Cordel sobre Abelardo da Hora

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CORDEL SOBRE ABELARDO DA HORA Autor: Ant么nio Alves


1. Introdução

3. Infância

Eu vou contar pra você uma história diferente daquelas que você ouve e que impressiona a gente. A história de um valente que nunca matou ninguém, de um herói que não morreu e cuja glória é lutar, pela igualdade sonhar e pela justiça também!

Desde pequeno, Abelardo era o rei da galhardia: pulava, saltava muro, jogava, brigava, corria, tomava banho no rio (onde quase se afogou). Um dia, lá no telhado ele viu, maravilhado, o zepelim, quis pegar mas, no chão, se estatelou!

De São Lourenço da Mata mais um filho ele é, da terra que produziu gente de força e fé. O filho de Severina, a mãe, de Cazuza, o pai, pertence a eterna estirpe da que verga, mas não cai, da que impa, mas não chora da que luta e nunca trai!

Na 1ª comunhão para a hóstia receber, na noite antes do feito tinha de jejum manter. Mas, treloso, com o irmão, desrespeitando o preceito, de doce, uma talhada! cada um deles provou; e a hóstia consagrada, com gosto de mel ficou!

2. Identificação Nome: Abelardo Germano, O sobrenome é da Hora guenzo, baixinho, galego, mas, no rosto, a luz aflora: é o brilho do talento que Deus lhe deu num clarão. O maior dos escultores (Aquele que fez Adão) pôs em Abelardo valores que só o céu tem assento.

O que é pra uns é tragédia pra Abelardo foi luz: a chama de um maçarico como o leitor deduz podia tê-lo cegado. Venceu a dificuldade passou a enxergar a vida com visão mais aguerrida na luta pela igualdade. 4. Juventude E o menino foi crescendo e na escola ele entrou para aprender a ciência; e leu, escreveu e contou, disse toda tabuada,


decorou o abecedário. E sua alma apaixonada nos livros viu, de relance, poesia, prosa, romance, um mundo extraordinário. -“Mas, filho, pobre não pode (disse-lhe a mãe uma vez) dar se ao luxo de ficar recitando mês a mês dos livros, coisas bonitas. Você vai se preparar na escola que vai formar, gente forte pras desditas; gente de bem, decidida para o trabalho e a vida!” -“Mãe”, diz lhe então Abelardo, “mecânico eu quero ser; me matricule hoje mesmo pra essa arte aprender na escola que Agamenon criou pra que se formasse o profissional que é bom: mecânicos, carpinteiros, tipógrafos, alfaiates, barbeiros e serralheiros.” Assim se fez; Severina vestiu-se e pôs-se a andar. Mas, adentrando na Escola não pôde matricular na escolhida oficina o que o filho ambicionava. Em Artes Decorativas ainda vaga restava; consolidava-se a sina do artista que começava. Na classe, o nosso Abelardo logo talento mostrava

e um mestre, impressionado, um emprego arranjou para o jovem talentoso. Estudava e trabalhava; para tudo, era jeitoso, fazia mais que o pedido. O anjo da Arte, escondido, naquela mente brilhava! Concluído o ensino técnico nada mais tendo a aprender o jovem então seria estucador pra viver. De novo, um professor favoreceu Abelardo: na Escola de Belas Artes um curso superior teria sem muito tardo elevado seu valor. Na citada faculdade o quadro de professores o que há de melhor reunia; no lavor, eram doutores. Esta elite ficaria surpresa e já lhe conto: Abelardo dominou com maestria e de pronto a cerâmica, a pintura, o desenho e a escultura! Foi em pouco tempo, assim, que o aluno se fez mestre e a fama logo cresceu na superfície terrestre e no céu, que é do condor e no mar, que emudeceu O talento natural Com um diploma se vestiu E o Abelardo, jovial, Liderança adquiriu.


5. Na casa dos Brennand No engenho de São João da várzea, que é dos Brennand, Abelardo e seus colegas, foram, naquela manhã, desfrutar a paisagem praticando a aprendizagem de pintura e desenho. Da Escola, a teoria ao ar livre se fazia com muita calma e empenho. Lá vinha o dono do engenho... Admirado com o grupo, dele, logo se acercou e de, Abelardo, o desenho perfeito, ele se encantou. Perguntou: ”está à venda?” E o artista respondeu “De forma alguma; é seu” E, concluindo, assinou, dando ao dono como prenda. Impressionado com o gesto, disse-lhe o velho Ricardo: -“Qual sua graça, rapaz?” -“Olhe, me chamo Abelardo, de Cazuza filho sou; ele aqui trabalhou e demonstrou ser capaz”. Ricardo continuou: -“Cazuza foi importante e o filho será mais; Quero você na oficina de cerâmica que ergui. Você, como artista e mestre, há de trabalhar aqui!” Convite feito e aceito co’ uma ressalva apenas:

o artista precisava ver os pais, fins de semana. E, com o sim dos mecenas o acordo se firmava. Foi assim, quase três anos, que Abelardo conviveu naquele mundo abastado que nada tinha do seu, mas que lhe permitiu crescer em elegância e cultura dando, ao talento, verniz. Dava gosto de se ver brotar a Arte mais pura naquele gênio feliz. Com todos da casa fez, de amizade, grandes laços e no Francisco Brennand despertou, logo em um mês, o talento pelos traços do desenho, que antecede de toda Arte o afã. O indeciso advogado à vocação, a vez, cede: tornou-se artista afamado. 6. Ida ao Rio de Janeiro Cumprida sua missão na casa que o acolheu, ouvindo seu coração, um novo rumo escolheu. Despediu-se de Ricardo alegando algum motivo. Num impulso derradeiro tentando a sorte, Abelardo de coração combativo, foi ao Rio de Janeiro.


Na capital do país, no artista amadurecia a visão do social: do mal, raiz ela via na pobreza; eis a verdade! Percebeu que sua arte podia ser e seria grito e solidariedade dos que não podem falar e que estão em toda parte em desespero a penar. 7. Volta ao Recife Já de volta a Pernambuco, com muita dificuldade montou uma exposição que abalaria a cidade: as esculturas mostravam não os corpos bem talhados de deuses, musas ou santos, mas, as figuras de tantos homens que a dor carregavam sós, famintos, maltratados! O sucesso foi imenso. E, na mesma exposição, foi criada a Sociedade de Arte Moderna, famosa e de grande projeção. Ela juntou, na verdade, o que melhor havia no campo da arquitetura, da pintura, da escultura. E o Recife mudaria. Mas, sua maior conquista em meio a tanta alegria, foi conhecer a mulher que musa eterna seria e que todo artista quer.

Cupido outra vez desceu envolvendo como quis Abelardo e Margarida, como a Marília e Dirceu, como a Dante e Beatriz. Nele, ela viu o clarão que todo gênio ilumina. Nela, ele viu a razão do Amor que desatina. Este amor que o peito invade pula a cerca e se instala no coração com vontade. E toda dor ele enterra, toda tristeza ele cala pois o amor é o bem da Terra. Unidos em casamento na rua Velha morando, Abelardo e Margarida a sorte foram levando. Ele, respeitado em vida, tornou-se líder ativo do grupo que foi chamado Ateliê Coletivo. Margarida, poetisa. das palavras fez bordado. Os filhos iam nascendo e a casa ficou pequena. Para a Rua do Sossego, de simplicidade amena, a família se mudou e, na nova residência, o casal então criou cinco filhas e dois filhos, a eles se dedicou. Lenora foi a primeira, Sandra na seguida vez. Depois, tiveram mais três


de nome Leda, Ana e Sara, todas de pele bem clara, pareciam estrangeiras. Pra completar a ninhada e a descendência de brilho, nasce Abelardo Filho e o Iuri, fim da escada. 8. Atuação Política e Artística Não pense você que a lida do artista se resumia a fazer arte na vida e, assim se manteria a esposa e sua prole. Só com força de vontade que muito sapo se engole; por isso, trabalharia com muita tenacidade. Por sua opção política, a serviço do pobre pôs toda sua Arte e sua vida. E, por isso, se indispôs com o mal uso da riqueza e com o latifúndio estéril; que são raiz de pobreza que, a muitos, mantêm atados e alimentam o cemitério com a carne dos deserdados! Esta opção teve preço e, Abelardo, perseguido, por várias vezes, foi preso. Mesmo no cárcere detido, não desistia do sonho. Sempre firme, forte e teso enfrentava destemido o inimigo medonho que insistia em manter

o povo pobre oprimido. Já em mil novecentos e cinquenta e um pouquinho este “amarelo enfezado” (assim ele era chamado de um jeito vil e mesquinho por quem luta contra o povo), este Abelardo tão novo, indo pra lá e pra cá, com Julião defendia a reforma agrária já! Na campanha de defesa do petróleo nacional o artista se fez presente pra esta importante riqueza do progresso ser sinal, e pra toda nossa gente prosperidade trazer. Vargas, então, foi capaz da dependência romper e nasceu a Petrobrás. Em benefício do pobre se houvesse uma campanha, por lá estava Abelardo com disposição tamanha de assombrar plebeu e nobre. Pra ele, não era fardo o povo humilde educar. Pra realizar seu intento, coordena o Movimento de Cultura Popular. Mas, em mil novecentos e sessenta, pouco mais, governos compromissados com mudanças sociais levaram o nosso artista


do poder participar. Pelópidas da Silveira teve Abelardo na lista de quem veio trabalhar pelos sem eira nem beira. Todavia, há sempre aquele cuja ambição é enorme e que nunca se conforma com o que tem; e não dorme, vendo o pobre melhorar. Este tipo fariseu tomou-se sobressalto quando a poeira elegeu Pai Arraes pra governar o cais, o sertão, o asfalto. 9. Prisão e Resistência Pois, em mil novecentos e sessenta e quatro, deu-se uma mudança medonha e muita gente meteu-se em grande consternação. Sobre muitos a vergonha de ter a honra pisada, de ir parar na prisão; de ver, sendo rasgada, nossa constituição. Mas, uma voz santa gritou contra este arbítrio insano e por bom senso apelou pra desfazer o engano que os golpistas instalaram. Esperança alimentando, onde desespero havia, Dom Hélder, guerreiro brando, cuja a voz incentivava

a quem resistir queria. Mesmo preso, Abelardo continuava defendendo a sua ideologia. E com a família sofrendo e suas ações criticadas, nosso artista resistia com verdade respondendo às mentiras inventadas, pois a ditadura agia com as mãos de sangue manchadas. Acusado injustamente, conseguiu nosso Abelardo um defensor competente, O advogado Nilzardo, cuja atuação logrou o artista libertar. Mas, a nódoa que manchou do justo a reputação, magoou-lhe o coração e demorou pra limpar. 10. Ida a São Paulo Com as portas em Recife para o trabalho fechadas, em São Paulo busca abrigo onde teve, aumentadas por Pietro Maria Bardi chances que só um amigo a outro podia dar. Trabalhando sem alarde, viu sua fama renascer; ali, ia prosperar. Contudo, havia a distância de sua terra tão cara,


da família que ficara e, de revê-los, a ânsia. Tudo em São Paulo ia bem fez, de novo, exposições, vendeu trabalhos; porém, de Pernambuco a memória criava mil ilusões de restaurar sua história. 11. A reconstrução da trajetória do artista Da Paulicéia, ele some; Volta ao Recife, a cidade onde ,com dificuldade, vem refazer o seu nome. Nada parece impedir que este artista de renome ocupe antigos espaços que eram os seus por direito. Amigos abrem-lhe os braços e ele feliz, satisfeito. As filhas iam casando e a família foi crescendo, com os genros que, chegando, os netos iam trazendo. E, pouco a pouco, Abelardo encomendas recebia. Na mente brotavam puras formas que ele produzia bustos, tapetes, salvas, cerâmicas, esculturas. O tempo, que tudo apaga, cicatrizou a ferida que o Brasil dilacerou. E, não há mal que não traga algum bem, pra que a vida se esqueça do que passou.

O povo, então, se organiza; as ruas se enchem de gente, a ditadura agoniza vem um tempo diferente. 12. Abelardo, artista do povo Aos poucos, novos governos fazer justiça souberam à obra do grande artista. E todos os que, antes eram avarentos no elogio, encabeçavam a lista de prestar justa homenagem, de celebrar a coragem de quem, na prisão, não traiu e, no ideal, persistiu. Reabilitado e feliz, com grande repercussão expôs peças em Paris. Realizou a decoração de ruas e avenidas nas festas de carnaval. E levantou monumentos com figuras aguerridas, líderes de movimento em Pernambuco imortal! Comemorou os quarenta anos da mostra primeira de esculturas que fez. Depois, cinquenta, sessenta, da exposição pioneira que, na Arte, deu-lhe vez. Deu-lhe nosso presidente um diploma e medalha que recebe, tão somente, quem pelo Brasil trabalha.


13. Abelardo, hoje e sempre. -Mas (você vai perguntar) o artista não envelhece? Da idade, as mazelas por acaso não padece? -Só vendo pra acreditar: (digo sem tirar nem pôr) o tempo não tem sequelas pra quem constrói todo dia com fraternidade e amor das Artes as coisas belas! Quem visita a oficina vendo o artista em seu labor não entende, não atina que possa o guenzo baixinho, trabalhando ali, sozinho, produzir seja o que eu for. Mas, com calma e olhar atento, vendo do barro brotar figuras de um monumento de uma beleza sem par! Se toca um frevo, ele dança; comenta literatura. A voz se enche de ternura se fala do injustiçado. O seu olhar brilho alcança ao dos projetos falar que nascem sempre em sua arte. Por todos elogiado, famoso, por toda parte, não pára de trabalhar. Artistas, hoje famosos, passaram no Ateliê e boa parte, ditosos, como o mestre, bem se vê, souberam assimilar. Ontem, já talentosos,

agora, mestres também, por Abelardo forjados. E hoje, certeza eles tem de que foram bem formados. Quem, desde cedo, sentia de toda a injustiça, horror; e que a Arte poderia denunciar com destemor? Quem viu no povo esta fonte de boa arte a certeza e soube fazer a ponte entre o passado e o agora, entre o ideal e a beleza? Ele, Abelardo da Hora. Ainda vive esse artista que nosso povo exaltou e, muito mais que um jurista, pela justiça lutou. E viverá mais ainda através da sua arte. Porque, do bravo, não finda a fama; cresce, melhora e se espalha em toda parte. Viva Abelardo da Hora!


ABELARDO DA HORA *1924 †2014


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