Cadernos de Diplomacia Pública: Melhores Artigos de 2017

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Cadernos de Diplomacia PĂşblica Melhores artigos de 2017



Cadernos de Diplomacia Pública: Melhores Artigos de 2017

1a Edição

São Paulo 2018


Copyright © 2018 Instituto Global Attitude Organizadores: Felipe Toledo, Karina Stange Calandrin, Pedro Henrique Dias Alves Bernardes e Rodrigo Giorgi Reis Orientação Acadêmica: Peterson Ferreira da Silva Capa, projeto gráfico e diagramação: Carla Trabazo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Instituto Global Attitude Cadernos de Diplomacia Pública: Melhores Artigos de 2017 / Instituto Global Attitude. – São Paulo, 2018. ISBN: 978-85-54057-00-8 1. Ciência Política. 2. Relações Internacionais. 3. Organismos Internacionais. I. Título. CDD: 320 CDU: 327

As opiniões externadas nesta publicação são de exclusiva responsabilidae de seus autores.

INSTITUTO GLOBAL ATTITUDE Rua General Jardim, 633, Conj. 34A, Vila Buarque 01223-904 - São Paulo - SP Tel.: 11 3957-0488 contato@diplomaciacivil.org.br www.diplomaciacivil.org.br


Sumário 7

Apresentação

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Prefácio Karina Stange Calandrin Peterson Ferreira da Silva

15 Artigos dos delegados

16 Protagonismo Juvenil no Alcance das Metas da Agenda 2030:

Espaços de Fala da Juventude na Organização das Nações Unidas

Marcela Lorenzoni da Rocha Rabin 25 A Flexibilização da Legislação Brasileira sobre Vendas de Ter

ras Agricultáveis a Estrangeiros e os Interesses Chineses: uma análise crítica sobre IEDs agrícolas

Clara Soares Nogueira 36 Os Programas de Eficiência Energética Brasileiros – Reinven

tando o Paradigma para um desenvolvimento sustentável

Livia Picchi

43 UN Women: A Atuação do Programa “Women’s Leadership

and Political Participation” em Países em Desenvolvimento

Liz de Maria Carvalho Cosmelli de Oliveira

55 A Importância do Acordo de Facilitação Comercial para o Co

mércio Internacional e Seus Reflexos no Brasil

Luma Diniz


58 A influência da regulação do mercado de capitais sobre o

investidor pessoa física

Maria Eugenia Cirillo 71 Violência obstétrica e a mulher indígena: O ensino da medicina

como deslegitimador das crenças tradicionais sobre a gestação e o parto

Karollyne Lima Barbosa 79 O Patrocínio Privado Como Ferramenta Complementar Para o

Reassentamento de Refugiados: um modelo para o futuro

Luiz Felipy dos Santos Costa Leomil 90 A evolução do Direito Internacional dos Direitos Humanos

(DIDH): a humanização do Direito Internacional e os debates acerca da responsabilidade social das corporações empresariais na provisão de direitos humanos

Guilherme Antunes Ramos


Apresentação

Cara leitora e caro leitor, É com muita satisfação que lhe convidamos a ler a primeira edição do Cadernos de Diplomacia Pública, livro editado pelo Instituto Global Attitude, contendo os melhores artigos dos delegados participantes do programa Diplomacia Civil, durante o ano de 2017. O Instituto é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), que desde 2012 coordena este inovador programa, cuja missão é articular a participação de jovens brasileiros em fóruns multilaterais e qualificar o entendimento do Brasil como ator internacional. Como parte da capacitação que os delegados passam, é produzido um artigo preparatório, ligado às temáticas da conferência à qual participarão. Trata-se de uma das mais importantes etapas do programa, pois é por meio da pesquisa e da conceituação teórica que os participantes aprimoram seu entendimento em pautas da agenda internacional e compreendem e analisam a incidência do Brasil nesses espaços. Os jovens traçam o seu próprio caminho na aquisição do conhecimento e podem escolher livremente o recorte de sua pesquisa. Durante este processo, os delegados contam com a orientação de professores e pesquisadores de renomadas universidades brasileiras, como a Universidade de São Paulo (USP), a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) e as Faculdades Integradas Rio Branco. Com o passar dos anos e com a experiência adquirida, o Instituto Global Attitude conseguiu engajar cerca de 300 jovens em variados eventos de diferentes temáticas, desde macroeconomia, comércio e questões de igualdade de gênero a cidades inteligentes, habitação e meio ambiente e mudanças climáticas. O reflexo deste arrojado trabalho pode ser medido com as diferentes certificações que Organizações Internacionais vêm nos concedendo. Cabe aqui mencionar o mais recente título conquistado como membro consultivo do ECOSOC – Conselho Econômico e Social das Organizações das Nações Unidas - conferido a


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uma limitada quantidade de organizações da sociedade civil mundo afora. Se, por um lado, nosso alcance ainda seja pequeno, dadas as proporções da grande população jovem do Brasil, por outro é possível afirmar que o impacto é extremamente positivo nos universitários, jovens profissionais e professores, empreendedores, profissionais liberais e outros que fizeram e fazem parte do Diplomacia Civil. A realização deste livro e a qualidade dos artigos aqui publicados é mais um passo para a consolidação do programa como forma de inserção, engajamento e impacto da juventude brasileira nas mais diversas instâncias da esfera internacional.

Desejo a todos uma boa leitura. Felipe Matsuda Toledo – Coordenador do Diplomacia Civil


Prefácio Karina Stange Calandrin Professora de Relações Internacionais - Universidade do Sagrado Coração (USC) Peterson Ferreira da Silva Professor de Relações Internacionais – Faculdades Integradas Rio Branco

O termo “diplomacia pública” foi adotado nos Estados Unidos na década de 1970 como uma alternativa ao termo propaganda, que tinha conotações negativas (CULL, 2006; ROBERTS, 1994). Quarenta anos depois, o termo é amplamente utilizado em todo o mundo. Os governos estão estabelecendo organizações de diplomacia pública. Os líderes políticos usam a ferramenta para diferentes propósitos. Os analistas discutem energicamente o que isso significa. Agora, como no passado, interesses e políticas enquadram questões e prioridades. O pensamento estadunidense sobre a diplomacia pública, que na década de 1990 questionou o seu significado em um mundo globalizado pós-guerra fria, tornou-se, em grande parte, um exame introspectivo da relevância da diplomacia pública para o terrorismo penetrante em um mundo pós-11 de setembro. Os europeus e outros Estados se concentram nos usos da diplomacia pública em melhorar suas economias, projetar identidade e alcançar diferentes objetivos políticos (MELISSEN, 2005; DE GOUVEIA, 2006). Interesses, valores, identidades, memórias e contextos geoestratégicos formam a maneira como pensamos a diplomacia pública. Os conflitos atuais geralmente dominam as percepções, e a diplomacia pública certamente é relevante para as ideias que são causas e consequências da guerra. Mas a diplomacia pública também é usada por atores estatais e não estatais para entender, engajar e influenciar os públicos em uma ampla gama de questões relacionadas à governança, crescimento econômico, democracia, distribuição de bens e serviços, ameaças transfronteiriças e oportunidades. A diplomacia pública pode ser vista como um instrumento político com limites analíticos e características distintas. É um termo que descreve formas e meios pelos quais Estados, associações de Estados e atores não estatais entendem culturas, atitudes e comportamentos; construir e gerenciar relacionamentos; e influenciar opiniões e ações para promover seus interesses e valores. É usado pelos atores políticos para entender as consequências das escolhas políticas, definir agendas públicas, influenciar o discurso na sociedade civil e criar consentimento para estratégias que exigem compromissos entre custos, riscos e benefícios. Portanto, a diplomacia pública é um instrumento de comunicação usado para a governança. Como tal, difere da educação, jornalismo, publicidade, relações públicas, branding e outras formas pelas quais as pessoas se comunicam nas sociedades (GREGORY, 2008).


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No entanto, a diplomacia pública importa métodos e normas do discurso da sociedade civil e depende de relações com a mesma para ter sucesso. Por ser uma comunicação aberta, dependente dos benefícios práticos da credibilidade, a diplomacia pública exige mecanismos estruturais que protejam as normas importadas (por exemplo, decisões baseadas no mérito acadêmico em intercâmbios educacionais e valores do jornalismo na transmissão internacional) e firewalls que o separam de secretos instrumentos e técnicas de decepção também usadas por atores políticos. A diplomacia pública opera através de ações, relacionamentos, imagens e palavras em três quadros: fluxos de notícias contínuo, campanhas de médio alcance sobre políticas de alto valor e engajamento de longo prazo (GREGORY, 2008). Apesar das grandes diferenças entre as guerras do século XX, os fatores subjacentes que moldaram o estudo e a prática da diplomacia pública foram semelhantes. Os Estados dominaram as relações internacionais. Os atores não estatais eram poucos em número. “Grandes ideias” eram lutas seculares entre as visões mundanas autoritárias e democráticas. Os sistemas de mídia e comunicação usaram tecnologias analógicas. As hierarquias eram as principais estruturas das sociedades e da política. Então o mundo mudou. É costume dizer que os Estados ainda são importantes. Mas os Estados não são o que costumavam ser nas relações internacionais. A governança ocorre acima, abaixo e em torno do Estado (KEOHANE, Nye, 2000). O globalismo, os atores não estatais, uma mistura diversificada de “grandes ideias” seculares e religiosas, redes políticas e sociais, tecnologias digitais e um novo paradigma de guerra entre elementos estatais e não estatais com alcance global transformaram a ordem do velho mundo. A satisfação das necessidades e desejos humanos é cada vez mais proporcionada por associações de Estados, entidades e instituições privadas. A diplomacia pública ocorre em um mundo com muitos atores novos em que a atenção, e não a informação, é o recurso escasso (NYE, 2002, 2004). Sociedades de rede desafiam as hierarquias organizacionais (CASTELLS, 1996). As consequências para a diplomacia pública estão em uma escala comparável às mudanças profundas que inauguraram o modelo estatal de diplomacia pública quase um século antes, na sequência da Primeira Guerra Mundial. Estudos acadêmicos de pesquisas de opinião pública (e novas ferramentas, como análise de redes sociais), antropologia cultural, psicologia social e teoria da ação comunicativa permanecem relevantes para o novo mundo da diplomacia pública. Para isso, pode-se adicionar a teoria da identidade e o construtivismo, enquadramento de mídia e comunicação política, governança e poder e diplomacia. Samuel Huntingtons (1996) vê que as civilizações seriam a principal fonte de conflito e identidade no mundo do pós-guerra fria. Ganhou espaço com muitos que concordavam que a cultura e a religião substituiriam os interesses econômicos e as ideologias seculares. Sua teoria atraiu a oposição daqueles que viram muitos conflitos ocorrendo dentro das civilizações e questionaram uma tese em desacordo com um mundo em que as pessoas têm múltiplas identidades moldadas por escolha fundamentada, nacionalidade, localização, classe, ocupação, status social, idioma, gênero, política, e outros critérios (SEN, 2006).


A teoria construtivista - inovadora e influente em estudos internacionais com ênfase em ideias, cultura, normas, identidade e crenças compartilhadas - fornece informações sobre as estratégias dos atores políticos e as forças e limitações de sua diplomacia pública (LORD, 2005; KATZENSTEIN, 1996). Os conceitos de hard e soft power de Joseph S. Nye continuam desafiando pesquisas. É possível e desejável tratar a diplomacia pública como um campo acadêmico emergente com base em três considerações: um consenso alcançável em um quadro analítico; um campo substancial de estudos e literatura prática; compartilhamento de conhecimento e prática profissional. Num campo ligado a questões políticas altamente polêmicas, os estudiosos e profissionais utilizarão os seus conhecimentos para enriquecer a aprendizagem e o debate público. Faz tempo que os Estados não estão sozinhos no cenário internacional. Hoje é impossível ignorar o impacto das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) para a crescente interdependência global. De modo similar, não é possível deixar de lado o papel das redes sociais na série de transformações contemporâneas. Isso se torna evidente ao se considerar eventos como, por exemplo, os diversos vazamentos (e suas consequências) promovidos pelo Wikileaks, a Primavera Árabe (2010-2011), os vídeos e os pedidos de socorro vindos de Aleppo no contexto da crise da Síria, os tuítes do presidente norte-americano Donald Trump e os relatos de horror dos Rohingya em Mianmar. É fácil observar uma enorme variedade de atores e suas redes que buscam influenciar a agenda internacional. Grandes corporações, organizações internacionais e não-governamentais, bem como órgãos e entidades estatais e personalidades compõem uma diversidade de redes temáticas, transcendendo a tradicional divisão entre assuntos domésticos e externos. Nos últimos anos, nomes de influentes líderes nacionais como Merkel, Putin, Obama e Xi Jinping disputam espaço com os de Sérgio Vieira de Mello, Christine Lagarde, Jack Ma, Jaha Dukureh, Mark Zuckerberg e Bill Gates, apenas para citar alguns exemplos.

Nesse contexto, um maior engajamento por parte de indivíduos nas questões e desafios do mundo atual não é somente mais facilitado pelas novas tecnologias como também necessário. Embora, de modo geral, os benefícios desses novos tempos sejam claros, é imperativo destacar que grande parte da população mundial se encontra marginalizada, convivendo com problemas como pobreza extrema, sem acesso a serviços básicos ou sem ao menos a

Prefácio

De modo similar, os assuntos dessa agenda internacional deixaram de gravitar essencialmente em torno de aspectos políticos, econômicos e militares. A transdisciplinaridade ganha cada vez mais espaço, possibilitando e fortalecendo um rico debate sobre os mais diversos temas. Meio ambiente, direitos humanos, desenvolvimento, saúde, educação, novas tecnologias, cooperações acadêmicas e igualdade entre os sexos são alguns dos assuntos debatidos em vários fóruns nacionais e internacionais. Daí a profusão de termos como diplomacia da ciência, diplomacia digital, diplomacia cultural, entre outros, congregando uma ampla gama de indivíduos, grupos e organizações atuando independentemente de determinações dos Estados.

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garantia mínima de segurança. Abrir espaço e, principalmente, dar voz para esses grupos e indivíduos não é uma tarefa trivial, pois esses são praticamente soterrados no cotidiano pela avalanche de desdobramentos da política, da economia e das celebridades “do momento”. Apesar de todas as dificuldades, há diversos meios para se buscar alterações positivas dessa realidade. Quem diria, por exemplo, que o caso de uma estudante paquistanesa baleada em 2012 por um membro do Taleban ensejaria tamanha repercussão internacional para a questão da educação feminina? Em 2014, essa menina, Malala Yousafsai, tornou-se, aos 17 anos, a mais jovem ganhadora do Nobel da Paz, em função de sua militância pelo direito de todas as crianças à educação. É justamente apostando no peso das jovens lideranças que este livro, organizado pela Global Attitude, destaca algumas das possibilidades e questões que permeiam a agenda internacional. Por meio da perspectivas de participantes de conferências internacionais, é oferecida uma amostra da atual diversidade dos desafios e das temáticas internacionais. Inicialmente, é apresentado uma introdução ao debate sobre diplomacia pública e alguns dos principais conceitos correlatos. A partir daí seguem as produções dos delegados da Global Attitude selecionadas. Marcela Rabin, delegada no “The Economic and Social Council (ECOSOC) Youth Forum” 2017, explora o tema do protagonismo juvenil – dimensão que ganhou mais relevância no Brasil em função dos protestos de 2013 - no quadro da Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável. Clara Nogueira, participante da edição 2017 do OCDE Forum – “Bridging divides”, trata da flexibilização da legislação brasileira sobre a compra de terras, com foco no papel crescente da China no contexto da discussão mais ampla sobre os impactos dos Investimentos Diretos Estrangeiros (IEDs) na área agrícola. Livia Picchi, participante do Vienna Energy Forum 2017 (VEF 2017), oferece um panorama sobre as principais iniciativas internacionais voltadas à eficiência energética e o papel do Brasil nesse quadro complexo. Participante da conferência European Development Days (EDD) 2017 da Comissão Europeia, Liz Cosmelli de Oliveira analisa a atuação do programa “Women’s leadership and political participation”, especialmente nos países em desenvolvimento. Luma Diniz, delegada no Public Forum 2017 – “Trade: Behind the headlines”, da Organização Mundial do Comércio (OMC), aborda o Acordo de Facilitação Comercial (AFC) e seus reflexos para o Brasil. Maria Eugenia Cirillo, Annual Meetings of the International Monetary Fund and World Bank Group 2017, discute a influência da regulação do mercado de capitais sobre o investidos pessoa física, tendo em vista fatores como as repercussões não só da crise de 2008 como também da crise fiscal brasileira. Karollyne Barbosa, delegada no Gender Summit 2017 – “Quality Research and Innovation through equality”, aborda a relação entre medicina moderna e o respeito às crenças tradicionais sobre a gestação e o parto, tendo como elemento central a mulher indígena. Luiz Felipy Leomil, participante do 2017 Forum on Business and Human Rights, explora a questão do patrocínio privado como ferramenta complementar para o reassentamento de refugiados, partindo da experiência canadense frente à crise de migrantes e refugiados que atinge a comunidade internacional nos últimos anos. Já


Guilherme Ramos, trata da questão da responsabilidade social das empresas no quadro dos direitos humanos, o qual tradicionalmente é visto como centrado na figura estatal. Tais discussões e ideias registradas neste livro devem ser encaradas como novos passos rumo a capacitar e engajar jovens brasileiros na árdua tarefa de delinear um país e um mundo mais próspero e justo.

Bibliografia CARTER OF COLES, Lord. Public Diplomacy Review. 2005 CASTELLS, M. The Rise of the Network Society: The Information Age: Economy, Society, and Culture, Volume I_. Oxford: Blackwell Publishers, 1996. CULL, Nicholas. Public Diplomacy‘ Before Gullion: The Evolution of a Phrase. USC Center on Public Diplomacy. 2006. Disponível em: <uscpublicdiplomacy.org/blog/060418_ public_diplomacy_before_the_evolution_of_a _phrase>. Acesso 23/01/2018. DE GOUVEIA, Philip Fiske. The Present And Future Of Public Diplomacy: A European Perspective. The 2006 Madrid Conference on Public Diplomacy. Madri: Real Instituto Elcano, 2006. GREGORY, Bruce. Public Diplomacy: Sunrise of an Academic Field. The Annals Of The American Academy Of Political And Social Science, [s.l.], v. 616, n. 1, p.274-290, mar. 2008. SAGE Publications. HUNTINGTON, Samuel P.. The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order. Nova York: Touchstone, 1996. KATZENSTEIN, Peter. The Culture of National Security. Columbia University Press, 1996. KEOHANE, Robert O.; NYE, Joseph S.. Globalization: What’s New? What’s Not? (And So What?). Foreign Policy, [s.l.], n. 118, p.104-119, 2000. JSTOR.

NYE, Joseph S.. “The American National Interest and Global Public Goods.” Internation-

Prefácio

MELLISEN, Jan. The New Public Diplomacy: Soft Power in International Relations. Nova York: Palgrave Macmillan, 2005.

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al Affairs (Royal Institute of International Affairs 1944-),vol. 78, no. 2, 2002, pp. 233–244 NYE, Joseph S.. The Decline of America’s Soft Power. Foreign Policy, [s.i], maio 2004. ROBERTS, Ivor. Satow’s Diplomatic Practice. 6. ed. Oxford: Oxford University Press, 1994. SEN, T. The Yuan Khanate and India: Cross-Cultural Diplomacy in the Thirteenth and Fourteenth Centuries. Asia Major, 19(1/2), third series, 299-326. 2006.


Artigos dos Delegados


Protagonismo Juvenil no Alcance das Metas da Agenda 2030: Espaços de Fala da Juventude na Organização das Nações Unidas Marcela Lorenzoni da Rocha Rabin Delegada para o ECOSOC Youth Forum

1. Um Resgate do Protagonismo Juvenil no Brasil

O protagonismo do jovem brasileiro aparece como um dos alicerces da Educação e cidadania no século XXI: está na boca da mídia, nas escolas, em eventos que discutem inovação educacional, em organizações não- governamentais e da sociedade civil. Entretanto, as primeiras referências ao protagonismo jovem chegaram ao Brasil já na década de 1920, com as ideias do norte-americano John Dewey e a ascensão do movimento da Escola Nova, que acumulou adeptos entre uma elite de educadores brasileiros. Desde então, o significado do termo protagonismo vem se transformando conforme evoluiu, também, o contexto do país. Atualmente, a definição de protagonismo mais aceita por autores diz respeito à participação ativa e intencional dos jovens em temas sociais, políticos ou escolares de relevância local ou global (ALMEIDA; LIMA; GARCIA, 2013). Mais especificamente nos últimos três anos, a instabilidade social, política e econômica no Brasil - cujo estopim foram as manifestações populares de 2013 - tirou efetivamente os jovens da posição de observadores e os colocou como peças centrais da desconstrução e reconstrução da escola e, mais profundamente, da sociedade em que estão inseridos. Em 2015 e 2016, alunos do Ensino Médio, de 15 a 18 anos, promoveram ocupações em diversas cidades contra o fechamento e sucateamento de suas escolas na rede pública, atraindo atenção nacional à causa. São também jovens que lideram e catalisam movimentos políticos independentes, atuação praticamente despercebida no Brasil desde o impeachment do presidente Fernando Collor, sob os protestos dos caras-pintadas, no final de 1992; uma juventude, portanto, que entrou em ebulição após mais de dez anos de apatia. Como consequência, iniciou-se o movimento de Institutos, ONGs e da comunidade para ouvir esses jovens e, mais adiante, colocá-los na liderança da transformação. Porém,


antes de investigarmos o que quer e o que pode essa nova geração de jovens brasileiros, precisamos nos perguntar: quem são eles?

2. Um Panorama da Juventude Global e Brasileira

As Nações Unidas consideram jovens aqueles na faixa etária dos 15 aos 24, e adolescentes, entre 10 e 19 anos; embora o recorte de idade varie de pesquisa para pesquisa. Hoje, 25% da população mundial - um total de 1,8 bilhões de pessoas - se enquadra nas categorias acima, ou seja, tem entre 10 e 24 anos (UNFPA, 2014). O tamanho da população jovem é o maior já registrado na história e tende a continuar crescendo, chegando a 2 bilhões até 2050. Entretanto, não é possível olhar para a juventude mundial como uma massa homogênea, uma vez que suas condições de vida alteram-se drasticamente de uma para outra região: o mesmo relatório do Fundo das Nações Unidas para a População (2014) mostra que 90% dos jovens vive atualmente em países em desenvolvimento; segundo o documento, [...] Dezenas de milhões não frequentam a escola, ou, quando frequentam, não alcançam padrões de referência de aprendizado, ainda que mínimos. As perspectivas de emprego são geralmente ruins, com empregos indisponíveis ou de baixa qualidade, levando a uma piora na crise de desemprego global de jovens. Em regiões em desenvolvimento, cerca de 60% das e dos jovens não estão trabalhando ou matriculados na escola, ou têm apenas empregos informais. (UNFPA, Situação da População Mundial 2014, p. 1)

Apenas no Brasil, o último censo identificou 34 milhões de jovens com idade entre 15 e 24 anos (IBGE, 2010), o equivalente 18% da população. A realidade do jovem brasileiro não difere muito daquela pintada pelos órgãos internacionais: uma maioria considerável (69%) não frequenta nenhum tipo de instituição de ensino e 61% estão desempregados.

É importante refletir sobre o ciclo de exclusão criado pelas condições descritas acima. Jovens cujo acesso ao ensino e ao mercado de trabalho foram negados são, consequentemente, excluídos das tomadas de decisão que poderiam atender às suas necessidades. Para atingir essa autonomia, veremos a seguir que o jovem se torna alvo de políticas

Artigos dos delegados

Ainda assim, a juventude brasileira é uma juventude trabalhadora, que luta para conciliar estudos e trabalho - a realidade de 22,8%, quando a faixa etária considerada é de 15 a 29 anos. Entretanto, a busca por emprego é marcada por desigualdades, sendo jovens de baixa renda e menor escolaridade quem ocupam trabalhos informais. Enquanto o índice de desemprego é menor para jovens de renda elevada, dentre aqueles que não estudam nem trabalham a maioria são mulheres e negras (IBGE, 2010).

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públicas (portanto, um ator passivo) ao mesmo tempo em que essas mesmas políticas visam desenvolver seu protagonismo por meio de ações planejadas (papel ativo).

3. O Discurso do Protagonismo em Documentos Oficiais

O protagonismo juvenil sempre possuiu, desde seus primórdios no Brasil do século XIX, um cunho claramente político - dos movimentos abolicionistas à Semana de Arte Moderna até as atuais ocupações nas escolas públicas de todo o país, cujo ápice ocorreu em outubro de 2016, com mais de 900 colégios ocupados (ou “invadidos”, dependendo do viés político do observador). A verdade é que o termo protagonista implica de fato no indivíduo como ator social, aquele que assume responsabilidade como cidadão (ESCÁMEZ e GIL, 2003).

Assumir a responsabilidade como cidadãos significa confiar que nós somos realmente agentes da democracia, encarregados de certas coisas e avalistas de determinadas atividades de nossa sociedade, oferecendo nossos próprios princípios a partir da nossa capacidade de autonomia, rejeitando aquilo que desvirtua os modos de comportamento democrático, assumindo nossas decisões e ações. (ESCÁMEZ e GIL, 2003, p. 28).

Isso é facilitado por nosso modelo de sociedade atual, em que entendemos que indivíduos isolados, ou atores sociais (SOUZA, R. M., 2006), são os grandes responsáveis por exigir e negociar serviços acerca de sua educação, saúde e segurança. Ou seja, os próprios indivíduos devem lutar para garantir sua inclusão social. Souza (2003) define um ator social como alguém que persegue projetos realistas, levando em consideração a posição e os interesses de outros atores, para modificar seu entorno social. No caso do protagonismo juvenil, essa atuação só se torna possível quando o jovem conhece a história, a língua e a geografia do local onde vive - além disso, é preciso que ele sinta que tem influência na tomada de decisões que dizem respeito à sua vida em comunidade. É, portanto, para que o jovem seja capaz de exercer seu protagonismo, que surgem, a partir do século XX, documentos e diretrizes nacionais e internacionais visando garantir sua participação e responsabilidade social. O discurso usado, até a década de 1990, era o da “participação”, que futuramente seria substituída pelo termo “protagonismo”. A primeira aparição oficial do discurso ocorreu em 1985, declarado pela ONU o Ano Internacional da Juventude: Participação, Desenvolvimento e Paz. SOUZA (2009) faz uma breve introdução do termo “protagonismo” em documentos internacionais: A participação dos jovens no desenvolvimento – deles próprios e no de seus países, contribuindo para o chamado desenvolvimento humano ou social – constitui elemento-chave dos documentos internacionais produzidos no período 1985-2005 (especificamente ONU, 1985, 1995, 1998a, 1998b; CEPAL


e UNESCO, 2001; UNESCO, 2005). O jovem é colocado numa dupla posição nos documentos em questão: objeto e agente das intervenções. Justamente para que possa oferecer sua contribuição à sociedade, o jovem deve ser alvo de políticas (ONU, 1995). (SOUZA, 2009, p. 11)

Percebemos aí que o jovem apresenta, paralelamente, dois papéis: um passivo e, outro, ativo - até a década de 90, eram inclusive comuns os termos “beneficiário” e, do lado oposto, “participante ativo”. Como essas funções, contraditórias em um primeiro olhar, se manifestam? Vejamos, o jovem é passivo quando ele é alvo de intervenção, beneficiário de medidas assistencialistas que assegurem sua participação na comunidade. Isso significa que seu protagonismo depende diretamente de regras e diretrizes impostas verticalmente pelo governo ou outras organizações. Por outro lado, ele é também um agente ativo quando falamos de sua “capacidade empreendedora” e de “enfrentar os diversos desafios de seu desenvolvimento pessoal”. Aqui, ele é quem toma as rédeas de sua situação, quem constrói caminhos. Essa ambivalência parece necessária - ao menos, assim a julga a UNESCO - para garantir que sejam ouvidas as vozes dos jovens em países em diferentes etapas de desenvolvimento socioeconômico. Já nos anos 2000, a autora aponta uma mudança de discurso quando ONU e UNESCO passam a se referir a esse jovem como “ator estratégico”, camuflando o papel ambíguo anterior. Em 2005, a UNESCO estabeleceu os termos capital social coletivo como “apoios sociais com os quais contam os jovens para a concretização de seus projetos de vida” e capital social individual como a “capacidade empreendedora dos jovens para enfrentar os diversos desafios de seu desenvolvimento pessoal”.

Também percebemos na leitura desses documentos que o protagonismo é geralmente dirigido à juventude de baixa renda, marginalizada ou em situação vulnerável. Sobre ela, é colocada a responsabilidade, ao menos parcial, de mudar sua realidade através do trabalho e da resiliência - o que alguns autores consideram uma interpretação perversa de protagonismo, pois alivia os deveres do Estado de garantir oportunidades iguais a seus cidadãos. Em vez disso, são os jovens que, com apoio de ONGs e outras instituições, devem (são considerados capazes de) superar adversidades (FERRETI, TARTUCE, ZIBA, 2004). Um exemplo atualmente muito visível, relativo à perversidade da ênfase nesse tipo de protagonismo, diz respeito aos processos de inserção e manutenção

Artigos dos delegados

Segundo essas definições, o jovem permanece sendo destinatário de políticas públicas; porém, “por essa mesma razão, deve oferecer oferecer sua contrapartida à comunidade ou ao país” (SOUZA, p. 11).

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20 no mercado de trabalho, quando a responsabilidade é deslocada para os indivíduos “[embora se saiba] que fatores de ordem macro e mesoeconômias contribuem decisivamente para essa situação [de desemprego]” (Hirata, apud Shiroma, Campos, 1997, p.28). (FERRETI, TARTUCE, ZIBA, 2004, p. 418).

4. Garantindo Espaços de Protagonismo Juvenil

Até agora, pudemos concluir que há necessidade de investimento no jovem brasileiro - seja partindo do Estado ou de outras organizações - criando espaços seguros em que ele possa exercer seu protagonismo. Em se tratando de jovens em situação de vulnerabilidade social, vemos, sim, o surgimento desses espaços; porém, segundo Tapia (2001), eles costumam trazer discursos reducionistas, que limitam o desenvolvimento significativo dos participantes. Para Tapia (2001), esse tipo de política pública enxerga o jovem como um problema, não como “uma demanda de políticas ativas que se utilizem das lógicas de projeto para a sua realização e para a geração de igualdade de oportunidades” (TAPIA, 2001, p. 35). O autor prossegue explicando três âmbitos comuns para esses espaços: Isto se traduz em iniciativas de caráter repressivo (jovens de escassos recursos vistos como delinquentes e drogados potenciais), assistencial (para satisfazer certas necessidades básicas de educação e saúda e facilitar sua inserção no mercado), e outras de caráter “brincalhão”, que os veem como indivíduos que não sabem o que fazer com seu tempo livre (financiamento de atividades recreativas e desportivas, principalmente). (TAPIA, 2001, p. 35 In: SOFIATI, 2008, p. 94).

São espaços, portanto, que continuam a oferecer uma visão pronta do que seria adequado, necessário ou desejado para o desenvolvimento dos jovens; sem que, no entanto, lhes seja permitido cocriar sua realidade a partir de experiências pessoais. Outros autores concordam com essa análise. Ferreti, Tartuce e Ziba (2004) afirmam que é comum que os projetos desenvolvidos com adolescentes e jovens partam de “suposições falsas a respeito das características juvenis, criando situações artificiais que esvaziam as iniciativas”, sejam elas sobre o gosto musical dos jovens, seus hobbies, seus interesses, sua linguagem. Assim, o que chama-se de protagonismo é, na verdade, um projeto desenvolvido por adultos (educadores, assistentes sociais) com objetivo final previamente definido, em que os alunos simplesmente realizam as tarefas propostas, sem qualquer real participação. Caberia, então, ao jovem exigir seu espaço de protagonismo? Essa é uma alternativa, ainda que pouco recorrente; afinal, após anos de uma Educação focada na preparação para


exames, em um sistema etário e disciplinar, podemos concluir que os jovens desconheçam outro modelo de atuação - e como exigir algo que você desconhece? As Nações Unidas têm se esforçado nesse sentido, realizando eventos com intuito de informar adolescentes e jovens sobre tópicos como o combate à pobreza e à fome, a mudança climática e outros Objetivos de Desenvolvimento Sustentável adotados pela Agenda 2030, além de envolvê- los no cumprimento das metas. Exemplo disso foram as oficinas de capacitação oferecidas pelo Projeto Brasil ODS 2030, parte do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) que, em 2016, percorreram o Brasil, promovendo debates entre os jovens. Os encontros abordaram as prioridades de desenvolvimento nas comunidades locais, pelo ponto de vista dos jovens, e as possibilidades de eles colaborarem diretamente para a qualidade de vida dos moradores da região. Outra forma de estimular o protagonismo vem do reconhecimento de iniciativas já existentes, o que acontece quando são abertos editais e processos seletivos de “jovens líderes” para participar de eventos das Nações Unidas. Olhando para os dois últimos anos, temos uma série de exemplos dessa prática: o Workshop UNAOC-EF Summer School, o Evento da Juventude em Baku e o programa Jovens Líderes da ONU, todos divulgados entre 2015 e 2016. Analisando as descrições de cada processo seletivo, observamos com frequência os termos “engajados” ou “líderes”, direcionando a oportunidade a jovens que já tenham um histórico de participação social ou política; e “multiplicadores”, significando que os jovens escolhidos devem, em contrapartida, espalhar os aprendizados adquiridos entre sua rede, após o retorno. Nesse caso, a seleção exclui aqueles com pouco ou nenhum acesso à informação e que, como discutimos acima, não despertaram para seu potencial de transformação local ou global; paralelamente, barreiras financeiras (programas de internship, ou estágio, permanecem não remunerados) perpetuam uma participação pouco democrática no que diz respeito ao perfil da juventude selecionada.

O Youth Forum of the Economic and Social Council (ECOSOC), conferência cuja última edição aconteceu nos dias 30 e 31 de janeiro de 2017 e é foco deste estudo, se encaixa no segundo formato. O próximo capítulo é uma contextualização do evento e relato da experiência como parte da delegação de jovens brasileiros da sociedade civil, selecionados pelo programa Diplomacia Civil da OSCIP Global Attitude.

Artigos dos delegados

Ainda assim, a capacitação de jovens lideranças visa o retorno dos participantes ao país de origem, geralmente com a missão de divulgar a Agenda 2030 da ONU e engajar jovens no alcance dos Objetivos. Ou seja, percebemos uma intenção de rede, o protagonismo através da conexão - que, quando retorna a comunidades locais, conquista o poder de engajar uma maior diversidade de jovens.

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5. Jovens da Sociedade Civil Brasileira no ECOSOC Youth Forum

O Youth Forum of the Economic and Social Council (ECOSOC) surgiu em 2012 como uma plataforma onde jovens contribuem com o debate de políticas das Nações Unidas, discutindo ideias coletivas, inovações e soluções. Representantes de organizações focadas na juventude se reúnem anualmente na sede da ONU em Nova York, onde dialogam com representantes dos Estados Membros da Organização e com delegações de jovens de outros países para explorar formas de promover a participação e desenvolvimento da juventude global e em seus respectivos países. Este ano, o encontro traz um enfoque especial nas desigualdades causadas pela globalização, em um momento em que o mundo se encontra em um momento histórico crítico: Jovens foram desproporcionalmente impactados pela crescente desigualdade trazida pela inovação tecnológica exponencial - em que os beneficiários são frequentemente os próprios inovadores e os investidores. Com a crescente digitalização da economia, a demanda por trabalhadores altamente competentes vai continuar a aumentar, às custas de trabalhadores com menos educação e formação. Enquanto mais trabalhos se perdem em troca da automação e salários estagnam ou diminuem, a expectativa é que cresça a reação contra a globalização. A tendência ao nacionalismo e isolamento, que vem crescendo amplamente, deve se fortalecer em resposta à concorrência e mercado global. (ECOSOC Youth Forum, 2017, p. 1. Tradução da autora)

A partir dessa reflexão, o Fórum da Juventude deste ano trouxe como ponto central encontrar caminhos para que a globalização atue em favor de todos através da implementação da Agenda 2030. Os resultados alcançados nesse encontro serão levados ao Highlevel Political Forum (HLPF), em julho de 2017, sob o tema “Erradicando a pobreza e promovendo prosperidade em um mundo em transformação”. Sete dos dezessete Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 foram revisados na conferência: (1) Erradicar a pobreza em todas as suas formas e em todo lugar; (2) Erradicar a fome, atingir segurança alimentar, melhorar a nutrição e promover uma agricultura sustentável; (3) Garantir uma vida saudável e promover o bem estar para todos de todas as idade; (5) Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as meninas e mulheres; (9) Construir infraestrutura resiliente, promover uma industrialização inclusiva e sustentável e a inovação; (14) Conservar e usar de maneira sustentável os oceanos, mares e recursos marinhos para um desenvolvimento sustentável; e (17) Fortalecer os meios de implementação e revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável. Embora a programação do ECOSOC Youth Forum tenha sido marcada por painéis de discussão entre representantes dos Estados-Membros e embaixadores da juventude da


ONU - ou seja, deixando às delegações jovens o papel de espectadores - pudemos identificar momentos em que a fala das juventudes foi ponto central do planejamento: as Breakout Sessions, organizadas no formato de ignite talks, mesas redondas e compartilhamento de experiências. Nesses momentos, a contextualização do ODS em pauta foi realizada por membros oficiais, seguida por debates em que mediadores recolheram recomendações da população jovem para o alcance de determinado objetivo. Os eventos paralelos exigiram que cada participante optasse pelas temáticas que lhe despertassem mais interesse ou com as quais possuísse experiência mais extensa; por outro lado, essa flexibilidade na participação gerou um choque produtivo entre perspectivas de países em diferentes patamares de desenvolvimento - por exemplo, ao se tratar da inserção de jovens no mercado de trabalho, observamos duas vertentes fortes: países europeus e norte-americanos defendendo a fomento ao empreendedorismo e a capacitação dos jovens em relação não só ao conhecimento técnico, mas às habilidades socioemocionais; enquanto países africanos e latinoamericanos focaram a discussão na educação e inclusão da juventude vulnerável, com menos recursos sociais e econômicos. Por fim, ficou clara a intenção de desenvolver protagonismo entre juventudes globais; entretanto, os espaços de fala foram limitados para atender aos interesses da Organização (jovens não puderam contribuir espontaneamente durante outros painéis) e sua influência na tomada de decisões ainda não está clara. Se, a nível individual, o ECOSOC Youth Forum 2017 foi enriquecedor e inspirador para os jovens presentes, no longo prazo, suas ações multiplicadoras precisarão ser acompanhadas. Portanto, o que se sobressai é que o protagonismo juvenil está presente, sim, mas ainda de maneira tímida e bastante simbólica.

Bibliografia ECOSOC YOUTH FORUM. Concept Note: The role of youth in poverty eradication and promoting prosperity in a changing world. ECOSOC: 2017.

FERRETI, C; TARTUCE, G; ZIBAS, D. Micropolítica escolar e estratégias para o desenvolvimento do protagonismo juvenil. Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas, 2004. SOFIATI, F. M. A juventude no Brasil: história e organização. Paris: APEB-Fr, 2008.

Artigos dos delegados

ESCÁMEZ, J.; GIL, R. O Protagonismo na educação. Porto Alegre: Artmed, 2003.

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SOUZA, R. Protagonismo juvenil: o discurso da juventude sem voz. São Paulo: USP, 2009. UNFPA. O poder de 1,8 bilhão - Adolescentes, jovens e a transformação do mundo. In: Situação da População Mundial. 2014.


A Flexibilização da Legislação Brasileira sobre Vendas de Terras Agricultáveis a Estrangeiros e os Interesses Chineses: Uma análise crítica sobre IEDs agrícolas Clara Soares Nogueira1 Delegada para o OECD Forum

Resumo

O presente artigo tem como objetivo problematizar a compra de terras brasileiras pela China no contexto de propostas de reformas legislativas que visam a flexibilizar os parâmetros legais de aquisição de terrenos rurais por estrangeiros, favorecendo a atração desse tipo de investimento direto estrangeiro (IED). Para tanto, foram utilizados como recursos de pesquisa, relatórios sobre IEDs agrícolas produzidos pela OCDE, pelo Banco Mundial, pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e pela Organização das Nações Unidas (ONU), bem como a plataforma de banco de dados GRAIN. A partir de tais recursos, são apontados pontos de reflexão crítica sobre os limites da adoção de um modelo de atração de IEDs pautado na revisão de legislação interna de caráter regulatório.

1. Introdução

Até 2012, pouco se falava em flexibilizar os parâmetros legais para a venda de terrenos rurais a estrangeiros, no Brasil. O modelo econômico então adotado pelo país caracterizava-se por um maior protecionismo pautado no princípio da soberania econômica nacional2 face aos interesses do capital estrangeiro3, sobretudo no que referia à exploração de recursos energéticos e do potencial de produção agrícola brasileiros4. A partir de 2012, contudo, passou-se a rediscutir os marcos regulatórios legais brasileiros em face de tais investimentos, com a proposição de um Projeto de Lei de iniciativa da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados5. O projeto visava a substituir o regime de aquisição de imóveis

Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Membro do Núcleo de Competições Internacionais da Faculdade de Direito da UFBA – Subnúcleo de Direitos Humanos. 2 Princípio consagrado pelo art. 172 da Constituição Federal Brasileira de 1988. 3 Vide §§ 131 e 133 do Parecer nº LA-01 da Advocacia Geral da União. Disponível em: <http://www.agu.gov.br/atos/ detalhe/258351>. Acesso em: 04/06/2017. 4 Ibidem, §2º. 5 Projeto de Lei nº4059/2012. Disponível na internet na íntegra em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/ prop_mostrarintegra;jsessionid=5E5500BDB6410F294C2648F569523EA2.proposicoesWebExterno1?codteor=1001 609&filename=PL+4059/2012. Acesso em: 04/06/2017. 1


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rurais por estrangeiros estabelecido na Lei nº 5709 de 1971, vigente há 40 anos, ampliando os limites e flexibilizando restrições. O interesse do governo brasileiro em rever sua legislação sobre venda de terras rurais a estrangeiros6 é reflexo direto de um novo modelo econômico de atração de IEDs (FARIELLO; ALENCASTRO; BORGES, 2016), que vem sendo implementado desde meados de 2016. Nesse contexto, também a flexibilização da regulamentação da venda de terras agrícolas a estrangeiros passou a receber apoio declarado do Poder Executivo (PORTO, 2016). Ademais, há forte tendência, no cenário macroeconômico mundial, de aquisição de terras agricultáveis como modalidade de IED, com diversos países investindo na compra de terrenos rurais para fins de produção agrícola que auxilie no atendimento às suas próprias demandas internas de mercado (NAKATANI et al., 2014). É o caso da China, atualmente o maior investidor em aquisições no Brasil, com destaque para o setor de agricultura e para a compra de terra cultiváveis (WATANABE; TAIAR, 2017). Tal tema, como se verá mais adiante neste artigo, tem sido objeto de discussão no âmbito da OCDE e demais organizações internacionais e apresenta desafios aos países receptores de tais investimentos, que devem ponderar entre seus interesses nacionais, de natureza não só econômica como também política e social, e os interesses comerciais estrangeiros. Isso porque a adoção de um modelo de incentivo ao IED no setor do agronegócio é, por vezes, sinônimo de risco ao meio-ambiente e aos direitos de povos e culturas tradicionais (CALEGARI; RODRIGUES; GOMES, 2017). Apesar de não ousar apresentar uma proposta de solução aos mencionados desafios, o presente artigo identifica os principais pontos de discussão e problematização da temática, bem como aponta a relação entre parâmetros jurídicos, políticos e econômicos existentes.

2. O Crescimento de IEDs Agrícolas no Brasil e no Mundo

Segundo dados divulgados pelo Banco Mundial em 2011, no Relatório intitulado Rising Global Interest in Farmland, aproximadamente 56 mil hectares de terras agrícolas foram objetos de negócios, somente no ano de 2009, com 70% das transferências de terras de Estados a investidores estrangeiros tendo ocorrido em países africanos, como Etiópia, Sudão e Moçambique (DEININGER; BYERLEE, 2011). O crescimento do interesse privado estrangeiro na aquisição de terras rurais como forma de investimento direto, ou seja, IED agrícola (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES

Aqui deve-se entender pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras, bem como, para fins deste artigo – e em observância ao Parecer nº LA-01 da Advocacia Geral da União, empresas brasileiras de capital majoritariamente estrangeiro. 6


UNIDAS PARA ALIMENTAÇÃO E AGRICULTURA [FAO], 2014), focado majoritariamente em países em desenvolvimento, foi objeto de painel apresentado na OCDE, em 2009, no VIII Global Forum on International Investment (HALLAM, 2009). Na ocasião, o então Diretor da Divisão de Comércio e Mercados da FAO David Hallam apontou que o aumento dos investimentos estrangeiros em terras agricultáveis estava diretamente ligado à insuficiência da capacidade produtiva, por parte de alguns países, frente às suas próprias demandas internas de alimentos, como estratégia de segurança alimentar. Outro dado mencionado pelo palestrante apontou que os investimentos de larga-escala em térreas rurais7 na África, no espaço de tempo de três anos, somaram 20 milhões de hectares - agora sob propriedade do capital estrangeiro - e que China, Coréia do Sul e países do Golfo Pérsico8 se destacam como os maiores investidores em terras agricultáveis (HALLAM, 2009). Também já anunciava-se, em 2009 – quase dez anos atrás – a preocupação com os parâmetros nos quais se dariam tais investimentos e com os possíveis impactos adversos, de natureza política, econômica, social e ambiental, que IEDs agrícolas de larga escala teriam nos Estados receptores (FAO, 2014). A raiz de tais preocupações está nos interesses a longo prazo por detrás de movimentos de IED agrícola realizados por países como a China e a Coréia do Sul (GTZ, 2009). Isso pois, diferentemente da África Subsaariana e da América do Sul, a previsão futura para tais países é de diminuição drástica da área cultivável até 2050 (GTZ, 2009). Tal dado somente reafirma a intenção estrangeira mencionada por David Hallam, em 2009, de comprar para produzir para fins de continuar a suprir – e melhor suprir – a sua demanda interna futura – o que muitas vezes ocorre em prejuízo, ainda que somente verificável a longo prazo, da demanda de mercado do país receptor do investimento.

3. Os IEDs Agrícolas Chineses no Brasil

Não se pode negar que a aquisição de terras cultiváveis no Brasil pelos chineses (ANDERLINI, 2008), à exemplo do ocorrido em países africanos (cf DIJK, 2016) , tem

O termo “large-scale land investment” refere-se a aquisições de terras rurais em número superior a 10.000 hectares e, em alguns casos, mesmo superior a 500 mil hectares. 8 Composto por Bahrein, Iraque, Kwait, Omã, Qatar, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos. 7

Artigos dos delegados

O interesse econômico chinês no Brasil nunca foi tão evidente: no início deste ano o país divulgou a intenção de realizar investimentos na ordem de 20 bilhões de dólares na compra de ativos brasileiros – 60% a mais do que em 2016. Os dados são da Câmara de Comércio Brasil-China e indicam interesses de empresas de diversos setores (ESTADÃO CONTEÚDO, 2017). No setor da agricultura e, em específico, da aquisição de terras em larga-escala a tendência é semelhante, de crescimento centrado na cultura de soja e nas regiões Centro-Oeste e Nordeste do país.

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como uma de suas motivações a intenção chinesa de assegurar o seu abastecimento agrícola e energético por meio de investimentos diretos em países que apresentam abundância de recursos naturais (ANDERLINI, 2008) Tais motivos são mais comuns a empresas chinesas estatais, inclusive, cuja lógica de mercado pauta-se no atendimento aos interesses nacionais ligados a políticas de estratégia de segurança alimentar (WANG; FARIA; CARVALHO, 2013). Como informa pesquisa realizada em 2015 pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, a necessidade chinesa de suplementar a sua produção interna agrícola com investimentos externos é urgente, sobretudo no caso da soja. A pesquisa indicou ainda que a projeção do volume futuro de importações chinesas de soja – para atender à demanda interna - é de 83 milhões em 2024 - 20 milhões a mais do que o total de importações havidos nos anos de 2013 e 2014, afirmando que isso teria levado o Ministério de Agricultura do país a estimular IEDs no setor (MYERS; JIE, 2015). É importante, contudo, desconstruir percepções equivocadas sobre os IEDs agrícolas chineses e bem compreender as mudanças ocorridas na dinâmica de tais investimentos nos últimos anos. Ainda de acordo com a pesquisa supramencionada, realizada pelo BID, dentro do universo total de investimentos externos diretos chineses no setor da agricultura, IEDs com fins de cultivo (farming) ainda são pouco expressivos. A pesquisa pontua que o interesse chinês na aquisição de terras vai além da intenção de plantio enquanto estratégia de segurança alimentar, perpassando investimentos em infraestrutura e serviços agrícolas (MYERS; JIE, 2015). Assim, percebe-se que, entre 2008 e 2015, talvez em decorrência de repercussões negativas no cenário internacional acerca da aquisição de terras pela China – que chegou a ser chamada de land-grabbing e de manobra neo-colonialista nos meios acadêmico, político e midiático – surgiu um movimento de diversificação dos IEDs chineses no setor agrícola (MYERS; JIE, 2015). De acordo com a plataforma de dados GRAIN, a China ainda mantém políticas oficiais de IEDs agrícolas com fins de cultivo como parte de sua estratégia de segurança alimentar, mas também investe na infraestrutura de transporte de grãos e outras commodities (GRAIN, 2016). IEDs agrícolas chineses para fins de produção agrícola, portanto, continuam a compor a agenda econômica chinesa. Dados do ano de 2016 que indicam que empresas chinesas como a estatal chinesa COFCO Corporation, por meio de empresa subsidiária na qual detém 60% das ações, adquiriu 145 mil hectares de plantações de cana-de-açúcar, localizados no Centro-Oeste brasileiro. Os dados também apontam a negociação, em andamento, da compra de 200 mil hectares de terras brasileiras, para o cultivo de soja e algodão, pelo grupo Shangai Pengxin Group Co, uma empresa privada de origem chinesa (GRAIN, 2016).


Nesse mesmo contexto, a Chongqing Grain Group Corporation, empresa estatal chinesa, divulgou, em 2010, intenções de investir cerca de 300 milhões de dólares na aquisição de 100 mil hectares de terra para fins de cultivo de soja na região oeste do estado da Bahia (TREVISAN, 2010). Os dados mais recentes sobre tal investimento, contudo, apontam que este foi realizado por meio da criação de empresa subsidiária brasileira, chamada Universo Verde, e que o projeto agrícola, em que pese já tenha área demarcada, ainda não foi iniciado, devido a questões burocráticas (STAUFFER, 2014). Esse é um caso prático que ilustra alguns dos pontos problemáticos dos investimentos chineses em terras brasileiras, cuja solução não necessariamente perpassa por uma reforma legislativa que vise a flexibilizar o controle do Estado brasileiro sobre a venda e o uso de suas terras. Há, em verdade, uma - apenas aparente - colisão de interesses: enquanto, de um lado, tem-se representantes comerciais chineses reclamando da burocracia e do rígido tratamento legal brasileiro na compra de terras por estrangeiros (WANG; FARIA; CARVALHO, 2013); do outro, tem-se um aparato legal de controle de tais negócios construído com base no princípio constitucional da soberania econômica nacional e uma desconfiança quanto às implicações ambientais e sociais de tais negócios. Enquanto isso, na realidade, há investimentos chineses sendo feitos através de empresas “laranjas” de outros países, a exemplo da Argentina, e a rediscussão dos parâmetros jurídicos de vendas de terras agricultáveis no Brasil provocada pelos interesses de membros dos Poderes Executivo e Legislativo em flexibilizar, ou “desburocratizar” a regulamentação atualmente existente.

4. A Legislação Brasileira Sobre Aquisição de Terras Por Estrangeiros

Foi pelo receio de que empresas estrangeiras adquirissem grandes lotes de terras rurais no país com a finalidade de produção agrícola para contemplar a demanda de alimentos nos seus mercados internos em detrimento do mercado brasileiro (FARIELLO, 2016), que o Brasil erigiu restrições legais e buscou regular negócios de tal natureza.

Antes de compreender as propostas de mudanças legislativas e regulatórias mais recentes, contudo, é importante adquirir uma noção geral da legislação brasileira sobre o assunto. A lei que regula a aquisição de imóveis rurais por pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras é a Lei nº 5709, de 1971. A legislação estabelece 3 limites centrais: (i) o número

Artigos dos delegados

Nos últimos anos, contudo, com o aumento de IEDs agrícolas no país e com as mudanças político-estruturais ocorridas, houve a passagem de um modelo que buscava revisar e enrijecer os marcos regulatórios e os controles sobre aquisições de terras por estrangeiros para um modelo que tenda a estimulá-las, modificando a legislação atualmente vigente.

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máximo de 50 módulos de exploração indefinida (MEI)9 para aquisição ou arrendamento; (ii) a circunscrição da propriedade estrangeira, por município, de até 25% do total do território municipal e (iii) a restrição de uma mesma nacionalidade estrangeira à propriedade de, no máximo, 10% da área de um determinado município10. Ademais, no Brasil, cabe ao INCRA, diretamente, o controle da aquisição de terras por estrangeiros, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas. Há, em verdade, dois obstáculos institucionais – que funcionam como instrumentos de controle – que devem ser enfrentados por investidores estrangeiros que desejam adquirir terras no Brasil: o INCRA, de quem se deve obter autorização para tal e o Conselho de Defesa Nacional, de quem a lei requer assentimento prévio. Esses são os parâmetros legais atualmente vigentes no país e toda e qualquer aquisição – seja feita por empresa estrangeira ou empresa brasileira de capital majoritariamente estrangeiro – deve obedecê-los. É interessante pontuar que, durante muito tempo, travou-se discussão jurídica sobre a constitucionalidade do §1º do art. 1º da Lei n. 5709/71, que equipara, para fins de seus efeitos legais, pessoas jurídicas brasileiras cujo capital social majoritário pertença a pessoas estrangeiras, físicas ou jurídicas, a empresas estrangeiras. A discussão em si foge ao objetivo deste artigo, mas é importante compreender que, em razão dela, travou-se discussão muito maior: a do modelo econômico de IEDs agrícolas a ser adotado pelo país. Em 2010, o Poder Executivo brasileiro aprovou o Parecer nº LA-01 da Advocacia Geral da União (AGU) que, reafirmando o conteúdo de outros dois pareceres previamente emitidos11, defendia a constitucionalidade do §1º do art. 1º da Lei n. 5709/71, pautada no princípio da soberania econômica nacional12 (SILVA, 2012). O parecer, inclusive, foi claro ao entender a aquisição de terrenos rurais como investimento de capital estrangeiro, para fins legais13. Atualmente, contudo, o supramencionado parecer é objeto de duas ações no âmbito do Supremo Tribunal Federal. A discussão sobre a continuidade da sua vigência e sua compatibilidade constitucional é também a discussão sobre duas visões político-econômicas distintas sobre IEDs agrícolas.

De um lado da moeda, tem-se um modelo que defende IEDs agrícolas sob o ar-

Área entre 5 e 100 hectares. Lei n. 5709/1971, artigos 3º, Art. 12, caput e §1º, respectivamente. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5709.htm. 11 Parecer GQ-181, de 1998 e o Parecer GQ-22, de 1994, ambos da AGU. 12 Art. 172 da Constituição Federal Brasileira de 1988. 13 Parecer nº LA-01 da Advocacia Geral da União (AGU), §§ 134, 135 e 136. Disponível em: http://www.agu.gov.br/ atos/detalhe/258351. 9

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gumento de que estas trarão aumento de empregos, fortalecimento de infraestrutura e intercâmbio de tecnologia. Do outro, tem-se um modelo que é precavido quanto a tais aquisições de terras cultiváveis, pois antevêem passivos ambientais e culturais, como a exploração de recursos hídricos e energéticos nacionais e a perda de terra – e de espaço no mercado – de pequenos e médios produtores rurais (RACHED, 2017). Como fruto da mudança contextual e do modelo atual de atração de investimentos previamente mencionados, a moldura legal brasileira sobre aquisição de imóveis rurais é, hoje, objeto de iniciativas de revisão da parte dos poderes Executivo e Legislativo brasileiros. Em 2007, o deputado federal Beto Faro introduziu no Congresso Brasileiro o Projeto de Lei nº 2289/2007, que propunha a flexibilização dos critérios e amplia limites territoriais na aquisição e utilização de áreas rurais por pessoas físicas e jurídicas estrangeiras. Desde 2012, tal projeto passou a tramitar tendo em apenso o Projeto de Lei n. 4059/2012, de conteúdo semelhante. Mais recentemente, o governo brasileiro chegou a divulgar que estaria estudando e elaborando Medida Provisória (MP) para regulamentar a venda de terras para estrangeiros. A hipótese de MP, contudo, foi posteriormente descartada pelo governo com a notícia de que seria apresentado ao Congresso Nacional novo texto legal para substituir os projetos de lei já existentes sobre a matéria (AGÊNCIA ESTADO, 2017).

Percebe-se, assim, que há pressão política para a facilitação de IEDs agrícolas, ou seja, de uma moldura legal que seja mais atrativa para investidores estrangeiros. Como freios a tal pressão, há, por um lado, a discussão jurídica sobre a própria constitucionalidade de mudanças legislativas que alterem os limites de aquisição de terras brasileiras por empresas estrangeiras e, por outro, as preocupações com os reflexos que tais aquisições poderiam vir a ter sobre o meio-ambiente, populações indígenas tradicionais e pequenos e médios produtores agrícolas brasileiros. Como mencionado, o presente artigo não visa a propor soluções ao debate, mas tão somente apresentá-lo e pontuar os principais interesses em jogo. Contudo, por estímulo das leituras realizadas sobre a temática, que demonstraram, por vezes, confusões entre as acepções técnicas e políticas de conceitos centrais para o debate, julga-se interessante

Artigos dos delegados

Em que pese ainda não haja acesso direto à íntegra do novo texto que substituirá as iniciativas existentes, por meio da análise de comentários de deputados e senadores por ele responsáveis, publicados na mídia, é possível vislumbrar as seguintes propostas de modificações: (i) aumento do limite geral de aquisição para 100 mil hectares; (ii) inserção de cláusula de exceção para empresas brasileiras controlados majoritariamente por capital estrangeiro, para adquirir área maior; (iii) aumento do limite máximo de aquisição de terras por grupos empresariais de um mesmo país, num mesmo município, de 10% para 40% (AGÊNCIA ESTADO, 2017; ZAIA, 2017).

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propor uma reflexão ao leitor. Mecanismos burocráticos, entendidos enquanto sistemas de organização para a execução de tarefas públicas, funcionam como mecanismos de controle do interesse público e não devem ser confundidos, seja na retórica política ou acadêmica, com a conotação pejorativa que lhe é atribuída coloquialmente, de ineficácia ou “engessamento” da máquina pública.

5. Limites da Revisão de Legislação Interna Sobre a Venda e o Uso de Recursos Naturais como Política de Atração de IEDs

A OCDE (2003) já reconheceu em relatório que mudanças na legislação interna constituem um recurso de países para adquirir vantagem no contexto de competição na atração de IED para seus territórios. Ademais, no documento Fostering Investment in Infrastructure – Lessons learned from OECD Investment Policy Reviews, de janeiro de 2015, a organização se refere às dificuldades por vezes enfrentadas por investidores estrangeiros na aquisição de terras. O documento menciona dois exemplos práticos: o de Myanmar e o da Zâmbia. No primeiro, investidores estrangeiros que desejam adquirir terras geralmente assim o fazem por meio de joint-ventures criadas em parceria com empresas nacionais locais que já possuem autorização para sublocar e utilizar terras do governo. No caso da Zâmbia, novos procedimentos de aplicação e registro de títulos de propriedade de imóveis tem sido implementados, em parceria com as autoridades legislativas locais (OCDE, 2015) Em que pese seja reconhecida enquanto medida política interna de atração de investimentos, a alteração legislativa de marcos regulatórios referentes, especificamente, à aquisição para plantio de terras por investidores estrangeiros, tem suscitado preocupações por parte de diversas organizações internacionais. O Comitê de Segurança Alimentar Mundial da FAO, por exemplo, publicou, em 2012, o documento “Diretrizes Voluntárias sobre a Governança Responsável de Posse da Terra, Recursos Pesqueiros e Florestais em um Contexto de Segurança Alimentar Nacional”, que intenta auxiliar governos a protegerem seus recursos naturais em face do interesse do capital estrangeiro. O documento traz, ainda, provisões acerca do dever estatal de proteção ao produtor agrícola de pequena escala, em razão de sua importância para a segurança alimentar, a nutrição, a erradicação da pobreza e a possibilidade de recuperação ambiental no âmbito nacional. Existem, portanto, parâmetros sendo discutidos perante a comunidade internacional, em prol do atingimento de um equilíbrio entre IEDs no setor agrícola e interesses nacionais para com as populações dos Estados receptores. Contudo, a exemplo do documento supramencionado, tais diretrizes não possuem caráter obrigatório, cabendo, ao fim, às forças políticas e sociais de cada país a tomada de decisões sobre o uso de suas terras sem prejuízo dos interesses da sua própria população – beneficiária por excelência da recuperação e dos avanços econômicos decorrentes de tais investimentos.


6. Considerações Finais

Investimentos diretos estrangeiros (IEDs) agrícolas têm sido objeto de discussão no cenário econômico brasileiro, no contexto das propostas de mudanças na legislação nacional acerca de venda de terras agricultáveis. Existem argumentos favoráveis e contrários à flexibilização dos parâmetros existentes de aquisição de imóveis rurais, que correspondem a visões distintas sobre o modelo econômico a ser adotado pelo país. Ao longo do artigo, demonstrou-se que enquanto há, de um lado, preocupações referentes à sociedade civil e ao meio-ambiente que devem ser consideradas – para que não se mitigue os parâmetros de proteção social e ambiental existentes – há também uma tendência macroeconômica crescente, a nível global, de investimentos dessa natureza. Problematizar a venda de terras a estrangeiros dentro do Brasil, compreendendo os possíveis argumentos e os pontos de conflito é um primeiro passo para se chegar à uma equação econômica e jurídica que equilibre interesses nacionais – não somente políticos e econômicos, mas sociais, ambientais e jurídicos - e estrangeiros.

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Os Programas de Eficiência Energética Brasileiros – Reinventando o Paradigma para um desenvolvimento sustentável Livia Picchi Delegada para o Vienna Energy Forum

Resumo

O presente artigo tem como objetivo realizar breve panorama sobre as iniciativas em eficiência energética mundiais após a primeira crise do petróleo no ano de 1973 e os programas similares que surgiram no Brasil nos anos 80, também em decorrência da crise de suprimentos energéticos e que se desenvolveu ao longo das décadas transformando-se em sólidos Programas de Eficiência Energética a nível nacional. Por fim será feita uma análise dos objetivos pautados pela ONU em relação à energia eficiente, discorrendo sobre a necessidade de criação de metas futuras, de revisão das metas e legislações estabelecidas, assim como um reforço da cooperação internacional para a realização de pesquisas e tecnologias de energia renovável, eficientes energeticamente, vislumbrando o desenvolvimento sustentável global. Palavras-chave: Eficiência Energética; Desenvolvimento Sustentável; Brasil

1. Panorama dos programas de Eficiência Energética no Mundo

A partir do ano de 1973 com a primeira crise do petróleo, a preocupação com a crise de suprimentos energéticos fez com que os países industrializados se organizassem formando a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE) e começassem a readequar suas estratégias e levantar fundos para investirem em fontes renováveis de energia. As políticas econômicas praticadas no mundo passaram a buscar cada vez mais formas de desenvolvimento sustentável que não deixassem de atender às demandas da época mas que também não comprometessem as gerações futuras. Uma política que vise ao desenvolvimento sustentável pressupõe o uso eficiente dos recursos energéticos, a chamada, eficiência energética, que será o tema do presente artigo. As iniciativas em eficiência energética dos países desenvolvidos foram referências importantes para o delineamento de programas similares que surgiram, por exemplo, no Brasil no ano de 1980, como consequência da crise de suprimentos energéticos. Na década de 80 a queima de combustíveis fósseis começou a ganhar cada vez mais espaço na agenda internacional no contexto do debate sobre a variação climática do mundo e, a partir disso,


tornou-se tema de discussão global, que resultou no Protocolo de Kyoto em 1997. Este foi um momento importante de discussão e pactuação que resultou em um acordo internacional onde os países signatários estabeleceram compromissos e metas mais rígidas para a redução da emissão de CO2, o qual é apontado como um dos principais fatores responsáveis pelo efeito estufa. Para atingir essa redução, tornou-se imperativa a criação de mecanismos que estimulassem a eficiência em toda cadeia energética. A partir disso, principalmente os países desenvolvidos colocaram em prática ações voltadas a atingir os objetivos propostos pelo Protocolo de Kyoto.

No Reino Unido foi criado o Energy Saving Trust (EST), recebendo uma dotação orçamentária do Ministério do Meio Ambiente, Transportes e das Regiões (cerca de US$ 31 milhões para o período 1998-99), assim como um fundo proveniente da cobrança compulsória de 1 libra por ano do consumidor de energia elétrica, que resulta em aproximadamente US$ 40 milhões por ano, estipulada pelo Office of Eletricity Regulation, órgão regulador do setor elétrico naquele país (RIBEIRO, 2005, p.6)

O Reino Unido também focou na conscientização da população e no gerenciamento de Programas do Departamento de Meio Ambiente e do programa Electricity (Standards of Performance), já a França teve como áreas prioritárias a gestão de resíduos, de poluição do ar o aprimoramento da matriz energética limpa. Outros países da Europa seguiram Caminhos similares, incluindo a criação de agências públicas ligadas a questão da eficiência energética: Em outros países da Europa, foram criadas agências públicas de eficiência energética, tais como: ADEME (França), NOVEM (Holanda), STEM (Suécia) e IDAE (Espanha), também encarregadas da proteção ambiental e desenvolvimento de energias renováveis. Foram criados departamentos de administração de energia encarregados de eficiência energética na Dinamarca (DEA), na França (SERURE) e no Reino Unido (EFEO) (RIBEIRO, 2005, p.6)

No Canadá e nos EUA foram criados programas com objetivo de colocar em prática as ações obtidas através do Protocolo de Kyoto. Os EUA, através do “Energy Efficiency and Renewable Energy Network”, estimulou a exploração de fontes renováveis e a competitividade econômica como forma de baixar custos e proteger o meio ambiente, tendo como foco as concessionárias de energia, a indústria e os setores de transporte e da construção civil e os Programas de Etiquetagem e Padronização de Equipamentos. Já o Canadá estabeleceu em 1992 padrões mínimos e selos de eficiência energética.

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38 Energy Efficiency Act – 1992 Essa legislação estabelece padrões mínimos de eficiência energética para determinados produtos, especificando a responsabilidade dos vendedores desses produtos. Estabelece ainda os selos de eficiência para esses equipamentos. Energy Efficiency Regulations de 1994, insere novos padrões mínimos de eficiência energética. No Canadá não é permitido o uso de equipamentos ineficientes. Certificação / Etiquetagem – obrigatoriedade de selos de eficiência energética para todos os equipamentos eletroeletrônicos. (MENKES, 2004, p. 151)

2. Programas Nacionais de Eficiência Energética

Após as duas crises do petróleo observa-se a proliferação em vários países de programas de substituição de derivados de petróleo, bem como programas voltados para a questão de eficiência energética. No Brasil não foi diferente, seguindo padrões que já estavam sendo delineados pelos países industrializados, o país começou internamente o “Programa de Mobilização Energética”.

O governo brasileiro passou a focalizar a questão do óleo combustível consumido na indústria com aumentos de preço a partir de 1980, além de um corte de 10% e 5%, respectivamente, e implantação de um sistema de controle de abastecimento por meios e cotas de combustíveis ate o ano de 1983. (MARTINS et,al. 1999, p.187)

Em 1981, por exemplo, foi lançado o Programa CONSERVE, criado no âmbito do Ministério da Indústria e Comércio, através da Portaria MIC/GM46. Este programa “constituiu-se no primeiro esforço de peso em termos de conservação de energia no Brasil” (RIBEIRO, 2005, p.8). Ao longo da década de 80 diversos problemas ganharam visibilidade, cresceram as preocupações com o meio ambiente e com a crescente utilização da eletricidade para fins térmicos no setor industrial, que acabou resultando em pressões na capacidade de oferta do setor, o qual já enfrentava crises financeiras. A partir disto, houve um aumento nos questionamentos sobre desperdício de energia, o que resultou na década de 80 em diversos programas nacionais sobre eficiência energética, tais como: o Programa Brasileiro de Etiquetagem criado em 1984, o Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica (PROCEL) criado em 1985, o Programa Nacional de Conservação de Petróleo e Derivados criado em 1991, e a Lei nº 10.295/2001 que institui a Politica Nacional de Conservação e Uso Racional de Energia. A partir de 1998 foi estabelecida a obrigatoriedade de investimentos em programas de conservação pelas concessionárias de energia elétrica, a qual foi ratificada pela Lei 9.991de 2000, na qual é estabelecido que:


As concessionárias e permissionárias de serviços públicos de distribuição de energia elétrica ficam obrigadas a aplicar, anualmente, o montante de, no mínimo, setenta e cinco centésimos por cento de sua receita operacional líquida em pesquisa e desenvolvimento do setor elétrico e, no mínimo, vinte e cinco centésimos por cento em programas de eficiência energética no uso final, observado o seguinte: I - até 31 de dezembro de 2010, os percentuais mínimos definidos no caput deste artigo serão de 0,50% (cinquenta centésimos por cento), tanto para pesquisa e desenvolvimento como para programas de eficiência energética na oferta e no uso final da energia (Lei 9.991/00)

Assim, fica estabelecido a partir do ano 2000 que as distribuidoras e permissionárias de serviços públicos de energia elétrica são obrigadas a aplicar um percentual mínimo estabelecido em lei em projetos de eficiência energética e em pesquisa e desenvolvimento, supervisionado pela ANNEL1 (Lei nº 9.427/96).

Outro método é a eficiência na geração, na transmissão e na distribuição através de práticas e da inserção de tecnologias que estimulem a eficiência em toda a cadeia energética. Um exemplo disso é a cogeração e turbinas de queima de gás natural, entre outras tecnologias que são capazes de disponibilizar maior quantidade de energia em menor tempo e em locais já existentes. E por fim, e não menos importante, a eficiência no uso final, através de tecnologias e práticas que visem estimular a eficiência energética no consumidor final, com tecnologias que propiciem a conservação e o melhor uso da energia, como geradores de energia solar, aparelhos de controle de consumo de energia, etiquetagem de eletrodomésticos ou até mesmo nos programas implementados de conscientização das pessoas em relação a necessidade de racionalização no uso desta energia elétrica, mostrando as vantagens do uso eficiente de energia e na concessão de incentivos financeiros para produtos, equipamentos e serviços que possibilitem melhorias na eficiência energética. O Programa de Eficiência Energética de Distribuidoras (PEE), como exposto, tem como origem esses contratos celebrados com as concessionárias de distribuição, o qual ganhou maior alcance com a Lei 9.991, de 24 de Julho de 2000. O PEE é uma importante fonte de recursos estabelecida a partir do século XXI para a eficiência energética, mas que

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A eficiência energética pode ser entendida como um conjunto de práticas e políticas que reduzem o custo com energia e/ou aumente a quantidade de energia oferecida, mas sem alterar a quantidade gerada, ou seja, corresponde à implantação de medidas que culminem na redução da energia necessária para atender às demandas da sociedade por serviços de energia. A eficiência energética pode ser alcançada por meio de, por exemplo: - um planejamento integrado dos recursos, de práticas que subsidiem os planejadores e reguladores de energia ou que levem em conta os custos e benefícios tanto da oferta, da geração, da distribuição e da demanda, isto é, no consumo final. O intuito é fazer com que esta energia utilizada pelo sistema proporcione o menor custo financeiro e o menor impacto ambiental possível.

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pode ter suas metas e objetivos afetados futuramente se não for retomado como pauta de discussão a nível internacional e nacional.

Comparando os montantes de investimentos realizados nos programas de eficiência energética no setor elétrico nos últimos anos, percebe-se que o Programa de Eficiência Energética de Distribuidoras (PEE) é a principal fonte dos recursos para eficiência energética no País, com investimentos anuais da ordem de R$ 500 milhões. Entretanto, com a redução de 0,5% para 0,25% do montante das receitas das distribuidoras a ser aplicado em programas de eficiência energética, a partir de 1º de janeiro de 2016, o PEE perderá metade de seus recursos, o que certamente afetará significativamente os resultados obtidos (NASCIMENTO, 2015, p.23)

3. Conclusão

Torna-se claro que o benefício de economizar energia é muito maior e menos custoso do que gerá-la, como expõem Ribeiro (2005): “Economizar um Kwh custa pelo menos 4 vezes mais barato que gerar a mesma quantidade de energia”, o que chama a atenção para o fato da necessidade de se focar em ações e programas de eficiência energética no Brasil a fora. É possível afirmar que há oportunidades de implementação de ações de eficiência energética em todas as regiões do Brasil e de acordo com as respectivas especificidades, porém ao analisar os programas de eficiência energética existentes, podemos perceber que não há uma padronização desses programas de forma uniforme. Isso ocorre porque cada concessionária pode efetuar esses programas a partir de licitações e chamadas públicas próprias e da forma que achar mais viável. É evidente a necessidade de implantação, aumento e efetividade dos programas de eficiência energética no Brasil e no mundo, em paralelo com a inserção de novas formas de geração de energia que sejam sustentáveis e não tão caras, como a energia solar ou a energia eólica. Como é pautado pela ONU, dentro dos “17 objetivos para transformar nosso mundo”, o objetivo de número 7 expõem a necessidade de assegurar o acesso confiável, sustentável, moderno e a preço acessível à energia para todas e todos: “7.1 Até 2010 assegurar o acesso universal, confiável, moderno e a preços acessíveis a serviços de energia; 7.2 Até 2030, aumentar substancialmente a participação de energias renováveis na matriz energética global; 7.3 Até 2030, dobrar a taxa global de melhoria da eficiência energética; 7.a Até 2030, reforçar a cooperação internacional para facilitar o acesso à pesquisa e tecnologias de energia limpa, incluindo energias renováveis, eficiência energética e tecnologias de combustíveis fosseis avançadas e mais limpas, e promover o investimento em infraestrutura de energia e em tecnologias de energia limpa” (Nações Unidas, 2017).


Pautado nesses objetivos para um mundo melhor proposto pela ONU, podemos concluir que a nível internacional e nacional muitos programas direcionados a eficiência energética já foram criados a partir da primeira crise de suprimentos energéticos, mas ainda há muito o que se fazer. Importantes iniciativas foram feitas primeiramente pelos países industrializados e desenhadas posteriormente no Brasil as quais tiveram como ponto de partida o Protocolo de Kyoto e as recomendações em nível internacional para um desenvolvimento sustentável. Porém, é importante salientar que assim como é pautado pela ONU, é necessária a criação de metas futuras, a revisão das metas e legislações estabelecidas, assim como o reforço da cooperação internacional para a realização de pesquisas e tecnologias de energia renovável, eficientes energeticamente e que possibilitem o investimento em infraestrutura de energia limpa a um custo acessível para todos os países. Um cenário promissor em eficiência energética só é possível através do estabelecimento de políticas públicas e legislações específicas que tenham como foco metas, prioridades e planos de ação bem delineados, não deixando de pautar como objetivo o crescimento do País, mas não deixando também de responder de forma eficaz às pressões ambientais, as crises de produção energéticas e a formas mais sustentáveis de produção, sempre tendo como horizonte metas de redução de emissões de CO2 e uma atuação cooperativa dos atores internacionais que tenham como foco o desenvolvimento sustentável global. Neste sentido, é de extrema importância a realização de fóruns e congressos internacionais sobre o tema, como o “Vienna Energy Fórum” e demais espaços para discussão e capacitação dos atores e entidades internacionais que trabalham com esses programas, e que tenham como objetivo fundamental o desenvolvimento de ações, a proposição de novas formas criativas e o compartilhamento de informações que possibilitem o alcance a nível internacional de um mundo mais sustentável e que tenha a eficiência energética como princípio na formulação de politicas públicas, legislações e tratados internacionais sobre o tema.

Bibliografia

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Como exposto anteriormente, poupar a energia no consumo torna-se muito mais barato e eficiente do que produzir e distribuir aquilo que foi mal gasto e desperdiçado, fato que corrobora com a ideia defendida de que é necessária uma padronização nacional dos programas e projetos de eficiência energética, pois o Brasil ainda é indicado pelo “Regulatory Indicators for Sustainable Energy” com 51% de efetividade em eficiência energética e 67% em energias renováveis, o que mostra um atraso com relação ao avanço da eficiência energética e da inserção de energias renováveis.

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Disponível

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UN Women: A Atuação do Programa “Women’s Leadership and Political Participation” em Países em Desenvolvimento Liz de Maria Carvalho Cosmelli de Oliveira1 Delegada para o European Development Days

1. Introdução

No início do século XX, questões de gênero ganham um caráter relevante na política internacional devido ao aumento de estupro de mulheres como arma para limpeza étnica em zonas de conflitos. Desde então, o combate à desigualdade de gêneros e violência contra as mulheres ganharam espaço na agenda de segurança se inserindo, já no século 21, em um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)2, atingindo o nível internacional ao penetrar no âmbito das organizações: Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e 169 metas anunciado hoje demonstram a escala e a ambição desta nova Agenda universal. Eles se constroem sobre o legado dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e concluirão o que estes não conseguiram alcançar. Eles buscam concretizar os direitos humanos de todos e alcançar a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres e meninas. Eles são integrados e indivisíveis, e equilibram as três dimensões do desenvolvimento sustentável: a econômica, a social e a ambiental.Os Objetivos e metas estimularão a ação para os próximos 15 anos em áreas de importância crucial para a humanidade e para o planeta. (ODS, 2015)

A Assembleia Geral das Nações Unidas, em julho de 2010 criou a ONU Mulheres, a Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres. Ao fazê-lo, os Estados-Membros da ONU deram um passo histórico para acelerar as metas da Organização em matéria de combater a desigualdade de gênero e empodera-

Mestranda na PUC-RJ. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável sucederam os Objetivos do Milênio, plano desenvolvido pela ONU no ano 2000, onde sociedade civil e governos foram convidados a olhar com atenção alguns desafios que o planeta enfrentava. Esses atores se engajaram em prol dos ODM que tinha como propostas metas a serem atingidas até o ano de 2015. 1 2


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mento feminino. A criação da ONU Mulheres surgiu como parte da agenda de reforma das Nações Unidas, reunindo recursos para maior impacto sob o Globo (ONU, 2010). A instituição conta com programas de incentivo às mudanças estruturais e culturais nos Estados frente à problemática da desigualdade de gênero. O presente trabalho fará uma análise da atuação do programa “Womens leadership and political participation” com o foco nos países em desenvolvimento. O programa pondera o comprometimento da participação e liderança feminina, nos âmbitos globais, regionais e locais. Ainda segundo a instituição: “As mulheres estão sub-representadas como eleitoras e em posições de liderança, seja em cargos eletivos, de serviços públicos, no setor privado ou na academia” (UN WOMEN, 2010). Essa discriminação é recorrente apesar da comprovação de suas habilidades como líderes e agentes de mudança, e da luta pelo direito de participar de forma igualitária na governança democrática. No que diz respeito à contemporaneidade, Malala Yousafzai, ativista paquistanesa, foi a pessoa mais nova a ser laureada com um prêmio Nobel por defender seu direito à educação desafiando o Talibã e Angela Merkel, Chefe do governo Alemão, que em meio a uma das maiores crises humanitárias do século XXI, assumiu a posição da Alemanha como maior receptor de refugiados da Europa; são alguns dos nomes de mulheres que corroboram para ilustrar os argumentos evidenciados pela instituição. Dos diversos obstáculos que as mulheres enfrentam, dois são essenciais para entender a restrição da participação da mulher na política: I) Os obstáculos estruturais, por meio de leis e instituições discriminatórias, ainda limitam as opções das mulheres de votar ou concorrer a um cargo e II) Em linhas gerais, o imaginário determina lacunas de capacidade que significam que as mulheres são menos prováveis do que homens de ter a educação, os contatos e os recursos necessários para se tornarem líderes eficazes (UN WOMEN, 2010, p.1).

Dessa forma, como mecanismo de oportunidade para igualdade é necessário que haja um nivelamento ao acesso à liderança e participação política para mulheres como um todo: (...) mulheres em todas as partes do mundo continuam a ser marginalizadas na esfera política, muitas vezes como resultado de leis discriminatórias, práticas, atitudes e estereótipos de gênero, baixos níveis de educação, falta de acesso à saúde e também pelo efeito desproporcional da pobreza nas mulheres. (ONU, Resolução, 2011, p.1).

Nesse contexto, o programa “Women’s leadership and political participation” disponibiliza treinamentos às mulheres candidatas a cargos políticos para auxiliar na construção de suas capacidades, conceder uma educação cívica e desenvolver campanhas eleitorais sensíveis à igualdade de gênero (UN WOMEN, 2010). O programa, além disso,


se empenha em conscientizar os partidos políticos, governos e outros para que cada um faça sua parte na capacitação das mulheres. Além disso, busca com outras iniciativas incentivar jovens, homens e mulheres, sem descriminalização de gênero, para seu envolvimento na defesa de implementação e estruturação de medidas sobre igualdade de gênero para políticas públicas. Como o Primeiro Ministro do Canadá pontua em seu discurso sob esse debate “it’s not about women’s issues, it’s about everyone’s issues and teaching all our kids that” (HE FOR SHE, 2016), país no qual o Congresso é composto de forma igualitária com 15 ministros e 15 ministras pela primeira vez na história do país. No cerne dessa discussão, a ONU Mulheres sustenta reformas legislativas e constitucionais como forma de garantia ao acesso equitativo das mulheres nas “esferas políticas, como eleitoras, candidatas, funcionárias eleitas e membros do serviço civil”, como é descrito na proposta do programa de liderança e participação das mulheres na política da organização. A instituição trabalha em colaboração com as equipes nacionais da ONU e com a sociedade civil sobre os programas de inserção dessa mulher na esfera política, para que as eleições defendam os direitos das mulheres, em muitos países periféricos se inclui no debate o direito de votar, e fazer campanha livre de violência eleitoral (UN MULHERES, 2010).

2. Women’s Leadership and Political Participation

A avaliação das Mulheres no âmbito dos processos políticos e eleitorais, seja como eleitoras, candidatas, representantes eleitas ou administradoras eleitorais, são significadamente sub-representadas, de acordo com os dados apresentados em uma pequena análise sobre o panorama atual da inserção na mulher na política em caráter global e as barreiras encontradas pelas as mesmas,no programa Women’s Leadership and Political Participation.

Esse pequeno aumento gradual da participação política feminina está aquém da meta aspiracional de 30% estabelecida na Declaração de Beijing e na Plataforma de Ação em 1990. Embora estes números estejam abaixo do esperado, uma lacuna de conhecimento ainda existe em uma gama de outras áreas da participação política das mulheres, incluindo como candidatas e eleitoras e, como representantes eleitas em nível local.

Artigos dos delegados

Segundo dados disponíveis no site da Instituição, Em fevereiro de 2015, apenas 22 por cento de todos os deputados nacionais eram mulheres e 15,8 por cento de todos os representantes parlamentares eram mulheres. Pode-se analisar com esses dados que as mulheres também são largamente excluídas dos cargos mais altos de tomada de decisão do governo executivo. A partir de janeiro de 2015, 6,6 % de todos os chefes de Estado eram mulheres; 7,3 % de todos os chefes de governo eram mulheres; e as mulheres representavam 17% de todos os ministros, um aumento de apenas 14,2 % do que elas representavam quase uma década antes, em 2005 (UN WOMEN, 2015).

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Mesmo com seus direitos de participação igualitária na governança democrática, direitos esses expressos e estipulados em diversos instrumentos de direitos humanos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e da Plataforma de Ação de Pequim, assim como diversos instrumentos regionais, e principalmente, de terem suas habilidades comprovadas como líderes e agentes de mudança, a pouca representação das mulheres ocorre na esfera política. A relevância da inclusão das mulheres nos processos políticos é a melhoria para sua própria estruturação, ao defender plataformas de igualdade de gênero, tais como a eliminação da violência baseada no gênero, licença parental e de assistência à infância, pensões, leis que possam contribuir para igualdade de gênero e reforma eleitoral. Pode-se, portanto, deduzir nessa análise, que a ausência de representação feminina na política é uma consequência ao efeito combinado dos constrangimentos institucionais e estruturais, bem como as barreiras culturais e comportamentais onde é sugerido que as mulheres não devem exercer um papel na vida pública, ou seja, construções sociais determinando o locus da mulher. Observa-se, dessa forma, que os constrangimentos estruturais se manifestam nos partidos políticos que resistem à inclusão das mulheres e em não nomeá-las em lugares elegíveis; em certos tipos de sistemas eleitorais que, por exemplo, elegem uma pessoa por distrito e reduz a oportunidade para as mulheres competirem com os homens de forma igualitária; a falta de acesso a recursos financeiros para executar campanhas eleitorais das candidatas e as dificuldades práticas para as mulheres participarem, como a falta de acesso a documentos de identidade ou a alta incidência de violência, que impede as mulheres de registrar, de indicação e votação. Além disso, as próprias estruturas das instituições políticas estão impregnadas de normas, práticas e políticas que discriminam as mulheres, o que torna difícil para as mulheres ser promovidas e efetuar mudanças, incluindo a mudança de política (UN WOMEN, 2015). As barreiras culturais e comportamentais também restringem a voz das mulheres na agência política. Além dos dotes limitados de mulheres e meninas (em termos de saúde, educação e ativos), normas sociais sobre os papéis de gênero limitam a participação das mulheres. Estas normas mantêm as mulheres em grande parte responsável pelo trabalho doméstico e cuidado da criança, ou seja, no âmbito privado da sociedade, reforçando a desigualdade através da violência baseada no gênero e uma restrição das escolhas das mulheres. Essas mesmas normas limitam a representação das mulheres na política e no governo. Culturalmente, as contribuições importantes que as mulheres podem fazer para a tomada de decisões e na definição da orientação política de uma nação, são desvalorizadas, que por sua vez, dificulta o desenvolvimento democrático de um país. O Programa Women´s Leadership and Political Participation é implementado desde 2011 em mais de 100 países e atua em conjunto com escritórios regionais e nacionais de


cada país. Auxiliando governantes e partidos políticos com treinamentos de capacitação para que as mulheres candidatas políticas possam construir e aprimorar suas habilidades em tomadas de decisão; em campanhas eleitorais que abordem uma mudança estrutural legal, assim como, a idealização de propostas com políticas públicas que combatam a problemática da desigualdade de gêneros; e em incentivar a participação de jovens, homens e mulheres, nessa discussão: Fornecer uma abordagem sistemática e uma plataforma direcionada pela qual um público global pode participar e se tornar agente de mudança a fim de atingir a igualdade de gênero no mundo todo. Isso requer uma abordagem inovadora e inclusiva que mobilize pessoas de todas as identidades de gênero e de expressão a serem defensores e reconhecerem as formas pelas quais todos nós podemos nos beneficiar desta igualdade. (HE FOR SHE, 2015)

A despeito da comprovação das habilidades como líderes e agentes de mudança, as mulheres desde o âmbito local ao âmbito global, tem sua participação política restrita devido a obstáculos estruturais enfrentados por meio de leis e instituições discriminatórias. Como a Resolução sobre a participação política das mulheres ressalta:

Stressing the critical importance of women’s political participation in all contexts, including in times of peace and of conflict and at all stages of political transition, concerned that many obstacles still prevent women from participating in political life on equal terms with men, and noting in that regard that situations of political transition may provide a unique opportunity to address such obstacles. (ONU, General Assembly, 2011)

2.1. Plano de Ação

O referido programa, desenvolvido pela ONU Mulheres, computou dados significativos sobre a posição das mulheres nos parlamentos apontando que em setembro de 2016 dez mulheres estão servindo como Chefe de Estado e nove como Chefe de Governo. Destaca também que, em nível mundial, o maior número de mulheres parlamentares encontra-se em Ruanda, perfazendo 63,8% dos assentos na câmara baixa, quando menos de 10% as ocupam na esfera global, em 38 Estados, desde junho de 2016, mas ainda existem quatro câmaras com ausência da figura feminina (UN WOMEN, 2016).

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Como observado na seção anterior, o programa de Liderança e Participação Política para mulheres, atua em colaboração com as equipes nacionais da ONU. As ações desenvolvidas pelo programa têm como principal foco, auxiliar em conjunto com a sociedade civil, o desenvolvimento de plataformas para que as eleições defendam o direito das mulheres e reformas legislativas e constitucionais, também para que haja o acesso equitativo das mulheres nas esferas políticas, eleitoras e como membros do serviço civil.

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Quando se fecha o espaço em percentuais médios de mulheres para o nível regional, no mesmo período (junho/2016), incluindo casas individuais, inferiores e superiores, podem ser observados os seguintes números: países nórdicos, 41,1%; Américas, 27,7%; Europa (sem os países nórdicos), 24,3%; África subsaariana, 23,1%; Ásia, 19,2%; Estados Árabes, 18,4%; e no Pacífico, 13,5. (UN WOMEN, 2016). Corroborando com o objetivo do programa analisado neste capítulo, as pesquisas sobre as representações das mulheres nos governos locais são um diferencial em ascensão. Na Índia, por exemplo, os panchayats, conselhos locais, descobriram que o número de projetos de água potável em áreas com estes sendo liderados por mulheres foi 62% maior do que naqueles com conselhos de homens. Os movimentos de mulheres têm conduzido uma ação global e nacional em matéria de igualdade de gênero. Nos países e localidades, as defensoras muitas vezes têm a maior compreensão das deficiências do que as mulheres e meninas enfrentam, bem como do conhecimento essencial da forma de promover os seus direitos. Compelindo para a mudança e prestação de contas, elas desenvolvem habilidades de liderança. Essa aproximação, captada pelas mulheres para governar com plataformas de igualdade de gênero e seu aumento pela procura representação, como o aprimoramento das habilidades de governança oferecidas pelo programa, é o ponto chave de entendimento sobre a importância da eficácia analisada pelo presente trabalho. Os grupos da sociedade civil são parceiros essenciais na implantação de programas Mulheres da ONU, em todas as áreas. A instituição também se envolve com movimentos de mulheres para ajudá-las a aumentar a sua eficácia, através da partilha de conhecimento sobre os direitos das mulheres e das práticas de defesa bem-sucedidas. A proposta é oferecer suporte na construção de comunicação, liderança e outras habilidades para influenciar processos políticos e de governança, incluindo os relacionados com as eleições. Outra forma de assistência é o incentivo oferecido a grupos da sociedade civil para melhorar suas operações internas para que eles tenham uma base sólida para sustentar a defesa e maximizando resultados (ONU MULHERES, 2011). Na Albânia, a ONU Mulheres ajudou a mobilizar as mulheres de base e organizações da sociedade civil para desenvolver cartões de pontuação baseados na comunidade. Cerca de 2.000 pessoas, em sete regiões das quais 90% eram mulheres, participaram do processo de classificação, notando o quão bem as suas comunidades estão fazendo em envolver as mulheres na tomada de decisão pública, com o intuito de parar a violência baseada no gênero, avançando para o bem-estar econômico destas e para a prestação de serviços sociais. As pontuações eram tipicamente baixas, em média, entre um e dois em uma escala de cinco, indicando o quão pouco tem sido feito para acabar com a discriminação de gênero generalizada (ONU Mulheres, 2016).

A percentagem de mulheres nas legislaturas nacionais tornou-se uma medida pa-


drão de realizações em um país com participação política das mulheres. Globalmente, a média avançou para cima, mas ainda está longe de refletir a proporção de mulheres na sociedade; disparidades também são largas entre os órgãos do governo local. A discrepância viola diretamente sobre direitos políticos das mulheres, e pode restringir os direitos em outras áreas, tendo em conta o papel central que os legislativos nacionais e os órgãos locais têm na formulação, implementação e acompanhamento das leis e orçamentos (ONU Mulheres, 2016). O programa de Liderança e Participação Política das Mulheres defende que os parlamentos aumentem o número de mulheres líderes e representantes. Dessa forma, levando seus governantes a uma reflexão para que leis e orçamentos promovam a igualdade de gênero, e ao mesmo tempo auxiliar os legisladores a adquirir novos conhecimentos sobre o valor da igualdade de gênero e habilidades para avançar nesse debate. Nesse quadro, as estratégias propostas pela ONU e incorporadas ao programa é a compreensão de diálogos políticos para informar agendas legislativas; em alguns países, reunir as mulheres líderes de todo o espectro político para pressionar conjuntamente para prioridades comuns relacionadas com o gênero. Parcerias globais, tais como com o Interparlamentar União, são importantes para intensificar a colaboração com os líderes parlamentares e auxilia a adaptar o trabalho do programa às particularidades de diferentes legislaturas.

Na Moldávia, a percentagem de vereadoras mulheres distritais e prefeitas permanece abaixo dos 20%, geralmente não o suficiente para fazer agendas políticas trabalhar para as mulheres. Desde que não há força nos números, a ONU Mulheres em parceria com o PNUD incentivou as mulheres funcionárias públicas para se unir e estabelecer a Rede de Mulheres de Prefeitas e Vereadoras locais como parte do Congresso de Autoridades Locais da Moldávia, a maior associação de autoridades públicas locais do país. A rede voltou, pela primeira vez, sua atenção para engrenar no Congresso que, posteriormente, incluiu a igualdade de gênero em seu estatuto como uma prioridade estratégica. Aumentou significativamente o seu orçamento de 2012 para facilitar o trabalho das mulheres prefeitas e vereadoras, alocando fundos para uma coordenadora em tempo integral da rede, com reuniões regulares, bem como divulgação de mídia e visitas de estudo para que as líderes

Artigos dos delegados

Um feito importante foi a mobilização de 22 grupos de defesa, o Parlamento e o Supremo Tribunal de Justiça, promovida pelo Fundo para Igualdade de Gênero (El Salvador), relacionada a fazer com que instituições públicas se tornassem mais humanas ao gênero em função de uma lei. Esse movimento, com o auxílio da ONU Mulheres ordenava várias medidas, mas principalmente a integração de considerações específicas de gênero em todas as políticas públicas. O resultado desse movimento garantiu o reconhecimento oficial, inaugurando a posição de operação além das linhas partidárias pelo Grupo Parlamentar das Mulheres. Acrescenta-se a esse movimento a melhoria das habilidades de liderança e o crescimento do contingente de mulheres nos governos municipais a partir de 5% a 12%, através da adesão do Fundo para a Iniciativa SUMA do México, no estado de Michoacán (ONU Mulheres, 2016).

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mulheres possam aprender uns com os outros (ONU Mulheres, 2016). Outro exemplo da atuação do programa foi o apoio proporcionado a Laura Bosnea em sua candidatura a uma das cadeiras locais e após se tornar líder de sua comunidade o auxílio para aprimorar suas habilidades de oratória com o público, captação de recursos e gerenciamento de imagem, através da UN Women- supported pre-election training. Um fato que não a desestimulou, em sua decisão à concorrência, foi a intervenção de líderes de partidos que a advertiram que não se perturbasse com política, se limitasse à educação dos filhos e permanecesse em casa. Com o apoio desse programa, durante seu mandato de quatro anos sua contribuição foi o desenvolvimento de programas de educação destinados aos jovens e a ampliação da quantidade das mulheres em tomadas de decisão, proporcionada por chances pelos conselheiros, com a finalidade de melhorar a qualidade de vida da sociedade civil: “I thought it would be difficult to run”... But with the encouragement of the programme it was much easier than I expected (UN WOMEN ANNUAL REPORT, 2015). As Constituições nacionais são guias fundamentais para a organização de estruturas de governança e estabelecer princípios jurídicos acordados. Com o tempo, reformas ou reformulação oportunidades abertas para os países para incorporar ou expandir disposições da igualdade de gênero. Isto está de acordo com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, que insta os Estados signatários a incorporar o princípio da igualdade de gênero nas suas constituições. Os Estados também devem agir para realizar este princípio em todos os aspectos de seus sistemas legais, inclusive alterando leis discriminatórias, a adoção de estatutos que promovam a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres e garantir que as práticas legais defender os direitos das mulheres. Em Marrocos, o Movimento de paridade, assistido por Mulheres das Nações Unidas, tornou-se uma voz poderosa para as mulheres durante reformulação constitucional. Como resultado, a nova Constituição consagra a igualdade de gênero, abrindo a porta para uma nova lei dobrando o número de assentos parlamentares reservados para as mulheres. Nas mais recentes eleições nacionais, todas as plataformas dos partidos políticos comprometeram-se com a igualdade de gênero, bem como o número de mulheres no parlamento aumentou de 10 para 17 por cento (ONU Mulheres, 2016). Em Montenegro, a ONU Mulheres apoiou o Departamento de Igualdade de Gênero na defesa de alteração da Lei do Trabalho, para incluir um salário igual por trabalho igual. Uma emenda à lei sobre funcionários públicos fez a igualdade de gênero formação obrigatória para todos os funcionários públicos. (ONU Mulheres, 2016). As eleições nacionais e locais podem apoiar a participação política das mulheres em vários aspectos, mas pode ser necessário adotar medidas específicas para superar as barreiras da discriminação de gênero. Mulheres candidatas podem cobrir a falta de capa-


cidade ou, recursos que as impedem de competir eficazmente, por exemplo. Se assembleias de voto estão localizados em áreas remotas ou perigosas, as eleitoras podem estar relutantes em usá-los. Ocasionalmente, órgãos de gestão eleitoral não têm conhecimento de obstáculos à participação das mulheres, porque eles não têm os conhecimentos, habilidades ou dados para analisar e corrigir estes. A inserção das mulheres na política apresentada pelo programa de Liderança e Participação Política das Mulheres trabalha com medidas de apoio à participação política das mulheres em todo o ciclo eleitoral, incluindo através de esforços coordenados com parceiros do sistema das Nações Unidas. Um dos focos principais é a adoção e implementação de medidas especiais de caráter temporário ou quotas, um mecanismo comprovado para aumentar o número de mulheres na política. Há também o objetivo de defender e fornecer evidências para informar regulamentos eleitorais nacionais. Estes devem assegurar que as mulheres tenham oportunidades justas à campanha e se registrar para votar, e são protegidas contra a violência relacionada com as eleições.

A ONU Mulheres prestou seu auxílio a 500 mulheres que formavam grupos que resguardavam a Coalizão Egípcia para a Educação Cívica e Participação das Mulheres, na época de transição da política local, garantindo a eleição e conseguindo fundar a primeira União Feminista. Foi feito, então uma coletânea de mais de 500.000 assinaturas em prol dos anseios futuristas femininos egípcios em uma Carta Nacional, em 27 províncias, resultando na implantação governamental da “Cidadania das Mulheres”. Esse projeto visa a emissão de cartões de identificação para 2 milhões de mulheres no intuito de assegurar suas possibilidades de votação e de acesso aos serviços públicos (ONU Mulheres, 2016). Essas medidas foram tão importantes que mereceram o reconhecimento governamental pelo programa, que foi declarado no Relatório Anual de 2015-2016 da ONU Mulheres: “We truly apreciate the effort of UN Women: The programmes [in Egypt] are very well-functioning, very relevant, very successful and nationally owned.” A parceria com líderes mulheres da sociedade civil e do governo na Colômbia, da ONU Mulheres, ajudou a defender com sucesso para a adoção de uma quota de 30 por cento para as mulheres candidatas nas eleições nacionais. Para envolver o público mais amplo, uma campanha publicitária levou para casa a mensagem de que “A democracia sem mulheres é incompleta” (ONU Mulheres, 2016).

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Outras atividades incluem formação das mulheres como candidatas políticas eficazes e líderes. Envolvimento com partidos políticos incentiva uma maior sensibilidade ao gênero, como por meio de regulamentações e práticas internas para promover a liderança das mulheres (ONU Mulheres, 2016).

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O programa também englobou um curso de liderança política com perspectiva de gênero para 143 indivíduos, em sua maioria mulheres, em Pasto, Ipiales e Tumaco. Deste curso, em outubro de 2015, a advogada Lucía Del Socorro Basante tornou-se a única vereadora no Pasto, no departamento de Nariño, na Colômbia, com a plataforma política firmada na garantia da “participação plena e efetiva das mulheres e igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública” (ONU Mulheres, 2016): UN Women’s Project gave us insight into the reality of women’s participation in local politics, through figures and statistics, highlighting why there are no women in the Assembly, why in Pasto Municipality Council there is only one and in a number of municipalities in the department [State] there are none, and why only have one female senator and one representative in Parliament. (UN WOMEN ANNUAL REPORT, LUCÍA DEL SOCORRO, 2015, p.1).

3. Conclusão

Os resultados positivos do programa são observados pelo estímulo e auxílio às candidaturas nos países onde o programa é desenvolvido. Corroborando a eficácia do programa, é relevante uma análise do porque esse resultado foi atingido. Nesse caso, a eficácia foi alcançada pela legitimidade que a ONU possui no âmbito internacional, uma vez que seus programas são facilitados por serem aderidos pelos Estados- membros, além destes cooperarem desde um fundo monetário para os programas até parcerias com a mídia, para dar maior visibilidade aos debates colocados pelo programa. O estudo de caso analisado no presente trabalho certifica que os obstáculos encontrados pelas mulheres para uma participação igualitária na política ou no papel de tomada de decisão é encontrado nas esferas constitucionais e culturais. A melhor forma de driblar essas barreiras é o incentivo à candidatura para mulheres que defendam em suas campanhas políticas públicas voltadas a erradicar a discriminação de gêneros. Logo, o trabalho que o programa “Women’s Leadership and Political Participation” é fundamental na qualificação das candidatas oferecendo treinamentos, workshop e outras plataformas que auxiliam as mulheres desde o início da candidatura até mesmo depois de serem eleitas. Os países analisados confirmam os resultados positivos que ocorrem quando as mulheres ocupam posições de liderança no âmbito político. Interessante analisar esses países por serem países em desenvolvimento e com estruturas ainda precárias em diversas esferas e, justamente nesse cenário, Ruanda com todo seu histórico, se destaca como modelo de um país com mais de 60% de mulheres ocupando seu parlamento. Após a criação da ONU Mulheres os avanços alcançados são altamente significativos. Leis criadas, participação ativa de jovens homens e mulheres na defesa da igualdade de gêneros, entre outros.

O debate acerca da importância das mulheres em posições de liderança ganhou


um papel importante na agenda ao redor do globo. Muito se deve à globalização que passou a não ocultar os obstáculos encontrados pelas mulheres nas mais diversas áreas. E para as Relações Internacionais o debate sobre a igualdade de gêneros faz-se importante à medida que os Estados são colocados em reflexão para mudanças de praticas nas esferas culturais e legais para erradicar essa desigualdade, além do mesmo ter sido colocado como uma meta para ser atingida como forma de avanço no desenvolvimento dos países que se comprometeram a atingir a Agenda 2030. Entretanto, ainda muito se tem a fazer, mas os primeiros passos foram dados e este trabalho busca fornecer dados para incentivar futuras pesquisas sobre gêneros.

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A Importância do Acordo de Facilitação Comercial para o Comércio Internacional e Seus Reflexos no Brasil Luma Diniz Delegada para Public Forum

Em 22 de fevereiro de 2017 entrou em vigor, no Brasil, o Acordo de Facilitação Comercial (AFC). Negociado no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) desde o Início da Rodada Doha, esse Acordo foi finalmente concluído na Conferência Ministerial de Bali, em 2013. Pertencente ao chamado “pacote de bali”, que buscou realizar parte dos ambiciosos objetivos da Rodada Doha ao reduzir barreiras comerciais em âmbito global e ao mesmo tempo negociar temas como a segurança alimentar de países em desenvolvimento, o AFC foi um dos poucos avanços conseguidos desde a criação da OMC. Apesar de concluído desde dezembro de 2013, o AFC precisava da ratificação de dois terços dos membros da OMC para entrar em vigor. Assim, em 2016, com a centésima décima ratificação, o tratado passou a produzir efeitos jurídicos em todos os países que o ratificaram. Esse foi um passo decisivo para a Rodada Doha, que desde o seu início, em 2001, sofre com a paralisação das negociações por falta de consenso entre as demandas quase sempre divergentes das centenas de membros da OMC. O Acordo tem como objetivo principal conferir uniformidade, simplicidade e eficiência aos procedimentos aduaneiros de forma a facilitar o comércio internacional. Essas metas serão conseguidas por meio de regras que promovem a transparência, previsibilidade, diminuição de custos e de burocracia para a realização de importações e exportações. O foco desse conjunto de regras é, portanto, a diminuição de barreiras não tarifárias, também conhecidas como “red tapes”, que têm sido apontadas como um entrave maior ao comércio do que são os próprios tributos incidentes sobre este. O Peterson Institute for International Economics estimou, em relatório feito no ano de 2013, que a correta implantação do Acordo poderia criar mais de 21 milhões de novos empregos e um ganho de mais de um trilhão de dólares em razão do incremento das movimentações comerciais. As expectativas são de que os efeitos positivos desse Acordo sejam sentidos principalmente nos países em desenvolvimento ou de menor desenvolvimento relativo, que são os que enfrentam maiores obstáculos burocráticos.


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Outro estudo elaborado em 2015 pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) apontou que a implementação do AFC pode reduzir os custos do comércio internacional entre 12,5% e 17,5% enquanto as exportações dos países em desenvolvimento podem não somente se diversificar, quanto devem crescer entre um percentual de 14% e 22%. O AFC foi incorporado pelo ordenamento jurídico brasileiro com força de lei ordinária e, em razão disso, deve revogar normas anteriores e gerais que lhe sejam conflitantes, bem como funcionar como fonte de orientação interpretativa para a aplicação de outras normas. Assim, normas de menor hierarquia, como Regulamentos Aduaneiros, Portarias Ministeriais e Instruções Normativas passarão a ser aplicados em conformidade as suas provisões. A questão que se coloca é de como as normas previstas no AFC podem efetivamente facilitar o comércio internacional brasileiro ao diminuir as red tapes, ou barreiras não tarifárias nas fronteiras dos países. Em primeiro lugar, se deve destacar o alcance do acordo, que promove uma estrutura legal para ao menos 112 países promoverem, com uniformidade, medidas de simplificação e eficiência de procedimentos aduaneiros. Indiscutivelmente, a abrangência do acordo provoca um impacto mais significativo do que se a adoção de medidas de facilitação fosse realizada individualmente pelos membros da OMC. Além dessa base legal, algumas categorias de provisões contidas no acordo podem ser identificadas como facilitadoras desse processo.A primeira delas, diz respeito à obrigação de que os governos deem transparência aos procedimentos aduaneiros. Assim, logo no seu Artigo 1, o AFC determina que sejam publicados em local acessível todos os documentos, regras para a valoração de bens, além de custos, tanto de impostos quanto de taxas e encargos aduaneiros, necessários para a importação e exportação e trânsito de mercadorias. Dessa forma, traduz o objetivo de previsibilidade nas operações dos comerciantes. Ao determinar que os membros devam disponibilizar, na internet, as medidas práticas necessárias para a importação e exportação e que criarão centros de informação para responder questionamentos de governos, comerciantes e outros interessados com relação a essas medidas, também cumpre com o objetivo de publicidade e transparência. Por outro lado, certas disposições contidas nesse acordo visam conferir mais rapidez ao fluxo de mercadorias. É o que se dá, por exemplo, quando autoriza a liberação de produtos em trânsito mesmo antes do pagamento de tarifas alfandegárias, quando o valor destas é questionado pela fiscalização aduaneira. Assim, atos normativos que conflitam com o Acordo, como é o caso da Portaria do Ministério da Fazenda 389/76, que exige no seu item 8 que o interessado realize o depósito dos valores de tributos questionados pela aduana para só então autorizar o desembaraço da mercadoria, foram revogados. Além disso, prevê a agilidade a remessas de determinadas cargas aéreas e priorizando de produ-


tos perecíveis. No mesmo sentido, alguns dispositivos determinam que os membros da OMC, sempre que possível e compatível com suas legislações internas, aceitem pagamentos feitos pela internet e possibilitem a apresentação de versões eletrônicas de documentos para o desembaraço mercadorias nos postos de fiscalização. Também por meio do artigo do AFC, os governos devem garantir que taxas e encargos para o processamento alfandegário de importações e exportações se limitem ao custo aproximado dos serviços prestados para a importação ou exportação no caso específico, coibindo abusos e cobranças exageradas. O AFC ainda prevê, no seu Artigo 2, que deverá ser dada a oportunidade para comerciantes, empresários e outros interessados de consultarem e comentarem projetos de lei ou quaisquer normas relacionados ao fluxo de bens, antes de entrarem em vigor. Do mesmo modo, determina por meio do seu Artigo 4, que os membros da OMC devam possibilitar que qualquer pessoa para quem a aduana emita uma decisão possa recorrer administrativa e judicialmente dela. Por fim, o Acordo contempla a necessidade de que sejam adotados procedimentos previsíveis nas aduanas, bem como de que haja uma cooperação internacional entre autoridades aduaneiras, obrigando aos membros da OMC que estabeleçam um ponto de entrada comum para as diversas autoridades e agências internacionais. Dado o curto lapso temporal desde a sua entrada em vigor, os impactos gerados por este Acordo na economia brasileira ainda não estão facilmente definidos. Todavia, já são percebidos, principalmente pela forma como pretende adequar à legislação aduaneira interna ao seu quadro normativo.

Bibliografia ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO [OCDE]. Implementation of the WTO Trade Facilitation Agreement: The Potential Impact on Trade Costs. Policy Brief. 2015.

Artigos dos delegados

As perspectivas são de que, com a completa implantação do AFC, os procedimentos aduaneiros não só do Brasil, mas dos seus parceiros comerciais, sejam modernizados de forma a acelerar os fluxos de mercadorias e diminuir os custos de importação e exportação relacionados às barreiras não tarifárias. Isso permitirá não somente a facilitação da entrada do produto estrangeiro no país, como a exportação do produto brasileiro para os seus pares.

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A influência da regulação do mercado de capitais sobre o investidor pessoa física

Maria Eugenia Cirilo Delegada para o Annual Meetings 2018

I. O investidor individual e o mercado de capitais

No dia 13 de julho, o Fundo Monetário Internacional (2017, p. 17 e 87) publicou seus relatórios sobre o cenário macroeconômico de países-membros. O estudo referente ao Brasil mostrou que, enquanto o empreendedorismo e o comércio internacional ainda representam desafios, o cumprimento dos contratos e a proteção aos pequenos investidores se desenvolveram significativamente1 por aqui. Além disso, reformas fiscais, introduzidas após a crise econômica que assolou o país nos últimos anos, podem aumentar gradualmente a confiança dos brasileiros e reduzir o risco de seus investimentos². Mesmo com certa cautela apontada pelo Fundo, em razão da crise política vivenciada pelo Brasil, esses indicadores representam estímulos para a economia. E um ambiente propício aos minoritários, com maior estabilidade, pode beneficiar um dos setores financeiros de maior influência para o desenvolvimento do país: o mercado de capitais, ao motivar, principalmente, a entrada de investidores individuais, condicionada por diversos fatores. Ensina Assaf Neto (2003, p. 108-107), que o mercado de capitais é a subdivisão do mercado financeiro que “contempla as operações financeiras de médio e longo prazo, e de prazo indeterminado, como as operações com ações”. Esse mercado desempenha papel fundamental para a economia, uma vez que estabelece relação direta entre aqueles que poupam – os investidores – e os agentes que precisam ser financiados pelo público para o desenvolvimento de suas atividades, como as empresas.

De acordo com o FMI (2017, p. 19) “[T]he procedures to start a business, obtain construction permits, pay taxes, and trade across borders, are uncommonly cumbersome. [..] Brazil does better in comparisons related to getting electricity, enforcing contracts, resolving insolvency and protecting minority rights.” Cabe ressaltar que esses relatórios são conhecidos como “Article IV Consultations”, em razão desse artigo do regulamento do Fundo. 2 O Fundo (2017, p. 87) também constata que “[M]oreover, a successful implementation of fiscal reforms could increase confidence, improve fundamentals and decrease the risk premium observed in long-term interest rates. [..]”. 1


Entre os investidores, existem diversas modalidades. Em primeiro lugar, há os investidores institucionais, pessoas jurídicas que aplicam o capital pertencente a agentes individuais, procurando obter maior rentabilidade com a escolha dos recursos ou preservar a poupança desses sujeitos. Yazbek (2007, p. 169) entende que sociedades seguradoras, fundos de investimentos e fundos de pensão são três das formas que o investidor institucional é capaz de assumir. Por outro lado, pessoas físicas podem optar por alocar diretamente o seu capital em valores mobiliários, utilizando as corretoras, instituições que atuam como intermediárias, para ter acesso aos papéis negociados em bolsa. Esses investidores individuais são extremamente importantes para o mercado de capitais na medida em que sua entrada ajuda a promover o aumento da demanda por ações – elevando, consequentemente, o preço dos ativos-, e faz com que o mercado também seja apelativo para empresas (CAVALCANTI VASCO, 2006, p. 155)3, que se tornam capazes de captar mais recursos e eventualmente aumentar o ritmo de sua produção, refletindo na economia do país. Os Fundamentos e Princípios da Comissão de Valores Mobiliários (1979, p. 5) destacam também que os investidores individuais “permitem o processo de dispersão da propriedade e de diversificação dos centros de decisão, o que contribui para aumentar a eficiência do mercado”. Contudo, investidor-consumidores são os mais sensíveis à conjuntura macroeconômica e a seus fatores, o que exige que recebam tratamento cauteloso. Por essa razão, melhora de indicativos, como apresentado no relatório do FMI (2017, p. 17 e 87) pode propiciar o crescimento da participação de tal tipo de investidor no mercado de capitais, ao mesmo tempo em que uma eventual piora do cenário econômico seria facilmente capaz de afastá-los. Essa sensibilidade decorre da desvantagem informacional e estrutural que caracteriza sua relação com os demais agentes do mercado (GOODHART apud YAZBEK, 2007, p. 184). Evidentemente, indivíduos não dispõem de todos os dados aos quais as empresas, bancos e outros participantes têm acesso4, o que faz com que muitos pequenos investidores enxerguem o mercado de capitais como um ambiente hostil e desconhecido, sujeito a riscos demasiadamente elevados.

O mesmo entendimento é assinalado por Eizirik, Gaal, Parente e Henriques (2012. p. 21). Ilustra Yazbek (2007, p. 189): “Assim, os clientes dos bancos não dispõem de informações acerca das atividades e do nível de endividamento destes; o cliente das corretoras não tem como monitorar a atuação destas nos ambientes de negociação ou a situação de suas contas de custodia; [..]”. 3 4

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Diante disso, a regulação apresenta a função de amenizar tais diferenças e criar um ambiente adequado aos investidores individuais. Cabe, portanto, ao regulador elaborar normas, regras e entendimentos que aumentem a confiança do investidor- consumidor, buscando suprir, ao menos em parte, a deficiência informacional, a fim de proporcionar o

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bom funcionamento do mercado.

2. Alcance e limites da regulação

Em razão de sua importância, principalmente para os pequenos investidores, a regulação do mercado de capitais não é simples e exige que sejam consideradas as particularidades de cada um dos diversos participantes do mercado. Além disso, é preciso levar em conta que sua intenção não deve ser acabar com a concorrência, mas garantir um desempenho econômico positivo (CASTELAR PINHEIRO; SADDI, 2005, p. 254), ao estimular o equilíbrio das relações que ali se constituem (TRINDADE, 2017, p. 496). Mesmo que, historicamente, a regulação esteja atrelada à participação direta de um órgão do Estado, os instrumentos podem também ser criados pelas próprias partes envolvidas nas operações, através da regulação contratual, conhecida como autorregulação, que, junto à regulação jurídica - essa, por sua vez, contida em normas legais produzidas por agentes estatais – procuram estruturar as atividades do mercado (EIZIRIK; GAAL; PARENTE; HENRIQUES, 2012, p. 16)5, seja restringindo a atuação dos agentes, condicionando suas condutas ou determinando o acesso pelas companhias e outros participantes institucionais (YAZBEK, 2007, p. 180 – 181). De fato, a regulação jurídica parece ter mais apelo ao investidor individual, em razão da extensa publicidade emanada do Estado, contribuindo para as decisões dos investidores-consumidores. As normas criadas pelo próprio mercado, porém, também se mostram fundamentais para a democratização dos valores mobiliários e de ativos de renda variável, por serem especializadas e, muitas vezes, mais rígidas do que as provenientes da vontade estatal (CASTELAR PINHEIRO; SADDI, 2005, p. 473), preenchendo suas lacunas. Entretanto, independentemente da variedade de formas e origens dos seus instrumentos normativos, o conjunto de regras, princípios e enunciados que regem o mercado de capitais apresenta objetivos econômicos e jurídicos comuns que contribuem para a criação de um ambiente institucional atrativo aos investidores individuais. Economicamente, as normas regulatórias tentam ampliar, dentro do possível, a eficiência do mercado. Para tanto, a regulação procura mitigar os efeitos da especulação, de forma a deixar o investidor individual menos temeroso quanto ao impacto de eventuais fraudes e manipulações (LOSS, 1985, p. 71-72), assegurando cotações mais próximas da realidade das companhias.

Dessa forma, os investidores devem poder esperar um risco e retorno minima-

Trata-se da mesma linha seguida por autores como Castelar Pinheiro e Saddi (2005, p. 473).

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mente relacionado à natureza de seus investimentos (TRINDADE, 2017, p. 492), como ocorreria em um mercado eficiente. Não se trata, porém, de extinguir os riscos, já que eles são intrínsecos ao mercado de capitais, mas de eliminar aqueles que se mostram excessivos e que surgem em razão de falhas sanáveis, como comportamentos ilícitos de seus participantes (EIZIRIK; GAAL; PARENTE; HENRIQUES, 2012, p. 21). Já por uma perspectiva jurídica, a regulação procura proteger os investidores individuais (Id., p. 19) garantindo direitos aos acionistas minoritários que merecem receber especial proteção das normas estruturais do mercado, os chamados “minoritários-ausentes”, como classifica Borba (2015, p. 348). Trata-se do perfil dos investidores-consumidores, que não apresentam atuação direta nas decisões societárias, ao se ausentarem, por exemplo, em assembleias convocadas pelas companhias, quando teriam direito a voto. Isso acontece porque tais investidores não estão preocupados em comandar a empresa, mas em gerenciar sua poupança através da aplicação nos papéis. Assim, torna-se necessário evitar eventuais abuso de poder, com a fiscalização dos controladores, garantindo a segurança necessária dentro das companhias, para que os pequenos investidores (BORBA, 2015, p. 349) possam continuar investindo. A fim de alcançar essas finalidades, os reguladores precisam assegurar um ambiente saturado de informações claras e acessíveis, já que, nos termos de Trindade (2002, p. 309), “a informação é o maior bem jurídico tutelado pela intervenção estatal no mercado de capitais”.

Desse modo, a regulação informacional é essencial para que investidores individuais ganhem confiança quanto ao mercado e passem a procurá-lo. Loss (1985, p. 79) lembra que esse é um fator condicionante para que tais investidores queiram investir seus recursos no mercado de capitais. Dados empíricos também comprovam que, em países nos quais o grau de confiança é mais elevado, pessoas físicas tendem a apresentar maior participação nos investimentos em valores mobiliários6.

“[..] Nos Estados Unidos, onde o nível de confiança é alto, a participação de pessoas físicas no mercado de capitais é de 50%, ao passo que na Itália, onde o nível é baixo, ela é de 8,2%. [..]” (HADDAD, 2006, p. 12.). 6

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Cumpre destacar que o conceito de assimetria informacional surge em estudos econômicos, a partir da chamada “Teoria dos Contratos”, para explicar que partes envolvidas em determinadas transações possuem diferentes graus de conhecimento, sendo uma delas detentoras de informações privadas que não podem ser obtidas pelas outras sem custos (FARINA et al., 1997, p. 38). Adquire, porém, grande importância para o Direito e para o mercado de capitais, visto que explica grande parte das imperfeições dos contratos e o abismo existente entre os participantes do setor.

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Contudo, é equivocado afirmar que os reguladores estão sempre dispostos a atender ao público em geral e ao pequeno investidor. Destacam Eizirik, Gaal, Parente e Henriques (2012, p. 21) que os outros participantes do mercado exercem significativa influência sobre a edição de normas regulatórias mesmo sendo benéfico para esses agentes conciliar seus interesses com o dos minoritários e dos investidores individuais, contribuindo para gerar maior procura pelos ativos. Não obstante, conclui-se que uma regulação preocupada com as necessidades do público é fundamental para o mercado, mas é preciso também que se atente para exageros. Isso porque, quando as normas se tornam extremamente severas, tentativas de reduzir custos passam a carear as operações, acarretando em gastos desnecessários para o governo e repelindo instituições financeiras e companhias, sem as quais não há o que os investidores possam financiar7. É necessário, ainda, que os esforços dos reguladores estejam atrelados à iniciativa privada, a fim de motivar os investidores- consumidores e disseminar o conhecimento sobre esse setor (CAVALCANTI VASCO, 2012, p. 165).

3. A experiência brasileira

No Brasil, crises políticas e instabilidades econômicas, aliadas a um modelo que favoreceu a concentração da poupança em bancos oficiais do governo (HADDAD, 2006, p. 12), prejudicaram o grau de confiança sobre o setor financeiro, fazendo com os investidores se sentissem mais confortáveis em aplicar seus recursos nos papéis com menor volatilidade e exposição a riscos. Como explica Barbosa (2002, p. 409), o fato de grande parte das companhias brasileiras remeter à concentração de controle na mão de poucos acionistas – principalmente de famílias ou do próprio Estado -, não contribuiu para atrair investidores individuais que pudessem subsidiar as empresas locais através da compra de seus ativos. Todavia, conforme reconhecido no referido relatório divulgado pelo Fundo Monetário Internacional em julho de 2017, a partir do final do século passado, é possível verificar, a despeito das crises que ocorreram na história recente do país, constante progresso dos esforços para garantir a devida proteção aos investidores individuais no Brasil - e consequências dessa tutela são observadas pela variação no nível de participação dos investidores pessoa física no mercado de valores mobiliários. Nesse sentido, acompanhada da melhoria no cenário macroeconômico e de políticas de estabilização da economia brasileira, a edição de normas disciplinares e a regulação

Eizirik, Gaal, Parente e Henriques (2012, p. 21) são claros em relação a esse ponto. Exemplificam: “[..] Da mesma forma, constituti exemplo de custo excessivo a existência de processos sancionadores que tardam às vezes quatro ou cinco anos, para que sejam apreciadas acusações de infrações absolutamente irrelevantes, despendendo-se recursos públicos sem qualquer benefīcio aparente”. 7


de subdivisões do mercado financeiro, recorrentemente atualizadas e modificadas, são fatores que trouxeram benefícios diretos aos investidores individuais, bem como aos acionistas minoritário, mesmo não desprezando os controladores, tendo, assim, contribuído para desmistificar o mercado de capitais (HADDAD, 2006, p. 13). Dentre os instrumentos normativos, a doutrina ressalta o caráter basilar da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Seguinte à lei que estabeleceu diretrizes para o Sistema Financeiro Nacional - Lei 4.595, de 31 de dezembro de 1964 -, a chamada Lei das Sociedades Anônimas passou a disciplinar a constituição, o funcionamento e a dissolução das companhias. Introduzindo institutos como o dever de diligência e o conflito de interesses dos administradores8, agravando a responsabilidade dos controladores9 e ampliando direitos dos acionistas minoritários (BORBA, 2015, p. 348), representou um marco na história empresarial do país. Como enfatiza Bulhões Pedreira (2017, p. 126), um dos autores de seu anteprojeto, a lei também pretendia defender interesses dos investidores do mercado de capitais, influenciando “no funcionamento eficiente e justo desses mercados e na proteção contra abusos de acionistas controladores, administradores de companhias e agentes do mercado”. Apesar de já trazer diversos avanços para a legislação societária, certos aprimoramentos a esse diploma não podem ser esquecidos. A principal reforma da Lei das S.A. veio a se concretizar em 31 de outubro de 2001, quando a Lei nº 10.303 introduziu nova roupagem a muitos de seus dispositivos. Ao mesmo tempo em que mantiveram a essência do poder exercido pelos controladores, as mudanças também foram vantajosas para os minoritários (CARVALHOSA; EIZIRIK, 2002, p. 3-4).

Art. 153 da Lei 6.404/1976 (BRASIL, 1976a): “O administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios.” e Art. 156 da Lei 6.404/1976: “É vedado ao administrador intervir em qualquer operação social em que tiver interesse conflitante com o da companhia, bem como na deliberação que a respeito tomarem os demais administradores, cumprindo-lhe cientificá-los do seu impedimento e fazer consignar, em ata de reunião do conselho de administração ou da diretoria, a natureza e extensão do seu interesse”. 9 Art. 117 da Lei 6.404/1976 (BRASIL, 1976a): “O acionista controlador responde pelos danos causados por atos praticados com abuso de poder. [..]” 8

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Em 2007, uma outra alteração, mais tímida, através da Lei nº 11.638, também contribuiu para os pequenos acionistas, na medida em que aumentou a transparência das informações prestadas ao mercado, adequando aos padrões internacionais a divulgação das demonstrações financeiras por partes das companhias abertas (BIFANO, 2008, p. 44). Também merece destaque a Lei nº 6.385/1976, aprovada no mesmo ano de promulgação da Lei das Sociedades Anônimas. Conhecida como Lei do Mercado de Capitais, procurou

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estabelecer um regime capaz de incentivar os investimentos em valores mobiliários. Cabe ressaltar que o novo padrão trazido por tal diploma para modernizar o mercado, buscava refletir o desenvolvimento de uma rede financeira globalizada, na esteira do cenário mundial da década de 1970 (YAZBEK, 2007, p. 279). Esse instrumentos instituiu, ainda, a Comissão de Valores Mobiliários – CVM como autarquia independente, responsável por regular o mercado de capitais. Capaz de expedir instruções normativas vinculantes, o órgão deveria estar alinhado aos outros participantes do Sistema Financeiro Nacional, principalmente ao Banco Central, bem como aos reguladores internacionais (MARTINS ALMEIDA; TRINDADE, 2015, p. 39). A lei procurou alcançar todas as classes de investidores, comunicando-se principalmente com os pequenos, na medida em que determinou, dentre as finalidades da autarquia, a promoção de um mercado eficiente e a expansão do investimento em valores mobiliários, em seu artigo 4º10 (TRINDADE, 2002, p. 308). Além disso, a autorregulação evoluiu no país, já que o mercado se mostrou dedicado a estabelecer normas mais rigorosas para suas atividades (CASTELAR PINHEIRO; SADDI, 2005, p. 473). A criação dos segmentos de listagem das companhias pela BM&FBovespa, especialmente do Novo Mercado, fundado em 2001 - e que no ano de 2017 passou por sua segunda reforma -, pode ser considerada uma das maiores contribuições, ao renovar a governança corporativa. Foram criados também códigos de boas práticas para as grandes empresas, elaborados por participantes do mercado, além de organizações supervisoras das atividades em bolsa11. Superada a tormenta econômica e a hiperinflação, bem como crises dos mercados financeiros internacionais, as inovações normativas contribuíram trazendo a segurança minimamente necessária, para que, no começo da década de 2000, crescesse a participação de pessoas físicas no mercado de capitais brasileiro. Não se pode dizer, porém, que o setor adequou-se às necessidades e possibilidades do país (WALD, 2006, p. 324). A participação dos investidores individuais continua visivelmente pequena, já que esses investidores não estão totalmente confiantes quanto ao setor, principalmente em razão da recente piora no cenário econômico e do pós-2008. Em tal contexto, ocorreu expressiva evasão dos investidores-consumidores conforme pode ser

Art. .4º da Lei 6.385/1976 (BRASIL, 1976b): “O Conselho Monetário Nacional e a Comissão de Valores Mobiliários exercerão as atribuições previstas na lei para o fim de: [..]”. 11 Nesse sentido, Código ABRASCA de Autorregulação e Boas Práticas das Companhias Abertas, de 30 jul. 2006, e Código Brasileiro de Governança Corporativa do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa, de 16 nov. 2016. Quanto aos órgãos de supervisão, merece destaque a BM&FBovespa Supervisão de Mercados – BSM, criada em 2008, que atua com o Mecanismo de Ressarcimentos de Prejuízos - MRP. 10


observado no Gráfico 1, o qual indica a participação de cada tipo de investidor no mercado:

Gráfico 1 - Participação por tipo de investidor na BM&FBovespa12.

Ademais, o número de pessoas que buscam por investimentos menos arriscados ainda é expressivo. Tal fato pode ser comprovado pela grande procura pelo Tesouro Direto, especialmente por papéis indexados a índices supostamente seguros e de elevada publicidade, como o IPCA e a taxa SELIC – essa, por sua vez, beneficiada pelas crises econômicas, já que se manteve, durante um longo período de tempo, na faixa dos dois dígitos. A quantidade de brasileiros que investem em títulos da dívida pública quase dobrou em 2017, quando comparado ao ano anterior (CAMPOS, 2017). Além disso, do total de aplicações, 52,3% não passam dos R$ 1 mil, superando a marca histórica. Ao mesmo tempo, conforme demonstrado no Gráfico 1, o nível de participação de investidores individuais no mercado de capitais recupera-se em passos extremamente lentos.

4. Considerações finais

Números obtidos dos Dados de Mercado divulgados pela BM&FBovespa. Disponíveis em <http://www.bmfbovespa.com.br/pt_br/servicos/market-data/consultas/dados-de-mercado/>. Acesso em 07 Ago. 2017. 12

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A evolução das normas regulatórias, que determinam o funcionamento do mercado de capitais e atribuem condutas a seus agentes, é, portanto, um dos elementos capazes de explicar o tímido, mas inegável, aumento do número de pessoas físicas investindo em valores mobiliários, que ocorreu principalmente na primeira metade da década de 2000. Permitindo que fosse alcançado o ápice da participação dos investidores-consumidores

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no mercado, ainda está distante, porém, do nível de participação desses investidores em países com mercados mais desenvolvidos13. Contudo, apesar do consistente alicerce jurídico elaborado para o mercado de capitais brasileiro, as consequências sobre o nível de participação por tipo de investidor do mais recente colapso financeiro mundial, que se iniciou nos Estados Unidos em 2008, e da crise fiscal da qual o Brasil ainda se recupera, demonstram que se perpetua a desconfiança dos minoritários sobre a robustez do mercado financeiro e os riscos que ali estão envolvidos. Por esse motivo, sua presença ainda é significativamente inferior ao que seria comportado pelo mercado – e ao que atenderia às necessidades daqueles que procuram ser financiados através desse setor. Constantes reflexões por parte dos reguladores e de seus participantes podem daí ser ensejadas, uma vez que é inquestionável a importância do investidor individual para o mercado de capitais do país. É pacífico, conforme reconhecido por órgãos estrangeiros responsáveis pelo fomento da geração de riquezas e do desenvolvimento da economia (UNITED STATES DEPARTMENT OF TREASURY, 2006,p. 59), que quando os pequenos investidores colocam recursos no mercado, todos os seus integrantes serão diretamente beneficiados. Isso porque, no momento em que trazem o capital necessário para que as empresas cresçam de forma saudável, permitindo o desenvolvimento de novas tecnologias, esses investidores podem também gerar renda para suas próprias famílias, aumentando o consumo. Desse modo, a presença de pequenos investidores gera efeitos que são imediatamente percebidos no macrocenário do país, já que vantagens advindas do crescimento da participação desse investidor podem criar riquezas e contribuir para um bom ritmo de crescimento. E conforme confirma Barbosa (2002, p. 410), “há estreita relação entre as normas legais de proteção aos direitos dos acionistas minoritários em um dado país (e a seriedade da aplicação de tais normas) e o estágio de desenvolvimento do mercado de capitais”. Assim, essas normas devem estar especialmente preocupadas em garantir um mercado de capitais informado, reduzindo as desvantagens dos pequenos investidores e gerenciando riscos, para que eles se sintam atraídos pelos ativos ali oferecidos e tenham o conhecimento necessário para investir. Nesse sentido, é possível perceber que a regulação brasileira demonstrou-se dedicada a fazer com que os investidores individuais se tornassem capazes de desvendar o mercado, de forma a torná-lo transparente, competitivo e informado (COMISSÃO DE VALORES MOBILIÁRIOS, 1979, p. 5) e a coibir os abusos

Nos EUA, país com um dos mais desenvolvidos mercados de capitais, a participação dos investidores-consumidor chegou a aproximadamente 42% nesse período. Na década de 1950, os investidores individuais detinham cerca de 90% dos ativos norte-americanos (JACKSON, 2003). 13


que poderiam ser praticados pelos detentores de informações materiais. Foi através dessa lógica que se consolidou a legislação das companhias, posteriormente reformada para atender às novas exigências que surgiram depois de períodos conturbados para a economia e para a política do país, e estabeleceu-se padrões de funcionamento para a negociação de valores mobiliários. Tal raciocínio veio a motivar a criação do Novo Mercado e dos segmentos de listagem da BM&FBovespa, bem como a edição de instruções normativas específicas, procurando garantir os direitos dos minoritários, além de respeitar as atribuições e as necessidades dos outros participantes do mercado, como as companhias e os investidores institucionais, que evidentemente também exercem papel fundamental nesse jogo. Tornou-se necessário, também, estabelecer um órgão autônomo, responsável por definir diretrizes para o mercado de valores mobiliários, adequando-o às exigências de seus integrantes. Esse o papel foi assumido pela CVM, desde a sua criação, com a Lei do Mercado de Capitais. À autarquia, foram atribuídos poderes que a tornaram uma entidade independente, capaz de fiscalizar o mercado, as bolsas de valores e a atuação das companhias, visando à prestação de informações portadas pelas grandes empresas e pelas entidades intermediárias (MENDES, 2016, p. 135). Desse modo, a regulação revela-se crucial para assegurar um funcionamento adequado do mercado financeiro e de capitais. Contudo, não se pode esquecer que os reguladores precisam estar cientes de que seu objetivo é garantir um ambiente institucional propício para que os investidores individuais possam dispor seus recursos. Devem, portanto, permitir o bom desenvolvimento das operações que ali ocorrem, mas sem reger o conteúdo das negociações (LOSS, 1985, p. 76), de forma a evitar que sejam editadas normas excessivamente severas que acabem por exonerar os outros integrantes do mercado. Para tanto, é primordial que o regulador - seja o ógão estatal que desempenha essa função ou os participantes do mercado que editam suas próprias normas - esteja comprometido com a tarefa de garantir um mercado eficiente, estimulando a entrada do investidor individual, sempre lembrando, consoante ao destacado por Trindade (2017, p. 499), que:

Bibliografia

Artigos dos delegados

A sanha pela punição e os holofotes que ela gera constituem permanente e perigosa tentação que o regulador deve evitar. Mas é o uso combinado dos poderes conferidos à CVM [e das demais normas que estruturam o mercado], de maneira equilibrada e com a ponderação das situações a que cada um deles melhor se adapta, que será mais eficiente para o mercado e mais justo para os regulados.

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Violência obstétrica e a mulher indígena: O ensino da medicina como deslegitimador das crenças tradicionais sobre a gestação e o parto Karollyne Lima Barbosa1 Delegada para o Gender Summit

1. Introdução

A medicina moderna alcançou diversas conquistas na busca de driblar as complicações ocorridas antes, durante e após o parto, criou a cirurgia cesárea como alternativa ao “parto normal”, além de desenvolver vários fármacos e analgesias para serem administrados durante todo o processo. Tudo isso na tentativa de aumentar cada vez mais as chances de sucesso ao trazer um ser humano ao mundo. Por outro lado, a mecanização da medicina, na tentativa de atingir a perfeição, distanciou o médico da paciente, transformou a gestante em números e aperfeiçoou-se em combater os males do corpo, sem enxergar as necessidades, medos e desejos da mulher grávida. Casos de violência obstétrica são cada vez mais comuns e ganham certa atenção da mídia brasileira. Porém, a violência obstétrica cometida contra a gestantes indígenas, tidas nessa pesquisa como hipervulneráveis, no momento em que suas crenças e tradições não são respeitadas ou permitidas no atendimento à gestação, parto e pós-parto ainda é um assunto nebuloso. Um questionamento a ser levantado é até que ponto o ensino da medicina nas universidades ocidentais, em especial das universidades brasileiras fomentam essas práticas que deslegitimam os costumes da medicina tradicional e impõem, mesmo que de forma não explicitamente coercitiva, um modelo ocidental de medicina a ser seguido. Além disso, seria possível aliar as tecnologias da medicina ocidental aos costumes das tradições indígenas em gestações e partos de baixo risco, para assim criar um ambiente saudável que

Advogada e pós-graduanda em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membro do Grupo de Estudos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos da Universidade Federal do Amazonas (GESIDH-UFAM). Membro do Núcleo de Estudos em Processo Civil da Universidade Federal do Amazonas (NEPRO-UFAM). 1


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respeite a integridade física, psíquica e moral da gestante e puérpera indígena?

2. A hipervulnerabilidade da mulher indígena e a violência obstétrica

De início, necessário o entendimento do significado da palavra “vulnerar”. Etimologicamente, o vocábulo vem do latim vulnerare e está relacionado com ferir, ofender e melindrado (CUNHA, 2010, p. 683). Para o direito, vulnerabilidade significaria “uma situação permanente ou provisória, individual ou coletiva, que fragiliza, enfraquece o sujeito de direitos, desequilibrando a relação” (MARQUES, 2013, p.120). Ainda, a autora descreve a vulnerabilidade como uma característica, um estado do sujeito mais fraco, um sinal de necessidade de proteção (MARQUES, 2013, p.97). É a discriminação do outro em razão de uma condição física, psíquica ou social que gera a desigualdade entre indivíduos e por conseguinte, torna este indivíduo vulnerável. No que tange às mulheres, pode-se afirmar que qualquer barreira imposta ao gozo integral de seus direitos tendo como motivo seu gênero é uma forma de discriminação contra a mulher (GONÇALVES, 2013, p.105) e, portanto, cria relações desiguais entre os sexos, explicitando o seu caráter vulnerável. A vulnerabilidade da mulher em certas situações é amplamente reconhecida na esfera internacional, instaurando-se a partir da década de 70, quando 1972 foi estabelecido como o Ano Internacional da Mulher em Assembleia Geral das Nações Unidas, seguida pela Conferência Mundial sobre a Mulher no México, em 1975 (FÁVERI, 2014, p.2). Estes eventos encabeçaram a luta pela redução das desigualdades sociais e econômicas que a discriminação contra a mulher gera, com a promoção de medidas de combate à discriminação em relação ao gênero feminino e a adoção pelos Estados dos documentos internacionais que versam sobre a proteção da mulher em diversas situações. Atualmente, o sistema global de proteção aos direitos humanos possui como um dos mais importantes documentos a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher de 1979. Da mesma forma, no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, de 1994 constitui um dos importantes mecanismos de proteção aos direitos humanos das mulheres. É justamente nesta Convenção, em seu artigo 9º, que a mulher gestante é reconhecida como passível de discriminação e, portanto, pode-se apresentar como vulnerável diante de determinadas situações, a citar: Artigo 9 Para a adoção das medidas a que se refere este capítulo, os Estados Partes levarão especialmente em conta a situação da mulher vulnerável a violência por sua raça, origem étnica ou condição de migrante, de refugiada ou de deslocada, entre outros motivos. Também será considerada sujeitada a violência a gestante, deficiente, menor, idosa ou em situação sócio-econômica desfavorável, afetada por situações de conflito armado ou de privação da liberdade (OEA, 1994).


Esta vulnerabilidade pode ser agravada, quando presentes mais de um fator de discriminação, a exemplo das mulheres indígenas, que sofrem, de forma diferenciada, discriminação em razão de seu gênero e etnia. Nesse sentido, no momento em que presentes mais de um fator de discriminação e, por conseguinte, verifica-se uma forma de vulnerabilidade agravada, dando-se o nome de hipervulnerabilidade para esse fenômeno. A violência de gênero resulta da própria construção do conceito de gênero, resultado dos comportamentos impostos pela sociedade aos homens e mulheres, mediante os quais criam e reiteram o estereótipo de da inferioridade do sexo feminino em relação ao masculino, e de sua fragilidade, submissão, que precisa ser protegida e dominada pelo homem (CAMPOS, 2015, p.256). Desse modo, há a aceitação da discriminação contra a mulher como algo natural, intrínseco aos sexos, e não decorrente de um processo civilizatório imposto, que reforça a suposta inferioridade da mulher. Ocorre que, com a perpetuação desta falsa hierarquia entre os gêneros, são operados simbolismos centrais, que criam a percepção da legitimidade da violência contra a mulher, colocando-a em situação vulnerável, decorrente desta desigualdade (CAMPOS, 2015, p. 33). Uma das formas de violência que está sujeita a mulher gestante é a violência obstétrica, essencialmente uma violência de gênero, que se caracteriza, de acordo com o Projeto de Lei nº 7633 de 2014, como

a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres pelos(as) profissionais de saúde, através do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e patologização dos processos naturais, que cause a perda da autonomia e capacidade das mulheres de decidir livremente sobre seus corpos e sua sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2014, p. 6-9).

No ano de 1996, a OMS organizou um guia das práticas médicas utilizadas durante o atendimento ao parto e puerpério, para dar início, acelerar regular ou monitorar o processo do parto. O relatório, produzido unicamente por médicos e profissionais de outras áreas da saúde, indica os problemas enfrentados no cuidado dos partos de baixo risco. Após uma série de debates e pesquisas, estes classificaram as condutas utilizadas durante

Artigos dos delegados

Exemplos comuns de atos que exprimem violência obstétrica é a negativa de alimentação e água em partos de baixo risco, a realização de procedimentos sem o consentimento da gestante, a proibição de acompanhante durante todo o período do parto e pós-parto, assim como agressões verbais e físicas. Em 2010, o SESC e a Fundação Perseu Abramo (2010, p.173), realizaram uma pesquisa com mais de duas mil mulheres de todas as regiões do Brasil onde foi constatado que uma em cada quatro mulheres sofreu algum tipo de violência durante o atendimento ao parto.

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todo o processo em quatro, divididas principalmente em práticas que são úteis durante o parto e devem ser incentivadas e práticas que são claramente prejudiciais às gestantes e devem ser eliminadas. Dentre as práticas citadas como úteis estão o respeito à a escolha informada da mulher e o local do parto, Liberdade na posição e movimentação durante o parto, além de Administração de métodos de alívio da dor não- invasivos e não farmacêuticos, como massagens e técnicas de relaxamento (OMS, 1996). Pelo exposto, apesar de não existir um conceito definido de violência obstétrica, tanto no âmbito internacional quanto nacional, é possível analisar que existem balizas, proporcionadas pelo direito internacional dos direitos humanos, que nos ajudam a distinguir atos de violência contra a mulher gestante, sendo sua principal característica a violação da integridade física, psíquica ou moral da mulher.

3. O ensino da medicina e o respeito às crenças indígenas nas gestações de baixo risco

Em relação ao atendimento das mulheres no ciclo gravídico-puerperal, pela equipe médica, faz-se mister ressaltar que, apesar da medicina ser uma ciência, não está isenta da influência dos valores morais e culturais das sociedades, estes valores podem ser benéficos, como também podem provocar a discriminação e exclusão de uma assistência de qualidade a determinados coletivos. A medicina ocidental não é um campo de conhecimento puro e universal, sendo que está condicionado e visto pelo olhar do momento histórico, e dos sistemas econômicos e políticos que se inserem (FOUCAULT, 1977). O ensino da medicina nas universidades ocidentais, incluindo-se as universidades brasileiras, é baseado em um modelo organicista, heteronormativo e cisgênero (RUFINO, 2016, p. 171). Esse modelo, de acordo com Rufino e Madeiro, torna ausente uma dimensão biopsicossocial da sexualidade na formação dos profissionais de saúde, o que facilita o comprometimento do reconhecimento da diversidade de pessoas, uma vez que promove uma visão reducionista da sexualidade, baseada numa ótica apenas reprodutiva e patológica. A crescente utilização de tecnologias no período pré-natal acarretou o redirecionamento do foco do médico para o feto, o “objetivo”, deixando a mulher em segundo plano. Essa tendência acaba por diminuir o papel central da mulher grávida, aumentando os riscos de desenvolvimento de patologias na mulher e também na criança (BRAUNER, 2007, p. 25). Nesse sentido, a gestação e o parto são vistos como uma linha de produção, em que o resultado final, ou seja, o nascimento com vida do feto é o objetivo principal. Dessa maneira, ignorar os anseios e desejos da mulher grávida tornam-se aceitáveis perante a


sociedade, já que a mulher é vista como mero receptáculo. Ao contrário desse paradigma, o parto é uma experiência que vai além da esfera biológica, por envolver aspectos psicológicos, físicos, sociais, econômicos e culturais, é considerado um fenômeno complexo (BRANDÃO, 1998). Nas comunidades indígenas, a gestação e o parto também possuem uma alta valoração cultural, sendo permeado por crenças e tradições específicas para cada povo. No que tange às mulheres indígenas, estas se apresentam como hipervulneráveis quando em seu no ciclo gravídico-puerperal, uma vez que podem sofrer múltiplas ou agravadas formas de discriminação em relação ao seu gênero e etnia. É possível verificar uma forma peculiar de violência obstétrica que atinge as mulheres indígenas no que diz respeito à negação ou proibição de expressar sua cultura. Entre os indígenas da etnia Mundukuru, a mulher, durante o trabalho de parto, é instruída a tomar banhos de ervas específicas para abreviar o trabalho de parto e diminuir a dor ( DIAS-SCOPEL, 2014). Em estudo realizado por Ana Elisa de Castro Freitas e Francisco dos Santos Rokag, exposto no Relatório do “II Encontro dos Kujà: Fortalecendo a medicina tradicional Kanhgàg”, verificamos depoimentos que exprimem a realidade da inserção da medicina ocidental nos costumes e tradições do povo indígena Kaingang, a citar:

Hoje, nas aldeias, a medicina do branco se impõe sem espaço para que os “médicos tradicionais” participem. Assim, eles vão ficando de lado, desacreditados, sem força nas coletividades. Isso é fonte de muita tristeza, é a continuação do extermínio cultural do povo kaingang, que começou há cinco séculos no Brasil. Atualmente, os “médicos brancos” são os que fazem o “pré natal” dos kaingang. O sistema deles inclui remédios e consultas. As jovens indígenas têm vergonha deste modelo de pré-natal. E esse constrangimento acaba refletindo na hora de ganhar a criança (FREITAS, 2006).

Podemos analisar a inserção do respeito às práticas da medicina tradicional no ensino da medicina através da verificação dos projetos políticos- pedagógicos das universidades brasileiras. Atualmente existem cerca de duzentos e noventa cursos de medicina no Brasil, somando-se as instituições públicas e privadas. Assim, seria impossível e demasiadamente trabalhoso analisar todos os projetos pedagógicos existentes. Por isso, utilizaremos o plano político pedagógico do Curso de Medicina da Universidade Federal do Amazonas, devido esta oferecer o maior número de vagas por ano para inserção na graduação em Medicina do Estado do Amazonas, entidade da federação que, segundo o IBGE (2010), possui uma população de aproximadamente 180.000 (cento

Artigos dos delegados

Percebe-se então uma forma de negação dos conhecimentos e valores tradicionais dessas mulheres e comunidades, obrigando-as a deixarem de lado suas crenças e se adaptarem à medicina ocidental.

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e oitenta mil) indígenas de diversas etnias. Ao analisarmos o Projeto Político-pedagógico do Curso de Medicina da Universidade Federal do Amazonas, especificamente no que tange as ementas das disciplinas ofertadas como obrigatórias pelo curso, verificamos duas situações interessantes. Primeiramente, em atenção a disciplina Obstetrícia, denominada como “Saúde da mulher II”, seus objetivos são: Conhecer a fisiologia do parto, de modo a desenvolver capacidades para prestar assistência clinica ao parto e puerpério. Compreender a semiologia obstétrica e assistência pré-natal, assim como o diagnóstico e conduta na gestação de alto risco para diagnóstico e conduta (UFAM, 2009, p. 93).

Percebemos, assim como dito anteriormente, uma atenção ao parto e à sexualidade feminina como processos patológicos, estudados através de uma visão tecnocrática, sem levar em consideração os aspectos culturais e pessoais das gestantes e puérperas.

Por outro lado, na disciplina “Saúde Coletiva I”, temos a seguinte ementa: O processo saúde-doença em suas dimensões biomédica, cultural, antropológica e social. História da Saúde. Ciências Sociais aplicada à Saúde. Estraficação social. Ideologia. Padrões culturais, Estado e política Social. Organização da assistência médica. Meio ambiente. Meios de produção da existência amazônica: conhecimentos e uso dos valores das crenças, das plantas, dos mitos que comprovem a saúde. Os conhecimentos técnicos e científicos das ciências da saúde aplicados aos processos de cura não convencionais que apontem para uma vida mais saudável (UFAM, 2009, p. 52).

Diante disso, nota-se que existe uma abertura para a utilização de conhecimentos tradicionais aplicados à medicina ocidental, no que corresponde à incorporação de costumes naquilo que se amolda aos seus paradigmas. Contudo, tal fato não é suficiente para afirmar que, nos cursos de graduação em medicina, há o ensino do respeito das crenças tradicionais em relação ao parto e as tentativas de conciliar tais conhecimentos no atendimento às gestantes indígenas, de maneira a não deslegitimar os conhecimentos tradicionais.

4. Considerações Finais

O estudo propôs-se a analisar duas situações: como a mulher indígena e gestante insere-se como hipervulnerável em relação à situações de violência obstétrica como negação das práticas de suas crenças; e se o ensino da medicina nas faculdades brasileiras, uti-


lizando como exemplo a Universidade Federal do Amazonas, auxiliam na perpetuação da deslegitimação das práticas tradicionais em relação à gestação e parto da mulher indígena. Diante dos questionamentos levantados, indaga-se a necessidade de mudanças no ensino da medicina no Brasil, em particular no contexto da obstetrícia, para que seja adotado um modelo de respeito às práticas culturais da medicina tradicional, de forma a preservar a integridade moral e psíquica da mulher indígena. Imperioso também é reconhecer a necessidade de políticas de saúde adequadas aos múltiplos contextos étnicos dos quais essas mulheres fazem parte, devendo estas, consoante com os direitos diferenciados desse segmento da população, reconhecer as mulheres indígenas como sujeitos relacionais inscritas em contextos particulares. Destarte, será possível diminuir as situações particulares de violência obstétrica que atingem essas mulheres hipervulneráveis.

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O Patrocínio Privado Como Ferramenta Complementar Para o Reassentamento de Refugiados: um modelo para o futuro Luiz Felipy dos Santos Costa Leomil Delegado para o Forum on Business and Human Rights

1. Introdução

A maior parte da literatura acadêmica converge no sentido de entender as últimas décadas do século XX como marcadas pela emergência de novos atores de caráter não-estatal no plano internacional (NASIRITOUSI et al., 2016; NOORTMANN, 2002; RIBEIRO, 2009). Isto é, a evolução das telecomunicações, a expansão das Organizações não Governamentais (ONGs), das redes de advocacy, das organizações de responsabilidade social e, sobretudo, uma agenda internacional vigente mais voltada para a temática dos Direitos Humanos, acabam estimulando o empoderamento da sociedade civil na busca por participação nas mudanças políticas e sociais globais. O ano de 2016 foi marcado aumento do contingente de solicitantes de refúgio para seu maior número desde a fundação do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) – em 1950, ano que 22,5 milhões de pessoas buscavam proteção fora de seus países. Assim, no mesmo ano, com o intuito de renovar o compromisso dos Estadosmembros com o regime internacional do refúgio, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a Declaração de Nova York sobre Refugiados e Migrantes. Além de ter sido a primeira vez que esses diferentes grupos migratórios foram tratados em conjunto e ter reafirmado a responsabilidade compartilhada dos Estados referente aos refugiados e pedir que as nações trabalhem para um pacto global – a ser adotado em 2018 –, a Declaração (2016) invoca, ainda em seu texto introdutório, a participação do setor privado e da sociedade civil nos seguintes termos: “Considerar tornar disponível ou expandir, inclusive através do estímulo ao setor privado como um meio suplementar, oportunidades de reassentamento e caminhos complementares para a admissão de refugiados...” (p. 21, tradução nossa). Assim, em convergência com a demanda internacional pela tomada de mais iniciativas para o refúgio, começaria a se desenhar um cenário em que, com o apoio de novos atores, os Estados poderiam comportar, reassentar e integrar um influxo superior de migrantes forçados. Levando em conta a experiência do Canadá, tem-se que a participação da sociedade civil realmente pode trabalhar a favor desses objetivos. No país, o patrocínio privado de refugiados faz parte do ordenamento jurídico nacional desde o final dos anos


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1970 – quando a crise dos refugiados da Indochina1 fomentou um grande influxo de migrantes forçados para lá – e, desde então, foi responsável por reassentar cerca de 280 mil refugiados. No modelo canadense, o patrocinador se compromete a prover suporte psicológico e financeiro ao refugiado por um período que pode durar de 1 ano ou até o refugiado conseguir se manter de forma independente. Esse modelo de patrocínio se torna ainda mais relevante com a atual crise internacional de refugiados, sendo visto como um instrumento que também pode aumentar as chances de um processo de integração mais efetivo, inspirando, muito recentemente, a adoção de um modelo nos mesmos moldes em outros países. Dessa forma, com a perspectiva de que são necessárias iniciativas inovadoras e eficientes relativas ao instituto do refúgio, cabe analisar e compreender – sobretudo com base na experiência canadense – que efeitos a participação de atores privados pode gerar na dinâmica do refúgio e integração dos migrantes forçados em um país. O presente trabalho se dividirá em 4 (quatro) seções, além desta introdução. A primeira apresenta uma exposição do modelo de patrocínio privado de refugiados em vigor no Canadá. A seção seguinte, debate a relação do modelo privado com o do governo. A terceira seção explora a aplicabilidade do modelo privado em outras regiões do mundo. Por fim, a última sessão oferece uma conclusão sobre o tema.

2. O Patrocínio Privado de Refugiados no Canadá

Em parceria com a comunidade internacional, o ACNUR promove três soluções duráveis para o refúgio: (1) a repatriação voluntária ao país de origem, em condições de segurança e dignidade; (2) a integração local em um país acolhedor; (3) o reassentamento em um terceiro país, o qual deve garantir status de residente permanente ao refugiado2. O reassentamento possui um papel crítico e complementar no sistema de proteção internacional aos migrantes forçados, oferecendo uma terceira via de proteção e uma solução durável àqueles refugiados para os quais a repatriação nem a integração local são possíveis. Assim, sendo usualmente uma iniciativa liderada pelo Estado, o reassentamento é a expressão concreta de comprometimento com a proteção dos refugiados e a promoção dos direitos humanos. Em 1969, o Canadá ratificou a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 relativos ao refúgio (HATHAWAY, 1987), o que fez necessária uma revisão em sua legislação sobre

O solicitante deveria ser cidadão ou ex-residente de Kampuchea (atual Camboja), Laos ou Vietnã, deixado seu país até 30 de abril de 1975, não ter sido reassentado permanentemente em outro lugar, se comprometer a não retornar ao seu país de origem e buscar reassentamento no Canadá (HATHAWAY, 1987). 2 Disponível em: http://www.unhcr.org/solutions.html. Acesso em 05 out. 2017. 1


migrações, visto que, agora, seria necessário refletir os referidos instrumentos internacionais. Dessa forma, o governo canadense anunciou seus planos para criar uma nova lei de migrações em 1973, sendo esta uma oportunidade para que grupos religiosos pedissem pela formalização do patrocínio privado, já praticado por estes ao longo dos anos. No mesmo ano, Joseph Kage, vice-presidente executivo do JIAS (Serviço de Auxílio aos Migrantes Judeus)3, apontou a necessidade de: “[...] dar consideração a novas provisões que venham permitir indivíduos ou agências sociais responsáveis voluntárias a oferecer patrocínio ou copatrocínio em casos de refúgio ou outros imigrantes que se adequem a categoria de imigração humanitária” (KAGE apud LABMAN, 2016, p. 68, tradução nossa).

No original em inglês, Jewish Immigration Aid Services. Disponível em: http://ccrweb.ca/sites/ccrweb.ca/files/static-files/20thann.html. Acesso em 01 out. 2017. 5 Disponível em: http://www.unhcr.org/afr/news/press/2016/9/57e0e2784/canada-unhcr-open-society- foundationsseek-increase-refugee-resettlement.html. Acesso em 05 out. 2017. 3 4

Artigos dos delegados

Nesse sentido, pela primeira vez na legislação do país, o Immigration Act de 1976 traria provisões para refugiados patrocinados por atores privados (os private sponsored refugees ou PSRs, na sigla em inglês) e refugiados acolhidos pelo governo (os government assisted refugees ou GARs, na sigla em inglês). Tamanho seria o interesse da sociedade civil com o novo dispositivo, que, entre 1979 e 1980, 34 mil dos 60 mil refugiados vindos da Indochina foram reassentados pela vida privada no Canadá4. Desde então, 275 mil refugiados foram reassentados no país5.

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Neste modelo, famílias, indivíduos (no mínimo cinco), ONGs ou outras organizações, além de possuírem a responsabilidade de prover o equivalente a um ano de assistência social financeira, também devem auxiliar de forma prática o reassentamento dos recém-chegados. Os interessados em participar do reassentamento privado devem provar ao governo que possuem as devidas capacidades para o processo de acolhida. O compromisso com o patrocínio dura, em geral, um ano, ou até o refugiado ter capacidade de viver sem auxílio, o que acontecer primeiro. Todavia, governo canadense estipula que, em circunstâncias excepcionais, o período de patrocínio pode se estender por 3 anos. É importante frisar que os patrocinadores não recebem nenhum subsídio público. Assim, o governo define que os patrocinadores devem auxiliar os refugiados:

“Provendo custos relativos a alimentação, aluguel e outras despesas do dia a dia; provendo roupas, moveis e outros bens domésticos; localizando intérpretes; selecionando um medico da família e um dentista; ajudando na inscrição do plano e saúde provincial; matriculando as crianças na escola e os adultos em cursos de línguas; introduzindo recém-chegados a pessoas com interesses pessoais similares; orientando a respeito de serviços bancários, transporte e etc.; auxiliando a entrada no mercado de trabalho” (CANADÁ, 2016, p. 11, tradução nossa).

O patrocínio privado é baseado em dois princípios: (1) adicionalidade – o patrocínio é algo adicional aos compromissos do governo para os GARs, não sendo um modelo substituto; (2) nomeação – os patrocinadores podem indicar o refugiado ou família que desejam reassentar, bem como aceitar a recomendação de um oficial de imigração acerca de um indivíduo que deseja ser patrocinado. Apesar de suscitar certas críticas e da necessidade de ser aprovada pelo governo, a nomeação tornou- se um importante instrumento para os processos de reunião familiar – quando um refugiado tem seu status reconhecido e deseja estende-lo a sua família, trazendo-a ao país acolhedor. Assim, diversos são os motivos que levam ao envolvimento com o patrocínio privado e, “frequentemente, conexões pessoais com uma região ou indivíduo em particular são um motivo (razão pela qual as nomeações são tão importantes)” (CANADIAN COUNCIL FOR REFUGEES, 2013, p. 4, tradução nossa). Ainda, é oferecida uma opção àqueles refugiados identificados pelo ACNUR que possuam necessidades especiais e/ou que precisem de mais auxílio que os outros. Nesses casos, o governo canadense trabalha com um programa de assistência mista (joint assisted sponsorship ou JAS, na sigla em inglês), onde o governo e um patrocinador privado se unem para ajudar refugiados por até 2 anos, podendo se estender a 3 anos em alguns casos. Assim, a estes refugiados – geralmente portadores de alguma deficiência física ou possuidores algum trauma relativo à violência, tortura ou discriminação sistêmica – é provida assistência financeira pelo governo, cabendo ao patrocinador o auxílio prático relativo ao ajuste a vida no Canadá e suporte emocional. Os casos de assistência mista são contabilizados junto aos GARs.


3. Oportunidades adicionais

No final dos anos 1970, quando o Canadá adicionou provisões relativas ao patrocínio privado de refugiados ao Immigration Act (1979), grupos religiosos expressaram seu temor de que “o governo planejava usar o plano como um modo de delegar suas responsabilidades para com os refugiados para o setor privado”. (ALDELMAN, 1982, p. 85, tradução nossa). Tal discussão acerca do peso que o patrocínio privado deve ter nos comprometimentos do país para o reassentamento permanece até os dias atuais.

Disponível em: http://ccrweb.ca/en/2017-immigration-levels-comments. Acesso em 05 out. 2017.

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Artigos dos delegados

Para a maior parte da literatura sobre o tema, o programa de patrocínio privado deve ser visto como algo adicional aos comprometimentos prévios do governo para o refúgio, partindo do desejo da sociedade civil em se engajar e se comprometer com o auxílio aos migrantes forçados. Como expresso pelo guia para patrocínio privado canadense, “cidadãos canadenses e residentes permanentes podem oferecer oportunidades adicionais aos refugiados” (CANADÁ, 2013, p. 5, tradução nossa). Também, para o Conselho Canadense para Refugiados, os números dos GARs devem sempre ser superiores aos dos PSRs. Entretanto, de acordo com o plano do governo para 2017, PSRs vão representar 64% do número total de refugiados reassentados no Canadá6. Assim, o Conselho pede por um maior comprometimento do governo com a questão e, ao mesmo tempo, reconhece que o desequilíbrio entre as taxas está provavelmente relacionado com o “repentino aumento de pedidos de refúgio em resposta à crise síria” (CANADIAN COUNCIL FOR REFUGEES, 2017, tradução nossa).

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4. Um modelo para o futuro

Por um longo período, o Estado canadense foi o único a implementar um programa de patrocínio privado para refugiados, o que justifica a maior parte das pesquisas sobre o modelo serem de produção deste país específico. Entretanto, em 2012, a Austrália lançou um programa piloto de patrocínio, o CSP (Programa de Apoio Comunitário ou Community Support Programme, em inglês). Posteriormente, em 2017, o Conselho para Refúgio da Austrália (Refugee Council of Australia ou RCOA, na sigla em inglês) participou de reuniões no Canadá para aprender mais sobre o modelo de reassentamento privado do país e suas possíveis implicações para a Austrália (REFUGEE COUNCIL OF AUSTRALIA, 2017). No mesmo ano, o programa foi introduzido como um componente regular do programa para refugiados do país. Atualmente, outros países também vêm seguindo esse mesmo movimento e novos programas vêm emergindo, ao exemplo do da Alemanha (envolvendo 15 de seus estados federativos), Argentina, Itália, Reino Unido e da Nova Zelândia. A Irlanda e a Suíça acabaram por adotar programas temporários, já terminados. Após uma análise das legislações desses países voltadas para migrações, é possível notar que, em alguns deles, o reassentamento privado destina-se somente àqueles refugiados vindos da Síria, sendo uma resposta ao maior número de aplicações de refúgio que a crise síria vem gerando. Entretanto, é plausível que, no futuro, caso estes modelos se tornem de fato mais efetivos para o acolhimento dos sírios, acabe havendo um processo de expansão dos mesmos, possibilitando, também, o acolhimento de refugiados de outros países de origem. Outros fatores que distinguem os programas são a possibilidade ou não do patrocinador apontar a família ou refugiado que deseja auxiliar e a necessidade ou não de um vínculo familiar entre o refugiado e o patrocinador. Em todos os casos é possível aceitar recomendações do governo acerca de grupos de refugiados a serem reassentados. Essas recomendações tendem a partir, também, do ACNUR, que consegue localizar os grupos de refugiados considerados mais vulneráveis, que acabam tendo prioridade no processo. No Canadá, além do programa de assistência mista (onde o ACNUR identifica grupos com necessidades especiais para o reassentamento) o programa BVOR (sigla em inglês para Blended Visa Office-Referred) também tem o papel de ligar patrocinadores à refugiados indicados pela Agência das Nações Unidas. Ambos são programas mistos, com participação do governo e de patrocinadores privados possuindo, entretanto, parcelas menos expressivas do total de reassentamentos7.

Disponível em: https://epthinktank.eu/2016/02/02/asylum-policy-in-canada/refugees-admitted-toin-2014/. Acesso em 10 out. 2017. 7

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O quadro 4.1 faz uma comparação entre os modelos de patrocínio privado já implementados pelos países, apontando, também, as suas respectivas especificidades.

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5. Considerações finais

A atual crise internacional de refugiados inspira um movimento por parte dos Estados que, em geral, orientados pelo modelo de reassentamento privado do Canadá, passam legislações favoráveis a participação de atores privados no acolhimento de refugiados. Isto é, assim como o modelo canadense, que surgiu em resposta a crise de emigrantes da Indochina e chamados por participação pela sociedade civil, pode-se perceber que os novos modelos de reassentamento privado de outros países também surgem por conta do atual contexto internacional – muito influenciado pela crise síria – e, de maneira similar ao Canadá, criam estruturas inovadoras que tendem a possuir caráter permanente. No Canadá, o atual debate relativo à disparidade entre o número de refugiados reassentados pelas iniciativas pública e privada – presente em alguns anos – levanta uma questão muito importante. O programa de reassentamento privado do país não visa isentar o Estado de suas responsabilidades relativas ao Direito Internacional dos Refugiados, o que resultaria em um cenário de transferências de responsabilidades, mas complementálo, buscando ampliar a admissão de migrantes para além das capacidades previamente assumidas por ele. Outra questão a ser considerada sobre o modelo canadense é a possibilidade de nomeação, por parte do patrocinador, de que família ou migrante este deseja acolher. Isto é, apesar de garantir maior poder de escolha aos atores privados envolvidos no processo, desconsiderar as recomendações do ACNUR sobre quais grupos devem ser priorizados no esquema de reassentamento pode ser prejudicial àqueles em situação de maior vulnerabilidade. Por vezes, um vínculo familiar entre o patrocinador e o refugiado pode incentivar o engajamento de cidadãos com essas políticas – algo que pode, inclusive, se tornar complementar ao processo de reunião familiar. Todavia, ao tornar este vínculo um critério para a elegibilidade, o Estado acaba por limitar o poder de participação da sociedade civil no processo e inserindo barreiras ao acolhimento daqueles refugiados que não possuem conexões ao país de reassentamento. Além de possibilitar a integração de um maior contingente de migrantes forçados, a participação de patrocinadores privados potencializa as chances de um processo de integração local mais eficiente, ao passo de que o patrocinador se envolve diretamente em diversos aspectos do estabelecimento do refugiado junto à nova sociedade acolhedora. Também, estimula-se um debate social mais amplo acerca do tema, o que tende a contribuir para a criação de novas e mais assertivas políticas a ele relativas.

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A evolução do Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH): a humanização do Direito Internacional e os debates acerca da responsabilidade social das corporações empresariais na provisão de direitos humanos Guilherme Antunes Ramos Delegado para o Forum on Business and Human Rights

1. Introdução

A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), proclamada em 1948, corresponde ao primeiro documento internacional de afirmação de direitos aplicáveis a todos os seres humanos, independentemente de nacionalidade, gênero, raça ou quaisquer outros atributos ou características que os pudessem distinguir entre si. A condição de pessoa humana passa a ser, com efeito, o requisito único e exclusivo para a titularidade de direitos (PIOVESAN, 2009, p. 6). Foi nesse momento que os direitos humanos, como atualmente compreendidos, passaram a existir, e foi com base nas diretrizes da DUDH que se erigiu um sistema normativo global de proteção aos direitos humanos, o Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH). O pioneirismo da DUDH assenta-se na extensão de direitos básicos a toda a população global. A trágica experiência da Segunda Guerra Mundial comprovara não apenas a insuficiência dos Estados Nacionais em proteger suas populações contra graves violações de direitos, mas também que poderiam ser eles próprios os principais agentes violadores desses direitos. À nascente Organização das Nações Unidas (ONU) cumpriu o desafio de criar um arranjo institucional de natureza internacional destinado a impedir a repetição de tragédias humanitárias similares às vivenciadas durante a Segunda Grande Guerra e garantir a toda a humanidade o acesso a direitos considerados como fundamentais a uma existência digna. O DIDH, nas palavras de Cançado Trindade, contribuiu para a humanização do Direito Internacional (2006, p. 430). O presente trabalho objetiva apresentar, de forma sintética, a composição do Direito Internacional dos Direitos Humanos e apontar para a centralidade do indivíduo no Direito Internacional que dele adveio. Destacar-se-ão as denominadas eficácias horizontal e diagonal dos direitos humanos, a saber, a imputação de responsabilidade por sua proteção a agentes privados da sociedade civil, mormente as corporações empresariais, as quais, em virtude de sua crescente internacionalização e atuação com base em distintos


regimes jurídicos, mobilizam um amplo debate no âmbito das Nações Unidas acerca de uma necessária normatização de suas atividades com vistas a dirimir violações de direitos humanos. O argumento motriz do trabalho assenta suas bases no reconhecimento de que a evolução do sistema normativo global de proteção aos direitos humanos culminou no apontamento de que a responsabilização por eles não compete única e exclusivamente aos Estados Nacionais, mas envolve também entes privados. O desafio que se apresenta na contemporaneidade consiste em regular as ações de agentes privados em um sistema tradicionalmente centrado na figura do Estado.

2. A humanização do direito internacional: a construção de um sistema normativo global de proteção aos direitos humanos e a centralidade do indivíduo

O ano de 1945 marca o fim da Segunda Guerra Mundial, conflito de proporções mundiais que provocara graves tragédias humanitárias, exemplificadas, dentre outros, na prática do genocídio1. A comunidade internacional, que se manteve inerte diante das manifestações da “banalidade do mal” (ARENDT, 1999) do nazismo alemão, passará a discutir novas formulações destinadas a assegurar o mínimo de proteção a toda a população global. Acometidas por uma grave crise moral, as principais lideranças à época se reuniram em um novo fórum internacional que se projetava, qual seja, a Organização das Nações Unidas, para discutir os passos necessários para harmonizar as relações entre os países e deixar para trás o legado nazista, protegendo a humanidade contra graves violações de direitos fundamentais.

Segundo a Convenção para a Prevenção e a Repressão do crime de genocídio (1948), o genocídio envolve atos destinados destruir, no todo ou em parte, grupos nacionais, étnicos, raciais ou religiosos. Compreende , dentre outros, assassinatos, danos graves à integridade física e mental de indivíduos e transferência forçada. 1

Artigos dos delegados

Destarte, era preciso cristalizar o acesso a um conjunto mínimo de direitos, que deveriam ser obrigatoriamente respeitados por todos os países. Esses direitos não poderiam ser restringidos em virtude de nacionalidade, raça, religião, etnia, dentre outros; diversamente, eram direitos universalmente aplicados a todo o gênero humano. Surgiam, assim, os direitos humanos, mencionados já na Carta de São Francisco, o tratado internacional firmado em 1945 que criou a Organização das Nações Unidas. Em 1948, seria aprovada pela Assembleia Geral da ONU a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Existe um amplo debate por parte da doutrina acerca do status jurídico da DUDH. Esse debate ocorre devido ao fato de não ser a Declaração um tratado internacional; logo, discute-se se ela possui força vinculante (caráter de obrigatoriedade: obriga os Estados-parte a cumprir os seus termos, sob pena de sanção) ou não. Independentemente dessa discussão, evidencia-se que a DUDH inspirou os tratados seguintes, os quais possuíam força vinculante. Por isso, a Declaração Universal dos Direitos Humanos é considerada como

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o documento internacional inaugurador dos direitos humanos e do Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH), que atualmente congrega inúmeros tratados e demais normativas internacionais debruçados sobre os direitos humanos, tais quais: Convenção para a Repressão e Prevenção do Crime de Genocídio (1948), Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979), Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006), dentre outros. Cumpre frisar que a proclamação de direitos extensivos a todos os seres humanos não corresponde a uma novidade per se. Observam-se, ao longo da História, inúmeros movimentos de atribuição de direitos básicos aos seres humanos. Tendo por inspiração a religião, a natureza, a filosofia ou a ciência, fato é que esses movimentos já apontavam a posição de eminência do Homem (aqui compreendido como todo o gênero humano) e identificavam direitos que eram inerentes a todas as pessoas, referendados em uma dignidade humana inata. Para além disso, foram redigidos alguns documentos que já proclamavam direitos universais, como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão2. A formulação contemporânea de direitos humanos, assim sendo, seria o produto de um processo histórico iniciado desde a Antiguidade Clássica e que se transformou ao longo da História, tendo gerado alguns precedentes importantes como a já referida Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789)3. O ineditismo do DIDH consiste na criação de um sistema que não apenas proclama direitos, mas que igualmente cria mecanismos de supervisão e controle, de modo a possibilitar o cumprimento dos direitos proclamados. Enuncia uma jamais vista articulação a nível global objetivando amparar as populações nacionais e internacionais, e mesmo aquelas que não possuem sequer uma nacionalidade (apátridas). Desvela uma nova consciência ética universal e a percepção de que o direito interno não era suficiente para garantir acesso aos direitos fundamentais. E manifesta uma revisão do papel do Estado. Conforme resume André Ramos, “a crescente internacionalização de obrigações internacionais no campo dos direitos humanos consagrou a impossibilidade de se alegar competência nacional exclusiva em tais matérias” (2016. P. 90).

O Direito Internacional dos Direitos Humanos afastou-se das premissas básicas

Redigida no contexto da Revolução Francesa, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamava uma série de direitos a serem universalmente gozados, baseados na tríade liberdade, igualdade e fraternidade, o lema da revolução. 3 Sobre a evolução histórica dos direitos humanos, ver: COMPARATO, F. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015. 2


do Direito Internacional, as quais repousavam no comportamento autointeressado dos Estados. Tradicionalmente, Estados firmam compromissos internacionais buscando autorregular seus interesses (AMARAL, 2011, p. 70). Alternativamente, firmavam tratados diversos por necessitar da cooperação em temas transnacionais e/ou fronteiriços, como o meio ambiente, que eram de comum interesse a todas as partes. Entretanto, não se concebia a adesão a um compromisso internacional que imporia limitações à ação estatal sem que se vislumbrasse um benefício direto aos Estados-parte, o que ocorreu com os tratados referentes aos direitos humanos. Pela primeira vez no Direito Internacional, os Estados passaram a se submeter a um regime de autolimitação sem com isso auferir ganhos imediatos. Afirmar que o DIDH humanizou o Direito Internacional significa, dessa forma, dizer também que ele trouxe o indivíduo para o centro das normativas internacionais, posição até então ocupada pelo Estado. Princípios basilares das relações internacionais, como a não-interferência em assuntos internos, perderam validade diante da consagração dos direitos humanos, não sendo mais admissível que os Estados invocassem a soberania nacional para legitimar graves violações de direitos. Atualmente, há um crescente movimento em torno das normas de direitos humanos, que gradualmente adquirem a condição de obrigações erga omnes, definidas como “a obrigação que protege valores de toda a comunidade internacional, fazendo nascer o direito de qualquer um dos Estados de exigir seu cumprimento” (RAMOS, 2016, p. 88). Essas obrigações eram desconhecidas no direito internacional clássico, e surgem como fruto das garantias coletivas destinadas à tutela dos interesses dos indivíduos, e não dos Estados (AMARAL, 2011, p. 74). As obrigações erga omnes revelam a percepção de que existem valores comuns a toda a comunidade internacional, e que é de interesse de todos defendê-los. A mera concepção de valores dessa natureza contrasta com o modus operandi do Direito Internacional tradicional:

Nada poderia ser mais incompatível com o reconhecimento da existência de obrigações erga omnes que a concepção voluntarista do Direito Internacional, que exige o consentimento estatal como fundamento do exercício da jurisdição de uma Corte Internacional. De fato, é incoerente reconhecer obrigações baseadas em ‘valores essenciais’ da comunidade internacional, que limitam a vontade dos Estados, e simultaneamente, no momento de criar mecanismos para proteger tais valores, recuar e privilegiar a vontade dos Estados. (RAMOS, 2016, p. 90)

Infere-se, desse modo, que as singularidades das normas de direitos humanos, bem como dos valores a que elas aludem, provocaram uma mudança substantiva no Direito Internacional, tanto em sua estrutura quanto em sua função. A centralidade adquirida pelo indivíduo, e a protuberância dos interesses comunitários sobre os autointeresses do Estado introduziram, no Direito Internacional, uma nova dimensão: a dimensão humana. A introdução da dimensão humana no Direito Internacional, para além de reconfigurar a ação estatal, produziu novas responsabilidades sobre a ação de entes privados, como se

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discorrerá a seguir.

3. As eficácias horizontal e diagonal dos direitos humanos: a responsabilidade de atores da sociedade civil em sua proteção

A proteção aos direitos humanos é tipicamente associada ao Estado. Em linhas gerais, admite-se que a dimensão vertical da proteção aos direitos humanos, isto é, o papel que compete às autoridades públicas em sua proteção, possui duas vertentes, uma negativa e outra positiva. Boa parte dos direitos de natureza civil e política, geralmente apresentados como a “1ª geração” dos direitos humanos, objetivava salvaguardar os indivíduos da ação arbitrária do Estado e estabelecer sobre ele alguns mecanismos de controle. Os primeiros direitos concebidos demandavam uma ação negativa do Estado, ou seja, que ele não interferisse em direitos individuais. A natural progressão dos direitos humanos, e a incorporação de direitos de natureza econômica, social e cultural, fez demandar do Estado uma proatividade na provisão dos referidos direitos. Surge assim a vertente positiva da dimensão vertical dos direitos humanos. Atualmente, diante de toda a complexidade adquirida pela questão dos direitos humanos, e da miríade de atores envolvidos em sua prática, já se admite uma eficácia horizontal dos direitos humanos, a qual repousa na aplicação, sem mediação da lei, dos direitos fundamentais nas relações entre particulares. (RAMOS, 2016, p. 189). O reconhecimento de que os agentes privados também devem respeitar os direitos humanos já faz parte do ethos da comunidade internacional. Conforme esclarece Fábio Comparato, “Hoje, reconhece-se que, além dos Poderes Públicos, todos os indivíduos e as pessoas jurídicas de direito privado têm o dever de respeitar os direitos humanos de qualquer espécie” (2015, p. 46). O autor André Ramos, por sua vez, adiciona que, segundo a teoria da eficácia horizontal dos direitos humanos:

estes se aplicam obrigatória e diretamente na realização dos atos jurídicos entre pessoas e entes privados. Assim, adota-se a tese da eficácia plena dos direitos fundamentais, podendo cada indivíduo, sem qualquer necessidade de mediação concretizadora de atos normativos ou leis, invocar os direitos e garantias individuais nas suas relações privadas. (2016, p. 191, grifo no original)

Ramos identifica ainda uma dimensão diagonal dos direitos humanos, a qual consiste na “inovação de direitos nas relações entre os particulares nas quais uma das partes ostenta vulnerabilidade, fazendo nascer uma prevalência de determinado direito de um particular sobre o outro.” (idem, p. 193). A título ilustrativo, poderiam ser mencionadas relações envolvendo crianças ou pessoas com deficiência, por exemplo. Ainda segundo o autor, a consolidação das eficácias horizontal e diagonal dos direitos humanos no plano internacional é um resultado da obrigação dos Estados em garantir e assegurar os direitos humanos (idem, p. 191). Conclui-se, desse modo, que a natural evolução do sistema internacional de proteção aos direitos humanos evidenciou a necessidade de se atentar para a


violação desses direitos por particulares. Hoje, é possível que Estados sejam responsabilizados pela violação de direitos humanos por particulares quando falham em prevenir as referidas violações. A iuris-prudentia de tribunais internacionais, como a Corte Europeia de Direitos Humanos, já admite a responsabilização de Estados por omissão, quando comprovado que um Estado não preveniu e reprimiu violações de direitos humanos por particulares. A constatação de que particulares podem potencialmente violar direitos humanos tem produzido, dessa forma, uma crescente movimentação em arenas decisórias do sistema internacional, com vistas a compatibilizar as normas do DIDH às novas situações identificadas e ainda não devidamente endereçadas pelo direito internacional. Uma dessas situações é precisamente a violação de direitos humanos por corporações empresariais. Para tratar dessa questão, o professor John Ruggie, a serviço da ONU, concebeu um modelo instrumental pensado para encaminhar a regulação de atividades de corporações multinacionais com vistas a proteger os direitos humanos. O modelo idealizado por Ruggie baseia-se em uma estrutura (framework) assentada em três pilares: proteger (protect), respeitar (respect) e remediar (remedy). Essa estrutura é ainda norteada por princípios orientadores (guiding principles). Segundo o autor, a estrutura denota o que deve ser feito; os princípios orientadores, como isso deve ser feito. (2013, posição 1574 de 4132).

Outrossim, Ruggie identifica ainda a necessidade de se garantir o acesso a mecanismos remediadores de violações, que manifestam-se em três instâncias: a judicial, a não judicial e a não baseada no Estado. Enquanto a primeira refere-se diretamente à observância de normas jurídicas positivas do Estado, as demais articulam-se ao monitoramento de situações de violação pelas corporações e ao cultivo de uma cultura corporativa promotora de direitos humanos. Envolvem, dentre outros, a educação, o diálogo e a tomada de consciência da responsabilidade social das corporações, para que todos os envolvidos em suas atividades atentem para a proteção aos direitos humanos independentemente da situação. As reflexões de Ruggie buscam inspirar o Direito Internacional a produzir normas vinculantes concernentes à proteção de direitos humanos por parte de corporações

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Em linhas gerais, Ruggie considera que, para além do dever do Estado de proteger as pessoas contra violações de direitos humanos, possuem as corporações não governamentais uma responsabilidade social autônoma em proteger os direitos humanos. Essa responsabilidade independe de obrigações legais e da ação do Estado. Dito de outra forma, entende o autor que as corporações devem respeitar os direitos humanos ainda que os Estados a que estejam juridicamente vinculadas não o façam. A responsabilidade social das corporações, segundo a visão do autor, relaciona-se a normas sociais por vezes não positivadas (não tornadas leis), mas que envolvem uma necessária compreensão ética e moral dos impactos sociais das atividades corporativas, sobretudo em relação aos direitos humanos.

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empresariais. O modelo proposto pelo autor destaca-se tanto por sua completude (criar normas e garantir sua aplicação por mecanismos diversos, que ultrapassam a mera judicialidade) quanto pela imputação de uma responsabilidade sui generis às corporações, reconhecidas como detentoras de uma função social de defender os direitos humanos. Essa função social, independente do dever do Estado, faz demandar uma adequação normativa que prescreva não apenas o que devem as empresas fazer para proteger os direitos humanos, mas que garanta também às potenciais vítimas acesso a medidas reparadoras. Trata-se, em última instância, de uma nova evolução do Direito Internacional dos Direitos Humanos: a normatização de ações de atores privados, não-estatais.

4. Considerações finais

A necessidade constatada por John Ruggie, bem como suas indicações e o modelo por ele proposto, tem sido objeto de intenso debate em diversos fóruns internacionais, sendo o principal deles a plataforma global UN Business and Human Rights, cujo objetivo primário consiste em colocar em prática as ideias de Ruggie. A sexta edição do evento, que ocorrerá em novembro de 2017, reunirá delegações de países e de organizações não-governamentais, e continuará a perseguir a fórmula mais efetiva para se implementar o modelo desenvolvido por Ruggie, e que congregue o mínimo de adesão possível para lograr sua concretização. O incremento das atividades transnacionais de corporações empresariais aumenta exponencialmente a necessidade de regulação por parte do Direito Internacional. Sua responsabilidade autônoma cria possibilidades mesmo diante da insuficiência do Estado na provisão de direitos humanos, como no caso de Estados falidos. Acredita-se que as discussões que atualmente ocorrem no âmbito do UN Business and Human Rights evidenciam uma nova faceta do processo humanização do Direito Internacional, qual seja, a responsabilização direta de violações de direitos humanos por atores não- estatais. Viabilizar a implementação das diretrizes advogadas por John Ruggie pode se mostrar uma tarefa árdua e duradoura, mas as discussões em curso demonstram ao menos que o Sistema ONU busca atualizar as normas de Direito Internacional para tratar de novas questões. Os direitos humanos, longe de serem estáticos e esgotáveis em legislações pretensamente atemporais, demandam uma continuada revisão e atualização de suas normas protetoras. E a proteção da pessoa humana precisa ser continuamente afirmada. Espera- se que novos avanços na legislação internacional sobre direitos humanos e corporações empresariais humanizem ainda mais o Direito Internacional, contribuindo para a geração de uma nova convicção ética por parte de particulares e o reforço de sua responsabilidade social como provedores e mantenedores de direitos. E que traduzam um compromisso reiterado da comunidade internacional com a proteção dos direitos humanos. Por fim, enfatiza-se que as reflexões em torno da normatização de atividades de entes privados com vistas a proteger os direitos humanos cumpre importante função pedagógica, contribuindo, de forma generalizada, para a educação da sociedade em direitos


humanos. Nesse sentido, admite-se que os diálogos a serem desenvolvidos no UN Business and Human Rights, ao envolveram a sociedade civil, inclusive as corporações empresariais, contribuem também para a geração de uma nova ética social em direitos humanos. Essa função pedagógica desempenha função primordial para o advento dos direitos humanos, sobretudo em países como o Brasil, onde persevera uma “cultura social brasileira, há muito marcada por hierarquias e assimetrias, (que) compromete a universalização da dignidade da pessoa humana” (SARMENTO, 2016, p. 23) e, consequentemente, a efetivação dos direitos humanos. Entende-se que a geração de uma nova consciência ética sobre direitos humanos é condição sine qua non para a realização desses direitos, sobretudo quando considerado o papel nela desempenhado pela sociedade civil. Sem o substrato moral, as normas de Proteção, Respeito e Remediação se tornarão menos efetivas e dependerão exclusivamente do poder fiscalizador do Estado. É preciso que os debates em curso no Sistema ONU adentrem as estruturas internas dos países, mobilizando um diálogo conjunto com toda a sociedade civil, para que a responsabilidade social em sua proteção possa ser difundida. Uma vez afirmado esse novo compromisso ético, as normas de Direito Internacional serão apenas garantias de comportamentos já plenamente internalizados e socialmente sancionados.

Bibliografia AMARAL JÚNIOR, A. Comércio Internacional e a Proteção do Meio Ambiente. São Paulo: Atlas, 2011. ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 1999 COMPARATO, F. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

ONU BR. A ONU e o Sistema Internacional. Disponível em: https://nacoesunidas.org/acao/direito-internacional/. Acesso em 20/10/2017. PIOVESAN, F. Tema de direitos humanos. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2009. RAMOS, A. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016. SARMENTO, D. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia.1ª edição, 1ª reimpressão. Belo Horizonte: Fórum, 2016.

Artigos dos delegados

CONVENÇÃO PARA A PREVENÇÃO E REPRESSÃO DO CRIME DE GENOCÍDIO. Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos- de-apoio/legislacao/segurancapublica/convencaOcrime_genocidio.pdf. Acesso em 22/10/2017.

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RUGGIE, John G. Just Business: Multinational Corporations and Human Rights. New York, Lodon: W.W. Nonton & Company, 2013. Edição Kindle. TRINDADE, A. Desafios e conquistas do direito internacional dos direitos humanos no início do século XXI. 2006. Disponível em: https://www.oas.org/dil/ esp/407- 490%20cancado%20trindade%20OEA%20CJI%20%20.def.pdf, acesso em 21/09/2017.



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