BOLETIM ARTE NA ESCOLA • EDIÇÃO #76 • MAIO / JUNHO 2015
ARTIGO
Culturas indígenas em sala da aula
As ações do Grupo de Estudos giram em torno de temas ligados à vivência da terra e da prática da coletividade, como pinturas corporais, produção de colares e jogos tradicionais
Milene Valentir Ugliara * Certa vez, conversando com Tiago Honório dos Santos, professor da CECI (Centro de Educação e Cultura Indígena), dentro da casa de reza na aldeia Guarani de Tenondê Porã, em Parelheiros (SP), um dos estudantes do nosso Grupo de Estudos de Culturas Indígenas na Escola Municipal de Educação Professor Vicente Bastos[1], em São Caetano do Sul (SP), perguntou o que ele pensava sobre a comemoração do Dia do Índio. Tiago respondeu que eles, indígenas, não gostam da data por se sentirem desrespeitados, vistos de maneira folclorizada e superficial. Não desejam um dia dedicado à sua memória, pois não estão no passado, mas vivos e atuantes. Como educadores, tais reflexões nos colocam diante de uma questão primordial: por que é importante trabalhar as culturas indígenas para os não indígenas em sala de aula? E mais, como abordar essa temática?
A Lei 11.645, que prevê a obrigatoriedade do ensino das culturas indígenas e afro-brasileiras no currículo escolar, em especial nas áreas de Artes, Literatura e História, vem sendo chave importante para a inserção do debate e da possibilidade de transformação de um espaço que ainda mantém concepções colonialistas e etnocentristas. Historicamente, a escola está vinculada a um formato europeu de produção de conhecimento, hierarquizado, etapista e com sistema evolutivo. A divisão do saber por disciplinas propõe uma visão fragmentária e desconexa do mundo, deixando em segundo plano as possibilidades de interconexão entre os campos do saber que a própria realidade apresenta. Mais do que isso, com o ensino pautado no eurocentrismo, há um discurso de superioridade que arrasta por séculos, no pano de fundo de suas produções conceituais, a ideia de que outras culturas se aproximam de concepções inferiores e primitivas de existência. Podemos perceber que a escola que se constituiu historicamente na sociedade brasileira teve uma função de supremacia de um modelo civilizatório. Não foi à toa que aspectos das culturas indígenas e afro-brasileiras não foram tratados como conteúdos importantes e necessários para comporem o currículo escolar. Havia claramente, na superioridade do pensamento europeu, a tentativa de apagar as outras concepções integrantes da cultura brasileira. Assim foi construída uma ideia de identidade nacional e de conhecimento universal. Desta forma, a importância do ensino das culturas indígenas e também afro-brasileiras na escola formal significa apontar não só para a necessidade do reconhecimento dessas culturas, como também de deixar-se permear por suas concepções de mundo e formas de vida. É o que tentamos fazer no Grupo de Estudos, que surgiu da necessidade de extrapolar as atividades de sala de aula a fim de experienciar as possibilidades de aproximação com o universo dos povos originários do nosso país. Por alguns anos, as disciplinas de Arte e História já trabalhavam o ensino das culturas indígenas com o intuito de aprofundar questões históricas e culturais e desmontar estereótipos, preconceitos e visões românticas em torno do tema. Sendo assim, foi possível abordar os mitos relacionados ao “descobrimento” do Brasil, a ideia superficial do indígena como ser genérico e sem pluralidade étnica, além da percepção de que fomos orientados por uma visão romântica acerca do universo dos povos originários, colocando-os como seres puros, ingênuos e passivos. Tais questões foram importantes e levaram tanto os estudantes quanto os professores a buscarem passos além. Para vivenciar com mais profundidade estas questões levantadas em sala de aula, foi criado, em 2014, o Grupo de Estudos. Nas experiências vividas em horários alternativos ao turno escolar, tem sido possível colocar em prática a horizontalidade: no lugar do professor fixo e com autoridade inquestionável entram mestres de acordo com o conhecimento que têm a oferecer, de forma rotativa; é possível criar atividades com um tempo próprio de funcionamento, não pautadas no aspecto temporal do sinal da escola e, por fim, não há um currículo necessário a ser seguido, mas um calendário construído de forma coletiva, criado a partir de interesses, curiosidades e necessidades do próprio grupo. As ações do Grupo de Estudos giram em torno de temas ligados à vivência da terra e da prática da coletividade, com produções da culinária de diversas etnias indígenas na cozinha da escola, vivência em torno das pinturas corporais, produção artesanal de colares, cestaria e jogos tradicionais. Mais ainda, são realizadas mostras de vídeos sobre as questões indígenas históricas e atuais, que fomentam debates acerca das questões de identidade brasileira, concepções de vida, relações de alteridade e a resistência indígena que passa pelas luta de direito à terra, tão conflitantes nos momento atual. De tempos em tempos, o grupo organiza visitas às aldeias Guarani, no município de São Paulo, a fim de estreitar laços e aproximar a vivência da escola com a da aldeia. Existe a preocupação em levar ao grupo de estudos produções de textos e audiovisuais elaborados pelos próprios indígenas, a partir do reconhecimento de que boa parte das produções sobre suas questões foram feitas por não índios, ou seja, são carregadas de interpretações e concepções de outra matriz civilizatória, muitas vezes equivocada. Aos poucos, o grupo que foi criado a partir de uma necessidade gerada em sala de aula passou também a interferir nas aulas regulares. Os estudantes que não participam do Grupo de Estudos por falta de tempo acabam indo às visitas nas aldeias nos fim de semana, por exemplo. No ano de 2014, vários segmentos da EJA, Educação de Jovens e Adultos, produziram nas aulas de Artes um grande grafite coletivo no muro interno da escola, feito a partir do estudo dos grafismos de diversas etnias indígenas. Os Guarani da aldeia Tenondê Porã foram convidados a abrirem o Sarau Multicultural, evento que já se repete há quatro anos na escola e integra estudantes de todas os segmentos da EJA, com seu canto tradicional. Desta forma tem sido alcançada uma interação dos conhecimentos indígenas no espaço escolar, que extrapola a visão de conteúdos e passa a ter uma função provocativa no sentido de nos fazer rever não só a abordagem curricular, mas a própria estrutura do espaço escolar como aspecto formador do indivíduo: a divisão em salas de aula, as carteiras dispostas em fileiras, onde os alunos têm de permanecer sentados, o professor em pé e em destaque, o sinal e a divisão racional do tempo, o conhecimento segmentado em disciplinas – ou seja, toda a estrutura que está além do conteúdo e que é tão importante quanto ele. Assim, o ensino das culturas indígenas na escola formal é tão importante para desconstruir preconceitos e aprofundar as questões indígenas quanto necessária para alimentar novas visões de mundo, outras práticas e outras estruturas de conhecimento, a fim de descolonizar o ensino e alimentá-lo para uma produção que atenda às demandas e fale diretamente às pessoas que habitam e constroem os espaços de saber. * Milene Valentir Ugliara é graduada em Filosofia e Educação Artística com habilitação em Artes Cênicas e Artes Plásticas, fez mestrado em Arte e Educação pela Unesp, é professora de Artes da EME Professor Vicente Bastos, integrante do Grupo de Estudos de Culturas Indígenas da mesma instituição. Faz parte do Coletivo Mapa Xilográfico, grupo de arte e intervenção urbana.
Alunos da EJA produziram um grafite coletivo inspirado na temática indígena
[1] A visita à aldeia é uma atividade constante do Grupo de Estudos de Culturas Indígenas da EME Professor Vicente Bastos, grupo coordenado por Milene Valentir Ugliara, professora de Arte, e Daniel Correa, Professor de História.
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