Texto de Noemi Jaffe sobre a Canoada bye Bye Xingu Para quem tiver paciência de ler, escrevo algumas impressões e sensações sobre a viagem de uma semana que fiz ao Rio Xingu. Não fui ao parque do Xingu, mas ao Rio, no trecho entre Altamira e a aldeia Paquiçamba, onde mora um grupo de Jurunas. Foram três dias de viagem a remo (110 km), com cerca de mais 100 pessoas, de todas as partes do país, além, é claro, dos Juruna, alguns Arara e diversos pescadores de aldeias de Altamira. Passamos em frente à barragem de Belo Monte, onde fizemos um pequeno protesto, A viagem foi toda coordenada pelo ISA (Instituto Sócio Ambiental), a quem agradeço muito pela organização, obstinação, preparo e cuidado conosco, durante a viagem, com os índios e outras populações, em suas vidas e na luta contra a Usina de Belo Monte. Saliento que o que escrevo abaixo são impressões e sensações e não verdades gerais, decretos ou recomendações. - Os índios que conheci (Juruna e Arara) estão entre as pessoas mais legais que com quem já tive contato na vida. São alegres, gentis, determinados, inteligentes, extremamente articulados e conscientes do que querem e do que não querem. Desfazem os restos do mito (se é que ainda o há) do brasileiro cordial, pois, além de serem cordiais, lutam com consciência e lucidez por seus direitos. Não tenho mesmo palavras para descrever o prazer da sua companhia e ainda estou processando o tanto que aprendi com eles e com elas, em termos de sabedoria de vida e de harmonia tanto com a cidade como com a natureza. São índios que falam português fluentemente, conhecem tudo de futebol (que jogam todos os dias, mesmo após remar durante oito horas seguidas), têm celulares e também conhecem os segredos da floresta, remédios, animais, pesca e caça. Não se deixam enganar por conversas nem de usineiros, políticos, ONGs ou por dinheiro. - Quando perguntei a dois de seus líderes do que eles mais precisavam e no que nós poderíamos ajudá-los, tentando pressionar nosso governo e a imprensa, o Jilliard simplesmente respondeu (naquilo que mais me impressionou durante a viagem inteira): que vocês permitam que nós tenhamos autonomia. Não pediram nada material, mas imaterial. Ou seja, diante de uma oferta de algo possivelmente concreto (energia, bens etc.), ele escolheu a autonomia. - O seu Raimundo, pescador de Altamira que dirigia na proa da minha canoa disse: "não sei de onde essa gente tem a memória de fazer tanta coisa ruim". Foi a frase mais bonita e simbólica que ouvi. A memória usada como algo que vem do passado (de destruições) e que modifica o futuro. - A paisagem do Rio Xingu é a de um rio tão transparente e caudaloso, que é como se fosse um mar. As margens vão formando centenas de pequenas praias, com água entre fria e morna, onde há pedras e vegetação alta e densa. Tudo absolutamente maravilhoso. Nessas praias nós acampamos durante três dias. - Esse rio (neste trecho) vai, por um lado inundar e, por outro, praticamente secar. Em nenhum dos trechos, portanto, será possível pescar ou navegar. Nem caçar. Haverá doenças, desequilíbrio ambiental e desmatamento. - O desmatamento, a inundação do rio e a seca não afetam apenas os índios e as outras comunidades ribeirinhas, mas o Brasil e o planeta. A mata que inunda solta gases mais tóxicos do que o co2 (metano) e o desflorestamento afeta diretamente o clima (seca em alguns lugares e inundação em outros). - Segundo alguns estudos sérios, a Hidrelétrica de Belo Monte, que já é um fato irreversível, não seria absolutamente necessária, ao menos não da forma como foi construída. O governo poderia ter trabalhado mais no sentido de propor medidas de eficiência energética no consumo (que aparelhos gastam mais e em que horários, para consumidores pequenos e grandes), o que já teria economizado praticamente a quantidade de energia gerada por uma usina. Também há outras energias, que não são mais consideradas alternativas, como a eólica, a solar e a da cana-de-açúcar. Todas elas têm seus senões, mas não como os da hidrelétrica. - As compensações que tinham sido prometidas aos índios e às comunidades, ao longo dos últimos cinco anos, praticamente não foram cumpridas. Os índios (pasmem) não têm energia elétrica. Fomos proibidos de visitar a aldeia dos Juruna pela Funai. Segundo os índios, isso foi para que não
víssemos as condições sanitárias ruins em que eles vivem. Eu pedi para visitar a escola, no que fui prontamente acolhida, mas, antes que eu pudesse fazer a visita, a Funai enviou um representante até a aldeia, para nos proibir até de visitá-la. A sensação que os índios têm é de que a Funai luta contra eles. - Para poder implantar Belo Monte a toque de caixa, o governo se valeu das assim chamadas "suspensões de segurança", espécies de medidas provisórias que praticamente passam por cima da constituição, para a realização de projetos considerados urgentes. O mesmo foi feito durante a Copa. - Alguns avanços que houve na formatação do projeto da usina foram feitos no período em que Marina era ministra do Meio-Ambiente. - Os índios e os ribeirinhos vão votar em Marina, porque decidiram e porque a conhecem. Não votam com total entusiasmo e fé cega. Votam porque acham que sua legislação ambiental é mais moderna e protetora para suas vidas e para o meio-ambiente.(Observação: os índios não são evangélicos). - Ouvi conversas entre as índias, falando que não aceitam as imposições da igreja sobre o aborto. Elas não querem ter filhos todos os anos. Elas não se submetem aos maridos, com quem querem dividir a guarda dos filhos. - Fiquei com a impressão de que a insistência do governo na construção de Belo Monte está muito relacionada à manutenção e ascensão do PIB e bastante relacionado à geração de energia, cuja propriedade é 51% da União e que será vendida, pasmem triplamente, para o SUL! - Também fiquei com a impressão de que a construção de Belo Monte, dessa forma apressada e descuidada com as populações e com a floresta, tem a ver com promessas feitas a doadores durante a última campanha. É claro que esta impressão é baseada em conversas com especialistas. - Durante a canoada, um helicóptero da Polícia Federal nos sobrevoou continuamente, para nos ameaçar a advertir. Isso foi o que mais aborreceu os índios. - Já disse uma vez, aqui no facebook, que uma das coisas que mais me incomodam na vida é o cinismo, ou a ideia de que o mal é inevitável, o que justificaria qualquer coisa. Foi por essa razão que respondi ao pseudo-filósofo Pondé, arauto mequetrefe do cinismo. Convivendo com os índios, com os pescadores e com o pessoal do ISA, me dei conta, mais uma vez, de que o cinismo é a arma dos fracos. É possível, sim, acreditar num Brasil melhor e lutar para conquistá-lo. Um país em que as pessoas consumam menos ( e não mais), com mais consciência, educação, responsabilidade e AUTONOMIA. - Creio que parte da consciência dos Juruna, como de muita gente, se deve ao governo do PT, que os ajudou ( e ao Brasil) a se conscientizarem de seus problemas, fazendo-os entrar no mundo do consumo e tirando-os da miséria. Mas também creio que o PT se perdeu na tentativa de manter esse ganho a qualquer custo e de qualquer forma. - Termino com uma frase simbólica dita por um índio: ao ser perguntado por um de nós: "vocês comem três vezes por dia?", ele respondeu "nóis come toda hora, uai". "quantas vezes?". "quantas vezes!". nessa resposta que simplesmente repete as mesmas palavras da pergunta, eu interpreto a relação sábia e integrada que eles têm com o tempo, com o consumo e com o método, nosso deus impiedoso e burro.