alguns dias tranquilos, uma vez que este entretenimento absorvia praticamente todo nosso tempo livre após a escola e os deveres). Claro que a paciência e a generosidade tinham limites e, pouco a pouco, o público começava a escassear, até que decidimos mudar de atividade: o teatro já não era mais lucrativo. Mas naquelas primeiras tentativas, tudo parecia fascinante. A empreitada era grandiosa. Os ingressos, a publicidade, o figurino, os ensaios... O primeiro lugar em importância era a venda dos ingressos: sem esses recursos não teríamos como comprar os papéis e acabamentos necessários. Logo após, dividíamos as tarefas. Enquanto alguns tratavam da mídia, outros - geralmente “outras”, devido às costuras, preparavam as fantasias e os atores treinavam as falas, improvisando e ensaiando cada parte. Uma imagem de Jesus, a camisola da vovó, a barba e uma peruca, todo este conjunto formaria o Todo Poderoso que, na história, decidiu promover a festa. Anjos com asas de cartolina sobrevoavam e uma libélula com antenas e asas feitas com radiografias branqueadas simulavam ir de ninho em ninho. Logo, bandos de pássaros (crianças com capas coloridas e penas nas mãos), voavam felizes, após acabarem com todo o estoque de penas de cada casa. A guitarra sem cordas abandonada por algum irmãozinho era carregada pelo condor, que com uma capa maior, um bico de cartolina e um colar branco de papel crepe, exibia majestosamente suas franjas e um punhado de penas maiores e coloridas, subtraídas de um galinheiro vizinho. O sapo era, sem dúvida, o de mais difícil caracterização: deveria aparecer primeiro sem manchas e, alguns instantes depois, manchado. Como seria?


Não foi nada fácil, lembro, mas a saída engenhosa vale a pena ser relatada, porque a criatividade era parte da brincadeira. O sapo, caracterizado principalmente pela postura e por uma cartolina verde nas costas, girava e girava até cair, sumindo atrás de um “telão”, local onde lhe seriam pregadas as manchas previamente construídas. Nos dois minutos que demoravam em prendê-las, ficava uma brecha coberta pelos pássaros, que surgiam em cena dizendo: O que está acontecendo? Que barulho foi esse? Até parece que algo caiu, deve ser a guitarra do condor. Sim, sim, está aqui ..., mas guitarras não reclamam (etc. etc.). Improvisos geniais! Até que, triunfante, surgia o sapo da lenda, com suas manchas recém grudadas no corpo saltando timidamente para frente e para trás, mostrando suas marcas enquanto narrava o que lhe havia sucedido. E como “gran finale”, eloquentemente, reaparecia o Deus barbudo, dizendo ao público num tom firme e triunfal a frase que encerrava o espetáculo: - “Daquele dia em diante, todos os sapos carregarão manchas pelo corpo”. Reafirmo que não eram apenas lendas que representávamos: também contos e fatos históricos sob um prisma humorístico. Nunca me esquecerei da dramatização da chegada de Colombo a América, Joãozinho e Mariazinha, e o pontapé que deram na bruxa quando a empurraram no caldeirão...



BRINCANDO COM ESFERAS

Noutro dia novamente subi ao sótão para continuar minha busca de recordações. Abri uma grande caixa, amarrada com muitos nós de fio de sisal, enquanto pensava: O que haverá aqui dentro? Rapidamente saí da dúvida. Aberta a caixa, encontrei um tesouro redondo: várias bolas, algumas coloridas, muitas furadas ou murchas, de borracha maciça e até uma de futebol de couro marrom seco enrugado que, de redonda, não tinha nem pista. Naturalmente, senti que essas esferas me faziam um gol no cérebro e, ao invés de dar vantagem ao adversário, acrescia escore a meu favor, porque detrás da goleada mental surgiam muitos rostos, muitos jogos, muitas risadas. De tantos relatos sobre brincadeiras de bolas em tempos passados, resgatei um bastante cruel, sobre índios que habitavam a América antes da chegada de Colombo: os astecas. E dizem que existem antecedentes similares ainda mais antigos, entre os maias. Contam os historiadores que esses nativos jogavam com a bola, mas por motivos muitos diferentes dos que os de hoje, impulsionam as pessoas a desenvolver essa atividade. Para os astecas, o jogo de bola era uma cerimônia religiosa, um ritual sagrado, um evento importante e difícil, tendo como desfecho um final pouco feliz sob nosso ponto de vista, claro. Os espectadores amontoavam-se em torno da cancha, que tinha formato de H, aguardando a entrada dos jogadores e animando-os a enfrentar a dura missão. Mais que dura, cruel, pois os derrotados seriam sacrificados. Uma linha central separava o terreno das equipes e, em cada extremo, se dispunham os arcos que eram, na realidade, aros mais parecidos com os do basquete atual do que com as atuais goleiras do futebol. Dentro do fundamento religioso asteca, seria a divisão entre o dia e a noite, ou as forças da luz e as das trevas. O bem e o mal. A bola pesada, maciça e dura, era o símbolo do poderoso sol que tudo ilumina.


Tudo começava com uma invocação a Xochipilli, Deus do Esporte, após o que se iniciava a partida. A pelota somente podia ser tocada com os cotovelos, os joelhos ou a cintura. Nada de pés ou mãos e, menos ainda, por razões óbvias de peso, a cabeça. Para ficar com o corpo protegido dos fortes golpes, usavam uma espécie de avental de couro, reforçado nas partes mais delicadas; luvas e joelheiras. A disputa era tão violenta e sanguinária que, apesar da couraça protetora, acabava com muito sangue e machucaduras. Evidentemente os perdedores sangrariam mais, pois uma vez que a partida terminava, seus corações eram oferecidos em sacrifício aos deuses, dessa forma, alimentando ao sol. Claro, vocês concordarão com os historiadores, pensando que essa atividade não seria um jogo propriamente dito. Claro que não! Mas me parece interessante citá-lo como um curioso antecessor, antes de dar o passeio imaginário por outros jogos com bola, mais alegres e atuais. Sem sangue, sem dor, somente com alguns arranhões superficiais e sempre com grande fervor.

A bola de pano

Os meninos tinham uma preferência comum: o futebol. Mas nem sempre possuíam uma bola de borracha ou, menos ainda, uma de couro, para realizar a partida. Então se fabricava uma bola de trapos (panos). A bola de pano era confeccionada com uma meia velha, recheada com pedaços de tecido em desuso, bem exprimidos até obter um formato arredondado e, finalmente, serem amarrados ou costurados com um capricho tal que não deformavam a esfera. Era uma verdadeira arte fazer uma boa bola de pano. Às vezes, pais e avós “peritos”, ajudavam nessa tarefa, alcançando resultados incríveis: a bola até podia picar corretamente estando bem construída. As crianças brincavam nas ruas de pouco movimento ou se amontoavam em algum terreno baldio preparado anteriormente, chamado “campinho”.


Quem tivesse uma bola de borracha era afortunado... até ela que furasse, um automóvel atropelasse ou caísse no pátio de um velho mal-humorado que, farto da bagunça, a sequestrava por alguns dias e, em casos mais extremos, não a devolvia mais. Claro que o proprietário da bola era o ídolo e, por conselho paterno, somente jogava em lugares seguros. Por exemplo, no clube do bairro, onde havia uma quadra em condições (haviam até goleiras), não passavam automóveis e a vizinhança ficava isolada por altos muros, semelhantes aos de uma prisão. Mas, pese o luxo de fazer um futebol “de verdade”, a bola de trapo era um material histórico, com valor agregado de ser artesanal, e o campo, com dois lados demarcados e goleiras, um maravilhoso e incomparável estádio de futebol.

Bolas no parque de diversões.

Quando chegava um parque de diversões à cidade, junto com jogos mecânicos apareciam atrações onde a bola era protagonista. - Tem que derrubar todas as latas! – Gritava o dono da barraca onde, com um chute, ganhava quem derrubasse a torre de latas empilhadas. Parecia fácil, mas não era: sempre algum par de latas “malditas” teimava em permanecer firme no lugar, e saíamos sem a boneca ou o trenzinho com os quais o homem nos persuadia. Havia também a versão com arremesso manual. Outro jogo se parecia com bilhar: com uma espécie de taco tinha que se golpear a bola até que chegasse a orifícios com pontuação: uns tinham sinal positivo, outros sinais negativos. Dificilmente se chegava a tempo no escore previsto, porque na melhor parte do jogo, quando faltavam somente dois ou três pontos, os nervos nos traíam e a bola caía num orifício com sinal negativo, diminuindo nosso capital armazenado de pontos. Lembro, também, de outro entretenimento tipo basquete, que nos exigia pontaria: - Quantos pontos poderíamos acumular acertando o aro? Quase sempre os pontos somados eram premiados com um mísero pirulito, e partíamos com o doce na boca e a amargura no coração, olhando para o prêmio que havíamos perdido, por não termos


acertado as 10 tentativas: um belíssimo carro de corrida, se o vencedor fosse menino, ou uma cozinha completa em miniatura para as meninas... Havia outro jogo onde as bolas eram muitos atraentes: todas imóveis, de cores distintas, em alinhamento perfeito, nos “tentando” a pedir uma moedinha, com a certeza de derrubá-las todas com um só tiro. Ledo engano: por mais que arremessássemos, como, concentrados ou pondo toda a força no braço, ao final caíam somente três ou quatro, permanecendo a maioria intacta. De qualquer jeito, nem tudo era derrota: de vez em quando ganhávamos um balão ou um bichinho de pelúcia que compensavam, parcialmente, o esforço. Além do que, havíamos nos divertido, o que era o mais importante, buscávamos ideias para usar nas gincanas ou festas de escola. De outro lado, também havia jogos mecânicos: dar voltas na roda gigante, as emoções do trem fantasma, a vertigem dos brinquedos mais velozes faziam-nos esquecer rapidamente os fracassos anteriores.

Bolinhas de gude

Muitos companheiros meus eram verdadeiros “experts”. Sabiam tudo: desde a história do jogo até as táticas para vencer sem trapaça. Eles contaram suas experiências com as bolinhas coloridas: Desde as bolinhas de barro ou de pedra polida, sementes de frutas, as primeiras bolinhas de cerâmica, as de esferas de rolamentos, de vidro, atualmente de outros materiais transcorrendo com a evolução humana. Seu nome foi mudando, como vários outros jogos, conforme o país em que seja praticado e experimentou muitas variantes. Em geral, era um jogo para meninos. Como todos esses jogos, atualmente, e especialmente nas cidades grandes, perdeu a quase totalidade de praticantes. Conforme relato do brasileiro Neto Sofiati, a julgar por descobrimentos arqueológicos e registros escritos, a brincadeira de bolinhas encaixa-se nos jogos


considerados de estratégia, com origem na Era Neolítica. O início é, consequentemente, desconhecido. Pode ter surgido simultaneamente em vários grupos culturais, atendendo a uma necessidade lúdica, ou ter sido difundido expandindo-se a partir de um local de origem. Já o encontramos retratado em um quadro chamado “Jogos Infantis”, de Pieter Brueghel, “O Velho”, pintor flamenco que viveu entre 1525 e 1569. Ali se pode observar uma variação do jogo, segundo a qual se fazem três buracos no chão, semelhante ao jogado no Brasil. Aqui, como em toda América, os jogos foram trazidos pelos europeus. Brincavam todas as crianças de classe média e trabalhadora, sem distinção, desde a tenra infância até a adolescência. Conforme o material de fabricação, tinham diferentes nomes, e lhes eram atribuídos valores distintos. São muito apreciadas as de vidro multicolorido, bem como as de ferro, com as quais não se podia brincar sem combinar previamente. Chamava-se pinicão a uma maior que as outras, e as de vidro apresentavam bonitas cores. Há muitos anos, como o pinicão era caro, quem o possuísse tratava-o com muito zelo. As meninas arranjavam um pinicão para usá-lo como enfeite. Quanto a forma de rolar a bola de gude, também havia variações: poderia jogar com ajuda dos dedos indicador e polegar; aquele dobrado sobre esse e o polegar enrolado sobre si mesmo e a pinica colocada sobre a unha do polegar, ou na primeira articulação do mesmo. Iniciava-se jogando de pé e, posteriormente, com um joelho tocando no chão e a outra perna dobrada, mudando de posição conforme o decorrer da partida. Era comum em quase todos os países, a necessidade do jogo ser realizado sobre chão de terra, para que se pudessem fazer vários buracos, chamados ‘boco’, dentro dos quais as pinicas deviam cair. Em outra modalidade, desenhavam-se figuras geométricas donde deveriam ser, através de sucessivas jogadas, retiradas as bolas de gude dispostas anteriormente. Existem muitas maneiras de se jogar. Geralmente um menino ou um grupo desafia outro, e se estabelecem as regras que podem ser: cada vez que acerta a pinica no buraco, ganha uma do adversário (jogo do boco); dispor algumas pinicas nos vértices, formando figuras (quadrado ou triângulo) e iniciando de uma linha previamente combinada.


Conforme se acertem as que estão na figura geométrica, deslocando-as, vai se retirando e ficando as mesmas como prêmio. Aqueles que acertam continuam no jogo, os que erram esperam o próximo reinício. Por ser semelhante na forma de jogar, incluiremos aqui o chamado “Jogos das Tampinhas”. Desenhavam um círculo de uns dois metros de diâmetro e, em seu interior, faziam pilhas com cinco tampinhas (quatro na base e uma no centro, no topo). Cada um dos jogadores colocava todas as tampas de que dispunha. O jogo consistia em arremessar, com um caco de telha ou uma pedra redonda, espalhando a maior quantidade possível de tampas. O arremessador ficava dono de todas as que saíssem do limite da figura.


MAIS ALGUNS VELHOS JOGOS

Depois que meus amigos me contaram suas histórias, tive uma ideia: convidar toda “galera” da minha infância para juntos recordarmos do que brincávamos, para ver se resgatávamos lembranças que não houvessem sido deixadas no sótão da minha casa. Apareceram muitas brincadeiras já relatadas ..., mas também surgiram outras. Irei repassar algumas, para que os jovens e crianças de hoje leiam o que lhes conta “a juventude do passado”, e aproveitem para recriar as brincadeiras que lhes interessem. Além do mais, será um pretexto para dialogar com pais e avós e também, por que não, para acrescentar mudanças mais atuais. Todos chegamos à conclusão de que o mais importante é brincar e formar um bom grupo de companheiros, compartilhando e cultivando este tesouro, chamado amizade, que continua sendo o mesmo sentimento nobre, em todos os tempos e espaços.

Uma brincadeira preferida era:

Língua de sogra.

Talvez tenha outros nomes, mas eu conheço por ‘língua de sogra’ – um brinquedo que se vende, de tempos em tempos, para algumas festas, especialmente no Carnaval e em Festas de Aniversário. É um artefato que, ao soprar pelo caninho de uma cartolina, desprende uma espécie de língua réptil de papel colorido tubular que fica no extremo oposto do lado que sopramos, enroscada. Quando sopramos, como já disse, avança e se retrai ao deixar de insuflar ar.


Junto a serpentinas, apitos, reco-recos, cornetinhas e matracas lembrei com nostalgia os finais dos Desfiles de Carnaval, das Festas de Aniversário, ocorridas geralmente em casas de família, onde era comum serem distribuídas, junto dos eternos balões. Também estavam em voga os balões gigantes recheados com brindes, que geravam grande expectativa. Neste vai e vem divertido que formava o clima corrente nos aniversários tradicionais das crianças de classe média, a língua de sogra assumia o papel de molestador das orelhas dos pequenos convidados, tanto que apitos e cornetas se tornavam um suplício anunciado para os ouvidos dos adultos presentes. Naquela época, a maioria das festas não contava com a presença de palhaços, nem magos, nem animadores e nem espetáculos especiais: alegrávamo-nos em organizar nossas brincadeiras, divertindo-nos muito. Se ficássemos emburrados, alguma mãe nos motivava. Se a casa fosse grande ou tivesse quintal, as brincadeiras de esconde-esconde e pega-pega eram as prediletas, participando meninos e meninas. Se o pátio fosse pequeno, brincávamos de roda, (além de Ciranda Cirandinha, Carneirinho Carneirão, Caranguejo, Cai, cai balão e outras Rodas Cantadas), não tendo muito sucesso entre os meninos, mas com adesão total do sexo feminino. Então os garotos iam para outro lado brincar de ‘Cowboy’, ou de polícia e ladrão, até o entardecer. Nessa hora, inclusive para facilitar o cuidado dos pais, brincávamos de caçador, de posse de qualquer objeto que pudesse ser jogado.

João lembra, quando, nos fundos de casa, se reuniam para brincar de Lobo.

Está pronto, Seu Lobo?

Este jogo tem origem na Espanha e se espalhou por quase todo continente americano, com variações regionais ou de país.


Para jogá-lo é necessário espaço suficiente ao de uma corrida e, se possível, dispor de um esconderijo. Brincam várias crianças de ambos os sexos. Quanto mais crianças houver, maior a possibilidade de se divertir, escapando. Para a escolha do Lobo, existiam várias maneiras: formar uma roda e, no centro da mesma, uma criança começava a nomear, em sequência “branco”, “preto”. Se a cor combinada para derrota fosse preta, e o último da roda ficasse com essa cor, seria o Lobo. Caso contrário, a criança que contava seria o Lobo. Outra maneira era através de sorteio de papeizinhos ou palitinhos. O sorteado para Lobo logo se escondia, enquanto os demais cantavam: - Vamos passear na floresta, enquanto seu lobo não vem. (Bis). Após perguntam: - Está pronto, seu Lobo? O lobo responde: - Estou tomando banho. As crianças: - Vamos passear na floresta, enquanto seu lobo não vem. (Bis). Lobo: - Estou me enxugando. Crianças: - Vamos passear na floresta, enquanto seu lobo não vem. (Bis). Lobo: -Estou vestindo a cueca. Crianças: - Vamos passear na floresta, enquanto seu lobo não vem. (Bis). Lobo: -Estou vestindo a calça. Crianças: -Vamos passear na floresta... Lobo: - Estou colocando as meias. Crianças: -Vamos passear na floresta... Lobo: -Estou calçando os sapatos. Crianças: - Vamos passear na floresta... Lobo: - Estou amarrando a gravata.

No decorrer da brincadeira, o coro de crianças aparenta maior temor, até que o Lobo diz: - Estou pronto! - e sai grunhindo e fazendo gestos assustadores, diante dos quais todos saem correndo. A criança que for pega, será o próximo Lobo.


As crianças identificam-se melhor com lugares, situações ou personagens pertencentes a atualidade. Por isso mesmo, pensando numa proposta mais moderna, pode-se substituir o lobo por um astronauta, homem ou mulher. Começaria da mesma forma, sorteando um personagem. Este iria se vestindo e respondendo, sucessivamente à cantiga. Ao final, todos saem correndo para o foguete e ligam os motores. Mas, se o astronauta “pegar” algum, o mesmo fica congelado na posição em que estava. As crianças podem estipular depois de quantos “prisioneiros”, todos ficarão congelados.

Henrique relata-nos as brincadeiras de que mais gostava:

Jerônimo, o trampolim humano.

Recorro, portanto, a Félix Coluccio e sua esposa, que realizaram uma minuciosa investigação e escreveram um Dicionário de Brincadeiras Infantis Latino-americanas. Os autores citados relatam textualmente o trampolim: Jogo infantil exclusivo de meninos. De difusão mundial, brincado nas ruas, parques e geralmente em qualquer espaço amplo. Brincam em grupos de pelo menos três ou quatro participantes. É sorteado quem será o trampolim, quer dizer, quem se agachará para que os outros saltem, a partir de uma marca no chão combinada, para que dali se inicie o salto. O menino agachado deve colocar-se firmemente com a coluna curvada, e as mãos segurando os joelhos. Os demais participantes saltam em fila (sorteada). Devem passar ao outro lado apoiando somente a palma das mãos, sem tocar no corpo do trampolim. Se não transpuser corretamente (tropeçar, não conseguir transpor, etc.), passa a ser o novo trampolim, ficando no local em que cometeu o erro. O último a saltar grita “Jerônimo”. Então, mede-se o espaçamento desde a linha demarcada até a posição do trampolim, reiniciando-se a brincadeira desta distância. Quando for saltar e parecer impossível, anuncia: peço uma, o que significa que dará um passo a frente para saltar. Poderá seguir conforme as distâncias produzidas, pedindo dois (dois passos) ou três (três passos). A brincadeira termina quando os jogadores decidirem.


A “primeira sem tocar” é uma variação onde se estabelece que no primeiro salto não se pode apoiar as mãos, e assim podem haver outras variantes. (ano, pág.)

Brincadeira de esconde-esconde

Era escolhida uma criança que contaria até um valor numérico combinado (10, 20 ...) enquanto as outras se escondiam. -Não vale espiar, hein! -Um, dois, três, quatro.... E lá vou eu... Então saía do local da contagem, mas não ia muito longe, para ninguém chegar antes dele e bater: - Um, dois, três, fulano... Se percebesse qualquer movimento suspeito, sombra ou pé que passasse por ali, podia correr até o ponto de contagem, e quem chegasse primeiro, entre o contador ou o escondido, dizia: - Um, dois, três, fulano de tal... Caso fosse um dos escondidos, ficaria livre. Caso o contador chegasse antes, aquele seria o próximo a fazer a contagem.

Pega-Pega

É escolhida uma criança para ser o pegador. Ela terá a “missão” de tocar (pegar) a outra criança, correndo, e então passa a função de pegador para esta. Havia uma variante que era a seguinte: estabelecia-se um local chamado “ferrolho”, onde era possível um tempo de descanso

previamente combinado. No

instante em que a criança estivesse no ferrolho, não poderia ser pega, mas se ficasse muito tempo, passaria a ser o novo pegador.

Vaivém.


Esta brincadeira consiste em que duas crianças se coloquem de costas uma para a outra, entrelaçando os braços na altura do cotovelo. Uma se agacha levantando a outra, que na volta levantará está. Continuam o movimento de vaivém, contando quantas vezes, até chegar numa determinada quantidade ou até cansar. Entre as meninas, o jogo limita-se a levantar uma e outra com pouco esforço, pois a que ficar acima colabora com um impulso inicial. Entre os meninos há mais agressividade. Há uma demonstração de força entre os companheiros, inclusive podendo ocorrer de fazê-lo girar ou cair na sua frente. Vão aumentando a velocidade do vaivém. Outras vezes, competem entre duas ou três duplas.

Mané Fragoso.

Também chamado Trapézio ou João Gostoso em São Paulo. Trata-se de um jogo que as crianças antigamente fabricavam, e que agora se vende em artesanatos ou ambulantes, em alguns países como na Argentina, às vezes, feito de madeira ou plástico. Porém, as crianças com poucos recursos ou de zonas rurais que manipulam comumente elementos da natureza, têm mais interesse na sua fabricação. Consiste em dois palitos de madeira aplainada, flexíveis, de uns três centímetros de largura e uns quinze de comprimento, unidas por um pedaço da mesma madeira, na altura do quarto inferior. Na parte superior, os palitos estão unidos por um fio ou cordão entrelaçado com quatro voltas, de cuja parte central pendura-se um bonequinho (trapezista) da mesma madeira, de uns cinco centímetros de comprimento, fixo pelas mãos. Ao comprimir os palitos na parte inferior, com uma mão, o boneco dará voltas e mais voltas em torno do cordão, como um trapezista. O boneco também pode ser feito de papelão. Como todos os brinquedos têm nomes distintos, na Bolívia, por exemplo, é chamado “Volatín”.

Chinês também nos mostrou outras brincadeiras que fazia, colecionando carrinhos.


Dizia: - As crianças de antigamente fabricavam carrinhos e outros brinquedos com material caseiro: papelão, pedaços de madeira, parafusos e pregos velhos, inclusive improvisando rodas e eixos. Essas brincadeiras desenvolviam habilidades manuais e estimulavam a criatividade.

Para César, as melhores brincadeiras eram:

Cabra-cega

Esta brincadeira difundiu-se por quase todo o mundo ocidental, sendo inclusive imortalizada por famosos pintores, ainda que atualmente tenha perdido importância. Brincavam crianças e adolescentes. Jovens e, já no principio do século XX, adultos, em reuniões sociais, divertiam-se. Os namorados aproveitavam para enviar mensagens e fazer carícias secretas. Combinavam: se uma jovem pegasse um rapaz, ele teria direito a um beijo. Vendam-se os olhos de um dos participantes, dobrando-se um lenço, impossibilitando-o de enxergar. Os outros ficam dispostos ao redor, prontos para fugir no primeiro sinal. Alguém pergunta: - Cabra-cega? - Senhor, meu amor! Responde a cabra-cega. - De onde vens? - Venho do moinho. - Que trouxeste? - Um saco de farinha. - Dá-me um bocadinho? - Não dou, não.


Assim respondendo, a cabra-cega estende a mão. Quem interroga dá-lhe uma pancadinha, dizendo: - Procura quem te tocou! Todos saem correndo. A cabra-cega fica tateando até agarrar alguém, que vai ocupar o seu lugar.

Cavalinho

O cavalo, por sua capacidade de carregar no lombo um ser humano, trotear, correr e saltar, tem sido sempre um grande atrativo para as crianças. Se um pequenino, entre quatro e cinco anos, está com má vontade de caminhar, mostra-lhe uma varinha e, imitando um cavalo, ensina como trotear. A criança motiva-se e sai brincando. Os cavalinhos de madeira eram construídos com um cabo de vassoura, cuja extremidade tinha uma cabeça de cavalo e uma cordinha de cada lado, imitando as rédeas. Antigamente eram artesanais, atualmente são feitos em fábricas, podendo até ser de plástico. As crianças de classe mais alta possuíam um cavalinho montado sobre duas madeiras curvilíneas, provocando movimento de balanço. Eram peças muitos trabalhadas e muito bonitas. Ainda existem cavalinhos de balanço, porém são de plástico ou madeira, de construção elaborada. Quando brincavam entre rapazes, um fazia o papel de cavalo, inclusive com rédeas (cordas) fixas nas axilas, para indicar direção e velocidade. Também os mais fortes carregavam os pequeninos nos ombros, apostando corrida com outros “ginetes”.

Cabo de guerra


Esta brincadeira competitiva era muito jogada em reuniões escolares ao ar livre. Entre dois e dez ou mais participantes de cada lado de uma corda comprida, tentavam puxar (rebocar) os da outra equipe. No início, ficavam situados a mesma distância de uma linha demarcada no chão, que seria a marca limite. Perdia o jogo quem a ultrapassasse. Era um jogo de força e destreza, não somente praticado por crianças, mas também por adultos. As meninas ficaram marginalizadas até o início do século passado. Atualmente competem, inclusive com rapazes.

As irmãs Pereira nos contam que são muito caseiras. De vez em quando chegava alguma amiga para jogar cartas ou ... voltavam à infância e nos desafiavam em uma batalha naval. Relatam:

Batalha naval

A Batalha Naval é uma brincadeira muito antiga que ainda persiste entre as crianças; jogada entre dois: cada um desenha num papel, de preferência quadriculado de 10 por 10 cm, utilizando um quadrado como unidade. Na borda superior, enumera-se de 1 a 10 e no comprimento, de A a J. No interior do espaço delimitado, cada um distribui sua frota, com tamanho e formato previamente combinados. Exemplo: 1 de 6 unidades, 2 de 5, 2 de 4, 3 de 3, 3 de 2 e 2 de 1. Cada rodada permite adivinhar uma coordenada (A 3). Se neste ponto houver somente água, ambos marcam um pontinho. Quando o “tiro” for certeiro, marcam um X após ter dito “Pegou!”. O atacante continua até ouvir “Afundou!”, indicando que o barco afundou, prosseguindo o bombardeio. Atualmente, como na maioria das brincadeiras, se vendem cadernos quadriculados com os campos de batalha já delimitados.

Meu amigo Rafael, com tendências a lidar com tecnologias, inclusive isso se reflete em sua vida atual, pois é engenheiro mecânico, já preferia o:


Telefone sem fio

Todas as pessoas consultadas, incluindo aí adultos de todas as idades, relatam que brincaram de ‘telefone sem fio’. Na elaboração do telefone sem fio, as meninas geralmente utilizavam caixas vazias de pó para rosto; já os meninos costumavam usar vasos de papelão ou potinhos de plástico (geralmente de iogurte). Qualquer desses elementos, afinal, se tornaria um telefone. Na base fechada, fazia-se um furinho pelo qual passava um fio, que teria o comprimento proporcional à distância do local onde se brincava, e se unia a outra base, construída da mesma forma. Uma criança falava, enquanto a outra colocava o “telefone” no ouvido. Este jogo desenvolve a linguagem e a verbalização das palavras, ampliando comportamentos cooperativos e estabelecendo conversações mútuas. Há muito tempo a indústria criou telefones plásticos que, às vezes, produzem sons e até permitem comunicação a curtas distâncias. Achamos interessante que as crianças voltem a confeccionar seus próprios telefones sem fio, aumentando assim sua criatividade e proporcionando o desenvolvimento de habilidades manuais.

Recordamos também das meninas que brincavam de roda, entoando as melodias: Nesta Rua e Viuvinha. Será que alguns de vocês já brincaram disto alguma vez?

Nesta Rua

Fazia-se uma roda, com uma criança ao centro. As crianças da roda cantam:

Nesta rua, nesta rua, tem um bosque que se chama, que se chama solidão...


Dentro dele, dentro dele mora um anjo que roubou, que roubou meu coração.

A do meio responde:

Se eu roubei, se eu roubei teu coração, tu roubaste, tu roubaste o meu também, se eu roubei, se eu roubei teu coração, e porque, é porque te quero bem...

Em seguida, abraça um dos companheiros da roda que, neste caso, vai para o centro substituí-lo, e recomeça-se a brincadeira.


Editorial Kodomo


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