Ebook coletânea de crônicas

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Colégio Rio Branco Campinas

Ebook: CRÔNICAS - 5ºs anos -


Sumário “Xixi na calça” ..................................................................................................................... 1 Filho pai ............................................................................................................................... 3 O pai sequestrado ............................................................................................................... 5 Pingo .................................................................................................................................... 7 A prova d’água .................................................................................................................... 9 Cueca lilás. Carpins pretos .............................................................................................. 11 Governar ............................................................................................................................ 14 O garoto e as chaves ........................................................................................................ 15 O importuno ...................................................................................................................... 17 O jardim em frente ............................................................................................................ 19 Outro presente para a senhora ........................................................................................ 22 “O Caçulinha” ................................................................................................................... 25 A bola ................................................................................................................................. 28 Os terroristas .................................................................................................................... 30 Vai que é suuua, Lelê! ...................................................................................................... 31


“Xixi na calça” Walcyr Carrasco Aos 9 anos, eu tinha uma professora muito brava. Não sem motivo. Boa parte dos alunos pedia para ir ao banheiro somente para fugir. Eu era dos mais quietinhos. Certo dia me deu vontade tremenda de fazer xixi. Ergui o braço. Era o terceiro querendo sair. Ouvi um sonoro “não”. Foi um desespero. Tentava segurar a vontade. O final do período se aproximava. Torcia as pernas, me remexia. Os minutos pareciam mais lentos! De repente, aconteceu! Senti um calorzinho nas pernas e uma bruta sensação de alívio. Relaxei. Minhas calças, minhas meias, molhadas! Ainda tive esperança. Minha carteira era ao lado da parede. Talvez ninguém notasse a enorme poça embaixo dos meus pés. Que ideia! Dali a pouco um colega gritou: - Ih, ele fez xixi na calça! - Não fiz, não! - retruquei. Os outros olharam. A professora se aproximou. Gritei: - Foi o menino da frente! - Eu, não! - defendeu-se ele. - Olha as meias dele, estão molhadas! Ela abanou a cabeça, incrédula. - Por que não pediu para sair? - A senhora não deixou! - Devia ter insistido! Tocou o sinal. Peguei a mochila. Meias pingando, uma enorme roda úmida no bumbum! A infância é cruel. Saí da classe com a molecada gritando atrás: - Ele fez xixi na calça! Ele fez xixi na calça! Na frente do prédio, quis esconder a mancha do traseiro com a mochila. Inútil! - Xixi, olha o xixi! - mostravam os alunos. Todos riam! Morava a poucas quadras dali. Corri, com a mochila batendo nas coxas! Ah que vergonha! No caminho, encontrei alguns amigos, não informados da tragédia. - Ih, você está todo molhado! - comentou um deles. - Escorreguei no chão quando a faxineira estava lavando! - menti. 1


- É nada, é xixi!- dedou outro. Corri ainda mais depressa! Nunca, nunca mais quero voltar às aulas! Mamãe tinha um pequeno bazar. Morávamos nos fundos. Entrei pela loja. Ela estava sozinha no balcão. Lamentei-me, angustiado. - Fiz xixi na calça! - É brincadeira? - espantou-se. Mostrei. Preparei-me para a bronca. Minha sensação era de culpa, por favor! Mas mamãe ficou calma. - Entra depressa. Toma um banho! Ponha roupa limpa! Deu uma fugidinha da loja. Botou a calça de molho. Serviu almoço. De tanta angústia, eu quase chorava: - Nunca, nunca mais vou para a escola! Vou parar de estudar! Ela brincou com meus cabelos. - Isso não foi nada. Se mexerem com você, não ligue. Só se esforce para nunca mais acontecer. - Então vou morar com a vovó, em outra cidade! - De jeito nenhum! Não suportaria ficar longe do meu filho! Aos poucos, me acalmou. Transformou o drama em brincadeira. De noite, quando papai chegou, voltou ao assunto. Até consegui dar risada. Estava certa. Ninguém continuou me infernizando. Não fui o primeiro, nem o último, a fazer xixi em plena aula! Agora, depois de tanto tempo, lembro das vezes em que desabafava com ela. Também era ótimo dividir os grandes momentos. Um novo emprego, por exemplo. No telefone, sua voz animada. - Que bom! Você vai ganhar melhor! Às vezes, quando acontece uma coisa importante, meu primeiro impulso é lhe telefonar. Em seguida, meu coração se aperta. Lembro que não está mais do outro lado. Como posso esquecer, até por um instante? Descobri o motivo. Podia contar com mamãe, como os filhos nunca deixam de contar. Ela ficaria do meu lado, como no dia em que fiz xixi na calça. Não é a memória que me trai, mas a saudade. Seu amor deixou uma lacuna que nunca vou preencher. Seja algo bom ou ruim, sempre terei vontade de compartilhar com ela.

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Filho pai Walcyr Carrasco Quando eu tinha pouco mais de 20 anos, morava com minha família em um pequeno sobrado de vila. Meu pai era ferroviário. Minha mãe se dedicava a bicos, como vender roupas feitas ou blusas de lã que ela mesma tricotava. Eu estudava e contribuía para parte das despesas trabalhando aqui e ali. Não havia luxos, mas o dia a dia era relativamente confortável. Na época eu não seria capaz de avaliar a contribuição que meu pai dera à minha vida. Minha carreira de jornalista e escritor ainda engatinhava. O estímulo para que eu estudasse, os livros que ganhara ao longo dos anos, o curso de inglês, a máquina de escrever, tudo isso me parecia obrigação. Pelo contrário. Eu me ressentia dos modos autoritários de papai. De sua braveza. E também de suas parcas condições financeiras. Observava meus amigos bem de vida, alguns ricos. Achava que ele, pai, poderia ter ganhado mais dinheiro. Eu também sentia dificuldade em conversar abertamente. Havia uma espécie de muro entre nós dois. Sua mãe, minha avó, vendeu a casinha no interior. O dinheiro acabou rapidamente. Ela veio morar conosco. Logo teve um pequeno derrame. Fosse por isso ou por alguma outra doença, perdeu o juízo. De repente, a vovó, que adorava fazer doces, tornou-se uma pessoa furiosa. Dizia coisas horrendas. Pior. Parecia ter desenvolvido uma sensibilidade especial para atingir o ponto fraco de cada um. Um psicanalista teria feito uma tese com suas frases, tal a súbita argúcia para alardear velhos ressentimentos, mágoas escondidas, tensões ocultas. Não me poupou: acusava-me de não me dar bem com meu pai. Eu me sentia culpado ao ouvi-Ia, pois acreditava que ele me devia mais carinho, mais cuidados, mais conforto. Pior era com mamãe. Nunca se deram bem. Fora uma torturada relação entre nora e sogra. Agora vovó levava minha mãe às lagrimas algumas vezes por dia. A situação era ruim. Tornou-se insustentável quando ela passou a ameaçar mamãe fisicamente. Descobrimos uma espécie de estilete escondido entre seus objetos pessoais. Hoje teria sido possível a contratação de uma enfermeira. Na época, nem podíamos oferecer-lhe um quarto. Eu dormia na sala. Ela dividia

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um aposento com meu irmão menor. Só havia uma solução. Interná-Ia em uma casa de saúde. Meu irmão mais velho, já casado, escolheu uma que parecia adequada, embora modesta. (Ao longo dos anos seguintes, trocamos de lugar várias vezes, quando constatávamos deficiências.) Todos os netos se cotizaram para pagar a mensalidade. Em um sábado, meu irmão veio com o carro. Vovó pareceu ter percebido alguma coisa, apesar de nada ter sido explicado. Gritou: - Não quero ir! Foi preciso alguma firmeza para convencê-Ia a entrar no automóvel. Meu pai assistiu a toda a cena da sala. Fiquei com ele, enquanto levavam vovó. Fechei a porta. Ouvimos o motor, a partida. Houve um silêncio. Papai subiu as escadas lentamente. Senti um nó na garganta. Fui atrás. Ele atirou-se na cama de casal. Chorou. Pela primeira vez em toda a minha vida, eu via meu pai chorar. Um choro convulsivo, com soluços, o peito estremecendo.Debrucei-me sobre ele. Abracei-o. - Não chora, pai. Não chora! Permaneci com meu pai nos braços. O muro se rompeu. Percebi que há um momento na vida em que o pai se torna filho e o filho, pai. Agora era minha vez de cuidar dele. Abracei-o mais fortemente, oferecendo reservas de sentimento guardadas. Descobri, então, como era profundo meu amor por papai, e como eu estava disposto a fazer o impossível para que ele não sofresse tanto.

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O pai sequestrado Moacyr Scliar Os sequestros estão voltando à moda. É verdade que o último terminou bem, mas um dos receios que a gente tem é que a coisa possa se generalizar, passando, por exemplo, da política internacional para a política familiar. Imagine a seguinte situação. Num sábado à tarde você está em casa, lendo. Sua mulher saiu. De repente vem seu filho e pede que você o leve ao cinema, ou ao parque, ou a qualquer lugar. Você diz que não, que está lendo, e que tem tanto direito à leitura como ele à diversão. Ele insiste, você finca pé. Ele sai, fechando a porta atrás de si. Você, ainda que aborrecido, volta à leitura. Um minuto depois, um discreto ruído chama sua atenção. É a chave girando na fechadura. Você dá um pulo, corre até a porta - mas é tarde demais: seu filho acabou de trancá-lo no quarto. Abre esta porta, você ordena, no tom imperioso que sua autoridade paterna exige. Não abro, diz o garoto, e estabelece suas condições: só lhe dará a liberdade se você levá-lo ao cinema (ou ao parque, ou a qualquer outro lugar). Quer dizer: você foi sequestrado. Por seu próprio filho, em sua própria casa. Incrível, porém verdadeiro. E agora? Calma, você diz a si mesmo. A situação é desesperadora, porém não grave. O que fazer? Há muitas possibilidades. Você pode, por exemplo, parlamentar com o pequeno terrorista através da porta fechada, explicando que isto não é jeito de conseguir as coisas, que é melhor ele abrir, se não a represália virá, etc. Pouco provável que dê certo. O garoto tem a faca e o queijo na mão, sem falar na chave, e assim não tem por que ceder. Você pode pedir socorro. O telefone está ali, ao alcance da mão. Basta você ligar a um amigo ("Desculpa o incômodo, meu caro, mas é que aconteceu uma coisa engraçada ... ") mas isto não chega a ser uma solução, porque o amigo também terá de convencer o garoto. Dentro desta linha, porém tendendo mais para a histeria, você pode chegar à janela e gritar: Socorro! Estou sendo vítima de um sequestro! Mandem a Swat! - e por aí afora. Mas, convenhamos, sua dignidade estará definitivamente abalada. Pular a janela? Talvez. Se ela não for gradeada, ou se você não estiver num edifício de dez andares. Mas, de novo, fica horrível para um 5


pai de família saltar da janela da própria casa, não falando que você pode ser confundido com um ladrão e preso na hora. Para o lado violento: você pode arrombar a porta. Ou pelo menos tentar, porque nada indica que você conseguirá - é uma maciça porta de madeira de lei, posta ali exatamente para barrar o pequeno intruso. E, mesmo que consiga, será que seu orçamento, já abalado pelo aumento do BNH, suportará o custo do conserto? Finalmente, você pode dar uma de tratante: você finge que concorda, e tão logo o garoto abre a porta, você o agarra e lhe dá uma boa lição. Mas será que você pode fazer isto? Mentir para o seu próprio filho? Quantos destes terroristas não são jovens que sofreram, na infância, frustrações causadas por mentiras paternas? Não, mentir, não. O jeito talvez seja ir ao cinema, mesmo. Você se lembra que está passando um filme muito bom, num cinema de bairro. Parece que é sobre um sequestro, ou coisa assim. Tema muito atual.

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Pingo Carlos Drummond de Andrade “Parece até que chove menor abandonado e carente nas ruas desta cidade. Pingo é um deles, um pingo de gente muito especial ...”

Passava de 22 horas quando o casal, que vinha do cinema, viu no meio-fio uma pequena forma escura, sobre a qual se debruçavam três moças. A rua era tranquila, dessas que, mesmo desembocando em outras de agudo movimento, conservam sua placidez de província, alheias a toda emoção fora de pauta. Um ponto escuro na calçada, àquela hora de domingo, e a presença de moças em torno constituíam, pois, algo extraordinário, cuja importância o casal intuiu devidamente. A pequena sombra movia-se. Era gente, mantinha a cabeça baixa, e suas mãos de menino tenro lidavam com um caixotinho que iam convertendo em gravetos. Parecia muito preocupado com a tarefa, de sorte que se manteve alheio à exposição feita por Iolanda, uma das moças, moradora na vizinhança. Contava ela que, passando com duas amigas, também fora atraída pela coisinha movediça, no recanto menos iluminado da rua. Aproximando-se, pôs-se a observar o garoto, que tremia de frio mas não abandonava seu trabalho. Perguntoulhe por que estava ali, já tarde, sozinho, desmanchando tabuinhas. E ele, que não se revelou amigo de conversa, a custo foi soltando sua explicação. O pai deixara-o naquele ponto, recomendando-lhe que não saísse do lugar. Tinha que fazer, e voltaria mais tarde para buscá-lo. - E para onde foi seu pai? - Eu é que sei? - A que hora ficou de voltar? - Não disse. - E você, vai ficar aí jogado até que ele volte? - Fico fazendo lenha, ué.. A moça viu logo que a primeira providência era dar alimento e agasalho ao guri. Foi a casa, correndo, e trouxe um saco de biscoitos e um suéter tanto mais admirável quanto estava exatamente na medida, como tecido na previsão de uma criança de cinco anos, que fosse encontrada ao abandono, em noite de frio, na calçada. Ele se deixou vestir, comeu com gosto e sem pressa. Mas, enquanto comia, procurava despregar mais uns pedacinhos de madeira. A moça pensou em recolhê-lo em casa, a espera dos acontecimentos. Mas, se o pai viesse e não encontrasse o garoto no meio-fio, como restituí-lo? Nessa fiúza, estavam já havia uma hora. Por outro lado, era estranho aquele pai que assim 7


deixava seu filho atirado na rua, ao relento, prometendo voltar mais tarde. Voltaria?Nunca mais, talvez. Restava o recurso de tomar um carro e ir campear o barracão do menino, mas ele falava em sítios confusos, parecendo incapaz de localizá-los. ou pouco disposto a isso. Apelar para a delegacia ou o juízo de menores, a essa hora da noite, seria inútil. Na pior hipótese, a moça o guardaria em casa, e amanhã dá-se um jeito. Examinava-se o que convinha fazer, em definitivo, quando outro grupo assomou à esquina, e, vendo o ajuntamento, dele se aproximou. Eram domésticas e operárias, que vinham rindo, satisfeitas com o domingo bem vivido, ou por coisa nenhuma. Curvando-se, reconheceram logo um irmão: - É Pingo! Era Pingo, amigo de todas, domiciliado na Praia do Pinto. Pai? Não tinha pai, pelo menos que alguma delas soubesse. A mãe era lavadeira, e Pingo gostava de sair à aventura, percorrendo mundo. Pingo é muito levado, tem imaginação. Então a moça samaritana pediu às vizinhas de Pingo que o levassem. Elas concordaram, e Pingo não fez oposição. Queria apenas carregar as tabuinhas, com que faria em casa um grande fogo. Juntaram-se os fragmentos, e o bando partiu com a mesma algazarra feliz, comboiando Pingo de suéter novo, com as tabuinhas e os biscoitos remanescentes na mão. - Você vai para o céu, Iolanda! - comentou o casal, a uma voz. Mas Iolanda seguia com os olhos o grupo de raparigas, e preocupava-se. "Essa gente é meio maluca, sei lá se elas levam mesmo o garoto para casa?"

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A prova d’água Moacyr Scliar Há uma fase na vida de todo o garoto em que aquilo que ele mais desejaria é ser como os relógios Rolex: à prova d'água. É a fase em que o garoto acha que a pior ideia da mãe Natureza foi combinar dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio para formar esta substância incolor, inodora, insípida - e altamente desagradável, para não dizer perigosa - chamada água. Nessa época, a paisagem ideal para os meninos é o deserto do Saara, aquela imensidão de areia sob um Sol tórrido, sem nenhuma gota d'água. Nessa época, para os garotos, o Departamento de Água e Esgoto poderia tranquilamente fechar as suas portas, as torneiras poderiam ser abolidas e os chuveiros jogados definitivamente no rol das coisas inúteis. Na verdade, porém, tal abominação não se estende a toda a água, mas em um propósito específico: evitar o banho que, de acordo com os preceitos da civilização ocidental moderna, deve ser diário. Para os garotos, um preceito ameaçador, contra o qual lutam com todas as suas forças. Arrastar um garoto para o banho é uma operação que exige a mobilização de toda a família, da comunidade, das forças vivas da nação, do exército, do Conselho de Segurança da ONU. Os gritos que então se produzem são de molde a fazer os vizinhos pensar que a crueldade de certos pais ultrapassa todo e qualquer limite. Mas, será que é com o banho mesmo a coisa? Não deve ser, porque piscina, tanque, mar, rio ou mesmo qualquer charco são aceitáveis. O problema é com aquele lúgubre reduto chamado banheiro. O que o garoto não quer é ser encerrado no box de cujo chuveiro jorra sobre ele o jato impiedoso. Ele não quer ficar limpinho, penteadinho, arrumadinho. Ele quer ser o demônio que corre pela rua, pelo quintal ou pelo playground, a cara preta de tanta sujeira; e como demônio, ele odeia esta água purificada pelo cloro das hidráulicas e regulada pelas torneiras de metal brilhante. O que os garotos recusam, em síntese, é o processo civilizatório representado pelo banho. Para isto, eles têm razões até históricas. Luís XlV, o Rei-Sol, tomava banho só de vez em quando; em sua época, acreditava-se que a água atravessava a pele e amolecia o corpo, causando doenças. Antes de 1850 os franceses, criadores dos mais 9


célebres perfumes, não tomavam mais que um banho, em média, por ano. Mas então Pasteur populariza a ideia do micróbio e da doença transmissível, e a burguesia consagra higiene como um dos elementos da ordem e da moral. O banho estava definitivamente instituído, e o banheiro se transformou em símbolo de status, como o demonstram os anúncios de apartamentos com banheiras de hidromassagem. Não para os garotos, que não se deixam seduzir pela propaganda de sabonetes, de xampus, de desodorantes. Talvez a tática com eles deva ser outra. Talvez se deva proceder como na Idade Média, em que o cavaleiro, para ser admitido na chamada Ordem do Banho, tinha de ser convenientemente lavado e esfregado - ao menos uma vez na vida. Já que o banho não pode ser uma ordem, porque não a Ordem do Banho? É banho, enfim. Desde que não seja com armadura.

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Cueca lilás. Carpins pretos David Coimbra

Débora era o nome dela. Débora. Pronunciávamos num suspiro: "Déboraah... ", com reticências no fim. Você sabe como são as mulheres com nomes proparoxítonos. Você sabe. Nomes proparoxítonos, vogais explosivas, só podia dar no que deu: uma mulher serpeante, com curvas e aclives de pista de rali. E ruiva, ainda por cima. Débora. Déboraah... Pensei nela por causa do Antônio Lopes, Você vai achar estranho eu pensando na Débora por causa do Antônio Lopes. Bem, é que, na verdade, não foi exatamente na Débora que pensei em primeiro lugar. Não. Foi no Odone Carpim. Pois lá estava o Antônio Lopes, no Japão, com sua camisa da sorte, suas calças da sorte, seu sapato da sorte. Então lembrei do Odone Carpim. Justamente devido a isso de roupa da sorte. Está certo, é comum no futebol essa história de roupa da sorte. O Foguinho tinha uma. Um colete. Torcedores e jogadores acreditavam que, quando o Foguinho usava seu colete, o Grêmio não perdia. Acontece que o colete era de lã, quente, e Foguinho tinha de usá-lo mesmo no verão. Uma vez, o Grêmio ia jogar no interior, o ônibus da delegação já deixara a cidade, quando Foguinho, remexendo na mala, comentou, distraído: - Esqueci meu colete... Num repente, todo o bulício dos jogadores, as risadas, os gritos, os jogos de cachetinha, tudo cessou. As respirações ficaram em suspenso. O silêncio se tornou tão pesado que ameaçou estourar os pneus do ônibus. Os olhares se voltaram para o técnico. Esqueceu? Meia-volta. Todos à casa de Foguinho, atrás do colete. Times vencedores cultivam superstições. O Inter de 1975. Os jogadores entravam e saíam do ônibus sempre na mesma ordem, sentavam nos mesmos lugares. E havia o perfume. O massagista Moura borrifava as camisetas com um perfume odor alfazema que dizia ser mágico. O time entrava em campo todo cheiroso, intrigando os adversários. Um amigo meu, o Jorge Barnabé, acreditava ardentemente que o Grêmio só vencia se ele fosse ao jogo com uma certa cueca lilás. Empenhado na conquista do campeonato, ele não perdia uma partida. O pessoal se encontrava com ele na arquibancada e nem dava boa-tarde: - Tá com a cueca? Tá com a cueca?

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E ele, sorridente, puxava uma ponta de pano lilás do lado das calças e mostrava: - Oh! - todos suspiravam de alívio. O brabo é que a cueca essa era daquelas "cuecas machão", lembra? Um tecido furadinho, quadriculado, baratíssimo, vinham várias delas dentro de um cilindro plástico vendido a parcos centavos. Chegava uma hora que as tais cuecas começavam a pinicar a pele do usuário. Aí, o Jorge ficava inquieto na arquibancada, sentando de lado, levantando, incomodando a torcida ao redor. Aquelas cuecas se gastavam rapidamente. Certa feita, a mãe do Jorge, vendo o estado lamentável da cueca lilás dele, atirou-a no lixo. No dia do jogo, o Jorge procurou a cueca e não a encontrou. Revirou as gavetas, o cesto de roupa suja. Nada. Pressentindo a tragédia, correu para a cozinha: - Mãe! - berrava. - Cadê a minha cueca lilás? Agora você sabe por que o Grêmio perdeu tantos campeonatos na década de 70. Mas a história que interessa é a do Odone Carpim. Como você é esperto, já adivinhou que a roupa da sorte do Odone Carpim era, exatamente, um par de carpins'. Pretos. Comuns. Meia canela. Em outras rodas consagrados como "peúga". Olha, o Odone não venceria nenhum concurso de mister elegância com seus carpins, mas parecia ter sorte mesmo. No futebol, a bola batia na canela dele e entrava. Sorteio, ganhava todos. Vivia achando dinheiro na rua. A todas essas, repetia: é o carpim, é o carpim. Odone usava os carpins quase todos os dias. Resultado: os carpins começaram a gastar. Ficaram puídos, desbotados. Até que chegou um tempo em que ele foi deixando de usá-los. Não sem se lamentar pungentemente: - Sou um comum sem o carpim. Um comum. O curioso é que sua sorte realmente mudava. As coisas não davam mais tão certo para ele. Talvez porque sua confiança diminuísse sem os carpins. Foi então que surgiu Débora. A Débora proparoxítona. Todos nos apaixonamos pela Débora. Todos a assediávamos. Ela nem bola. Uma tarde, a Débora estava perto do campinho do lAPI com três amigas. Nós cochichávamos a alguns passos. Sobre ela, claro. Como é exibida, nem olha pra gente. Então, o Odone bradou: - Vou dar um jeito nisso. E saiu correndo. Foi em casa. Voltou de bermudas. E carpins. Os velhos carpins da sorte. Veio gingando, sorrindo, em nossa direção. Súbito, desviou para o lado das meninas. Óbvio: ia apresentar os carpins para a Débora. Tensão. Daria certo? Débora se apaixonaria pelo Odone por causa dos malditos carpins? Odone chegou perto dela. Bem perto. A roda das meninas também silenciou. Aí, ele se abaixou, ajeitou os carpins demoradamente, chamando a atenção para eles. Todos, inclusive a Débora, olhamos para os carpins. Ele olhou para trás, para nós. Sorria silenciosamente. Sorrindo ainda, olhou para cima. Para Débora. Ergueu-se. Ficou diante dela, sorrindo. Então deu-se o inacreditável. Débora sorriu para ele. Era a 12


primeira vez que sorria para alguém da turma. Dissemos: "Oooh". O Odone olhou para trás, vitorioso. E Débora, incrível!, falou com ele (Falou!). Disse assim: - Tu que és o Odone Carpim? Ele, orgulhoso: - Eu mesmo. Ela, ainda sorrindo, mas desta vez olhando para as outras meninas: - Vocês têm razão: é um nojo. Ao que deu as costas para o Odone e foi embora. Moral da história: superstição só funciona no futebol.

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Governar Carlos Drummond de Andrade “Enquanto as crianças brincam de Governo, muitos políticos por aí governam de brincadeira. Só que elas param quando a brincadeira não tem mais graça.” Os garotos da rua resolveram brincar de Governo, escolheram o Presidente e pediram-lhe que governasse para o bem de todos. - Pois não - aceitou Martim. - Daqui por diante vocês farão meus exercícios escolares e eu assino. Clóvis e mais dois de vocês formarão a minha segurança. Januário será meu Ministro da Fazenda e pagará o meu lanche. - Com que dinheiro? - atalhou Januário. - Cada um de vocês contribuirá com um cruzeiro por dia para a caixinha do Governo. - E que é que nós lucramos com isso? - perguntaram em coro. - Lucram a certeza de que têm um bom Presidente. Eu separo as brigas, distribuo tarefas, trato de igual para igual com os professores. Vocês obedecem, democraticamente. - Assim não vale. O Presidente deve ser nosso servidor, ou pelo menos saber que todos somos iguais a ele. Queremos vantagens. - Eu sou o Presidente e não posso ser igual a vocês, que são presididos. Se exigirem coisas de mim, serão multados e perderão o direito de participar da minha comitiva nas festas. Pensam que ser Presidente é moleza? Já estou sentindo como este cargo é cheio de espinhos. Foi deposto, e dissolvida a República.

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O garoto e as chaves Moacyr Scliar Existe um animalzinho - uma espécie de esquilo norte-americano, acho - que tem um curioso hábito: esconde nozes e frutas e depois não se lembra onde. Parece que esta peculiaridade é muito benéfica, pois é grande o número de árvores que nascem graças ao esquecimento do bichinho. Bom. Isto quanto ao esquilo. E você já ouviu falar de crianças que escondem objetos? Pois é. Isto também existe com consequências embaraçosas, para dizer o mínimo. Sei, porque atualmente estou passando por uma curiosa experiência a respeito. Não me recordo exatamente quando é que o Roberto começou a esconder chaves. Mas a primeira vítima foi uma amiga nossa. Enquanto minha mulher a visitava, o Roberto ficou brincando. Quietinho. Quietinho até demais - elas deveriam ter desconfiado. Mas não desconfiaram. No dia seguinte nossa amiga telefonou. Um pouco embaraçada: O Roberto não teria, ahn, por acaso, ahn, levado as chaves do carro dela, que não achava em lugar algum? Surpresos, interrogamos o suspeito. Com toda a inocência de seus dois anos ele nos garantiu: não, não tinha chave nenhuma. Não contentes com esta declaração de inocência, e correndo o risco de traumatizar o guri, nós o revistamos, procuramos em seu quarto. Mas, de fato, não achamos chave alguma. É que ele não estava com as chaves. Naquele mesmo dia nossa amiga constatou que o vaso do banheiro estava entupido. Chamou o instalador que, com alguma dificuldade, conseguiu remover a causa da obstrução. Um molho de chaves de automóvel, naturalmente. Isto não é lugar de guardar chave, dona - ele deve ter dito à nossa amiga, que, muito diplomaticamente, evitou nos transmitir a admoestação. Era como se um duende tivesse resolvido nos aporrinhar: as chaves sumiam e só iam aparecer dias depois, quando já tínhamos desistido delas e arrombado as portas. E na última segunda-feira desapareceram as chaves do nosso carro. Primeiro achei que fosse distração minha, coisa de ficcionista; procurei nos lugares mais habituais, não encontrei. De repente me lembrei de nossa amiga. Aflito, corri ao banheiro, já me vendo com o braço enfiado no vaso, numa 15


posição pouco elegante até mesmo para um sanitarista. Dei a descarga repetidamente, verifiquei que a água fluía - logo, ou as chaves não estavam ali ou já tinham definitivamente entrado pelo cano (coisa que a esta altura até me parecia um mal menor). As chaves não estavam ali. Foram encontradas, junto com escovas de dentes, pentes e outros objetos de menor importância (relógios, talões de cheques) num pitoresco fogãozinho a lenha de cuja eficiência sempre desconfiei e que por isso ainda não acendi neste inverno. Felizmente. Agora estamos assim, nesta calma nervosa, sem saber quando o esquilo, digo, o garoto, atacará de novo. Por via das dúvidas já mandei fazer cópias de todas as chaves. Pensando bem, talvez seja melhor fazer uma outra casa. Sempre pode nos servir de refúgio, caso não possamos entrar na nossa.

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O importuno Carlos Drummond de Andrade “ O quê? .. Trabalhar ou não trabalhar em dia de jogo da seleção? Que absurdo. Aqui o pessoal não tem tempo para perder com essas bobagens.”

-Que negócio é esse? Ninguém me atende? A muito custo, atenderam; isto é, confessaram que não podiam atender, por causa do jogo com a Bulgária. - Mas que é que eu tenho com o jogo com a Bulgária, façam-me o favor? E os senhores por acaso foram escalados para jogar? O chefe da seção aproximou-se, apaziguador: - Desculpe, cavalheiro. Queira voltar na quinta-feira, 14. Quinta-feira não haverá jogo, estaremos mais tranquilos. - Mas prometeram que meu papel ficaria pronto hoje, sem falta. - Foi um lapso do funcionário que lhe prometeu tal coisa. Ele não se lembrou da Bulgária. O Brasil lutando com a Bulgária, o senhor quer que o nosso pessoal tenha cabeça fria para informar papéis? - Perdão, o jogo vai ser logo mais, às 15 horas. É meio-dia, e já estão torcendo? - Ah, meu caro senhor, não critique nossos bravos companheiros, que fizeram o sacrifício de vir à repartição trabalhar, quando podiam ficar em casa ou na rua, participando da emoção do povo … - Se vieram trabalhar, por que não trabalham? - Porque não podem, ouviu? Porque não podem. O senhor está ficando impertinente. Aliás, disse logo de saída que não tinha nada com o jogo com a Bulgária! O Brasil em guerra - porque é uma verdadeira guerra, como acentuam os jornais - nos campos da Europa, e o senhor, indiferente, alienado, perguntando por

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um vago papel, uma coisinha individual, insignificante, em face dos interesses da pátria! - Muito bem! Muito bem! - funcionários batiam palmas. - Mas, perdão, eu ... eu … - Já sei que vai se desculpar. O momento não é para dissensões. O momento é de união nacional, cérebros e corações uníssonos. Vamos, cavalheiro, não perturbe a preparação espiritual dos meus colegas, que estão analisando a seleção búlgara e descobrindo meios de frustrar a marcação de Pelé. O senhor acha bem o 4-2-4, ou prefere o 4-3-3¹? - Bem, eu ... eu … - Compreendo que não queira opinar. É muita responsabilidade. Eu, aliás, não forço opinião de ninguém. Esta algazarra que o senhor está vendo resulta da ampla liberdade de opinião com que se discute a formação do selecionado. Todos querem ajudar, por isso cada um tem sua ideia própria, que não se ajusta com a ideia do outro, mas o resultado é admirável. A unidade pela diversidade. Na hora da batalha, formamos a frente única. - Está certo, mas será que, voltando na quinta-feira, eu encontro o meu papel pronto mesmo? - Ah, o senhor é terrível, nem numa hora dessas esquece o seu papelzinho! Eu disse quinta-feira? Sim, certamente, pois é dia de folga no campeonato. Mas espere aí, com quatro jogos na quarta-feira, e o gasto de energia que isso determina, como é que eu posso garantir o seu papel para quinta-feira? Quer saber de uma coisa? Seja razoável, meu amigo, procure colaborar, procure ser bom brasileiro, volte em agosto, na segunda quinzena de agosto é melhor, depois de comemorarmos a conquista do Tri. - E ... se não conquistarmos? - Não diga uma besteira dessas! Sai, azar! Vá-se embora, antes que eu perca a cabeça e … Vozes indignadas: - Fora! Fora! O servente sobe na cadeira e comanda o coro: - Bra-sil! Bra-sil! Bra-sil! Está salva a honra da torcida, e o importuno retira-se precipitadamente. ___________________________________________________________________ 1. Tática de jogo, no futebol. Os números indicam a quantidade de jogadores que atuam na defesa, no meio do campo e no ataque, respectivamente. 2. O Brasil não conseguiu tornar-se tricampeão nesse ano. A campeã foi a Inglaterra, país sede dessa Copa do Mundo, disputada em 1966.

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O jardim em frente Carlos Drummond de Andrade "Amar um passarinho é coisa louca ", já dizia o poeta Carlos Drummond de Andrade. Mas esse amor amolece o coração de tanta gente …

Os big-sbots¹ da empresa estavam reunidos em conferência. Assunto importante, desses que exigem atenção, objetividade. O presidente recomendara: - Não estamos para ninguém. Essa porta fica trancada. Avisem a telefonista que não atenda a nenhum chamado. Nem do Papa. Começou-se por dividir o assunto em partes, como quem divide um leitão. Cada parte era examinada pelo direito e pelo avesso, avaliada, esquadrinhada, radiografada. Cartesianamente. - Você aí, quer fazer o favor de parar com essa caricatura? O presidente não admitia alienação. Por sua vez, foi advertido pelo vice: - E você, meu caro, podia deixar de bater com esse lápis, toe, toe, toe, na mesa? Estavam tensos, à véspera de uma decisão que envolvia grandes interesses. Alguém bateu à porta. - Não respeitam! Não respeitam o trabalho da gente! Isso não é país. Seja ou não seja país, quando batem à porta a solução é abrir, para evitar novas batidas, ou, mesmo, que a porta venha abaixo. Pois ninguém deixa de bater, se sabe que tem gente do outro lado. O diretor-secretário abriu, de óculos fuzilantes. O chefe da portaria, cheio de dedos, balbuciou: - Essa senhora ... essa senhora aí. Veio pedir uma coisa. O primeiro impulso do diretor-secretário foi demitir imediatamente o chefe da portaria, servidor antigo, conceituadíssimo, mas viu ao mesmo tempo diante de si a imagem consternada do homem, e a lei trabalhista: duas razões de clemência. Pensou ainda em mandar a senhora àquele lugar de Roberto Carlos² ou a outro 19


pior. Dominou-se: ela ostentava no rosto aquela marca de tristeza que amolece até diretoria. - A senhora me desculpe, mas estou tão ocupado. - Eu sei, eu é que peço desculpas. Estou perturbando, mas não tinha outro jeito. Moro do outro lado da rua, no edifício em frente. Meu canário … - Fugiu e entrou aqui no escritório? Eu mando pegar. Fique tranquila. - Antes tivesse fugido. Morreu. - E daí? - Viveu quinze anos conosco. Era uma graça... Pousava no dedo … - E daí, minha senhora? - O senhor vai estranhar meu pedido ... Eu estava sem coragem de vir aqui. Por favor, não ria de mim. -Não estou rindo, pode falar. - Os senhores têm um jardim tão lindo na cobertura. Da minha janela, fico apreciando. Então agora está uma coisa. Posso fazer um pedido? - Pode. - Eu queria enterrar o meu canário no seu jardim. Lá é que é lugar bom para ele descansar. O senhor vê, nós temos aquele terrenão ao lado do edifício, com três palmeiras, um pé de fruta-pão, mas é grande demais para um passarinho, falta intimidade. Se o senhor consente, eu mesma abro a covinha. Não dou o menor trabalho, não sujo nada. O diretor-secretário esqueceu que tinha pressa, que havia um problema sério a discutir. Que problema? Naquele momento, o importante, o real era um canarinho morto, e amado. - Pois não, minha senhora, disponha do jardim. Eu mesmo vou levar a senhora lá em cima, para escolher o lugar. Subiram, escolheram o canteiro mais apropriado, onde bate sol pela manhã, e à tarde as plantas balançam levemente, à brisa do mar. - Não é abuso eu fazer mais um pedido? Queria que o jardineiro não revolvesse a terra neste ponto, durante três meses. O tempo de os ossinhos dele se desfazerem... Volto daqui a meia hora, para o enterro. Meia hora depois, voltava com uma caixinha forrada de veludo azul-claro, e a reunião dos big-sbots, que ainda durava, foi suspensa 20


para que todos, com o presidente muito compenetrado, assistissem ao sepultamento. _________________________________________________________ ¹. Pessoas importantes e influentes, em inglês. ². Refere-se à música "Quero que vá tudo pro inferno", que o cantor compôs e gravou em 1965.

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Outro presente para a senhora Carlos Drummond de Andrade “Ser mãe não é tarefa fácil. E ainda por cima tem o Dia das Mães, quando os filhos, com todo o calor humano, dão aqueles presentes cheios de calorias ...

-Mãe, taqui seus chocolates! - Que chocolates, meu anjo? - A senhora não sabe que, no Dia das Mães, dê chocolate pra ela? Comprei um pacotão divino-maravilhoso-fora-de-série, pra senhora. Tem bombons, tabletes, figurinhas, pastilhas, drágeas ... Um negócio, mãe! - Filhinho, eu não posso comer chocolate. - Como não pode? É uma curtição. Todas as mães do Brasil, no Dia das Mães, vão saborear produtos achocolatados. Não precisa engolir tudo e duma vez, guarda pra semana toda, pro mês inteiro. - Alfredinho, o médico me proibiu de comer chocolate. - E daí? Esquece o médico. Não é Dia dos Médicos, é Dia das Mães, dia da senhora. Quando é que as mulheres vão se emancipar da tutela dos homens? - E você não é homem, criatura? Você quer que eu seja independente comendo o chocolate que você faz questão de me dar? - Fico triste com a senhora. 22


- Fique não, querido. Vamos fazer uma coisa. Dê esse pacote tão lindo pra sua namorada. - A Georgiana? A Georgiana não é casada nem mãe solteira, como é que eu vou dar presente a ela no Dia das Mães? Pega mal. - Toda namorada merece ganhar presentes em qualquer dia do ano. - Não posso dar chocolates a Georgiana. - Não pode por quê? - Engorda. - Ah, muito bonito. Então a Georgiana não pode engordar, e eu, que sou mãe do namorado dela, posso, né? - Não é nada disso, mãe. Também não quero que a senhora engorde, mas se engordar, problema de papai. - O problema é meu antes de mais ninguém, ouviu? Ou você não acha mais que a mulher deve resolver por si mesma o que lhe convém ou não convém? - Mas chocolate, uma coisa à-toa ... Que importância tem isso? - Tem importância pra Georgiana, tem importância pra você que não quer ver Georgiana barriguda por causa de chocolate, não tem importância pra mim, só porque no Dia das Mães usa oferecer chocolate à autora dos seus dias? - Autora de quê? A senhora tá falando difícil, mãe. Até parece linguagem de vestibular. Deixa, não tem importância. Quer dizer que a senhora está mandando meu presente praquela parte. - Alfredinho, não repita! - Não disse nada de mal. - Disse sem dizer. Não admito que você use essas expressões falando comigo. - Que expressões? Desculpe. Não quis ofender a senhora, evidente. Estou só defendendo o chocolate, entende? - Está bem. - É muito alimentício. - Eu sei. - Numa dieta bem balanceada … - Chega, Alfredinho. Não precisa falar em calorias. Quem não sabe que chocolate é bom e gostoso? Eu adoro chocolate, mas … - Então pega o pacote. - É uma tentação. Mas eu resisto. 23


- Eu ajudo a destruir o que tá aí dentro, mãe. - Não. - Prova só um chocolatezinho mais legal, com recheio de licor. - Não. - Unzinho só. Delícia. - Nããããão. Leve pra Georgiana, já disse. - Já vi tudo. A senhora quer ter uma nora de barrigona estufada de tanto comer chocolate, só pra ter o gosto de mostrar que a sogra dela é mais leve que manequim! - Bandido, some da minha frente com essa porcaria, que eu não sou mais sua mãe!

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“O Caçulinha” Carlos Drummond de Andrade

“Caçulinha, para dar uma de macho, prefere ficar mal com a mãe a ficar mal com os colegas da escola. Será que essa história vai acabar bem? “ -Madame, queira comparecer com urgência ao Distrito. Seu filho está detido aqui. - Como? O senhor ligou errado. Meu filho detido? Meu filho vive há seis meses na Bélgica, estudando Física. - E a senhora só tem esse? - Bom, tenho também o Caçulinha, de dez anos. - Pois é o Caçulinha. - O senhor está brincando comigo. Não acho graça nenhuma. Então um menino de dez anos foi parar na Polícia? - Madame vem aqui e nós explicamos. A senhora correu ao Distrito, apavorada. Lá estava o Caçulinha, cabeça baixa, silencioso. - Meu filho, mas você não foi ao colégio? Que foi que aconteceu? Não se mostrou inclinado a responder. - Que foi que meu filho fez, seu comissário? Ele roubou? Ele matou? - Estava com um colega fazendo bagunça numa casa velha da rua Soares Cabral. Uma senhora que mora em frente telefonou avisando, e nós trouxemos os dois para cá. O outro garoto já foi entregue à mãe dele. Mas este diz que não quer voltar para casa. 25


A mãe sentiu uma espada muito fina atravessar-lhe o peito. - Que é isso, meu filho? Você não quer voltar para casa? Continuava mudo. - Eu disse a ele, madame - continuou o comissário -, que se não voltasse para casa teria de ser entregue ao juiz de menores. Ele me perguntou o que é o juiz de menores. Eu expliquei, ele disse que ia pensar. - Meu filho, meu filhinho - disse a senhora, com voz trêmula -, então você não quer mais ficar com a gente? Prefere ser entregue ao juiz de menores? Caçulinha conservava-se na retranca. O policial conduziu a senhora para outra sala. - O que esses garotos estavam fazendo é muito perigoso. Brincavam de explorar uma casa abandonada, onde à noite dormem marginais. Madame compreende, é preciso passar um susto nos dois. A senhora voltou para perto de Caçulinha, transformada: - Sai daí já, seu vagabundo, e vamos para casa. O mudo recuperou a fala: - Eu não posso voltar, mãe. - Não pode? Espera aí que eu te dou não-pode. E levou-o pelo braço, ríspida. Na rua, Caçulinha tentou negociar: - A senhora me deixa passar em Soares Cabral? Deixando, eu volto direito para casa, não faço mais besteira. - Passar em Soares Cabral, depois desse vexame? Você está louco. - Eu preciso, mãe. Tenho de pegar uma coisa lá. - Que coisa? - Não sei, mas tenho de pegar. Senão me chamam de covarde. Aceitei o desafio dos colegas, e se não trouxer um troço da casa velha para eles, fico desmoralizado. - Que troço? - O pessoal diz que lá dentro tem ferros para torturar escravo, essas coisas. Eu e o Edgar estávamos procurando, ele mais como testemunha, eu como explorador. Mãe, a senhora quer ver seu filho sujo no colégio, quer? Tenho de levar nem que seja um pedaço de cano velho, uma fechadura, uma telha. 26


A mãe estacou para pensar. Seu filho sujo no colégio? Nunca. Mas e o perigo dos marginais? E a polícia? E seu marido? Vá tudo para o inferno. Tomou uma resolução macha, e disse para Caçulinha: - Quer saber de uma coisa? Eu vou com você a Soares Cabral.

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A bola Luis Fernando Veríssimo O pai deu uma bola de presente ao filho. Lembrando o prazer que sentira ao ganhar a sua primeira bola do pai. Um número 5 sem tento oficial de couro. Agora não era mais de couro, era de plástico. Mas era uma bola. O garoto agradeceu, desembrulhou a bola e disse "Legal!". Ou o que os garotos dizem hoje em dia quando gostam do presente ou não querem magoar o velho. Depois começou a girar a bola, à procura de alguma coisa. - Como é que liga? - perguntou. - Como, como é que liga? Não se liga. O garoto procurou dentro do papel de embrulho. Não tem manual de instrução? O pai começou a desanimar e a pensar que os tempos são outros. Que os tempos são decididamente outros. - Não precisa manual de instrução. - O que é que ela faz? - Ela não faz nada. Você é que faz coisas com ela. - O quê? - Controla, chuta ... - Ah, então é uma bola. - Claro que é uma bola. - Uma bola, bola. Uma bola mesmo. - Você pensou que fosse o quê? - Nada, não. O garoto agradeceu, disse "Legal" de novo, e dali a pouco o pai o encontrou na frente da tevê, com a bola nova do lado, manejando os controles de um videogame. Algo chamado Monster Ball, em que times de monstrinhos disputavam a posse de uma bola em forma de blip eletrônico na tela ao mesmo tempo que tentavam se destruir mutuamente. O garoto era bom no jogo. Tinha coordenação e raciocínio rápido. Estava ganhando da máquina.

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O pai pegou a bola nova e ensaiou algumas embaixadas. Conseguiu equilibrar a bola no peito do pé, como antigamente, e chamou o garoto. - Filho, olha. O garoto disse "Legal", mas não desviou os olhos da tela. O pai segurou a bola com as mãos e a cheirou, tentando recapturar mentalmente o cheiro de couro. A bola cheirava a nada. Talvez um manual de instrução fosse uma boa ideia, pensou. Mas em inglês, para a garotada se interessar.

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Os terroristas Moacyr Scliar Era um professor duro, exigente - e implacável. As provas eram feitas sem aviso prévio. Todos os trabalhos valiam nota e eram corrigidos segundo os critérios mais rigorosos. Resultado: no fim do ano quase todos os alunos estavam à beira da reprovação. As notas - que ele anotava cuidadosamente no livro de chamada - eram as mais baixas possíveis. O que fazer? Reuniam-se todos os dias no bar em frente ao colégio para discutir a situação, mas nada lhes ocorria. Até que um deles teve uma ideia brilhante. O livro de chamada. A solução estava ali: tinham de se apossar do livro de chamada e mudar as notas. Um 0 poderia ser transformado em 8. Um 1 poderia virar 7 (ou 10, dependendo do grau de ambição). O problema era pegar o livro, que o professor não largava nunca nem mesmo para ir ao banheiro. Aparentemente, só uma catástrofe poderia separá-los. Recorreram, pois, à catástrofe. Um dos alunos telefonou do orelhão em frente ao colégio, avisando que havia um princípio de incêndio na casa do professor. Avisado, o pobre homem saiu correndo da sala de aula - deixando sobre a mesa o famigerado livro de presenças. Acreditareis se eu disser que ninguém tocou no livro? Ninguém tocou no livro. Os rapazes se olhavam, mas nenhum deles tomou a iniciativa de mudar as notas. Às vezes a consciência pesa mais que a ameaça da reprovação.

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Vai que é suuua, Lelê! José Roberto Tolero Meu nome é Leocádio, mas todo mundo me chama de Lelê. Eu gosto à beça de jogar futebol. A minha posição favorita é goleiro, porque ali a gente pode usar luva e pular bastante. Na aula de educação física, eu sempre jogo no gol. Na minha escola os meninos jogam numa quadra, e as meninas, numa outra. Mas um dia o professor de educação física, que se chama professor Santana e é bem gordo, me chamou e disse: - Lelê, vem cá um minuto. Fui lá e a menina-goleira estava chorando (as meninas são bobas, choram por qualquer coisa). Alguém tinha dado um chute e o dedo dela estava roxo (as meninas têm dedos muito fraquinhos). Aí o professor Santana falou: - Lelê, entra no gol para completar o time. Naquela hora todos os meus amiguinhos começaram a rir e eu fiquei tão chateado que quase chorei, mas eu não chorei porque eu sou menino e menino não chora, e aquela gota que caiu do meu olho foi porque eu estava suado. No outro time de meninas, o que estava jogando contra o meu time de meninas, tinha uma menina chamada Bruna. Não gosto dessa Bruna. Eu chamo ela de Bruxa. E ela me chama de Lelé. Lelé da Cuca. O pai dela é amigo do meu pai e às vezes eles vão lá em casa, mas não adianta que não vou com a cara dela de jeito nenhum. Então começou o jogo e eu estava super bem. Era o maior mole jogar ali, porque as meninas são fraquinhas e dão uns chutinhos que dá vontade de rir, mas aí uma hora a Bruna veio avançando, passou pelo meio da quadra e se preparou para chutar. Só para deixar ela com raiva, eu falei: - Vai que é suuua, Lelê!

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Mas então ela mandou um chutão. Um chutão mesmo! Eu vi a bola crescendo, crescendo, crescendo e pou! Aí eu fui parar num lugar todo branco. Mas eu não tinha morrido e aquilo não era o céu. Era a enfermaria da escola. A tia-enfermeira, que usa uns óculos muito grossos e se chama dona Francisca, fez um curativão no meu nariz. Eu fiquei com a maior cara de palhaço e não queria sair dali de jeito nenhum, porque os meus amigos iam ver a minha cara e rir de mim. Eu esperei o maior tempão e aí, quando eu achei que já dava, saí. Mas a Bruna estava me esperando. Então fui andando para perto dela e ela veio andando para perto de mim. Aí eu olhei bem direto nos olhos dela e pensei: "Vou dizer que ela nem é tão ruim de bola, que ela dribla bem e que ela tem um chute que até parecia chute de menino". Eu também quis pensar o que ela estava pensando e, na minha cabeça, aquilo que ela estava pensando era que eu era um goleiro super bom, que eu quase tinha morrido, só para defender o meu time e que era muito corajoso aquilo que eu tinha feito. Eu fui andando, ela veio andando e aí, quando a gente estava bem perto um do outro, eu falei: -Bruxa! E ela falou: -Lelé da Cuca! E cada um correu para um lado.

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Os autores:

Carlos Drummond de Andrade

LuĂ­s Fernando Verissimo

David Coimbra

Moacyr Scliar

Jose Roberto Tolero

Walcyr Carrasco


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