Rostos do Silêncio: Ensaios Transdisciplinares

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ROSTOS DO SILÊNCIO ENSAIOS TRANSDISCIPLINARES

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Rostos do Silêncio: ensaios transdisciplinares ©2019, Inteligência Relacional Direitos de Edição reservados à Inteligência Relacional Editor: Willames Frank Diagramação: Jeamerson Oliveira Imagem da Capa: Shutterstock/agsandrew Revisão Técnica: Sanderson Henrique Martiniano Correia Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Rostos do silêncio [livro eletrônico] : ensaios transdisciplinares / Anderson de Alencar Menezes, Alberto Filipe Araújo, (orgs.) ; [tradução Francisco Cornelio Freire Rodrigues, Alberto Filipe Araújo, Anderson de Alencar Menezes]. -Ribeirão Preto, SP : Editora Inteligência Relacional, 2019. 3.508 Kb ; PDF Vários autores. Bibliografia. ISBN 978-85-62375-81-1 1. Educação 2. Emoções 3. Ensaios 4. Espiritualidade 5. Linguística 6. Literatura 7. Palavras 8. Sentimentos 9. Silêncio 10. Silêncio(Filosofia) 11. Subjetividade I. Menezes, Anderson de Alencar. II. Araújo, Alberto Filipe. 19-32259 CDD-370.1

Índices para catálogo sistemático: 1. Silêncio:Ensaios transdisciplinares: Educação 370.1 Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427

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ANDERSON DE ALENCAR MENEZES ALBERTO FILIPE ARAÚJO (Orgs.)

ROSTOS DO SILÊNCIO ENSAIOS TRANSDISCIPLINARES

Ribeirão Preto, São Paulo-SP -5-


SUMÁRIO PREFÁCIO de Fernando Altemeyer Junior ....................... APRESENTAÇÃO de Henrique Miguel Carvalho ............... CAPÍTULO 1 SILÊNCIO, COMUNICAÇÃO E VÍNCULO SOCIAL.......... David Le Breton CAPÍTULO 2 O SILÊNCIO E A FILOSOFIA............................................... Pietro Montani CAPÍTULO 3 APOSIÓPESIS O SILÊNCIO NA LINGUAGEM DOS MÍSTICOS................................................................................ Carlos H. do C. Silva CAPÍTULO 4 DO SILÊNCIO DO MESTRE À SUA PALAVRA INICIÁTICA. UMA INTRODUÇÃO A UMA PEDAGOGIA DO SILÊNCIO E DA PALAVRA................... Alberto Filipe Araújo Ángel García del Dujo CAPÍTULO 5 AS POLIFONIAS DO SILÊNCIO: A PRESENÇA DO NÃO VERBAL EM PSICOTERAPIA.................................... Walter Boechat CAPÍTULO 6 OS SILÊNCIOS NA LITERATURA INFANTIL: DOS NÃO DITOS AOS ENTREDITOS.................................................... Fernando Azevedo CAPÍTULO 7 PALAVRA E SILÊNCIO(S) NA UTOPIA............................. Joaquim Machado de Araújo

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CAPÍTULO 8 O(S) SILÊNCIO(S) ENSURDECEDOR(ES) EM HARD TIMES DE CHARLES DICKENS.......................................... Armando Rui Castro de Mesquita Guimarães CAPÍTULO 9 ANTIFONA DO SILENCIO.................................................... Maria Helena Vieira CAPÍTULO 10 PARA UMA MITOCRÍTICA AFRICANA DO SILÊNCIO INQUISITORIAL DESMITOLOGIZADOR........................... Carlos André Cavalcanti CAPÍTULO 11 A FACE OCULTA DAS PALAVRAS NA TRILOGIA DO SILÊNCIO DE INGMAR BERGMAN................................... Rogério de Almeida CAPÍTULO 12 CORPO E SILÊNCIO: FUNDAMENTOS PARA UM DIREITO AO SILÊNCIO CORPORAL.................................. Jorge Bravo CAPÍTULO 13 SOBRE A IMPOSSIBILIDADE DO SILÊNCIO NOS TEMPOS HIPERMODERNOS............................................... José Augusto Lopes Ribeiro CAPÍTULO 14 SILÊNCIO, QUIETUDE E ATENÇÃO: O OXIGÊNIO DAS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS: UMA ABORDAGEM SOCIOEMOCIONAL................................... João Roberto Araujo LISTA DE COLABORADORES..........................................

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PREFÁCIO Dizer algo sobre o silêncio é uma tarefa paradoxal. Falar do sublime exige suavidade uterina e uma discrição antropológica rara. O livro que temos em mãos intitulado Rostos do silêncio: Ensaios transdisciplinares teve o cuidado de tatear os rostos de pessoas marcadas pelo sigilo. Ao decifrar o enigma dos silêncios, entramos em um jogo de esconde-esconde; mais escondemos do que revelamos. Impressiona a riqueza dos artigos na multifacetada tarefa de dizer palavras sóbrias sobre tema tão delicado. Recordei-me imediatamente de um filme que mexeu com meus conceitos pessoais. O grande silêncio é o título do documentário de 160 minutos, lançado em 2005 e produzido por Phillipe Gröning, retrato apofático da vida de uma comunidade dos monges cartuxos em Isère, na França. É uma meditação silenciosa sobre a vida monástica. Sem música, à exceção dos cânticos do mosteiro, sem entrevistas ou quaisquer comentários, evoca o tempo, as estações, a rotina dos monges e suas orações e profundo silêncio. Esse filme sobre a presença do Absoluto na vida das pessoas que fizeram um voto em favor do grande silêncio. O próprio cineasta diz que saiu modificado depois dos seis meses vivendo no mosteiro. Creio que os leitores do atual livro também sairão metamorfoseados depois de ler atentamente cada um dos quatorze silenciosos escritores: David, Carlos H., Alberto, Ángel, Walter, Fernando, Joaquim, Armando, Maria Helena, Carlos André, Rogério, Jorge, José Augusto e João Roberto Araújo. Palavras serão comunicadas falando do misterioso silêncio, envolto por seus múltiplos de comunicação, vínculo, filosofia, iniciação, polifonias, literatura, ditos e não-ditos, benditos e malditos, surdez e mudez, antífonas e liturgias, mitos e desmitologização, faces reveladas e ocultas, corpos e impossibilidades possíveis e certamente uma pedagogia do silêncio.

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O que acontece quando mergulhamos no silêncio? Estamos diante do portal de nossos segredos mais recônditos, onde há medo e excitação. É preciso silenciar para recuperar a saúde física e mental. O mundo anda doente, pois está submetido ao exagero de decibéis que atordoam. Apatia e resignação são os sinais evidentes da alienação, produto do estrondo e da dispersão. A pessoa silenciosa ou taciturna é alguém que está além ou aquém de tantas palavras ocas. Possui um fio de prumo sobre sua cabeça. Vive em paz e transmite paz em poucas palavras grávidas de sentido. Dirá o ditado árabe: “Não abra a boca se o que tens a dizer não for mais belo que o silêncio”. Essa é a mesma percepção de São Bento, ao afirmar aos monges em sua Regra que: “... raras vezes se deve conceder, até aos discípulos mais perfeitos, licença para entreterem conversações, embora sobre assuntos bons, santos e edificantes, tão importante é o silêncio; porquanto está escrito: ‘Falando muito não evitarás o pecado’ (Pr 10,19). E em outro lugar: ‘A morte e a vida estão em poder da língua’ (Pr 18,21)”. (Regra de São Bento, capítulo VI, O Espírito do Silêncio.) Os profetas das das religiões, se apresentam como homens do silêncio que fecundaram seus corpos, ouvidos e corações. Só puderam falar o que lhes fora revelado no silêncio profundo. Do judaísmo, Moisés, Oseias e Elias fizeram a experiência do silêncio e do rumor de anjos. No mundo islâmico, o profeta Muhammad, nas grutas da Arábia Saudita, ouve a fala do arcanjo Gabriel. No budismo, os mestres espirituais, das escolas da China e do zen-budismo japonês encontraram o caminho da sabedoria pela meditação silenciosa. Jesus é pessoa que vive o silêncio em frequentes e profundas experiências de oração, como descritas pelos evangelistas (cf. Mt 14,23; Mc 1,35; Lc 6,12; Jo 17). Santo Agostinho dizia que a oração é puro silêncio (O Mestre XII, 39). Não é posse de Deus, mas um estar em Jesus Cristo para viver no seu Espírito e segundo as suas palavras. o silêncio interior favorece a comunicação e sua identidade veraz. O monge João Cassiano (360-435) afirmou, de maneira sucinta: “É perfeita oração aquela onde o que está orando não se lembra de que orando está”, ou ainda que a boa oração seja breve e -9-


silenciosa e manifeste-se por uma tensão ardente da alma, por um transbordar inefável do coração e por um entusiasmo insaciável do espírito (Da oração. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 97). São Simeão (949-1022), teólogo do Mosteiro de Mamas e um dos maiores místicos da Igreja grega, recomendava: “Sente-se sozinho e em silêncio. Incline a cabeça, feche os olhos, respire suavemente e imagine que está olhando para dentro do seu coração. Faça sua mente, ou seja, seus pensamentos, passar da sua cabeça ao seu coração. Respire e diga: ‘Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim!’ Pronuncie essas palavras em voz baixa, movendo suavemente os lábios, ou pronuncie-as, simplesmente, em espírito. Tente afastar todos os outros pensamentos. Esteja tranquilo, seja paciente e repita essa frase tanto quanto puder” (Relatos de um peregrino russo. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 42). Vencidos os obstáculos, podemos penetrar em um estado agudo de felicidade, tal como o silêncio foi definido pela escritora Clarice Lispector (1920-1977). Ela dizia: “Há um silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras”. Em todos os povos e culturas, o tema do silêncio é tratado como necessidade orgânica e filosófica. Rabindranath Tagore (18611941), poeta, músico e filósofo indiano, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1913, tornou-se mundialmente famoso por seu livro Gitanjali (Oferenda lírica). Nele temos um belo poema sobre o silêncio que preenche o coração: “Se não falas, como vou encher o meu coração com o teu silêncio, e aguentá-lo. Ficarei quieto, esperando, como a noite em sua vigília estrelada, com a cabeça pacientemente inclinada. A manhã certamente virá, a escuridão se dissipará, e a tua voz se derramará em torrentes douradas por todo o céu. Então as tuas palavras voarão em canções de cada ninho dos meus pássaros e as tuas melodias brotarão em flores por todos os recantos da minha floresta” (Gitanjali. São Paulo: Paulus, 1991. p. 19). Hoje sabemos que o não dito é tão poderoso quanto a palavra. Assim, quando precisamos estar com alguém que tem uma grande dor, - 10 -


as palavras desvanecem e se atrofiam. O melhor é calar para compreender algo subsônico ou ultrassônico. O silêncio, nesses momentos, exprime melhor o abandono e o fascinante que cada ser humano exprime ardentemente. Ao cultivarmos o silêncio, ouviremos o vento tocando rochedos, o mar atingindo a praia, pássaros cantando melodias, crianças balbuciando, amigos celebrando, pobres pedindo amor, doentes em gemidos inefáveis, florestas crescendo e, auscultaremos a voz interior proclamando que o amor existe em nós, suave e inefável. Na voz da monja Maria Amada de Jesus, podemos dizer: “Eu sou semelhante a um pequeno grão de areia, que espera na praia a onda que o fará mergulhar no oceano”. Silente e suavemente mergulhando no oceano sem dizer palavra. O pensador francês M. SAFOUAN produziu belíssimo texto intitulado : La parole où la mort, onde afirma que na linguagem está a única saída do ser humano e que a nossa escolha deve ser um decidir entre a palavra ou a morte! Ao ler esse livro sobre os « Rostos do silêncio » percebo que o paradoxo atual será o de compreender a palavra grávida de silêncios. Parabéns aos dois organizadores, Anderson de Alencar Menezes e Alberto Filipe Araújo por nos ofertar um livro tão belo no qual os « rostos do silêncio » pretendem ser um mapa do tesouro que está dentro do próprio humano. Grato a ambos por tamanha ousadia de convidar intelectuais para que falassem desse silêncio que clama por um mergulho oceânico. Prof. Dr. Fernando Altemeyer Junior Chefe do Departamento de Ciência da Religião da PUC-São Paulo

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APRESENTAÇÃO Para o animal que inventou a linguagem o silêncio não se pode revelar senão como problema. No Livro do Génesis, o primeiro momento é o da luz e, por isso, de oposição à escuridão. Aqui, o início das coisas é concebido como de transição para a imagem a partir da sua ausência. O testemunho é tido, por isso, como um exercício visual. No Evangelho segundo João, pelo contrário, o primeiro momento é o da palavra e, por isso, de oposição ao silêncio. Aqui, o início das coisas é concebido como de transição para a som a partir da sua ausência. A contradição opõe um mundo de pura oralidade, a outro, no qual a escrita já se encontra firmemente implantada. Mas ela reflete, igualmente, a prioridade da linguagem sobre os fatos, pelo qual um testemunho, de acordo com a narrativa Bíblica, só é um exercício visual se comunicado por sons. O universo teria tido, por isso, dois princípios. Só para quem viu a luz a emergir da escuridão é que o universo começa enquanto imagem. Todavia, para quem não viu a esse princípio luminoso, o efetivo princípio, por ser o único acessível, é aquele que, por palavras e, por isso, através de sons, lhe comunica essa origem feita de luz. O evangelista pretenderia referir-se assim ao fato de, na ordem do testemunho, a palavra anteceder o evento. Se alguém nos fornece um relato sobre o que aconteceu, dizê-lo antecede sempre, enquanto testemunho, o próprio acontecimento: este, claro, terá já sempre de ter acontecido, tão remotamente quanto no princípio, mas sem alguém que no-lo diga e é, na prática, como se nunca tivesse acontecido. Que o testemunho surge aqui concebido como um acto criador é atestado pelo fato de a divindade produzir a luz e, por isso, o próprio universo, por via do ato, necessariamente prévio, de o dizer: há luz por ser dito havê-la. Não há por isso qualquer contradição entre estas duas versões dos acontecimentos: em ambos os casos, o universo é sempre o resultado de um testemunho, mas é também, sempre, o

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resultado de uma tensão essencial entre o som e a imagem, o silêncio e a escuridão. Talvez que o momento em que nos tornamos propriamente humanos fosse aquele em que primeiro esboçamos o gesto de uma palavra, porém, sem que saibamos ao certo quando tal aconteceu, nem como ou porquê. A origem da nossa humanidade permanece, por isso, encoberta pela linguagem que a criou: dando de tudo testemunho, a linguagem fracassa em dar testemunho de si própria. Podemos admitir que não se tratou de uma ocorrência súbita, um brusco despertar vocal, mas um acumular de etapas que culmina no aparecimento de numa nova relação entre a mente e as coisas. Seja como for, para nós, o silêncio, depois dessa palavra original, nunca mais terá sido o mesmo, nem depois, nem antes ou durante quando ela é dita. Um continuar da respiração, a linguagem denota a diferença entre a mente as coisas, o pensamento e as sensações, separando-os, por sinestesia, através do som. Não a sendo, a palavra falada objetiva a consciência: por uma metafísica invertida, ela torna a consciência acessível pelos sentidos. Como veio a descobrir a filosofia da linguagem no Século XX, todos os paradoxos e aporias do conhecimento parecem estar aí contidos. A origem do pensamento reflexivo poderá ter nisso a sua origem. Wittgenstein afirmou que “daquilo que se não pode falar, tem de se ficar em silêncio”. A afirmação concebe a filosofia, não tanto enquanto exercício pelo qual, dando-lhes resposta, se soluciona problemas, mas enquanto exercício pelo qual, dissipando, por falta de significado, a pergunta que coloca o problema, se demonstra a sua ilusão. Trata-se de um esforço na linha daquele anteriormente empreendido por Kant, quanto este se viu confrontado com os paralogismos da razão humana. A afirmação é animada pela intenção, não tanto de silenciar a linguagem, como permitir que ela possa falar daquilo que lhe é lícito, sem o transtorno causado por um seu uso incompetente: não vale a pena tentar encontrar a resposta para uma pergunta quando essa pergunta inteiramente carece de sentido. Nessa medida, em vez de corresponder a uma apologia do silêncio, o que Wittgenstein pretende é garantir à linguagem um uso fluído e sem - 13 -


interrupções, que evite falar do que se não pode, para poder falar do que se pode. Trata-se, por isso, de uma afirmação que representa um aviso e uma admoestação. É possível contrapor haver linguagem feita só de gestos, que não são sons, mas que também não são imagens. Por exemplo, o gesto de levar o dedo aos lábios, indicando com isso silêncio, é um movimento que está muito mais próximo da voz do que da imagem, pois do mesmo modo que a palavra falada é um continuar da respiração, o gesto linguístico é, também ele, um continuar dos movimento da face, dos braços, das mãos, que tantas vezes acompanham e coadjuvam o discurso oral. O gesto é uma imagem em movimento e por isso tão fugaz quanto o som. O som mantém, porém, ao nível da linguagem, uma prioridade que a escrita só vem confirmar. A palavra falada foi concebida para testemunhar o momento, a escrita, pelo contrário, para testemunhar tudo aquilo que excede e ultrapassa o momento. A escrita, pela imagem, estende e amplia a palavra falada, mas também altera a relação primordial entre a escuridão e o silêncio. Na relação com o tempo, o som é sempre instantâneo e efémero, ao passo que a imagem, se não afectada por movimento, é algo que naturalmente perdura e é fixo. Por causa da sua qualidade efémera, a escuridão nunca ameaça a luz como o silêncio ameaça o som. Mas a escrita, ao representar o som, inverte a palavra falada, devolvendo-a, não há escuridão, mas novamente ao silêncio da imagem. A escrita não regista as operações do pensamento, pelo menos não directamente, mas regista, por imagens, o registo que a palavra falada efetua dessas operações, ou seja, a escrita regista, por imagens, os sons que, dando testemunho, registam as operações do pensamento. Ao nível daquilo que a linguagem objetiva, a palavra falada é, na consciência, equivalente à memória. A escrita, por sua vez, é equivalente à imaginação. Coincidente com o registo histórico, cinco mil anos é quanto a escrita teve para manter esse registo, quando a nossa espécie, na sua configuração anatômica moderna, e por isso, dotada de linguagem, existe há pelo menos duzentos mil anos. A história é, por isso, idêntica ao registo possível da evolução da - 14 -


linguagem. Nesse sentido, não é suficiente afirmar que a escrita é condição de possibilidade da história mas que, enquanto registo da palavra falada, o exercício da escrita é o da própria história. É importante perceber que a história não é o testemunho do passado, mas o testemunho daquilo que o passado, por ausência de quem o houvesse experimentado como presente, já não pode testemunhar. Sem escrita, qualquer testemunho fica resumido à palavra falada, cujo alcance temporal, muito limitado, abrange, em regra, não mais de que duas ou três gerações, mesmo com o auxílio, sempre precário, da memória, cuja função, importa sublinhar, é tanto lembrar quanto esquecer. Mas foi essa a condição sob a qual nossa espécie evoluiu, por um lado, sendo capaz de objetivar, pela linguagem, o trabalho da consciência, mas incapaz, por outro, de ver mais longe do que o esparso horizonte de uma vida, o único no qual, porém, ao som, enquanto fugaz e transitório, é dado subsistir. Tornar o passado numa imagem da escrita e, por conseguinte, em história, é uma fenómeno recente: se a linguagem, há duzentos mil anos, nos tornou humanos, a escrita, há cinco mil, tornou-nos civilizados. A civilização não é, nem o advento das cidades, nem a domesticação do mundo natural, que se desenvolveram, uma e outra, sem o benefício da escrita. Sem ter alterado a nossa humanidade, a escrita aumentou-a, ao derrubar qualquer prévio provincianismo histórico. Ao império do espaço deve agora juntar-se o império do tempo. Não admira, por isso, que a poesia corresponda, quase sempre, a uma evocação de nostalgia e que à política esteja subjacente, invariavelmente, uma concepção inflacionada de tempo. A escrita, ao alargar, pela imaginação, o horizonte do testemunho, tornou o mundo mais amplo, mais cheio de possibilidades, sobretudo tecnológicas, mas tornou igualmente a nossa humanidade desajustada e fora de escala. A civilização é, nesse sentido, uma extensão da escrita, uma extensão, isto é, de imagens que representam sons que escondem o silêncio. A partir da escrita, que objectiva a linguagem tomou hoje conta do planeta e da totalidade sua história evolutiva, ao mesmo tempo que se prepara para dar o definitivo salto cósmico. - 15 -


Por que etapas, além desta, a linguagem terá passado antes de chegar à sua configuração atual não existe qualquer registo ou, testemunho fidedigno, a não ser aquele que permanece ligado à escrita. Ao ocupar o espaço de transição entre a palavra falada e a escrita, e portanto, entre, por um lado, a objectivação da consciência pela palavra falada e, por outro, a objectivação da consciência pela objectivação da palavra falada pela escrita, a invenção da literatura, com Homero, assume, em todo este processo, um papel de relevância. O poeta, em prece, dirige-se à Musa, pedindo que ela lhe faculte o relato de acontecimentos que ele nunca pudera ter testemunhado ou que alguém, ainda vivo, tivesse, em segunda-mão, reportado, permanecendo, por isso, fora do alcance de qualquer memória viva. A literatura nunca teria abandonado a posição suplicante, e teria permanecido na esfera da religião, se a resposta à prece fosse facultada pela divindade. Não é isso, todavia, que sucede: a resposta é dada, não pela divindade, mas pelo poeta, o qual, num gesto de profanação lhe usurpa o lugar. Como numa pergunta para a qual não há resposta, a literatura é fruto de um silêncio inesperado, o resultado de uma prece inatendida. Para o remediar, o poeta vê-se obrigado a recorrer à ilusão dramática. O anseio pela fama que anima o herói da epopeia não é o receio do ocaso pela escuridão, mas do esquecimento pelo silêncio. Sombras da luz que em vida foram, os mortos, para Homero, podem, pela fama, ser lembrados, ao mesmo tempo que eles próprios nada lembram: eles são a imagem luminosa que se torna escuridão, deixando de ser vista, mas à qual uma visão alternativa, feita de sons, dando-lhes a fama, a lembrança dos vivos, pode resgatar do esquecimento. Por outro lado, se Homero é tido por cego, é porque para ver, primeiro, não há que olhar, mas falar: pelo testemunho do poeta, não se vê para depois se falar, mas fala-se para que se possa ver. O ato de criação é também um ato de fé. Com a escrita, o animal que inventou a linguagem tem agora de aprender a lidar, quer com o silêncio, quer com a sua ausência. O contrário do silêncio, com efeito, não é uma imagem, mas a ausência de som. A substituição do silêncio músico, antes de corresponder a um gesto poético, é um gesto de - 16 -


confronto com a religião. O silêncio que responde à súplica do poeta demonstra a distância que há entre o acontecimento e o testemunho, entre a vida e a sua representação verbal, entre a consciência e a sua objetivação pela linguagem, que a literatura, enquanto ilusão dramática, deve tornar a unir e integrar. Mas uma vez ocupando a posição da Musa, o poeta, à semelhança de alguém que não pode parar de respirar, fica obrigado a falar continuamente e sem pausa. A partir desse momento, ele, enquanto ator, ou leitor de imagens, não se pode separar da personagem, sob pena de o silêncio religioso que encobre ficar novamente a descoberto. Na literatura não tem, por isso, um fim à vista; ela apenas se transforma e transfigura, primeiro em historiografia, depois em filosofia e finalmente no arco abrangente das ciências, quer naturais, quer humanas, de cada vez que o poeta, por lapso ou interrupção do público, cria o perigo do ressurgir de uma prece que, desde o princípio, permanece por atender: composta por imagens que não falam, mas que substituem sons, a literatura é uma contínua emenda à silêncio da divindade. O problema com que Homero se debate é, nessa medida, o de Wittgenstein. O melhor exemplo disso é Sócrates, o inventor da filosofia, quando o vemos evitar, a todo o custo, que o exercício praticado, em praça pública, de encetar um ciclo sucessivo de perguntas e respostas, por ausência de réplica, subitamente cesse e fique interrompido, assim denotando o mesmo silêncio, a mesma recusa da divindade em facultar testemunho do que quer que esteja situado para lá do horizonte da experiência e da memória. A vida examinada é uma vida sem silêncio, cheia de “som e fúria”. Que Sócrates nada tivesse escrito e que Homero seja o nome atribuído a um autor compósito, oriundo de um mundo já com escrita mas ainda predominantemente oral, não invalida o argumento. De cada vez que o silêncio ameaça o seu reaparecimento, é porque a escrita entrou em ruptura, incapaz de ocultar, pela imagem, o som que encobre o silêncio e em que a tensão essencial entre o som e a imagem, o silêncio e a escuridão, novamente se manifesta, sendo desse modo que o poeta, o historiógrafo, o filósofo, o cientista, periodicamente, são - 17 -


convocados a recolocarem a prece que Homero endereça à Musa e a renovar, por via da ilusão dramática, a inevitável ausência de resposta, regressando, por momentos, ao princípio antes da criação, onde o silêncio é mais aterrador que a própria escuridão. O volume que aqui se apresenta, reúne um conjunto diversificado e abrangente de ensaios que lidam com estas e outras questões relacionadas com o problema, sempre elusivo e multifacetado, do silêncio. Podemos dividir a abordagem aqui feita em quatro categorias. Em primeiro lugar, temos o silêncio na sua relação mais direta com a linguagem: são exemplos disso o texto de José Augusto Lopes Ribeiro, sobre a relação entre o silêncio e o ruído, especialmente tal como esta se manifesta no contexto do fenômeno de aceleração das sociedades modernas; o texto de Walter Boechat, sobre o silêncio enquanto vetor de comunicação, positivo e atuante no interior da própria linguagem; o texto de Jorge Bravo, sobre a relação do silêncio, infinitamente subtil, com o corpo e o seu atributo de movimento; e o texto de Maria Helena Vieira, sobre o papel ambíguo, simultaneamente de corte e ligação, que o silêncio demonstra ter na relação que se estabelece entre a música e a palavra. Em segundo lugar, temos o silêncio em contexto histórico: são exemplos o texto de Carlos H. do C. Silva, incidindo sobre o modo, riquíssimo, como o silêncio tem sido entendido pela religião, sobretudo enquanto condutor de uma experiência devocional e mística; o texto de Joaquim Machado, que aborda o papel que o silêncio desempenhou na emergência do pensamento visionário e utópico; e o texto de Carlos André Cavalcanti, que trata do silêncio, por um lado, enquanto recurso técnico da Inquisição, por outro, enquanto elemento suportador de mitologias, nomeadamente de cariz colonial e imperial, numa curiosa relação com a recepção da religião africana no Brasil. Em terceiro lugar, temos os caso de estudo: são exemplos o texto de Armando Rui Guimarães, que estuda a forma como o silêncio, na obra de Charles Dickens, Hard Times, é usado pelo autor para marcar e sublinhar diversas características da sociedade vitoriana, quer ao nível das relações sociais, laborais, sexuais e religiosas; e o texto de Rogério de - 18 -


Almeida, no qual se apresenta um estudo, sob a perspectiva do elemento trágico, da trilogia do silêncio de Ingmar Bergman, Através de um Espelho (br.) / Em busca da verdade (port.), de 1961, Luz de Inverno, de 1962, e O Silêncio, de 1963. Em quarto lugar, o problema do silêncio é abordado enquanto tópico teórico e de reflexão: são exemplos o texto de Alberto Filipe Araújo e Ángel García del Dujo, ao abordar a forma como o silêncio, enquanto busca interior, tem um papel importante a desempenhar na cumprimento da tarefa pedagógica; o texto de Pietro Montani, onde o silêncio é visto, de uma perspectiva filosófica, enquanto elemento possível de ligação entre o sensível e o supra-sensível, o corpo e o olhar; e, finalmente, o texto de David Le Breton, o qual nos oferece uma leitura de cariz antropológico sobre a forma como o silêncio perturba, infiltra e se manifesta na experiência quotidiana do ruído, da linguagem e da morte. No seu conjunto, estamos perante um contributo rico e facultador de inúmeras pistas para um tema ao qual é urgente regressar. Henrique Miguel Carvalho Maio de 2019

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CAPÍTULO 1 SILÊNCIO, COMUNICAÇÃO E VÍNCULO SOCIAL1 David Le Breton2 «Ce qu’un homme ne dit pas est le sel de la conversation !» Sylvie Germain, Eclats de sel.

1. Tirania do Barulho O ruído é um som com um valor negativo, um atentado ao silêncio. Ele incomoda aquele que o percebe sob a forma de um obstáculo à vivência da sua liberdade e se sente agredido por manifestações que a ele se impõem, o impedem de descansar, de desfrutar pacificamente do seu espaço. Introduz uma interferência dolorosa entre o mundo e si próprio, uma distorção da comunicação pela qual os significados são perdidos e substituídos por uma informação parasitária que provoca a inconveniência ou a irritação. A sensação de ruído surge quando o som circundante perde a sua dimensão sensorial e se impõe de um modo agressivo, deixando o indivíduo indefeso. Esta sensação é consequência das atividades do indivíduo. O farfalhar da vida familiar no apartamento é assim vivido de uma maneira dolorosapor Kafka, paralisado no seu desejo de escrever por causa da perpétua turbulência doméstica que o rodeia: Estou sentado no meu quarto que é o quartel-general de todo o ruído do apartamento. Oiço bater todas as portas, Tradução de Alberto Filipe Araújo (Professor da Universidade do Minho (Braga – Portugal). Revisão do texto de Maria Cecília Sanchez Teixeira (Professora Aposentada da USP – São Paulo), a quem o autor agradece penhoradamente. 2 Ver Lista de Colaboradores. 1

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graças a que apenas os passos das pessoas que correm entre as duas portas me são poupados. Oiço ainda a porta do fogão sendo fechada na cozinha. O meu pai arromba a portado meu quarto e atravessa-o vestido de um roupão que lhe dá até aos calcanhares, raspa-se as cinzas de uma lareira no quarto do lado. A Valli grita do vestíbulo como se fosse de um lado para o outro de uma rua de Paris a perguntar se o chapéu do pai foi escovado, silêncio! um pedido de silêncio que se diz favorável a mim torna mais alto o grito de uma voz que responde3.

Para o pai de Kafka, além disso, a noção de ruído atribuída a esses comportamentos teria pouco significado, não seria para ele senão os sons comuns da vida, um feliz invólucro de som. Uma relação simbólica preside à perceção de sons provenientes de fora. O ruído constante da rua, integrado pelo indivíduo como não entrando na sua esfera de influência, é finalmente esquecido, enquanto as invasões de ruído da vizinhança são pressentidas como indesejáveis, violações da intimidade pessoal. Muitas queixas, relativas ao ruído, apresentadas nas esquadras de polícia envolvem disputas entre vizinhos: conflitos, gritos ou choro de crianças, televisão, rádio, aparelhagens de alta fidelidade em alto som, agressões, festas noturnas, etc., que invadem a intimidade. A vítima do barulho sente-se como expulsa de sua casa. A informação acústica é, na maioria das vezes, apenas tolerada se emana de nós ou de alguma forma temos o controlo sobre ela. Os ruídos que produzimos não são entendidos como desconfortáveis, eles fazem sentido. Eles estão misturados com os movimentos da vida. São sempre os outros que fazem barulho. Muitas vezes, nas relações sociais, o ruído é transformado em poder, como uma capacidade de incômodo sobre os outros com os quais precisamente a pessoa não se dá. A extensão da técnica vai a par com a penetração acrescida do barulho na vida quotidiana e com uma impotência cada vez maior em controlar os excessos. Consequência inesperada do progresso técnico, 3

F. Kafka, Journal, Paris, Grasset, 1954, p. 21.

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a sensação de ruído é a sombra do conforto. Embora não seja um problema recente, ganhou impulso nos anos 50 e 604. Novos ruídos ressoam nos apartamentos como o rádio, a televisão, os instrumentos domésticos, o celular, as colunas de som, etc. O conforto acústico é um luxo. Se alguém consegue abstrair-se dos outros sentidos, como a repelir um odor ou fechar os olhos, a audição resiste ao teste, a sensação de ruído é a consequência. Nas cidades, os ruídos ficam emaranhados e acompanham na sua constância a caminhada do citadino: carros, caminhões, ciclomotores, ônibus, bondes, estaleiros de obras, sirenes das ambulâncias ou da polícia, alarmes desencadeados sem motivo aparente, animações comerciais das ruas ou dos bairros, apartamentos com janelas abertas que deixam ouvir a música em alto volume, etc. Trabalhos de reparação, de manutenção, de construção de edifícios, de demolição de edifícios antigos, etc. À profusão de barulho nascido da cidade, à circulação incessante das viaturas, as nossas empresas adicionam novas fontes sonoras com música de fundo nas lojas, nos cafés, nos restaurantes, nos aeroportos, etc., como se fosse necessário para afogar o silêncio dos lugares onde a palavra é trocada dentro de uma bacia permanente de ruídos que ninguém escuta, que por vezes indispõe, mas cujo interesse é destilar uma mensagem reconfortante. Antídoto ao medo difuso de não ter nada a dizer, infusão acústica de segurança cuja rutura repentina suscita um incômodo redobrado. A música de fundo, ou ambiente, tornou-se uma arma eficaz contra uma certa fobia do silêncio. Este universo sonoro insistente isola as conversas particulares ou envolve os sonhos, confina cada um no seu próprio espaço, equivalente fônico dos biombos que resguardamos encontros em si mesmos, criando uma intimidade através do bloqueio criado em torno de si mesmo. O retorno do silêncio, no final da faixa, por exemplo, torna-nos sensíveis às palavras trocadas, ao seu conteúdo, o fim da música quebra a discrição anterior, proíbe o devaneio, e até 4

Guy Thuillier, Pour une histoire du quotidien au XIXe siècle en Nivernais, ParisLa Haye, Mouton, 1977, p. 234.

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mesmo refreia as pausas nas discussões por temor de que esses momentos sejam confundidos com um vazio ou com uma indiferença. É mais fácil ficar calado na presença de uma música ambiente que no silêncio de uma sala de espera, onde o desvanecimento ritualizado do corpo, em particular, é mais difícil de ocorrer e o desconforto mais tangível, exceto se nos esquecermos na leitura de uma revista ou de um livro e se conseguirmos silenciar-nos5 O tumulto do mundo provavelmente irá preencher o seu quarto a qualquer hora do dia ou da noite. Os sons são reproduzíveis até ao infinito, pode-se mesmo imaginar que eles sobrevivem durante muito tempo ao desaparecimento dos homens. A modernidade inventou a constância da sonoridade e a capacidade de multiplicar os altofalantes. O indivíduo que não tolera a solidão ou o silêncio tem a liberdade de usar em todos os fatos e gestos da vida quotidiana um ruído de fundo. Os programas de rádio ou da televisão nunca deixam de se ouvir, nem nos ambientes musicais comuns dos espaços públicos, nos lobbies de hotéis, nos cafés, nas lojas, nos restaurantes, nos shopping centers, às vezes, até nos meios de transporte. Arrancada às suas raízes no silêncio, a própria palavra é degradada em ruído de fundo. Uma ladainha infinita acompanha o homem ao longo do dia, proporcionando-lhe pontos de referência implacavelmente reconfortantes. E se ele entra em casa no seu silêncio relativo, acontece que é ele próprio que liga o rádio ou a televisão, que assistea um filme em DVD ou que ouve as suas músicas gravadas. O ruído exerce um efeito narcótico no seio do apartamento ou na rua, ele assegura a permanência de um mundo sempre indemne. Ele projeta uma linha de audição controlável e reconhecível à maneira de uma tela que põe fim à turbulência e à profundidade preocupante do mundo. Exercício de conjuração para evitar a rarefação do sentido. As empresas de liquidação do silêncio abundam, não são intencionais, mas elas aumentam os ruídos do ambiente urbano ou simplesmente técnico; elas invadem ainda lugares intocados, em 5

David Le Breton, Antropologia do corpo e modernidade, Petrópolis, Vozes, 2012.

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pousio, entregues à pura gratuidade do silêncio. As zonas de silêncio são particularmente vulneráveis às agressões sonoras. O menor ruído é uma mancha de óleo e estende-se por longas distâncias. Uma serra elétrica, um carro ou uma motocicleta nas estradas de terra de uma floresta, uma lancha num rio ou lago, quebram o encanto do lugar, acrescentando um elemento estranho que esses espaços não podem integrar. Eles prejudicam-no porque restringem brutalmente o seu uso, ao fazer-se um mero resíduo de ruído. O mundo contemporâneo enfrenta uma tentativa difusa de saturação do espaço e do tempo com uma inesgotável emissão sonora. O silêncio sendo uma zona não desbravada, suspensa das expectativas, sem uso, provoca uma retaliação de preenchimento, de animação, de modo que finalmente se quebra esse desafio do "inútil" que oculta. Porque para uma lógica produtiva e comercial, o silêncio é inútil, ele ocupa um tempo e um espaço suscetível de beneficiar de um melhor rendimento. Para a modernidade, o silêncio é um resíduo que espera uma utilização mais frutífera, é a imagem de um descampado no coração da cidade, uma espécie de desafio que exige o imperativo de torná-lo lucrativo, de torná-lo objeto de uma qualquer utilidade, já que, entretanto, ele não é mais do que uma pura perda. Anacrônico, um domínio onde o ruído ainda não penetrou, é um arcaísmo que deve encontrar seu remédio. O silêncio ressoa como um fracasso ensurdecedor do sistema. É um remanescente, onde o ruído ainda não penetrou ou alterou, aquilo que os meios ou as consequências das técnicas ainda poupam. 2. A palavra como barulho Estamos agora imersos na continuidade do ruído. O mundo ressoa implacavelmente com instrumentos técnicos de informação e comunicação cujo uso acompanha a vida pessoal ou coletiva. A própria palavra é transbordante, transmitida por tantos porta-vozes. Não aquela palavra sempre renascida e feliz que dá corpo à sociabilidade, mas a das redes sociais, dos altifalantes das cidades, a música ambiente que visa regular o tom emocional, ou afetivo, de um - 24 -


lugar ou a palavra desencarnada mediatizada pelos celulares que muitas vezes somos obrigados a ouvir nas ruas, nos cafés ou nos transportes públicos. Esta palavra que já não sabe como ficar em silêncio, corre o risco de não ser mais ouvida, está lá, invasiva e intolerável para alguns, e tranquilizadora para outros, perdidos sem a proteção sonora que os proteja do sentimento da insignificância. Ela constrói uma comunicação baseada no único contato, onde a informação é secundária, onde é importante mostrar a continuidade do mundo. Como a música, ela é transformada em dados de ambiente. Um sussurro regular e sem consequências no seu conteúdo, essencial apenas pela sua forma. A sua mensagem continua lembrando que o mundo ainda existe e sempre. A "comunicação", como uma ideologia moderna, é uma confirmação repetitiva dos indivíduos nas suas posições recíprocas de locutores e de recetores, uma forma de colocar limites seguros para uns e para outros sobre o modo de um serviço prestado: “Você está lá, você existe desde que você me ouve, e eu existo porque eu falo com você". Comunicação fática que visa insistir apenas no contato, o conteúdo da mensagem é muitas vezes acessório. Continuamos comunicando, mas encontramo-noscada vez menos. Uma palavra sem presença não tem efeito concreto sobre um ouvinte sem rosto e sem corpo. Internet, as redes sociais, os celulares são uma interrupção permanente do silêncio da vida, o seu ruído substitui as conversas tradicionais. A sua ladainha eterna lembra-nos que o mundo continua a sua volta, com a sua procissão de tragédias, mas que ainda não há muito com que se inquietar. O verdadeiro drama seria o silêncio da mídia, um apagão generalizado dos computadores, uma impossibilidade de funcionamento dos telefones celulares, em resumo um mundo entregue à palavra e aos rostos dos mais próximos, a única apreciação pessoal. O homem é doravante um lugar de trânsito dedicado a recolher uma mensagem infinita que só o preocupa perifericamente para confirmá-lo com mais frequênciana sua existência por falta de qualquer outra coisa. A força significante do discurso é desacreditada ou embotada no imperativo de dizer, de dizer - 25 -


tudo, de que nada é você, que reina uma transparência perfeita que não deixa nenhuma área de segredos intocada, nenhuma zona de silêncio. Virando o homem como uma luva, já que ele está completamente presente para si mesmo na sua superfície. A proliferação técnica da palavra torna-a inaudível, intercambiável, desqualifica a sua mensagem ou impõe uma atenção especial para ouvi-la no burburinho que a rodeia. A comunicação é menos pródiga de sentido do que de uma voz faladora e inconsequente, ela esvai-se pela velocidade de sua elocução e da sua obsolescência. A hemorragia do discurso nasce da sutura impossível de um silêncio doravante transformado num tempo de angústia, desprovido de significados propícios. A comunicação que tece interminavelmente os seus fios nas malhas da trama social é sem lacunas, ela dá-se no modo de saturação, ela não sabe calar-se para ser ouvida, falta-lhe o silêncio que lhe daria um peso e uma densidade. E o paradoxo deste fluxo interminável é que ela percebe o silêncio como seu inimigo jurado ou de estimação: nenhum branco na televisão ou no rádio, impossível deixar passar um momento de silêncio, difícil deixar o seu telefone celular desligado por muito tempo, há sempre um fluxo ininterrupto de palavras ou de músicas como para afastar a ameaça de finalmente ser ouvido. Qualquer pausa, mesmo caminhando pela rua, torna-se uma fonte de preocupação para inúmeros pedestres, não apenas adolescentes, que mantêm os seus celulares diante do seu olhar e seguem como se fossem conduzidos por sua dinâmica. Ou o tiraram do bolso com constância no medo de perder um minuto de SMS. O estatuto de uma tal palavra é de esquecer tudo o que ela enuncia. O paradoxo desta saturação sonora do espaço ou dessas intermináveis comunicações por telefone celular torna desconfortável a interioridade daqueles que estão em silêncio e que desejam sonhar, ler ou vaguear, às vezes dificultando até a conversa cara a cara devido à intromissão sonora presente. A palavra ao telefone não é a palavra da conversa, desencarnada, ela força a voz, torna-a mais insistente, persegue o ouvinte, é ainda mais irritante para a vizinhança que não interfere de nenhum modo com a conversa comum. Assim, os cartazes - 26 -


nas paredes de certos lugares ou o pedido da Ferrovia para usar os celulares apenas nas plataformas. Nenhuma conversa é proibida, apenas essa palavra invasora mediada pelos telefones celulares que obriga a atenção dos usuários que se encontram no mesmo lugar. Essa palavra interminável não tem réplica. Ela não é da ordem da conversa, ela ocupa antes o terreno sem se preocupar com as respostas. Certamente, ela não é necessariamente um monólogo, mas às vezes tende a ser uma forma de autismo falante. Os seus protagonistas são anónimos e intercambiáveis, mesmo que às vezes ainda seja possível dar-lhes temporariamente um rosto. Uma palavra faz-se ouvir, falta a carne do mundo tantona sua transmissão como na sua receção, ela não conhece nem a reciprocidade nem a ressonância que alimentam qualquer conversa. Palavra sem presença e, portanto, sem se preocupar nem com o retorno da voz, nem em estar atenta em escutar a mensagem. A palavra que a multidão dos meios de comunicação emite dissolve-se na abundância de palavras, tornandose assim insignificante. No final, reina a melancolia do comunicador, sempre forçado a reter uma mensagem sem efeito na esperança de que o próximo finalmente tenha uma ressonância. Quanto mais o celular toca, maior o desejo de ouvi-lo novamente, para nunca mais ser deixado para trás na corrida da comunicação sem fim. Antes da chegada do celular, as pessoas conversavam em família, nos restaurantes, nos cafés, nos transportes públicos, a caminho do trabalho ou em casa, agora, com o celular na mão, todos em volta da mesa ou caminhando com os outros, ao mesmo tempo que consultam os seus e-mails ou que enviam um SMS, distribuindo uma palavra, de vez em quando, para lembrar aos outros que eles, apesar dos interregnos, ainda existem. O imperativo de comunicar é uma acusação do silêncio, pois é uma erradicação de toda a interioridade. Não deixa tempo para refletir ou para o devaneio porque o dever de falar prevalece. O pensamento exige paciência, deliberação. A comunicação sempre é feita na emergência. Ela transforma o indivíduo numa interface ou o destitui dos atributos que não dizem imediatamente respeito às suas - 27 -


exigências. Na comunicação, no sentido moderno do termo, não há mais espaço para o silêncio, há uma restrição da palavra para fazer a confissão, uma vez que a "comunicação" é dada como uma exigência implacável do vínculo social. Difícil de não ficar ligado ou conectado, eternamente disponível para os condicionalismos da comunicação. O pecado neste contexto reside em comunicar-se “mal”, ainda mais repreensível, imperdoável, é calar-se. A ideologia da comunicação assimila o silêncio ao vazio, a um abismo dentro do discurso, ela não entende que às vezes é a palavra que é a lacuna do silêncio. O silêncio é o inimigo jurado do homo comunicans, sua terra de missão, o ruído mais nocivo aos seus olhos, o mais impensável. Isso implica uma interioridade, uma meditação, uma distância tomada com a turbulência das coisas, uma ontologia que não tem tempo de aparecer se não estivermos atentos a ela. O único silêncio que a comunicação conhece é o da avaria, da falha da máquina, a interrupção da transmissão. É uma cessação do tecnicismo mais do que a emergência de uma interioridade. O silêncio torna-se então um vestígio arqueológico. Anacrônico na sua manifestação, produz desconforto, a tentativa imediata de refreá-lo como um intruso. Ele sublinha os esforços ainda a serem feitos para garantir que o homem finalmente alcance o estádio glorioso do homo comunicans. A conexão generalizada e instantânea de todos na transparência e a liquidação de uma interioridade percebida como um abismo. Mas, ao mesmo tempo, o silêncio ressoa como uma nostalgia, ele clama o desejo de uma escuta sem pressa no sussurro do mundo. A embriaguez da palavra torna invejável o repouso, a fruição de pensar enfim o evento de falar sobre ele num ritmo tranquilo de conversa que avança humanamente, indo, enfim, ao encontro do rosto do outro. E o silêncio, reprimido que era, assume então um valor infinito. A tentação às vezes é grande de opor à “comunicação” transbordante da modernidade, indiferente à mensagem, a "catarse do silêncio"

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(Kierkegaard) esperando que o valor da palavra seja totalmente restaurado6. 3. O silêncio na palavra Claro, a conversa permanece desde que não seja interrompida pelo toque de um celular e o solilóquio de um dos seus protagonistas enquanto os outros esperam pacientemente ou ruminando a sua raiva. Neste caso, não é mais o silêncio que se impõe aos outros, forçados a aguardar o fim da comunicação, mas o mutismo. Mas na conversa comum que ocorre na reciprocidade, o reconhecimento mútuo, o pontilhado do silêncio necessário para a clareza da elocução e da perceção não responde ao mesmo estatuto cultural de uma sociedade para outra. Os usos diferem de um lugar para outro e às vezes dão origem a mal-entendidos e a interpretações divergentes. É então menos devido ao conteúdo da palavra ou ao ritmo da elocução e mais pela distribuição e a duração do silêncio que o embaraço mútuo é provocado. Estas diferentes práticas da língua, as pausas mais ou menos longas, o nível de voz, o momento oportuno de usar a palavra, provocam a desordem daqueles que manifestam outros ritmos de palavras no decurso das trocas, de outras ritualidades. Assim, os índios Atapascas, no oeste do Canadá, são considerados por seus vizinhos americanos como "passivos, mal-humorados, reservados, sem poder de argumentação, preguiçosos, atrasados, destrutivos, hostis, não cooperativos, antissociais e estúpidos"7. Estas atribuições negativas realmente traduzem-se em juízos de valor que incidem menos sobre os homens do que sobre os estatutos diferentes do uso da palavra. A sobriedade do índio, as suas longas pausas, os seus rodeios de palavra que não se engrenam imediatamente com o silêncio do seu 6

Sobre todos estes aspetos, cf. David Le Breton, Do Silêncio, Lisboa, Instituto Piaget, 1999. 7 R. Scollon, “The machine stops: silence in the metaphor of malfunction”, in D. Tannen, M. Saville-Troïke (eds), Perspectives on silence, Norwood, Ablex, 1985, p. 24.

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interlocutor, desarmam quem não está familiarizado com esses rituais da palavra e encorajam-no a projetar sobre ele estereótipos negativos, sem conceber por um único momento que ele próprio poderia atribuirse qualificativos inversos e igualmente críticos: ser falador, invasivo, superficial, nervoso, agressivo, pretensioso, etc. Neste contexto, as lacunas entre o tempo de pausa ou o uso da palavra expõem um dos interlocutores à acusação de volúvel e o outro de taciturno. No entanto, estes são apenas juízos de valor que universalizam um ponto de vista cultural. Os Apaches de Cibecue, conhecidos pela sua moderação, sua economia de palavra, qualificam os brancos de sangue quente, de faladores e de outros termos negativos aos seus olhos8. Se são apanhados numa interação, aqueles que falam rapidamente ou lentamente prestam-se mutuamente a ser mal interpretados. Os primeiros acham os seus companheiros fechados e não cooperativos, mas os últimos encaram-nos, por sua vez, como dominadores e têm dificuldade para encontrar a oportunidade de expressar-se por seu turno9. Quando K. Basso quer conhecer um homem-medicina de renome, o idoso cumprimenta-o com um olhar: "Não dizemos nada por um minuto ou dois e depois começamos a conversa ao trocar as novidades da região até que chega a hora de anunciar educadamente o propósito da minha visita”10. Os Navajos têm tempos de pausa prolongados e falam pouco. Se uma questão lhes é colocada num grupo, são frequentemente aqueles que não são Navajos, desconcertados por uma expectativa que ultrapassou o seu limiar de tolerância, que dão a resposta11. De acordo com R. Carroll, os 8

K. H. Basso, « To give up on words »: silence in Western Apache culture, in P. P. Giglioli (ed.), Language and social context, Harmondsworth, Penguin, 1972, pp. 6787. 9 D. Tannen, Silence: anything but, in D. Tannen, M. Saville-Troïke (eds), op. cit., p. 108. 10 K. H. Basso, L’eau se mêle à la boue dans un bassin à ciel ouvert, Paris, Zone Sensible, 2016, p. 68. 11 M. Saville-Troïke, “The place of silence in an integrated theory of communication”, in D. Tannen, M. Saville-Troïke (eds), op. cit., p. 13.

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americanos das classes médias queixam-se frequentemente de que os franceses os interrompem continuamente sem respeitar as pausas. No entanto, a interrupção é um elemento das ritualidades das discussões francesas, o princípio que consiste em não interromper o interlocutor no meio de uma palavra ou de uma frase, mas de captar uma ligeira flexão da voz para usar da palavra aquando da sua vez. O americano que não está acostumado a esse ritmo e a esses procedimentos simbólicos tem dificuldade em completar o seu dito, experencia uma frustração e julga superficial o seu interlocutor12. Num grupo de mulheres social e culturalmente homogêneo de um colégio de Maryland, as mulheres que fazem as pausas mais curtas são encaradas favoravelmente pelas suas parceiras que dizem que são cooperativas, simpáticas, atenciosas com os demais, calorosas, sociáveis, etc. Por outro lado, as companheiras que fazem pausas mais longas são encaradas como reservadas, distantes, taciturnas, sóbrias, tímidas, rígidas, frustradas, etc. No mesmo regime social de palavra, aquando das conversas comuns, as diferenças pessoais orientam juízos mais ou menos favoráveis de acordo com os usos habituais do silêncio. Nas classes médias da sociedade americana, é melhor falar do que ficar calado e, se alguém fala, deve evitar recorrer a pausas ou falar devagar. Os juízos sobre o outro referem-se, sem o seu conhecimento, àqueles que os formulam na base de valores culturais implícitos que legitimam o silêncio ou a palavra, a necessária sobriedade do discurso ou, inversamente, o prazer de uma conversa que nada interrompe. Não existe uma regra universal que regule o uso da palavra ou do silêncio nas conversas. Há mal-entendido quando os locutores, enraizados em diferentes modos de discurso, fazem projeções negativas sobre o outro, ao considerarem a sua maneira de falar como sendo a única normal. Essas regras de uso do emaranhamento da palavra e do silêncio, esta competência de comunicação, fazem parte 12

R. Carroll, Evidences invisibles: Américains et Français au quotidien, Paris, Seuil, 1987, p. 62.

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de um processo de educação e de um ritmo pessoal, que elimina a sua arbitrariedade e se dá como "natural", alimentando a suspeita daqueles que suprimem a sua evidência. A arte diária da conversa, orientada por padrões culturais que os atores redefinem a cada momento, não é apenas saber como conversar, mas sobretudo saber calar-se sobre isso, deixar instalar-se no seio da conversa uma qualidade de silêncio que seja capaz de fazer pausas necessárias para que a conversa flua com mais naturalidade, para que haja uma melhor repartição dos tempos entre os interlocutores envolvidos. Os locutores aproveitam esses intervalos para marcar, avaliar o nível de comprometimento exigido pela discussão e decidir da orientação e do nível da conversa. Não há discurso sem pausa, não há palavra sem uma trama de silêncio à sua volta13. A ritualidade da palavra implica um ritmo de uso de palavra, um volume da voz, um dado fluxo, etc. Quando flui de uma fonte num discurso, o silêncio nutre a palavra e torna-a inteligível e transmissível. Ele dá corpo à linguagem. O silêncio que atravessa a conversa provoca, ou não, a desordem segundo as convenções de linguagem que governam o grupo e o grau de compromisso de uns com outros. Se a palavra se impõe, qualquer derrogação ao seu uso suscita um desconforto que reflete a rutura das expectativas mútuas. Se os locutores não gozam de uma cumplicidade que lhes permita fazer longas pausas, o tema do silêncio é uma questão que requer tato. Se eles têm pouco a dizer-se uns aos outros, muita da sua preocupação consiste em evitar que o silêncio aconteça. É como a armadilha que esconde a interação e cuja ameaça deve ser evitada. A gestão de pausas e de lembretes forma um pólo de obsessão de certas conversas que definham em assuntos mundanos sem que ninguém possa encontrar uma maneira honrosa de sair. Uma discussão em que ninguém sente nenhum desconforto é aquela em que os respetivos contornos do silêncio de uns e de outros circulam com toda a evidência. 13

Sobre as questões do estatuto do silêncio na conversa e sobre os desníveis culturais, reenvio à minha obra sobre o Silêncio atrás citada.

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Um profundo desconforto decorre do silêncio que de repente quebra o fluxo pacífico de uma conversa e se estabelece sem que ninguém possa fugir, mergulhar numa diversão feliz ou perder-se de repente na contemplação da paisagem circundante. O vazio assim criado fora de toda a ritualidade é como um confronto brutal com a intimidade do outro. A presença mútua torna-se enorme, embaraçosa, impossível de apagar ritualmente por uma ação comum ou por uma palavra que rompa o desconforto. Calar-se equivale a exibir o seu rosto, as suas mãos, a entregar o seu corpo à indiscrição do outro sem poder defender-se da sua atenção real ou imaginária. Cada um sente-se posto de lado, preso no constrangimento da situação, como se apanhado de surpresa [comme percé à jour dans sa légèreté]. O silêncio possui então um valor de abismo cavado no caminho até ao momento tranquilo da conversa. Ele abre ao coração da troca uma brecha de sentido incômodo a colmatar porque ele acusa sem remissão a insignificância das palavras anteriores, o puro mundanismo dos ditos trocados. Quando o silêncio se instala, o relacionamento torna-se mais tenso. Ele entra numa zona de turbulência. A circulação fluida dos ditos é como uma vela cuja chama deve ser cuidada por medo que ela se extinga através do respeito pelos rituais da troca de palavras e da presença mútua dos corpos. Este silêncio socialmente inesperado no interior da conversa engrossa o fluxo de tempo, quebra a fluidez anterior do significado que conferia a palavra. O espaço é como coagulado, a interação tornase irritante, inoportuna. É necessário falar, mesmo para dizer qualquer coisa, para criar uma diversão, para provocar uma tela de sentido em torno de si que neutralize a desordem e consiga in extremis salvar a face. Mas a armadilha fecha-se às vezes porque decididamente os interlocutores têm pouco a dizer ou não têm inspiração. Gradualmente, o pânico interno impõe-se e o silêncio, estabelece-se como uma massa de chumbo na conversa. Então, inevitavelmente, aparece a piada convencional sobre "o anjo que passa" ou um toque de humor na morosidade do grupo. O riso esperado que emerge dessa evocação apaga o constrangimento, oferece a oportunidade de renovar - 33 -


a conversa, uma maneira ritual de dissipar a desordem. Após o risco de fragmentação que ele acabou de viver, o grupo recupera a sua unidade no riso, e as rotinas de conversação retomam imediatamente. O riso unânime é um renascimento da fala, as línguas soltam-se de novo, ainda que seja só para se despedirem. Após um momento de dúvida, o laço é restaurado. Essa evocação ritual de um "anjo passageiro" reflete o medo que permeia a situação, o mal-estar profundo que se refere aqui a uma evocação do além, da morte, através da figura do anjo. O além quase tocou o aqui-baixo ou tocou-o mesmo. Os gregos antigos diziam que "Hermes entrou". Alusão à guirlanda de silêncio que envolve o deus em circunstâncias diferentes: quando ele caminha nenhum barulho é ouvido, os cachorros nunca uivam à sua passagem. Para calar-se sem prejuízo na frente do outro, é necessário conhecê-lo já e sentir-se a salvo do seu olhar ou de seu juízo. A cumplicidade da amizade ou do amor dispensa a conversa constante e permite muitos momentos de abandono. O silêncio é um momento de partilha e não de rutura. Os estranhos também desfrutam da serenidade de partilhar longos silêncios juntos sem estarem indispostos. Assim, as viagens de trem ou de avião, as viagens de metrô ou de ônibus, solicitam precisamente um ritual de interação baseado no mutismo recíproco perante os outros ou dos vizinhos, mesmo que a viagem dure horas. A discrição que isola os passageiros é uma forma rotineira de silêncio, elasobrepõe-se claramente à palavra de um deles que poderia causar constrangimento ou mesmo uma invasão inadmissível. Trocas gentis e breves sobre o clima, o conforto questionável dos assentos ou o generoso desejo de que o outro, que tira uma sanduíche da sua bolsa, coma com um bom apetite ou ainda sobre a duração da viagem, a temperatura do compartimento, os incessantes atrasos, a falta de conforto... Recursos de rotina da conversa, tantos pretextos para uma troca de palavras pouco comprometedora. Troca de ditos puramente fática onde apenas o contato importa, a relação, não o conteúdo. As palavras acordadas são um modo ritual e cortês de reconhecer a presença de outros sem - 34 -


compromisso. A reserva silenciosa pode ser um modo deliberado de defesa, marcando a intenção declarada de não entrar em contato com o outro. Procura-se evitar o diálogo por medo de aborrecer encetando uma discussão fútil, de cruzar com um falador e de ver-se privado da oportunidade de descansar, de ler, de olhar a paisagem. Também se alimenta do medo de criar uma intimidade que seja difícil de romper seguidamente. Nestas circunstâncias, a solidão é efetivamente preservada por uma parede de silêncio que ninguém se atreve a atravessar. 4. Silêncio da morte Perto da morte, a palavra falha, mostra-se hesitante, dissolvese no silêncio ou dissolve-se no choro, os gestos perdem a sua segurança e confiança. O silêncio marca a sua presença com uma intensidade rara. A existência entra numa dimensão de ambiguidade, suscitando a reserva, a rutura radical da evidência. A morte é a irrupção repentina de um silêncio esmagador e insustentável. No momento em que a morte apanha o homem, ela vota-o ao mutismo, ela o reduz ao silêncio. A vontade de agitar o cadáver para restaurar a fala e os movimentos da vida, o grito, ou o choro desesperado do testemunho, a sua breve negação de que a morte existe revelam a perturbação nascida da invasão gélida do silêncio, de uma palavra repentinamente engolida na e pela ausência. A morte dá-se então como o mutismo doloroso de um ser que por algumas horas ainda mantém o rosto do homem e cujos lábios parecem prontos para revelar o segredo, ou para voltar novamente a viver a fim deretomar uma conversa interrompida. O espanto face à este desmaio do outro no indescritível corta a palavra na sua origem e refere-se à formidável nudez diante do abismo do sentido. O espanto sufoca aquele que testemunha a passagem e deixa-o prisioneiro de uma impotência radical da linguagem. O silêncio do cadáver enche o mundo. A intensidade da dor sentida impede a compaixão ao desaparecido ausente mesmo naquilo que ele tinha de mais querido. Rompendo a - 35 -


relação com o mundo do homem, a morte advém do sagrado, especialmente o momento fugaz da passagem da vida até a morte. Este tremendum [no original] que rasga à existência comum e confronta o homem com o mistério de sua condição, com a intuição da sua finitude pessoal. O cadáver parece ser o lugar onde o silêncio estabeleceu a sua casa e onde ele ameaça espalhar-se14. A morte dilacera a linguagem, ela quebra a voz15 e dá lugar ao silêncio, ao choro, aos soluços, aos gemidos, tantas vertigens da palavra confrontadas com os seus limites. Ainda criança, Anny Duperey descobre uma manhã os seus pais asfixiados no banheiro. Petrificada, ela consegue alertar um vizinho: Ele deslizou os ombros pela janela para colocar a cabeça para fora e ele gritou. Este grito. Ele quebrou de repente o silêncio no qual eu me debatia, cristalizei esta névoa de infelicidade difusa que me fazia bater nas paredes, na qual me afoguei. Aquela voz explodiu repentinamente, retumbante no pequeno banheiro, na casa, enchendo toda a rua, ainda posso ouvi-lo16.

A angústia que a existência tem nessa respiração, tão fácil de quebrar, incita às vezes uma palavra que só adquire legitimidade quando se afasta do falecido, conseguindo tranquilizar-se de forma descontraída na continuidade do mundo. Conversamos então para convencer-nos que estamos vivos e evitar pensar. Palavra destinada apenas a atestar uma existência que o desaparecimento do outro abala. Diante do defunto, a palavra permanece dolorosamente nos lábios escaldantes, ela teme expor-se ao sofrimento de uma solicitação sem resposta, envenenando assim uma ferida já infetada. Ela está com medo de provocar o silêncio e de agitar a dúvida nascida da posição ambígua do cadáver pelo facto de estar simultaneamente aqui, ao nosso alcance, e algures, inacessível na aparência a qualquer

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Cf. D. Le Breton, Do silencio, op. cit. D. Le Breton, Eclats de voix. Une anthropologie des voix, Paris, Métailié, 2012. 16 A. Duperey, Le voile noir, Paris, Seuil, 1992, p 209. 15

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possibilidade de manifestar-se, mesmo em face do desgosto ou do apelo mais doloroso. A palavra não está menos aterrorizada, sem dúvida, de que esse bloco de silêncio, ela não irrompe repentinamente para pronunciar algo de inaudito que sacudisse o “tecido” de certezas que torna a vida ainda pensável e inteligível, mesmo na pior das provações. As palavras faltam, o homem fica impotente, indefeso para acompanhar aquele que morre tentando convencer-se de que a morte não o afetaria. Na impossibilidade de encontrar o Outro, de tocá-la novamente, ela desintegra-se e antes convoca o mutismo recíproco do sobrevivente. A morte é o fim de uma palavra cujo cumprimento consistia no rosto atento do outro, doravante ausente. A frágil tela de palavras desintegra-se face ao indizível, ao aumento de uma dor que aperta a garganta como para aumentar a inanidade da fala. A morte mostra que para além do silêncio que às vezes liga a linguagem do cotidiano, há outro silêncio, ainda mais profundo, que tem como objetivo o sentido da presença do homem no mundo. Na fronteira dos sistemas simbólicos que permitem adequar as significações das coisas, no limiar da linha da sombra, o indivíduo está entregue a si próprio, sem pontos de referência, à mercê da confusão ou do medo. Diante do caixão já revestido de inominável, o sujeito permanece dividido entre o universo inteligível do cotidiano e o indizível do qual o outro, defunto, participa daqui em diante. Na fronteira deste além do pensamento, entre dois mundos, ele conhece um momento de suspensão onde muitas vezes o coração está faltando e a emoção brota. O confronto com o cadáver, especialmente se é um ente próximo, reflete brutalmente o reprimido que o sentido tinha de alguma forma coberto, o mundo de repente desmantela-se, o rei vai nu e a fala entra em pânico momentaneamente antes recuperar o seu controle sobre o mundo. O retorno às circunstâncias banais da existência comum deixando a sala onde o outro repousa reveste-se de um silêncio pesado de chumbo que torna as palavras difíceis de gerir, mesmo para dizer as coisas mais básicas: comprar um jornal, retomar o seu trabalho ou saudar um amigo sem saber como dele se aproximar - 37 -


ou mesmo responder às suas perguntas. Por um momento, todas as situações parecem irrisórias, e o futuro não tem saída. O apetite desaparece momentaneamentetanto diante da existência como diante da comida. A tristeza sentida pela morte do outro convoca os mesmos silêncios e as mesmas palavras, ao mesmo tempo desgastadas, mas primeiras e ardentes para aqueles que enveredam por esse caminho frequentado, onde cada um, contudo, está só. O silêncio estabelece-se na morte como seu elemento nutritivo, parece nela mergulhar uma ou outra das suas raízes. O minuto do silêncio é muito revelador a este respeito, visa simbolicamente a suspensão dos acontecimentos do mundo para uma breve lembrança em torno da memória dos desaparecidos. A comunidade imita a ausência para reviver mentalmente a presença dos desaparecidos, para comemorá-los, enviar-lhes uma oração. André Néher vê no texto bíblico uma estreita ligação entre o silêncio e a morte a partir da mesma raiz damô. "Ao lado de shéol, cuja etimologia é desconhecida, a Bíblia usa, na verdade, o termo douma, derivado do damô, para designar a morada dos mortos. Descer para a douma é, portanto, chegar ao silêncio e vice-versa"17. Nas nossas sociedades, especialmente, o silêncio e a morte formam um par inseparável, seja o mutismo que atinge o falecido ou o dos próximos.

17

A. Neher, L'exil de la parole. Du silence biblique au silence d'Auschwitz, Paris, Seuil, 1970, p. 40.

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CAPÍTULO 2 O SILÊNCIO18 E A FILOSOFIA19 Pietro Montani20 A experiência do silêncio está intimamente e profundamente ligada à experiência da linguagem, ao mesmo tempo, isto é tão evidente e imediato, quanto problemático e obscuro. Cada um sabe, de fato, por tê-lo diretamente experimentado nas múltiplas formas do calar e do falar, que esta relação não é ocasional, mas constitutiva. E, todavia, o silêncio não se reduz ao calar e a linguagem não se esgota na palavra: além do complexo quadro institucional que rege o exercício da atividade linguística, uma condição mais originária de pertença mútua recorda um estreito vínculo enigmático entre a experiência do silêncio e a experiência da linguagem. Mas este vínculo, por sua vez, que estatuto tem e de que modo se deixa alcançar? É certo que do falar e do calar e da mútua relação entre eles se pode dizer muito: a linguística e a semiótica, sobretudo nas 18

Tradução de Anderson de Alencar Menezes (Professor e Pesquisador da Universidade Federal de Alagoas). Revisão de Francisco Cornelio Freire Rodrigues (Professor do Curso de Teologia da Faculdade Católica de Mossoró. Doutorando em Teologia Bíblica na Universidade Angelicum em Roma) 19 Volto a publicar aqui, com muita satisfação, e agradeço a Alberto Filipe Araújo pelo convite, um texto que, após 18 anos da sua criação, mereceria alguns acréscimos, mesmo que apenas a nível bibliográfico. Pareceu-me, no entanto, que o texto ainda conservasse a sua coerência filosófica, por isso limito-me a salientar que algumas das problemáticas que surgiram aqui, particularmente nos parágrafos dedicados ao«Silêncio do corpo» e «Silêncio e o olhar», posteriormente caracterizaram a minha pesquisa de maneira mais intensa, ampla e contínua, com resultados mais ou menos sistemáticos nos três volumes a seguir aos quais gostaria de me referir: P. Montani, Bioestetica, Roma, Carocci 2007 (tr. fr., Bioesthétique, Paris, Vrin 2013; Id., L’immaginazione intermediale, Roma-Bari, Laterza 2010; Id., Tecnologie della sensibilità, Milano, Cortina 2014. 20 Ver Lista de Colaboradores.

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respectivas ramificações pragmáticas, tem iluminado este problema com referenciais teóricos dificilmente subestimados. Também da linguagem e do silêncio se pode dizer muito, até mesmo em termos não mais apenas descritivos: e é a filosofia da linguagem, aqui, a fazer valer a mais ampla autonomia do seu interrogar. O que, ao invés disso, parece resistir a cada apreensão direta da linguagem descritiva e reluta até a resolver-se inteiramente no quadro disciplinar de uma linguística filosófica é próprio a intimidade da relação entre os dois – linguagem e silêncio –, o seu aludir a uma co-pertença que se deixa “sentir”( um exemplo clássico? Todas as vezes que nos falta a palavra) mas não se deixa dizer. Antes – e este é o ponto realmente “crítico”, o que ameaça com uma caraterística vocação a este gênero de reflexão – se deixa sentir como algo que pertence essencialmente à palavra e, por sua vez, essencialmente lhe escapa. É sobre esta condição, sombriamente sentida por cada um, que a filosofia deverá fazer com clareza. Interrogar autenticamente o silêncio, pela filosofia, significaria então, remontar ao interno da própria linguagem, até esta mais originária condição que, todavia, transcende cada linguagem. Mas terá sentido uma empresa do gênero? Não devemos dizer, pelo contrário, que o vínculo secreto entre silêncio e linguagem é uma daquelas coisas sobre as quais, segundo a célebre proposição conclusiva do Tractatus de Wittgenstein21, “se deve calar”? Se assim fosse, uma completa indizibilidade seria subordinada à relação entre linguagem e silêncio. Seria a relação mesma, então, antes mesmo dos termos destes correlatos, a retirar-se no silêncio mais radical, um silêncio à segunda potência. Mas o que é que cala por meio desta relação? Existirá um modo para encontrar esta “coisa” e para senti-la ressoar numa palavra? E a filosofia, se é verdade que deve calar, não poderia, ao menos, empenhar-se a escutar este ressoar, colhendo alguma coisa para pensar?

21

Cf. L. WITTGENSTEIN, Tractatus logico-philosophicus, tr. it. di Amedeo G. Conte, Torino, Einaudi 1974, p. 82.

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Tentaremos responder a estas perguntas traçando um percurso significativo – um entre muitos outros possíveis22 – na vasta e indeterminada região do silêncio. Será uma travessia não privada de dificuldades e bastante empenhativa a levar-nos a apresentar imediatamente as etapas principais e o horizonte das conclusões: o leitor saberá, assim, o que deve esperar e poderá exercitar, se o retém, um mais atento controle crítico. Para evitar o risco de cair imediatamente também nós na posição de estancamento que denunciamos mais acima, começaremos com o calar (mas, somente provisoriamente) sobre a indizibilidade subordinada à relação entre linguagem e silêncio (que continua, todavia, o objetivo que deveremos alcançar) e tentaremos interrogar a relação mesma (ou própria relação) segundo algumas diretrizes relevantes. Aquela que proporemos, portanto, não será uma classificação23, mas pelo contrário, será preferivelmente a tentativa de distinguir entre as modalidades com as quais o silêncio se correlaciona profundamente com a linguagem, aquelas que aparecem como as mais notáveis de atenção para a filosofia. Deste ponto de vista, parece poder adequadamente diferenciar quatro relações particularmente significativas, na medida em que o silêncio venha colhido no pré-linguísitico, no pós-linguístico, no nãolinguísitico ou, em fim, no intraduzível. As primeiras três relações se justificam a partir da posição que o silêncio assume em relação à palavra (respectivamente: precedência, excedência e alteridade), mas 22

Sobre o silêncio, existe uma bibliografia tanto ampla quanto heterogênea. Entre os textos que, embora não citados diretamente, contribuiram para delinear o horizonte teorético deste trabalho, vêm recordados: M. BALDINI e S. ZUCAL (a cura di), Le forme del silenzio e della parola, Brescia, Morcelliana 1989; M. BALDINI e S. ZUCAL (a cura di), II silenzio e la parola da Eckhart a Jabès, Brescia, Morcelliana 1989; G. VATTIMO (a cura di), Filosofia ‘90. Oltre la svolta linguística,Roma-Bari, Laterza 1991; P. A. ROVATTI, L’esercizio del silenzio, Milano, Cortina 1992; C. SINI, Il silenzio e la parola,Genova, Marietti 1989; ID., Scrivere il silenzio, Milano, II Saggiatore 1995; V. VITIELLO, Cristianesimo senza redenzione, Roma-Bari, Laterza 1995. 23 Sobre a dificuldade de classificar as formas do silêncio, oportunamente, chama a atenção P. VALESIO, Ascoltare il silenzio, Bologna, Il Mulino 1986.

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se tornará claro rapidamente que outra e muito mais problemática relação subentende todas (com diversos graus de consciência): aquele, antiquíssimo – mas tenaz e metamórfico – que opõe ou correlaciona inadequadamente o sensível e o inteligível. Será a quarta relação que nos fará sair de cada resídua oscilação, próprio por força do seu caráter integralmente interno ao regime da palavra. Na realidade, como se poderá ver, a relação de intraduzibilidade não fará mais que trazer sobre o plano de uma mais adequada consideração crítica algo que será já aparecerá, de modo ainda incerto, nas primeiras três: quer dizer que do silêncio se faz verdadeiro problema não somente o trato propriamente relacional, o seu constituir-se numa zona de cruzamento (lá onde o sensível e o inteligível redesenham interminavelmente os respectivos confinamentos), mas também, e sobretudo, o empenho, que uma filosofia crítica não pode ficar desatenta, a reconhecer esta zona de cruzamento no interior da linguagem. Será alcançado, deste modo, o horizonte das nossas conclusões. Nas quais se sugerirá que a filosofia pode “dizer o silêncio” somente pondo-se na escuta de outra palavra (no caso aquela poética) e traduzindo este dívida transcendental em algo de propriamente pensado. 1. Da parte do sensível: o silêncio do corpo Movemo-nos, portanto, pela relação que se apresenta como a mais simples e, ao menos em aparência, a mais conciliada. Movemonos, isto é, pelo silencioso horizonte da prestação simbólica radicada no nosso corpo em que, segundo várias interpretações 24, anteciparia e, de qualquer modo, prepararia a linguagem. É possível imaginar esta condição pré-linguística como o exercício da competência simbólica que é coessencial à ação humana e à sua peculiar construtividade25: se trataria de uma práxis originária 24

Notável, em particular, aquela de Cario Sini nos textos dois textos citados na nota

2. 25

Cf., Além do clássico contributo de A. LEROI-GOURHAN, II gesto e ta parola (2 voll.), tr. it. Torino, Einaudi 1977, a iluminante interpretação transcendental

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que, antes mesmo que que a palavra surja, já se desdobraria um horizonte operativo pré-lógico ou antipredicativo no interno do qual começaria a articular-se um logos somático e sensível, uma silenciosa disposição ao encontro com as coisas já expostas ao dar e ao receber medidas, isto é, ao representar e, em última análise, ao dizer verdadeiro e próprio. A palavra, portanto, no momento do seu surgir, não faria nada mais que correlacionar-se com este trabalho simbólico silencioso, atingindo sentido e oferecendo-lhe formas e regras. A filosofia tem uma longa familiaridade com esta dimensão do silêncio, que a modernidade repensou com particular insistência. Toda a temática fenomenológica do “corpo próprio” vai nesta direção, da qual será possível seguir – mas não faremos aqui – os desenvolvimentos e as transformações de Husserl a Heidegger de Ser e Tempo ( é o caso eminente da espacialidade própria do Dasein) até a ontologia de Merleau-Ponty (sobre a qual deveremos retomar). É significativo, além disso – mas também este é um ponto que não podemos desenvolver – o fato de que a reflexão sobre o silencioso enraizamento somático da competência simbólica pré-linguística encontre importantes resultados experimentais nas ciências cognitivas e nas neurociências (assim como, de modo muito característico, na psicanálise26). Para fazer somente um válido exemplo pode-se referirdestetema em E. GARRONI, Ricognizione delta semiotica, Roma, Officina 1977, onde se fala de um «contexto operativo» ou «implícito» que deve ser entendido como o correlato necessário di un «contexto explícito» ou linguístico. Posteriormente, Garroni trouxe de volta esta relação ao nexo trascendental di sentido e significado (ou, paralelamente, comprensão e conhecimento), compreendendo a origem no decisivo repensamento do esquematismo em ato na terceira Crítica kantiana (cf. ID., Senso e paradosso, Roma-Bari, Laterza 1986; Estetica. Uno sguardo-attraverso, Milano, Garzanti 1992). 26 Além da contribuição de Freud, deve ser lembrada, pelo menos a de Melanie Klein e Donald Winnicott. Mas, em geral, todo o dispositivo da terapia analítica pode ser interpretado como uma paciente reelaboração discursiva de conteúdos removidos, cujo estatuto é essencialmente pré-linguístico, ou mesmo pré-semiótico, se é verdade que se trata de traços que, no momento de seu registro no aparato psíquico, apresentavam valências simbólicas ainda puramente virtuais. É o caso, exemplar e muito instrutivo, da chamada «cena original»: evento tipicamente silencioso e somático, destinado a simbolizar-se em um tempo sucessivo e, portanto, a

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se a Gerald Edelman recentemente de “metáforas mudas do corpo”, lançando uma ponte (embora não inédito, mas certamente indicativo de um problema que foi anunciado e que reencontraremos a seu tempo) entre os resultados das neurociências e as descobertas intuitivas da arte. Provavelmente – escreve a este propósito Edelman – os artistas não se admiram ao sentir a percepção, é pela natureza criativa que a memória implica recategorização, ou que o nosso conceito de espaço é polimodal, implica a interação de tato, visão, senso de equilíbrio e de articulação, ouvido e movimento. Por outro lado, poderiam surpreender-se um pouco ao saber que estas teorias se fundamentam nas capacidades pré-linguísticas do cérebro de reconfigurações do corpo e do mundo. A visão e o tato, o senso de articulação e o movimento são suficientes – a palavra vem depois e contribui, mas não é a origem primária. As nossas primeiras metáforas são silenciosas e mudas27. Sem poder entrar aqui numa discussão detalhada sobre as várias posições, parece, no entanto, possível trazer da concepção do silêncio entendido como horizonte simbólico pré-linguístico pelo menos uma indicação decisiva. É precisamente o fato de que, em virtude da sua referência determinante ao corpo, essa provê à imediata anexação do silêncio à região do sensível, a qual, porém, recebe pela ausência da linguagem uma surpreendente investidura ideativa: se mostra, isto é, como o lugar de uma autônoma produção de idealidade. Existe também um limite, todavia, nesta concepção do silêncio, e consiste no seu não saber-se por completo subtrair a tendência de interpretar o pré-linguístico como um estado que, exatamente, precederia e prepararia a linguagem, restando-lhe não menos misteriosamente distinto se não até mesmo contraposto. Na realidade no conceito mesmo de “pré-linguístico” se encontra uma estabelecer-se como uma autêntica origem apenas na condição paradoxal de um adiamento constitutivo (nachträglich, segundo a formidável intuição freudiana). 27 G. EDELMAN, La metafora muta. Arti figurative e cervello, in «Micromega», 2, 1998, pp. 224-25

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dificuldade antes não vista e portanto, não fácil de resolver: de um lado, de fato, este conceito responde à necessidade legítima de reivindicar ao sensível um domínio simbólico próprio – e então se fala, desde modo, de “metáforas mudas” –por outro lado, porém, este domínio não parece deixar-se determinar se não em referência ao domínio da linguagem ( e portanto o que cala é para sempre uma matáfora), com a qual, todavia, essa estabelece uma relação que permanece indeterminada: se trata de precedência ou, pelo contrário, de implicação? Como se queira, uma primeira aquisição parece portanto, se manter firme: isto é, que existe relação e reciprocidade, e não distinção e dualismo, entre algo de silencioso e sensível (o corpo, as suas operações, as suas investigações do mundo) e algo de explícito e inteligível (a linguagem, os significados, a idealidade). Mas a natureza da relação continua, ao menos em parte a escapar; escapa, em particular, o princípio que regraria a reciprocidade. No entanto, pode ser que invertendo a relação, e isto é pensando o silêncio como aquilo que excede a linguagem e o ultrapassa, se consiga colher esta reciprocidade numa figura mais clara. 2. Da parte do suprassensível: o silêncio do sagrado. É o que ocorre na segunda relação significativa entre linguagem e silêncio, na qual o último aparece como um movimento que, do interior da linguagem, pretende ir além da linguagem ou até mesmo lutar contra a linguagem. Encontramo-nos aqui, como é evidente, na dimensão do místico, ou para dizer melhor na esfera do indecifrável e da incomensurabilidade da qual o discurso místico, no sentido religioso do termo, se apresenta como um dos casos exemplares. O encontro com o nouminoso não acessa a palavra direta, ao invés disso, esse se serve da palavra para aludir a um ultrapassamento silencioso.

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Da teologia negativa, nas suas diversas tradições, até a experiência vivida pelos grandes místicos, nas suas múltiplas testemunhas28, esta segunda relação significativa do silêncio com a palavra parece, portanto, desenhar uma espécie de espaço complementar em relação à primeira. De fato, enquanto naquela o sensível-somático era pensado como a tácita fonte da simbolização, isto é, vinha cultivado no seu transcender-se num horizonte do significar, aqui o movimento da transcendência parece querer assumir o corpo, e a dimensão corpórea da palavra, em sentido inverso, isto é como aquele limite que somente consente à incomensurabilidade do sagrado de fazer-se presente. Em síntese, para dizer com uma palavra, se no primeiro caso silenciava o sensível, aqui silencia o suprassensível, mas, em ambos os casos, um não existe sem o outro. Tomemos o ato desta singular reversibilidade (o que precisará compreender melhor) e observemos que a nossa segunda relação se confirma plenamente àquele admirável dispositivo simbólico que vai embaixo do nome de “sublime”, e do qual Kant, melhor do que qualquer outro nos forneceu o princípio29. Trata-se para Kant, de fazer trabalhar em sentido afirmativo o conceito de “inadequação” da imigração ( isto é, da nossa faculdade sensível) referente à exibição de ideias racionais (isto é, de conteúdos de pensamento suprassensível no qual, por exemplo, a ideia de Deus), mostrando como o sentimento desta inadequação, sobre as primeiras desorientador, seja não somente fonte de autoestima para a nossa atitude a transcender o dado ( é esta autoestima que chamamos propriamente “sublime”), mas também, e mais essencialmente, ocasião de repensar o dado mesmo. O ponto nodal é este: que no negar-se a uma exibição adequada do 28

Sobre o «ser para o silêncio» do místico, sejam vistas as precisas considerações de M. BALDINI, Ilmistico tra parola e silenzio (in M. BALDINI e S. ZUCAL, Le forme del silenzio e delia parolacit., pp. 253-64) que comenta passagens de Santa Teresa de Jesus, Angela da Foligno, São João da Cruz, Angelo Silesio e outros, distinguindose três modalidades essenciais do silêncio: o «suicídio linguístico», a «reticência» e a «esculta do Totalmente Outro». 29 Cf. T. KANT, Critica della capacità di giudizio, tr. it. di L. Amoroso. Milano, Rizzoli 1995, pp. 257-351.

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suprassensível, o sensível não se nega, ao contrário, a exibição desta inadequação, deste descarte, desta diferença30. Ocorre, então, que em virtude desta negação – por força deste silêncio – a mesma inadequação da nossa imaginação já seja transcendida na abertura de um território no qual a relação entre sensível e suprassensível mostra que se pode indefinidamente reconfigurar. Entre realidade e idealidade, em outros termos, sempre foi aberta uma transação simbólica que não para de redefinir a natureza e os limites de uma e de outra. A segunda relação significativa entre linguagem e silêncio, aquela que colhe o silêncio na região sublime da incomensurabilidade, mas também no seu fazer-se presente somente em virtude de um limite e de uma finitude, reforça, portanto, a ideia de que para compreender o silêncio é preciso seguir os traços do sensível, mas nos diz também, e definitivamente, que isso não deve mais ser compreendido somente como aquilo que precede e prepara a linguagem, mas também como o trato de finitude ao qual a linguagem mesma é reconsiderada todas as vezes que essa aspira a realizar-se fora de si. Se, de outra parte, neste ponto se pode colher recolher uma fonte e não um limite da linguagem – ou melhor, um limite que é também uma formidável fonte – isto é atribuído ao movimento de inadequação, do qual o dispositivo simbólico do sublime nos fornece o paradigma essencial. É a imposição deste movimento, evidentemente, o progresso mais importante que fizemos: o montante da relação entre os dois domínios – o sensível e o inteligível – presumidamente já constituído, um descarte essencial garante a interminável recomposição. À qual, por sua vez – se dê atenção a este «O sublime, verdadeiro e próprio– escreve Kant – não pode ser contido em nenhuma forma sensível, mas diz respeito somente à ideias da razão: as quais, embora nenhuma exibição lhes possa ser adequada, precisamente através desta inadequação, que pode ser exibida de maneira sensível, são ativadas e evocadas na alma» (I. KANT, op. cit., p. 261).O escopo teórico desta tentativa não escapou aos comentadores mais atentos, mas o desenvolvimento mais radical (que aqui seguiremos apenas parcialmente) é o que propôs, em numerosos estudos, J.-F. Lyotard (cf. per es. J.-F. LYOTARD, Animaminima, Parma, Pratiche 1995). 30

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ponto – não é nada mais que a experiência na sua inesgotabilidade. Isto que “cala” de tal modo, vem radicalmente subtraído a cada determinação de tipo substancial – trate-se do “corpo” ou se trate do “espírito” – e vai tomar o lugar, precisamente, sobre o limiar móvel que mantém os dois domínios numa relação constante e inesgotável. A segunda relação significativa entre linguagem e silêncio, em definitivo, nos traz a proximidade do problema fundamental: procurávamos um princípio e agora o conhecemos, agora sabemos, isto é, que entre linguagem e silêncio há um prolongamento, sobretudo, análogo àquilo que se estabelece entre sensível e inteligível e que esta separação, longe de separar os dois domínios, o tem bem unidos numa relação de interminável redefinição recíproca que não faz mais que redesenhar, do interior, o perfil do experimentável. Mas queremos saber alguma coisa a mais, se é possível, sobre a própria diferença. Como negar de fato que é exatamente este ponto diferenciador o elemento que começa agora a mostrar-se como aquilo que parece realmente deve retirar-se no silêncio mais obstinado? E como negar, além disso, à filosofia o papel paradoxal de dizer este silêncio? 3. Da parte da Trama: o silêncio e o olhar Tenhamos por um momento suspensa a pergunta – que veremos reaparecer em breve – e interroguemos a terceira relação significativa entre linguagem e silêncio, aquela que entende o silêncio como o não-linguístico. Interrogamos, isto é, depois as relações de precedência e de excedência a relação, negativa, de alteridade. Em qual sentido, portanto, estaremos autorizados a falar de um silêncio não-linguísitico, e em que sentido esta negação nos ajudaria a compreender melhor aquela mais fundamental relação de sensível e inteligível em torno da qual existe irresistivelmente conduzida a nossa recognição? Podemos entrar no mérito desta questão refletindo sobre o problema do visível, assim como foi maravilhosamente apresentado - 48 -


por Merleau-Ponty, exatamente como uma via de acesso privilegiada ao não-linguístico e à sua importância para a filosofia. Peguemos os movimentos de um passo crucial que, posto em conclusão ao penúltimo capítulo de O visível e o Invisível, introduz ao capítulo final – “A trama – o chiasma” – que tem todo o ar de querer ser o verdadeiro incipit daquele livro incompleto. “O que sou”? – escreve Merleau-Ponty – significa não somente “o que é saber”? e “Quem sou””, mas significa também “ o que há”? , e também “o que é o que é?” – perguntas, estas, que não requerem exibição do algo dito que poderia pôr um fim, mas o desvelamento de um Ser que não é posto, porque não tem necessidade de sê-lo, porque silenciosamente atrás de todas as nossas afirmações, negações, e também atrás de todas as nossas perguntas formuladas, não porque se trate de esquecê-la no seu silêncio, não porque se trate de aprisionar nas nossas conversas, mas porque a filosofia é a muda reconversão do silêncio e da palavra: “ É a experiência... ainda muda que deve ser trazida à expressão pura do seu próprio sentido”. Notamos, entretanto, que neste passo o silêncio – o silêncio que existe antes e independentemente de toda interrogação – é apresentado como âmbito essencial da filosofia, como aquilo que a filosofia deve poder alcançar em vista de uma sua “muda reconversão” em palavra. Um duplo silêncio, portanto: aquele do “ser que não é posto”, que não depende de operações estéticas (e linguísticas antes de tudo), e aquele da filosofia, que deve, sim, reconverter este silêncio em palavra, mas deve também fazê-lo de modo tal que a reconversão permaneça “muda”, não destruída pelo poder proposicional da linguagem. Uma tarefa impossível? Em parte sim, como já sabemos: somos de fato de novo no paradoxo essencial do “dizer o silêncio”. Mas o gesto inovador que se impõe na reflexão de Merleau-Ponty, o que faz em alguma medida a síntese ou o entrelaçamento das duas relações que temos até aqui interrogado, está no fato que, removendo bruscamente o que naqueles restava ainda em parte aprisionado nas aporias da metafísica, removendo, ou seja, a ideia de dever recolher numa relação fundadora o domínio do sensível - 49 -


e aquele do inteligível, pensados ainda, não obstante tudo, segundo uma fundamental (e misteriosa) substancialidade, Merleau-Ponty aponta decisivamente sobre o sensível se se pergunta se, em via de princípio, este não manifeste no seu interno um desdobramento ou uma reflexividade que, sem alguma necessidade da intervenção de um sujeito e de uma razão, o temos já sempre estabelecido na condição ontológica de ultrapassar a si mesmo. Mas de que modo poderemos provar este essencial invasão do sensível, este seu ultrapassar do interior abrindo-se um espaço de reflexão? Repensando algumas intuições husserlianas, Merleau-Ponty se reporta ao exemplo do “corpo próprio”. Uma divisão essencial – um sentir que é também um sentir-se – já há tempo instalado na unidade do nosso corpo na condição de uma paradoxal abertura interna (“amadurecimento” o definiu imaginativamente MerleauPonty). Desde sempre: isto é, antes e independentemente de cada imprópria e metafísica determinação de dualidade (do tipo corpo/mente). É de fato decisivo para Merleau-Ponty que este paradoxo não tenha alguma necessidade de ligar-se a uma consciência reflexiva: isso em realidade já é autoevidente naquela interna duplicidade ou reversibilidade entre sensível e o sentido que se pode colher no ato elementar do tocar-se. “Quando a minha mão direita toca a esquerda, eu a sinto como uma coisa física, mas no mesmo momento, se quero, si produz um evento extraordinário: eis que também a mão esquerda se coloca a sentir a mão direita”. Esta reversibilidade é uma “espécie de reflexão” co-originária ao corpo, algo que o tem consigo e fora de si: um intervalo que o abre a um corpo que sente e um corpo sensível, um espaço que o temporaliza porque entre o que o sente e o sensível, que coincidem, existe, contudo, diferença. Está aberto o caminho através da reconstituição da relação ao seu nível mais alargado que é aquele do olhar e da visibilidade. “É um prodígio muito pouco notado – escreve a este propósito Merleau-Ponty – o fato que cada movimento dos meus olhos – e mais, cada movimento do meu corpo – tem o seu lugar no mesmo universo - 50 -


visível através do qual exploro nos seus particulares, assim como, reciprocamente, cada visão se efetua em qualquer lugar no espaço tátil (...). Não apenas eu vejo, necessita que a visão (como indica assim tão bem o duplo sentido da palavra) seja duplicada por uma visão complementar ou por uma outra visão: eu mesmo visto do exterior, assim como me veria um outro, instalado em meio ao visível, intencionado a considerá-lo de um certo lugar. (...) Aquele que vir pode possuir o visível somente se é possuído, e se, por princípio, segundo o quanto é prescrito pela articulação do olhar e das coisas, ele é um dos visíveis, capaz, por um singular direcionamento, do vê-lo, ele é que um destes” Mas o próprio corpo, que sente enquanto também sensível, visto enquanto também visível, é apenas o exemplo mais perspicaz de um “paradoxo do Ser, não de um paradoxo do homem”. Assim, a visão não é mais que o lugar em que o fundamental esboço do Ser se realiza tematicamente e não já o evento misterioso que, acreditado no homem como uma sua propriedade, destacaria do sensível a sua interna falha de excedente ideal. O fato é que esta “maturação” é ontológica e que o sensível mesmo é desde início afeto: tudo este jogo de reduplicamentos e invasões se realiza sem alguma intervenção de um sujeito que o formalize em uma linguagem. É integralmente nãolinguístico, tanto é verdade que a sua exemplar exibição advém, por Merleau-Ponty, na pintura. Será a pintura, então, a candidatar-se à apresentação deste evento silencioso que, na duplicidade da visão, faz aparecer isto que “existe” e, juntamente, o olhar que teve que separar para tê-lo “ à distância”, mesmo fazendo parte. As apaixonadas considerações desenvolvidas por MerleauPonty, em particular em “O olho e o Espírito”, Olhar e o Espírito mostram na pintura a capacidade de restituir o visível ao desdobramento essencial que o mantém em relação constante com a condição invisível (a visão, o olhar) que o torna possível. A pintura é esta distância da qual estamos imersos, da qual somos parte: exibição exemplar do paradoxo contentamento interno ao sensível enunciado,

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sem que alguma linguagem esteja habilitada a fazer irrupção na cena silenciosa do seu inesgotável território. Fica, contudo a pergunta: e a filosofia? A pintura não usurpou o papel no trazer “a experiência muda” “à expressão pura do seu próprio sentido”? Em que será finita, então, aquela “mútua reconversão” do silêncio e da palavra? Merleau-Ponty não teve o tempo de trazer explicitamente o tema desta pergunta, também se a “Noite de trabalho” para o visível e o invisível e o contemporâneo O Olho e o espírito nos oferecem muitos pontos neste sentido. Devemos, portanto assumir este empenho, e o faremos, para iniciar, discutindo nossa quarta relação significativa entre linguagem e silêncio, vale dizer a relação de intraduzibilidade. 4. Do entrelaçamento ao cruzamento: o tradutor e a língua muda das coisas Nós limitaremos nosso reconhecimento do intraduzível àquela forma de tradução que Jakobson, em um famoso ensaio31, definiu como «interlinguística», isto é, a tradução de uma língua para outra. As teses de Jakobson sobre esse assunto são bem conhecidas: as menções cognitivas de homens produzidas em qualquer idioma são, por definição, traduzíveis, já que seu sentido, em princípio de reformulação, não depende em uma extensão mínima da forma de expressão. Os problemas de traduzibilidade, por outro lado, começam a surgir toda vez que a linguagem, desviando-se dessa função fundamental, carrega a forma da expressão de tarefas semânticas mais ou menos fortes. Não é de todo indiferente, por exemplo, que na tradução do alemão para o italiano de uma história em que a morte é personificada, ocorra que a língua de origem tenha um masculino – der Tod – lá onde aquela de chegada tem um feminino: não há dúvida de que algo determinante se perderá efetivamente na tradução.

31

Cf. R. JAKOBSON, Aspetti linguistici delta traduzione, tr. It.in Saggi di linguistica generale, Milano. Feltrinelli 1966, pp. 56-64.

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Mais complexo, para Jakobson, é o caso da poesia: aqui, de fato, a intraduzibilidade se torna uma regra verdadeira e própria, enquanto o sentido do texto poético está integralmente ligado à forma de expressão. «O poema – de fato, escreve Jakobson – é, por definição, intraduzível»32. Tese paradoxal essa, da qual devemos apreender o profundo sentido teórico, uma vez que seu significado é negado pelos fatos. Jakobson tem um pensamento notável, a esse respeito, e vamos simplesmente evidenciá-lo, tirando ideias para depois tomar um outro caminho. O pensamento é que a intraduzibilidade da poesia não é de todo um limite, mas um mérito inestimável, pois exige que o tradutor ative toda a sua experiência da linguagem para redescobrir e mobilizar todos os recursos formativos. Dito de maneira um pouco diferente (e não sem uma precisa alusão a um tema que já tocamos): se a tradução poética obriga o tradutor a ser criativo, isso acontece enquanto a resistência do texto o coloca em posição de converter um sentimento de inadequação em uma experiência de produtividade. Mas agora, para nós, o ponto mais importante é este: se é verdade que, não ao contrário do místico de que falamos acima, o tradutor consegue, forçando a linguagem, lutando com a linguagem, a dizer o indizível, acontece aqui, em perfeita antítese com o místico (e com o correlativo conceito do sublime), que aquele indizível seja, paradoxalmente, um dito. Mais precisamente: que esse é algo que, dito integralmente no texto de partida e apenas aproximadamente reconstruído no texto de chegada, terá que atravessar, na passagem, uma zona abismal de silêncio. Essa situação, tão comum quanto extraordinária, indica que aqui finalmente tocamos no ponto crucial, aquela forma de silêncio que, entre todos, é a mais indubitável e a mais essencial. Também está claro, além disso, que essa nos trouxe de volta forçosamente à principal de nossas questões, aquela que, deixada aberta no início, nos questionava se havia uma experiência linguística da condição de 32

Ivi, p.63.

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secreta pertença de linguagem e silêncio. Digamos, então, em primeiro aproximação, que a experiência do traduzir a poesia responde a esses requisitos. Mas agora se trata de esclarecer e aprofundar o problema. O que significa, devemos nos perguntar, este «traduzir», além de seu sentido material? E o que, propriamente, afunda no silêncio no momento da passagem de uma para outra língua? E, enfim, esta «passagem», este deferir silenciosa, o que seria? Em um admirável pequeno ensaio de 1923 – A tarefa do tradutor33– Benjamin coloca questões muito semelhantes a estas. «A traduzibilidade – escreve Benjamin – inere essencialmente a certas obras: isso não significa que a tradução delas seja essencial para as obras em si, mas quer dizer que um determinado significado inerente aos originais se manifesta na sua traduzibilidade». Outras obras, pelo contrário, e por exemplo as obras poéticas, opõem resistência a esse movimento: seu significado, que não coincide com os conteúdos comunicáveis, não apenas se negam à traduzibilidade, mas também demonstram querer concentrar-se, pelo menos em parte, precisamente nessa recusa. E, todavia, se confrontado com esses trabalhos, o tradutor percebe que o seu trabalho deve ser possível, isso ocorre porque aquela o induziu a recolher o convite - ou a provocação - do texto e a colocar-se em escuta daquela condição linguística puramente virtual, daquela «reine Sprache» não performável e, no entanto, da mesma forma seguramente linguística que permite a passagem de um idioma para outro. Agora – e o ponto é decisivo – acontece que essa língua pura ou original, essa língua que nunca tem execução, porque é antes a essência da linguagem em geral, o substrato comum a todas as linguagens, acontece que essa linguagem essencialmente silenciosa, pode ser mostrado, para Benjamin, apenas na tradução. A autêntica «tarefa do tradutor», portanto, não será em nada aquela criativa e recreativa teorizada (com boas razões, por outro lado) por Jakobson, e 33

W. BENJAMIN, Il compito del traduttore, tr. it. in Angelus Novus,Torino, Einaudi 1962, pp. 37-50.

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consistirá, antes, no colocar-se inteiramente a serviço desta linguagem: A tradução, embora não possa reivindicar a duração de suas criações e se diferencia nisso da arte, não esconde a sua tendência a um estágio último, definitivo e decisivo de toda formulação linguística. Nessa, o original penetra, por assim dizer, numa área superior e mais pura da língua (...) à qual pelo menos acena (...) como ao reino predestinado e negado da conciliação e do cumprimento das línguas. Essa nunca alcança em bloco este reino ou aquela área, mas a ela pertence aquilo que, em uma tradução, é mais que mera comunicação. Mais precisamente, esse núcleo essencial poderia ser definido como aquilo que, em uma tradução, não é, por sua vez, traduzível.34

«A tradução verdadeira», portanto, nunca é «transparente», nem tem como objetivo cobrir o original ou obscurecê-lo: a tradução verdadeira é aquela que «abandona a luz original, fortalecida por seus próprios meios, a luz da língua pura». Por isso, enfim: «Redimir na própria aquela pura língua que é fechada em uma outra, ou prisioneira na obra, liberá-la na tradução: é essa a tarefa do tradutor»35. Antes de acenar ao problema que permanece em grande parte não resolvido nessas anotações de Benjamin, é necessário chamar a atenção para um ponto que nos ocupará na parte conclusiva de nossa reflexão, quer dizer, sobre fato de que nesses o «tradutor» aparece na sua específica, irredutível e altíssima dignidade e não como um poeta do segundo grau. A tarefa do tradutor, para Benjamin, consiste em tornar explícito, na medida do possível, o que o poeta pôde simplesmente ativar. Em sua fidelidade ao trabalho do poeta, portanto, o tradutor se põe a serviço daquela linguagem silenciosa e mais original que o poeta, sozinho, não conseguiria fazer aparecer, porque, ao contrário, ele está fazendo uma experiência determinada nos modos que lhe são próprios. A poesia – podemos concluir, abrindo 34

Ivi, p. 44. Ivi, pp. 47 e 48

35

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um caminho que vá além de Benjamin – deve, portanto, deixar-se levar em um movimento de tradução: a poesia deve ser capaz de dar lugar uma relação de diferimento que, além dos seus conteúdos determinados, faz chegar, em qualquer modo, ao cumprimento daquela condição linguística mais originária da qual essa oferece testemunho; ou melhor: do qual seu testemunho é uma oferta ou um dom. O ponto essencial, que deve ser reiterado é, portanto o seguinte: ao contrário das posições que examinamos até agora, no pequeno ensaio de Benjamin sobre tradução vem à luz com a maior clareza que a condição silenciosa da linguagem – o copertenciamento secreto sobre o qual se deveria calar –pode ser mostrado somente no cruzamento de duas formas diferentes da palavra. Mas como devemos finalmente pensar sobre essa Reine Sprache (linguagem pura) e seu silêncio? A resposta não é fácil, e não apenas por causa da reticência - ou obscuridade - do autor a esse respeito. Tendo em mente também outros textos benjaminianos contemporâneos36, a resposta parece ser a seguinte: a "linguagem pura" que surge na interseção da tarefa do poeta e a tarefa do tradutor deve ser pensada como a hospitalidade silenciosa da tarefa das em relação com a linguagem humana: como a promessa tácita da linguagem, em outras palavras, com a qual o dado sensível, o que «existe», vem ao nosso encontro abrindo-se a uma experiência comunicável. Estamos prontos para extrair os fios do nosso discurso: o faremos com uma breve recapitulação que vai nos ajudar a concluir deixando a palavra a Heidegger, que é o pensador que, pelo menos limitadamente ao arco problemático que foi aqui desenhado, parece ter lançado o olhar mais longe do que qualquer outro.

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Cf., em particular, o densíssimo Sulla lingua in generale e sulla lingua degli uomini, tr. it. in W. BENJAMIN, op. cit., pp. 52-67.

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5. O silêncio entre poesia e filosofia Até aqui encontramos o silêncio segundo três relações – respectivamente: de precedência, de excedência e de alteridade em relação à linguagem – nas quais se torna necessário repensar de maneira mais adequada a relevância essencial do silêncio para o campo do sensível que a primeira relação fez surgir e a segunda confirmou e generalizou, mostrando aquele campo, longe de separálo, se una, pelo contrário, em uma relação constante e sempre em via de redefinição com o campo do inteligível, uma relação da qual o dispositivo simbólico do sublime ofereceu-nos o paradigma fundamental e que podemos, enfim, reconduzir ao interminável reconstituir-se do horizonte da experiência. Com a terceira relação, vislumbra-se a possibilidade de apreender essa relação segundo uma modalidade do seu constituir-se originário, ou seja, como aquela retirada do sensível sobre si mesmo que, sem necessidade alguma de convocar uma instância reflexiva externa, sempre se transcendeu em um sensitivo. Finalmente, a quarta relação nos levou a assumir uma posição diferente e ainda mais radical, precisamente aquela que consiste em determinar a relação como uma síntese originária (aquela das «coisas» e da «língua» humana) a qual, no entanto, sob o nome ainda parcialmente obscuro de «língua pura», se deixaria de alguma forma – e paradoxalmente – exibir somente no cruzamento entre dois idiomas. As quatro relações do silêncio com a linguagem giram, por conseguinte, com diferente grau de consciência, em torno ao problema desta síntese originária, a qual, definitivamente parece pertencer o poder de determinar as diversas formas do silêncio, sendo, por sua vez, o protótipo absoluto, o que mais do que qualquer outra coisa, põe o seu ser mais próprio no seu ser mais precisamente ao manter-nos no seu interior e no retirar-nos à nossa presa. Assim, na primeira e na segunda relação, o que é cala é ora um, ora o outro versante daquela relação originária, enquanto na terceira e na quarta é unidade a mesma que aspira a se mostrar em conter e em seu calar. De fato: as metáforas - 57 -


do corpo são «mudas» precisamente por causa da ausência que linguagem escreve nelas. Por outro lado, no discurso místico e na teologia negativa, é a linguagem finita que exibe, precisamente em virtude de sua inadequação, a ausência sublime do suprassensível. Na visão, então, é a própria síntese a fazer de certo modo presente na forma do quiasmo que ao mesmo tempo une e difere o visível e o vidente, ou seja, o que dá a ver e o olhar invisível que, de dentro, o mantém à distância. Na tradução do intraduzível, enfim, a síntese transparece como a língua original com a qual as coisas se oferecem à linguagem humana, mas isso só transparece na interseção de duas formas diferentes da palavra: somente em virtude de suas diferenças. Pode-se observar que, se as quatro relações procedem no sentido de uma progressiva radicalização do problema do silêncio, isso se deve ao fato de que nelas resulta sempre mais fortemente marcado o movimento que traz o silêncio em proximidade de seu ser mais próprio, ou seja, em proximidade do que, sob o título de uma síntese originária de sensível e inteligível, consente o determinar-se recíproco de um e do outro domínio – ou seja, o horizonte do experimentável – ou seja, o horizonte da percepção - recusando-se a qualquer apreensão direta. Não há necessidade de dizer que esta rejeição e este silêncio sempre configuraram o problema da filosofia, o que a filosofia se empenha, desde sempre, a pensar nos modos que lhe são próprios, o que a filosofia se esforça, desde sempre, para traduzir na sua linguagem. É de se perguntar, no entanto, se a filosofia consiga sempre tornar claro o fato, à primeira vista banal, de que o pensamento surge somente em uma relação - que é talvez uma dívida transcendental37 - com algo que dá a pensar, com algo que solicita uma «tradução». Mas o que seria então este «dar» e o que ofereceria ao pensamento? Ofereceria, evidentemente, o seu problema - isto é, aquela rejeição, ou seja, aquele silêncio - como uma recusa e um 37

A «cena originária» do pensamento, se é lícito retomar aqui esse tema freudiano, é sempre em dívida em relação a um traço sensível anterior e, de fato, esse atraso, este ter que trabalhar “em diferido”, é sua condição mais adequada.

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silêncio «dado», dados para que venham a ser traduzidos em um pensar. Mas então, no momento em que, como o «tradutor» de Benjamin, também a filosofia soubesse reconhecer-se em dívida com alguma coisa de «dado», no momento em que esse soubesse se autocompreender de dentro dessa relação entre um dar (para pensar) e um pensar (o que é dado), não seríamos talvez autorizados a concluir que nesse movimento (nessa auto compreensão de dentro de uma relação) se seria reconstituída uma imagem daquela unidade ou síntese originária, a qual repetidamente nos conduziu ao nosso reconhecimento do silêncio? Não nos seria permitido dizer que alcançamos, assim, uma quinta relação entre o silêncio e a linguagem, talvez a mais próxima da original? Ou seremos, é claro, se só a filosofia soubesse penetrar no coração da relação mesma mais do que não tenha conseguido Merleau-Ponty interrogando a pintura, mais de quanto não tenha feito Benjamin interrogando o papel do tradutor. Em que sentido, de fato, essas duas reflexões, embora tão próximas do esclarecimento essencial do problema, ainda são, em parte, carentes? São pelo desequilíbrio verificável no jogo das partes em causa: o jogo de dar e do pensar; eu sou porque o olhar, do qual se parte a interrogação, não consegue negar-se intencionalmente em Benjamin, acidentalmente em Merleau-Ponty a conquista de uma posição relativamente externa, o benefício de uma compreensão mais ampla do próprio jogo que dessa maneira fatalmente, se resolve em vantagem de um dos dois jogadores (o pensamento) tirando da relação seu traço mais próprio. Mas esse desequilíbrio não é, em certa medida, inevitável? De que modo a relação poderia ser em todos os efeitos paritária e ao mesmo tempo ser mostrada como tal? Faz sentido ou é mesmo possível se envolver em algo do gênero? Talvez não. E, todavia, é exatamente isso e nada mais, o sentido mais autêntico da muitas vezes incompreendida interlocução do último Heidegger com os poetas. Uma interlocução que é a tentativa assídua, incansável e interminável de colocar em cena, de fazer aparecer o que temos chamado de «coração»da relação originária, ou seja, aquele silêncio que é o mais - 59 -


essencial entre todos, o indizível que é superordenado, como observamos no início, na mesma relação entre linguagem e silêncio, entre o dizer e o rasgar. Duas formas do dizer, a poesia e a filosofia, aqui se confrontam e se juntam, se aproximam e divergem para fazer aparecer, na diferença e na intimidade desta relação entre um dar e um pensar, o que o silêncio do trato que originalmente os compõe. Entre os textos que constelam essa longa interlocução do último Heidegger, o comentário dedicado a Das Wort, de Stefan George38, é talvez o mais completo e o mais vertiginoso, aquele que consegue penetrar a relação até o limiar extremo da sua dizibilidade. Voltaremos a percorrê-lo aqui em breve, deixando, como nos parece certo, a última palavra sobre o silêncio. Um poema de George oferece a deixa para o pensamento. É um poema que diz respeito à palavra, e que contém, no propósito palavra, algo que o pensamento traduzirá em sua linguagem. Mas a tensão constante do texto heideggeriano não diz respeito ao que a poesia nos dá para pensar e nem ao que a filosofia pensa dela; pelo contrário, trata propriamente da relação dos dois, da sua convergência e de suas diferenças, e mais, devemos concluir que o próprio texto aspira a ser uma imagem desse – indizível, absolutamente silencioso – trato relacional. Das Wort Wunder von ferne oder traum Bracht ich an meines landes saum Und harrte bis die graue norn Den namen fand in ihrem born Drauf könnt ichs greifen dicht und stark Nun blüht und glänzt es durch die mark... Einst langt ich an nach guter fahrt Mit einem kleinod reich und zart Sie suchte lang und gab mir kund: «So schläft hier nichts auf tiefem grund» Cf. M. HEIDEGGER, L’essenza del linguaggio, tr. it. a cura di A. Caracciolo in In cammino verso il linguaggio,Milano, Mursia 1973, pp. 127-71. 38

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Worauf es meiner hand entrann Und nie mein land den schatz gewann... So lernt ich traurig den verzicht: Kein ding sei wo das wort gebricht39.

Heidegger ressalta que a escuta da poesia move espontaneamente a partir do último verso, enquanto esse diz algo a propósito da palavra. O que diz o verso? Diz, aparentemente, que é a palavra a trazer as coisas no seu ser. De fato: nada existe onde falta a palavra. Mas é correta, e em alguns aspectos irrefutável, essa primeira interpretação? O último verso de Das Wort contém realmente um pensamento sobre a linguagem, isto é, mais ou menos, que «a linguagem e a casa do ser» ou que «sobre o que não se pode dizer de deve calar»? Heidegger retorna à letra do texto e observa que esse último verso não é de modo algum uma afirmação sobre a linguagem; antes, refere-se, recolhendo uma conclusão, a uma experiência particular da palavra que o poeta fez e que, como tal, como uma experiência sensível, não afirma nada, mas dá algo para ser pensado, solicita uma inteligibilidade. De fato: não só o poeta disse «és» e não «ist», isto é, ele não afirmou nada, mas também apresentou essa conclusão como uma renúncia (Verzicht: um desdizer), semelhante em tudo a um luto (traurig), a um luto processado. A que coisa, então, o poeta teria aprendido a renunciar? É quanto o texto conta na primeira e segunda sextilha. Ele aprendeu a renunciar a uma maneira diferente de experimentar a palavra: uma maneira que, no entanto, uma vez (Einst: de uma vez por todas) aconteceu de vê-la desdita. Pode-se observar que esta precedente experiência da paróquia, da qual se diz na primeira sextilha, não era ao todo uma experiência 39

Trazemos aqui a tradução literal para o italiano, de A. Caracciolo (ivi, p. 129):La parolaMeraviglia di lontano o sogno/ io portai al lembo estremo della mia terra// E attesi fino a che la grigia Norna/ II nome trovò nella sua fonte –// Meraviglia o sogno potei allora afferrare consistente e forte/ E ora fiorisce e splende su tutta la marca...// Un giorno giunsi colà dopo viaggio felice/ Con un gioiello ricco e fine// Ella cercò a lungo e [alfine] mi annunciò:/ «Qui nulla d’uguale dorme sul fondo»// Al che esso sfuggi alla mia mano/ E mai più la mia terra ebbe il tesoro...// Così io appresi triste la rinuncia/ Nessuna cosa sia dove la parola manca.

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ingênua ou grosseira. Pelo contrário, o poeta se demonstra bem ciente do fato de que as "maravilhas" por ele imaginadas e os "sonhos" por ele feitos teriam assumido seu autêntico perfil, a sua estabilidade e comunicabilidade, apenas quando Norna tivesse encontrado um nome um nome para eles. Somente a doação de um nome, em outras palavras, teria dado àquelas o ser de algo de existente. Acontece, no entanto, que, uma vez essa certeza do nome seja rejeitada ao poeta: para a "joia rica e fina" que o poeta gostaria de nomear, falta a palavra: a joia, que está lá, nas mãos do poeta, ele se retira repentinamente. Isso significa que, se não há nome para a joia – o que por si só conduz as coisas em seu ser – então a joia não é uma coisa. A rejeição do nome, em outras palavras, negou à joia o ser de uma coisa existente. O poeta, portanto, fez essa nova e extraordinária experiência da palavra: a rejeição daquilo que, normalmente, lhe era concedido: o nome. E, todavia, o poeta, que não teve o nome, encontrou, mesmo assim, as palavras para dizer essa experiência de recusa, mostrando precisamente no desaparecer silencioso da joia o movimento desse negar-se. Daí a conclusão: «Assim eu aprendi triste a renúncia / Nenhuma coisa seja, onda falta a palavra». Não seguiremos Heidegger no argumento complexo com o qual ele leva o leitor a compartilhar sua interpretação da joia – isto é, ao pedir um nome para a joia, o poeta aspirava obter uma palavra para traduzir em linguagem, a essência da linguagem, para ter sob os olhos, na ponta dos dedos, como se fosse uma coisa, o que dá o ser às coisas, a palavra como a palavra originante – e em vez disso, vamos apontar um paralelismo que poderia escapar (já: escapar, como escapa a joia...), e é isso que a própria joia, precisamente porque não há um nome que lhe dê o ser de uma coisa existente, é uma não-coisa: Kein Ding, um não-ente (um nada). Uma não-entidade que, mesmo assim, é em seu retirar-se no silêncio: uma não-entidade que aparece como um movimento de subtração (como stéresis) em virtude do fato que lhe faltou a palavra, que ali a palavra soube dizer o seu desaparecimento. E então: se reflita sobre o que o poeta realmente experimentou, se prove de verdade a escutar o último verso, positivamente, como uma - 62 -


concessão e, juntos, como uma disposição: Kein ding sei wo das wort gebricht: que alguma coisa que não tem o ser de uma coisa (como a joia, como a linguagem originária, como o ser que não é o ser do ente) seja, se mostre, se ofereça própria e somente lá onde a palavra falta, lá onde o a palavra diz o seu retirar-se no silêncio. Somente se a escuta desse verso for realmente produzida será possível apreendê-lo naquilo que ele dá para pensar e traduzi-lo como faz Heidegger nas linhas finais do ensaio, num enunciado assertivo, em um pensamento totalmente filosófico. E precisamente nisto: Ein «ergibt sich wo das Wort zerbricht: um «é» é dado onde a palavra falha. Algo parecido como o ser pode aparecer somente lá onde a palavra saiba dizer sua stéresis, o seu retirar-se no silêncio. O verso, portanto, diz o cumprimento de uma experiência da palavra e dá algo para pensar sobre a relação entre o ser e a linguagem. O ser, como a linguagem originária ou como o horizonte do experimentável, retira-se ao silêncio onde surge um ente, a coisa dizível ou a experiência efetiva. Mas seria um erro pensar que seja essa última a verdadeira conclusão do ensaio, a qual, antes de tudo, deve ser encontrada na especulação dos dois enunciados, ou melhor, no traço que ali torna sem que isso se resolva em uma aporia ou em um oximoro. De fato, se na experiência do poeta o que cala (o que é dito no seu desaparecer) é algo de sensível (a joia: a linguagem da essência) e se no pensamento do filósofo cala, pelo contrário, algo de inteligível (o ser: a essência da linguagem), e se esse duplo calar é, exatamente, dito, é um silêncio que em nenhum caso abdica à palavra (as duas declarações especulares testificam), é a relação dos dois que, mesmo que apenas por um momento, ela se fará presente mostrandose e retirando-se em seu jogo silencioso e sobre ordenado a esse duplo dizer e a esse duplo calar. Deixamos Heidegger (que teve que compartilhar com George) a última palavra sobre o silêncio. Em vez disso, deixaremos uma rápida consideração final. E seria decepcionante chegar à conclusão de que a profunda relação entre linguagem e silêncio nada mais é do que um modo de ser da diferença ontológica se o caminho que tivemos - 63 -


para alcançar não nos persuadiu de que essa relação realmente se deixa questionar. Impondo à filosofia o esforço de reconhecer a dívida que o pensamento sempre contraiu com aquilo que dá para pensar. Mas o que dá para pensar, por sua vez, se não é, naturalmente, o «dado» da racionalidade calculista ou a «realidade» do senso comum não é nem mesmo o «sensível» da metafísica ou a «receptividade» do subjetivismo: antes, como pudemos constatar, o horizonte do experimentável no qual o nosso corpo é já sempre tomado, precisamente enquanto sabe também tomar distâncias simbólicas, nas quais a nossa linguagem se descobre situada, exatamente enquanto sabe também mover-se para além de si mesmo, no qual, finalmente, o que «há» cala precisamente porque esse silêncio também sabe deixarse encontrar, às vezes, por uma palavra. A tarefa da filosofia então – isso nos diz, em última análise, um pensamento do silêncio – será aquela de mostrar, depois de ter sabido ouvir, a relação na qual essa palavra já está tomada: o seu dar da pensar e o seu fazer disso (deste dar) pensamento.

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CAPÍTULO 3 APOSIÓPESIS O SILÊNCIO NA LINGUAGEM DOS MÍSTICOS* Carlos H. do C. Silva40 „Wenn es nur einmal so ganz stille wäre. Wenn das Zufällige und Ungefähre verstummte und das nachbarliche Lachen, wenn das Geräusch, das meine Sinne machen, mich nicht so sehr verhinderte am Wachen – (...).“ Rainer Maria RILKE, Das Studenbuch, 1899.

Introdução: Da retórica ‘mística’ da palavra interrompida à soledade do recolhimento. ‘…pollákis epimeidíasis kaì aposiópesis emphantikóteron poieî tòn lógon…’ PLUTARCO, «Platonicae quaestiones», X, In: Mor. XIII-1, 1009e [Trad.: “muitas vezes fazer um sorriso e silenciar-se de repente torna mais enfático o discurso”] “El espíritu bien puro no se mezcla con extrañas advertencias ni humanos respetos, sino sólo, en soledad de todas las formas, interiormente, con sosiego sabroso, se comunica con Dios, porque su conocimiento es en silencio divino.” S. JUAN DE LA CRUZ, «Dichos de luz y amor», 27, in: Obras Completas, ed. L. Ruano de la Iglesia, O.C.D., p. 45.

Poderá parecer estranho dar-se, como título deste estudo sobre o silêncio na mística, o nome de uma figura de retórica, dita no equivalente latino por reticentia, como tropo retido em suspenso, e

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Ver Lista de Colaboradores.

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que ali se diz no silenciamento, a apo-siopé, ou seja, o que interrompe ou silencia cortando a palavra.41 Entre o domínio retórico, como o da arte oratória da persuasão, ou de meio sofístico de convencimento, e o âmbito da mística em seu mesmo despojamento e nudeza essencial não se esperaria que houvesse traço comum.42 Ora, a experiência espiritual também se A figura retórica da aposiopese (do gr. apo-siópesis, “fazer silêncio”, “suspender a palavra”…) ou da latina reticência, com o mesmo sentido geral. Vide HERMÓGENES, Tékhne rhetoriké, 420, 7 e segs. (ed. M. Patillon, Paris, Âge d’Homme, 1997, pp. 517 e segs.). É atestada mais cedo, cf. CICERO, Rhet. Ad Heren., 4, 41, também no Orat. 137 e no de Orat. 3, 205… Cf. R. Dean ANDERSON, Jr., Glossary of Greek Rhetorical Terms connected to Methods of Argumentation, Figures and Tropes – from Anaxímenes to Quintilian, Leuven, Peeters, 2000, p. 24. Tradição de nomenclatura dos tropos ou figuras, já referida por «réticence» em Pierre FONTANIER, Les figures du discours, (1821…),Paris, Flammarion, 1977, pp. 135 e segs. Entre outros autores recentes, vide: Michel POUGEOISE, Dictionnaire de rhétorique, Paris, A. Colin, 2001, sub nom., pp. 4950 e cf. Jean-Gérard LAPACHERIE, «Silence et indicible dans les traités de rhétorique», in : Aline MURA-BRUNEL e Karl COGARD, (eds.), Limites du langage : indicible ou silence, Paris/ Budapest/ Torino, L’Harmattan, 2002, pp. 918. 42 Recorde-se a definição aristotélica da retórica: ‘…oúte henós tinos génous aphorisménou he rhetoriké, allà katháper he dialektiké, kaì hóti khrésimos, phanerón, kaì hóti ou tò peîsai érgon autês, allà tò ideîn tà hypárkhonta pithanà perì hékaston…’ (ARISTÓT., Rhet. I, 1355b; trad.: “A retórica não pertence a nenhum género particular e definido, antes se assemelha à dialéctica. É também evidente que ela é útil e que a sua função não é persuadir mas discernir os meios de persuasão mais pertinentes em cada caso…” (trad. de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena, Lisboa, IN-CM, 1998, p. 47; sublinhado nosso)]; cf. ainda Jacques BRUNSCHWIG, “Aristotle’s Rhetoric as a «Counterpart» to Dialectic”, in: Amélie Oksenberg RORTY, (ed.), Essays on Aristotle’s Rhetoric,Berkeley/ Los Angeles/ London, Univ. of Califórnia Pr., 1996, pp. 34-55. Lembre-se também a evolução que, a partir da tradição sobretudo latina de Cícero e Quintiliano, conduz a uma pura arte da eloquência (como se pode observar na Modernidade: cf. Marc FUMAROLI, L’âge de l’éloquence – Rhétorique et «res literaria» de la renaissance au seuil de l’époque classique, Genève, Droz, 2002), prolongando o modelo sofístico da erística verbal e também do gosto de falar, como salienta o interessante estudo de Barbara CASSIN, L’effet sophistique, Paris, Gallimard, 1995, sobretudo pp. 333 e segs.; Id. et alii, Le plaisir de parler – Études de sophistique comparée, Paris, Minuit, 1986. Entre este âmbito do “belo falar”, e a exigência intelectiva e espiritual do “dizer a verdade”, está afinal a conjugação inesperada na retórica sacra, como se exemplificaria sobremaneira em Santo Agostinho (vide o De doctr.christ., IV, 7, 11…, ligando a eloquentia e a 41

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constitui em narrativa mais ou menos enfática, e também a oratória sacra mima o páthos poético e literário de tal experiência, dando lugar a formas suspensivas, interjeições ou avocações próprias para o tópos místico.43 Donde que a área temática desta investigação tenha legitimidade de visar a questão do silêncio dos místicos, antes do mais, a partir da linguagem que permite caracterizar uma tal fábula mística, como alguém já disse44, ou seja, salientar os limites da palavra nessa experiência espiritual e esse momento em que ela se cala, nessa aposiópesis ou nessa expressiva reticência.45 E, nem sequer deixa de ser significante certa ambiguidade entre esse dizer que se cala, ou um calar o que se diz, uma supressão da palavra ou um referir sapientia…). No entanto, aqui a questão é ainda mais radical, não entre apenas dois usos da linguagem, mas entre o seu uso e o que, na experiência mística, o suspende na “mística” pausa do inenarrável, inefável, indizível…, ou do que importe calar, manter secreto, silenciar… - como veremos. Cf., desde já: Pierre BOUTANG, Ontologie du secret, Paris, PUF, 1973 e reed., pp. 125 e segs. : «Le sceau du secret» e Jean-Luc MARION, De surcroît,Études sur les phénomènes saturés, Paris, PUF, 2001, pp. 155 e segs. : «Au nom ou comment le taire». 43 Há uma verdadeira dramática na linguagem da oratória sacra, não tanto da parenese, mas na própria oralidade do sermonário, da catequese, etc. O assunto tem merecido reflexão; salientem-se os seguintes estudos: Ernst Robert CURTIUS, Europäischer Literatur und lateinisches Mittelalter, Bern, Francke V., 1948; J. LECLERCQ, L’amour des lettres et le désir de Dieu – Initiation aux auteurs monastiques du moyen-âge, Paris, Cerf, 19572; para período moderno, por exemplo: Anne FERRARI, Figures de la contemplation – La «rhétorique divine» de Pierre de Bérulle, Paris, Cerf, 1997 e vide n. seguinte. 44 Trata-se da importante reflexão de Michel de CERTEAU, S.J., La Fable mystique, (XVIe-XVIIe siècle, Paris, Gallimard, 1982, a lembrar outros estudos do mesmo autor: Id., La Faiblesse de croire, Paris, Seuil, 1987; Id., L’étranger ou l’union dans la différence, (1969), Paris, Seuil, 2005 reed. ; e Id., Le lieu de l’autre – Histoire religieuse et mystique, ed. Luce Giard, Paris, Gallimard/ Seuil, 2005… 45 Pode exemplificar-se com a tradição desde a Retórica clássica, vide PLUTARCO, «Platonicae quaestiones», X, in: Mor.XIII-1, 1009e, citado supra em exergo; ainda QUINTILIANO, Instit., IX, 2, 54… ; cf. supra n. 1 e vide Edward SCHIAPPA, The Beginnings of Rhetorical Theory in Classical Greece, New Haven/ London, Yale Univ. Pr., 1999; Laurent PERNOT, La rhétorique dans l’antiquité, Paris, Livre de Poche, 2000, pp. 82 e segs.; e ainda Thomas M. CONLEY, Rhetoric in the European Tradition, Chicago/ London, Univ. of Chicago Pr., 1990 e reed. 1994, pp. 43 e segs.

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ainda isto mesmo…46, tornando suspeitos os tópoi linguísticos da mística de uma encenação que possa ter o sentido imaginário de um preciso «fingimento».47 Como se a suprema sinceridade, e até a De algum modo a “simetria” entre o silêncio (feito) e o segredo (pretendido)…, mostrando como a fenomenologia do segredo remete para estratégias, muitas vezes, inversas da do silêncio. (Sobre o segredo, cf., por exemplo: Pierre BOUTANG, Ontologie du secret, Paris, PUF, 2009 reed.) A questão do segredo que não iremos tratar ex professo neste estudo não deixa de ter especial importância em certas tradições religiosas e no simbolismo geral do críptico, escondido ou oculto, apenas dito dessa forma ou por via de cifra. (cf. Karl JASPERS, Von der Wahrheit, München, Piper V., 1947, pp. 50 e segs.) Na mística islâmica, em particular, na tradição sufi é relevante esta acepção complementar do silêncio, como o sirr, ou “segredo” (cf. Henry CORBIN, En Islam iranien, Aspects spirituels et philosophiques, t. I: Le Shî’isme duodécimain, Paris, Gallimard, 1971, p. 116: «On en percevra toutes les résonances, si l’on se rappelle que le mot sirr désigne à la fois un secret, une chose cachée, et l’un des organes psycho-spirituels subtils: la pensée secrète, la supraconscience ou transconscience.» ; vide Annemarie SCHIMMEL, Le Soufisme ou les dimensions mystiques de l’Islam, Paris, Cerf, 1996, pp. 243 et passim; Moisés ESPÍRITO SANTO, Os Mouros Fatimidas e as Aparições de Fátima, Lisboa, Inst. de Sociologia e Etnologia das Religiões/ Univ. Nova de Lisboa, 1995, pp. 223 e segs.: «A disciplina do segredo»…), o que é ainda linguagem mas se mantém reservada, ou apenas revelada desse modo “enigmático”. (Como até no teor iniciático da filosofia portuguesa o pretende José MARINHO: “toda a filosofia é iniciática”, in: “Introdução”, Teoria do Ser e da Verdade, Lisboa, Guimarães Ed., 1961, p. 15, etc.; donde ainda a importância da sua enigmática (e não hermenêutica), cf. Id., Verdade, Condição e Destino no Pensamento Português Contemporâneo, Porto, Lello, 1976, pp. 266 et passim.) Esse será, pois, o âmbito secreto do simbólico ou do misterioso que forçosamente não é o do silencioso… (disso sendo relevante até as doutrinas do “segredo” na vida religiosa – “segredo de confissão” – na vida pública, tal o caso do “segredo de Estado”, do “segredo de justiça”, segredo profissional, etc.; sobre essas dimensões “comunicacionais”, cf. C. SORIA, “Secreto profesional”, in: Ángel BENITO, (dir.), Diccionario de Ciencias y Tecnicas de la Comunicación, Madrid, Ed. Paulinas, 1991, pp. 1273-1283… 47 Não por que não se tenha vivido determinada experiência, até que ela fosse, de facto, uma experiência mística, mas porque, ao contá-la, ao estabelecer a narrativa da experiência, inevitavelmente se está a efabular (também na etimológica acepção de falar <fabulare…), levando assim ao seu rigoroso «fingimento». Não, pois, uma fantasia, menos ainda uma mentira, uma mistificação…, mas o imaginário (real) que resulta do uso da linguagem naquele exacto sentido da poética pessoana. “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente.” (Fernando PESSOA, “Autopsicografia”, em «Cancioneiro», in: M.ª Aliete Galhoz, (ed.), F.P., Obra Poética, Rio de Janeiro, Aguilar Ed., 1972, (doravante cit. por esta ed.), p. 164; sublinhámos para realçar o realismo de tal poiética…Cf. nossos estudos: Carlos H. do C. SILVA, “O virtual literário como 46

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autonomia que delimita a expressão mística, fossem a desse fingir a palavra em outra densidade de silêncio assim indicada, ou fingindo o silêncio por um secretismo “que deveras se sente”.48 Pode haver boas ou más razões para se suspender a palavra, seja pelo princípio de parcimônia, evitando a verborreia cíclica e sem fim, na convicção de que a sagacidade popular formulada no adágio em que ‘para bom entendedor, meia palavra basta’, seja pela discrição e pudor em revelar o que não seja de manifestar ou, então, seja pela insinuação pérfida, pela cobardia e omissão em declarar o que se deva.49 Mas todos estes propósitos humanos se situam num falso silêncio, feito, afinal, de muitas alusões, ou até, menos do que de tal poética da realidade – Meditação a partir da lição do fingimento pessoano”, in: José M. Silva ROSA, (org.), Olhares Luso-Brasileiros sobre Literatura, (Ciclo de Conferências), Lisboa, C.L.C.P.B/ Univ. Católica Ed., 2002, pp. 111-133; e sobre o imaginário cf. Id., “O Imaginário na Filosofia – Da imagem intermédia ao imaginário especulativo – ou do pensar por interposta «pessoa» ”, in: Alberto Filipe ARAÚJO e Fernando Paulo BAPTISTA, (Coord.), Variações sobre o Imaginário, Domínios, Teorizações, Práticas hermenêuticas, Lisboa, Instituto Piaget, 2003, pp. 287-336. 48 Cf. n. anterior e repare-se como longe da parrhesía evangélica e monástica do “sim, sim; não, não…” (cf. Mt 5, 37: ‘ésto dè ho lógos hymôn naì naí, où oú: tò dè perissòn toúton ek toû poneroû estin.’) o clima do “discurso” místico é o da poética paradoxal, mostrando a verdade da ilusão e também pela ilusão um subtil acesso à verdade… A via ainda da parábola (cf. Marcus B. HESTER, The Meaning of Metaphor – An Analysis in the Light of Wittgenstein’s Claim that Meaning is Use, Hague/ Paris, Mouton, 1967, pp. 20 e segs.; ainda Paul RICOEUR, La Métaphore vive, Paris, Seuil, 1975, da analogia e do exemplo, ou pela negativa, do díspar, do meramente alusivo, do dito a latere, ou daquela significativa suspensão (não da epokhé da sképsis pensante, mas) da palavra, ou seja, da aposiópesis.Cf. J.-H. Van der BERGHE, «Du silence et de la réticence», in : Psyché, nº 39, (1950), pp. 53-68. 49 Impõe-se, desde logo, associar à “poética” do uso retórico, uma ética da palavra e, neste caso, do silêncio. Cf., entre outros, Chaïm PERELMAN, “Éthique et sociologie du langage”, in: Várs. Auts., Le Langage, ed. cit., t. II, pp. 149 e segs. ; Georges GUSDORF, La parole, Paris, PUF, 1952 e reed. 1977, pp. 115 e segs. : «Vers une éthique de la parole» ; Louis ÉVELY, Oser parler – Désir et peur de communiquer, Paris, Centurion, 1990 e vide Marc CRÉPON, Les promesses du langage – Benjamin, Rosenzweig, Heidegger, Paris, Vrin, 2001, sobretudo pp. 146 e segs. ; Silvain AUROUX, La philosophie du langage, Paris, PUF, 1996, pp. 325 e segs. : «Éthique linguistique» ; ainda : Marcel VIAU, Le Dieu du verbe, Paris/ Montréal, Cerf/ Médiaspaul, 1997, pp. 219 e segs. : «L’assomption du verbe»… Cf. infra n. 108.

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capacidade alusiva50, fixo no dualismo de declarar ou ocultar, não percebendo que a experiência da própria linguagem é, outrossim, como refere a sabedoria oracular de Heraclito de Éfeso, a que “não declara, nem esconde, apenas indica”.51 50

O estilo alusivo tem particular importância nos antigos regimes de sabedoria. Cf. François JULLIEN, La valeur allusive – Des catégories originales de l’interprétation poétique dans la tradition chinoise (Contribution à une réflexion sur l’altérité interculturelle), Paris, PUF, 1985, reed. 2003, sobretudo pp. 161 e segs.: «L’écriture indirecte et l’expression de l’émotion» a propósito da tradição chinesa. Vide ainda Id., La Chaîne et la trame – Du canonique, de l’imaginaire et de l’ordre du texte en Chine, Paris, PUF, 2004, pp. 75 e segs. Vide também a sua relevância na estética fenomenológica de Maurice MERLEAU-PONTY, «Le langage indirect et les voix du silence», in: Id., Signes, Paris, Gallimard, 1960, pp. 49-104. Nunca se responderia a uma pergunta de um modo directo, na já suposta correspondência lógica que leva os modernos filósofos analíticos da linguagem a afirmarem que ‘se uma questão não tem resposta, é porque é um pseudo-problema’ (R. CARNAP, „Scheinprobleme in der Philosophie“, (Berlin, 1928)), devendo referir-se o questionável pelo que é possível (logicamente falando) de ser respondido. Diz, neste sentido, L. WITTGENSTEIN: “o enigma não existe”, ou seja, tal pergunta sem resposta… cf. Tractatus (=Tractatus Logico-Philosophicus), Prop. 6.5: „Zu einer Antwort, die man nicht aussprechen kann, kann man auch die Frage nicht aussprechen. Das Rätsel gibt es nicht. (...).“ (ed. D. F. Pears e B. F. McGuiness, London/ N.Y., Routledge/ Humanities Pr., 1961, p. 148). Faz, outrossim, parte da tradição ancestral nem declarar, nem responder, mas dar um indicativo…(vide n. seguinte) uma pista que reste “socraticamente” a ser descoberta, tal o estilo e a ‘justificação’ da parábola, cf. Mt 13, 13… (cf. Joachim JEREMIAS, Die Gleichnisse Jesu, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1970; Wolfgang HARNISCH, Die Gleischniserzählungen Jesu, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1985…), tal ainda das “estórias de ensinar” da tradição sufi e do médiooriente em geral. Cf. Idries SHAH, The Way of the Sufi, Harmondsworth, Penguin B., 1979, pp. 33 e segs.; Id., Learning how to Learn, Psychology and Spirituality in the Sufi Way, Harmondsworth, Penguin, 1981 e vide sobre esta tradição sapiencial narrativa Henry CORBIN, Avicenne et le récit visionnaire, Étude sur le cycle des récits avicenniens, Paris, Berg Intern., 1979 e Id., L’imagination créatrice dans le soufisme d’Ibn ’Arabi, Paris, Flammarion, 1958. 51 Cf. HERACLITO DE ÉFESO, frag. B 93: ‘ho ánax, hoû tò manteîon esti tò en Delphoîs, oúte légei oúte kr’yptei allà semaínei.’ (in: D.-K. (= Hermann DIELS e Walter KRANZ, Die Fragmente der Vorsokratiker, Dublin/ Zurich, Weidmann, 196612), t. I, p. 172; “O Senhor, cujo oráculo está em Delfos, nem declara, nem esconde, apenas indica.” Vide ainda comentário em Charles H. KAHN, The Art and Thought of Heraclitus, Cambridge/ London/ N.Y.…, Cambr. Univ. Pr., 1979, pp. 123-124; cf. também Richard G. GELDARD, Remembering Heraclitus – The Philosopher of Riddles, Edinburgh, Floris B., 2000. Pode rever-se nesta primeva postura um primeiro indício de toda a tradição semiótica (cf. Peter SCHMITTER,

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Ora, a aposiópesis que aqui interessa não é da interrupção teatral da palavra, sequer a do mutismo de quem não saiba o que dizer, por privação ou carência de palavras, mas a do carácter suspensivo implícito no trânsito finito do sinal, do efêmero de tal signo na própria função semiótica, dir-se-ia antecipadamente “silenciada” em si mesma.52 Foi o que lógicos e um filósofo da linguagem - Ludwig „Plädoyer gegen die Geschichte der Semiotik – oder: Vorüberlegungen zu einer Historiographie der Zeichentheorie“, in: Achim ESCHBACH e Jürgen TRABANT, History of Semiotics, Amsterdam/ Philadelphia, John Benjamins Publ. Co., 1983, pp. 3-23) que pode, outrossim, relevar o silêncio como também “linguagem sinalética” (Pierre MASSET, “La parole et le silence”, in: Várs. Auts., Le langage («Actes du XIIIe Congrès des Sociétés de Philosophie de Langue française», Genève, 1966), Neuchatel, La Baconnière, 1966, pp. 73-77), não só na literal acepção de sistema de língua muda e gestual (André LEROI-GOURHAN, Le geste et la parole – I. Technique et langage, Paris, Albin Michel, 1964; vide também Jack GOODY, The domestication of the savage mind, Cambridge, Cambr. Univ. Pr., 1977 e Esther PASZTORY, Thinking with Things – Toward a New Vision of Art, Austin, Univ. of Texas Pr, 2005, pp. 17 e segs.), mas ainda como simbólica “linguagem das aves”, ou seja, dos “espíritos” ou angélica, tal como foi defendido por exemplo por Swedenborg, aliás na sequência de tema comum na angelologia bíblica, islâmica e persa… (Cf. Shihâboddin Yahiâ SOHRAVARDI, L’Archange empourpré, trad. por H. Corbin, Paris, Fayard, 1976, pp. 201 e segs.; ainda Henry CORBIN, Avicenne et le récit visionnaire, ed cit., pp. 194 e segs., referindo o «Mantiq al-Tayr», ou tal linguagem das aves, cf. infra n. 79; vide também Marie-Madeleine DAVY, L’oiseau et sa symbolique, Paris, Albin Michel, 1992, pp. 176 e segs. Cf. Marc de SMEDT, Éloge du silence, Paris, Albin Michel, 1986, pp. 99 e segs. : «Le langage des oiseaux». 52 Nem por excesso de ter a dizer e se suspender, nem por carência do tal não saber que dizer; tão só uma espécie de pudor da palavra, um resguardo ou uma suspensão (cf. Pierre MASSET, «La parole et le silence», in: Várs. Auts., Le Langage («Actes du XIIIe congrès des Sociétés de Philosophie de langue française, Genève, 2-6 août 1966), Neuchâtel, À la Baconnière, 1966, t. I, pp. 74-77), que até pudesse ser cortês, mas aqui se caracteriza pela experiência do silêncio que recorta a palavra, constituindo a sua explícita moldura. Cf. George STEINER, Language and Silence – Essays on Langage, Literature, and the Inhumain, (1970), New Haven/ London, Yale Univ. Pr., 1998, pp. 36 e segs.: «Silence and the Poet» (1966)…; Christine BARON, «Indicible, littéraire et expérience des limites (de Blanchot à Wittgenstein)», in: Aline MURA-BRUNEL e Karl COGARD, (eds.), Limites du langage : indicible ou silence, ed. cit., pp. 291-298… Ainda I. A. RICHARDS, The Philosophy of Rhetoric, London/ Oxford/ N. Y., Oxford Univ. Pr., reed. 1964, pp. 47 e segs.: «The Interinanimation of Words»; também a valência da taciturnitas, o “taciturno”, etc. Vide Pierre MIQUEL, art. «Silence – 1 – De l’Antiquité au moyen âge», in: DS (=Dictionnaire de Spiritualité Ascétique et Mystique, doravante assim

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Wittgenstein - souberam pensar, quando se afirma que ‘a linguagem exprime o sentido, mas não o diz’53, que ainda que tudo pudesse ser dito, essa “espessura” do vivido na linguagem não teria sido verbalizada54, ou que, por certo, há o «elemento místico» que assim se mostra, sem se dever senão silenciar.55 Os limites da linguagem surgem paredes meias com o que os lógicos sabem como volta-face da

abreviado), t. XIV, cols. 829-842. Ter ainda presente a disposição da “interioridade” da linguagem, como S. TOMÁS DE AQUINO, Sum. theol, I, q. 79, a. 10, ad 3: “…dispositio interioris sermonis, ex qua procedit exterior locutio.” – que é outra forma de «calar». Cf. Étienne GILSON, Linguistique et philosophie – Essai sur les constantes philosophiques du langage, Paris, Vrin, 1969, pp. 121 e segs. sobre tal « moldura » conceptual da palavra : «Le mot et le concept». 53 Cf. L. WITTGENSTEIN, Tractatus, Prop. 4.022: “Der Satz zeigt seinen Sinn.” ; 4.1212: “Was gezeigt werden kann, kann nicht gesagt werden.” e 4.121: “… Was sich in der Sprache ausdrückt, können wir nicht durch sie ausdrücken.”, in: ed. cit., pp. 40 e 50. Sobre esta posição cf. Max BLACK, A Companion to Wittgenstein’s ‘Tractatus’, Cambridge, Univ. Pr., 1971, pp. 188 et passim;James BOGEN, Wittgenstein’s Philosophy of Language – Some Aspects of its Development, London/ N.Y., Routledge, 1972, e também outras referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Da indiferenciação do dizer ao autómaton do falar – Os limites da Linguagem em Wittgenstein”, in: Rev. Port. de Filosofia, XLV, 2 (1989), pp. 247284. 54 Cf. WITTGENSTEIN, Tractatus, Prop. 6.52: “Wir fühlen, dass, selbst wenn alle möglichen wissenschaftlichen Fragen beantwortet sind, unsere Lebensprobleme noch gar nicht berührt sind. Freilich bleibt dann eben keine Frage mehr; und eben dies ist die Antwort.” E videIbid., Prop. 6.521: “Die Lösung des Problems des Lebens merkt man am Verschwinden dieses Problems. (…)” (in: ed. cit., p. 148). Videsupra n. 13 e cf., entre outros: Naomi SCHEMAN, “Forms of life: Mapping the rough ground”, in: Hans SLUGA e David G. STERN, (eds.), The Cambridge Companion to Wittgenstein, Cambridge, Univ. Pr., 1999, pp. 383-410; António MARQUES, O interior – Linguagem e Mente em Wittgenstein, Lisboa, F.C. Gulbenkian, 2003, pp. 16 et passim. 55 Cf. WITTGENSTEIN, Tractatus, Prop. 6.522: “Es gibt allerdings Unaussprechliches. Dies zeigt sich, es ist das Mystische.” – mas tal indizível, ou assim inexprimível, que é aqui “negativamente” referido por das Mystische, ou “elemento místico”, é justamente o que coerentemente “importa calar”… Cf. célebre Prop. 7, singular e última, do Tractatus: “Wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen.” (in: ed. cit., p. 150). Videsupra n. 13 e cf. Jacques BOUVERESSE, Wittgenstein: La rime et la raison, - Science, éthique et esthétique, Paris, Minuit, 1973, pp. 21 e segs.: «Mysticisme et logique»; sobre aproximação desta posição com o Budismo, cf. Chris GUDMUNSEN, Wittgenstein and Buddhism, London/ N. Y., MacMillan Pr., 1977, pp. 39 et passim.

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mística56, embora possa existir nesta perspectivação a tendência para reduzir o silêncio ao indizível, como negação da própria deíxis e, por conseguinte, a uma dicotomia da linguagem bivalente de uma lógica clássica.57 O horizonte do discurso místico que se suspende em silêncio não é o da contemplação ou o da teorese de uma avaliação metalógica58, fosse até na justificação teológica capaz de comentar o silêncio dos místicos como o mero simbolismo do que só possa ser dito numa linguagem metafísica, simbólica, etc.59 Aquele silêncio não 56

Cf. Bertrand RUSSELL, «Mysticism and Logic», (1918), in: Id., Mysticism and Logic, and Other Essays, Russell House, U.K., Spokesman, 2007 reed., pp. 9-37. Vide nota crítica de José MARINHO, “Pensamento e Misticismo”, in: Jorge Croce RIVERA, (ed.), José MARINHO, Ensaios de Aprofundamento e outros textos, (in: «Obras de José Marinho», Vol. II), Lisboa, IN-CM, 1995, pp. 379-384. 57 Ou seja, ainda a um paradigma pós-aristotélico da Lógica do verdadeiro (1) e do falso (0), neste caso confusa com a do dizível e indizível, quando o que está em causa é que o indizível não é nem verdadeiro, nem falso. Indecidível… Longe da tautologia e da contradição, ou das proposições empíricas que podem ter um ou outro valor de verdade, o indizível é sem sentido (Unsinnig) e não de sentido vazio (Sinnlos) ou falso (vide, por exemplo, R. CARNAP, “Überwindung der Metaphysik durch Logische Analyse der Sprache”, in: Erkenntnis, II (1932)), pelo que, no caso do silêncio, não é este um dizer negativo, mas um não dizer; tratando-se de “algo” que excede o horizonte linguístico: das Mystische (cf. supra n. 15). Sobre a dimensão deíctica, cf. por exemplo: Mary-Annick MOREL e Laurent DANONBOILEAU, (dir.), La deixis («Colloque en Sorbonne», 1990), Paris, PUF, 1992. 58 Justamente naquela pretensa verdade da sua mesma falsidade, de teor, pois, metalógico ou metalinguístico (até na reflexibilidade tradicional, cf. C. K. OGDEN e I. A. RICHARDS, The Meaning of Meaning, London, Routledge, 19231, 1972 reed.), o que, como se viu na nota anterior, não tem aqui pertinência. Cf. ainda L. WITTGENSTEIN, Tractatus, Prop. 4.12: “Der Satz kann die gesamte Wirklichkeit darstellen, aber er kann nicht das darstellen, was er mit der Wirklichkeit gemein haben muss, um sie darstellen zu können, - die logische Form.”; Prop. 4.121: “… Was sich in der Sprache spiegelt, kann sie nicht darstellen.(…)” – denegação da metalógica, ao arrepio de Gödel, Ladrière, etc. Sobre o finitismo desta lógica da linguagem, cf. Charles F. KIELKOPF, Strict Finitism, Hague/ Paris, Mouton, 1970; também Jacques BOUVERESSE, La parole malheureuse, De l’alchimie linguistique à la grammaire philosophique, Paris, Minuit, 1971, pp. 183 e segs.: «Sur le “finitisme” de Wittgenstein». 59 Pensa-se vulgarmente que a linguagem paradoxal do silêncio, ou traduzida num ‘dizer’ metafórico (cf. supra n. anterior) disso mesmo, é um expediente apenas simbólico, esquecendo que aquém desta “estética da denegação” (cf. em sentido estrito: Pierre-Henry FRANGNE, La négation à l’oeuvre, – La philosophie

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é o mero mutismo em relação a estes outros níveis de expressão a seu modo “eloquentes”, mas caracteriza aquela performance linguística que supõe assim uma acção, um drama que realiza a própria palavra até ao seu silenciado uso, como meio de semiótica experiencial.60 Deixa-se indicado, alude-se ou refere-se ainda pelo jogo dramático da pausa, do hiato ou do radical intervalo, no discurso61; o silêncio surge symboliste de l’art (1860-1905), Rennes, Pr. Univ. de Rennes, 2005, pp. 113 e segs. : «De la via negativa à la via negationis» ; vide também : Nanine CHARBONNEL, «Métaphore et philosophie moderne», in: Nanine CHARBONNEL e Georges KLEIBER, La métaphore entre philosophie et rhétorique, Paris, PUF, 1999, pp. 44 e segs.: «Un même oubli de la différence entre deux ressemblances, la ressemblance du concept et la ressemblance de la métaphore»; vide também: François NAULT, Derrida et la théologie – Dire Dieu après la déconstruction, Montréal/ Paris, Médiaspaul/ Cerf, 2000, pp. 227 e segs. : «La dénégation»…) existe algo que fica por dizer, ou apenas se diz assim, ainda sem justificação simbolista. Explorámos este âmbito primordial da linguagem no que designámos por signos primordiais de uma gramática pré-simbólica: cf. Carlos H. do C. SILVA, “Dos Signos primitivos: Preliminares etiológicos para uma reflexão sobre a essência da linguagem”, in: Análise, I- 2 (1984), pp.21-78; Id., (Continuação), in: Análise, II -1, (1985)], pp.189-275. Vide também nossa crítica à ênfase simbólica, Id, “Da natureza anfibológica do símbolo – a propósito do tema «Mito, símbolo e razão»”, in: Didaskalia, XII (1982), pp.45-66; e Id., “O símbolo dentro do símbolo, ou do caminho impossível de diferenciação hermenêutica”, in: Várs. Auts., A Arte de Cultura – Homenagem a Yvette Centeno, Lisboa, Ed. Colibri, 2010, pp. 365-390. 60 Trata-se já da perspectiva da acção linguística e, neste caso, da pausa significativa, etc., adentro dos modos ou ‘ritos’ de linguagem, tal foram salientes como critério significativo do discurso de performance, determinado pelo uso e aplicação pragmática do dizer. Cf. os clássicos J. L. AUSTIN, How to do Things with Words, («The William James Lectures» at Harvard Univ. 1955), Oxford/ London/ N.Y., Oxf. Univ. Pr., 1971; John R. SEARLE, Speech Acts – An Essay in the Philosophy of Language, Cambridge, Univ. Pr., 19691, reed. 1999…) Mais do que o pólo da léxis ou da “declaração” (statement…), importa a deíxis (o valor deíctico ou sinalético, cf. supra n. 17) do uso de dada expressão, cujo “valor de verdade” é, antes, o valor de happiness ou de “acerto” prático, de performance.Vide crítica em Paul RICOEUR, Le discours de l’action, Paris, CNRS, 1989; Charles TRAVIS, «Pragmatics», in: Bob HALE e Crispin WRIGHT, (eds.), A Companion to the Philosophy of Language, Oxford, Blackwell, 1999, pp. 87-107. 61 Como se no “negativo” de uma fotografia, as margens de silêncio, de pausas, etc., têm aqui um valor de realce respectivo do que positivamente se aparenta declarar, mas fica dependente desse contraste, inclusive do dégradé de tal capacidade de formulação. O informe, porventura, o desumano… (cf. Jean-François LYOTARD, “Quelque chose comme: «communication… sans communication», in: Id.,

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assim de través no inopinado do que se falava, como se a dar lugar a uma estranheza, qual Unheimliche, desse essencial dizer-limite, que será também limite do dizer.62 Poderia exemplificar-se com aquele trecho de prosa poética do Autor de The Prophet 63, quando numa outra sua obra reflete o clima da recolhida palavra de Jesus em Madalena, da sua silenciosa música L’inhumain, Causeries sur le temps, Paris, Galilée, 1988, pp. 119 e segs.) espreita no mais simples dizer, desdizendo-o, em des-construção… - tal repararam filósofos como Jacques DERRIDA, “La parole soufflée”, in: Id., L’Écriture et la différence, Paris, Seuil, 1967, pp. 253 e segs., “La dissémination”, in: Id., La dissémination, Paris, Seuil, 1972, pp. 321 e segs.; e Id., Sauf le nom, Paris, Galilée, 1993, pp. 54 e segs. 62 De facto, algo de estranho, não só no que até pudesse ser o «dito de espírito», que S. FREUD, em Das Unheimliche, (in: «Gesammelte Werke», t. 12, Fischer V., 1947) justamente estudou no seu poder revelador do inconsciente, mas ainda no resíduo “mudo” do dizer, seja de subentendido, seja de inconfessável, seja mesmo de impossível de verbalizar… Cf. Vincent DESCOMBES, L’inconscient malgré lui, Paris, Gallimard, 1977, pp. 25 e segs. ; «Que n’ai-je pas dit ?», quando distingue (p. 65) entre o não-dito, o indizível e o interdito (de dizer), por último ainda distinto em abjecto e secreto, ou remetendo para um fundo ignorado…; vide Marie-Chantal KILLEEN, Essai sur l’indicible – Jabès, Blanchot, Duras, Saint-Denis, Pr. Univ. de Vincennes, 2004, pp. 11 e segs. : «Définir l’indéfinissable» ; e cf. Marc CRÉPON, «La langue, ombre de Dieu – Nietzsche et la promesse des langues», in : Les promesses du langage, - Benjamin, Rosenzweig, Heidegger, Paris, Vrin, 2001, pp. 43-62. Vide a estética desse «indizível/ invisível» pela «sombra»: Agnès MINAZZOLI, La première ombre, - Réflexion sur le miroir et la pensée, Paris, Minuit, 1990; Max MILNER, L’envers du visible – Essai sur l’ombre, Paris, Seuil, 2005, pp. 37 e segs. : «L’ombre de Dieu»…; outras referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “«Esconde-te, ó Amado» (C (B) 19, 3) – Do conhecimento místico pela sombra em S. João da Cruz”, in: Revista de Espiritualidade, XV, nº 60, Out./ Dez. (2007), pp. 245-316. 63 Trata-se do poeta libanês, de idioma árabe mas também muito sensível conhecedor da língua inglesa, ainda pintor e artista, muito justamente celebrado pela obra-prima que é o The Prophet, (London, ed. Heinemann, 19261, reed-. 1976…; quase universalmente traduzido (em português na versão de P. Manuel Simões, S.J., Braga, A.O., 1990), e que também merece ser consultado onde se fala sobre “Talking”, nesse registo de escuta “profética” e atenção aos silêncios… “You talk when you cease to be at peace with your thoughts; And when you can no longer dwell in the solitude of your heart you live in your lips, and sound is a diversion and a pastime. And in much of your talking, thinking is half murdered. For thought is a bird of space that in a cage of words may indeed unfold its wings but cannot fly.” (Khalil GÎBRAN, The Prophet, ed. cit., p. 71).

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interior… Escutemos, então, Khalil Gîbran neste passo de «Jesus, the Son of Man»: “…Mas quando estive na Sua presença e Lhe falei, Ele era um homem e de rosto poderoso difícil de suportar. E Ele disse-me: «Então, e tu, Miriam?» Não lhe respondi, mas as minhas asas cobriram o meu segredo, e fiquei ardente. E por não mais poder aguentar a Sua luz, vireime e afastei-me, ainda que não envergonhada. Estava apenas tímida, e preferia estar só, com os dedos d’Ele a tanger as cordas do meu coração.”64

A palavra como ação linguística ganha deste modo um valor de pretermissão ou de direto reenvio a si mesma já na falta ou ausência de significado, como se o reenvio de sentido fosse todo preterido pela negativa, em consciência do que fica por dizer, do irremissível à ordem deôntica e que, mesmo na máxima lição do deíctico, se fica pela lembrança de um limiar inefável.65 E, isto, não é 64

Cf. Khalil GÎBRAN, Jesus, The Son of Man, - His Words and His Deeds as Told and Recorded by Those Who Knew Him, (19281), N.Y., Alfred A. Knopf, 1984, pp. 107-108: “…But when I stood before Him and spoke to Him, He was a man, and His face was powerful to behold. And He said to me, «What would you, Miriam?» I did not answer Him, but my wings enfolded my secret, and I was made warm. And because I could bear His light no more, I turned and walked away, but not in shame. I was only shy, and I could be alone, with His fingers upon the strings of my heart.” 65 De facto, o discurso que, como na mística, se suspende, não obedece sequer à regra da gramática do óbvio e convencional dos jogosde linguagem. Estão em causa modificações que tal margem de indizível, tanto pela ausência do sujeito interlocutor, quanto pela transformação do verbo de activo a passivo, etc., que afectam outra valência estética da palavra, de outro modo recortada por vários tipos de delonga, de pausas e de silêncios… Apeteceria lembrar a conclusão de uma página de F. PESSOA no semi-heterónimo Bernardo SOARES, Livro do Desassossego, (ed. J. Prado Coelho, M.ª Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha, Lisboa, Ática, 1982, § 19, p. 22: “…terei fallado em absoluto, photographicamente, fora da chateza, da norma, e da quotidianidade. Não terei fallado: terei dicto.”), quando mostra ainda o valor limitado da regra do falar em relação ao expletivo de uma outra escuta do dizer: “Obedeça à gramática quem não sabe pensar o que sente.” (ibid., p. 22). Sobre o contraponto entre falar (fabulare, afinal muitas vezes sem nada dizer) e um dizer (mesmo assim sem praticamente se falar), vide nossa

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só a marca distante dos limites últimos da linguagem perante a transcendência extrema, mas o silêncio reflexo da circunstância sensível e da experiência do mais imediato, sendo tal ‘aquém’ da linguagem tão mantido em silêncio quanto aquele indizível místico.66 Por isso a experiência mística deixa de ser apenas um lugar linguisticamente determinável para passar a “dizer-se” dos estados e experiências extralinguísticas, até naquela interpelação que se lembra do heterônimo pessoano quando Caeiro refere que se quiserem que ele seja místico, “sê-lo-á, mas com as sensações”…67Sentir, não tem a reflexão: Carlos H. do C. SILVA, “Da indiferenciação do dizer ao autómaton do falar – Os limites da Linguagem em Wittgenstein”, in: Rev. Port. de Filosofia, XLV, 2 (1989), pp. 247-284. 66 Não só o transcendente suposto de natureza metafísica – que poderia determinar aos excessos impossíveis do dizer… (cf. Jean-Louis HOUDEBINE, Excès de langages (Hölderlin, Joyce, Duns Scot, Hopkins, Cantor, Sollers), Paris, Denoël, 1984…), mas o “aquém” sensível e imediato, pré-linguístico dir-se-ia. A sensação neste sentido imediato, qual donnée immédiate de conscience (H. BERGSON, Essai sur les données immédiates de la conscience, (1889), reed. in: «Oeuvres», éd. du Centenaire,Paris, PUF, 19632, pp. 5 e segs.), está nessa condição “silenciosa” (Jacques DERRIDA, La voix et le phénomène – Introduction au problème du signe dans la phénoménologie de Husserl, Paris, PUF, 1967, pp. 28 e segs.) e pode, afinal, constituir como que o plano de referência fundamental da linguagem mística, quando se trate da mística experimental, ou seja, que adensa o nível do “sentir”. Cf. a propósito Jean-Luc MARION, Le visible et le révélé, Paris, Cerf, 2005, pp. 3574 : «Le phénomène saturé» ; e vide M. CANÉVET, P. ADNÈS, W. YEOMANS e A. DERVILLE, «Les sens spirituels», (extr. de DS, t. XIV e XV…), Paris, Beauchesne 1993 ; vide também n. seguinte. 67 Cf. Alberto CAEIRO, “Guardador de Rebanhos”, xxx, em «Ficções do Interlúdio», in: F. PESSOA, Obra Poética, ed. M.ª Aliete Galhoz, Rio de Janeiro, Aguilar Ed., 1972, p. 220: “Se quiserem que eu tenha um misticismo, está bem, tenho-o. / Sou místico, mas só com o corpo. / A minha alma é simples e não pensa.” – É este valor imediato de um “ver, sem estar a pensar…” (como também dirá, Ibid., xxiv, in: Ibid., p. 217) que faz voltar à simplicidade, à sensação virgem, desse contacto misteriosoou, antes, essa vida despojada da mesma consciência dos sentidos: “Ah, os sentidos, os doentes que vêem e ouvem! / Fôssemos nós como devíamos ser/ E não haveria em nós necessidade de ilusão… / Bastar-nos-ia sentir com clareza e vida/ E nem repararmos para que há sentidos…” Budista iluminação assim, ou franciscana fruição de uma directa fraternidade antes de toda a justificação, inclusive dos sentidos, tal, outrossim, naturalismo pessoano não elimina especial convergência com o que, não só S. Francisco de Assis canta no Cântico das criaturas, mas também S. João da Cruz traz para a expressão sensibilíssima na experiência mística no seu Cântico Espiritual. “E deixar que o vento cante para

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‘voz’ de dizer, nem sequer o ‘eco’ de pensar; é o dado assimilativo e coeso, onde propriamente não há sujeito, nem objeto, ou em que o conhecimento intuitivo, mesmo que não seja uma tal visão sem “alguém” que veja, ou algo assim visto, implica uma compreensão imediata, sem ressonância, memória ou dedução que se reporte.68 Se a mística remete para um primado experiencial ou, ao menos, para um sentir associado a estado infuso, assim consciente adormecermos / E não termos sonhos no nosso sono.” (Ibid., xxxvi, ed. cit., p. 222). Cf. José GIL, Fernando Pessoa e a metafísica das sensações, trad. do francês, Lisboa, Relógio d’Água, s.d., e vide outras referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Da Experiência Poética em Fernando Pessoa”, in: Várs. Auts., Fernando Pessoa – Retrato- Memória, Lisboa, 1989, pp. 29-63. 68 Cf. nota anterior e vide Jacques ANDRÉ, “La vie sensorielle”, in: J. ANDRÉ e Marianne BAUDIN, (dir.), La vie sensorielle – La clinique à l’épreuve des sens, Paris, PUF, 2002, pp. 9-18. A questão da identificação da sensação é subtil, porque habitualmente “sente-se” sem “consciência”, de forma irreflectida, ou até inconsciente. No “sentir” que se sente (que não no pensar nisso, ou interpretar já assim a sensação) vai tanto a possibilidade de uma lucidez acrescida, quanto eventual delírio fantasmático, como acontece, nas “estesias” histéricas, paranóicas, etc. Cf., entre outros: Charles LASÈGUE, De la folie à deux à l’hystérie et autres états, Paris/ Montréal, L’Harmattan, 1998, pp. 151 e segs. ; Nicole EDELMAN, Les métamorphoses de l’hystérique, Paris, La Découverte, 2003, pp. 208 e segs. : «Miracles, extases, suggestions…» ; e Jean-Pierre VALLA, Les états étranges de la conscience, Paris, PUF, 1992, pp. 91 e segs. O discernir que se sente sem essa subjectividade projectiva da sua mesma consciência, na ilusão de sentir, exige-se sobretudo no que respeita ao registo de pretensas experiências místicas, mas que não passem de um pseudo-misticismo malsão: cf. Jean LHERMITTE, Mystiques et faux mystiques, Paris, Bloud & Gay, 1952 (ainda cf. Mgr. Albert FARGES, Les Phénomènes Mystiques distingués de leurs contrefaçons humaines et diaboliques – Traité de Théologie Mystique, Paris, Bayard, 1920, pp. 281 e segs.; Roger BASTIDE, Les problèmes de la vie mystique, Paris, PUF, 1996, pp. 125 e segs. : «La thèse pathologique»…)… Donde a primordial importância do imediato registo dos data sensoriais, no que Maine de BIRAN, estudou em De l’aperception immédiate («Mémoire de Berlin», 1807), in: Ives RADRIZZANI, (ed.), MAINE DE BIRAN, Oeuvres, t. IV, Paris, Vrin, 1995, pp. 54 e segs. Sobre este tema vide ainda: Bernard LONERGAN, Insight: A Study of Human Understanding, London, Longmans, Green & Co., 1957 e reed., pp. 27 e segs.; vide outras referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Le pathologique dans la tradition mystique – La Fable mystique et les limites d’explication chez Michel de Certeau”, (Comunic. ao Séminaire: «Mystique, Spiritualité et Santé mental», Institut Franco-Portugais, 11/09/2009, em : Jornadas de Estudo – Michel de Certeau e a Antropologia da Modernidade, 10-12 Set., org. CEHR- U.C.P., Lisboa; a publicar).

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como transcendente ou ex-stático, então numa micro-escala do estésico e dos limiares de sensação, também a pura qualidade do sentir pode equivaler a esse mistério inconformecom a tradução linguística e mental pela forçosa linguagem do já comum.69 O único, ou sequer o incomparável de cada qualidade sentida, torna-se motivo de indicibilidade logo que se conjugam já tais estesias com os quadros perceptivos, de representação desejada, de eco mental70; o que se ouve deixa de ser o radical cântico do novo, ainda a música calada do que assim poeticamente se suspende, para se tornar o entendimento do ouvido da fala, da linguagem que repete a memória significativa, que seja como paradoxal lembrança do que ali havia ficado como palavra interrompida.71 69

A linguagem, como instituição social, comunica por dizer o já comum; o rigorosamente “próprio” ou a linguagem privada resta um secretum incomunicável… Pelo que os mínima sensoriais de referência da linguagem não encontram como tais uma tradução, uma tal comunicação possível, a não ser quando já “convencionados” na sintaxe radical de “proposições protocolares” (erradamente referidas aos sense-data…). De facto, os sensíveis enquanto “átomos” de consciência não são dizíveis no seu absoluto quale. Mais uma vez recorrendo ao heterónimo pessoano, Alberto CAEIRO: “… um intérprete da Natureza, / Porque há homens que não percebem a sua linguagem,/ Por ela não ser linguagem nenhuma.” (em “Guardador de Rebanhos”, xxxi, in: F. PESSOA, Obra Poética, ed. cit., p. 220). 70 O nível da percepção já é “social” (cf. Georges GURVITCH, Les Cadres sociaux de la connaissance, Paris, PUF, 1966) ou de “representação” (Vorstellung, como se explicita da fenomenologia de Maurice MERLEAU-PONTY, Phénoménologie de la perception, Paris, Gallimard, 19451, remetendo para os contributos da psicologia “da forma e do fundo” ou do Gestalt configuracionista). Cf. também: Kim STERELNY, The Representational Theory of Mind, Oxford, Blackwell, 1990, pp. 168 e segs. Não o “atomismo” psicológico dos sons ou sensações separadas, mas também a durée da sua melodia num contínuo integrador, como antecipava H. BERGSON, L’évolution créatrice, in: «Oeuvres», ed. du Centenaire, Paris, PUF, 19632, pp. 725 e segs.; vide por contraste com G. BACHELARD, La Dialectique de la durée, Paris, PUF, reed. 1993: cf. Marc RICHIR, «Discontinuités et rythmes des durées: abstraction et concrétion de la conscience du temps», in : Pierre SAUVANET e J.-J., WUNENBURGER, (dirs.), Rythmes et philosophie, Paris, Kimé, 1996, pp. 93-110. 71 Não ‘ouvir sons’, mas escutar palavras, mais até do que a melodia, numa espécie de forçosa evolução em direcção à complexidade do “ouvido” (com memória e fala associada…) em relação aos “olhos”, tal se salienta desde ARISTÓTELES, Metaph. A, 1, 980 a e segs. (vide infra n. 41). Será ainda a “herança” cultural que priva de um outro contacto com o som das coisas naturais. Vide ainda Alberto CAEIRO,

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Porém, as próprias desconstruções do discurso72, seja como teatro da fala assim abortada em imagem subtil, seja como um desdizer,desde o ‘autómato’ da escrita73 até ao hipnótico de um ‘prazer do texto’74 que se confunde com a sedução da ‘leitura muda’75, não “Guardador de Rebanhos”, xi: “Aquela senhora tem um piano/ Que é agradável mas não é o correr dos rios/ Nem o murmúrio que as árvores fazem…// Para que é preciso ter um piano? / O melhor é ter ouvidos/ E amar a Natureza.”; e x: “(…)Nunca ouviste passar o vento./ O vento só fala do vento./ O que lhe ouviste foi mentira,/ E a mentira está em ti.” (in: F. PESSOA, Obra Poética, ed. cit., p. 213). 72 Cf. a perspectiva de Jacques DERRIDA, L’écriture et la différence, Paris, Seuil, 1967, também pp. 293 e segs. : «Freud et la scène de l’écriture» ; Id., La dissémination, Paris, Seuil, 1972, sobretudo pp. 319 e segs. ; Id., Sauf le nom, Paris, Galilée, 1993… Cf. François NAULT, Derrida et le théologie – Dire Dieu après la déconstruction, Montréal/ Paris, Médiaspaul/ Cerf, 2000, pp. 77 e segs. : «De l’écriture»… 73 Sublinhem-se as experiências da escrita automática no programa surrealista e o modo como aproxima esta arte da experiência religiosa, mística e também esotérica. Cf. Ferdinand ALQUIÉ, Philosophie du surréalisme, Paris, Flammarion, 1955, pp. 46 e segs.; ainda André BRETON, Le surréalisme et la peinture, (1928), Paris, Gallimard, 1965 e reed. , pp. 9 e segs. Vide, por outro lado, o carácter decadente da escrita, em relação à palavra viva (desde PLATÃO, Phaedro, 274 d… e cf. também Carta VII, 341 c e segs.; vide outras referências também em nossa reflexão: Carlos H. do C. SILVA, “Potência taumatúrgica do verbo antoniano”, (Comun. às Jornadas sobre «Santo António – Cultura Medieval», org. Univ. Évora – Depart. de Pedagogia e Educação, Filosofia e Instit. Sup. de Teologia de Évora, em 18 de Maio de 2004), in: Eborensia, Rev. do Instituto Superior de Teologia de Évora, XVII, nº 34 (2004), pp. 59-86. Vide ainda Jean de PALACIO, Le silence du texte – Poétique de la Décadence, Louvain/ Paris/ Dudley, MA, Éd. Peeters, 2003, pp. 42 e segs. : «La perte du mot». 74 Cf. Roland BARTHES, Le Plaisir du texte, Paris, Seuil, 1973, pp. 100 e segs. ; e vide Id., Le Degré Zéro de l’Écriture suivi de Éléments de Sémiologie, Paris, Seuil, 1953 e 1964… 75 Na história da leitura teve particular significado a passagem da leitura em voz alta, como era comum na cultura oral e da eloquência, para a recitação do texto em surdina (lectio tacita), valorizando outrossim a visão gráfica e o pensamento, já caracterizado como “sem voz” em si mesmo. Daí à leitura silenciosa vai um passo concomitante com a crescente importância da literacia e da textualidade. Cf. Alberto MANGUEL, A History of Reading, trad. port., Lisboa, Presença, 1998, pp. 53 e segs.; e Malcolm PARKES, «Lire, écrire, interpréter le texte. Pratiques monastiques dans le haut Moyen Âge», in : Guglielmo CAVALLO e Roger CHARTIER, (dir.), Histoire de la lecture dans le monde occidental, trad. do ital. (1995), Paris, Seuil, 1997, pp. 115 e segs., sobretudo pp. 117 e segs.: «De la lecture orale à la lecture silencieuse» ; vide infra n. 259.

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recuperam a pura suspensão, interrogativa e, menos do que isso, rogativa da palavra orante dos místicos nessa periferia de indizível.76 A mística e o teatro repugnam-se, não porque a experiência espiritual de tal ‘erotismo’ de Deus não se traduza em epopteía e até num visionarismo glorioso77, em que a palavra explicativa está a mais, apenas se referindo o cântico de louvor, o pasmo assim interjetivamente jaculatório78; mas, porque o teatro tem o seu andamento em toda a laboriosa trama da ação, num espaço quando muito de pausa, de ascese da linguagem, mas nunca de sua suspensão final, elidindo ação e ficando numa nudeza sem máscara, num mutismo essencial.79 Isso é próprio da pintura, ainda quando O próprio pensar, como um denken que é também “memória” Gedächtnis… e “retomação” (Wiederholung), tal o reflecte M. HEIDEGGER, Was heisst Denken?, Tübingen, Max Niemeyer, 19713, pp. 155 e segs., onde também salienta o carácter reverencial do “pensar”, nessa inter-rogação, no fragen como um questionamento, que é também escuta e rogação orante…Cf., entre outros, David HALLIBURTON, Poetic Thinking – An Approach to Heidegger, Chicago/ London, Univ. of Chicago Pr., 1981, pp. 59 e segs. 77 Tal se caracteriza na etiologia da mística dos Mistérios gregos e do seu paradigma transposto do eros clássico para o desejo de Deus na eisagogé cristã (de Clemente de Alexandria a Orígenes, a St.º Agostinho…). Mais a visão divina, a epopteía da teofania, inclusive a theoría, do que a dimensão dramática da intriga da palavra, dos véus e dos cenários, de um teatro da acção (embora ainda seja um theátron ou um “lugar de visão”). Cf. Hugo RAHNER, S.J., Griechische Mythen in christlicher Deutung, Zurich, Rhein V., 1945, reed. 1966; vide também: Marcel SIMON, Hercule et le Christianisme, Strasbourg/ Paris, Fac. Des Lettres de l’Univ. de Strasbourg/ Belles Lettres, 1955 ; vide ainda Victor MAGNIEN, Les mystères d’Éleusis, Paris, Payot, 1950, pp. 9 e segs. 78 Depois uma forma privilegiada de oração, quase no puro louvor de um laleîn como em Aleluia… Cf. nossos estudos: Carlos H. do C. SILVA, “A Oração como experiência essencial em todas as Religiões – do carácter diferencial do tempo orante como repetição”, in: Várs. Auts., Oração, encontro de comunhão, Paço d'Arcos / Oeiras, ed. Carmelo, 1985, pp. 135-320; Id., “Oração - Linguagem do Essencial”, in: Itinerarium, LII, nº 186, Set.-Dez. (2006), pp. 597-645… Vide, o exemplo do balbuciar, infra n. 167. 79 Sobre esta etiologia do teatro ter sempre presente o espaço cénico da palavradramatizada segundo as reflexões de René DAUMAL, «L’origine du théâtre de Bharata», in: Id., Bharata, Paris, Gallimard, 2009; e vide também a meditação de Peter BROOK, Threads of time, N.Y., Cornelia & Michael Bessie B., 1998…Na perspectiva cristã, remeter ainda para H. Urs von BALTHASAR, Theodramatik: I –Prolegomena, Einsiedeln, Johannes V., 1973, pp. 111 e segs. 76

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pretensamente narrativa, num outro código semiótico ainda gráfico, porém recolhido na imediatez de um olhar…80 Se se der razão a Aristóteles, quando ele caracteriza os vários graus do conhecimento como distanciamento do primeiro “ver”, como um saber desse prazer dos olhos, depois do ouvido desenvolvido em reconhecer a memória de sons já indiretas vozes do real vivido, até atingir a universalidade logóica que transcende o empirismo de hábitos mesmo retóricos do dizer, num pensar até assim epistêmico e do arquetípico81, então o silêncio, que não a pausa falseada do jogo sofístico e do embuste pseudomístico, surge no seio do mesmo lógos como descontinuidade simbólica, como métrica diferencial do que fica entredito e interdito.82 Seja o contraditório impensável, seja o acidental ou fortuito como a tykhé, no que se pode antecipar a superveniência da graça bíblica, ou o limite passivo de um aceitar que a Vida nos diga, mais do que sermos nós a defini-la assim, eis que

Dar a falar (encenar assim) como quem pinta, ou pintar como quem faz poesia… ainda no eco do antigo lema de SIMÓNIDES DE KÉOS (apud PLUTARCO, Glor. Ath. 346F (in: Magna Moralia, IV, p. 500): “…a pintura como poesia calada… e a poesia, como pintura falante”. Vide glosa nossa em: Carlos H. do C. SILVA, “A visibilidade cénica do verbo de Vieira – Do lugar da imaginação na espiritualidade do sermão” (Comunicação ao Congresso Internacional, no IV Centenário do Padre António Vieira: 1608-2008: «Padre António Vieira:Ver, Ouvir, Falar - O grande Teatro do Mundo», em Lisboa, na U.C.P., em 18 de Novembro de 2008; no prelo). Vide infra ns. 120 e 260. 81 Cf. ARISTÓTELES, Metaph. A, 1, 980 b; ainda De interpr.,: ‘ésti mèn oûn tà en têi phonêi tôn en têi psykhêi pathemáton sýmbola…’ – onde a linguagem assim caracterizada “traduz” simbolicamente algo que se sente sem voz… Cf. supra n. 31. 82 Não só o jogo sofístico, cf. Barbara CASSIN, L’effet sophistique, Paris, Gallimard, 1995, pp. 192 e segs.; vide também Id., «Du faux ou du mensonge à la fiction (de pseudos à plasma)», in: Id., (dir.), Le plaisir de parler – Études de sophistique comparée, Paris, Minuit, 1986, pp. 3-29; mas este valor do interdito (cf. Vincent DESCOMBES, L’inconscient malgré lui, ed. cit., pp. 27 e segs.: «L’interdit») lógico e pensante, que, afinal, se revela num entre-dizer do que sugere, ainda que pelo expediente retórico… Cf., entretanto, outra valência de um tal indirecto dizer, segundo Maurice MERLEAU-PONTY, “Le langage indirect et les voix du silence”, in: Id., Signes, Paris, Gallimard, 1960, pp. 49-104. 80

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todas estas margens do que pode ser passado em silêncio remete para o negativo da fotografia do zôon lógon ékhon.83 Não o encômio do “animal racional” numa glosa larga da condição antropológica, do que mais rigorosamente significa esta condição do homo loquens, mas a consciência crítica, antecipada no “socratismo cristão” dos místicos, de uma théosis abortada ou de uma possível participação nesse ‘sonho divino’ do humano.84 Por conseguinte, não a regressão ao animal sem voz, ainda que com outra linguagem de comunicação85, nem a miragem da voz primordial e 83

Em vez do homo loquens que melhor traduz aquele sentido aristotélico do zôon lógon ékhon, ainda valorizado por M. HEIDEGGER, «Brief über den Humanismus», in: Id., Platons Lehre von der Wahrheit mit einem Brief über den Humanismus, Bern, Francke V., 1954, pp. 88 e segs., o destinatário do lógos que assim interpela, por sorte ou, então, por graça e inspiração… Cf., entre outros, Jean LAPLANCHE, Entre séduction et inspiration: l’homme, Paris, PUF, 1999, pp. 301 e segs : «Sublimation et/ou inspiration». 84 A recordar o verso de PÍNDARO, Pít. VIII, v. 136: ‘skiâs ónar ánthropos…’: “O homem é o sonho de uma sombra.” Cf. Jacqueline DUCHEMIN, Pindare, poète et prophète, Paris, Belles Lettres, 1955, pp. 21 e segs. : «La chaîne aimantée de l’inspiration: Les Muses». Neste caso, como o eco de uma Voz de assim nos dizer, qual divino molde do ‘Anthropos’ primordial… Cf., no Hinduísmo: Frits STAAL, “Rgveda 10.71 on the Origin of Language”, in: Harold COWARD e Krishna SIVARAMAN, Revelation in Indian Thought – A Festshrift in Honour of Professor T. R. V. Murti, Emeryville, Dharma Pr, 1977, pp. 3-14. Sobre essa divinização até pela “conceição imaculada” do Verbo no mais íntimo, cf. Várs. Auts., art. «Divinisation», in: DS, t. III, cols. 1370-1459, sobretudo [Raphaël-Louis OECHSLIN: «École rhénane et flamande»], cols. 1432-1445, e vide referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Théosis “Théosis – Divinização espiritual ou diferente absolvição da alma?”, entregue para a Rev. Praxis, ainda não publicado. 85 A questão da especificidade do homem falante contrasta com a evidência etológica, não só dos sistemas de comunicação animal (também linguagens, ainda que “não-articuladas”…), mas também com as línguas primitivas dos primatas superiores comparadas com a de tribos arcaicas como as dos bosquímanos (bushmen) evidenciando numerosos traços sonoros comuns, até pela afinidade do aparelho fonador e composição de um psiquismo emocional análogo. Cf. Roman STOPA, Structure of Bushman and its Traces in Indo-European, (Polska Akademia Nauk-Oddzial w Krakowie), London, Curzon Pr., 1972… Aquém destas “vozes” haverá os próprios sistemas biológicos considerados como sistemas, por exemplo, imunológico, etc. de comunicação, de reconhecimento de sinais, etc. Vide Edward T. HALL, The Silent Life, N.Y., Doubleday & Co., 1959, sobre comunicação nãoverbal. Aliás, o mais silencioso ou aparentemente inapreensível não deixa de poder constituir a rede de uma real comunicação, como também acontece na “linguagem

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paradisíaca do ‘tempo em que Deus falava diretamente com os homens e todas as criaturas’ na linguagem silenciosa da Criação86; outrossim, esse “Deus que vem à mente” e de súbito nos cala de estupor, no pasmo do por demais, onde – em mysterium tremendum et fascinosum – não há som de tradução, nem palavra capaz de o dizer…87 Silêncio, pois, de uma suspensão da palavra que não é do arbítrio, do cansaço ou até da impossibilidade humana, mas dessa outra vontade que assim espiritualmente interrompe de amor, de dom indizível, de por demais lúcido, o que é já sinal ainda de um fechar os máquina” dos processos computatoriais. Cf. Roger PENROSE, The Emperor’s New Mind – Concerning Computers, Minds and the Laws of Physics, London, Vintage, 1990, pp. 523 e segs.: «Where Lies the Physics of the Mind?»; e Tim CRANE, The Mechanical Mind – A philosophical introduction to minds, machines and mental representation, London/ N.Y., Routledge, 1995. 86 Em muitos mitos similares ao do Génesis bíblico, no relato da condição paradisíaca se refere essa “idade de ouro” do perfeito convívio do divino e do humano, ou da Criação em geral, “falando” uma mesma linguagem ou, dito de outro modo, em que a Natureza fosse em si a unidade directamente significativa, sem desdobramento… (cf. Maurice OLENDER, Les Langues du Paradis – Aryens et Sémites: un couple providentiel, Paris, Gallimard/ Seuil, 1989, pp. 13 e segs.: «Archives du Paradis» …), aliás correspondente ao que venha a ser a bi-polaridade referente-significado, também dos hemisférios cerebrais em funcionamento distinto (cf. Lucien ISRAËL, Cerveau droit, cerveau gauche – Cultures et civilisations, Paris, Plon, 1995, pp. 53 e segs.: «L’assymétrie cérébrale»; ainda Vilma FRITSCH, la gauche et la droite – Vérités et illusions du miroir, Paris, Flammarion, 1967, pp. 30 e segs.) ou ainda a duplicidade entre o plano ontológico e o da representação simbólica… Cf. Umberto ECO, La ricerca della lingua perfetta nella cultura europea, Roma/ Bari, Laterza, 1994 e vide Georges STEINER, After Babel – Aspects of Language ans Translation, Oxford/ N.Y., Oxford Univ. Pr., 1975 e reed., pp. 51 e segs.: «Language and Gnosis». 87 Aquela expressão é de Émmanuel LÉVINAS, Du Dieu qui vient à l’idée, Paris, Vrin, 1998, pp. 34 e segs.: «De la conscience à la veille» …, e o que está em causa é o efeito de transcendência dita e,ao mesmo tempo, como transcender desse dizer… Cf. Id., Totalité et infini, Essai sur l’extériorité, Hague, M. Nijhoff, 1968, pp. 229 e segs., sempre no eco da fórmula usada por Rudolf OTTO, Das Heilige, Über das Irrationale in der Idee des Göttlichen und sein Verhältnis zum Rationalen, Gotha, Klotz, 1929 e reed.: «mysterium tremendum et fascinosum», ou seja, da ambivalência da experiência do Sagrado, ora como atraente e fascinante, ora como causando tremor, temor e pasmo… O inenarrável do mysterium depois repetido na experiência mística. Cf. A. SOLIGNAC, H.J. SIEBEN, W. LOESER, et alii,Mystère et Mystique, (extrait de DS, t. 12), Paris, Beauchesne, 1983, pp. 12 e segs.

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olhos, um silenciar o respiro, uma suspensão total da vida em tal mistério neutro do passo de “morte e ressurreição”.88 Mas a atitude é a do recolhimento, da oração que se simplifica de palavras até escutar esse silêncio divino que assim advém (como linguagem celeste). Linhagem esta da místico do recogimiento bem conhecida dos recolectórios e da espiritualidade do siglo d’oro89,

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Trata-se de uma suspensão, não da dúvida ainda do cepticismo mental, mas vital, dos sentidos e do psiquismo em geral, em tal “mortificatio” indutora de uma mutação de consciência que por “ressurreição” aqui se pode dizer. O paradigma está claro no ensinamento evangélico, no episódio de Jesus e Nicodemos: Jo 3, 1-15. Vide outras reflexões em: Carlos H. do C. SILVA, “Anástasis – Resurrectio, nem reincarnação mítica nem renascimento espiritual”, in: Cenáculo, 2ª série, 49, nº 194. (2010), pp. 31-113. 89 Claro que as técnicas de interiorização, de meditação silenciosa, etc., já eram conhecidas desde os regimes místicos antigos e da prática medieval monástica, sobretudo em Ordens religiosas que reflectiam o voto de silêncio, em especial os Cartuxos, os Trapistas, para já não referir os eremitas, a anacorese como a vida reclusa…Cf., por exemplo, Thomas MERTON, The Silent Life, N.Y., Farrar, Straus & Giroux, 1957; Id., The Monastic Journey, London, Sheldon Pr., 1977, pp. 135 e segs.;Un Chartreux, Amour et silence, Paris, Seuil, 1951, pp. 82 e segs.: sobre a «prière silencieuse» … e vide André RAVIER, L’approche de Dieu par le silence de solitude, Saint-Maur, Parole et Silence, 2000, pp. 47 e segs.: «Dans la tradition cartusienne»… Porém, o recogimiento da tradição quinhentista peninsular, surge no espírito dos recolectórios também franciscanos, no espírito da prática ascética dos desertos, como tempos de silêncio e de vida de recolhimento, que retoma a via de interioridade agostiniana e tem nos mestres do Carmelo reformado uma acabada realização. Cf. Melquíades ANDRÉS, La teología española en el siglo XVI, Madrid, B.A.C., 1977, t. II, pp. 198 e segs.: «La vía del recogimiento»… Caracteriza um modo e nível de oração no trânsito da interiorização ascética e já participação da graça mística dessa operação de recogimiento passivo induzida pela graça mística, antecipadora da oração de quietude. Encontram-se várias caracterizações, por exemplo em Francisco de OSUNA, Tercer Abecedário Espiritual, Tr. 21: «Acallar el entendimiento», c. 4: «De Tres maneras de silencio» (ed. Melquiades ANDRÉS, Fr. de OSUNA, Tercer Abec. Esp., Madrid, B.A.C., 1972, pp. 592 e segs.) que foi o livro-mestre desta “arte de orar” que ensinou Santa TERESA DE JESUS, (cf. Libro de la Vida, c. 4, 7…). Sobre a história da espiritualidade desta via silenciosa do recogimiento, cf. ainda Melquíades ANDRÉS, Historia de la mistica de la Edad de Oro en España y America, Madrid, B.A.C., 1994, pp. 299 e segs.; e vide ainda um autor desta época que faz a síntese destes modos de aprofundamento da vida em silêncio: MIGUEL DE LA FUENTE, O. Carm., Las tres vidas del hombre, Corporal, racional y espiritual, ed. Pablo María Garrido, Madrid, B.A.C., 2002, sobretudo III, c. 10: «De la oración de silencio del hombre espiritual».

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como se pode exemplificar no Tercer Abecedario Espiritual de Francisco de Osuna: “Oh quão indizível e inexplicável é o silêncio com que, no amor, calam Deus e a alma, quando Ele desce sobre ela como rio de paz e como riacho de mel muito suave; quando, dele, que é fonte viva, correm para ela em silêncio as águas de Siloé; quando, cessando as palavras, vêm as obras; quando cala a alma não sabendo o que se pergunte, pois não lhe falta nenhum cumprimento dos seus desejos.”90

Perfeito amor, assim sem necessidade de palavras, ou completa dor, ainda contemplada em sossego daquela Hora suspensiva e de Deus O clima cristão é o do retábulo tão só delineado de Stabat Mater, ainda sem o refrão cantado dessa “música calada”, numa rigorosa soledade que é contexto despojado do ler-se assim a vida em surdina…

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Cf. Francisco de OSUNA, Tercer Abecedario Espiritual, Tr. 21, c. 3, ed. cit., p. 591: “!Oh cuán indecible y no explicable es el silencio con que en el amor callan Dios y el ánima cuando él desciende sobre ella como río de paz y como arroyo de miel muy suave; cuando del que es fuente viva corren a ella las aguas de Siloé en silencio; cuando, cesando las palabras, vienen a las obras; cuando calla el ánima no sabiendo qué se demande, pues no le falta ningún cumplimiento de sus deseos” – e enumerando outras circunstâncias características de tal sossego espiritual, refere que a alma “…duerme ella porque ya no cura de alguna especulación; vela su corazón porque el amor no duerme en paz y en el que ama; duerme su entendimiento y reposa su voluntad porque está junta a Dios y hecha un espíritu con El (…).” (Ibid.) Distinguirá OSUNA, três tipos de silêncio (como modos de “calar” o entendimento): 1) por cessação de todas as fantasías e imaginações; 2) por um estado “quietíssimo” como num ócio espiritual, vagando em contemplação… equivalendo o ouvir; e, 3) um “calar” que se faz em Deus: “cuando se transforma en El toda la ánima y gusta abundosamente la suavidad suya, en la cual se adormece como en celda vinaria (…).” (Tercer Abecedario Espiritual,ibid., ed. cit., p. 593) – aquele a que ali (Tr. 21, c. 3, supracit.) se reportava. Estes três “graus” de silêncio são comparáveis – como o lembra Melquiades ANDRÉS, em nota a Fr. de OSUNA, Tercer Abec. Esp., p. 592 – com similar distinção em S. JOÃO DA CRUZ: respectivamente: 1) Subida, II, 12, 2; 13, 1; III, 15, 1; 34, 1; 2) Subida II, 12, 8; Noche oscura I, 9, 6; Cánt 14-15 e 21; e 3) Cánt 14; Subida II, 14, 10…

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Mas quem é para mim o silêncio vivo, que me interrompe a palavra – a aposiópesis –, talvez por ser Verbo infindo de outro (encarnado) dizer? 1. Polissemia do «silêncio» e âmbito específico do «segredo» místico ‘Pâsa prótasis è génos ékhei kategoroúmenon, è diaphorán, è eîdos, è ídion, è symbebekós, è tó ek toúton sygkeímenon: oudèn dè epì tês hagías Triádos tôn eireménon ésti labeîn. Siopêi proskyneístho tò árrheton.’ (EVAGRIUS PONT., Gnost., 41; trad.: “Toda a proposição tem um género como predicado, ou uma diferença, uma espécie, uma propriedade ou um acidente, ou um composto: mas nada disto colhe a respeito da Santíssima Trindade. Que em silêncio seja adorado o inefável.”) “In silentio et quiete proficit anima devota, Et discit abscondita Scripturarum.” (Thomas de Kempis, Imitatio, «Admonitiones ad spiritualem vitam utiles», XX, 28)

Falamos do silêncio na frequente efabulação da mística na fronteira do dizível e na perplexidade do que ali relembramos como fábula mística não menos retórica.91 E não basta o reenvio à dimensão mais intrínseca de uma semiótica cristã, de uma ‘crucifixão’ da palavra no que se chega a dizer o eloquente emudecimento do Verbo É um paradoxo digno de Jorge Luis Borges…, o de se falar do silêncio, como silêncio da linguagem! – aliás constantemente retomado… Vide John CAGE, “Composition as Process” (1958), in: Id., Silence: Lectures and Writings, Middletown, Wesleyan Univ. Pr., 1961, p. 51: “I have nothing to say and I am saying it.”… Vide Michel de CERTEAU, La Fable mystique,XVIe-XVIIe siècle, Paris, Gallimard, 1982, pp. 243 e segs. : «L’institution du dire» e pp. 257 e segs. : «La fiction de l’âme, fondement des Demeures (Thérèse d’Avila)». Cf. reflexão em nossos estudos : Carlos H. do C. SILVA, “Da indiferenciação do dizer ao autómaton do falar – Os limites da Linguagem em Wittgenstein”, in: Rev. Port. de Filosofia, XLV, 2 (1989), pp. 247-284; e Id., “Diário da Misericórdia e dom imaginário da Linguagem – Condições diferenciais e regime redaccional da mensagem mística de Santa Faustina Kowalska”, in: Rev. de Espiritualidade, X, nº 39 Julho/ Set., (2002), pp. 165-224… 91

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na Cruz 92, para esclarecer vários sentidos e graus de compreensão do que por “silêncio” se refere de modo mais ou menos confuso. É ainda a lição “profética” adensada nessa única palavra secreta que o Pai disse ao Filho, tal como ecoa na compreensão mística de São João da Cruz, quando comenta Heb 1, 1: “O que antigamente Deus disse pelos Profetas a nossos pais de muitos modos e de muitas maneiras, agora, por último, nestes dias, nos falou pelo Filho tudo de uma vez. No qual o Apóstolo dá a entender que Deus ficou como mudo, e não tem mais que falar, porque o que antes disse em parte aos Profetas, falou-o no todo, dando-nos o Todo, que é o Seu Filho.”93

Tal como no caso de outras “noções negativas” seja a das metáforas do deserto, da noite, do vazio…, etc., é mais difícil delimitar essas diferenciações, do que no caso da ordem apolínea de 92

Aquela semiótica é também a do sentido sacramental de encarnação da palavra excluindo mera acepção simbólica nesse âmbito litúrgico. Cf. nossa reflexão: Carlos H. do C. SILVA, “Dos signos primitivos: Preliminares etiológicos para uma reflexão sobre a essência da linguagem”, in: Análise, I- 2 (1984), pp. 21-78; Id., (Continuação), in: Análise, II -1, (1985), pp.189-275. A linguagem passa a ser a de sinais realizadores segundo a graça e mediação de Cristo. Não a “doutrina” sonante, mas a operação de um ensinamento de Vida que faz corpo com a silenciosa presença…Vide nota seguinte. 93 Cf. S. JOÃO DA CRUZ, Sub 2, 22, 4 e 5: “«Multifarium multisque modis olim Deus loquens patribus in Prophetis: Novissimi autem diebus istis locutus est nobis in Filio» (Hebr 1, 14) Lo que antiguamente habló Dios en los profetas a nuestros padres de muchos modos y de muchas maneras, ahora, a la postre, en estos dias nos lo há hablado en el Hijo todo de una vez. En lo cual da a entender el Apóstol que Dios há quedado como mudo y no tiene más que hablar, porque lo que hablaba antes en partes a los profetas ya lo há hablado en él todo, dándonos ao Todo, que es su Hijo. (…) Porque tú pides locuciones y revelaciones en parte y, si pones en él los ojos, la hallarás en todo, porque él es toda mi locución y respuesta, y es toda mi visión y toda mi revelación (…).” (in: Lucinio RUANO DE LA IGLESIA, (ed.), S. Juan de la C., Obras Completas, ed. critica, Madrid, B.A.C., 1989, p. 201 (doravante sempre cit. por esta ed.); o recto é sublinhado nosso; no corpo do texto, o extracto segue, no caso, a tradução do Carmelo de S. José, de Fátima, S. J. da C., Obras Completas, Oeiras/ Paço de Arcos, Ed. «Carmelo», 19865, p. 196). Cf. ainda Id., Dichos de luz y amor, § 99: “Una Palabra habló el Padre, que fue su Hijo, y ésta habla siempre en eterno silencio, y en silencio ha de ser oída del alma.” (in: ed. cit., p. 50).

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representações mentais, cognoscitivas, morais, ontológicas, assim no caso do silêncio tende-se a recortá-lo pelos limites da linguagem ou, pelo menos, de uma outra ordem de referência possível.94 Se as etimologias do próprio vocábulo e outros sinônimos e correlatos da mesma área semântica não são por demais justificativas de um tal recorte “claro”, recolhendo-se o silêncio a certa penumbra reticente95, não deixa, entretanto, de se poder reconhecer um 94

Como Rainer Maria RILKE, Duineser Elegien, (vide: »Die Neunte Elegie«)…chega a realçar é extraordinário que haja nome para o que é “ausência de voz”, o silêncio…Segundo George STEINER, em «Silence and the Poet»: “Rilke celebrates the power of language to rise toward music; the poet is the chosen instrument of that upward transmutation. But the metamorphosis can be achieved only if language preserves the identity of its striving, if it remains itself in the very act of change.” (in: Id., Language and Silence, ed. cit., p. 45). Vide também Juan ROF CARBALLO, Entre el Silencio y la Palabra, Madrid, Espasa Calpe, 1990, pp. 81 e segs.: «El poeta y el subconsciente: Rilke, en Andalucia»… Porém, tal como na “invenção” do zero, como sinal do “nada”, o aparente negativo do silêncio tem em si uma força surpreendente, podendo ser entendido como o poder da linguagem transcendente ou criadora, de que a expressão verbal, oral… não é senão asténico reflexo. Cf., além disso, o contraste entre o silêncio e o mutismo: «Le silence en effet n’est pas le mutisme. Il prépare notre attention à l’unique nécessaire. Le silence est prélude d’ouverture à la révélation de la Parole, le mutisme est fermeture à la révélation et son refus. (…). » (Michel MARET, Les jardins du silence, Saint-Maur, Parole et Silence, 2008, p. 15). 95 Na tradição indo-europeia as etimologias para «silêncio» atestam-se na raiz *swîg-, donde o gr. sigé, al. schweigen…com a acepção de “abater”, fazer “desaparecer”… algo assim evanescente como ainda se pode associar ao lat. silere, “aquietar”, dizendo-se da suspensão do vento e por extensão do falar… Donde o silentium, que até pode revestir um timbre religioso… Cf. A. ERNOUT e A. MEILLET, Dict. étymologique de la langue latine, p. 625). Porém, também remetem à raiz *take-, donde o lat. tacere, fr. se taire, no sentido que dá em port. o tácito, taciturno…, isto é, o que se cala, faz silêncio por tal emudecimento. (cf., entre outros, Carl Darling BUCK, A Dictionary of Selected Synonyms in the Principal Indo-European Languages, Chicago/ London, Univ. of Chicago Pr., 1949 e reed., sub nom.). Entre outros núcleos semânticos conexos (como “tranquilidade”, “quietude”, hesykhía, repouso…mudez…), ainda na área, aqui em consideração, das línguas indo-europeias, deve referir-se a raiz * teus-, que dá em irlandês tost, “silêncio” e em sânscrito tûsmin com a acepção de “ficar quieto” ou em silêncio. Acrescenta-se, assim, à “ausência de som” e ao carácter “tácito”, este último sentido de “ficar quieto”, não fazer ruído, também dito pelo sânscr. mauna, já típico do renunciante e da ascética da vida silenciosa... Gesto complementarmente dito no cast. e port. calar, como quem deita âncora ao fundo, quem deixa cair ou “calar fundo”, isto é, remetendo a esse profundo oceânico, a esse escondido ou secreto, a

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indicativo radical que terá a ver com o chut!, ou outra interjeição correspondente que “manda calar”, que para ou suspende um processo vital.96 Algo de semelhante a um “stop”, uma paragem de ritmo, que se traduz num estar, numa “posição” fixa ou estável, num sossego e tranquilidade sem tensão ou esforço que faça exprimir.97 Reenvio à esse obscuro em que a palavra tomba silenciosamente… (cf. Pierre MIQUEL, art. «Silence [De l’Antiquité au moyen-âge]», in: DS, t. XIV, col. 829). Por outro lado, recordar-se-ia o clima poético de Teixeira de PASCOAES, no Verbo escuro: “Mas não se confunda a escura tristeza da estupidez com a tristeza espiritual, a tristeza que doira a luz da lua, e fala no silêncio, e é alguém na solidão.” (in: Verbo escuro e Beira (num Relâmpago), «Obras Completas» 7º vol., Paris/ Lisboa, Livr. Aillaud e Bertrand, [1915], «Da Alegria e da Tristeza», IX, p. 24). Vide ainda deste mesmo Autor, O Homem Universal, justificando outras suas menções (por exemplo: Marânus, 1911) do mundo de sombras e silêncios…: “No Princípio era a sombra, não a sombra/ Passiva e projectada, mas um voo/ De sombra que a si mesma se projecta;/ Um fumo que era chama adormecida,/ Aparência de morte e silêncio,/ Mas escondendo a aparição da vida…” (O Homem Universal e Outros escritos, Lisboa, Assírio & Alvim, 1993 reed., p. 23). Muitas metáforas para «silêncio» repercutem esse isolamento, deserto, vazio… também noite, indistinção…Vide a associação musical no estilo nocturno de Messiaen: cf. Mathew HILL, “Faith, Silence and Darkness Entwined in Messiaen’s ‘Regard du silence’”, in: Nicky LOSSEFF e Jenny DOCTOR, (eds.), Silence, Music, Silent Music, Aldershot, Ashgate Publ. Co., 2007, pp. 37-52, referindo a «Noite escura» de S. João da Cruz… Note-se, por outro lado, entre outras metáforas, que o «deserto» se diz em hebr. midbar, relacionável com medabar, o “dizer”, também o “falar” de Deus nesse “espaço de silêncio”… 96 Ainda no eco do alem. Schweigen, do gr. siopé, de valências onomatopaicas do fr. chuchoter, ou simplesmente de tal gesto de «mandar calar», associando o chut, chiu… ao dedo sobre a boca, ou ao rito dito em gr. mýein, múo…, “fechar a boca” para ouvir o mythos, etc. (cf. infra n. 99), remete-se para o exercício de um stop, uma “paragem” ou radical “interrupção”.Cf. o significativo texto do séc. XVIII, da autoria do Abbé Joseph Antoine Toussaint DINOUART, L’art de se taire, principalement en matière de religion, Paris, Desprez, 1771, como verdadeira arte da “eloquência do corpo”, numa gestualidade silenciosa que é valorizada pelo autor. Não se trata apenas de um calar, mas de dar a entender de outro modo (“langages du visage”…), de acordo, aliás, com a caracterologia de La Bruyère ou de La Rochefoucauld… Nesta moral de não-falar enumeram-se 10 tipos de silêncio: 1) de prudência ou 2) artificial; 3) complacente ou 4) irónico; 5) espiritual ou 6) estúpido; 7) de aprovação ou 8) de desprezo; 9) de disposição (humor) ou 10) político (de reserva). São tudo formas activas de calar, longínquas da experiência espiritual e passiva do silêncio… Vide por oposição n. 58. 97 Recorde-se o que ficou aludido nas valências etimológicas…Vide este especial sopro, que apaga, varre e faz vazio… como o que impele ao deserto e ao grande

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densidade de um ser calado, fixo ao fundo, serenado ou pacificado, num estar quieto e manso, como de diversa “vibração” de ser se tratasse bem diferente da “atividade” real.98 Mas, independentemente da semiogonia possível ao nível lexical, importa distinguir várias acepções de tal «silêncio», tendo em conta os diferentes níveis de consciência que estruturam a escala do humano e ainda do itinerário que depois se diz, por via de recolhimento e serenidade, elevado a uma união espiritual, seja ainda como ascese do ruído exterior, seja como escuta interiorizada, ou mesmo perfeito silêncio de divina quietude assim participada.99 espaço de outra sensibilidade interior… Neste timbre “silencioso” vide as meditações de Jean MANSIR, O.P., Le souffle du silence – à la recherche de la paix intérieure, Paris, Cerf, 2003, quando releva esse trânsito da letra ao espírito, ou da palavra a tal silêncio… E, embora se refira ao “guardar o silêncio” (pp. 97 e segs.) e a essa ascese necessária, salienta também o «écouter dans le vent» na ressonância bíblica (cf. 1Rs 19, 12) desse «diálogo» com o silêncio (pp. 65 e segs.). Vide ainda Un frère Carme, Et l’Esprit nous pousse au désert, Toulouse, Éd. du Carmel, 2008. Cf. também Michal J. EASTCOTT, The Silent Path – An Introduction to Meditation, London, Rider & Co., 1969, pp. 57 e segs.; e vide as várias “espessuras” do silêncio meditadas por Tony RITTER, Le silence – Un chemin de communion, Paris, Cerf, 2008, sobretudo quando salienta as dimensões do corpo («révélateur du coeur», pp. 86 e segs.) e de «se tenir immobile en sa présence» (pp. 77 e segs)… 98 Como basicamente reflecte Anna Maria CÀNOPI, Silenzio – Esperienza mistica della presenza di Dio, Bologna, Ed. Dehoniane, 2008, salientando «il silenzio: una realtà costitutiva dell’uomo”, e apoiando-se na disciplina, sobretudo beneditina, para esse fazer silêncio como meio de se encontrar em comunhão… Entretanto, numa primeira abordagem polissémica, o silêncio, por ausência de palavra, pode ter várias caracterizações… justamente como lugar da palavra. Segundo Michel MARET, Les jardins du silence, ed. cit., haverá que distinguir nesse seu “deserto” a 1) intimidade com Deus, sendo o silêncio a “sarça ardente”, embora também: 2) o caminho desse despojamento e, sobretudo, 3) o que vem a constituir «le silence berceau de la parole» (pp. 87 e segs.). Nas últimas partes destas meditações o autor salienta ainda 4) o silêncio do perdão e 5) o próprio místico “silence de Dieu” tipificado no jardim de Gethsemani. 99 Cf. supra n. 50. Podem antecipar-se estas três grandes acepções da semântica do “silêncio”, além do simples não ouvir, ou da absolvição final do próprio silêncio. Ou seja, salienta-se o silêncio ascético também de um “calar”, voto de silêncio, etc. como gr. siopé, lat. tacere, “fazer silêncio”, distinto do “silêncio” místico na acepção passiva, no gr. sigé, lat. silentium, o qual depois tenderá a revelar a própria presença de Deus em tal quietude ou hesykhía…Cf. Pierre ADNÈS, art. «Hésychasme», in: DS, t VII, cols. 381-399; mas vide sobretudo: Pierre MIQUEL e Michel DUPUY,

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A ) Do silêncio e ‘mudez’ do seu voto Numa óbvia primeira acepção o silêncio, diz-se da ausência do som e como seu oposto, tal como o invisível, seja por cegueira ou ocultação objetiva, em relação à luz visível, à claridade que se olha.100 art. «Silence», in: DS, t. XIV, cols. 829-859; e vide infra elaboração mais analítica desta tríade de acepções (externa, interna e superior) do silêncio nos quadros esquemáticos infra. Importa, no entanto, não confundir uma diferenciação dos vários sentidos do «silêncio» no âmbito da vida espiritual com mera perspectiva tipológica e cultural de uma sua consideração em campos pedagógicos, psicológicos, estéticos, filosóficos…, como se observa em Massimo BALDINI, Elogio del silenzio e della parola – I filosofi, i mistici e i poeti, Soveria Mannelli, Rubbetino Ed., 2005, pp. 129 e segs.: «Quattro dimensioni del silenzio», quando elenca: o silêncio subconsciente e psicanalisável; a dimensão estética do silêncio (seu uso na Poesia e na Música…); o silêncio categoria filosófica, ligado com a autenticidade, valor e limites da linguagem, também do indizível metafísico…; e o que o Autor designa como “l’essere-per-il-silenzio del mistico” (pp. 164 e segs.). É apenas nesta última dimensão que se salientam: o silêncio de “suicídio linguístico” perante o Outro; o silêncio como escuta desse totalmente Outro, e, de permeio, o “silenzio come reticenza” (pp. 168-171) que, em convergência com o tema deste nosso estudo, mais importaria reter. 100 No mundo ambiente em que vivemos é impossível a completa ausência de som (cf. Hermann L. F. HELMHOLTZ, On the Sensations of Tone as a Physiological Basis for the Theory of Music, (1877), trad. do alem., N.Y., Dover, 1954, pp. 7 e segs.; Jean-François AUGOYARD, «L’objet sonore ou l’environnement suspendu», in: Várs. Auts., Ouïr, entendre, écouter, comprendre après Schaeffer, Paris/ Bry-surMarne, Buchet/Castel / Institut national de l’audiovisuel, 1999, pp. 83-106…), ainda quando se reduza ao mínimo do inaudível e em condições ditas de «privação sensorial», pois há sempre na mesma consciência disto um eco interiormente audível, seja como memória sonora, seja como rumor próprio do psiquismo, também ele vibrátil em ondas cerebrais detectáveis como tais. Cf. também: Joseph-François KREMER, Esthétique musicale – La recherche des dieux enfuis, Paris/ Montréal, L’Harmattan, 2000, pp. 87 e segs.) A ideia de uma identidade sensível do “som” é que se constitui como paradoxal, já que não tem propriamente sentido afirmar-se que “há sons que não ouvimos” (remetendo para outras audições de ultra-sons, de infra-sons…), sendo o sonoro sempre referido à sua identificação auditiva. Cf. Robert MIQUEL, Du silence à la parole – L’univers des formes sonores, MéolansRevel, Ed. DésIris, 2002, pp. 129 e segs.: «L’éveil du corps sonore». Por outro lado, outras vibrações, porventura determinantes de outros sentidos (quiçá desconhecidos, ou até assimiláveis ao que os mísaticos referem por sentidos espirituais…), ou por eles também determinadas, recebem não apenas uma identificação convencional de acordo com a habitual classificação das estesias (cf. Michel SERRES, Les cinq sens – Philosophie des corps mêlés, 1, Paris, B. Grasset, 1985…), mas inspiram

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Porém, a questão do silêncio parece mais complexa, pois está em causa, não apenas o não se ouvir (que poderia ser tão só surdez), o não haver som (numa objectiva insonoridade), mas complementada de um mutismo, tanto gerado por não se ouvir, quanto por não se poder imitar, reconhecer, nesse primevo eco de alma. 101 Por conseguinte, situação não apenas do dito ‘silêncio cósmico’102 exterior ao mínimo sinestesias reveladoras de outra sua diversa relação possível. (Como na estética do simbolismo cf. Pierre-Henry FRANGNE, La négation à l’œuvre, ed. cit.,pp. 61 et passim). O dito som branco e ‘inaudível’, ou melhor, audível como absolutamente monótono, quase hipnótico, pode revelar o tal silêncio aparente que afinal pode inspirar muitas sensibilidades diversas. (Grande parte da meditação sobre o som interior na técnica do mantra, cf. Arthur AVALON, La Doctrine du Mantra,La Guirlande des Lettres/ Vanamâlâ, trad. do ingl., Paris, Éd. Orientales, 1979; vide infra ns. 89 e 241; também Alain DANIÉLOU, «Mantra. Les principes du langage et de la musique selon la cosmologie hindoue», in: Id., Origines et Pouvoirs de la musique, Paris/ Pondicherry, Kailash Ed., 2005, pp. 203-221…). Como que a provar que o sensível não é o que é e, só por isso, pode continuar a ser aparente, iludindo a própria constituição perceptiva cristalizada pelo hábito, e determinando novas experiências das suas margens de ausência, de flutuação, até de efémero... O silêncio não será, neste sentido, um estado, mas uma condição diferencial, do que até interrompe o olhar, pausa a consciência sensível, ritma a vida (de morte). 101 Afinal, o silêncio de que aqui paradoxalmente se fala é de segunda instância (por isso mesmo), não a pura ausência de som, mas a “in-consciência” disso na “caixa de ressonância” de um possível constatar e implícito dizer interior; por outras palavras, uma “música” do silêncio. Como se pode reler em Richard LEPPERT, em «Commentary» a Theodor W. ADORNO, Essays on Music, Berkeley/ Los Angeles/ London, Univ. of Califórnia Pr., 2002, p. 219: “The music is compromised by a second-order presence, a technological filter whose effects… may function only at the level of the unconscious.” Cf. ainda R. LEPPERT, The Sight of Sound: Music, Representation and the History of the Body, Berkeley, Univ. of California Pr., 1993. 102 Que, quase misticamente, faz exclamar PASCAL, Pensées, 206 (ed. Brunschvicg); 201 (ed. Lafuma): “Le silence éternel de ces espaces infinis m’effraie.” O silêncio do espaço (cósmico) é também o espaço no seu próprio infinito silêncio, seja pela extensão assim tomada como absoluto ermo em si mesmo, ecoando o “vazio” dos Antigos, seja pela eternidade que abisma num sem começo nem fim, que se poderia hipostasiar coeterno ao Criador (tese do de aeternitate mundi) … Porém, longe deste imaginário cosmológico, a ciência moderna não exclui uma outra ‘voz’ do espaço intersideral, intergaláxico, não só a chamada vibração negra, da suposta “matéria negra” invisível, mas “audível” nesse comprimento de onda de micro-ondas, mas a própria compreensão de que a linguagem seja efeito espectral de cruzamento de universos que deixem de ser “singularidades” paralelas, e sejam o “lugar” de acontecimentos. Dir-se-ia, numa hipótese – a qual aqui se

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lugar da terrena atmosfera ainda de outros meios vibráteis do som, mas, pelo contrário, de uma “música das esferas” que nunca se ouve só por sempre se ter ouvido.103 Ou seja, um silêncio tornado sinônimo do som sem hiato, do ser sem consciência, qual fundo dormitivo da própria consciência no que não é, afinal, ausência de som, mas apenas do audível.104 pretenderia também de teor ontológico – que o ser na sua presença sem mais “eco”, será resultado de negatividades que se anulam reciprocamente. O ser como efeito de dois “nadas”, sendo também o silêncio uma das nomeações possíveis dessa dupla ausência genesíaca do ilusório eco de tudo. Cf. Alfred TOMATIS, Écouter l’Univers – Du Big Bang à Mozart à la découverte de l’univers où tout est son, Paris, Robert Laffont, 1996, pp. 33 e segs. : «Son et lumière» ; pp. 107 e segs. : «Son et harmonie»… 103 Adentro na cosmologia geocêntrica clássica a concepção pitagórica da dita harmonia das esferas constitui a extensão musical da intuição aritmosófica do número constitutivo de todas as coisas. Cf. John STROHMEIER e Peter WESTBROOK, Divine Harmony, The Life and Teachings of Pythagoras, Berkeley, Berkeley Hills B., 1999. Interessante é a afirmação psicológica da ausência de reconhecimento dessa música celestial, inaudível dado o hábito constante, (cf. JÂMBLICO, Vit. Pyth., c. 15; L. DEUBNER e V. KEIN, (eds.), IAMBLICHI, De vita Pythagorica liber, Teubner, Stuttgart,1975, p. 36) mostrando a necessidade de um conhecimento pela diferença (como defenderia ANAXÁGORAS, frag. B 12: ‘…diakrinómena pánta égno noûs’, in: D.-K., t. II, p. 38). Cf. Dominic J. O’MEARA, Pythagoras Revived – Mathematics and Philosophy in Late Antiquity, Oxford, Clarendon Pr., 1989 e reed.; Flora R. LEVIN, (ed. e trad.), The Manual of Harmonics of Nicomachus the Pythagorean, Grand Rapids, Phanes Pr., 1994, ch. 2: «On the two species of the voice, the intervallar and the continuous, and their regions», pp. 37 e segs.; vide também: Manfred KELKEL, Musiques des mondes – Essai sur la métamusique, Paris, Vrin, 1988, pp. 41 e segs.: «Les «fils du Ciel» et le chant des nombres»… 104 Não é aqui ocasião, mas seria de interesse o relacionamento do silêncio com o sono, o estado de abrandamento da vida (do hýpnos irmão da morte: hýpnos kaì thánatos adelphoí estin…), numa caracterização desse letargo menos vibratório em relação ao “calor vital” (qual pýr aeízoon de HERACLITO DE ÉFESO, frag. B 30; in: D.-K., t. I, p. 158) do estado desperto. De facto, os extremos tocam-se, pois o profundo sono sem sonhos, como se refere na tradição hindu por prâjña, até como o absoluto estado de Brahman, ou o sono de Shìva (cf., por exemplo: Alain PORTE, (trad.), Shiva – Le Seigneur-du-Sommeil, Paris, «Sources», 1981; A. K. RAMANUJAN, Speaking of Siva, Harmondsworth, Penguin, 1979…). Vide Trevor LEGGETT, (ed.) Shakara on the Yoga Sûtra-s – A full Translation of the Newly Discovered Text, Delhi, Motilal Banarsidass, 1992, pp. 93 e segs.: Sûtra I, 10 – “The mental process which rests on the notion of non-existence is sleep»…) em que tudo se absolve, não é senão correlato do estado da consciência iluminativa (que nunca

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Falar com aquele grito primordial, mesmo que sem se ouvir o som , quer no pesadelo subconsciente, quer naquela metafísica da vibração ainda só como eco mental sem ruído exterior, qual silêncio místico antecedente, ou palavra de Deus em que tudo seja criado…106 105

dorme), um quarto nível de consciência ou turya, além da consciência onírica confusa e da pretensa consciência vigil. (cf. Mândûkya-Up., 2-7 (cf. S, RADHAKRISHNAN, (ed.), The Principal Upanisads, London/ N.Y., G. Allen & Unwin/ Humanities Pr., 1974 reed., pp. 695-699). O perfeito estado acordado não difere do profundo sono ou vice-versa, já que estes anulamentos de relação se absolvem a si mesmos no incomparável de tudo em si. Donde que o silêncio do “sono da morte” seja o volte-face da autêntica vida, quer na equação já estabelecida por HERACLITO, frag. B 62: ‘athánatoi thnetoí, thnetoì athánatoi, zôntes tòn ekeínon thánaton, tòn dè ekeínon bíon tethneôntes.’ (in: D.-K., t. I, p. 164), quer no que ainda, platonicamente, ecoa no soneto de F. PESSOA, «No Túmulo de Christian Rosencreutz»: “Quando, despertos deste sono, a vida, / Soubermos o que somos, e o que foi/ Essa queda até o Corpo, essa descida/ Até à Noite que nos a Alma obstrui, (…).” (em «Cancioneiro», in: Obra Poética, ed. cit., p. 190) 105 Cf. esse “subconsciente” linguístico, em tal grito primevo simbolizado…: Françoise DOLTO, Tout est langage, Paris, Gallimard, 1994. Tal no pasmo de um nascer, como radical mudança de estado, breve abortado de respiro, como no angustiante sonho em que, em vão, se grita sem que haja som… (cf. Alfred TOMATIS, Écouter l’Univers, ed. cit., pp. 143 e segs. : «Les sons utérins» ; vide também glosa romanesca em Sylvie GERMAIN, Les échos du silence, Paris, Desclée, 1996…). Por outro lado é esse vagido primevo que aparece à psicologia genética, como uma primeira condição de nexo vocálico-auditivo estruturante das memórias neuronais e psíquicas da “inteligência articulada” ou discursiva (cf. Jean PIAGET, Le langage et la pensée chez l’enfant (Études sur la logique de l’enfant), Neuchâtel, Delachau et Niestlé, 1968 e reed.). As pausas, os hiatos… destes nexos periclitantes fazem-se “espaço significativo” do silêncio de uma métrica inaparente mas presente que vai consentindo esse seu mesmo recorte sonoro. Vide bela reflexão de Marc de SMEDT, Éloge du silence, Paris, Albin Michel, 1986, sobretudo pp. 9 e segs. : «Les états du silence» e pp. 161 e segs., numa espécie de ‘arquitectónica´do silêncio : «Derrière les murs, l’espace». 106 É esta uma identificação do “som primordial”, como Palavra criadora, ou no paradigma bíblico de dabar- palavra do Deus que diz e cria, todas as coisas (debarim, coisas “ditas e feitas”). Cf. Claude VIGÉE, Dans le silence de l’aleph – Écriture et Révélation, Paris, Albin Michel, 1992, pp. 13 e segs. : «La mélodie de l’Un» ; mas vide na especulação cabalística : Marc-Alain OUAKNIN, Concerto pour quatre consonnes sans voyelles, - Au-delà du principe d’identité, Paris, Payot, 1988, pp. 37 e segs. : «La puissance des mots». Cf. também Alfred TOMATIS, Écouter l’Univers, ed. cit., pp. 244 e segs. : «Les lettres hébraïques, écho du son suprême».

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– eis uma outra evidência da microescala do acústico e de uma música que coincide a vibração do ser.107 Numa acepção empírica dir-se-ia que o silêncio, como pura ausência de som, poderia representar os limiares negativos da sensação sonora, em paralelo com a privação sensorial de outros sentidos108, num efeito até terapêutico da suspensão do som, 107

Não do ser idêntico, mas justamente pró-duzido por essa multiforme vibração possível… (cf. supra n. 62), tomada então como “música” no sentido antecedente da voz ou mesmo do canto, como “corpo” auditivo e ressonante da própria Vida. A perspectiva mântrica reflecte esse sentido ancestral da música como equação sonora construtiva da existência, depois explicitada na teoria numérica da acústica cósmica do pitagorismo. Cf. supra ns. 60, 63 e vide ainda Thomas TAYLOR, Theoretic Arithmetic of the Pythagoreans, London, 1816, pp. 106 e segs.; Jean-Luc PÉRILLIÉ, Symmetria et rationalité harmonique – Origine pythagoricienne de la notion grecque de symétrie, Paris/ Budapest/ Torino, L’Harmattan, 2005, pp. 45 e segs.: «Mysticisme et rationalisme harmonique» … Interessantes são hoje as investigações sobre as origens da linguagem remissivas a uma paleo-antropologia, inclusive dos Neandertais já capazes de cântico…Cf. Steven MITHEN, The Singing Neanderthals – The Origin of Music, Language, Mind and Body, London, Weidenfeld & Nicholson, 2005, pp. 11 e segs.: «The similarities and differences between music and language» …; vide também Vladimir JANKÉLÉVITCH, La Musique et l’Ineffable, (1961), Paris, Seuil, reed. 1983, 108 A definição dicionarística do «silêncio» remete, de facto, para uma delimitação da noção pela negativa… Cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, (Lisboa, Temas & Debates, 2003, t. III, p. 3326): “estado de quem se cala ou se abstém de falar”; “privação, voluntária ou não, de falar (…), de pronunciar qualquer palavra ou som (…).”; vide também The Oxford Dictionary of English, “complete absence of sound”; “abstaining of sound”; e “avoidance of mentioning or discussing something”; Adolphe HATZFELD, Arsène DARMESTETER e Antoine THOMAS, Dictionnaire général de la langue française, Paris, Delagrave, 1964, t. II, p. 2043: “le fit de ne pas parler”; “le fait de ne pas exprimer sa pensée par la parole ou par écrit”; e p. ext. “absence de tout bruit”… Como a polissémica “cegueira”, também esta “surdez” e “mudez” de som têm sentidos cumulativos que convocam o indizível, o impensável, o incógnito… aliás, fazendo do “entender” (como no francês “entendre”, com a acepção de entender “inteligivelmente”) um “sexto sentido” (cf. o “coração” como lugar secreto- ár. sirr, supra n. 6), como se reconhecerá no sâncr. manas, no gr. koinòn aístheton como sensório comum que a mente organiza ou regula. Há uma primitiva tríade sinérgica entre ver, ouvir e entender, já desde as formulações pré-socráticas, que reforça a ideia de um mental coordenador no qual, portanto se reflecte, pela negativa, o invisível, o inaudível e o ininteligível, de que o silêncio pode ser diversamente significativo. Cf. nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Ver, ouvir e entender… ou da originária mudez do logos filosófico – Tradição pré-socrática e destino do pensar”, in: Várs. Auts., Razão e Liberdade –

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sobretudo do ruído desarmônico, reconduzindo a uma quietude, já não por virtude da música, mas desse “ruído branco” ou dessa ausência de discernimento sonoro que imita a total supressão de ouvido, surdez do silêncio.109 É neste plano, não tanto do experimentalismo psicológico na supressão sensorial induzida, com todos os riscos de estado de coma por ausência de estímulos vitais mínimos, mas de técnicas de ascese do ruído circundante e procura do silêncio, como forma de quietude também ambiente, que se pode situar a acepção dominante do silêncio exterior.110

Homenagem a Manuel José do Carmo Ferreira, Lisboa, Centro de Filosofia da Univ. de Lisboa/ Depart. de Filosofia da Fac. de Letras de Lisboa, 2010, vol. I, pp. 519-569. À medida da mente (cf. mens> mensura…) e sua habitual “mentira” (coisa assim “mental”…), advém a paradoxal meditação (ainda de medire> mediare, meditatio…) do seu vazio, do des-medido (por excesso maníaco, como diria, por exemplo, PLATÃO, Tim., 86 b e segs.: tò mèn manían…), incomensurável, ou tão simplesmente de-mência (por falta de mente, ainda Ibid. : tò dè amathían…’). Silêncios assim, vários, a mentalmente não confundir. 109 Sobre este valor terapêutico da “música” silenciosa, cf. TOMATIS, Écouter l’Univers ed. cit., pp. 163 e segs.: «Son et thérapie»; David ALDRIDGE, Music Therapy Research and Practice in Medicine – From Out of the Silence, London/ Bristol/ Pennyslvania, Jessica Kingsley Publ., 1996, sobretudo pp. 150 e segs.: «Musical Intervals and Psychology»…; e vide tradição monástica também sensível a esta cura de alma pela meditação silenciosa.Vide n. seguinte. 110 Fazer silêncio, induzir calma por um ambiente muito sossegado, pela preferência de lugares tranquilos, como de muitos mosteiros e geografia dos eremitérios da suposta fuga mundi do ideal monástico e sobretudo anacorético (quando, é sabido, a procura de lugares desertos teria em vista ir dar luta aos espíritos demoníacos, entretanto, expulsos das cidades cristianizadas, e vagueando por esses ermos, onde seria preciso dar-lhes o aóratos pólemos, isto é, o “combate invisível”…) – eis o que nem sempre traduz na circunstância silenciosa uma interioridade não menos ruidosa, dissipada ou distraída da simplicidade essencial. Todavia é “romantização” (ou não) da vida monástica e religiosa como vida de silêncio… Vide Thomas MERTON, The Silent Life, N. Y., Farrar, Straus & Giroux, 1957, reed. 1980, pp. 1 e segs.: «The Monastic Peace»; e «The Cenobitic Life», pp. 59 e segs.; ainda «The Hermit Life», pp. 127 e segs., etc. e cf. numerosas publicações que ainda actualmente induzem a essa estética da vida eremítica, aparentemente tranquila, silenciosa… - por exemplo: Paroles de Chartreux, Paris, Cerf, 1987 ; André GOZIER, Le regard intérieur,Dom Augustin Guillerand et la spiritualité de la Chartreuse, Paris, Mame, 1991 ; Dom Godefroid BÉLORGEY, Sous le regard de Dieu, Initiation à la vie intérieure, Paris, Cerf, 1993, sobretudo pp. 113 e segs.: «Silence extérieur».

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Mas, mais do que o refúgio, a procura de lugares calmos e silenciosos, a própria anacorese eremítica, etc. também conhecidas práticas dos monges, o voto de silêncio, as técnicas do mutismo exterior e da exclusiva linguagem de mínimos gestos, etc., revelam uma antiga sageza, porventura espontânea111 de que suprimir a linguagem na sua vertente verborreica, (desse tagarelar recentemente denunciado como expressão de inautenticidade do próprio ser do homem dizente112), que aponta ainda para a perca de energias vitais associadas ao falatório. Não apenas o som, a fragmentação babélica e iterativa desse constante blá-blá como quem ‘assobia no escuro’, refletindo afinal ‘a conversa sem fim’113, o desassossego de alma, de Aprendida pela experiência da vida e o sentido de poupança de “energias” vitais evitando o gasto dispersivo pela linguagem… O que também poderá ser a sabedoria xamânica ancestral de um poder a captar e regular pelo silêncio, como, noutra perspectiva, complementa a narrativa do caminho do yaqui D. Juan, contada por Carlos CASTAÑEDA, The Power of Silence,Further Lessons of don Juan, London, Black Swan B., 1987, por exemplo, p. 155: “This silent knowledge, which you cannot describe, is, of course, intent – the spirit, the abstract. Man’s error was to want to know it directly, the way he knew everyday life. The more he wanted, the more ephemeral it became.” Do que se é, não se pode falar; apenas indirectamente atender à presença espiritual assim silenciosa… 112 Cf. Martin HEIDEGGER, Sein und Zeit, § 35, Tübingen, Max Niemeyer, 1963 10, pp. 167 e segs.: »Das Gerede«... e Id. Unterwegs zur Sprache,Pfullingen, Günther Neske V., 19714, sobretudo pp. 157 e segs.: »Das Wesen der Sprache«. É ainda nesta lição da palavra densa, ponderada de tal lógos essencial, por contraste com o seu “falatório” inautêntico, que se enraíza a meditação do teólogo Karl RAHNER, videWorte ins Schweigen, Innsbruck, Felizian Rauch V., 19381… Outro teólogo, o suíço Max PICARD em Die Welt des Schweigens, Erlenbach, Eugen Rentsch V., 1948, salienta na base das palavras o plano das imagens, qual imaginário assim videncial e silencioso, apaziguante, ou até conversivo da linguagem a essa sua ‘quieta’ natureza tomada como fundo espiritual… 113 Como ecoa de Maurice BLANCHOT, L’Entretien infini, Paris, Gallimard, 1969, sobretudo pp. 35 e segs.: «La parole plurielle – III – Parler, ce n’est pas voir»…; e vide outras referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “«Tenir parole» Do tempo em que falar não é dizer – ou da literatura e sua filosofia segundo Maurice Blanchot”, (Comunicação ao Colóquio «Filosofia e Literatura», orgº. Assoc. Professores de Filosofia e Univ. da Beira-Interior, Covilhã, 27-28 de Outubro de 2005; a publicar). Também poderá tratar-se do vício da leitura, seja na invenção do reiterado eco em comentarismo (cf. Bruno CLÉMENT, L’invention du commentaire: Augustin, Jacques Derrida, Paris, PUF, 2000, pp. 127 e segs.), seja na aparente inocência de uma ritualidade da leitura infinita, afinal “violenta” na sua 111

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uma ‘mente que não pára de moer’114 essa discursividade sem pausa, sem repouso ou silêncio; é também um processo psicofisiológico que se poderia diagnosticar, desde as patologias obsessivas até aos mutismos e autismos não menos traumáticos115, e que muitas vezes se poderiam equivocar na vida espiritual, sobretudo quando tais pessoas de poucas falas, taciturnas ou até depressivas e neuróticas, ingressem (sem que haja discernimento) em regras monásticas de vida contemplativa, em regimes de muito silêncio, como seja por exemplo a Trapa ou principalmente a Cartuxa.116

hermenêutica (cf. Piera AULAGNIER, La violence de l’interprétation – Du pictogramme à l’énoncé, Paris, PUF, 1975, pp. 57 e segs.). Donde que a leitura e seu respectivo silêncio prolongado possa ser criticamente interrogável, ao invés da sua pacífica infinitude… Cf. José Tolentino MENDONÇA, A Leitura Infinita,Bíblia e Interpretação, Lisboa, Assírio & Alvim, 2008 e também David BANON, La lecture infinie – Les voies de l’interprétation midrachique, Paris, Seuil, 1987… 114 A expressão inspira-se de St.ª TERESA DE JESUS, M 4, 1, 13: “…no os traiga inquietas y afligidas, sino que dejemos andar esta taravilla de molino, y molamos nuestra harina, no dejando de obrar la voluntad y entendimiento.” Será também ainda a condição repetitiva do “falatório” do discurso interior que repercute o signo babélico, oposto ao “Pentecostes” da linguagem, como salientou Georges GUSDORF, La parole, Paris, PUF, 19521, 1977, pp. 20-21; ainda G. STEINER, After Babel,Aspects of Language and Translation, Oxford/ N.Y., Oxford Univ. Pr., 1975, pp. 51 e segs.: “Language and Gnosis”… 115 Cf. referências em Suzanne BOREL-MAISONNY, «Les troubles de la parole», in: André MARTINET, (dir.), Le langage, «Encycl. de la Pléiade», Paris. Gallimard, 1968, pp. 369 e segs., sobretudo quando considera a linguagem interior…; vide também: Henry HECAEN, «L’aphasie». In: Ibid., pp. 405 e segs.: «Problèmes psychopathologiques». No âmbito dos «fenómenos místicos» (também de afasia, etc.), cf. Pierre JANET, De l’angoisse à l’extase – Études sur les croyances et les sentiments (1926), reed. Paris, L’Harmattan, 2008, 2 vols.; Jean LHERMITTE, Mystiques et faux mystiques, Paris, Bloud & Gay, 1952… e vide outras referências recentes em nosso estudo : Carlos H. do C. SILVA, «Le pathologique dans la tradition mystique – La Fable mystique et les limites d’explication chez Michel de Certeau », (Communication au Séminaire: «Mystique, Spiritualité et Santé mental», à l’Institut Franco-Portugais, le 11 septembre de 2009, inséré dans Jornadas de Estudo – Michel de Certeau e a Antropologia da Modernidade, 10-12 setembre, organisé par le CEHR de l’Université Catholique Portugaise – Lisbonne). (a publicar). 116 Não deixa de haver ambiguidades nogosto da solidão e no exagerado isolamento psíquico, diferente da salutar consciência do estar só. Será de discernir a saúde mental para um fecundo caminho de silêncio espiritual.Cf. Marguerite LÉNA,

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Tem de existir um outro sentido positivo, não só terapêutico mas contemplativo, para o silêncio expectante, em antecipada alegria do Céu, como reflecte Guigues I, o Cartuxo: “…«é bom sentar-se solitário e silencioso…» (Lam 3, 28) eis o que resume quase tudo o que há de melhor na nossa vida: o repouso e a solidão, o silêncio e o desejo ardente dos bens celestes.”117

Trata-se da consonância da solidão exigida por esse ideal silencioso com o ser só do próprio Deus, na sua mística compreensão como o ‘Grande Solitário’, ou Aquele “que habita no deserto e se alegra no silêncio”.118 Porém, ainda neste nível de contexto “acústico” do silêncio, afinal reconhecido não como ausência de som, outrossim, como tal ‘sensação’ de não se ouvir, e até pelos efeitos terapêuticos que se atribuem a tal ascese sonora, deve referir-se as técnicas que replicam não os estados passivos de “místico silêncio”, mas de procedimentos

art. «Solitude», in: DS, t. XIV, cols. 1007-1019; Jean-Claude LARCHET, Thérapeutique des maladies spirituelles, Paris, Cerf, 1997. 117 Cf. GUIGUES, I, o Cartuxo, cita Lam 3, 28: «Sedebit solitarius et tacebit, quia levabit se supra se» (apud Pierre MIQUEL, art. «Silence», in: DS, t. XIV, col. 839), e em GUIGUES II e noutros representantes desta tradição da Cartuxa, insiste-se no ideal místico da vida solitária e silenciosa; vide também GUILHERME DE SAINT-THIERRY: ed. M.-M. Davy, G. de S.-Th., Un traité de la vie solitaire… Paris, Vrin, 1946, pp. 62 et passim. Cf. ainda DENYS Le CHARTREUX, La vie et la fin du solitaire, ed. e trad. M. Lemoine, Paris, Beauchesne, 2004… 118 Cf. EUCHER DE LYON, (séc. V), De laude eremi, 3, in : PL t. 50, cols. 720d…; também lembrar na bela oração de Elevação à SS.ma Trindade, da Bt.ª ISABEL DA TRINDADE, este clima de repouso em Deus, também Ele essa Solidão: «O mon Dieu, Trinité que j’adore, aidez-moi à m’oublier entièrement pour m’établir en vous, immobile et paisible comme si déjà mon âme était dans l’éternité. Que rien ne puisse troubler ma paix (…). O mes Trois, mon Tout, ma Béatitude, Solitude infinie, Immensité où je me perds (…). » («Note Intime», 15, in: ÉLISABETH DE LA TRINITÉ, Oeuvres complètes, ed. crítica por P. Conrad De Meester, O.C.D., Paris, Cerf, 2001, pp. 907-908; trad. port. por Carlos H. do C. Silva, I. da Tr., «Obras Completas», Marco de Canaveses/ Avessadas, Ed. Carmelo, 2008, pp. 811 e 816).

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xamânicos e magistas capazes de usarem o poder do silêncio, como mudez induzida para outra escuta interior.119 O caminho místico, ou ascético-místico, é outrossim passivo, posto que não quietista, mesmo quando em tradições não-bíblicas se insiste na visão ou na potência iluminativa, o que se traduz em dimensão de escuta no registo oral, ou de auditiva ascese, em ordem a uma atenção espiritual.120 Por isso, o silêncio será coincidente com 119

Não só, como se antecipou (supra ns. 54, 71 e vide ntambém n. 244), a guarda da energia da intenção de que o silêncio é o poder espirituala ser mantido inefável, mas todo um outro uso da voz aparentemente muda das coisas, dos seres de outras cadeias de vida e de instâncias espirituais, cuja “linguagem” é a do silêncio. Liga-se, pois, esta espécie de totemismo de diferente identificação verbal ao que fica também conhecido pela “linguagem das aves” (cf. supra n. 11 e vide ainda Henry CORBIN, En Islam iranien – Aspects spirituels et philosophiques, t. II: Sohrawardi et les Platoniciens de Perse, Paris, Gallimard, 1971, pp. 40 e segs., e vide a metáfora sapiencial deFarid-ut-din ATTAR, The Conference of The Birds, (Mantiq utTair),ed. e trad. C. S. Nott, London, Routledge & K. Paul, 19715), etc. e que é inclusive mimado em certa entoação de um laleîn aparentemente confuso, por parte do xamã, em ruídos animais, etc. que invocam os “manes” silenciosos e momentaneamente lhes dão voz. Cf. Mircea ÉLIADE, Le chamanisme et les techniques archaïques de l’extase, Paris, Payot, 1983, pp. 144, 162 e segs.; Van der LEEUW, La Religion dans son essence et ses manifestations,Phénoménologie de la religion, trad. do neerlandês, Paris, Payot, 1970, §§ 26, 74…. Sobre as práticas xamânicas, até terapêuticas, cf. vários contributos em José María POVEDA, (dir.), Chamanismo – El arte natural de curar, Madrid, Ed. Temas de Hoy, 1997. Sobre a « magia» do som, cf. ainda Laetitia PETIT, «La magie musicale», in: Prétentaine, 18/ 19, Printemps (2005), pp. 223-278. 120 De facto, não é legítimo desejar-se o silêncio, como se o mesmo consistisse num acto. Mais do que uma ética do silêncio, haverá além da moral da palavra, uma estética e, sobretudo, a passividade mística do que se consente em escuta… A espessura moral da religião tem dificuldade em tal despojamento: «…l’Hindou est étranger au drame, le chrétien ne peut atteindre en lui le silence nu. L’un et l’autre ont recours à l’ascèse. (…) On cherche un «résultat». » - como constata Georges BATAILLE, «L’expérience intérieure» (in : Œuvres complètes, vol. V : La Somme athéologique, t. I, Paris, Gallimard, 1973, p. 36). O acesso à pura intimidade, como diz ainda Bataille : «…l’accès au monde du dedans, du silence, se liant en moi à l’extrême interrogation, j’échappai à la fuite verbale en même temps qu’à la vide et paisible curiosité des états. » (Ibid.). O aparente silêncio tumular abisma-se, afinal, na profunda criatividade – de tal interrogação-atenção, embora perdendo-se o silêncio em segredo, logo que haja uma decisão: «Il est un secret dans la décision, le plus intime, qui se trouve en dernier, dans la nuit, dans l’angoisse (…).» Eis o que distingue o clima «místico», ou da «expérience intérieure», segundo Bataille, do imperativo voluntário : «Mais ni la nuit ni la décision ne sont des moyens; d’aucune

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esse ouvir o inaudível, essa disponibilidade para acolher a ‘voz profética’, ainda que seja como aparente silêncio.121 ‘Voz do silêncio’, como se dirá.122 Porém, a mística do silêncio não é de desencarnante angelismo123, ou de metáfora do silêncio para diferente ordem de som,

façon la nuit n’est moyen de la décision : la nuit existe pour elle-même, ou n’existe pas.» (Ibid., p. 39). Tal se diria do silêncio assim misticamente atendido… 121 Cf., entre outros, Michel Laurent DIOPTAZ, Le silence qui parle –Rencontres avec le Maître Intérieur, Barret-le.Bas, Le Souffle d’Or, 1991, pp. 93 e segs. : «Penser sans pensée – Le creux du vase est fait de silence lumineux». Vide supra n. 62 e cf. Laurie LAUFER, « J’ai fait silence», in : Claudie DANZIGER, Le silence – La force du vide, Paris, Éd. Autrement, (nº 185), 1999, pp. 16-53. 122 Vide o clássico texto da tradição esotérica tibetana, que H. P. BLAVATSKY, The Voice of the Silence being Chosen Fragments from the “Book of the Golden Precepts”, (1889), Pasadena, Theos. Univ. Pr., 1971, p. 1, texto traduzido por Fernando PESSOA, (trad.), A Voz do Silêncio e outros fragmentos extraídos do «Livro dos Preceitos Áureos», Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, reed. 1969; cf. ed. e trad., Lisboa, Assírio & Alvim, 1998, I, p. 57: “Aquele que quiser ouvir a voz de Nada, o Som sem som, e comprendê-la, terá de aprender a natureza do Dharana.” A nota que interessa tem, pois, a ver com essa voz primordial, muitas vezes referida na tradição e até mitologia hindu por Vac, a “Voz” divina, geradora de todos os seres, ainda naquela metafísica concepção de Brahman produtor do universo por essa Palavra, ou Som primordial, capaz de gerar toda a vida. Trata-se de ud-gîta, da “sílaba” primeira, anterior à Palavra e sequer à linguagem sonora ou audível, como tal voz supra-mental e silenciosa, que no texto tibetano é referida como a voz de Nada, ou seja, do Som ainda sem escuta possível… Vide ainda Arthur AVALON, La Doctrine du Mantra, ed. cit., pp. 92 e segs. : «Nâda Le premier mouvement produit». 123 Como se se dissesse que para o mundo dos invisíveis, ou dos puros espíritos, não houvesse nunca uma linguagem material (gráfica e sonora) ao lado da “imaterial” (do estrito pensamento, da “imaculada concepção”…), mas um único verbo realizador e sem esse desdobramento reflexivo ou especular. Cf. o que, sobre tal âmbito de inteligências puras, diz PLOTINO, En. III, 8, 5: ‘Apsophetì mèn dè pánta, hóti medèn emphanoûs kaì tês éxothen theorías è práxeos deîtai, kaì psykhè dè he theoroûsa…’ “totalmente sem discurso, nem tendo algo exterior a considerar ou necessidade prática, sendo a alma que contempla...”]), assinalando assim essa ausência de linguagem “sensível”. Cf. Jean TROUILLARD, La purification plotinienne, Paris, PUF, 1955, pp. 94 e segs. : «La simplicité féconde»…Vide ainda: Pierre HADOT, Plotin ou la simplicité du regard, Paris, Gallimard, 1997 ; Louis UCCIANI, Sur Plotin, la gnose et l’amour, Paris, Kimé, 1998, pp. 131 e segs. : «Le problème de l’intériorité». Vide infra n. 139.

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qual palavra interior e até divina124; tem também a dimensão “carnal” que estabelece o recorte do som na moldura concreta do silêncio. Seja o silêncio das coisas, dos seres ou dos corpos que são sem falarem, sem eco ou expressão de si mesmos. Trata-se do silêncio mudo, como se refere na tradição do Zen, de “a flower does not talk”, ou no sossego das coisas ‘que sem voz de dizerem me vibram de sentido’, segundo a expressão de F. Pessoa.125 Não se pode deixar de reconhecer que este nível de silêncio, mais imediato e tão natural, está presente no realismo da narrativa mística, tanto da tradição monástica e cristã, por exemplo de Santa Teresa de Ávila126, como no taoísmo, no budismo e no apofatismo 124

Como majoritariamente se admite, quando se pretende entender o que fica indirectamente dito, como se fosse a metáfora possível desse silêncio místico, que “literalmente” não fala. Crítica análoga de Simone de BEAUVOIR, Le deuxième sexe, t. II: L’expérience vécue, Paris, Gallimard, 1949 e reed. 1976, pp. 577 e segs.; e pp. 617 e segs.; vide outras referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Literatura espiritual no feminino e sexo místico – Em torno de St.ª Teresa de Ávila e Simone de Beauvoir”, in: Isabel Capeloa GIL e Manuel Cândido PIMENTEL, (org.), Simone de Beauvoir: Olhares sobre a mulher e o feminino, Lisboa, Nova Vega, 2010, pp. 107-136. 125 Cf. F. PESSOA, “A Múmia”, v: “Por que abrem as coisas alas para eu passar?/ Tenho medo de passar entre elas, tão paradas conscientes,/ Tenho medo de as deixar atrás de mim a tirarem a Máscara./ (…) sem se mexerem, as paredes vibramme sentido./ Falam comigo sem voz de dizerem-me as cadeiras./ (…).” (em «Cancioneiro», in: Obra Poética, ed. cit., p. 133). Vide também o que na tradição budista, pode dizer-se, constitui um pensar sem mente, um falar sem palavras… (vide infra n. 268), ou mesmo, na tradição subitista e zen, a imediatez do ser mudo, directa realização sem palavras… cf., por exemplo, HUI HAI, Zen Teachings of Instantaneous Awakening, trad. John Blofeld, Totnes, Buddhist Publ. Group, 1995 e reed.; Shizuteru UEDA, “Silencio y habla en el budismo zen”, in: Óscar PUJOL e Amador VEGA, Las palabras del silencio: el lenguaje de la ausencia en las distintas tradiciones místicas, Madrid, Ed. Trotta, 2006, pp. 13-38; e vide infra n. 289. 126 Sobre este aspecto da linguagem e densidade da experiência mística de St.ª Teresa de Jesus, cf. Marcel LÉPÉE, Sainte Thérèse d’Avila – Le réalisme chrétien, «Les Études carmélitaines», Bruges, Desclée, 1947, pp. 109 et passim; vide também: Dominique De COURCELLES, Thérèse d’Avila – Femme d’écriture et de pouvoir, Grenoble, Jérôme Millon, 1993, pp. 117 e segs.; Id., Langages mystiques et avènement de la modernité, Paris, Honoré Champion, 2003, pp. 177 e segs.: «Thérèse d’Ávila: La puissance du sensible»; Smaro KAMBOURELI, “St. Teresa’s Jouissance: Toward A Rhetoric of Reading the Sacred”, in: E. D. BLODGETT e H.

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oriental em geral.127 “O tão verdadeiramente tão não é o tão que se diz…”128; a experiência iluminativa dá-se no silêncio de toda a G. COWARD, Silence, the Word and the Sacred, Waterloo-Ontario, Wilfrid Laurier Univ. Pr., 1989, pp. 51-65. 127 Cf. Jacques VIGNE, La mystique du silence, Paris, Albin Michel, 2003, pp. 117 e segs. : «L’écoute du silence dans les traditions mystiques» ; também: Massimo BALDINI, Elogio del silenzio e della parola – I filosofi, i mistici e i poeti, ed. cit., sobretudo pp. 177 e segs.: «La mistica e i mistici». Embora não sendo objecto desta nossa investigação estudar o âmbito oriental, equivalente ao do fenómeno místico da tradição ocidental e cristã, chama-se a atenção para o silêncio nirvânico no Budismo (vide o clássico estudo de Louis de la VALLÉE-POUSSIN, Nirvâna, Paris, Beauchesne, 1925 e reed. Dharma, 2001, pp. 158 e segs.), aliás no paralelo com fana da tradição sufi, etc.) e para o indizível na própria realização yôguica nos seus angas superiores e especialmente no samâdhi… como estado de kaivalya (comparável à hénnosis ou “solidão”… videKaivalya Upanishad, La solitude comblée, trad. da ed. Paul Deussen, Pondichéry, Éd. Nataraj, 2005 e Balraj Kumar JOSHI, «L’isolement libérateur (kaivalya) selon le Sâmkhya à la lumière de la Yuktidîpikâ», in: François CHENET, Nirvâna, «Cahier de l’Herne», Paris, Ed. de l’Herne, 1993, pp. 131137…); cf. ainda Yohanan GRINSHPON, Silence Unheard – Deathly Otherness in Pâtañjala-Yoga, Albany, State Univ. of N.Y. Pr., 2002, pp. 65 e segs. 128 Particular importância tem esta tradição gráfica da língua chinesa, em que só se justifica falar, quando não se veja claramente (como se dá a entender na própria etiologia para o grafismo ‘ming’, que representa a boca e o que dela sai – as palavras – acompanhado do signo para a lua, ou seja, querendo significar que só ao luar, ou ao lusco-fusco, se justifica a linguagem oral). (cf. referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Dos signos primitivos: Preliminares etiológicos para uma reflexão sobre a essência da linguagem”, in: Análise, I- 2 (1984), pp. 21-78; Id., (Continuação), in: Análise, II -1, (1985), pp.189-275) Por outro lado, desde a sabedoria confuciana que se pretende encontrar o li, ou rito, bem ordenado também por dar nomes correctos ao que eles nomeiam, numa prioridade política da linguagem gerida pelo príncipe-legislador no que ficou conhecido por tcheng-ming, ou seja, um “corrigir os nomes”, para a boa ordem da sociedade. (cf. CONFUCIUS, Anal., IX… e XIII; cf. Séraphin COUVREUR, (ed.), Les Quatre Livres, III: Entretiens de Confucius et de ses disciples, Paris/ Leiden, Cathasia/ Brill/ Belles Lettres, s .d., pp. 209 e seg.) Ora, a tradição mística, sobretudo xamânica e taoísta, irá contestar essa norma ou essa civilização de etiqueta e retórica (cf. Li FU CHEN, The Confucian Way, A New and Systematic Study of ‘The Four Books’, London/ N.Y., KPI Pr., 1987, pp. 338 e segs.: «Prudence in Speech»…; Anne CHENG, Histoire de la pensée chinoise, Paris, Seuil, 1997, pp. 54 e segs.) numa verdade experiencial sem palavra ou em relação ao que a linguagem não representa senão um mínimo de referência possível (cf. TCHUANG-TSEU, Opera, c. 2…, apud ÉTIEMBLE et alii, (eds.), Philosophes taoïstes, Lao-Tseu; Tchouang-Tseu, LieTseu, Paris, Gallimard, 1980, pp. 93 e segs.). Donde as várias fórmulas que importam à mística não-linguagem do Tao (ou Do), tal como referido por LAO

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discriminação pensante e linguística, ou só no silêncio de Brahman se pode escutar o som inaudível de si próprio…129 TSEU, Tao-teh-king, I, 1-2: «O Tao verdadeiramente Tao é diferente do Tao constante; os termos verdadeiramente termos são diferentes de termos constantes.»… (ed. J.-J.-L. DUYVENDAK, Tao tö King, Le livre de la Voie et de la Vertu, texte chinois établi et traduit…, Paris, Maisonneuve, 1981, p. 3). Cf. ainda Anne CHENG, Histoire de la pensée chinoise, ed. cit., pp. 114 e segs. : «Oublier le discours»… Vide também comentário de C. G. Jung a: The Secret of the Golden Flower – A Chinese Book of Life, ed. e trad. R. Wilhelm London, Routledge, 1957, pp. 108 e segs.: «The Desintegration of Consciousness»…; e vide supra n. 10, infra n. 96. 129 No caso do hinduísmo, no âmbito característico da tradição indo-europeia e sua específica gramática analítica, encontra-se valorizada a oralidade (cf. referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Dos signos primitivos: Preliminares etiológicos para uma reflexão sobre a essência da linguagem”, in: Análise, I- 2 (1984), pp. 21-78; Id., (Continuação), in: Análise, II -1, (1985), pp.189-275), mesmo a entoação e minuciosa pronúncia da palavra, até como se distinta entre o falar comum e a língua perfeita (samskrit> “sânscrito”… cf. apud Pascale RABAULTFEUERHAHN, L’Archive des origines – Sanskrit, philologie, anthropologie dans l’Allemagne du XIXe siècle, Paris, Cerf, 2008, pp. 39 et passim) “divina”. Vide a propósito Óscar PUJOL, “El simbolismo del alfabeto sánscrito”, in: O. PUJOL e Amador VEJA, (eds.), Las palabras del silencio: el lenguaje de la ausencia en las distintas tradiciones místicas, ed. cit., pp. 67-80. É neste contexto de um uso arquetípico da linguagem assim construtiva do pensar depois mental (de manas; cf., por exemplo, René GUÉNON, L’Homme et son devenir selon le Vêdânta, Paris, Ed. Traditionnelles, 1981 reed., pp. 75 e segs.: «Manas ou le sens interne…») que a poética revelacional dos Vedas inicia com a s´ruti dos rishis ou “videntes” (cf. J. GONDA, The Vision of the Vedic Poets, New Delhi, Munshiram Manoharlal Publ., 1984…; e vide supra n. 44), que se funda uma absolvição da oralidade sonora e tardia em relação a essa origem da palavra primordial, seja como o mantra sagrado: Aum, o “tritongo místico”…, seja como a ud-gîta ou sílaba fundadora de toda essa “linguagem silenciosa” ou de puras formas intelectivas e espirituais sem som audível. (Sobre toda esta teoria da linguagem, cf. Arthur AVALON, La Doctrine du Mantra,La Guirlande des Lettres/ Vanamâlâ, ed. cit., pp. 26 e segs.; particularmente há-de se ter em conta a escola de Mimansa na especulação sobre o radical valor da tradição védica: cf. Harold G. COWARD e K. Kunjunni RAJA, The Philosophy of the Grammarians, (Encyclopaedia of Indian Philosophies, vol. V), Delhi/ Varanasi/ Patna…, Motilal Banarsidass, 1990, pp. 101… É, então, no silêncio desse plano estruturante da “mente divina”, melhor dizendo, da consciência iluminativa ou de buddhi, bem assim de Atman-Brahman, que a discursividade se cala, para escutar a Voz (ainda Vac) que se diz a Si mesma… Cf. Shri AUROBINDO, Le secret du Véda, (1955), Paris, Fayard, 1975, pp. 97 e segs. ; K. SIVARAMAN, « The Word as a Category of Revelation», in ; Harold COWARD e Krishna SIVARAMAN, (eds.), Revelation in Indian Thought, ed. cit., pp. 45-64; e cf. Jacques VIGNE, La mystique

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B ) O calar-se ascético Independentemente deste silêncio rigorosamente mudo ou, então, em completa eloquência, num contraponto absoluto, há um segundo nível de caracterização do silêncio em termos relativos. Neste caso, o que está em causa é o silêncio como pausa, como intervalo entre sons, sejam eles palavras ou dimensões apenas dizíveis.130 Pausa essa que pode tornar-se prolongada, ou até definitiva, como interrupção do discurso, hiato do nexo inteligível, impossibilidade de falar ainda pela inefabilidade suposta disso que assim suscita o silêncio. E várias terão sido as marcas, os sinais dessa pontuação de “reticência”, sobretudo como interrogação sem resposta, como palavra abortada em silêncio, incapacidade de nomear indicada num desdizer, num modo negativo do discurso, num só poder referir pela impossibilidade de dizer.131 Já não a surdez, ou a mudez consequente, mas o calar e a ascese do audível como forma ativa que pode ganhar a forma do críptico e do fazer segredo, bem assim do não poder dizer, du silence, ed. cit., pp. 178 e segs. : «Le yoga, le son et l’ascension vers le silence vibrant de Brahman»… 130 Desde cedo que esta consciência de um silêncio como pausa, assim o caracteriza na música, o diástema: Gisèle BRELET, Le temps musical – Essai d’une esthétique nouvelle de la musique, t. I : La forme sonore et la forme rythmique, Paris, PUF, 1949, pp, 315 e segs.; e vide Ernest ANSERMET, Les fondements de la musique dans la conscience humaine, Neuchâtel, À la Baconnière, 1961, pp. 56 e segs.: «La perception des intervalles», sublinhando o recorte negativo do som e permitindo, por paradoxo, definir a música como a arte do silêncio. Cf. Berthe NYSSENS, Une philosophie de la musique, Paris, Le Courrier du Livre, 1972, pp. 13 et passim ; e a poética meditação de Karlfried Graf DÜRKHEIM, Ton der Stille, Aachen, N. F. Weitz V., 1986. 131 Todas as variantes da semântica do «silêncio», aliás normalmente registadas pelos dicionários, são expressões dos diversos tipos de “pausa” no discurso, bem assim no geral em todo o sistema de comunicação. Um pontuar as pausas… cf. Claude BONNANGE e Chantal THOMAS, Don Juan ou Pavlov – Essai sur la communication publicitaire, Paris, Seuil, 1987, pp. 78 e segs.: «Les quatre axiomes de la communication selon Paul Watzlawicz» ; também Yves WINKIN, Anthropologie de la communication, Paris, De Boeck/ Seuil, 2001, pp. 266 et passim.

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desvalorizando toda a sonoridade comunicável, ainda que seja a da música que fala ao coração.132 Ascese rude, assim, que cala fundo outros propósitos, sejam da “paleta” melodiosa do mundo, sejam sobretudo dos ruídos da Babel de muitas vozes interiores, que encontram no voto de silêncio a pedagogia, primeiro exterior, depois interna, de uma tranquilidade para outra escuta de voz essencial. 133 É certo que a anterioridade do canto em relação à voz articulada, ou da musicalidade rítmica mais ampla em relação à especificidade do ouvido e à sua interrupção silenciosa, inspira ainda outro sentido de silêncio de ruído pela ordenação musical, passando da intranquilidade ‘selvática’, ou caótica, à pausada medida ‘civilizacional’ e rítmica de vida mais propensa à memória e à atenção, como fundo de investimento em observação contemplativa, capacidade interiorizada do simbolismo pensante.134 Donde que não 132

A moderna filosofia pragmática da linguagem salientou este sentido de análise de várias acções linguísticas ligadas aos jogos ou rituais da promessa, do voto, da recusa… (cf. J. L. AUSTIN, How to do Things with Words, (1955), London/ Oxford/ N.Y., Oxford Univ. Pr., 1971; John SEARLE, Speech Acts, An Essay in the Philosophy of Language, Cambridge, Univ. Pr. 1969 e reed.; e vide, entre outros, Peter DONOVAN, Religious Language, London, Sheldon Pr., 1976; e Arthur C. DANTO, Analytical Philosophy of Action, Cambridge, Univ. Pr., 1973). O que aplicado às restrições do silêncio explicam também as várias formas activas da sua ascese: o comprometimento do segredo, o voto de silêncio, a reserva, o nãoresponder, etc. 133 Sobre o voto de silêncio, cf. A. PIGNA, art. “Voto”, in: Ermanno ANCILLI, (dir.), Diccionario de Espiritualidad, trad. do ital., Barcelona., Herder, 1984, t. III, pp. 627-631. Vide ainda Anna María CÀNOPI, Silenzio, Esperienza mistica della presenza di Dio, Bologna, Ed. Dehoniane, 2008, pp. 32 e segs. : «Silenzio e voti monastici» ; M. BRUNO, Aux écoutes de Dieu, Le silence monastique dans la tradition cistercienne, Besançon, Impr. De l’Est, 1954…; vide supra ns. 49, 59 e infra n. 176. 134 Escute-se o que a propósito afirma Vladimir JANKÉLÉVITCH, em «Musique et silence»: «Lamusique tranche sur le silence, et elle a besoin de ce silence comme la vie a besoin de la mort et comme la pensée, selon le Sophiste de Platon, a besoin du non-être. La vie, toute semblable à l’œuvre d’art est une construction animée et limitée qui se découpe dans l’infini de la mort (…). On peut distinguer à cet égard un silence antécédent et un silence conséquent qui sont l’un à l’autre comme l’alpha et l’oméga. Le silence-avant et le silence-après, ils ne sont pas plus «symétriques» entre eux que le commencement et la fin, la naissance et la mort ne sont symétriques dans un temps irréversible : car la symétrie est elle-même une image spatiale… »

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baste apenas a pausa comedida, mas esta passagem para o tempo interior, o “eco silencioso” do que ali era a voz de uma linguagem.135 E, assim como a música acaba por ser entendida como a ‘arte do silêncio’, em que a ordem sonora aí está sobretudo como a filigrana do recorte pluridimensional de tal silêncio, num paralelo com a pintura (ou outra arte visual) como a técnica de dar a ver o invisível, ou com a poesia (ou a literatura) como meio artístico de dar a pensar e sentir o indizível, etc.,136 assim também as técnicas monásticas que ordenam a vida na liturgia rítmica não têm como fim uma mera ascese, porém as formas de oração que aprofundam o ser no seu essencial silêncio ou quietude.137 O voto de silêncio aparece, por isso, contextuado na vida rezada, no ora et labora de uma rítmica em que o (in: Id., La Musique et l’Ineffable, ed. cit., pp. 163-164). Vide aindavários estudos em Nicky LOSSEFF e Jenny DOCTOR, (eds.), Silence, Music, Silent Music, ed. cit.; e cf. também vários estudos de Alain DANIÉLOU, Origines et Pouvoirs de la musique, Paris/ Pondicherry, Kailash Éd., 2005.Vide por contraste com ns. 67, 95… 135 Poder-se-ia rever isto à luz da destrinça entre khrónos como tempo exterior ou deveniente e kairós ou “conjuntura” e oportunidade interior, suspensivo do devir e cuja “duração” de pausa promove esse silêncio do que é parado e se mantém como sinal do espaço aberto, tranquilo ou até eterno…Cf. James JOYCE: “…Silence that is the infinite of space: and swiftly, silently the soul is wafted over regions of cycles of cycles of generations that have lived.” (in: Ulysses (1936), London, The Bodley Head, 1986, p. 338). Para lá desta visão do aglutinante de um silêncio assim cíclico e tumular, vide a instância do kairós, cf. infra n. 177. E vide ainda Jean-Luc PÉRILLIÉ, Symmetria et rationalité harmonique, ed. cit., pp. 30 e segs. : «L’équivalence sémantique kairós- sýmmetros». Na perspectiva falante ou retórica, cf. ainda: Alonso TORDESILLAS, «L’instance temporelle dans l’argumentation de la première et de la seconde sophistique: La notion de kairós», in : Barbara CASSIN, (dir.), Le plaisir de parler, ed. cit. pp. 31-60. 136 Cf. na tradição oriental Anne KERLAN-STEPHENS e Cécile SAKAI, Du visible au lisible – Texte et image en Chine et au Japon, Mas de Vert, Éd. Philippe Picquier, 2006 ; François CHENG, Vide et plein – Le langage pictural chinois, Paris, Seuil, 1979, pp. 26 e segs. : «La conception du vide» ; François JULLIEN, La grande image n’a pas de forme ou du non-objet par la peinture, Essai de dé-ontologie, Paris, Seuil, 2003, pp. 23 e segs. : «Présence-absence» ; e vide supra n. 22, 68… 137 Sobre a liturgia como “cultura” e tal labor rítmico, muitas vezes também silenciosamente pautado e celebrado, vide Jean-Yves HAMELINE, Une poétique du rituel, Paris, Cerf, 1997…; e cf. referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Liturgia e Cultura”, (Conferência na Semana de Pastoral Litúrgica em memória de Mons. Pereira dos Reis, Lisboa, 29/11/1979), in: Ora et Labora, XXVIII, 2-3, Abril-Set. (1982), pp. 126-156.

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louvor e o dever permanente da palavra de celebração se interiorizam no seu miolo de mistério.138 Enquanto a mística dos Mistérios gregos, e dos regimes sobretudo gnósticos orientais, tende para o iluminismo da ‘visão’ sapiencial sem som, ou cujo som primordial é absorvido nesta frequência diluente do ser em pura consciência assim lúcida, (sendo por isso o mystikós o que fecha a boca em mu-…), o que segue o segredo, aprendendo a rota em símbolos que contempla em silêncio, na narrativa “hipnótica” do mythos…139, pelo contrário a iniciação profética e bíblica, cristã e também islâmica, supõe a parábola, o seguir pelo ouvido, da predominante oboedientia (de ob-audire…)140, Cf. o ritmo também do trabalho monástico, com esta acepção de “recolhimento” e silêncio, associado à ascese e à solidão. Vide referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Do valor espiritual do trabalho em S. Bento de Núrcia”, (Conferência, XV Centenário de S. Bento, Guimarães, 19/6/81), in: Revista de Guimarães, XCI, Jan./Dez. (1981), pp. 284-339. 139 Cf. supra n. 56 e vide também n. 55. Já PORFÍRIO, no De abstinentia, II, 34, 2-3 explicita essa atitude iniciática do mystés e do mystérion, assim indicados pela “linguagem” do silêncio: não romper o silêncio da Divindade – ‘houdèn gár estin énylon hò mè tôi aüloi euthýs estin akátharton.’ [“com efeito, nada há no material que em relação ao imaterial não seja impuro”]. Donde que: ‘Diò oudè lógos toútoi ho katà phonèn oikeîos, oud’ ho éndon, hótan páthei psykhês ê i memolysménos: dià dè sigês katharâs kaì tôn perì autoû katharôn ennoiôn threskeúomen autón.’ [“Pelo que nem a linguagem da voz, nem a interior, quando maculada pela paixão da alma, mas se preste culto por um puro silêncio e em puros pensamentos.”]. Vide também JÂMBLICO, Myst. 8, 3… Sobre o carácter hyponoético do mito, cf. referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Da natureza anfibológica do símbolo – a propósito do tema «Mito, símbolo e razão»”, in: Didaskalia, XII (1982), pp.45-66. 140 Na sequência bíblica do «Não farás imagens!...» (Ex 20, 4.23; 34, 17…; Lev 19, 4…; Deut 4, 15-18…), a experiência estético-mística judaica e bíblica em geral, também islâmica, torna-se “iconoclasta”, ou mais dominada pela verbalidade e oralidade até musical de uma “mensagem”. Cf. Ariane KALFA, Contre l’idole – La Genèse, Paris/ Budapest/ Torino, L’Harmattan, 2003, pp. 208 e segs.; também na perspectiva cristã: Bernard RORDORF, Tu ne te feras pas d’image – Prolégomènes à une théologie de l’amour de Dieu, Paris, Cerf, 1992, valorizando a dinâmica temporal e escatológica em novo pensamento teológico. Donde ainda o contraste do espírito profético com a vidência mística, cf. Abraham HESCHEL, God in Search of Man – A Philosophy of Judaism, N.Y., Farrar, Straus & Cudahy, 1955. No entanto, cf. também: Christine ESCARMANT, «De l’indicible au visible comme manifestation du dire: Le(s) nom(s) de Dieu dans la tradition juive», in : Aline MURA-BRUNEL e Karl COGARD, (eds.), Limites du langage: indicible ou 138

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admitindo a assimetria da imanência do “ver” em relação a esta outra “escuta” do Transcendente.141 O “não farás imagens” do mandamento bíblico complementa-se pela necessidade de não ficar apenas pela projeção babélica dos propósitos dessa ‘raça ruidosa’ que é a humanidade, lembrada já segundo o mito sumério como vítima de castigo divino por tal intranquilidade essencial.142 Importa menos falar sem nada dizer, do que estar atento a essa presença, outrossim divina, que pelo entredito da linguagem advém.143 Descoberta esta capacidade de que a palavra possa ser, não apenas um expediente humano, um seu artefato útil, mas lendo nela a parábola do divino, uma via de revelação e de transcendência daquela condição, passa a demandar-se a reserva, o pudor de falar, o privilegiado dom da palavra profética e poética como caminho que sabe escutar o interdito nome divino, ou entredizer o que sugere essa outra voz do silêncio.144 Não é só a evidência assim retardada de um silence, («Centre de poétiques et d’histoire littéraire – Université de Pau»), Paris/ Budapest/ Torino, L’Harmattan, 2002, pp. 173-180. 141 Cf. n. anterior e ainda supra n. 41. Vide ao arrepio do calado ídolo, o “falante” ícone, porém na sua silenciosa linguagem videncial…Cf. Jean-Luc MARION, «L’idole et l’icône», in : Dieu sans l’être – hors-texte, Paris, Communio/ Fayard, 1982, pp. 15-37 ; também Id., L’idole et la distance, Cinq études, Paris, Bernard Grasset, 1977, sobretudo pp. 183 e segs.: «La distance du requisit et le discours de louange : Denys»… ; e vide Léonide OUSPENSKY, La Théologie de l’icône dans l’Église orthodoxe, Paris, Cerf, 1980 ; Bruno DUBORGEL, L’icône – Art et pensée de l’invisible, («C.I.E.R.E.C. - Centre Interdisciplinaire d’Études et de Recherches sur l’Expression contemporaine», travaux LXXII), Saint-Etienne, Univ. Jean Monnet, 2004, pp. 7 e segs. : «L’icône, le lointain, la présence»… 142 Cf. n. 100 e vide a tradição mítica a propósito da criação dos homens como ‘servos dos deuses’, mas muito barulhentos… em J. BOTTÉRO e Samuel Noah KRAMER, Lorsque les dieux faisaient l’homme – Mythologie mésopotamienne, Paris, Gallimard, 1989, pp. 502 e segs. 143 Um deixar um sinal, um “piscar de olhos”, Winken, ou o Blick a que se refere M. HEIDEGGER, »Aus einem Gespräch von der Sprache«, in: Id., Unterwegs zur Sprache, ed. cit., pp. 117..., e que nós também salientámos: Carlos H. do C. SILVA, “Dos signos primitivos : Preliminares etiológicos para uma reflexão sobre a essência da linguagem”, in: Análise, I- 2 (1984), pp. 21-78; Id., (Continuação), in: Análise, II -1, (1985), pp.189-275. 144 Por um lado, lembre-se que palavra (no fr. “parole” e não mero “mot”, coisa dita, “mote”…) vem do lat. e gr. parábola, parabolé, na acepção do que “vai junto com”,

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‘olhar hipnótico’ que se acorda para uma outra ‘visão inteligente’, uma decifração da signatura rerum em todas as criaturas145, mas este recolhimento da palavra que já não fala mas ganha capacidade para pressentir a presença silenciosa, o Deus que não se manifesta no vento forte e ruidoso, mas se revela na brisa mais ligeira, na sutileza desse pausar de escuta. “…O Senhor não estava naquele vento. Depois do vento, a terra tremeu; mas o Senhor não estava no tremor de terra. Passado o tremor de terra, acendeu-se um fogo; mas o Senhor não estava no fogo. Depois do fogo ouviu-se o murmúrio de uma leve brisa. Elias, ouvindo isto, cobriu o rosto com o manto…” 146 . ensinamento, que muito justamente vai por signos. Mas, por outro lado, o que assim re-vela um sentido, uma presença, também vela de novo, resguarda (até também como um olhar no fr. como re-garder), ou seja, preserva na intimidade a que se recolhe. É o ritmo da natureza, melhor dizendo, da phýsis que, “ama esconder-se”, como diz HERACLITO DE ÉFESO, frag. B 123: ‘phýsis krýptesthai phileî’ (in: D.K. (=H. DIELS e W. KRANZ, Die Fragmente der Vorsokratiker, Dubin/ Zurich, Weidmann, 196612), t. I, p. 178). Donde, não apenas a proibição de declarar o Nome de Deus (na tradição judaica), mas de apenas o poder referir pelo Nome silencioso que reconverte ao Ser mesmo assim entre-dito.Cf. Kenneth CRAGG, Faiths in their Pronouns, Websites of Identity, Brighton-Portland, Sussex Academic Pr., 2002, pp. 75 e segs.: «The Self-Encounter in Judaism»; vide ainda a meditação de Claude VIGÉE, Vision et Silence dans la poétique juive – Demain la seule demeure, (19831996), Paris/ Montréal, L’Harmattan, 1999, pp. 39 e segs. : «L’expérience de la vie intérieure face à la tradition spirituelle juive»… ; e videsupra n. 100. 145 Como tanto foi marcado na gnose mística de Jacob BÖHME, Aurora consurgens, (Die Morgenroete im Aufgang) (1612)…Vide estudo de A. KOYRÉ, La philosophie de Jacob Boehme, Paris, Vrin, 1979, pp. 69 e segs.: «Première ébauche de la doctrine: l’«Aurore naissante».»; cf. Basarab NICOLESCU, L’homme et le sens de l’univers – Essai sur Jakob Boehme, Paris, Philippe Lebaud, 1995) bem assim da tradição videncial (cf. Roland MAISONNEUVE, L’oeil visionnaire – L’univers Symbolique des Voyants Chrétiens, Sisteron, Éd. Présence, 1992…) que vem culminar em Swedenborg e Franz von Baader. Cf., por exemplo, Bernard GORCEIX, Flambée et Agonie – Mystiques du XVIIe siècle allemand, Sisteron, Éd. Présence, 1977 ; e Ernst BENZ, Les sources mystiques de la philosophie romantique allemande, Paris, Vrin, 1987. Vide infra n. 264. 146 1Rs 19, 11-12. Texto este muito comentado pelos místicos, cf., por exemplo, S. JOÃO DA CRUZ, Llama, c. 2, 17: “…en el monte Horeb con la sombra de tu poder y fuerza que iba delante, te diste más suave y fuertemente a sentir al profeta en silbo de aire delgado!(3 Rs 19, 11-12)”… Cf. Dr. Jacques VIGNE, La mystique du silence, ed. cit., pp. 260 e segs. : «Élie : l’expérience au sein du Dieu-silence»,

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É nessa atenção assim orante, no mínimo silenciosa e recolhida, como no modelo eliânico, que se encontra o silencioso lugar de Deus…147 O que está em causa, como bem conhecido na ascética e na direção espiritual neste tocante, não é apenas o equilíbrio externo entre tempos de palavra (entoação, cântico…) e de silêncio, mas do autodomínio interior, tanto ético do dever da palavra, do seu calá-la, etc.148, quanto de ativa passividade em escuta da palavra interior e assim silenciosa.149 É claro que o silêncio monástico não é apenas, quando considera a tradução daquele passo (1Rs 19, 12, em hebr. : Qol demama daqqa) como “a voz (qol) de um silêncio (demama) subtil (daqqa)” e medita esse sinal da Presença divina sob este novo Nome de Deus enquanto Silêncio, o Silencioso… remetendo para Michel MASSON, Élie ou l’appel du silence, Paris, Cerf, 1992, cap. I. A tradição judaica encontra este balanceamento místico entre Moisés e Elias, a via da revelação do Nome e a do Silêncio (ainda J. VIGNE, op. cit., pp. 273 e segs.). 147 Cf. n. anterior. Sublinhe-se aqui esta determinação do silêncio radical como lugar, numa afinidade “categorial” que se há-de tornar mais clara no que depois se mostrará ligando o “espaço”, o “aberto”… com a quietude essencial do silêncio. Cf. Paul S. FIDDES, “The quest for a place which is ‘not-a-place’: the hiddenness of God and the presence of God”, in: Oliver DAVIES e Denys TURNER, Silence and the Word – Negative Theology and Incarnation, Cambridge, Univ. Pr., 2002, pp. 3560; vide ainda Denys TURNER, The Darkness of God, Negativity in Christian Mysticism, ed. cit., pp. 11 e segs.: «The Allegory and Exodus»; e vide infra ns. 142 e 233. 148 O dever de falar, para testemunhar a Verdade, sobretudo quando se trate de salvar alguém, de defesa da honra ou, inclusive, quando de justiça como palavra devida. Cf. supra n. 9. Além da evidência evangélica e, em particular, joanina, sobre a Verdade nesta perspectiva, cf. também a sensibilidade judaica que vem até à actualidade como metamorfose do silêncio em afirmação, tal como se deixa ler em André NEHER, L’exil de la parole – Du silence biblique au silence d’Auschwitz, Paris, Seuil, 1970, sobretudo pp. 185 e segs.: «Les variantes du oui au silence»… Porém, do ponto de vista psicológico, é sabido o primado do «não» sobre o «sim»: René A. SPITZ, No and Yes, On the genesis of Human Communication, N.Y., International Univ. Pr., 1957, pp. 55 e segs. 149 Nunca uma mera ausência de palavra, por tibieza, cobardia ou cómoda indiferença…, outrossim o silêncio de um deliberado querer escutar, de uma pausa consentida, da vera obediência ao que seja da Vontade de Deus. Donde ser uma activa passividade e não uma passividade quietista, como tantas vezes criticada (como o vício do quietismo) pelos místicos, tal Jan van RUUSBROEC, Die gheestelike Brulocht, II, c. 78, in: J. B. POUKENS, S.J. e L. REYPENS, S.J., (eds.), J. V. RUUSBROEC,Werken, t. I, Tielt, Uitgeverij Lannoo, 1944, pp. 212 e segs.;

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nem sobretudo, exterior por ausência de palavra audível, mas de quietude interior, quer pela supressão do diálogo interior, da verborreia mental, quer por essa escuta na qual advém a palavra espiritual, muitas vezes dita como ‘voz do silêncio’, por ambígua que possa ser esta expressão.150 De fato, poderia ordenar-se vários tipos de silêncio de acordo com correspondente tipologia de palavras interiores, na tradicional classificação das locuções místicas, começando pelas palavras sucessivas e explícitas, depois pelas palavras não-articuladas e, enfim, pelas palavras substanciais.151 Às primeiras, diria respeito o Lesze K KOLAKOWSKI, Chrétiens sans Église – La conscience religieuse et le lien confessionnel au XVIIe siècle, trad. do pol., Paris, Gallimard, 1987, pp. 492 e segs.: «La mystique condamnée. Le quiétisme». Vide também R. A. KNOX, Enthusiasm – A Chapter in the History of Religion – with special reference to the XVII and XVIII centuries, (1950), Westminster-Maryland, Christian Classics,1983, pp. 231 e segs.: «Quietism – The Background»; e vide infra n. 250. 150 Em primeiro lugar um não falar (1º grau de silêncio); depois um nem sequer discorrer por palavras interiores (2º grau); enfim, um nem sequer haver tal discursividade mental, ou “diálogo interior” (3º grau) – como se o preceito do silêncio pudesse ser externo, interno e radical extirpando a dissipação exterior, a distracção interna e mesmo a “concentração” interior ainda mental. Cf. supra n. 82… Numa colectânea de citações sobre o silêncio, Roberta RUSSO, (ed.), Il Silenzio – Pagine mistiche di santi e maetri spirituali, Milano, P. Gribaudi Ed., 2000 reed., distingue justamente: 1) il silenzio delle parole; 2) il silenzio del cuore; e 3) il silenzio di Dio, fazendo seguir-se a esta terceira classe o retorno às paradoxais 4) Voce del silenzio, culminadas pela maravilha do silêncio assim expresso: Silenzio, adorazione e meraviglia. O “espaço” vazio de propósitos dá lugar ao advento do Espírito Santo, às Suas palavras e até à inspiração para os gestos e sons exteriores da sua mensagem. Por isso, o perfeito silêncio não é o da supressão daquele terceiro grau, mas do retorno ao 1º grau, possibilitando que, mesmo de permeio ao ‘ruído exterior’ se mantenha a união e escuta do essencial num silêncio assim transfigurado de som.Cf. Oliver DAVIES, “Soundings: towards a theological poetics of silence”, in: O. DAVIES e Denys TURNER, Silence and the Word – Negative Theology and Incarnation, Cambridge, Univ. Pr., 2002 e reed., pp. 201222; e vide n. seguinte. 151 Cf. esta conhecida “classificação” das locuções místicas tal como se encontra explicitada por S. JOÃO DA CRUZ, Subidadel Monte Carmelo, II, 28, 1 e segs. “Estas palabras sucesivas, siempre que acaecen es cuando está el espíritu recogido y embebido en alguna consideración muy atento (…) que le parece que no es él que hace aquello, sino que otra persona interiormente lo va razonando, o respondiendo, o enseñando.” (I, 29, 1); “El segundo género de palabras interiores son palabras

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silêncio do estado interior capaz de tal esvaziamento para poder escutar o que de ordinário não se pode ouvir (a mensagem profética, um ensinamento da palavra mental, ainda que sem forçosa expressão sonora)152; às palavras não-articuladas corresponderia uma insonoridade como a do pensar – qual “diálogo silencioso interior da alma consigo mesma”, como disse Platão153; e, por último, ao plano das ditas palavras substanciais que implicam a própria identidade realizativa com o plano ontológico está diretamente implícito o profundo silêncio das coisas e das acções assim concebidas.154 Esta escala mostra, neste último patamar, como o silêncio não implica a supressão da palavra, mas um seu diverso estatuto, recolhendo-se o dizer em ser e fazendo-se do silêncio nova linguagem. Porém, antes de se apontar para tal densidade mística da linguagem do silêncio, importa referir ainda outro sentido intermédio do silêncio na vida interior e, em especial, ligado com a inteligência de outro tipo de “pausa” mental.

formales [não articuladas discursivamente] (…) a veces son muy formadas (…) a veces son una palabra, a veces dos o más (…)” (I, 30, 1), mesmo quando o espírito não esteja recolhido… ; mas saliente-se o “silêncio eficaz” sobretudo do terceiro género de locuções místicas: “Et tercero género de palabras interiores decíamos que eran palabras sustanciales, las cuales, aunque también son formales por cuanto muy formalmente se imprimen en el alma, difieren, empero, en que la palabra sustancial hace efecto vivo y sustancial en el alma (…).” (II, 31, 1). 152 Cf. S. JOÃO DA CRUZ, Subida II, 29, 1: “…el Espíritu Santo la ayuda muchas veces a produzir y formar aquellos conceptos, palabras y razones verdaderas, y así se las habla, como si fuese tercera persona, a sí mismo (…).” Não se escuta assim senão no silêncio interior, ou seja, no recolhimento do entendimento. 153 Cf. Id., Subida II, 30, 3: “Estas palabras, (…) cuando son de Dios, siempre le obran en el alma, porque ponen al alma pronta y clara en aquello que se le manda o enseña (…).” PLATÃO, Soph. 263e, refere o carácter interior e silencioso do pensar: ‘Oukoûn di´noia mèn kaì lógos tautón: plèn ho mèn entòs tês psykhês pròs hautên diálogos áneu phonês gignómenos toût’autò hemîn eponomásthe, diánoia’. Cf. infra n. 129. 154 Cf. S. JOÃO DA CRUZ, Subida, II, 31, 1: “Y éste es el poder de su [de Dios] palabra en el Evangelio, con que sanaba los enfermos, resucitaba los muertos, etc., solamente con decirlo.” Cf., outras referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Potência taumatúrgica do verbo antoniano”, in: Eborensia, Rev. do Instituto Superior de Teologia de Évora, XVII, nº 34 (2004), pp. 59-86.

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C ) O inefável místico Poder-se-ia dizer que um dos principais paradigmas da experiência mística na tradição cristã se lembra de S. Paulo e da ‘ascensão ao terceiro céu’, no que melhor se referiria como um ter sofrido o raptus mentis, num êxtase em que contempla “o que nem o olho viu, nem o ouvido ouviu, nem jamais passou pelo pensamento do homem”.155 Este sentido espiritual irredutível ao âmbito do humano natural, psíquico, marca bem a transcendência da Sabedoria de Deus para a qual não há meios conformes, seja nos sentidos ou faculdades do homem adâmico e declinado. Só pela nova Humanidade, em Cristo, haverá mediação para tal céu de transcendência, tornando-se visível, audível e entendível o que no Verbo encarnado se abre…156 A mística mostra então o limite do dizível habitual, face a esse inefável da Transcendência numa lúcida consciência dessa mesma Cf. 1Cor 2, 9: ‘allà kathòs gégraptai: hà ophthalmòs ouk eîden kaì oûs ouk ékousen kaì epì kardían anthrópou ouk anébe, hà hetoímasen ho theòs toîs agapôsin autón.’ [trad.: “Mas, como está escrito: «São coisas que nem o olho viu, nem o ouvido ouviu, nem jamais passou pelo pensamento do homem, o que Deus preparou para aqueles que O amam».”]; em eco também de Is 64, 4; 65, 17. Vide ainda 2Cor 12, 2-4: ‘oîda ánthropon en Khristôi prò etôn dekatassáron, eíte en sómatti ouk oîda,eíte ektòs toû sómatos ouk oîda, ho theòs oîden, harpagénta tòn toioûton héos trítou ouranoû. (…) hóti herpáge eis tòn parádeison kaì ékousen árrheta rhémata hà ouk exòn anthrópo lalêsai.’ [trad.: “Conheço um homem em Cristo que, há catorze anos – ignoro se no corpo ou fora dele, Deus o sabe – foi arrebatado ao terceiro Céu. (…) Foi arrebatado até ao paraíso, e ouviu palavras inefáveis, que não é permitido a um homem repetir.”] Vide também esta constante paulina de referência a tal sabedoria críptica porque assim divinamente inspirada, ainda por exemplo em Rom 8, 26… cf. infra n. 285. 156 Ainda o clima paulina de Thomas MERTON, The New Man, Wellwood, Burns & Oates, 1976 e reed., pp, 49 e segs.: «Free Speech [Parrhesía]» e pp. 116 e segs.: «Life in Christ»… Têm aqui também pertinência as advertências de Denys TURNER, “Apophaticism, idolatry and the claims of reason”, in: O. DAVIES e D. TURNER, Silence and the Word, ed. cit., pp.11-34, a propósito de uma “language of unsaying”, perdendo-se de vista outra mediação e incarnação do espiritual. Vide também Michael A. SELLS, Mystical Languages of Unsaying, Chicago/ London, Univ. of Chicago Pr., 1994, p. 1 e segs.: “Unsaying and the Dilemma of Transcendence”; e Massimo BALDINI, Elogio del silenzio e della parola – I filosofi, i mistici e i poeti, ed. cit., pp. 170 e segs. 155

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impossibilidade natural, o que já é produto de escuta e de reveladora evidência interior dessa alteridade radical, desse Outro que assim fica sem nome e manifesta neste mesmo discernimento limite.157 O uso da mente não uniformiza o ‘aquém’ e o ‘além’ da linguagem tomados da mesma maneira, segundo a universalidade racional ou a linguagem do já comum, mas pensa diferenciadamente o que possa ser até essa mesma linguagem, descobrindo nela a voz diversa e o diverso da própria voz158 ou, como diziam os Antigos, o discurso humano e a

157

Afinal o silêncio vem assim sempre referido ao incomunicável como Outro… (cf. P. RICOEUR, Soi-même comme un autre, Paris, Seuil, 1990, e pp. 380 e segs. implicando a catarse do leitor e da ficção dita perante a «incorporação» do que se apresenta outro…) ou, então, como o outro da comunicação, seja ele o que se possa comungar em silêncio (vide Thomas MERTON, “Symbolism: Communication or Communion?”, in: Id., Love and Living, London, Sheldon Pr., 1979, pp. 54-79), seja o que sempre permanece como a transcendência ignota de um Tu… (Fritjhof SCHUON, Gnosis, Divine Wisdom, trad. do franc., Bedfont (Middlesex), Perennial B., 1978, pp. 77 e segs.). Vide sobretudo Michel de CERTEAU, L’Étranger ou l’union dans la différence, ed. Luce Giard, Paris, Seuil, 2005, pp. 127 e segs.: «Le mouvement de la foi»; Id., Le lieu de l’Autre – Histoire religieuse et mystique, ed. Luce Giard, Paris, Gallimard/ Seuil, 2005, pp. 45 e segs.: «Histoire et Mystique»…; e também outras referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “A questão autobiográfica ou do tempo absoluto – A propósito da «Histoire d’une Âme» e da sua Autora” [1ª parte: «Tempo lembrado»], in: Rev. de Espiritualidade, XIII, nº 52, Outubro/ Dezembro (2005), pp. 245-271; Id. , [2ª parte: «Tempo almejado»; e 3ª parte: «Tempo absolvido»] , in: Rev. de Espiritualidade, XIV, nº 53, Janeiro/ Março (2006), pp. 11-80. 158 As muitas virtualidades do dizível e do silêncio intersticial… como se pode ainda meditar a partir de George STEINER, Language and Silence, ed. cit. Porém, como noutra ênfase se poderá considerar, importaria preservar o silêncio tal qual, como suspensão da mente, silêncio interior, e não de o visar como meio “premeditado” para (a moralidade de) um fim… Cf. J. KRISHNAMURTI, Au seuil du silence, («Conférences de Paris»), trad., Paris, Le Courrier du Livre, 1970, p. 183 : «… si ce que vous intéresse est de savoir ce qu’il y a au-delà, alors vous ne regardez pas l’état de silence lui-même. (…) Le silence est le seul fait et non ce que, par lui, vous pourriez découvrir… que ce silence soit silence en soi et non pas quelque chose que l’on produit comme un moyen en vue d’une fin (…). » Por isso sendo o limiar de tal silêncio a capacidade diferencial de tudo observar e, noutro sentido, de “entrar” por esse pórtico espiritual, como se lembraria da bela e rigorosa observação monática: Un Moine, Les Portes du Silence, - Directoire spirituel, Genève, Claude Martingay, 1972…

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linguagem dos deuses.159 O split da mente linguística para além do ler o que se escreve ou ver o que se lê, de fazer eco das imagens, ou pintar os sons…160, em linguagem calculante e associativa e linguagem holística e intuitiva, também designáveis por: de cognição analítica e de localização espacial e sintética, respectivamente, é revelador do carácter ambíguo do silêncio como fronteira entre vários níveis de linguagem interior do mental.161

Já em Homero : cf. Feliz BUFFIÈRE, Les mythes d’Homère et la pensée grecque, Paris, Belles Lettres, 1956, pp. 60 e segs.; Marcel DETIENNE et alii, «Qui parle la langue des dieux ?», in : M. DETIENNE e Gilbert HAMONIC, (dirs.), La déesse parole – Quatre figures de la langue des dieux, Paris, Flammarion,1995, pp. 15-21. 160 Por um lado, aquela equação de ler como quem “colhe” o significado da escrita, também dando a “ver” ou a contemplar o que assim se percebeu “linguisticamente”, ainda que no “silêncio” desta operação; por outro, a sonoridade que se desprende até das imagens e uma outra linguagem pictórica do linguístico, seja, pois, na “música” e na “pintura”… Vide ainda o ideal antigo de Simónides de Kéos: cf. supra n. 40; e no campo da Estética: John DRURY, Painting the Word – Christian Pictures and their Meanings, New Haven/ London, Yale Univ. Pr., 2002; Michel QUENOT, L’Icône – Fenêtre sur le Royaume, Paris, Cerf, 2001,pp. 169 e segs. É também, de forma mais arcaica, o «binómio»: verbo e som, tal como é explicitado por Marcel BEAUFILS, Musique du son, musique du verbe, Paris, Klincksieck, 1994, pp. 5-20. 161 A própria constituição “dúplice” do organismo neuronal e da especialização dos hemisférios cerebrais no que toca à verbalização e à localização dominante e respectiva de cada um dos “cérebros”, parece induzir a duplicação dos “silêncios” auditivos e gráficos, temporais e espaciais, sobretudo entre si e si-próprio na referida alteridade possível. Cf. John MOORE, Being in Your Right Mind, - The Fourfold Nature of the Self, Salisbury, Element B., 1984, pp. 15 e segs. (cf. n. 117). Silêncio como pró-nome de muitos nomes possíveis… Sem aqui discutir a possível desconstrução da linguagem, ainda a partir desta gramática pronominal, não deixa de ser oportuna a referência a esse âmbito, quer na tipologia dos pronomes (cf., O. JESPERSEN, The Philosophy of Grammar, London, G. Allen & Unwin, 1924 e reed., ainda, por exemplo, D.N.S. BHAT, Pronouns, Oxford, Univ. Pr., 2004, pp. 200 e segs.), quer no modo como se podem “escutar” na elaboração das diversas identidades do religioso (cf. Kenneth CRAGG, Faiths in their Pronouns – Websites of Identity, ed. cit., pp. 166 e segs.: «Our Dividual Being – The Irony of Mystical Union»…), quer ainda nesse “espaço de silêncio” que se faz intervalo, pulsão do indizível (cf. Charles MALAMOUD, «Un vent violent m’a séparé de moi», in: L’inactuel (Psychanalyse et Culture), nouv. série, nº 10: «Le singulier», ed. Circé (2004), pp. 9-18, meditando o «Je est un autre», de Rimbaud, no riquíssimo contexto da tradição brahmânica e budista, ao salientar memória plural (dos muitos “eus”) e 159

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De fato, tanto pode ser a pausa entre o que se diz, sem depois se identificar, como outra pausa entre o que se percepciona mentalmente, mas de que se ignora o nome possível. Situações estas, também atestadas na linguagem dos místicos no que, assim, duplamente se poderia dizer indizível, reconhecendo também o inefável do próprio dizer. É a dupla consciência, ora de uma radical humildade do carácter fragmentário da mente humana incapaz da ‘lógica de infinitude’ de outra divina semiótica162, ora de um inspirado ‘dom de entender’ já transfigurado por um silêncio.163 Trata-se da potenciação teologal das virtudes que conduzem a um conhecimento recolhido dessa verdade interior na intelligentia fidei, ou mesmo na quietude e paz da unio amoris.164 esquecimento singular (na nesciência ou ausência de consciência…)). Outras tantas variantes «gramaticais» do silêncio… 162 Indizível da própria linguagem como na “absolutismo” do Tractatus LogicoPhilosophicus de Wittgenstein (cf. célebre Prop. 7, vide infra n. 127) e indizível enquanto datum irredutível ao dictum…Cf. Christine BARON, «Indicible, littéraire et expérience des limites (de Blanchot à Wittgenstein)», in: Aline MURA-BRUNEL e Karl COGARD, (eds.), Limites du langage: indicible ou silence, («Centre de poétiques et d’histoire littéraire – Université de Pau»), Paris/ Budapest/ Torino, L’Harmattan, 2002, pp. 291-298. Por entre estes limites do excesso de dizer fica a consciência da finitude do conhecimento também perante o que assim “silencia” o mental: cf. nossa reflexão: Carlos H. do C. SILVA, “Conhecimento e Infinito ou finitude mental e infinda diferenciação criativa”, in; Theologica, 2ª série, 45, 2 (2010), pp. 333-392. 163 Seria de convocar algumas perspectivas desenvolvidas em Jean-Luc MARION, De surcroît, ed. cit., pp. 162 e segs.: «dé-nommer»…; sobretudo na densidade transfigurante que o dom traz consigo: Id., Étant donné – Essai d’une phénoménologie de la donation, Paris, PUF, 1997, pp. 408 e segs.: «La voix sans nom».. Cf. também M. HEIDEGGER, em »Die Sprache« : „…In der Ruhe bergen ist das Stillen. Der Unter-Schied stillt das Ding als Ding in der Welt.“ (in: Id., Unterwegs zur Sprache, ed. cit., p. 29). Nesta experiência do pensar da diferença vem tal apaziguamento, justamente pela transfiguração do silêncio, não apenas ausência de som, mas quietude activa, que Heidegger ainda questiona: “Was ist Stille?Sie ist keinesweg nur das Lautlose. Darin verharrt lediglich das Reglose des Tönens und des Lautens. Aber das Reglose ist weder nur auf das Ver-lauten beschränkt als dessen Aufhebung, noch ist das Reglose selber schon das eigentlich Ruhende. (...).” Não, pois, a imobilidade, outrossim a capacidade dinâmica de um tal aquietar assim ontológico. 164 O dinamismo sobrenatural “cala” a discursividade habitual das potências e mesmo quando se explicita numa iluminativa inteligência da fé não deixa de vir

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Como diria a moderna filosofia da linguagem, agudiza-se a consciência desse limiar do dizível em relação ao indizível, não só pelo incomensurável além desse modelo finitista da linguagem que exclua sequer toda a metalinguística165, mas também por essa mesma progressão dialéctica indefinida que deixa sempre um resíduo injustificável, ‘dizível como indizível’, ou correspondente a um sucessivo silêncio de pausas cada vez mais densas.166 À medida que se amplifica a capacidade de pensar e dizer, correlativamente se agiganta o ‘impensável’, não tanto da contradição que é pensável como tal, mas do que fica aquém ou além do sentido, qual resíduo de inconsciente, de absurdo, ou de puro mistério.167 acompanhado de um interior silêncio: cf. Jean-Louis CHRÉTIEN, L’arche de la parole, Paris, PUF, 1998, pp. 82 e segs.: «Colloques de silence». Vide ainda J.-L. MARION, Le visible et le révélé, Paris, Cerf, 2005, pp. 119 e segs.: «Ce qui ne se dit pas – l’apophase du discours amoureux». 165 Como acontece em L. WITTGENSTEIN, Tractatus, Props. 4.041; 4.12; 4.121…; e vide Charles F. KIELKOPFF, Strict Finitism, Hague/Paris, Mouton, 1970, pp. 58 e segs. Quando, afinal, na perspectiva do colóquio espiritual têm especial relevância tais outros signos em aberto. Cf. nesse outro contexto : S. FRANCISCO DE SALES, Traité de l’Amour de Dieu, VI, 1 : « L’amour ne parle pas seulement par la langue, mais par les yeux, les soupirs et les contenances ; oui, même le silence et la taciturnité lui tiennent lieu de parole (…).» (in : Œuvres, ed. A. Ravier, Paris, Gallimard, 1969, p. 611). Sobre similar alargamento de compreensão na evolução do pensamento de Wittgenstein, vide: James BOGEN, Wittgenstein’s Philosophy of Language, Some Aspects of its Development, London/ N.Y., Routledge/ Humanities Pr., 1972, pp. 169 e segs. ; vide ainda : Massimo BALDINI, Elogio del silenzio e della parola – I filosofi, i mistici e i poeti, ed. cit., pp. 13 e segs. : «Wittgenstein, il silenzio, l’etica e la religione». 166 Cf. Maurice BLANCHOT, L’Entretien infini, ed. cit., pp. 68 e segs. : «Nommant le possible, répondant à l’impossible» ; e Ibid., pp. 478 e segs. : «Les paroles doivent cheminer longtemps»… 167 Ter presente a destrinça do sentido (Sinn, meaning…) estabelecida no Wienerkreiss, por Rudolf CARNAP, “Uberwindung der Metaphysik durch logische Analyse der Sprache”, in: Erkenntnis, (1932), § 3, entre o contraditório pleno de sentido, posto que falso, e o sem-sentido (pseudo-significativo) que não atinge o estatuto lógico-linguístico. O discurso “metafísico” será, segundo esta destrinça, pseudo-significativo, melhor transmitido pela arte, música… ou, diríamos, pelo silêncio, segundo a “moral” da última Propos. (7) do Tractatus de WITTGENSTEIN: „Wovon man nicht sprechen kann, darüber muss man schweigen.“ (in: ed. cit., p. 150). Vide também Chris GUDMUNSEN, Wittgenstein and Buddhism, London, MacMillan Pr., 1977, pp. 37 e segs.; Peter TYLER, The

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São esses os ‘véus’ do silêncio que se revelam num dizer que, afinal, abriga no seu mesmo seio esse eco ad intram de silêncio, como se cada pensamento se recortasse de infinito sossego, de vibração silenciosa que se reconhece induzida do passo da leitura oral e sonora primitiva para a invenção latina e já da era cristã da leitura em surdina168, num murmúrio que assim recolhe o verbo ao seu lastro silencioso, para, enfim, se constituir no tal ‘diálogo sem som da alma pensante consigo mesma’…169 Mas, mais até do que um “diálogo”, o que se dá é a dupla escuta no mais íntimo, como se encontra em Etty Hillesum, quando ela formula pelo verbo alemão hineinhorchen esse âmbito de encontro silencioso de Deus consigo: “Hineinhorchen – desejaria poder encontrar uma boa expressão neerlandesa para traduzir o que isso significa. De facto, a minha vida é um contínuo hineinhorchen, em mim mesma, nos outros, em Deus. E, quando digo que eu “hineinhorch” (que escuto no fundo, no íntimo), isso quer dizer afinal que é o próprio Deus quem escuta no mais profundo de mim. O que há de mais essencial e de mais profundo em mim escuta o que há de mais essencial e de mais profundo no Outro. Deus escuta Deus.» (17 de Setembro de 1942).170

Return to the Mystical – Ludwig Wiigenstein, Teresa of Avila and the Christian Mystical Tradition, London/ N.Y., Continuum, 2011, pp. 189 e segs.: «Wittgenstein and the Return to the Mystical». 168 Cf. supra n. 35 e vide infra ns. 245 e 264. 169 Cf. PLATÃO, Soph. 263 e, já citado supra n. 113. De certo modo, este diálogo silencioso remete para o ritmo sincopado da “palavra quebrada” pelas pausas da interrogação, bem assim da rogação ou da oração. Cf. a propósito Jean-Louis CHRÉTIEN, L’arche de la parole, ed. cit., pp. 23 e segs. : «La parole blessée – Phénoménologie de la prière». 170 Cf. Etty HILLESUM, Cad. 11 (17 Set. 1942), apud Paul LEBEAU, Etty Hillesum – Un itinéraire spirituel, (Amsterdam 1941- Auschwitz 1943), Namur/ Bruxelles, Éd. Fidélité/ Éd. Racine, 1998, p. 103 ; cf. também Klaas A.D. SMELIK, (ed.), Les Écrits d’Etty Hillesum – Journaux et Lettres, 1941-1943, trad. do neerl e do alem., Paris, Seuil 2008, p. 719.

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Este momento assim ‘dialéctico’, ou não, aporético em relação à própria quietude psíquica que, a não ser pensante, poderia declinar em hipnótico estado de sono cujo silêncio seria, outrossim, taciturnidade, como observa St.ª Teresa de Jesus: “De um perigo vos quero avisar (…) em que vi cair pessoas de oração, em especial mulheres, porque, como somos mais fracas, há mais lugar para o que vou dizer. É que algumas, de muita penitência, oração e vigílias, e ainda sem isto, são delicadas de compleição; em tendo algum consolo, sujeita-as o natural; e, como sentem algum contentamento interior e quebranto exterior numa fraqueza, ao sobrevir-lhes um sono a que chamam espiritual, que é um pouco mais do que fica dito, parece-lhes que é igual ao outro e deixam-se embevecer. E, quanto mais a isso se entregam, mais se embevecem, porque se enfraquece mais a natureza e, a seu juízo, lhes parece arroubamento (…).” 171 St.ª TERESA DE JESUS, Moradas, IV, 3, 11: “De un peligro os quiero avisar (…) en que he visto caer a personas de oración, en especial mujeres, que como somos más flacas, ha más lugar para lo que voy a decir; y es que algunas, de la mucha penitencia y oración y vigilias, y aun sin esto, sonse flacas de complesión; en tiniendo algún regalo, sujétales el natural, y como sienten contento alguno interior y caimiento en lo esterior y una flaquedad, cuando hay un sueño que llaman espiritual, que es un poco más de lo que queda dicho, paréceles que es lo uno como lo otro y déjanse embevecer. Y mientra más se dejan, se embevecen más; porque se enflaquece más el natural y en su seso les parece arrobamiento.” – acrescentando a Santa: “Y llámole yo abovamiento, que no es otra cosa más de estar perdiendo tiempo allí y gastando su salud (…).”, por conseguinte, um ficar “embasbacado”, “paralisado” por esse estado de hipnose alienante… Cf. vários estudos, em Isabelle STENGERS, (dir.), Importance de l’hypnose, Le Pleissis-Robinson, Synthélabo, 1993… De facto, é tal taciturnidade (cf. supra n. 12) um progressivo desvio do sossego para um adormecimento doentio, um torpor, que tanto pode revelar a acédia (gr. akedía, ou “indiferença e tédio”) como perigoso vício monástico, quanto manifestar um estado de tristitia (ou gr. lypé) “tristeza, desencorajamento…”)… em ambos os registos como depauperamento e desinteresse pela Vida. Por isso, numa nossa reflexão simétrica distinguimos entre uma inquietude quieta (morta assim) e a quieta inquietude (de um estado de “alerta”, ou awareness…, indispensável na compreensão da existência em silêncio fecundo…): cf. Carlos H. do C. SILVA, “O Homem em questão – Da quieta inquietude cultural à inquieta quietude espiritual”, in: Várs. Auts., Inquietação humana e Fé cristã, (Fev. 1995), Lisboa, Rei dos Livros, 1996, pp. 179- 207; e vide Id., “Tópos e ritmo da existência sacerdotal em Isabel da Trindade – Dois estudos: I – A Linguagem da periferia 171

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Exige-se, pois, uma advertência dessa pausa significativa praticada a tempo, já longe dos regimes habituais da memória.172 Ao falso ensimesmamento que alguns místicos apontaram como estar embiocado ou num embrutecimento anestésico, advém o silêncio lúcido de um pensar-se que anula a palavra em ruminação da mesma, que faz da lectio o perfeito recolhimento, evitando derramar energias espirituais por via psíquica.173 É o trabalho ainda discursivo da meditação depois conducente a um “stop the mind”, onde já não é o rumor da palavra que pontua, mas o silêncio assim alongado, como se um respiro que acalma todos os ritmos vitais.174 Independentemente do uso que se faça desta, depois designada “oração mental”, até na aplicação à calma psicofísica e à terapêutica de estados de desequilíbrio moral, a dimensão espiritual desta fase do silêncio mental é ainda preparatória de uma escuta do silêncio de falta ou de privação que, por conseguinte, se revela como uma pausa mística do sacerdócio”, in: Rev. de Espiritualidade, XVIII, nº 72, Out./ Dez. (2010), pp. 261-320; Id., “Tópos e ritmo da existência sacerdotal em Isabel da Trindade – Dois estudos: II – Tempo sossegado e perpétua intranquillitas”, in: Rev. de Espiritualidade, XIX, nº 73, Jan./ Mar. (2011), pp. 33-80. 172 Não a pausa convencional, “habitual” numa memória mecânica mais ou menos repetitiva, mas o efeito do silêncio como “interrupção” inesperada, aposiópesis (como se referiu, cf. supra ns. 8, infra n. 258…), que chama a atenção por tal hiato bem significativo.Cf. Gisèle BRELET, Le temps musical – Essai d’une esthétique nouvelle de la musique, t. I : La forme sonore et la forme rythmique, Paris, PUF, 1949, pp, 315 e segs.. «Structure temporelle du rythme», sobretudo pp. 326 e segs.: «Rythme et silence»… 173 Era já o modo hebraico e cristão, também da lectio divina, no seu momento de ler o lido, “tresler” assimilando a palavra, já assim não legível, em “suco” de ser… alimentar-se por esta “digestão” do livro (cf. Ap 10, 9-10),da palavra…Cf. Marcel JOUSSE, Anthropologie du geste, II – La Manducation de la Parole, Paris, Gallimard, 1975, pp. 37 et passim. 174 Do ponto de vista das técnicas espirituais do yoga, o alongamento do intervalo respiratório entre a inspiração e a expiração pode assinalar essa “pausa alongada” que determina um “silêncio” mental… e uma atenção acrescida. Vide também outras referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “O Problema da Atenção no Vipassana”, (Comun. ao “Colóquio: A Mente, a Religião e a Ciência”, promovido pelo Projecto de Investigação «A Filosofia e as Grandes Religiões do Mundo…», Centro de Filosofia da Fac. de Letras de Lisboa), in: Carlos João CORREIA, (Coord.), A Mente, a Religião e a Ciência, (Actas do Colóquio), Lisboa, Centro de Filosofia da Univ.de Lisboa, 2003, pp. 29-61.

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pacificadora mas, ao mesmo tempo, é do que, apesar de tudo, de fato não se ouve.175 Um silêncio opaco, realista na consciência crítica e mental do céu habitável, mas também da clara antecipação da experiência de alteridade para a qual não há ainda linguagem.176 É ainda a este âmbito que se pode aplicar o comentário de S. João da Cruz que refere no não entender, um entender que não se entende que é muito subido entender… Trata-se de um famoso passo do Cántico Espiritual, (B), 7, 9…, que aqui vale a pena transcrever mais extensamente: “E mais me vai matando Um não sei quê que ficam balbuciando.

Como se dissera: mas além do que estas criaturas me chagam pelas mil graças que de Ti me dão a entender, é tal o «não sei quê» que se sente ficar por dizer, e uma coisa que se conhece ficar por descobrir, e um subido rastro de Deus que se descobre à alma e que fica por rastrear, e um altíssimo entender de Deus que não se sabe dizer, por isso lhe chama «não sei quê», que, se o que entendo me chaga e fere de amor, isto que não acabo de entender, mas que altamente sinto, me mata. Isso acontece, às vezes, às almas que estão já aproveitadas, as quais Deus faz mercê de dar no que ouvem, ou 175

A terapêutica tradicional era já bem conhecida no meio monástico, parecendo transmitir antigas observações estóicas e neoplatónicas sobre os efeitos pacificadores do silêncio. Cf. ainda Martha C. NUSSBAUM, The Therapy of Desire – Theory and Practice in Hellenistic Ethics, Princeton, Princeton Univ. Pr., 1994, pp. 316 e segs.: «Stoic Tonics: Philosophy and the Self-Government of the Soul» e pp. 359 e segs.: «The Stoics on the Extirpation of the Passions»… reflectindo o modelo de De tranquilitate animi na tradição de Séneca, também Cícero, Marco Aurélio… Vide também referências em J. M. RIST, Stoic Philosophy, Cambridge/ N.Y./ Melbourne…, Cambr. Univ. Pr., 1969, pp. 37 e segs.; e vide JeanClaude LARCHET, Thérapeutique des maladies spirituelles,Une introduction à la tradition ascétique de l’Église orthodoxe, Paris, Cerf, 1997, pp. 207 et passim; pp. 534 e segs.; e pp. 713 e segs. 176 A vida regrada dá-se neste ambiente terreno, onde se podem também ouvir cânticos e louvores… não só o sossego das pausas intermediárias. Por outro lado, não deixa de se pressentir um eco de silêncio desse Outro “de fora” deste mesmo ambiente… Cf. supra n. 132…

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veem, ou entendem, e às vezes sem nada disto, uma subida notícia em que se lhes dá a entender ou sentir alguma coisa da alteza e da grandeza de Deus; e naquele sentir sente tão alto de Deus, que entende claro que fica tudo por entender; e aquele entender e sentir ser tão imensa a Divindade que não se pode entender cabalmente é muito subido entender. (…).”177 Ou seja, uma consciência de que dizer o indizível não é apenas acabar por não dizer, mas um dizer que descobre o seu mesmo indizível, o silêncio interior da palavra, como sua “sombra” ou “eco” assim pensante. D ) A via ‘teológica’ apofática Porém, ainda longe desta constatação espiritual de tal superior e inspirado entendimento capaz assim de indicar o silêncio, o deserto ou a profunda noite da fé como intervalo entre a expectativa mental mesmo na oração silenciosa e esse outro silêncio de Deus que cala Cf. S. JOÃO DA CRUZ, Cánt. (B), 7, 8-9: “Y déjame muriendo, Un no sé qué que quedan balbuciendo. Como si dijera: pero allende de lo que me llagan estas criaturas en las mil gracias que me dan a entender de ti, es tal un no sé qué que se siente quedar por decir, y una cosa que no se conoce quedar por descubrir, y un subido rastro que se descubre al alma de Dios quedándose por rastrear, y un altísimo entender de Dios que no se sabe decir (que por eso lo llama no sé qué), que, si lo otro entiendo me llaga y hiere de amor, esto que no acabo de entender de que altamente siento me mata. Esto acaece a veces a las almas que están ya aprovechadas, a las cuales hace Dios merced de dare en lo que oyen o vem o entienden (y a veces sin eso y sin esotro) una subida noticia en la que se le da a entender o sentir alteza de Dios y grandeza, e en aquel sentir sienta tan alto de Dios, que entiende claro se [que]da todo por entender; y aquel entender y sentir ser tan inmensa la Divinidad, que no se puede entender acabadamente, es muy subido entender; y así una de las grandes Mercedes que en esta vida hace Dios a un alma por vía de paso es darle claramente a entender y sentir tan altamente de Dios, que entienda claro que no se puede entender ni sentir del todo; …”; (in: ed. cit., p. 598; o fragmento citado no corpo do texto segue a trad. do Carmelo de S. José, de Fátima, op. cit., pp. 612-613) Sobre a origem e estudo comparado daquela fórmula de ‘nesciência’, esse «não sei quê», na literatura europeia, cf. Richard SCHOLAR, The Je-Ne-Sais-Quoi in Early Modern Europe, - Encounters with a Certain Something, Oxford, Univ. Pr., 2005. Vide infra n. 167. 177

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fundo até ao centro da alma, importa reconhecer um quarto sentido do silêncio já espiritual, posto que ainda determinado em relação a uma gradualidade dialética.178 Este sentido provém de Plotino e da convicção platônica e pitagórica de que, a partir do nível mental, a atmosfera ruidosa e sensível das imagens dá lugar ao mundo aritmogeométrico de símbolos silenciosos e, sobretudo, de puros inteligíveis que se situam num universo de silêncio, qual vazio intersticial e final desse apaziguamento de tudo em viagem de regresso ao Uno indizível, impensável… num agora eterno de puro silêncio.179 Esta temática passou para o neoplatonismo cristão que se encontra no PseudoDionísio, o Areopagita, e para toda aquela corrente de pensamento místico que caracteriza a união em termos essencialmente contemplativos e até abstratos.180 Nesta corrente especulativa ainda muito marcada pelo eros grego do “desejo de ver a Deus”, o silêncio marca o indizível dessa experiência essencial.181 Trata-se da 178

Já assinalados aqueles símbolos paralelos do silêncio, no deserto ou ermo, na noite, caligem e obscurecimento…, até na própria solidão, tanto soledade, quanto saudade… cf. outras referências em nossos estudos: Carlos H. do C. SILVA, “Soledade sem Saudade”, (1992), a publicar; Id., “Saudade e Experiência Mística” (Comun. ao «Colóquio Luso-Galaico sobre a Saudade», Inst. Luso-Brasileiro de Filosofia, Viana do Castelo/ Santiago de Compostela, 2 Junho 1995), in: Actas do I Colóquio Luso-Galaico sobre a Saudade, Viana do Castelo, Câmara Municipal, 1996, pp. 117-143; e, Id., “Deserto e Metamorfose de Vida”, in: Publicações Terraço/ Graal, nº 10, Junho (2001), núm. integral, pp. 5-38. 179 Cf. PLOTINO, En. III, 8, 6: ‘tì àn állo è lógos siopôn eíe…’: “tanto mais silenciosa quanto mais racional…” Repare-se que se trata da alma intelectiva; vide supra n. 83. Cf. vários contributos em Thomas FINAN e Vincent TWOMEY, (eds.), The Relationship between Neoplatonism and Christianity, Dublin, Four Courts Pr.,1992. 180 Cf. Andrew LOUTH, The Origins of the Christian Mystical Tradition, From Plato to Denys, Oxford, Clarendon Pr., 1981, pp. 159 e segs.; também já a pp. 98 e segs.: «The Monastic Contribution»…; e vide nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Solidão ou Comunhão de Ser – Do Neoplatonismo de Agostinho de Hipona”, in: Santo Agostinho: O Homem, Deus e a Cidade – Actas do Congresso (11-13 de Novembro de 2004), Leiria, ed. Centro de Formação e Cultura/ Diocese de LeiriaFátima, 2005, pp. 237-267. 181 Não só uma transfiguração do desejo, como interpreta René ARNOU, Le désir de Dieu dans la philosophie de Plotin, Rome, Pr. de l’Université Grégorienne, 1967,

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Wesenmystik muito desenvolvida no final da época medieval pelos chamados místicos do Reno, que seguem a lição da «Teologia Mística» dionisiana, ou seja, da via apofática, negativa ou “silenciosa”, por conseguinte do carácter secreto e inefável da Deidade abissal.182 “Ali [na divina treva] os mistérios da Palavra de Deus [Theologia] são simples, absolutos, imutáveis nas trevas mais que luminosas do silêncio que mostra os segredos.”183

Se na simbologia gnóstica se marcava a prioridade, ou não, da Sigé divina (a instância do Silêncio, assim personificada) face ao Býthos, ou Abismo primordial, qual hiato inultrapassável entre o manifesto da Criação e o abscôndito do Criador184, ou até da Deidade oculta no Deus revelado, na linguagem da dialéctica negativa a propósito de Deus, de apofatismo em apofatismo revela-se o sentido

pp. 88 e segs., mas uma superação de todo o desejo numa perspectiva intelectiva pura, como já se lê no “Tratado da Oração” de EVAGRO PÔNTICO, c. 11: ‘Agonízo stêsai tòn noûn sou, katà tòn kairón tês proseukhês kophòn, kaì álalon, kaì dynései proseúxasthai.’ [“Esforça-te por manter o teu intelecto, no momento da oração, surdo e mudo, e terás força para orar.”] Vide comentário em I. HAUSHERR, S.J., Les leçons d’un contemplatif, Le Traité de l’Oraison d’Évagre le Pontique, Paris, Beauchesne, 1960, pp. 26 e seg.; e cf. Jean-Yves LELOUP, (ed.), Praxis et Gnosis d’Évagre le Pontique ou la guérison de l’esprit, Paris, Albin Michel/ Cerf, 1992. 182 Cf. Denys TURNER, The Darkness of God, Negativity in Christian Mysticism, Cambridge, Univ. Pr., 1995, pp. 19 et passim; J. P. WILLIAMS, Denying Divinity,Apophasis in the Patristic Christian and Soto Zen Buddhist Traditions, Oxford Univ. Pr., 2000, pp. 1 e segs.: «Introduction to apophasis”. 183 Cf. DIONÍSIO, PSEUDO-AREOPAGITA, Myst.Teol. 1: ‘…éntha tà aplâ, ka`apólyta, kaì átrepta tês theologías mystéria, katà tòn hypérphoton enkekályptai tês kryphiomýstou sigês gnóphon…’, (in: PG, t. 3, col. 997b); e vide HUGO DE BALMA, Theologia mystica, c. 2. 184 Vide St.º IRENEU, Adversus haereses, I, 1, 1, resumindo a gnose valentiniana que refere essa geração primordial a partir de Býthos, o Abismo, que se explicita em Ennoía (Pensamento), Kháris (Graça ou Dom) e Sigé (Silêncio)… é ainda do casamento do Abismo com o Silêncio que advém o Noûs (Intelecto primeiro), ou seja, o Lógos assim gerado e depois “eloquente” de todas as coisas.

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do silêncio como de superlativa fala.185 É em Escoto Eriúgena que já se caracteriza plenamente o modo hiperbólico dessa teologia em que, nem se afirma de Deus, nem d’Ele se nega, mas se reafirma por dupla negação, mostrando que o silêncio do inefável se deixa dizer, não só em tautologia, mas nessa ‘dupla negação’ de uma superior afirmação. O super-ser de Deus, o super-silêncio, porque superada a dicotomia entre o dizível e o indizível, entre a palavra e o silêncio, no encontro dessa pausa divina como hiper-ataraxía, ou apaziguamento de tudo no Todo, melhor dizendo, nesse Uno divino.186 Todavia, quer a revelação de Deus Uno e Trino, quer o próprio método de divisão quaternária da Natureza universal, parecem sublinhar o carácter não absolvente e desencarnante dessa dialética platónica e cristã, mas a exigência de uma diferenciação encarnada, da Palavra feita carne, do mistério da Alteridade no seio do Mesmo e na interpessoalidade em Deus, como ainda dos diversos momentos irredutíveis dessa Fonte última de manifestação que se derrama ainda na mística presença da natureza nem criada, nem criadora.187 Místico silêncio que pode assim ser habitado de diálogo de palavras, que não apenas da ideal solidão do solilóquio face a Deus; devendo ainda ser interrogado na possível alienação além da palavra.188 185

Da teologia catafática, ou afirmativa, à apofática e desta negação, à dialéctica negação da negação, numa teologia hiperbólica, ou “superlativa”, tal se apresenta já em Eriúgena. Vide John J. O’MEARA, Eriugena, Oxford, Clarendon Pr., 2002 e pp. 57 e segs.; cf. n. 147. 186 Veja-se ainda sigè gnóphos dionisiano a remeter para a “treva divina” de que muito fala S. Gregório de Nissa num simbolismo nocturno de tal secreto assim hipertrofiado… Cf. Jean DANIÉLOU, Platonisme et théologie mystique, Doctrine spirituelle de saint Grégoire de Nysse, ed. cit., pp. 190 e segs. : «La ténèbre divine». Vide Dom André GOZIER, OSB, Célébration de l’Innefable – réflexions sur la dénomination de Dieu : le Nom au-dessus de tout nom, Magny-les-Hameaux, Socéval Éd., 2005 ; e cf. n. seguinte. 187 Cf. ESCOTO ERIÚGENA, De divisione naturae (Perì Phýseon) I, in: PL, 122, cols. 441b e segs.; e outras referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “O pensamento da diferença no «De divisione naturae» de Escoto Eriúgena”, in: Didaskalia (Rev. Fac. de Teologia da U.C.P.), III, 2 (1973), pp. 247-304. 188 Alienação além da palavra… - eis o que se poderia interrogar a propósito de concreto excesso linguagem/silêncio (cf. Stanislas BRETON, Deux mystiques de l’excès: J.-J. Surin et Maître Eckhart, Paris, Cerf, 1985, pp. 24 e segs.), tal no caso

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O aparente êxito intelectual que purga a palavra e o pensamento discursivo, antepondo-lhe a hierarquia de um não-dito, nem pensado, cuja intuição intelectual supõe o vazio de imagens, cuja contemplação supõe a supressão da palavra, torna o silêncio uma “experiência oceânica”, paradoxalmente diluente de todo o processo hierárquico, culminando as diferentes pausas por uma quietude absolvente, num “abismo” que até pode ser a miragem da Eternidade em definitiva morte, numa vertigem niilista ou do próprio Nada.189 Então, o silêncio traduz este já não haver mais nada, ou nunca ter havido, dissolvendo o construto da Criação inteira pela demiurgia do Verbo, nessa quietude originária que pode ainda salientar a convergência de tal absoluto apofatismo, por exemplo de Eckhart, com o silêncio de Brahman não confundido com o carácter ilusório de maya da palavra, ou com a negação do desejo, fonte universal de dor,

de J.-J. SURIN (Guide spirituelle, II, c. 1; ed. M. de Certeau, Paris, Desclée de Brouwer, 1963, pp. 101 e segs.) na dramática experiência espiritual das ‘securas’ ou ‘vazios’ do silêncio, por contraste com a quietude dos estados infusos. Vide também Patrick GOUJON, Prendre part à l’intransmissible – La communication spirituelle à travers la correspondance de Jean-Joseph Surin, Grenoble, Jérôme Millon, 2008, sobretudo pp. 164 e segs. : «Un enseignement spirituel à expérimenter : Les opérations de Dieu». 189 Certa ênfase recentemente dada a Eckhart e outros nesta pretensa convergência com esse “vazio” ou, outrossim, esse Absoluto oriental (como já havia mostrado Rudolf OTTO, Das Heilige. Über das Irrationale in der Idee des Göttlichen und sein Verhältnis zum Rationalen, Gotha, Klotz, 1929 e reed.) esquece que não basta “pensar” isso, antes importa discernir isso de aquilo que é a sua mesma consciência. Por outras palavras: não importa um silêncio absoluto, absolvente de toda a diferenciação vital: o que é luciferino na acepção de R. STEINER, Der Entwickelungsgang der Menschheit in seinen drei Kräfteströmungen. Der Zusammenhang des Luziferisch-Ahrimanischen Impulses mit dem Christus-Jahve Impuls, (1941), Dornach, R. Steiner Nachlassverwaltung, 1961); porém, importa a gradualidade de cada pausa vivida no seu mesmo incomparável mistério, como o do Golgotha, nessa sempre mística cruz do momento.Cf. ainda Amador VEJA, “El lenguaje excesivo de los místicos alemanes”, in: Óscar PUJOL e A. VEGA, (eds.), Las palabras del silencio: el lenguaje de la ausencia en las distintas tradiciones místicas, ed. cit., pp. 49-65.

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em que se recolhe buddhi à serenidade cósmica, transcósmica, de uma paz sem nome…190 É curioso que nesses místicos se tenda para a linguagem da indiferença, ora dita pelo abandono, a denegação, a aniquilação, ora pela ‘ebulição’ e pelo ‘extremo do entusiasmo’, da ‘exaustão extática’ e até pela absoluta alienatio.191 De fato, o totalmente Outro acaba por se revelar assim o Mesmo e este encontrar-se nesse silêncio, que, como a noite absoluta, é absolvente de tudo em si, acaba por fazer paradoxalmente identificar a consciência unitiva ao inconsciente indiferenciado.192 190

Embora não correcta, é a hermenêutica comum sobre o Budismo no Ocidente: cf. Roger POL-DROIT, Le culte du néant, Les philosophes et le Bouddha, Paris, Seuil, 1997, sobretudo pp. 213 e segs. Vide, outrossim, outras referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Marga absolvido ou caminho da Cruz? – Budismo / Cristianismo – iluminação, nirvana e kénosis cristã", in: Revista Lusófona de Ciência das Religiões, VI, nº 11, (2007), pp. 39-66. Seria oportuno sublinhar, por outro lado, a diferença entre a demiurgia bíblica da Palavra criadora e o carácter metamórfico, fecundo e feminino da Voz hindu: não só como Vac deusa de todas as expressões, mas naquela feminilidade oceânica e universalmente diluente. Cf. Charles MALAMOUD, Féminité de la parole – Études sur l’Inde ancienne, Paris, Albin Michel, 2005, pp. 33 e segs., onde convoca o neutro-masculino de manas, o « mental », com o feminino de vac, “palavra oral”, “voz”… num rito nupcial (mithuna) que, de certo modo, pode remeter para o silêncio. Noutro texto deste estudo, «Tenir parole, retenir sa voix» (pp. 93 e segs.) observa-se pela negativa a suspensão de tal fecundidade, tanto pela ascese do mauna ou “silêncio” (associado ao sentido de manute, “pensar”), como por um falar “em surdina”: upâmsu, ou “silenciosamente (sem se ouvir): tûsnîm… Ainda um fundo “sexual”, contrapondo à projecção da voz (como do sémen), esta retenção da palavra (como castidade). Diz Louis LAVELLE, La parole et l’Écriture, Paris, L’artisan du Livre, 1947, p. 133, que o silêncio é a « forma mais perfeita do pudor »… 191 O tema que filosoficamente pode ser extremado na dialéctica do pensamento ocidental (v.g. Hegel), por essa lógica de negação (Aufhebung) para ulterior reafirmação, pode ser diversamente revisto no âmbito da experiência mística que traduz e antecipa tal unio por anulamento da diferença. Cf. o estudo comparativo de J. P. WILLIAMS, Denying Divinity, Apophasis in the Patristic Christian and Soto Zen Buddhism Traditions, Oxford, Univ. Pr., 2004. Vide paralelo significativo na tradição yôguica: Yohanan GRINSHPON, Silence Unheard – Deathly Otherness in Pâtañjala-Yoga, ed. cit., pp. 13 e segs.: «Eight Characters in Search of the Yogasûtra: The Lively Banalization of Yogic Deathly Silence». 192 Cf. Jean-Claude LARCHET, L’inconscient spirituel, Paris, Cerf, 2005, pp. 105 e segs.: «Une autre conception de l’inconscient; l’inconscient spirituel»; porém, sobre

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Esta é a dimensão extremada do silêncio espiritual, já não surdez de ausência de som exterior, sequer de calar em voto de silêncio uma interioridade assim pacificada, nem mesmo o silêncio mental da distinta consciência do inefável, desse silêncio desmedido além da mente e assim pensado; agora, trata-se de uma inefabilidade que advém como a paz, ou uma presença de tal modo inefável, que abisma o inteiro psiquismo numa já ‘vida divina’, no que paradoxalmente se diz pela ‘luz tenebrosa’, pela ‘voz do silêncio’, ou por um “duplo abismo” correspondente ao que se designou também por coincidentia oppositorum.193 O máximo e o mínimo tocando-se na absoluta relação que assim absolve tudo no mesmo, todas as vozes, todo o realismo do ente que se diz de muitos modos reconduzido à verdade do Todo, numa tendência para um “panteísmo silencioso”, um conformismo espiritual muitas vezes glosado na indiferença dos quietos e no sentido abstrato de tal “oração silenciosa”.194 Aliás, não se deve confundir esta tendência para o quietismo, o silêncio infecundo, a inatividade letal, com o que, mesmo na hierarquia dos modos de vida contemplativa, se diz pela oração de quietude, pois nesta se indica a diferença de um acolher ativamente tal passividade de um dizer esse mesmo silêncio, que representa o estado o inconsciente « oceânico » (também segundo o modelo freudiano) vide Marcel GAUCHET, L’inconscient cérébral, Paris, Seuil, 1992, pp. 23 e segs.; ainda Jacques RANCIÈRE, L’inconscient esthétique, Paris, Galilée, 2001, pp. 33 e segs. : «Les deux formes de la parole muette». Vide observações nossas e críticas em Carlos H. do C. SILVA, “Caos e experiência espiritual”, in: Várs. Auts., Caos e metapsicologia, Colóq. LNETI, Lisboa, 17-19/Dez./1992, Lisboa, ed. Fenda, 1994, pp.279-306; e Id., “Tempo de densas trevas – Questão da «noite escura» em Thérèse de Lisieux ou de «sensível obscurecimento» da Fé?”, in: Revista de Espiritualidade, XIV, nºs 54-56: «A Ciência do Amor» (Actas do Congresso, Fátima: 28/30 Out.º 2005), Abril/ Dez., (2006), pp. 345-416. 193 Dir-se-ia que o máximo grito e o mais profundo silêncio coincidem já longe da articulação do sentido… Cf. supra n. 82. 194 Cf. supra n. 109 e vide também a «escola abstracta» de Bento de Canfield: cf. Daniel VIDAL, Critique de la Raison Mystique,Benoît de Canfield, Possession et dépossession au XVIIe siècle, Grenoble, Jérôme Millon, 1990. Poder-se-ia também lembrar a destrinça que Miguel de Molinos faz do silêncio em palavras, em desejos e em pensamentos, valorizando sobretudo este último estado «místico» de absorção divina. (cf. Guia, I, 17…)

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em que a iniciativa da transformação interior pertence ao Espírito e ao primado da sua operação.195 “Eis por que te deves calar: então o Verbo deste nascimento poderá ser pronunciado em ti, podendo ouvi-lo; mas fica bem certo que se quiseres falar, ele deverá calar-se. Não se pode melhor servir o Verbo senão calando-se e escutando-o. Por conseguinte, se saíres por completo de ti mesmo, Deus entrará inteiramente; quanto mais sais, tanto mais ele entra, nem mais nem menos.”196

É nestes termos que, como exemplo, extraído dum Sermão de Tauler, se caracteriza a condição silenciosa para o fecundo acolhimento do Verbo, nesse Natal interior, cujo sentido espiritual já havia sido muito sublinhado por Mestre Eckhart nesta corrente renana da contemplação essencial.197 Por outro lado, não é este silêncio uma abdicação servil, outrossim uma obediência espiritual, um querer seguir essa indicação 195

Cf. supra n. 109 e infra n. 255; e ainda sobre o quietismo cf. ainda E. PACHO, art. «Quietismo», in: E. ANCILLI, (dir.), Diccionario de Espiritualidad, ed. cit., t. III, pp. 237-241; e Michel DUPUY, art. «Silence [II. Des rhénans au 18e siècle]», in: DS, t. XIV, cols. 855 e segs. 196 Cf. J. TAULER, Pred., 1 : »Weihnachtsfest« (Puer natus est nobis et filius datus es nobis (Is 9, 5)): „Und darum sollst du schweigen! So kann das Wort dieser Geburt in dich gesprochen und es in dir vernommen werden. Aber gewisslich, willst du sprechen, so muss Gott schweigen. Man vermag dem Worte nicht besser als mit Schweigen und Hören zu dienen. Räumst du ihm deine Seele gänzlich ein, so erfüllt es dich ohne Zweifel ganz und gar: ebensoviel wie du ihm einräumst, so viel strömt seines Wesens in dich ein, nicht mehr und nicht weniger.“ (in: Georg HOFMANN, (ed.), JOHANNES TAULER, Predigten, Einsiedeln, Johannes V., 19873, t. I, p. 17). Cf. Marie-Anne VANIER, «Jean Tauler et les Amis de Dieu», in: Revue des sciences religieuses, 75, nº 4, (2001), pp. 456-464. 197 Cf., entre outros, Jean DEVRIENDT, «La naissance de Dieu dans l’âme dans les Sermons latins de Maître Eckhart», in: Marie-Anne VANIER, (dir.), La naissance de Dieu dans l’âme chez Eckhart et Nicolas de Cues, Paris, Cerf, 2006, pp. 39-54, e vide infra n. 290. A propósito desse essencial ou fundo (Grund) silencioso em que se dá o místico encontro, cf. também Virginie PEKTAS, Mystique et Philosophie, Grunt, Abgrunt et Ungrund chez Maître Eckhart et Jacob Böhme, (»Bochumer Studien zur Philosophie«, t. 45), Amsterdam/ Philadelphia, B. R. Grüner, 2006, pp. 39 e segs.

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silenciosa do Espírito, num fiat mariano que, a partir daí, tipifica não só esta parte de Maria, mas ainda a própria transfiguração do agir.198 Segundo a glosa de Eckhart a propósito da “duas vezes Marta”, sublinhando o terceiro estado, nem só ruidosamente ativo, nem apenas de silenciosa contemplação, mas de um estar ctivo na contemplação (ou contemplativo na ação), compreende-se que o silêncio se torna aqui profundidade da ação, caridade discreta, simplicidade em ordem à perfeição.199 Silêncio ainda, dos conselhos de perfeição, pela pobreza e pureza de intenções, pelo despojamento de muitas palavras inúteis, considerando que uma única coisa é necessária.200 Via, pois, de uma absolvição da palavra que a faz de novo conceber na própria dialéctica temporal da ‘esmola’ do ser e da caridade que decai do absoluto não-dizer para o exemplo evangélico da paciência do conceito, para o bem-fazer que rompa outros mutismos humanos e quiçá de certa mística assim alienatória.201 Sempre no eco de Lc 1, 38… Cf. Lc 10, 42. Retoma-se aqui um texto dos Sermões de Eckhart, já por nós citado em outro estudo: cf. Mestre ECKHART, Pred. (=Predigten, Sermones), 86: «Intravit Iesus in quodam castellum etc.» (in: ed. J. QUINT, Meister Eckart’s Predigten, ed. cit., t. III, pp. 472 e segs.), vide sobretudo p. 484 (versão em alemão antigo): “Warumbe sprach Kristus: ‘Marthâ, Marthâ’ und nannte sie zwirunt? (…) Wâ von nannte er Marthen zwirunt? Er meinte, allez, daz zîtlîches und êwiges guotes waere und daz crêatûre besitzen solte, das daz Marthâ zemâle hâte. Na dem êrsten, dô er sprach Marthâ, dô bewîsete er ir volkomenheit zîtlîcher werke. Ze dem andern mâle, dô er sprach Marthâ, dô bewîsete er, allez, daz dâ hoeret ze êwiger saelde, daz ir des niht enbraeste.” Sobre este trecho vide tradução e referência em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Experiência mística e obras de misericórdia corporais”, in: Várs. Auts., Obras de Misericórdia (IV e V Semanas de Espiritualidade sobre a Misericórdia de Deus- Anos 2001 e 2002), Fátima, Ed. M.I.C., 2003, pp. 67-122; [vide trad. p. 117: “Porque é que Ele [o Senhor] a chama Marta duas vezes ? Indicava que Marta possuía em absoluto tudo o que a criatura deveria possuir de facto em bem temporal e bem eterno. Ao dizer «Marta» pela primeira vez, assinalava a sua perfeição em obras temporais. Ao dizer «Marta» pela segunda vez, indicava que nada lhe faltava em relação a tudo quanto é necessário para a beatitude eterna. (…).”]. 200 Cf. Lc 10, 42: ‘…henòs dé estin khreía…’ 201 A relação do silêncio absolvente com o tempo assim repetível torna aquela natureza “espacial” do silêncio e seu lugar amplo, retomado nas várias remissões 198 199

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E) O dom de ‘dizer’ o indizível Mas há um outro sentido do silêncio místico, dir-se-ia uma sua quinta dimensão, que consiste justamente na aura ou atmosfera misteriosa e inefável que acompanha o mesmo dizer da experiência espiritual, seja como inspiração e a tal locução interiormente escutada, seja como o dom poético de dizer esse mesmo indizível, reconvertendo-o do abscôndito ao assim revelado.202 Aqui, o místico já não diz que é indizível, não toma o silêncio como limite intransponível, mas diz o próprio indizível, tanto pela linguagem imagética, quanto pela própria encarnação linguística do ser de silêncio, que, afinal, é cada um também, como “templo do Espírito Santo”.203 que voltam a absolver o silêncio. Esta temporalização do silêncio, tendente para um “tempo parado”, não recupera por inteiro o sentido espacial e a liberdade de movimento relativo nessa quietude. É uma «paralisia», ainda que mística, até uma ligadura dos sentidos, que não a sua livre deslocação insonora, aberta ao infinito… Cf. em complemento à nossa reflexão sobre o “espaço” do santuário: Carlos H. do C- SILVA, “O lugar do divino vislumbre – Santuário e relação do Sagrado e do Profano”, (Comun. ao Congresso de Fátima), in: O Presente do Homem, o Futuro de Deus – O lugar dos Santuários na relação com o Sagrado – Actas do Congresso de Fátima (10-12 Outº de 2003), Fátima, ed. Santuário de Fátima, 2004, pp. 99-201. 202 A inspiração remete ao antes da palavra, mesmo pré-sonoro do sopro (vide supra n. 43). Traduz-se também num fazer o silêncio com a própria poética assim escutada na sua génese. O silêncio é da ordem do poiético e, embora se haja referido a ética do silêncio, não é dele a práxis, outrossim do acto linguístico. Apenas se pode falar de uma estética do silêncio, nunca de uma ontologia (cf. ainda Pierre BOUTANG, Ontologie du secret, ed. cit., pp. 319…) que o admita substantivado, nem de uma práxis que decida o que quer que seja por ele. Como se disse, antes da ordem do espaço do que do tempo, sequer de um tal momento decisório ou de decisão, o silêncio assinala em si mesmo a paradoxal alteridade e, no caso, a “hesitação”, o “suspensivo”, o que consente virtualidades ainda não esboçadas. Vide o magnífico estudo sobre a perspectiva “estético-teológica” de Urs Von Balthasar: Fr. Raymond GAWRONSKI, S.J., Word and Silence – Hans Urs von Balthasar and the Spiritual Encounter between East and West, ed. cit., sobretudo pp. 187 e segs.: “Christian Holiness”… 203 Sempre a “metafísica” da imago cf., por exemplo, Jean-Jacques WUNENBURGER, Philosophie des images, Paris, PUF, 1997, pp. 250 e segs.; mas também a instância encarnacional…vide outras referências em nosso estudo Carlos

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Percebe-se, em última análise, como o silêncio não é o da ‘conversação ideal nos céus’204, mas o da pausa transformadora e realizante de outra presença, já que essa quietude não desencarna, mas faz até coincidir com o cântico estésico mais despojado, com a nota musical mais simples.205 De fato, o que fica além deste estado é a tentação hermenêutica, as muitas vozes de uma justificação até teológica, já que a experiência mística retorna aqui ao balbucio das crianças, à desconstrução da linguagem pelo retorno à descontinuidade pausada, ao espaço de escuta capaz de dar conta da

H. do C. SILVA, “O Imaginário na Filosofia – Da imagem intermédia ao imaginário especulativo – ou do pensar por interposta «pessoa»”, in: Alberto Filipe ARAÚJO e Fernando Paulo BAPTISTA, (Coord.), Variações sobre o Imaginário, Domínios, Teorizações, Práticas hermenêuticas, Lisboa, Instituto Piaget, 2003, pp. 287-336. 204 Cf. S. PAULO, Fil 3, 20: «Nostra autem conversatio in coelis est…» [segundo a Vulgata]. Vide P. François BRUNE, Saint Paul, le témoignage mystique, Paris, Oxus, 2003, a propósito da dimensão kenótica ou de « esvaziamento», entretanto como meio de um acolhimento de lógos maior ou de uma economia salvífica. Sobre alguma idealização ainda helénica deste andamento paulino, cf. Michel FATTAL, Saint Paul face aux philosophes épicuriens et stoïciens, Paris, L’Harmattan, 2010, pp. 59 e segs.: «Du «souffle» divin stoïcien au «souffle» du Dieu chrétien»; e vide outras referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Paradoxo do «Eu» segundo S. Paulo e socratismo cristão de St.ª Teresa de Jesus – Do apostolado «cristomórfico» ao diálogo com o Amor divino”, in: Revista de espiritualidade, XVIII, nº 71, Julho/ Set. (2010), pp. 165-240. Note-se que o silêncio não equivale apenas à deslocação do discurso – para uma liturgia celeste –, ao seu adiamento, ao seu carácter remoto… Cf. Dom André GOZIER, Célébration de l’Ineffable, réflexions sur la dénomination de Dieu : le Nom au-dessus de tout nom, Magny-lesHameaux, Soceval Éd., 2006. 205 Ainda Charles MALAMOUD, Féminité de la parole, ed. cit., p. 109: «Ce jeu de la parole et du silence dans l’Inde (…) Il nous suggère du moins une utopie: l’idée d’un silence qui ne soit ni un symptôme, ni un obstacle à lever, ni un moyen de défense ou d’intimidation, un silence qui soit léger, ou grave sans être lourd, un silence pour faire respirer la parole. » Nada, pois, de silêncios aparentemente definitivos, como se costuma imaginar da morte…; antes o entremeio da canção variegada da Vida, assim numa melodia sobre os abismos do silêncio, também ele diferencial, como se faz notar pela simplicidade do seu reconhecimento. Cf. Graham WARD, “In the daylight forever?: language and silence”, in: Oliver DAVIES e Denys TURNER, Silence and the Word – Negative Theology and Incarnation, Cambridge, Univ. Pr., 2002, pp. 159-184.

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vibração silenciosa mínima da palavra, da sílaba, ou até da letra…, assim como música do silêncio.206 É neste plano de intimidade minimal, de quietude simples e assim infantil que tem pleno cabimento o testemunho místico daquele não sei quê da linguagem do mistério das coisas que assim fica referido, como diz S. João da Cruz.207 Também um querer dizer esse indizível, na caridade da palavra oportuna, fora da ascese de uma teologia negativa, retornando assim ao dever de dizer, a uma sonoridade reveladora em última análise do silêncio, como se fosse o perfeito ajuste musical para dar conta da exata pausa, fazendo desse tempo de silêncio um diferencial do espírito, de acordo com a sua espontaneidade de “vento que sopra onde, ou quando, quer”.208 206

Trata-se do puro laleîn, ou da lenga-lenga… ou de um qualquer outro ritmo vital que casa as pausas com os períodos sonoros, os momentos passivos com os activos, ou ainda as mudas suspensões admirativas com o cântico de louvor extasiado… Porém, tanto o dom desse “falar em línguas” (glossolalía), quanto outro dom “silencioso” da diagnose interior dos corações, (e, sobretudo, para o “fruto” ou beatitude da paz…) apontam para a característica intermitente desse silêncio intervalar. Cf. Alexis RIAUD, L’action du Saint-Esprit dans nos âmes, Paris, Les Fraternités du Saint-Esprit/ Diffusion Téqui, 1969, pp. 56 e segs. e pp. 100 e segs. ; René LAURENTIN, Trois charismes – Discernement, Guérison – Don de science, Paris, Pneumathèque, 1982, pp. 11 e segs. Vide n. seguinte. 207 Cf. aquele linguajar místico como o balbuciar das crianças, em S. JOÃO DA CRUZ, Cánt.(B), c. 7, 9: “…pero el alma que lo experimenta, como ve que se le queda por entender aquello de que altamente siente, llámalo un no sé qué; porque así como no se entiende, así tampoco se sabe decir, aunque (…) se sabe sentir. Por eso dice que le quedan las criaturas balbuciendo, porque no lo acaban de dar a entender; que eso quiere decir balbucir, que es el hablar de los niños, que es no acertar a decir y dar a entender qué hay que decir.” Vide Juan ROF CARBALLO, Entre el Silencio y la Palabra, Madrid, Espasa Calpe, 1990, pp. 39 e segs.; cf. p. 39: “Entre el silencio y la palabra está el balbuceo.” Cf. supra n. 38 e, sobre o no sé qué, supra n. 137. 208 Cf. Jo 3, 8: ‘tò pneûma hópou thélei pneî kaì tèn phonèn autoû akoúeis…’ Vide Oliver DAVIES, “Soundings: towards a theological poetics of silence”, in: Oliver DAVIES e Denys TURNER, Silence and the Word – Negative Theology and Incarnation, ed. cit., pp. 201-222, onde se distingue entre os silêncios “objectivo” em russo: tishina, (silêncio da tundra ou da floresta…), e “subjectivo” ou de alguém que se cala, molchanie, em paralelo com as valências semânticas do hebr. hârês’ (para o silêncio de Deus) e dâman (para o ficar silenciado ou sossegado – emudecido – do povo temente a Deus). Apesar de permuta possível entre tais maneiras de dizer a “tranquillitas” (hesykhía), ou essa outra voz em surdina (como

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Não o efêmero de um silêncio tão só intervalar e infecundo, nem a eterna mudez de Deus numa idealização inestética, tanto do cântico sem fim, quanto dessa absolvição na mudez mística de tudo, mas esse tempo silencioso e diferenciador, como pausa vital, seja como métrica do batimento cardíaco e do ritmo respiratório, que inventa o balanço do pensar e dessa pulsação consciente209, seja como simples medida do Amor divino assim tocado nesse recolhimento do mínimo gesto.210 até um divino silêncio: sigé), depois manifesta nos oxímoros do Pseudo-Dionísio, certo é que, nesta perspectiva, tendo presente Gilles Deleuze (Différence et Répétition) e Jacques Derrida, se valoriza o sentido interpessoal do silêncio, na dimensão re-velacional também já saliente na Offenbarung em Heidegger. A intermitência do Espírito traz ao silêncio esta rítmica teológica e poética. 209 A questão do tempo aparece aqui indiciada pelo ritmo vital que lhe dá consistência. A oração tem este “natural” critério dos momentos da vida, estados de consciência diurnos ou nocturnos (lembre-se o “eu durmo, mas o meu coração vigia”…, cf. Cant 5, 2), fases de actividade ou passividade, sobretudo frequência cardíaca, respiratória, etc. Ora-se a vida, e a liturgia é, outrossim, a poética que orienta à repetição da vida. O silêncio aparece nestas pausas vitais, como fases da ondulação intermitente do todo da Vida. Cf. nossas reflexões sobre a repetição in: Carlos H. do C. SILVA, “Repetir a Comunhão ou contemplar num instante unitivo – A Eucaristia na prática espiritual e segundo a vivência dos místicos”, in: Eucaristia e Misericórdia, (VIII Semana de Espiritualidade sobre a Misericórdia de Deus2005), Fátima, Ed. Marianos da Imaculada Conceição, 2006, pp. 63-202. 210 Cf. o amor ‘no mínimo gesto’: St.ª TERESA DO MENINO JESUS, Ms (=Manuscrits autobiographiques) B 4rº: «… de ne laisser échapper aucun petit sacrifice, aucun regard (…) de profiter de toutes les plus petites choses et de les faire par amour» (in: Oeuvres complètes, ed. N.E.C., Paris, Cerf/ Desclée, 1992, p. 304). Trata-se ainda de uma mutação de regime atencional (também de noticia amorosa) que se expressa, como defendemos, numa mudança de escala da experiência espiritual: cf. Carlos H. do C. SILVA, “O miniatural em Santa Teresa do Menino Jesus – Da mudança de escala na via de santidade”, in: Didaskalia, XXXII – 2, (2002), pp. 147-243. Seria ainda de estudar, além do “resíduo” de obscuridade do “período de densas trevas” que Thérèse de Lisieux passou (que analisámos naquela especificidade desse resíduo nocturno, cf. Carlos H. do C. SILVA, “Tempo de densas trevas – Questão da «noite escura» em Thérèse de Lisieux ou de «sensível obscurecimento» da Fé?”, in: Revista de Espiritualidade, XIV, nºs 54-56: «A Ciência do Amor» (Actas do Congresso, Fátima: 28/30 Out.º 2005), Abril/ Dez., (2006), pp. 345-416), os silêncios aparentemente mínimos que marcam estes gestos construtivos ou estes espaços de tempo da escuta desta alma de abandono. Vide M. VILLER e P. POURRAT, art. «Abandon», in: DS, t. I, cols. 2-49 [sobretudo: Pierre POURRAT, «Le faux abandon», cols. 25-49]; e vide infra ns. 227 e 281.

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Ora, é interessante que na história da mística advenham testemunhos de escalas diferenciadas de graus de amor, de aprofundamentos da humildade, da pobreza, ainda da obediência, mas que raramente se inventariem os degraus dessa outra densificação de silêncios.211 Para mais, se a notícia que se sobrevaloriza pedagogicamente é a da palavra, dos estados de compreensão, ainda da conversão da memória e da imaginação até se atingirem as disposições para as altas estações contemplativas, tal se marca no itinerário da mente para Deus, ou de um quase universal caminho de perfeição212, o que, no caso “negativo” do silêncio teria de ser

Há um predomínio de graus dialécticos “positivos”, ainda que de estratégias ascéticas, e tem sido pouco saliente o valor de privação, de suspensão… mais difícil de caracterizar. Donde que se fique, habitualmente, pelos três graus ou modos do silêncio, imitando-se a estrutura dos três graus da humildade, da obediência, etc. patentes, nomeadamente na tradição inaciana. Donde o paralelo entre o silêncio exterior, interior e superior ou místico, com, por exemplo, a humildade extrínseca, a interior e enfim o seu terceiro grau. Cf. St.º IGNACIO DE LOYOLA, Ejercicios espir., 2ª Sem., §§164 e segs., sobretudo § 167: “La 3ª es humildad perfectíssima, es a saber, quando incluyendo la primera y segunda, siendo igual alabanza y gloria de la divina majestad, por imitar y parescer más actualmente a Christo nuestro Señor, quiero y elijo más pobreza con Christo pobre que riqueza, opprobios con Christo lleno delloos que honores, y desear más de ser estimado por vano y loco por Christo, que primero fue tenido por tal, que por sabio ni prudente en este mundo.” Eis, analogamente, o silêncio de desprezo assumido, de completo despojamento, ou até de abjecção (como disse Charles de Foucauld) … Vide ainda A. RODRÍGUEZ, Prat. De la Perfección Cristiana, 2ª parte, 2, caps. 4-6… 212 São os positivos degraus da caminhada em ordem à perfeição. Passo da meditatio, ainda discursiva, à contemplatio, já como estado de quietude e infuso… Cf. S. BOAVENTURA, Itinerarium mentis in Deum, c. VI, 7: “iam pervenit ad quandam rem perfectam, ut cum Deo ad perfectionem suarum illuminationem in sexto gradu quasi in sexta die perveniat; nec aliquid iam amplius restet nisi dies requiei, in qua per mentis excessum requiescat humanae mentis perspicacitas ab omni opere, quod patrarat (Gn 2,2).” (in: Opera omnia, Florença, ed. Quaracchi, vol. V, p. 302). Por outro lado, confessa St.ª TERESA DE JESUS, Rel. 1, 1: “…Pocas veces son las que estando en oración puedo tener discurso de entendimiento, porque luego comienza a recogerse el alma y estar en quietud u arrobamiento, de tal manera que ninguna cosa puedo usar de las potencias (…)” (em Out./Dez. 1560; = Cuentas de conciencia, 1ª)… 211

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recuperado era a vertente de descida, de docilidade e abnegação, até de “infância espiritual”.213 Um dos lugares místicos mais típicos destes declives deste “descer” sem o qual não há real “subida”, é o das noites escuras, que aqui também se poderiam traduzir nas experiências de deserto e também de quietude silenciosa, onde o próprio Deus deixa de responder, deixa de estar dizivelmente presente.214 É nesses espaços de ausência, ou de presença assim ausente, silenciada ou emudecida, como lembrávamos com S. João da Cruz, do Verbo crucificado, que se aprende um despojamento maior ativo e passivo, quer dos sentidos, quer da alma no seu todo. Porém, à parte esta descida ao ‘vale’, bem simbólica da antiga catábase infernal e da empedernida mudez do reino das sombras, de um subconsciente ainda literalmente infantil,215 há na paradoxal visão mística e espectral desta densidade experiencial um caminho também ascendente em que o mudo e o tácito, o segredo do arcano e o calar Neste caso, o “caminho” anatréptico ou “que retorna sobre os seus próprios passos”, que absolve em suspensões e silêncios o próprio caminho, antecipando o termo nesse silencioso recolhimento “inicial”. Daí, ainda o retorno à in-fância, no etimológico sentido, dessa condição “que ainda não fala”. Sobre o simbolismo da infância cf. outras referências em nossos estudos: Carlos H. do C. SILVA, “A criança como mensagem de renascimento espiritual do homem – O sentido do tempo incoativo” (Conf. nas «Jornadas Diocesanas da Criança», Lisboa, 26 Out., 1979), Itinerarium, XXXIV, 130-131 (1988), pp. 127-149; Id., “Renascer para uma Vida Nova ou do tempo do Lógos”, in: Rev. Práxis, 1, nº 2, (2004), pp. 79-142. 214 Sobre as noites cf. infra n. 236. Lembre-se ainda na poesia heideggeriana de Nacht e Näherin, “a noite que lembra a tecedeira (de tal enredo ou proximidade…): “Sie ist die Näherin, weil sie nur mit der Nähe arbeitet.” (cf. M. HEIDEGGER, »Zur Erörterung der Gelassenheit – Aus einem Feldweggespräch über das Denken«, in: Id. Gelassenheit, Pfullingen, G. Neske, 19593, p. 71; sobre o deserto cf. supra ns. 55, 57 e 138 e vide infra n. 238; ainda sobre os silêncios: Bernard DAUENHAUER, Silence – The Phenomena and its Ontological Significance, Bloomington, Indiana Univ. Pr., 1980, a propósito da estética do silêncio. 215 Quanto ao simbolismo dessa “viagem” às profundidades/ alturas do além do visível/ dizível, cf. Claude KAPPLER et alii,Apocalypses et voyages dans l’au-delà, Paris, Cerf, 1987. Sobre a valência poético-simbólica do silêncio, cf. ainda David W. ATKINSON, “Fulness and Silence: Poetry and Sacred Word”, in: E. D. BLODGETT e H. G. COWARD, Silence, the Word and the Sacred, ed. cit., pp. 189204. 213

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votivo, ainda o dom de tal quietude e a própria palavra silenciosa constituem graus possíveis de uma realização do perfeito e santo sossego.216 A paz beatífica virá porventura com a mutação da condição encarnacional desta vida biopsíquica num post-mortem, mas o êxtase silencioso que em si condensa todos os graus de simplificação e quietude cristaliza esse tempo de pausa tanto quanto baste para a recepção da graça do momento.217 Normalmente o discurso da mística encontra-se defasado desse tempo experiencial, pois tal relato torna-se pretensamente o de uma generalidade retórica que bem se poderia considerar o da improprietas, em nítido contraste com o que se reconhece no valor de uso de tal reserva, dir-se-ia socrática, dessa nova linguagem sempre exigida para diferente experiência, como analisada no vocabulário que recorta o variável silêncio vivo em S. João da Cruz.218 Em especial no Cântico espiritual,sobretudo na perspectiva dramática dos esponsais místicos, e naquela linguagem amorosa feita também de pausas e desencontros, de perguntas sem resposta, ou ecos de um silêncio sem presença sensível, reconhece-se a retórica da mística como varietas mais próxima do que este poeta chega a dizer como a “música calada” ou a “solidão sonora”.219 Vide Esquema I (infra), desde esse não (poder) falar (mudez, segredo…) até à ausência de qualquer discursividade e, então, perfeito silêncio, passando pelo voto de silêncio e a arte da pausa, etc. Vide também supra n. 93. 217 Trata-se do instante indizível, também até como retórico kairós: cf. levantamento histórico da noção por Monique TRÉDÉ, Kairos, l’à-propos et l’occasion (Le mot et la notion, d’Homère à la fin du IVe siècle avant J.-C.), Paris, Klincksieck, 1992, pp. 247 e segs.: «La définition du kairos dans l’art oratoire»; vide ainda: E. MOUTSOPOULOS, Variations sur le thème du kairos de Socrate à Denys, Paris, Vrin, 2002, pp. 166 e segs.: «Le kairos d’incarnation de la parole d’après Grégoire de Nysse» … 218 Cf. Dr. Jacques VIGNE, La mystique du silence, ed. cit., pp. 338 e segs. : «Jean de la Croix : à l’écoute du chant serein des Sirènes»; e vide outras referências em nosso estudo : Carlos H. do C. SILVA, “«Esconde-te, ó Amado» (C (B) 19, 3) – Do conhecimento místico pela sombra em S. João da Cruz”, in: Revista de Espiritualidade, XV, nº 60, Out./ Dez. (2007), pp. 245-316. 219 Cf. S. JOÃO DA CRUZ, Cánt. (B), c. 14 (vide n. seguinte). Cf. Nicky LOSSEFF, “Silent Music and the Eternal Silence”, in: N. LOSSEFF e Jenny DOCTOR, (eds.), Silence, Music, Silent Music, ed. cit., pp. 205-222. Ainda Vladimir 216

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No silêncio ou sossego da noite advém a notícia da conveniência universal da Sabedoria divina que assim se diz em todas as criaturas, diferenciadamente: “a alma descobre uma admirável conveniência e disposição da sabedoria de Deus na diversidade de todas as suas criaturas e obras; todas e cada uma delas dotadas com certa relação a Deus, em que cada uma de sua maneira dê voz do que nela é Deus; e isto é para a alma uma harmonia de música subidíssima que sobrepuja todos os saraus e melodias do mundo. E chama-lhe música calada, porque, (…) é inteligência sossegada e quieta sem ruído de vozes; e assim se goza nela a suavidade da música e a quietude do silêncio.”220

Por outro lado, se para as faculdades sensíveis é esta linguagem a do silêncio, já para as faculdades ou até os sentidos interiores esse mesmo sossego é bem soante: “A solidão sonora./ O que é quase o mesmo que a música calada, porque ainda que aquela música seja calada para os sentidos e potências naturais, é solidão bem sonora para as potências espirituais; porque estando elas sós e vazias de todas as formas e apreensões naturais, podem receber bem sonoramente no espírito o som espiritual da excelência de Deus (…).”221 JANKÉLÉVITCH, La Musique et l’Ineffable, ed. cit., pp. 161 e segs. : «Musique et silence». 220 Cf. S. JOÃO DA CRUZ, Cánt (B), 14-15, 25: “…una admirable conveniencia y disposición de la Sabiduría en las diferencias de todas sus criaturas y obras, todas ellas y cada una dellas dotadas con cierta respondencia a Dios, en que cada una en su manera dé su voz de lo que en ella es Dios; de suerte que le parece una armonía de música subidíssima, que sobrepuja todos saraos y melodías del mundo. Y llama a esta música callada, porque (como habemos dicho) es inteligência sosegada y quieta, sin ruido de vocês, y así se goza en ella la suavidad de la música y la quietud del silencio; y así dice que su Amado es esta música callada, porque en él se conoce y gusta esta armonía de música espiritual.” (in: ed. cit., p. 632; trad. port. no corpo do texto do Carmelo de S. José, em Fátima, op. cit., pp. 667-668). 221 Cf. Id., Cánt (B), 14-15, 26: “…lasoledad sonora./ Lo cual es casi lo mismo que la música callada, porque, aunque aquella música es callada cuanto a los sentidos y potencias naturales, es soledad muy sonora para las potencias espirituales, porque,

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De fato, é na linhagem afetiva, e sobretudo do amor esponsal, seja da Brautmystik ou Minnemystik, que, recuperando o ritmo do solilóquio agostiniano, se faz do silêncio o respiro do enamoramento espiritual, o jogo de escondidas, não só óptico, mas acústico recortado pelos tempos de espera e os êxtases de um encontro breve.222 Aliás o carácter lúdico, como símbolo de todo o real e dessa dança divina de um tal Amor sem porquê, faz sentir ainda a quietude momentânea tal esse efêmero acerto de um puro dom.223 Uma paz sem justificação, uma serenidade possível, ainda que na sombra de um rumor, de uma outra pulsação de inquietude temporal. Mas o instante que dança ou o essa pauta de silêncio stando ellas solas y vacías de todas las formas y aprehensiones naturales, pueden recibir bien el sentido espiritual sonorísimamente en el espíritu de la excelencia de Dios en sí y en sus criaturas, según aquello que dijimos arriba haber visto San Juan en espíritu en el Apocalipsis, conviene a saber: Voz de muchos citaredos que citarizaban en sus cítaras (14, 2); lo cual fue en espíritu y no de cítaras materiales, sino cierto conocimiento de las alabanzas de los bienaventurados que cada uno en su manera de gloria hace a Dios continuamente; lo cual es como música (…).” (in: ed. cit., pp. 632-633; trad. do extracto no corpo de texto, da tradução do Carmelo de S. José, de Fátima, op. cit., pp. 668-669, com algumas correcções da trad. de P. Agostinho dos Reis Leal, S. J. da Cr., Obras Completas, Convento de Avessadas/ Marco de Canaveses, Ed. Carmelo, 2005, pp. 614-615, também, por seu turno, por nós corrigida.) 222 Cf. o compasso do êxtase de Óstia: S. AGOSTINHO, Conf. IX, 10, 24: “…toto ictu cordis”, seguido do declínio ao “strepitum oris nostri…”; ainda o ritmo do Tarde vos amei… de Conf. X, 27, 38. Também a consciência que tem St.º Agostinho do efémero do próprio êxtase que se dá in ictu…Vide Jaroslav PELIKAN, The Mystery of Continuity – Time and History, Memory and Eternity in the Thought of Saint Augustine, Charlottesville, Univ. Pr. of Virginia, 1986. 223 O símbolo é o do tempo (khrónos) como o de tal “bailado” entre o que se ouve e o que se entende em silêncio, o que se escuta além do som e o que se pausa de ressonância… Seja no eco místico da poética, ainda de um Teixeira de PASCOAES, O Bailado, (1921), Lisboa, Assírio & Alvim, 1987, sobretudo pp. 79 e segs.: «As Horas»… (vide nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Da regressão intemporal ou do Bailado poético-místico no Saudosismo de Teixeira de Pascoaes”, (Comun. ao «Colóquio sobre Teixeira de Pascoaes», org. Fac. de Teologia do Centr. Reg. do Porto da U.C.P., 6-8 Jan. 1995), in: Nova Renascença, XVII, nº 64-66, Inv.-Verão (1997), pp. 151-183), seja naquela ancestral perspectiva da dança (sânscrito lilâ), como alternância cósmica e do ritmo universal: cf. Heinrich ZIMMER, Mythes et symboles dans l’art et la civilisation de l’Inde, trad. do alem., Paris, Payot, 1951, pp. 120 e segs.: «La «Forme fondamentale» et les «Manifestations du jeu»».

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incompleto, como a Vida, faz-se caminho no intervalo dos passos… Depois, como se diz, no Sâmkhya-kârikâ, a Vida que assim dança retira-se do palco e silencioso, solitário, inaparente Purusha deixa de se poder ver ali em ilusão.224 De qualquer modo, o apreço do silêncio como linguagem dos místicos procede ao longo da modernidade e adensa-se em referência a essa meditação do momento presente, sem articulação linguística, sem outra verbalidade que não seja a da sua substantiva hora.225 E é ainda neste comentário, como que eterno do tempo, que se traz à história sacra uma outra escuta do mistério, tal aconteceu com a inspiração que teve Maria Amada de Jesus provocada pela Vida de Jesus de Renan a que responde com Jesus Cristo é o Filho de Deus.226 Neste eco que rompe o comum associacionismo mental por um registo de escuta, esta mística, de quem Edith Stein salientou o realismo espiritual227, reflete vários graus de silêncio que vêm a constituir um opúsculo original sobre Os Doze Graus do silêncio.228 Cf. Sâmkhya-Kârikâ, § 59: ‘rangasya darshayittvâ nivartate nartaki yathâ nrtyât/ purusasya tathâtmânam prakâ shya vinivartate prakrtih//’, [trad.: «Como uma dançarina que suspende a dança, após ter-se mostrado em cena, assim a Prakrti, ou «Natureza», se suspende após se haver manifesto a Purusha, ou «Espírito».”], vide Anne-Marie ESNOUL, (ed. e trad.), Les strophes de Sâmkhya avec le commentaire de Gaudapâda, Paris, Belles Lettres, 1964, p. 69. 225 Cf. supra n. 177 ; e vide Denis PERRIN, Le flux et l’instant – Wittgenstein aux prises avec le mythe du présent, Paris, Vrin, 2007, pp. 113 e segs. 226 Cf. Soeur MARIE-AIMÉE DE JÉSUS, Jésus-Christ est le Fils de Dieu, 6 vols., (reed. in 2 vols., Paris, Téqui, 2003. Não sendo aqui ocasião de fazer uma resenha biográfica e bibliográfica sobre esta Carmelita, sem cultura humana mas que acabou por inspiradamente redigir uma tão volumosa obra – em contestação ao redutor naturalismo da Vie de Jésus de Renan – não se pode deixar de chamar a atenção para o significativo contraste em quem tanto e tão longamente teve de falar, afirmando Jésus-Christ est le fils de Dieu – e, afinal, de per si manteve a pureza e simplicidade da alma de silêncio, a justa in-fância… como salientará no seu pequeno opúsculo sobre “Os doze graus do silêncio». 227 Cf. Edith STEIN, »Ein auserwähltes Gefäẞ der göttlichen Weisheit. Sr. MarieAimée de Jésus aus dem Karmel der Avenue de Saxe in Paris, 1839-1874« (1939), in: Id., Gesamtausgabe der Werke, t. XI: „Verborgenes Leben“, Freiburg, De Mass & Walen Druten/ Herder, 1988; (reed. e trad. «The Collected Works of Edith Stein – Sister Teresa Benedicta of the Cross…», vol. IV: The Hidden Life: Hagiographic essays, Meditations, Spiritual Texts, Washington, Inst. of Carmelite Studies, 1992); 224

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2. Exemplo de meditação gradual do silêncio místico: “La vie intérieure pourrait consister dans ce seul mot: silence! ” (MARIE-AIMÉE DE JÉSUS, Les Douze Degrés du silence, Orbey/ Paris, Arfuyen, 2005, p. 53) “Ende dit es in dat wiselose Wesen da talle innighe gheeste boven alle dinc hebben vercoren. Dit es die doncker Stille daer alle minnende in sijn verloren.” (J. van RUUSBROEC, Die gheestelike Brulocht, in : «Werken», ed. J. B. Poukens, S.J. e L. Reypens, S.J., vol. I, p. 249 ; trad. : “Eis a Essência sem modo que todos os espíritos interiores procuram acima de todas as coisas. É o obscuro silêncio em que todos os amantes se perdem.”)

Vale a pena fazer aqui mais amplo comentário a este pequeno texto – Les Douze Degrés du silence – onde, por excelência, se pode

na edição crítica e mais recente da Gesamtausgabe, corresponde ao t. 19: Geistliche Texte I, Freiburg/ Basel/ Wien, Herder V., 2007. 228 In: Soeur MARIE-AIMÉE DE JÉSUS, religieuse carmélite du monastère carmélite de sainte Thérèse de l’Avenue de Saxe à Paris morte en odeur de sainteté le 4 mai 1874 (d’après ses notes), com «Introduction» por Mons. Chollet, bispo de Verdun, Paris, Carmel de Paris (et Namur), 1913, 2 ts, t. I, «Appendice» nº 3, pp. 469-474. Remete-se para a reedição em opúsculos editados pelo Carmelo de Paris (Av. Saxe, hoje em Créteil (Seine), reproduzidos na edição: MARIE-AIMÉE DE JÉSUS, Les Douze Degrés du silence et autres opuscules, Préface d’Édith Stein, Orbey, Arfuyen, 2005, pp. 51-72, cuja paginação aqui se seguirá. O texto – aqui como prefácio – de Edith STEIN (aliás, a canonizada, St.ª TERESIA BENEDICTA A CRUCE) –, redigido em 1939, cf. supra n. anterior, reflecte ainda uma profunda afinidade da carmelita filósofa de língua alemã com esses “caminhos do silêncio” dessa alma de interioridade: Dorothée Quoniam, que tomou o nome o também o hábito de carmelita sob o nome de Ir.ª Maria Amada (e que viveu a breve vida de 35 anos: 14/01/1839 - † 4/05/1874, apenas 15 de clausura). A trad. alemã do texto dos “Doze Graus do Silêncio” (Die zwölf Grade des Schweigens, aparecia em Dülmen i. W., Laumann V., em 1937. Como se pode reler no timbre de várias das Werke reunidas de Edith Stein, justamente sob a epígrafe: “Wege zur inneren Stille” (ed. München, 1987…), em que também se insere este seu estudo, há neste «encontro espiritual» uma sintomática afinidade interior de atitude e busca do silêncio de Deus... Cf. ainda a selecção de textos de Vincent AUCANTE, (ed.), E.S., Chemins vers le silence intérieur, Paris, Parole et Silence, 2006.

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testemunhar a experiência da linguagem do silêncio na mística.229 A intuição espiritual básica é da simplicidade nesse recorte de pausa, nessa interioridade do silêncio.230 Maria Amada de Jesus di-lo referindo a preparação dos santos nessa escuta da perfeição, como também perfeito silêncio.231 Nunca o de se forçarem a calar-se ou, menos ainda, o de mandarem calar alguém, outrossim o da escuta orientada para o Nome único, em última instância, sem outra divina ressonância que não seja a do Verbo, palavra única de Deus.232 E tal palavra silenciosa em seu infindo mistério acaba por ser o silêncio que translada as muitas vozes nesse solitário Jesus, que assim calava em si, mesmo quando pregava, quando instruía e se recolhia.233

229

Este pequeno texto resultou da experiência prática que a Ir.ª Maria Amada fez na sua vida de clausura e, na circunstância, como resposta a uma outra irmã carmelita que a questionou sobre o longo tempo da sua permanência na cela durante o tempo de silêncio a meio do dia… “o que estaria a fazer?” – “a escutar o silêncio”. Edith STEIN, op. cit., pp. 82-83, que assim evoca a origem deste opúsculo da Ir.ª Maria Amada, considera-o um texto “extraordinariamente profundo”. 230 MARIE-AIMÉE DE JÉSUS, DDS (=Les Douze Degrés du silence, doravante assim abreviado e referido pela ed. cit.), p. 53: «La vie intérieure pourrait consister dans ce seul mot : silence !» 231 Cf. DDS, p. 53: «C’est le silence qui prépare les saints, c’est lui qui les commence, qui les continue, qui les achève». Note-se a consciência pedagógica por via destas palavras que assim fazem ou indicam, desde logo, estádios possíveis na maturação desse indizível interior que começa por ser típico das almas recolhidas, que as acompanha ao longo de uma vida e que há-de uni-las com o próprio silêncio como quietude ou paz divina. 232 É perfeita esta redução espiritual das muitas palavras ao Verbo único de Deus tal cristalinamente o diz Maria Amada de Jesus: «Dieu, qui est éternel, ne dit qu’une seule parole, c’est le Verbe.» (DDS, p. 53). Compare-se ainda com a reflexão de Urs Von Balthasar, na síntese de Fr. Raymond GAWRONSKI, S.J., Word and Silence, Hans Urs von Balthasar and the Spiritual Encounter between East and West, Edinburgh, T & T Clark, 1995, pp. 77 e segs.: «Einmaligkeit: The Unique Word Spoken from the Fullness of the Father», especialmente pp. 101 e segs.: «The Silence of God». 233 De facto, como a Palavra audível, é em Jesus que o Verbo tudo diz refluindo da palavra ao ser, do propósito universalmente Criador à silenciosa Redenção de cada mínima expressão assim apaziguada n’Ele: «De même, il serait à désirer que toutes nos paroles expriment Jésus directement ou indirectement.” (DDS, p. 53)

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O Mestre da Verdade234 é também o Senhor do silêncio que se desprende da sua Palavra, em quietude. E, apesar de a tradição melhor ter sabido meditar esse reflexo mudo ‘n’Aquela que tudo guardava em seu coração’, na figura mariana como personificação desse caminho espiritual e da perfeita escuta235, por outro lado também Jesus calava exteriormente, indicando assim essa transcendência da Presença profunda.236 O primeiro grau vem referido como «um falar pouco às criaturas e muito com Deus», operando-se assim essa atenção à presença interior, seja da palavra evangélica, seja sobretudo do livro vivo dos outros, cuja intimidade, cujo silêncio interior os transcende,237 como se houvesse de se ensaiar esta escuta divina Como se diria no especial eco de Jo 14, 6…ou de St.º AGOSTINHO, Conf. VII, 19, 25… e na referência à Persona Veritatis…Vide ainda Id., De civ. Dei, XI, 18…: «pondus meum amor meus»…Cf. A. MAXSEIN, “«Philosophia cordis» bei Augustinus”,in: Augustinus Magister, I, pp. 357-371… 235 Cf. Lc 2, 19. 51. 236 VideMt 26, 63: Jesus continuava calado… A Ir.ª Marie-Aimée de Jésus refere este contexto : «…dit le texte, «mais Jésus ne répondit rien,» afin de nous apprendre à ne pas satisfaire les passions grandes ou petites de ceux qui nous entourent.» (in : Jésus-Christ est le Fils de Dieu, ed. cit., t. I, vol. VI, p. 131) 237 Cf. DDS, p. 55 : «Tel est le premier pas, mais indispensable, dans les voies solitaires du silence : (…) » - e permita-se aqui salientar a convergência especial com toda a tradição da Cartuxa e de muitas admonições monásticas de tal pedagogia do silêncio interior à própria palavra, como aqui será o caso. Cf., entre outros, DIONÍSIO, o CARTUXO, De vita et fine solitarii, (c. 1425) (in: vol. 38 das Opera, ed. Cart, de Montreuil-sur-Mer; reed. Nathalie NABERT, (ed.), DENYS LE CHARTREUX, La vie et fin du solitaire, trad. Michel Lemoine et Éloge de la vie en solitude, trad. par un Chartreux, Paris, Beauchesne, 2004, pp. 70 e segs. : «Le silence et la forme de la parole» ; e, vide, sobretudo, o modelo antes deixado por GUILHERME DE SAINT-THIERRY, na Epistola ad frates de Monte-Dei, também conhecida como «Tratado da vida solitária» (cf. M.-M. DAVY, trad e ed., Un Traité de la vie solitaire – Lettre aux frères du Mont-Dieu de Guillaume de Saint-Thierry, Paris, Vrin, 1946, pp. 82 e segs.: «L’Ascèse» …). Mas prossegue Marie-Aimée de Jésus, ainda caracterizando este primeiro grau : «C’est ici que l’âme étudie et approfondit cette vertu, dans l’esprit de l’Évangile, dans l’esprit de la Règle qu’elle a embrassée, respectant les lieux consacrés, les personnes, et surtout cette langue, où se repose si souvent le Verbe ou la parole du Père, le Verbe fait chair !» Encarnação da Palavra que se traduz, pois, num «silence au monde, silence aux nouvelles…» num registo dessa “outra linguagem” aqui ainda referida como «silence avec les âmes les plus justes». (Ibid.) 234

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mesmo através do calar fundo da surpresa angélica da voz interpelante238, do aceno loquaz da vida nesse recolhimento dessa espessura do mistério. O segundo grau refere-se ao silêncio no trabalho239 e nos movimentos, como um estado de observação que acompanha todo o fazer e induz a um mínimo de atividade no olhar, no ouvir e no falar.240 Recolhimento da voz interior ou interioridade em que a voz se pode encenar em dança e música expressiva, sem perder a sua essencial soledade, o silêncio do recolhimento.241 O terceiro é mais específico, tendo em conta uma dificuldade e um obstáculo tenaz na vida espiritual: é o silêncio da imaginação

«…la voix d’un Ange a troublé Marie…» (DDS, p. 55). Sobre esta consagração silenciosa, não do que se diz fazer, mas de toda a operação do humano viver, vide ainda outras referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Do valor espiritual do trabalho em S. Bento de Núrcia”, (Conferência, XV Centenário de S. Bento, Guimarães, 19/6/81), in: Revista de Guimarães, XCI, Jan./Dez. (1981), pp.284-339. 240 O silêncio invade a inteira presença própria, despojada já da veste “verborreica” comum: «Silence dans la démarche (…)» - o que lembraria o exercício análogo da marcha intencional no Zen e noutras formas de inteira atenção ao “espaço” e movimento-postura corporal (cf. referências em Samuel ROUVILLOIS, Corps et Sagesse, Philosophie de la liturgie, Paris, Fayard, 1995, pp. 128 et passim); por outro lado, «silence des yeux, des oreilles, de la voix…» sempre nesta paradigmática triplicidade estésica dita, muitas vezes, pelo “não ver, nem ouvir, nem falar” do mono num outro simbolismo, indicando-se aqui ainda a modéstia monástica do olhar e do cuidado com os sentidos. Analisámos não apenas este laconismo, mas o genético silêncio do logos na tradição também do pensar ocidental: Carlos H. do C. SILVA, “Ver, ouvir e entender… ou da originária mudez do logos filosófico – Tradição pré-socrática e destino do pensar”, in: Várs. Auts., Razão e Liberdade – Homenagem a Manuel José do Carmo Ferreira, Lisboa, Centro de Filosofia da Univ. de Lisboa/ Depart. de Filosofia da Fac. de Letras de Lisboa, 2010, vol. I, pp. 519-569. Para a Ir.ª Maria Amada de Jesus trata-se de silenciar “tout l’être extérieur, préparant l’âme à passer en Dieu” (DDS, p. 56). 241 Está aqui implícita uma rítmica que tal ascese implica (cf. ainda nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “A ascese na espiritualidade de S. Bento de Núrcia – Do valor rítmico da vida monástica segundo a Regula”, in: Didaskalia, X, (1980), pp.363-372), não apenas por supressão da agitação – “elle écarte tout ce qui pourrait la distraire; elle s’éloigne du bruit…” (DDS, p. 56), mas por tal “bailado” de permutação do recolhimento em silêncio e deste, naquele: «C’est le silence du recueillement, ou le recueillement dans le silence.» (Ibid.) 238 239

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muitas vezes designado de ascese das fantasias242, da verborreia interior, do obsessional da multiplicação de imagens.243 A imaginação tendo de ser serenada e repassada por este silêncio que antecipa a contemplação, também num quarto grau, de forma mais ampla, se refere o silêncio da memória que assim há-de ser purgada.244De fato, o passado inexistente, como o futuro, não deve 242

«Cette faculté est la première qui va frapper à la porte fermée du jardin de l’Époux » - assim adverte a Ir.ª Maria Amada de Jesus, denunciando as emoções extravagantes, as vagas impressões, os estados “sentimentais” ainda não purgados… (cf. DDS, p. 57) Se, porém, houver uma harmonização desses estados imaginários como «les beautés du ciel, les charmes de son Seigneur, les scènes du Calvaire (…)», então, a própria faculdade e a alma assim «restera dans le silence, elle la servante silencieuse de l’Amour divin» (Ibid.). Vide nº. seguinte. 243 Actualmente numa cultura em que predomina a tecnologia do áudio-visual talvez se perceba melhor ainda essa tutela da “instituição imaginária da sociedade” (cf. Cornelius CASTORIADIS, L’institution imaginaire de la socété, Paris, Seuil,1975, sobretudo pp. 303 e segs.), já que o que está em causa não é apenas a figuração a suposta “imagem que não fala”, mas, justamente, a retórica da imagem (até visual…) (cf., por exemplo, Groupe M ; Francis EDELINE, Jean-Marie KLINKENBERG, Philippe MINGUET, Traité du signe visuel – Pour une rhétorique de l’image, Paris, Seuil, 1992 ; ainda Louis MARIN, Des pouvoirs de l’image, Paris, Seuil, 1993…). Ora, na tradição espiritual tanto a prudência «iconoclasta», quanto a redução do sermo a uma contemplação não-discursiva sempre foram indicativos para uma outra ausência de linguagem (sonora) (cf. Louis MARIN, «Aux marges de la peinture – Voir la voix», in: L’Écrit du temps, nº 17 «Voir, dire», hiver (1988), pp. 612-72; também: Jean-Yves BOSSEUR, (dir.), Le sonore et le visuel: intersections musique/ arts plastiques aujourd’hui, Paris, Éd. Dis Voir, 1987… Raymond COURT, Le voir et la voix – Essai sur les voies esthétiques, Paris, Cerf, 1997). Por isso, bem se compreende a importância de calar a sedução do imaginário, embora se deva distinguir entre o associacionismo psíquico da imaginação (fantasista) habitual e a prática de uma imaginatio vera que abre para a contemplação imaginal (G. Bachelard; Gilbert Durand…): cf. referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “O Imaginário na Filosofia – Da imagem intermédia ao imaginário especulativo – ou do pensar por interposta «pessoa»”, in: Alberto Filipe ARAÚJO e Fernando Paulo BAPTISTA, (Coord.), Variações sobre o Imaginário, Domínios, Teorizações, Práticas hermenêuticas, Lisboa, Instituto Piaget, 2003, pp. 287-336. 244 Cf. DDS, p. 58: «Silence de la mémoire». Está aqui um ponto essencial de purificação interior pelo deliberado oblívio que liberta para a anamnese do essencial: o silêncio, como um “branco” do passado, terá de alastrar a toda a memória duracional e psicológica. Nisto sendo de lembrar a purificação da memória exposta da Subida del Monte Carmelo, (III, 2 e segs.; vide André BORD,. Mémoire et Espérance chez Jean de la Croix, Paris, Beauchesne, 1971, sobretudo

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refluir em imagens ainda perturbadoras da calma do presente e, se alguma coisa for de substituir à memória no seu habitual ruído, será a lembrança das misericórdias de Deus.245 Trata-se do reconhecimento silencioso desta gratidão em que em esquecimento de si próprio se recorda o continuado dom da Vida…246 Num quinto grau faz-se resumo de todas estas formas de grato silêncio face à reiterada conversação com as criaturas, numa distração ainda do essencial da entrada em si para descoberta da íntima presença, dir-se-ia na “cela interior”.247 Este grau é ainda de ascese, inclusive pelo amargo sabor em relação a tudo o que não é Deus, ou esse Deus em tudo, havendo ainda o ruído do mundo em de redor.248 pp. 119 e segs.)e também a destrinça agostiniana entre a recordação do passado e a reminiscência do Presente espiritual (vide estudo nosso e referências em: Carlos H. do C. SILVA, “A memória essencial segundo Santo Agostinho”, in: Várs. Auts., Os Longos Caminhos do Ser – Homenagem a Manuel Barbosa da Costa Freitas, org. Cassiano Reimão e Manuel Cândido Pimentel, Lisboa, Universidade Católica Ed., 2003, pp. 613-655). 245 Curiosamente, o “método” espiritual da Ir.ª Maria Amada aponta, não só para “esquecer” essa narrativa do passado, esse ruído temporal, mas justamente para «…saturer cette faculté du souvenir des miséricordes de Dieu…» (DDS, p. 58) Ao passar em silêncio a “eloquência” sempre pretérita da mente que memoriza (como diria J. KRISHNAMURTI, por exemplo em Freedom from the Known, London, Victor Gollancz, 1972, pp. 118 e segs.) está a abrir-se a possibilidade duma atenção, reconhecida pelas muitas, imensas, misericórdias de Deus: «C’est la reconnaissance dans le silence, c’est le silence de l’action de grâces.» (DDS, p. 58). 246 Não se deve esquecer que a Ir.ª Marie-Aimée de Jésus resumia a sua vida em “ser uma misericórdia do Senhor”… - aliás, como St.ª Teresa de Jesus, St.ª Teresa do Menino Jesus… 247 Saliente-se que o que dizemos como «cela interior», no eco evangélico (Mt 6, 6 : ‘eíselthe eis tò tameîon sou…) e ainda de St.ª CATARINA DE SIENA, apud B.to RAIMUNDO DE CÁPUA, Vita, I, c. 10 referindo a “pequena cela do seu coração”, corresponde ao que Marie-Aimée de Jésus refere como: «Alors cette âme doit se retirer doucement dans les plus intimes profondeurs de ce lieu caché, où repose la Majesté inaccessible du Saint des saints (…). » (DDS, p. 59) Lugar oculto, morada secreta… puro espaço de silêncio a que muitas almas místicas se referem seja Ruusbroec, Ângela de Foligno… até Élisabeth de la Trinité (Carta 123; in: Oeuvres, ed. cit., p. 409; trad. port. «Obras», p. 375) … 248 Cf. nº. anterior. Trata-se, por um lado, da própria “conversação” que as criaturas produzem e chegam a manter com aqueles que se disponham ou sejam dotados da capacidade de escutar essa linguagem. Neste sentido se dizia nas «Florinhas» de S. Francisco de Assis, como ele tinha de mandar calar as flores e os animais “que

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Num sexto grau, sublinha-se que a língua pode estar muda, os sentidos calmos, a imaginação e a memória, todas as criaturas caladas na solidão envolvente e, porém, resta o ruído no interior que deve ser cuidado.249 Até os afetos, desejos, o próprio zelo e os suspiros que murmuram o amor de Deus fazem por demais, estão desmedidamente presentes nesse ruído seu, que há de assim ser silenciado em puro amor.250 É o silêncio do amor perante a beleza, a bondade, a perfeita simplicidade divinas; silêncio já sem esforço, como nos graus

louvavam o Criador”, mas perturbavam a sua oração… Por outro lado, trata-se do ruído da natureza em si mesma e não ordenada a Deus, constituindo a «humiliation qui a fait gémir les saints!», como faz notar Marie-Aimée de Jésus. (DDS, p. 59). 249 Chama-lhe Marie-Aimée de Jésus o «silence du cœur» (cf. supra n. 6), aprofundando este último andamento de um silenciar que abisma na calma maior de Deus… «Si la langue est muette, si les sens sont dans le calme, si l’imagination, la mémoire, les créatures se taisent et font la solitude, sinon autour, du moins dans l’intime de cette âme d’épouse, le cœur ne fera que peu de bruit. » (DDS, p. 60) Note-se, por um lado, o carácter de solidão ontológica desse ser contido ou sem vibração expressiva, o que não se confunde com qualquer isolamento doentio e negativo; por outro lado, o timbre amável desse repouso no Amado, numa linguagem que se silencia nessa pura intimidade do «Cântico dos cânticos», que, aliás, a Ir.ª Maria Amada chegou a comentar, mas cujo texto destruiu por prudência de má interpretação de tal íntimo convívio com o Senhor… Mais importa ‘ser em silêncio, do que falar sem ser’ (St.º Ireneu) e, de facto, a atenção às coisas verifica o primado desse existir sem sequer “haver quem pense nisso” (cf. Alberto CAEIRO, «Guardador de rebanhos», v: “O único mistério é haver quem pense no mistério.” (in: F. PESSOA, Obra Poética, ed. cit., p. 207). 250 Cf. DDS, p. 60: «Silence des affections, des antipathies, silence des désirs dans ce qu’ils ont de trop ardent, silence du zèle dans ce qu’il a d’indiscret ; silence de la ferveur dans ce qu’elle a d’exagéré ; silence jusque dans les soupirs !...» Mons. CHOLLET, «Préface» a Sœur MARIE-AIMÉE DE JÉSUS, Jésus-Christ est le Fils de Dieu, ed. cit., pp. XIX, salienta esta moderação ou esta neutralização dos extremos: «Du reste, soeur Marie-Aimée connaît l’adage: in medio stat virtus; elle le dit formellement «la vertu consiste dans le juste milieu» et elle consacre toute la partie morale du chapitre XVII à montrer comment «l’âme apprend à l’école de Jésus à chercher le juste milieu dans la pratique de la vertu» » ; – sendo, no caso, o seu silêncio o meio termo entre um calar “ruidoso” e um ténue suspirar que é por demais expresso… Cf. Id., «La Vie cachée en Dieu», in : Les Douze Degrés du silence et autres opuscules, ed. cit., pp. 145 e segs.

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anteriores, mas todo ele inspirado e que não interfere com o cântico perfeito do Sanctus eterno.251 E diz a autora mística num nítido discernimento deste limiar espiritual: “Nos graus precedentes, o silêncio era ainda o lamento da terra; neste, a alma, por causa da sua pureza, começa a aprender a primeira nota deste sagrado cântico que é o canto dos céus.” 252

Esta graduação é, como muitas vezes saliente na tradição cristã, uma via crucis, em que a morte voluntária por amor, a economia do sofrimento desta nova criação em “dores de parto”, se revê no silêncio densíssimo do páthos da Cruz.253 Donde que o sétimo grau do silêncio respeite a esta mortificatio do amor próprio, do silêncio que permite observar sem fuga ou tergiversação a denegação

Sempre no seu habitual estilo de simetrias conversivas: «Le silence de l’amour, c’est l’amour dans le silence…» - e, após referir o silêncio perante Deus à beleza, à bondade e à perfeição, que realmente não precisam de ser falados, chama a atenção para o referido carácter simples, espontâneo deste silêncio já não de um esforço de calar: “Silence qui n’a rien de gêné, de force; ce silence ne nuit pas plus à la tendresse, à la vigueur de cet amour, que l’aveu des fautes ne nuit au silence de l’humilité, que le battement des ailes des anges, dont parle le prophète, ne nuit au silence de leur obéissance, que le Fiat ne nuisit au silence de Gethsémani, que le Sanctus éternel ne nuit au silence des séraphins !... » (DDS, p. 61) 252 Cf. DDS, pp. 61-62. Esta é a instância média entre os primeiros seis degraus e os últimos seis, aliás numa enumeração de acordo com o total de 12, como número bíblico e de simbolismo universal num tríplice quaternário, ou em quatro tríades… que bem articula os degraus desta escala de intensidades do silêncio. Este momento central é ainda assinalável ‘hexagramaticamente’ como o do Verbo que assim explicita a Trindade divina (tal como St.º AGOSTINHO, em De Trinitate, IV, 4, 7: «Ratio simpli ad duplum ex perfectione senarii numeri…» estabelece); vide nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Número diferencial da morte – St.ª Teresa de Ávila e a visão do seu «tempo de vida»”, in: Revista de Espiritualidade, XIX, nº 74, Abril/ Junho (2011), pp. 92-160, sobretudo pp. 151 e segs.: «Nota conclusiva: O número e a experiência mística». Vide infra n. 258. 253 Indica-se por esta “voz passiva” (cf. S. PAULO, Gal 2, 20…, sobretudo da Paixão e via crucis…) o próprio inverso dinamismo, já não do esforço de “calar”, mas da mística escuta que simplifica até à silenciosa humildade. 251

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própria, dando lugar ao mais da possibilidade misteriosa, dessa “flor que desabrocha em silêncio”.254 Silêncio como exercício espiritual à vista da sua própria corrupção, qual meditação do ‘cadáver’ e do ‘nada’ que realmente se é nesta vanglória; silêncio para os não menos falsos louvores; silêncio perante alegrias ou prazeres, como perante as penas e os obstáculos; enfim, silêncio em todas as circunstâncias vividas, induzindo já à santa indiferença.255 Trata-se do ‘silêncio do “eu” humano passando ao querer divino’, ou seja, o passo forçosamente pacífico e sem afirmação própria, para o pleno consentimento dessa fecunda paz de Deus que

Cf. DDS, p. 63: «Silence de la nature de l’amour propre: (…) Silence de la nature devant les joies ou les plaisirs. La fleur ‘épanouit en silence et son parfum loue en silence le créateur : l’âme intérieure doit faire le même.» A « regra » será aqui tal espontaneidade do « dom sem porquê » (cf. o verso de ANGELUS SILESIUS, Cherubinischer Wandersman, I, § 289: “Ohne Warum”: “Die Ros’ist ohne warumb, sie blühet weil sie blühet,/…”) , e é curioso notar a mudança do “sentido” do ouvido-fala, desta duplicidade da linguagem e significado, da visão e imagem representada, etc., pela estesia mística do odor, “odor de santidade” que envolve sem dualidades e na imediatez da experiência que assim se indica. Cf. JeanPierre ALBERT, Odeurs de sainteté – La mythologie chrétienne des aromates, Paris, Éd. de l’École des Hautes Études en Sciences Sociales, 1996; e videinfra n. 274. Também o “sabor” (a comparar em sânscrito: rasa, “sabor-saber” (cf. Subodh Chandra MUKERJEE, Le rasa – Essai sur l’estétiqaue indienne, Paris, F. Alcan, 1926; Kamleshdutta TRIPATHI, “De lo sensible a lo suprasensible: Estética india tradicional: Conceptos clave de rasa, dhvani y bhâva-anukirtana”, in: Óscar PUJOL e Amador VEJA, (eds.), Las palabras del silencio: el lenguaje de la ausencia en las distintas tradiciones místicas, ed. cit., pp. 81-92),com uma importância sinestésica significativa… cf. supra n. 89…) serve para absolver o falar e outros “ruídos” sensoriais especulativos, numa assimilação da silenciosa Presença de Deus… Cf. ainda Jean-Charles NAULT, La saveur de Dieu – L’acédie dans le dynamisme de l’agir, Paris, Cerf, 2006… Vide ainda a reflexão de Jean-Luc MARION, De surcroît – Études sur les phénomènes saturés, ed. cit., pp. 35 e segs. : «L’événement ou le phénomène advenant». 255 Embora não apareça no texto em análise a expressão de «santa indiferença» (sobre este tema, cf. já citado art. M. VILLER e P. POURRAT, art. «Abandon», in: DS, t. I, cols. 2-49), está implícito Este seu “silencioso” sentido. «Silence dans la santé, la maladie, la privation de toutes choses: c’est le silence éloquent de la vraie pauvreté et de la pénitence ; c’est le silence tout aimable de la mort à tout le crée et l’humain. » (DDS, p. 64) 254

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assim advém “acima da natureza”, nesse sentido gratuito ou sobrenatural do silêncio, dessa serenidade divina.256 Então, num oitavo grau refere-se o silêncio da mente, mesmo superior, um calar os pensamentos inúteis, mas também o esforço intelectivo agitado por vários objetos de contemplação.257 O que se exige é a docilidade à calma iluminação divina e a humildade de permanecer nesse silêncio do entendimento que equivale ao ‘efeito’ da noite escura deste momento deslumbrante e assim por demais.258 Diz-se melhor pela pureza de intenção, pela simplicidade que se despoja dos raciocínios subtis, da busca sinuosa de uma verdade sonora, e sabe ser a inteligência essa assimilação silenciosa de quem não tem conhecimento, nem acumula saberes, mas é sábio, habitado por esse divino sabor…259 Donde, o nono grau do silêncio, não apenas referido ao intelecto, mas à vontade que lhe vai eticamente associada, quando se Cf. DDS, p. 64: «C’est le silence du moi humain passant dans le vouloir divin. Les frémissements de la nature ne sauraient troubler ce silence, parce qu’il est audessus de la nature.» Sobre a interpretação desta gratuidade como absolutamente sobrenatural,em contraste com um plano supra-natural ainda adquirido, cf. Pierre ADNÈS, art. «Surnaturel», in: DS, t. XIV, cols. 1329-1352, sobretudo, cols. 1339 e segs. 257 Advirta-se que a nomenclatura deste 8º grau: «Silence de l’esprit», pensa muito à francesa e no conceito largo de esprit o que mais rigorosamente traduzimos por mente ou intelecto.Aliás, veja-se a própria formulação da Ir.ª Marie-Aimée de Jésus: «Faire taire les pensées inutiles, les pensées agréables, naturelles; ce sont celles-là seulement qui nuisent au silence de l’esprit, et non la pensée en elle-même qui ne peut pas cesser d’exister. » (DDS, p. 65). Repare-se o realismo psicológico da observação de que o « rio da consciência» (cf. William James…) ou o fluxo mental não tenha de ser parado, nem possa sê-lo, mas apenas eliminarem-se as associações inúteis, numa purificação do entendimento que se quer crer já de índole passiva ou, assim, silenciosa… 258 Cf. DDS, p. 65: «Pour ce qui est d’une contemplation de Dieu, soutenue, immédiate cela n’est pas possible dans l’infirmité de la chair, à moins d’un pur don de sa bonté ; mais le silence dans les exercices propres de l’esprit, c’est, par rapport à la foi, se contenter de sa lumière obscure. » 259 Cf. DDS, p. 66: “Silence aux raisonnements subtils qui affaiblissent la volonté et dessèchent l’amour.» Donde o retomar do tema da simplicidade de intenção, do « olhar simples » e directo, sem ruído de fundo…: «Silence dans l’intention: pureté, simplicité; silence aux recherches personnelles; dans la méditation, silence à la curiosité (…). » 256

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trata de julgar.260 É o evangélico preceito de “não julgueis”, num conselho de silêncio neste sentido ainda relacional quanto aos outros, recuperando um nível de santa infância, nesse silêncio dos perfeitos que vivem apenas segundo a vontade de Deus.261 “É o silêncio do Verbo encarnado!” – como exclama Maria Amada de Jesus.262

Num décimo grau, puramente volitivo, também se refere o silêncio, já não por se cumprir silenciosamente os mandamentos, os desígnios de Deus, mas pelo silenciar-se esta mesma obediência na consciência, dir-se-ia, vitimal de se poder silenciar por essa união com Deus o que seja o próprio mistério da iniquidade, do dilúvio de ruído e pecado, como oblação silenciosa do escravo.263 Um oferecer a vontade 260

Se no grau anterior se caracterizava a inteligência simples, como aquela que está sempre em silêncio perante o Senhor, agora trata-se do silêncio do juízo ou da capacidade de decidir inteligivelmente, de acordo com a infância espiritual: «C’est le silence de la bienheureuse et sainte enfance, c’est le silence des parfaits, c’est le silence des anges et des archanges, alors qu’ils suivent les ordres de Dieu.» (DDS, p. 67). Este nono grau representa, de facto, já a «perfeição» de tal linguagem espiritual silenciosa. 261 Cf. ainda DDS, p. 67: «Ne pas juger, ne pas laisser voir son opinion (…)». 262 Cf. DDS, p. 67. Lembre-se o Verbo que emudeceu no seu Consummatum, como S. João da Cruz sublinha e já se recordou, vide supra n. 53. Por outro lado recordese o tópos meditativo que intermedeia o silêncio com as (7) «palavras» de Jesus na Cruz, na interpretação orante deixada pelo Cardeal Charles JOURNET, Les sept paroles du Christ en Croix, Paris, Seuil, 1952 e reed., pp. 137 e segs.: «Tout est consommé». 263 Cf. DDS, p. 68: «Le Seigneur a quelque chose de plus profond et de plus difficile à nous apprendre : le silence de l’esclave sous les coups de son maître. (…) Ce silence est celui de la victime sur l’autel, c’est le silence de l’agneau que l’on dépouille de sa toison, c’est le silence dans les ténèbres, silence qui empêche de demander la lumière (…). » Sublinhe-se esta união, não na calma do silêncio de Deus, mas na excruciante participação em comunhão com a Vítima, em silenciosa e volitiva assunção de dor. Recorde-se o último grau como do calado “amor morto”… em St.ª MARIA MADDALENA DE PAZZI, «Revelatione e intelligentie», in: P. Pelagio VISENTIN, O.S.B., (ed.), Tuttele Opere di Santa Maria Maddalena de’Pazzi dai manoscritti originali, vol. IV, Firenze, Centro Internazionale del Libro, 1964, pp. 210 e segs.: “L’ultimo amore è morto, il’quale non desidera, non vuole, non brama e non cerca cosa nessuna (…).”

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própria, um abdicar dela à semelhança de Cristo perante o Pai, numa densa angústia, no silêncio não consolador, mas crucial dessa imensa dor do mundo.264 É o momento da morte, não forçosamente biológica e final, mas antecipada na cruz do momento assim aceite até esse mistério ou esse vastíssimo drama espiritual, todo ele concentrado no grito sufocado, no não haver palavra de tão densa hora. É aí que, na noite da Agonia, revê-se em silêncio a dor balsâmica, o sacrifício transfigurante, a pausa sempre demasiado breve da silenciosa luz nas trevas. “Enquanto esta vontade humilde e liberta, verdadeiro holocausto de amor, se quebra e se destrói pela glória do nome de Deus, Ele transforma-a na Sua divina vontade.” 265

Donde este sentido do minimum e maximum destas margens de silenciosa operação da metamorfose espiritual realizada por Deus. E pergunta-se Maria Amada de Jesus o que faltará, então, para o pleno acabamento de Cristo na alma: “…duas coisas: a primeira é o último suspiro do ser humano; a segunda, não é senão uma doce atenção ao Bem-Amado cujo divino beijo é inefável recompensa.” 266

264

A Ir.ª Marie-Aimée de Jésus vai haurir esta inspiração directamente nessa silenciosa luz assim crucificada em trevas. É a partir do seu próprio mistério e vocação vitimal que se compreendem as suas palavras de oblação à Justiça divina: «C’est le silence dans l’abandon, le silence sous la sévérité du regard de Dieu, sous la pesanteur de sa main divine (…). C’est le silence du crucifiement, c’est plus que le silence des martyrs, c’est le silence de l’agonie de Jésus-Christ.» (DDS, p. 69). 265 Cf. DDS, pp. 69-70. 266 Cf. DDS, p. 70: «Alors, que manque-t-il à sa perfection? Que faut-il encore pour l’union? (…). Deux choses : la première est le dernier soupir de l’être humain ; la deuxième n’est qu’une douce attention au Bien-Aimé dont le baiser divin est l’ineffable récompense.» Note-se neste grau a plena mortificatio e o « beijo » místico da ressurreição… tanto glosado desde os comentários de S. Bernardo sobre o Cântico dos Cânticos e este clima de esponsais do Amor de Deus… Cf. S. BERNARDO, Sermones, 8: «De summo osculo quod est Spiritus Sanctus», I, 1-2:

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Silêncio duplo, diremos, de morte e de amor, de finitude e de ressurreição, como se a definitiva pulsação do tempo em eternidade… Enfim, o décimo primeiro grau do silêncio como que mima este estado moribundo em Deus, este calar-se este morrer em paz, no eco ainda do monástico fuge, tace, quiesce, agora como experiência infusa e totalmente reabsorvida, isto é, absolutizada.267 É mesmo mais do que o silêncio da morte, pois indica a experiência do não-ser, num nada de ser, em que a criatura se abisma no paradoxo de ausência de si e, ao mesmo tempo, silêncio imenso de Deus, infinda presença além ser. Finalmente o décimo segundo grau de silêncio, ou talvez apenas o extremado de toda a escala e, em particular, dessa absolutização negativa do silêncio do grau anterior, refere justamente o silêncio com Deus. “No começo, Deus dizia à alma: «Fala pouco com as criaturas e muito comigo.» Aqui, Ele diz-lhe: «Não me fales mais.»”268

“… Mihi videtur, ut pulo altius inchoem, ineffabile quoddam atque inexpertum omni creaturae osculum designasse qui ait: Nemo novit filium nisi Pater, et nemo novit Partrem nisi Filius, aut cui Gilius voluerit revelare. [Mt 11, 27] (…) Osculum profecto fuit. Quid? Corporeus ille flatus? Non, sed invisibilis Spiritus, qui propterea in illo dominico flatu datus est, ut per hoc intelligeretur et ab ipso pariter tamquam a Patre procedere, tamquam vere osculum quod osculanti osculatoque commune est.” O beijo místico é, de certo modo, o inverso da palavra, uma ‘locução que tange’ reconduzida a silencioso gesto reabsorvido no puro Amor. Cf. Id., Sermo 83, II, 4. 267 Trata-se do «Silence avec soi-même» : «Ne pas parler intérieurement, ne pas s’écouter, ne pas se plaindre, ni se consoler. En un mot, se taire avec soi-même, s’oublier soi-même, se laisser seule, toute seule avec Dieu ; se fuir, se séparer de soi-même.» (DDS, p. 71) Equivale este décimo primeiro grau do silêncio espiritual ao que os Místicos renanos designam na Wesenmystik, como Abgeschiedenheit, ou “renúncia” nesse abandono de si mesmo. Trata-se, mais do que a simples “ausência” ou “morte”, da denegação e do silêncio, dir-se-ia “ensurdecedor”, do nada: «C’est le silence du néant. Il est plus héroïque que le silence de la mort. » (Ibid.) 268 Cf. DDS, p. 72.

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é neste trânsito que Maria Amada de Jesus ilustra este silêncio com Deus numa adesão silenciosa, em que nem sequer se fala com Ele senão pela linguagem do não-ser: denegar-se em adoração simples.269 Já não é propriamente um grau, embora de vivência mística, mas o que nesse não falar está desde início ao longo de toda a escala como um zero, um vazio permissivo de todos os números, que tanto os pode potenciar como negar, na indiferença última do mais Santo de cada diferenciação, como seu eco permanente, ainda que acada momento.270 Conclui, Maria Amada de Jesus: “É o silêncio da eternidade, é a união da alma com Deus.”271

E nada mais se diz neste pequeno opúsculo, todo ele atravessado de silêncio de hiatos e comensurado por esta diferencial escuta de tantos silêncios, ainda que aparentemente sempre do mesmo número vão, da mesma ordem enumerável, do mesmo Deus e em relação à mesma alma…272 Quando, afinal, não há entre dois silêncios Cf. DDS, p. 72: «Silence avec Dieu, c’est adhérer à Dieu, se présenter, s’exposer devant Dieu, s’offrir à Lui, s’anéantir devant lui, l’adorer, l’aimer, l’écouter, l’entendre, se reposer en lui. » Atinge-se neste último grau a eternidade deste silencioso viver com Deus – «c’est le silence de l’éternité, c’est l’union de l’âme avec Dieu» (DDS, p. 72) … 270 O começo e o termo desta escala tocam-se numa outra conjugação transfigurante do Alto e do baixo…, como se o tempo e a eternidade se reflectissem além do valor neutro do instante diferenciador dessa mesma escala; instante este que se comporta como o “zero” (uma silenciosa “pausa”…) em relação a outros andamentos de adensamento silencioso… Cf. a abordagem poética de Michel THION, Traité du silence, Paris, Voix d’Encre, 2004, p. 11 : « Seul le vide peut être rempli. Laisser du vide dans les mots et les sons pour qu’ils soient remplis de sens et de chaleur. »…ainda p. 40: «Le temps du silence est une frontière./ À l’aube de la parole il y a le silence./ Au crépuscule de la musique il y a le silence.»… 271 Cf. DDS, p. 72 e videsupra penúltima nota. 272 Ali se dizia o silêncio da eternidade tendo como suposto necessário que seja a mesma, e não que – segundo o estilo da Ir.ª Marie-Aimée de Jésus – se possa formular: como a eternidade do silêncio, o que, como é óbvio, não seria equivalente. O que fica de permeio, justamente como tal hiato ou diferença de grau, mente na 269

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qualquer comparação possível, apenas se podendo medir o rumor heterônimo de almas em diversos estádios de linguagem, o “Deus das ilhas estranhas” na novidade do seu incógnito Dom sempre transcendente. Sendo talvez o som, a Voz e a melodia universais apenas o efeito superficial de entrecruzamento de silêncios tão diversos que assim «gritam» de incongruência.273 Não se aponta para a unidade indiferente, mas para esta Voz que se recorta de abismos, para a duplicidade do aquém e além do ser que o torna discurso instável de algo efêmero, salientando o carácter recursivo desta escala, que reenvia sobre si mesmo o silêncio passado em claro na lembrança momentânea de possibilidades que acabam por tornar esta escala, não uma segura scala coeli, mas o arborescente de caminhos paralelos e variados de outra árvore da sabedoria. 274 É neste aparente mesma linguagem o que ali é um diferencial e incomparável silêncio, de facto, sem métrica própria… 273 A pretensa hierarquia, como escala adentro do «mesmo», revela-se resultado tardo e já assim indiferente de relevâncias diferenciais, de pulsações em que até o aparente mesmo degrau de silêncio repercuta toda essa diferenciação real. (Tal pretensa hierarquia em graus de dizível e indizível, ou de palavra e silêncio, está presente em Dionísio, o Pseudo-Areopagita, e já em Inácio de Antioquia… Vide J. P. WILLIAMS, Denying Divinity, Apophasis in the Patristic Christian and Soto Zen Buddhist Traditions, ed. cit., pp. 1 e segs.; cf. René ROQUES, L’univers dionysien, Structure hiérarchique du monde selon le Pseudo-Denys, Paris, Cerf, 1983, pp. 117 e segs.: «La science hiérarchique» …; e vide Raymond GAWRONSKI, S.J., Word and Silence, - Hans Urs von Balthasar and the Spiritual Encounter between East and West, ed. cit., pp. 101 e segs.) Em relação a um tal silêncio sempre novo a cada instante, como em analogia com o próprio Deus dito por aquela fórmula de S. JOÃO DA CRUZ, Cánt. (B), c. 14-15, 8; e c. 19, 7, das «ínsulas estrañas», dir-se-á que é como um zero diversamente denegador ou potenciador de todo o número, mistério de pura Transcendência assim simbolizado. Cf. sobre o simbolismo do zero; John D. BARROW, The Book of Nothing, London, Vintage, 2001, pp. 1 e segs. Vide infra n. 292 e supra ns. 54 e 230. 274 Um pouco como se também nos paradoxos referidos por Jorge Luis BORGES, “El jardín de los senderos que se bifurcan” (1941), in: Id., Ficciones, Madrid/ Buenos Aires, Alianza Ed./ Emecé Ed., 1974, pp. 9-45, numa estranha topografia em que a ubiquidade e a heteronímia sucessiva pulverizam em paradoxal sincronicidade uma outra estruturação da vida falada e também assim silenciosamente diversa… Desenvolvemos algumas destas perspectivas na leitura de uma mística como Élisabeth de la Trinité, em dois estudos nossos para os quais remetemos neste propósito: Carlos H. do C. SILVA, “Tópos e ritmo da existência sacerdotal em

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labirinto de possibilidades de secreto desenvolvimento, pela ‘vereda sempre estreita’ (Mt 7, 14) e única em cada instante da perfeição que o silêncio pauta cada inflexão, cada limiar assim diferenciado. O único da Vida alimenta-se assim de, e em, silêncio… 3. Da tentação do saber calado, da sigé, à humilde oração de quietude ‘Kaì hótan énoixen tèn sphragîda tèn hebdómen, egéneto sigè en tôi ouranôi hos hemiórion.’ (Ap 8, 1[ trad.: “Quando Ele abriu o sétimo selo, fezse no Céu um silêncio de cerca de meia hora.”] ‘Tèn toínyn toû theíou lógou diáthesin aplanôs epignosómetha, eàn amerímnoi siopêi tas toû mè légein hóras analískomen en thermêi mnémei toû theoû.’ (DIÁDOCO DE FOTICEIA, Keph. Gnost., XI [trad.: “Reconhecemos sem erro esta disposição da palavra divina, se houver um silêncio despojado onde se cala durante horas em fervorosa lembrança de Deus.”])

Visar o silêncio, não só como um meio, mas na qualidade de ser e de fim último pode fazer da obsessão em falar dele a reação traumática que o torne mero lenitivo das habituais tensões 275- uma terapia. Ainda os gnósticos erigiram o Silêncio como um princípio originário, tal como nos mitemas da Noite, do Abismo…276, perdendo Isabel da Trindade – Dois estudos: I – A Linguagem da periferia mística do sacerdócio”, in: Rev. de Espiritualidade, XVIII, nº 72, Out./ Dez. (2010), pp. 261320; Id., “Tópos e ritmo da existência sacerdotal em Isabel da Trindade – Dois estudos: II – Tempo sossegado e perpétua intranquillitas”, in: Rev. de Espiritualidade, XIX, nº 73, Jan./ Mar. (2011), pp. 33-80. 275 Cf., entre outros, J. NASIO, Le Silence en psychanalyse, Paris, Rivage, 1987 ; também William RICHARDSON, «The Word of Silence», in : Sonu SHAMDASANI e Michael MÜNCHOW, (eds.), Speculations after Freud, Psychoanalysis, philosophy and culture, London/ N.Y., Routledge, 1994, pp. 167184. 276 Trata-se da syzygia ou “par” primordial da Sigè e do Abismo ou Bythos, de cuja união provêm o Nous, ou Intelecto, e depois as outras instâncias do Pleroma. (cf. St.º IRENEU, Adversus haereses, I, 1, 1…). Retoma-se nesta religião gnóstica (cf. Hans JONAS, The Gnostic Religion, Boston, Beacon Pr., 1958 e 1970…) um simbolismo muito antigo, ainda atestado em HESÍODO, Theog., vs. 124 e segs. (cf. M. L.

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de vista outra via do saber incoativo e menos ontológico nessa necessidade de dizer, de deixar dito o aquém de tudo, afinal para o ritmo infecundo da regressão às origens, para uma infantilização da fala até ao Paraíso Perdido e assim sonhado em melancólico silêncio.277 Será a Sigé que personifica esse mutismo sem rosto, esse mundo de sombras de um subconsciente sem grito de alma, onde os ‘duplos do que somos’ se encontram na ‘falsa quietude da morte aparente’…278 WEST, (ed.), HESIOD, Theogony, Oxford, Clarendon Pr., 1966), e na tradição présocrática (de Alcman, Anaximandro…) sobre o Kháos, a Nýx, ou “Noite”, o Abismo indiferenciado, o Ápeiron…, que indica esse pré-Lógos, ou esse “vazio” de Som primordial… Cf., entre outros, Clémence RAMNOUX, La Nuit et les Enfants de la Nuit dans la tradition grecque, Paris, Flammarion, 1986, pp. 63 e segs. Como se sabe, a poética daqui derivada, seja no romantismo nocturno de NOVALIS, Hymnen an die Nacht…, seja no filosofema do Absoluto nocturno de Schelling, seja ainda na “Ode” de Álvaro de CAMPOS, «Vem, Noite antiquíssima e idêntica…» (in: F. PESSOA, Obra Poética, ed. cit., pp. 311 e segs.) retoma este arquétipo do “imaginal” do espaço sem som, vazio, abscôndito… Cf. G. BACHELARD, La poétique de l’espace, Paris, PUF, 19675, pp. 168 e segs. : «L’immensité intime»… 277 Antecipe-se aqui a posição de interpenetração dramática de silêncio e palavra numa revisitação de Hans Urs Von Balthasar na síntese de Raymond GAWRONSKI, S.J., Word and Silence, - Hans Urs von Balthasar and the Spiritual Encounter between East and West, ed. cit., p. 101: “For the Ancients, the primordial Father (Ur-vater) was noble precisely in His stillness and peace: His image (Inbild), who rests in His bosom, is silence. (…) Irenaeus, wrestling with Valentinian Gnosis, resisted treating silence (Sigè) and word (Logos) together. Balthasar is much more drawn in this matter to Ignatius of Antioch, from whom word and silence are interwoven in God and in the Incarnation, and, hence, in humanity as well. Ignatius offers perhaps the “best illustration of the overcoming of the un-word through the super-word,” where the Word is seen as proceeding from silence, but a silence which “calls loudly”. 278 É neste eco do já citado soneto de F. PESSOA, «No túmulo de Christian Rosenkreutz»: “Quando, despertos deste sono, a vida, / Soubermos o que somos (…)// Ah, mas aqui, onde irreais erramos/ Dormimos o que somos, e a verdade, / Inda que enfim em sonhos a vejamos,/ Vemo-la, porque em sonho, em falsidade./ (…) Calmo na falsa morte a nós exposto,/ O Livro ocluso contra o peito posto,/ (…).” (in: Obra Poética, ed. cit., pp. 190-191), que aqui a propósito se enquadra esse silêncio misterioso. Como é sabido, a expressão Sigé, do verbo sigân “estar silencioso” e próximo da acepção de siopân, “calar-se”, é utilizada pelos Gnósticos (em especial na corrente valentiniana, como já referido), na sequência de toda uma tradição mistérica, pitagórica e hermética (cf., entre outros, JÂMBLICO, Vita pyth., 226 e segs.) que remetia também ao secreto, ao que é transmitido em calma (isto é,

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Por vezes o visionarismo espiritual, ainda que em duvidosa experiência sobrenatural e tantas vezes numa mística inversiva, não simbólica, mas diabólica, faz aceno desses mundos de sombras, desses abismos de sumidos ais e lamentos lúgubres que se perdem nesse silêncio de morte.279 Não o ambiente do requiescat in pace de um sono longo até à Ressurreição esperada, mas o mutismo do ser sem vibração, longe sequer do cerrado segredo. De fato, o segredo enterrado no mais profundo só se torna objeto de silêncio significativo se for manifesto como tal, isto é, se for literalmente revelado no que, em relação àquela descida ao subconsciente, equivale ao caminho órfico de um acerto de descida e de subida, ou de dialética da palavra certa até no conhecimento desse “abre-te Sésamo”.280 num silere, como se diz em latim, com essa acepção de “tranquilidade”, donde em silêncio…). O iniciado deste modo imita a própria Divindade silenciosa, como se por tal tacere (“calar”) melhor se significasse outra “eloquência” mística. Vide ainda o texto do «Poimandrés»: ‘déxai logikàs thysías hagnàs apò psykhês kaì kardías pròs sè anatetaménos, aneklálete, árrhete, siopêi phonoúmene.’ (in: Corpus hermeticum, I, 31; [trad.: “aceita sacrifícios em palavras da alma pura e do coração a Ti dirigido, ó Inexprimível, Indizível, que só o silêncio nomeia.”]; vide P. FESTUGIÈRE, O.P., La révélation d’Hermès Trismégiste, IV: Le Dieu inconnu et la Gnose, Paris, Belles Lettres, 1981 reed.. Também PORFÍRIO, De abstin., IV, 12, 5, refere o silêncio que os judeus praticavam como um mistério: ‘kaì toîs hos mystérión ti phriktòn he tôn éndon siopè kataphaínetai.’ 279 Se a verborreia de certas formas de pseudo-glossolalía (cf., por exemplo, Nathalie DUBLEUMORTIER, Glossolalie – Discours de la croyance dans un culte pentecôtiste, Paris/ Montréal, L’Harmattan, 1997…) pode ser sintomática de uma profunda patologia da linguagem, também omutismo de certa pseudo-mística (cf. supra n. 54) indica um doentio e falso silêncio, outrossim, de um estado desconstrutivo da estrutura linguística em unidades mínimas, raras e desconexas, de meros “suspiros”, “gemidos”… que apontariam para um progressivo silenciar do discurso. Cf. ainda Sylvie KARILA, «L’analyse et ses silences», in: Claudie DANZIGER, (dir.), Le silence, La force du vide, Paris, Éd. Autrement, (nº 185), 1999, pp. 141-155. Simbolicamente um eco longínquo de tais infernos em que a vida se esvai… Cf. Félix BUFFIÈRE, Les mythes d’Homère et la pensée grecque, Paris, Belles Lettres, 1956, pp. 122 et passim. 280 Re-velar nesse significativo “velar de novo”, como um calar novamente o já “calado”… – eis o que assim, paradoxalmente, exorciza o falar do secreto no silencioso segredo que deste modo o refere. Parece ser esta a lição do “segredo” pitagórico e já a montante dessa descida aos Infernos na iniciação órfica, cf. W. K. C. GUTHRIE, Orpheus and Greek Religion, London, Methuen, 1955; vide Fabre d’OLIVET, The Secret Lore of Music, trad. de Joscelyn Godwin, Rochester, Inner

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O segredo é assim transposto para as virtualidades secretas – silenciosas – do próprio som, sobretudo entendido como mantra ou palavra de vida, cujo efeito seja ordenador, curador, balsâmico.281 Donde que o místico não haja de ficar preso pelas ‘visões’ ou ‘audições’ que até o podem distrair, como daímones atravessados no caminho, mas tenha de atender ao que é a suavidade da meditação, do despojamento de muitos propósitos, evitando a senda ‘poética’, ainda de forças mágicas, mas estando atento à vereda humilde, seguindo em silêncio pelos passos da Palavra crucificada…282 Traditions, 1987, pp. 119 e segs. Tem, por isso, de se formular um “instrumento” de abertura do secreto pela palavra-chave de acesso a tal mansão silenciosa, a tal inenarrável região de alma… O clima é de enthousiasmós, ou seja, de interioridade com o divino, embora dissimulada… cf. Joseph SOUILHÉ, «Le silence mystique», in: Revue d’ascétique et de mystique, IV, nº 13, janvier (1923), pp. 128-140. Liguese este fundo do mito órfico com uma sua leitura cristã medieval, cf. John Block FRIEDMAN, Orpheus in the Middle Ages, Cambridge (Mass.), Harvard Univ. Pr., 1970, e com a própria eisagogé evangélica, até indicada por vestígios de palavrasgestos, como o hebraico ephphatha, “abre-te”, conservado no rito “baptismal” ou no original contexto de gesto de poder (ou milagre), Mc 7, 34: ‘…kaì légei autôi: ephphatha, hó estin dianoíkhtheti’… 281 Lembre-se que, mesmo na tradição filosófica neoplatónica, há uma consciência desse som originário universal ou eterno, ainda que modulado cosmicamente pela dita harmonia das esferas, como se repartido em tons específicos. PORFÍRIO no De contemplatione, III, 8, 9, compara o Uno (tò Hén) como esse “som”, vibração primordial, que preenche todo o espaço, sendo por isso captável em cada ponto como absolus, isto é, segundo o seu carácter sempre único e solitário. A intuição da hénnosis é assim corroborada por esta linguagem “branca” do Som que apenas se compreende ‘silenciosa-mente’. Alguns destes aspectos contêm-se no simbolismo de uma cabala gráfica grega em que, outrossim, se vê o som sem o ouvir. Cf. Kieren BARRY, The Greek Qabalah, - Alphabetic Mysticism and Numerology in the Ancient World, York Beach, Samuel Weiser, 1999, pp. 189 e segs. Sobre a tradição da Palavra sagrada, seja do Aum da tradição hindu (cf. John GRIMES, An Advaita Vedanta Perspective on Language, Delhi, Sri Satguru publ., 1991, pp. 108 e segs.), seja do Tao (ou Dao) chinês, seja do próprio «Amen» hebraico-cristão, etc., cf. Chândogya Upanisad, I, 1, 1: “Aum ity etad aksaram uggîtham upâsitâ…” [“Aum assim esta primeira sílaba deve ser meditada…”]; vide ainda a importância do “silêncio” implícito nessa vibração, seja nas técnicas yôguicas mântricas, seja na “música sagrada” e efeito psicofisiológico e espiritual de tal rito secreto… André PADOUX, L’énergie de la parole – Cosmogonies de la parole tantrique, Paris, Fata Morgana, 1994, pp. 47 e segs. ; vide supra n. 89. 282 Contra o “ruído” dos próprios carismas místicos já adverte S. JOÃO DA CRUZ, Subida, III, c. 26…c. 35… O itinerário de paradigma helénico em que se procura

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Segredar, não para ocultar em proveito próprio, outrossim para perceber o secreto de cada passo envolto no sossego profundo desse misterioso manto de tudo, como se se dissesse que a vida se suspende desse andamento subtil, num descer em si que é um ser ascendido na lucidez que não vem de fora, mas é decantada por esse trabalho de paciência, de tranquila disposição à quietude que vem.283 Trata-se do processo alternativo à da poética encenação do que até será capaz de se fazer, porém sem a verdade do espiritual despojamento, inclusive desse silêncio do exterior, no dever de uma palavra a que se acuda em urgente e secreto propósito.284 Silêncio a ser levado em palavra assim uma apoteose, ainda que por tal “descida aos Infernos” (cf. Orfeu… vide ainda: Dario SABBATUCCI, Essai sur le mysticisme grec, (1965) trad. do ital., Paris, Flammarion, 1982, pp. 39 e segs.: «La pratique orphique»…), mostra que o sussurro, ainda que de potências geniais (ou assim daimónicas, como diria Taciano…), é perturbador de outra presença bem mais plenamente silenciosa. Há que distinguir entre um silêncio “vazio”, típico da fuga mundi, e um silêncio rico de presença – (como reconhecerá H. Urs von Balthasar: vide R. GAWRONSKY, S.J., Word and Silence, ed. cit., p. 101: “As against the Gnostics, Balthasar urges that the source of divinity is not silence, but rather the «immeasurable fullness» of the Father. The distinction between a «full» dilence and an “empty” silence points to what Balthasar is trying to convey.”) –, só reconhecível pela humildade e “crucifixão” do próprio verbo. Cf. Carlo SUARÉS, The Resurrection of the Word, trad. do franc., Berkeley/ London, Shambhala, 1975; vide ainda: Marcel VIAU, Le Dieu du verbe, ed. cit., pp. 219 e segs. : «L’assomption du verbe». 283 Cf. ainda Pierre BOUTANG, Ontologie du secret, ed. cit., pp. 33 e segs. : «Immanence et secret»… Vide também o sentido monástico dessa ascese da palavra : Louis BOUYER, Le sens de la vie monastique, Paris, Cerf, 1950, reed. 2008, pp. 216 e segs. Vide ainda as cartas do beneditino Fr. Laurence FREEMAN, Lettres sur la méditation – Le christianisme face au silence, trad. do ingl., Paris, Albin Michel, 2007, pp. 201 e segs., onde realça os vários níveis de presença, até se atingir a silenciosa «consciência absoluta da existência»… 284 O que importa não é a eficácia de tal encenação da palavra, o mágico poder do próprio silêncio, como se advoga em práticas xamânicas que entrecruzam a entoação de fórmulas, no geral guturais e imitativas também de suspensões de vozes animais…, com as grandes «suspensões» da mente (o stop the mind), da palavra (fim do “tagarelar” interior) e da própria consciência vigil. Cf. Carlos CASTAÑEDA, The Power of Silence, Further Lessons of don Juan, London, Black Swan Ed., 1988, pp. 143 e segs. Outrossim, deve atender-se à pausa proporcionada, discernida também pela palavra que se impõe seja dita, quer como advertência e correcção justa, quer como apaziguamento e contribuindo para uma quietude espiritual. Cf. J. KRISHNAMURTI, por exemplo, em This Light in Oneself – True Meditation,

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despojada, seja ao doente, ao pedinte… seja a todos os seres da natureza, numa fraternidade conversada entre todos os silenciosos.285 Por isso, o estado de quietude não é incompatível com a palavra, mais até com o louvor que, aliás, já induz a essa escuta do outro em si, e de si mesmo noutrem, abrindo a linguagem assim compreensiva a esses contextos não comunicáveis mas de comunhão.286 O convívio profundo, muitas vezes menos saliente na via mística como a solas con Dios, dá à linguagem dos espirituais o sentido outrossim silencioso de um milieu divin em que o cosmos inteiro se torna a harpa de uma outra ressonância divina.287 Boston & London, Shambhala Pr., 1999, pp. 78 e segs.: «Observing from a Quiet Mind» e vide ainda Id., The Only Revolution, London, Victor Gollancz, 1970, pp. 31 e segs.: «Silence has many qualities…». 285 Neste sentido ao contrário de uma lectio, como um ler a palavra que Deus dirige (tal diz St.º AGOSTINHO, In Ps. 85, 7: “quando legis, Deus tibi loquitur; quando oras, Deo loqueris.”), trata-se da oratio, que, no dizer do mesmo Padre da Igreja, significa um falar com Deus e representa, afinal, um diálogo silencioso no “mais íntimo do íntimo”… Cf. Conf. 3, 6, 11: “tu autem eras interior intimo meo et superior summo meo”… 286 Segue-se aqui a lição de Thomas MERTON, em “Symbolism: Communication or Communion?”, in: Id., Love and Living, ed. cit., pp. 54-79. Faça-se ainda notar que mesmo na oração silenciosa ou de quietude infusa, também a palavra pode advir como inspiração e verbo divino que não se equaciona já segundo o binómio: som – silêncio, ou palavra – indizível…Cf. a propósito Pierre BOUTANG, Ontologie du secret, ed. cit., pp. 281 e segs.: «Dyades»: «Sommeil et veille»; «Oubli et mémoire» (pp. 295 e segs.); «Sourire et larmes» (pp. 305 e segs.)… Está-se, outrossim, nas ditas “quintas moradas” da escala de St.ª TERESA DE JESUS, Moradas [del castillo interior], V, 1, 5: “… y osaré afirmar que, si verdaderamente es unión de Dios, que no puede entrar el demonio ni hacer ningún daño…”, como se “para além do Bem e do Mal”, isto é, para lá daquele dualismo palavra – silêncio… Cf., num contexto literário mais amplo: Dennis McCORT, Going beyond the Pairs – The Coincidence of Opposites in German Romanticism, Zen, and Deconstruction, Albany, State Univ. of N.Y. Pr., 2001, pp. 21 e segs.: “The German Mystical Tradition”. 287 Cf. St.ª TERESA DE JESUS, V, 20, 10: “Con esta comunicación crece el deseo y el estremo de soledad (…)”… vide infra n. 249; e vide também, em contraste com uma espiritualidade centrada na relação alma-Deus, o sentido cósmico, seja da tradição franciscana (vide referências em nossa reflexão: Carlos H. do C. SILVA, “Da religião cósmica ao espaço místico – reflexão sobre o sentido universal do franciscanismo”, in: Várs. Auts., Poiética do Mundo – Homenagem a Joaquim Cerqueira Gonçalves, Lisboa, Colibri/ Depart. Filosofia – Centro de Filosofia da

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No entanto, a passagem da atitude de oração de louvor a este registo específico de silêncio ou de quietude reveste uma clara destrinça: passo do ativo da ascese orante ao consentimento na operação do Espírito e obra infusa de tal quietude em intimidade com Deus.288 O silêncio tipifica assim já não um realismo que evidencia a palavra, o trabalho… ou os seus limites, mas uma outra absolvição que frequentemente se diz na linguagem dos místicos por solidão e sobretudo por paz, como fruto do Espírito Santo… A título de exemplo pode sublinhar-se que no vocabulário de St.ª Teresa de Ávila é pouco frequente a referência ao silêncio que não seja no sentido mais realista e ascético, ainda indutor de estado propício à quietude que advém num sossego que é “eloquente”, isto é, que aprofunda a oração e a intimidade com Deus como diálogo de amizade.289 Em contraponto desse uso terminológico encontra-se em Isabel da Trindade, em mais de uma centena de menções ao silêncio, uma aproximação à quietude espiritual e ao dom desse ser pacífica por tal mística inhabitação trinitária.290 Univ. de Lisboa, Fac. de Letras da Univ. de Lisboa, 2001, pp. 117-142), seja de um Autor como P. TEILHARD DE CHARDIN, Le Milieu divin,Essai de vie intérieure, Paris, Seuil, 1957, pp. 195 e segs. 288 Não sendo aqui de desenvolver estudo dos graus de oração e de caracterizar a oração de quietude ou de “silêncio”, cf., por exemplo, Antonio ROYO MARÍN, O.P., Teología de la Perfección Cristiana, Madrid, B.A.C., 19947, §§ 559 e segs., pp. 717 e segs.; e vide outras referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, Experiência orante em Santa Teresa de Jesus, Lisboa, Didaskalia, 1986, pp. 61, 130; Daniel de PABLO MAROTO, Teresa en Oración – Historia-Experiencia-Doctrina, Madrid, Ed. de Espiritualidad, 2004, pp. 373 e segs.: «Oración de quietud»… 289 Para o estudo do vocabulário cf. Juan Luis ASTIGARRAGA, (ed.), Concordancias de los Escritos de Santa Teresa de Jesús, Roma, Ed. O.C.D., 2000, vol. II, sub nom. Sobre a persistência dialogal da oração, ainda que nos esponsais místicos, cf. a célebre ‘definição’ dada por St.ª TERESA, Vida, 8, 5: “…que no es outra cosa oración mental, a mi parecer, sino tratar de amistad, estando muchas veces tratando a solas com quien sabemos nos ama.” Cf. Tomás ÁLVAREZ, « S. Teresa de Jesus contemplativa», in : Ephemerides Carmeliticae, 13 (1962), pp. 962… 290 Para o vocabulário vide Carmel Bourges, Les mots d’Élisabeth de la Trinité – Concordance, Bourges, Carmel de Bourges & Carmel-Edit., 2006, sub nom.

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Enfim, como um último exemplo, pode remeter-se para o vocabulário do «silêncio» em St.ª Teresa do Menino Jesus, verificando-se como que a “síntese” entre voto de silêncio, regra ascética que muito zelava, e, por outro lado, a consciência do silêncio como transposição interior para a linguagem ‘dos eleitos’ ou ‘do Céu’.291 Há, pois, nela um discernido sentido dos tempos e variações da palavra e do silêncio, até uma noção aguda da importância da pausa, da suspensão, por exemplo devendo manter o silêncio perante as calúnias ou ofensas… O modelo último, para o silêncio na vida espiritual, aqui reconhecível, é o do próprio silêncio de Jesus, onde se retoma a medida do recolhimento e, sobretudo, da experiência do abandono.292 “Silenciosa”, porque assim interiormente pacificada… imóvel nessa adoração. Chamámos a atenção para este sentido a propósito da “Oração de Elevação à SSma. Trindade”: «O mon Dieu, Trinité que j’adore» (Note intime, 15; in: Oeuvres complètes, pp. 907 e segs.) : Carlos H. do C. SILVA, “A Elevação à Santíssima Trindade na experiência orante da Beata Irmã Isabel da Trindade, o.c.d. (n. 18-71880 - + 9-11-1906), (Conferência na CNIR-FNIRF, a convite da Irª. do Bom Pastor, da Congr. das Irmãs da Apresentação de Maria, na Escola de Enfermagem de S. Vicente de Paulo, em Lisboa, a 14 de Novembro de 1999), in: Rev. de Espiritualidade, XII, nº 47, Julho/ Setembro (2004), pp. 213-240. 291 Cf. vários textos: Ms A, 74 rº… sobre esse seu zelo (do tempo de silêncio) como religiosa; P[oésies], 7 e L[ettre] 163: «…car le silence est la langue des heureux habitants du Ciel!...», nessa remissão para o silêncio celeste… Vide outras menções em Soeur GENEVIÈVE, O.P., Soeur CÉCILE, O.C.D. e Jacques LONCHAMPT, (org.), Les mots de sainte Thérèse de l’Enfant-Jésus et de la SainteFace,Concordance générale, Paris, Cerf, 1996. 292 Também o processo silencioso do ensino de Jesus na sua alma: «Et ce bien aimé [Jésus] instruit mon âme, Il lui parle dans le silence, dans les ténèbres…» (L 135, 1rº) e, sobretudo, o “calar, sofrer…” de uma oblativa atitude como testemunha em CJ[Cahier Jaune], 6.4.1: «Quand nous sommes incomprises et jugées défavorablement, à quoi bom se défendre, s’expliquer? Laissons cela tomber, ne disons rien, c’est si doux de ne rien dire (…). …se taire. O bienheureux silence qui donne tant de paix à l’âme!» (in : Derniers Entretiens, «Oeuvres complètes», Paris, Desclée, 1992, p. 201). Sobre a ‘infância espiritual’ como via de abandono, cf. supra ns. 170, 215…, vide PHILIPPE DE LA TRINITÉ, O.C.D., Thérèse de Lisieux, la sainte de l’enfance spirituelle, (une relecture des textes d’André Combes), Paris, Lethielleux, 1980; e outras referências em nossos estudos: Carlos H. do C. SILVA, “O miniatural em Santa Teresa do Menino Jesus – Da mudança de escala na via de santidade”, in: Didaskalia, XXXII – 2, (2002), pp. 147-243; e Id., Tempo de densas trevas – Questão da «noite escura» em Thérèse de Lisieux ou de

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Fazendo uma síntese parcelar das considerações já indicadas, vale ainda a pena considerar uma observação diferenciada dos silêncios, tal como se pode ler em J. Krishnamurti: “O silêncio tem muitas qualidades. Há o silêncio entre dois ruídos, o silêncio entre duas notas musicais e o silêncio que se alarga no intervalo entre dois pensamentos. Há o especial, tranquilo e penetrante silêncio que vem com o entardecer no campo; há o silêncio em que se ouve o ladrar de um cão a distância ou o silvo do comboio à medida que sobe uma colina; o silêncio na casa em que todos se foram deitar (…). Há o silêncio interior (mental) nunca tangido por qualquer ruído, sequer por algum pensamento ou pela passageira aragem da experiência. É este silêncio que é inocente e, deste modo, sem fim. (…) A meditação espiritual (mental) que seja profundamente silenciosa constitui a sempre almejada bênção. Em tal silêncio encontram-se todas as espécies de silêncio. (…) É a mente assim meditativa que assim contém todas as variedades, modos e andamentos do silêncio; e é este silêncio da consciência (mental) que constitui o verdadeiro espírito religioso (…).”293

E pode propor-se de forma sinóptica o conjunto das variantes semânticas indicadas num «sensível obscurecimento» da Fé?”, in: Revista de Espiritualidade, XIV, nºs 54-56: «A Ciência do Amor» (Actas do Congresso, Fátima: 28/30 Out.º 2005), Abril/ Dez., (2006), pp. 345-416. 293 Cf. J. KRISHNAMURTI, The Only Revolution, ed. cit., pp. 31-32 (damos o texto mais extensivamente): “Silence has many qualities. There is the silence between two noises, the silence between two notes and the widening silence in the interval between two thoughts. There is that peculiar, quiet, pervading silence that comes of an evening in the country; there is the silence through which you hear the bark of a dog in the distance or the whistle of a train as it comes up a steep grade; the silence in a house when everybody has gone to sleep (…). There is the silence of the mind which is never touched by any noise, by any thought or by the passing wind of experience. It is this silence that is innocent, and so endless. When there is this silence of the mind action springs from it, and this action does not cause confusion or misery. The meditation of a mind that is utterly silent is the benediction that man is ever seeking. In this silence every quality of silence is. (…) The meditative mind contains all these varieties, changes and movements of silence. This silence of the mind is the true religious mind (…).”

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ESQUEMA I: De fato, apresentam-se em esquema os vários níveis e sentidos para o “silêncio», distinguindo desde o acústico negativo do silêncio externo (I: envolvendo as instâncias 1 e 2 do quadro abaixo), outro recolhimento e silêncio interior (II: envolvendo as instâncias 3, 4 e 5), em parte voluntário, e, enfim, os domínios passivos do inefável, do silêncio de Deus (III: já das instâncias 6, 7), e da escuta da absoluta Voz silenciosa (instância 8), sublinhando, em cada caso, a passagem da contemplação estática a exercícios espirituais de colaboração, vigília e escuta num aprofundamento do silêncio orante. Níveis de consciência

Vocabulári o do «silêncio»

Valências gnósicas

Dimensões místicas

Perspectivas práticas

8. Pneûma, spiritus ou espiritual

Hesykhía

E) - Oração do coração

Inhabitação espiritual

7. Noûs, intellectus, intelecto ‘arquetípico’

Sigé, silentium… “objectivo” , de e em Deus Quies, quietudo… também solitudo…

Serenidade, estar “sentado”, em paz… Secreto, solidão (silêncio ‘divino’)

Gnose do silêncio abscôndito, passivo ou ‘místico’ D) – Via da teologia apofática; tb. do ‘quietismo’

Contemplaç ão pura ou silenciosa

Ascese e oração mental, purificação do entendimento

Meditação

6. Iluminativo, intuitivo…d e consciência de si 5. Racional

Siopé, fazer silêncio, (“calar-se” como em tacere)

Apofático, inefável

Silêncio (interior)

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Oração de quietude


4. Emocional, mnésico e desiderativo …

3. Linguístico, fala e entendiment o semiótico 2. Perceptivo, “representaç ão” 1. Sensível, nível acústico

Tacere, (donde por vezes taciturnitas , tb. laconismo melancólic o, etc.) Aposiópesi s,reticentia, interrupção da palavra ‘Eco’, pausa… anápaula, diastolé Surdez anékoos (incapaz de ouvir), kophótes

Recolhimen to

C) – Via do recogimiento, purificação da memória

Sinceridade da franqueza essencial

Suspensão da palavra, fazer pausa ou calarse… Mudez (áphthoggos )

B) - Ascese da palavra, purgativo da sensibilidade … A) - Voto de silêncio

Simplicidad e ou economia da palavra

Insonoro (silêncio exterior) aphonía

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Escuta ou vigília

Guarda do coração

Entretanto, tem de se tratar em geral com esta instância da quietude com muito cuidado, não se vá confundir com a imobilidade hipnótica do “estado do espelho”, de uma autoidentificação, como se se considerasse fase de silêncio perfeito.294 De fato, o perfeito silêncio Sobre a “fase do espelho”, cf. Jacques LACAN, «Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je telle qu’elle nous est révélée dans l’expérience psychanalytique» (Communication au XVIe congrès intern. de psychanalyse, Zürich, 17 juillet, 1949), in : Id., Écrits, I, Paris, Seuil, 1966, pp. 89-97. A identidade equivaleria a uma indistinção que se poderia traduzir como « sono » e silêncio… Porém, nem a hipnose clássica, nem a sua compreensão adentro de uma psicologia do trans-pessoal e dos “estados alterados de consciência” (cf. Georges LAPASSADE, Les états modifiés de conscience, Paris, PUF, 1987; Ken WILBER, No Boundary – Eastern and Western Approaches to Personal Growth, Boulder/ London, Shambhala, 1981, pp. 123 e segs.; vide ainda vários artigos in: Seymour 294

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é a sua mesma denegação, já que a quietude se diz do que pluralmente diversifica o sujeito e o objeto, cria distâncias e “brancos” intermédios, pausa a vida em repouso. Perfeito silêncio é o absurdo, ainda de uma tal projeção mental esquecida do carácter incoativo de toda a ascese e de como a quietude mística se diferencia assim de tal quietismo absolvente.295 Por outro lado, o silêncio nem é ser, nem ação, sendo estes casos de intersecção ‘estrondosa’ do que ali em quietude nem se exige que seja, menos ainda que aja. Faz-se silêncio, isso sim. Como quem tece as fibras tranquilas da tapeçaria universal, como o labor das tecedeiras que escamoteiam por entre os dedos da paciência ancestral esse fiar o tempo, o ‘fuso da Necessidade’, a virtualidade corrente ainda no silêncio dos dias.296 Trabalho noturno sobretudo de um BOORSTEIN, (ed.), Transpersonal Psychotherapy, Alnany, N.Y. State Pr., 1996…) conseguem reduzir o que na mística oração de quietude é, outrossim, a pura espontaneidade, a viva consciência e o estado de alertness ou de awareness…Cf. Jean d’ENCAUSSE, La philosophie de l’éveil, Paris, Le Courrier du Livre, 1972, pp. 32 e segs. ; Jacynthe TREMBLAY, Auto-éveil et temporalité – Les défis posés par la philosophie de Nidhida, Paris, L’Harmattan, 2007. 295 Destrinça essencial, não apenas num plano de vida espiritual balizada por um horizonte psicológico, mas até na fundamentação de uma Teologia mística em que se denunciam atitudes quietistas (um dos principais desvios heréticos no campo da espiritualidade cristã: vide supra n. 109 e cf., alguns exemplares estudos históricos: Marcelino MENENDEZ PELAYO, Historia de los Heterodoxos Españoles, t. II, Madrid, B.A.C., 1987, pp.177 e segs. sobre o caso típico de Miguel de Molinos (séc. XVII); Marie-Louise GONDAL, Madame Guyon (1648-1717) – Un nouveau visage, Paris, Beauchesne, 1989; ainda Louis COGNET, La spiritualité moderne, I, Paris, Aubier, 1966, pp. 244 e segs. sobre Benoît de Canfeld e os antecedentes do quietismo nesta «escola abstracta» …; e sempre de remeter para Henri BREMOND, Histoire littéraire du sentiment religieux en France (depuis la fin des guerres de religion jusqu’à nos jours), T. II: L’Invasion mystique, (1921: Paris, Bloud & Gay, pp. 601-603): «Le quiétisme», reed. Grenoble, Jérôme Millon, 2006, vol. I, pp. 820 e segs.) ao arrepio da activa colaboração com a graça presente na economia teologal e nos graus contemplativos da oração e dons infusos. Cf., entre outros, CharlesAndré BERNARD, S.J., «Éclaircissements théologiques : La passivité contemplative», in : Id., Théologie mystique, ed. Maria Giovanna Muzj, Paris, Cerf, 2005, pp. 197 e segs., sobretudo, pp. 210 e segs. 296 Verdadeiro hiato no ser, como no agir… qual puro intervalo “poético”, este quase-nada do silêncio, aponta para o campo da arte de fazer esse tempo neutro (cf. V. JANKÉLEVITCH, Le Je-ne-sais-quoi et le Presque-rien, 1: La manière et

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desfazer dos nós e embaraços, coando a luz fina da aurora sem o som despertado de certa vida… Obra ao negro desse ‘destecer’ o que se disse, se tomou como ser ou se coleccionou de acções, afinal reconduzidas ao ‘fiar’ de outras possibilidades assim silenciosas, em espera reiterada como a de Penélope.297 É neste contexto, neste tear de rumores ainda não acontecidos, que o silêncio abriga o esboço da vida, o seu advento, naquele tempo do Verbo oculto que vários místicos estimaram contemplar na diafania tranquila dessa hora de silêncio.298 l’occasion, Paris, Seuil, 1980, pp. 112 e segs.), de tecer a demora silenciosamente… Ainda o eco de Pessoa, na «Ode» de Ricardo REIS, “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio./ Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos/ Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas./ (Enlacemos as mãos.)// (…) Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos./ Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio./ Mais vale saber passar silenciosamente/ E sem desassossegos grandes.// (…).” (in: F. PESSOA, Obra Poética, ed. cit., p. 256). E tal na sequência daquele gesto ancestral desde Homero, Hesíodo, ou de Platão… do que se mantém assim de permeio (metaxý)… Analisámos esta dimensão inter-média a propósito da noção de Pátria: Carlos H. do C. SILVA, “Vocação eremítica e diálogo intercultural – do único e sua diferenciação”, in: Cultura Entre Culturas, nº 1, Primavera/ Verão, (2010), pp. 35-48. 297 Cf. em Homero e já sobre o mito de Penélope, vide Alain PEYREFITTE, Le mythe de Pénélope, Paris, Fayard, 1998 reed., pp. 85 et passim.Cf. John SCHEID e Jesper SVENBRO, Le métier de Zeus – Mythe du tissage et du tissu dans le monde gréco-romain, Paris, Éd. errance, 2003, pp. 93 e segs. 298 Tem particular oportunidade para a nossa perspectiva do silêncio como aposiópesis ou assim um intervalo rítmico na vida espiritual o que para vários contemplativos constitui o exercício da oração do tempo presente, mais propriamente doagora sempre único em que silenciosamente se dá o encontro com Deus nessa Presença assim presente… Três exemplos acodem nesta prática, que lembra a antiga hesykhía, mas é sobretudo desenvolvida na Modernidade: cf. Frère LAURENT DE LA RÉSURRECTION (Nicolas Herman), Écrits et entretiens sur la pratique de la Présence de Dieu, ed. Conrad De Meester, Paris, Cerf, 1991, pp. 205 e segs.; Jean-Pierre de CAUSSADE, S.J., L’Abandon à la Providence divine, ed. M. Olphe-Galliard, Paris, Desclée, 1966, c. IX: «De l’excellence de la volonté de Dieu et du moment présent», pp. 96 e segs. (cf. ed. de Dominique Salin, S.J., pondo em causa a autoria atribuída a Jean-Pierre de Caussade, Paris, Desclée, 2005 e «Introduction», pp. 7-32); mas saliente-se ainda o estudo de Michel OLPHEGALLIARD, S.J., La théologie mystique en France au XVIII e siècle – Le Père de Caussade, Paris, Beauchesne, 1984, sobretudo quando se refere à prática de «les pauses attentives» como momentos de suspensão de actos de raciocínio, etc. num interior silêncio… ; cf. ainda o que afirma Père JOSEPH (François Joseph Leclerc

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Recolhimento silencioso em que já não é alguém a fazer silêncio, mas a consentir nesse resguardo da noite, contemplando outra maternidade assim imaculada sem ruído, na gênese toda interior do Verbo, na intimidade silenciosa de Maria.299 Poder-se-ia resumir este indicativo místico, da ‘palavra guardada no coração’, exatamente no que a bem-aventurada Irmã Isabel da Trindade revê em Nossa Senhora: “…Uma criatura cuja vida foi tão simples, tão perdida em Deus, que quase nada se pode dizer dela. «Virgo fidelis»: é a Virgem fiel, «aquela que guardava todas as coisas no seu coração». Mantinha-se tão pequena, tão recolhida em face de Deus, no segredo do templo, que atraía as complacências da Santíssima Trindade (…).Parece-me que a atitude da Virgem, durante os meses que decorreram entre a Anunciação e o Natal, é o modelo das almas interiores, dos seres que Deus escolheu para viverem de dentro, no fundo do abismo sem fundo. Com que paz, em que recolhimento, Maria se entregava e se prestava a todas as coisas! (…).” 300 du Tremblay), em «Réduction de l’Exercice du moment» : « C’est par cet acte qu’il se faut renouveler de moment en moment. L’entendement et la volonté, la foi et l’amour procédant de la grâce se réunissent au fond de l’esprit pour concourir à la production de cet acte. » (in : Id., L’Exercice du moment présent, (1671), Paris/ Orbey, Arfuyen, 2006, p. 66… 299 Cf. supra n. 195; e vide Ignacio LARRANÃGA, El silencio de María, trad. port. A. Duarte de Almeida, Apelação, Ed. Paulistas, 1978, pp. 101 e segs.: «Silêncio». Cf. ainda referências várias em nossa meditação: Carlos H. do C. SILVA, “Mater Misericordiae e mística mariana, ou da via espiritual feminina no sonho cristão”, in: Várs. Auts., Maria, Mãe de Misericórdia, (IX Semana de Espiritualidade sobre a Misericórdia de Deus – Convento de Balsamão, 18-23 Abril 2006), Fátima, Ed. M.I.C., 2011, pp. 67-226. Como registo de fundo sobre este recolhimento mariano tenha-se presente: Henri de LUBAC, L’Éternel Féminin, précédé du texte de Teilhard de Chardin, Paris, Aubier, 1983. 300 Cf. ISABEL DA TRINDADE, «O Céu na Terra», §§ 39-40; seguimos esta nossa tradução in: I. da Tr., Obras Completas, Avessadas/ Marco de Canaveses, Ed. Carmelo, 2008, p. 124, a partir da ed. crítica pelo P. Conrad De MEESTER, O.C.D., (ed.), ÉLISABETH DE LA TRINITÉ, Oeuvres complètes, Paris, Cerf, 1991, de que citamos o texto original, pp. 123-124: «Une créature dont la vie fut si simple, si perdue en Dieu que l’on ne peut presque rien en dire. «Virgo fidelis» : c’est la Vierge fidèle, «celle qui gardait toutes choses en son cœur». Elle se tenait si petite, si recueillie en face de Dieu, dans le secret du temple, qu’elle attirait les

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E a mesma alma mística acrescenta, noutra meditação sobre a Virgem, esta nota de puro silêncio, de via toda interior de inteira escuta dessa outra linguagem: “…quando se observa a lucidez da Virgem!... Ela é o inenarrável, [é] o «segredo que guardava e meditava no seu coração», [e] que nenhuma língua pôde revelar, nem pena alguma traduzir! Esta Mãe de graça vai formar a minha alma a fim de que esta sua pequena filha seja uma imagem viva, «cativante», do seu primogénito, o Filho do Eterno (…).”301

É nesta escola do silêncio mariano que se redescobre, em radical humildade, o fundamento último de toda a experiência mística como silenciosa disposição a conformar-se pela inhabitação no santo

complaisances de la Trinité sainte. (…) Il me semble que l’atittude de la Vierge durant les mois qui s’écoulèrent entre l’Annonciation et la Nativité est le modèle des âmes intérieures, des êtres que Dieu a choisis pour vivre au-dedans, au fond de l’abîme sans fond. Dans quelle paix, dans quel recueillement Marie se rendait et se prêtait à toutes choses !». Cf. Dominique POIROT, «La Vierge Marie dans la vie spirituelle d’Élisabeth», in : Jean CLAPIER, OCD, (dir.), Élisabeth de la Trinité – L’aventure mystique, Sources, expérience théologale, rayonnement, Toulouse, Éd. du Carmel, 2006, pp. 413-440 ; e vide n. seguinte. 301 Cf. ISABEL DA TRINDADE, «Último Retiro», § 2, in: Obras, ed. cit., p. 152; e em Oeuvres complètes, ed. cit., p. 153: « «Nul n’a vu le Père, nous dit saint Jean, si ce n’est le Fils et ceux auxquels Il a plu au Fils de le révéler.» Il me semble que l’on peut dire aussi : «Nul n’a pénétré le mystère du Christ en sa profondeur, si ce n’est la Vierge.» Jean et Madeleine ont lu bien loin ce mystère, saint Paul parle souvent de «l’intelligence qui lui en a été donnée», et pourtant, comme tous les saints restent dans l’ombre quand on regard aux clartés de la Vierge !.... Elle, c’est l’inénarrable, [c’est] le «secret qu’elle gardait et repassait en son cœur» [et] que nulle langue n’a pu révéler, nulle plume n’a pu traduire ! Cette Mère de grâce va former mon âme afin que sa petite enfant soit une image vivante, «saisissante», de son premier-né (…) » («Dernière retraite», § 2, citámos mais extensamente). Sobre esta abordagem mariana em Isabel da Trindade, cf. ainda outras referências e reflexão nossa em : Carlos H. do C. SILVA, “Mater Misericordiae e mística mariana, ou da via espiritual feminina no sonho cristão”, in: Várs. Auts., Maria, Mãe de Misericórdia, (IX Semana de Espiritualidade sobre a Misericórdia de Deus – Convento de Balsamão, 18-23 Abril 2006), Fátima, Ed. M.I.C., 2011, pp. 67-226.

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recolhimento, nada podendo distrair desse “sagrado silêncio” da intimidade divina.302 Nota conclusiva: Em ordem à prática da hesykhía »Mit Schweigen lernet man.« „Schweig allerliebster schweig: kanstu mir gäntzlich schweigen: So wird dir Gott mehr gutts, als du begehrst, erzeigen.“ (ANGELUS SILESIUS, Cherubinischer Wandersmann, II, 8) «Une louange de gloire, c’est une âme de silence qui se tient comme une lyre sous la touche mystérieuse de l’Esprit Saint afin qu’Il en fasse sortir des harmonies divines (…). » (ÉLISABETH DE LA TRINITÉ, «Le Ciel dans la Foi», 43, in : Œuvres, ed. Conrad De Meester, p. 126)

Uma linguagem melhor capaz do silêncio, até por não ser essencialmente vocálica, mas indicativa e gráfica, como a da simbólica matemática, pode favorecer a captação disso, que na mística se refere ainda verbalmente como indizível.303 A questão não está só

Sobre este modelo de alma silenciosa, “nesciente”… no eco de Lc 10, 42, vide ainda ÉLISABETH DE LA TRINITÉ, «Dernière retraite», § 4: «Combien elle est indispensable, cette belle unité intérieure, à l’âme qui veut vivre ici-bas de la vie des bienheureux, c’est-à-dire des êtres simples, des esprits. » Il me semble que le Maître regardait là lorsqu’Il parlait à Madeleine de l’«Unum necessarium». Comme la grande sainte l’avait compris ! L’oeil de son âme éclairée par la lumière de foi avait reconnu son Dieu sous le voile de l’humanité ; et dans le silence, dans l’unité des puissances, «elle écoutait la parole qu’Il lui disait». Elle pouvait chanter : «Mon âme est toujours entre mes mains», et encore ce petit mot : «Nescivi». Oui, elle ne savait plus rien sinon Lui ! On pouvai faire du bruit, s’agiter autour d’elle: «Nescivi»! On pouvait l’accuser : «Nescivi» ! Pas plus son honneur que les choses extérieures ne peuvent la faire sortir de son ‘sacré silence’.»(in: Oeuvres complètes, pp. 155-156; trad. port., pp. 153-154), Faça-se notar ainda aqui o directo eco de Ruusbroec… Vide também: Rik Van NIEUWENHOVE, Jan van Ruusbroec, Mystical Theologian of the Trinity, Notre Dame, Indiana, Univ. of Notre Dame Pr., 2003, pp. 29 e segs. 303 Desenvolvemos esta temática em: Carlos H. do C. SILVA, “Número diferencial da morte – St.ª Teresa de Ávila e a visão do seu «tempo de vida»”, in: Revista de 302

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na deslocação da oralidade, mesmo quando muda,304 na leitura da experiência em si própria recolhida ou dita inefável, para a semiótica visual e sem som,305 mas para uma tal contemplação que não deserta o eco mental em imaginação surda, porém num relacionamento antepredicativo.306 Instâncias mínimas, quais “signos primordiais”, que como números numerantes pré-nomeiam e ‘calculam’ em silêncio o que depois é já o seu eco numerado, avaliado e mental.307 Espiritualidade, XIX, nº 74, Abril/ Junho (2011), pp. 92-160, sobretudo pp. 151 e segs.: «Nota conclusiva: O número e a experiência mística». 304 Cf. supra n. 35. Lembre-se como na história da própria leitura o modo em surdina ou até “mudo” ou calado só advém culturalmente bastante tarde: ao tempo de S. Agostinho… Cf. Maria TASINATO, L’oeil du silence – Éloge de la lecture, trad. do ital., Paris, Verdier, 1986, pp. 31 e segs. : «Le «péché» silencieux» [« le démon silencieux de la lecture »] ; vide ainda Alberto MANGUEL, A History of Reading, ed. cit., pp. 121 e segs. : «Leitura ouvida»; cf. ainda outros vários artigos em Roger CHARTIER, (dir.), Pratiques de la lecture, Paris, Payot, reed. 2003. Em complemento à lectio, cf. nosso «Posfácio» a Armindo dos Santos VAZ, A arte de ler a Bíblia – Em louvor da lectio divina, Marco de Canaveses/ Lisboa, Ed. Carmelo/ Fundação ‘Ajuda à Igreja que Sofre’, 2008 2, pp. 173-185: Carlos H. do C. SILVA, “Um livro que reflecte o espelho de perfeição da lectio divina”. 305 Ver o som, como na leitura da pauta musical (cf. Annie GUTMANN, «La voix chantée», in: Claude DANZIGER, (dir.), Le silence, La force du vide, ed. cit., pp. 176 e segs., sobretudo pp. 189 e segs.: «La notation musicale et le silence»), mas, antes do mais, na anagnose das letras… Cf. ainda Malcolm PARKES, «Lire, écrire, interpréter le texte. Pratiques monastiques dans le haut Moyen Âge», in : Guglielmo CAVALLO e Roger CHARTIER, (dir.), Histoire de la lecture dans le monde occidental, pp. 118 e segs. : «L’écriture comme langage visible». O tema vem já da Antiguidade : dito da pictura ut poesia… Cf. supra ns. 40 e 120. 306 Não um pensar que declina para imagens (cf. Éliane Amado LÉVYVALENSI, Penser ou/et Rêver – Mécanismes et objectifs de la pensée en Occident et dans le Judaïsme, Le Pleissis-Robinson, Institut Synthélabo, 1997, pp. 61 e segs.: «La pensée onirique»…), mas a estruturação de puras relações do tipo de f(x) cuja “voz” fica em suspenso das respectivas “incógnitas”… Pergunta-se ainda Thomas MERTON, sobre esse unspeakable: “The Unspeakable. What is this? Surely, na eschatological image. It is the void that we encounter, you and I, underlying the announced programs, the good intentions, the unexampled and universal aspirations for the best of all possible worlds. It is the void that contradicts everything that is spoken even before the words are said (…).” (in: Raids on the Unspeakable, Wellwood, Burns & Oates, 1977 e reed., p. 4). 307 Vide referências em nossos estudos: Carlos H. do C. SILVA, “Dos signos primitivos: Preliminares etiológicos para uma reflexão sobre a essência da linguagem”, in: Análise, I- 2 (1984), pp. 21-78; Id., (Continuação), in: Análise, II -1, (1985), pp.189-275.

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Por outro lado, à parte esta visão diversamente audiente, haverá no silêncio mesmo do ouvido desatento um indício de outro sentido, quiçá por desenvolver numa métrica diferente da das demais estesias que estão na base do ‘senso comum’.308 Hiato ou falta que revela, como no visionarismo místico, um âmbito de escuta de palavras sem som, como se chega a observar no diálogo extático de alguns místicos, ou então pelo desenvolvimento de um ‘órgão’ próprio no organismo espiritual.309 Isto, que tem sido referido como “sentidos espirituais”, mostra que o silêncio não é metáfora, menos ainda estratégia retórica ou mero indicativo semântico, mas a função, o processo ‘sintáxico’ de uma desassimilação deste mundo fechado da estesia receptiva, porventura indutor da descoberta e formação do órgão aberto de vibração, de consonância tranquila por afinidade com o todo.310Sentido de harmonia, silencioso mas não menos musical, que Na base do koinon aisthetón ou de tal “senso comum” que faz síntese dissolvente de outras eventuais possibilidades estésicas, pode estar, no que por percepção do silêncio se dirá, uma outra sensibilidade: como sentido de presença. Cf. Robert MIQUEL, Du silence à la parole, ed. cit., pp. 175 e vsegs. : «Vivre da présence sonore», como reconhecimento da silenciosa Voz assim presente… Como afirma Thomas MERTON, Thoughts in Solitude, Wellwood, Burns & Oates, 1958 e reed., p. 83: “In solitude we remain face to face with the naked being of things. And yet we find that the nakedness of reality which we have feared, is neither a matter of terror nor for shame. It is clothed in the friendly communion of silence, and this silence is related to love.” 309 Vide supra n. 6, citando-se H. Corbin. Cf. também o caso das visionárias medievais, como HILDEGARDA DE BINGEN, Scivias (ed. Bruce HOZESKI, trad., H. von Bingen, Mystical Visions, Santa Fe, New Mexico, Bear & Co., 1986). Cf. Victoria CIRLOT, “La explosión de la imágenes: Hildegard von Bingen y Max Ernst”, in: Óscar PUJOL e Amador VEJA, (eds.), Las palabras del silencio: el lenguaje de la ausencia en las distintas tradiciones místicas, ed. cit., pp. 93-112. Vide ainda: M. CANÉVET, P. ADNÈS, W. YEOMANS, A. DERVILLE, Les sens spirituels, (extracto de DS, t. 15), Paris, Beauchesne, 1993… Para a «arqueologia» das “visões”, cf. Christine BERGÉ, «Les chemins du visible», in: Ethnologie française, t. XXXIII, 4, oct./ déc., (2003) : «Voix, Visions, Apparitions», pp. 549552. Vide supra n. 105. 310 Um dos indícios deste “silencioso” sentido manifesta-se nas concepções vibráteis do próprio Universo, tal se formula na teoria tântrica do spanda, “vibração”. Cf. Lilian SILBURN, (intr. e trad.), Spandakârikâ – Stances sur la vibration de Vasugupta et leurs gloses, (Études sur le ´sivaïsme du Cachemire – École Spanda), («Publ. de l’Institut de Civilis. Indienne», fasc. 58), Paris, Inst. de 308

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trabalha com as energias tácitas do cosmos, já não nos limites individuais, mas pondo o «corpo» como a raiz de uma mais vasta relação que, na linguagem dos místicos, se poderá dizer celeste.311 Cuidado, pois, em não aplicar a este nível do silêncio o mesmo trato do habitual sentir, longe da pureza sem sujeito, incapaz de ser puro toque objetivo e logo o reduzindo à subjetividade emocional, à métrica do costume de gostar do silêncio.312 O silêncio tal como se perspectiva não deve ser objeto de emoção, dele se retirando tal prazer ou gosto num apetite de descanso ou de subjetiva serenidade. A lição do silêncio como sentido transcendente é, antes do mais, de transcendência do próprio sentir (subjetivamente encarado), dando a escutar o que não se ouve, dando a meditar o que não se entende, dando a viver o que não se morre…313 Civil. Indienne, 1990, sobretudo «Introduction», pp. 3 e segs. Não deixa de ser interessante que nalgumas das concepções “cosmológicas” mais recentes se volte a este contexto “pitagórico” ao admitir-se na base última a string-theory: cf. Brian GREENE, The Elegant Universe, - Superstrings, Hidden Dimensions, and the Quest for the Ultimate Theory, London, Jonathan Cape, 1999, pp. 135 e segs.: «Nothing but Music: The Essentials of Superstring Theory». 311 Será ainda interessante retomar a imagem “musical” que usa ISABEL DA TRINDADE, em «O Céu na Terra», § 43, justamente para a « alma silenciosa», quando compara a estrutura do humano com uma harpa, ou lira, cujas cordas restam ser afinadas para que dela se possa obter a mais bela harmonia: «Une louange de gloire, c’est une âme de silence qui se tient comme une lyre sous la touche mystérieuse de l’Esprit Saint afin qu’Il en fasse sortir des harmonies divines; elle sait que la souffrance est une corde qui produit des sons plus beaux encore, aussi elle aime la voir à son instrument afin de remuer plus délicieusement le Cœur de son Dieu. » (in: Oeuvres, ed. cit., p. 126; trad. port., Obras, p. 126). 312 A ordem do silêncio não deverá vir confundida com a aprazível emocionalidade em equilíbrio, numa certa neutralidade atraente… Cf. Ronald B. BOND, “God’s «Back parts»: Silence and the Acommodating Word”, in: E. D. BLOGETT e H. G. COWARD, (eds.), Silence, the Word and the Sacred, ed. cit., pp. 169-187; e Marc de SMEDT, Éloge du silence, Paris, Albin Michel, 1986, pp. 61 e segs.: «Le miroir de Psyché». É nessa perspectiva espiritual que se situa a oração de quietude, cf. as práticas indicações do monge cistercience Dom M. Basil PENNINGTON, La prière de silence, Renouveler une forme traditionnelle de prière chrétienne, trad. do ingl., Ottawa, Novalis, 2006, pp. 117 e segs.: «Prière de silence et progrès spirituel». 313 Um pouco como no refrão da sabedoria do zen, tal se formula ainda num título de uma obra de OSHO, sobre o Zen: Walk Without Feet, Fly Withouth Wings and Think Without Mind, - Responding to disciples’ questions, New Delhi, Full Circle, 1999.

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O que se traduz na voz suavíssima, ou de trovão, da revelação escutada paradoxalmente em silêncio, porque já sem separação, sem uma tradução inteligível, antes no molde direto que o som opera em luz e forma, como também sabido da acústica, da medicina vibratória, etc.314O ‘órgão’ da calma, dessa serenidade a que se recolhe a própria inteligência na consciência de que já não sou “eu” a pensar, mas o pensamento, a linguagem… a dar-se “em mim”, implica que “eu” esteja nesse Espírito, me oiça nesse silêncio de Deus, que me invade dessa paz e radical serenidade.315 É por isso que, curiosamente, tanto na descoberta ancestral das técnicas orientais do yoga da respiração,316 como no seu paralelo do O que fica aquém ou além do limiar… Cf. Jonathan GOLDMAN, Healing Sounds: The Power of Harmonics, Rochester-Vermont, Healing Arts Pr., 2002.Vide a descrição mística de nâda tattva, ou “essência do som primordial” tal como é meditada em Nâda Kârika (aoud ed. e trad. in: Krishna SIVARAMAN, “The Word as a Category of Revelation”, in: Harold COWARD e K. SIVARAMAN, (eds.), Revelation in Indian Thought – A Festschrift in Honour of Professor T.R.V. Murti, Eneryville, Dharma Publ., 1977, pp. 54-59); trata-se assim do som de «Nada», isto é, em tibetano, do “silêncio”, segundo o texto budista divulgado pela versão teosófica e traduzido para português por Fernando PESSOA, (trad.), A Voz do Silêncio, Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1969, supra n. 82. Vide Robert MIQUEL, Du silence à la parole, L’univers des formes sonores, Méolans-Revel, Éd. DésIris, 2002, pp. 19 e segs.: «La voix du silence». 315 Tratar-se-ia de um registo egóico transformado por essa silenciosa potenciação de consciência no que, em última análise, apontaria para a suprema identidade Atman-Brahman, ou seja, da realidade espiritual coincidente com o Divino em si mesmo. Cf. Krishna SIVARAMAN, “The Word as a Category of Revelation”, in: Harold COWARD e K. SIVARAMAN, (eds.), Revelation in Indian Thought, ed. cit.,pp. 45-64… É neste contexto panteístico ou de repercussão absoluta que tal consciência solitária silenciosamente aponta. 316 Cf. PATAÑJALI, Yogasûtra, II, 49: ‘tasmin sati ´svâsaprasvâsayor gativicchedah prânâyâmah’ [“Assim sendo, a separação da moção de inspiração e de expiração é o controle do sopro”]… e vide comentário em Alyette DEGRÂCES, Les Yogasûtra de Patañjali – Des chemins au fin chemin, trad. do sâncr. e notas, Paris, Fayard, 2004, pp. 291 e segs.; salientando-se este controle da respiração, prânâyâma, como um grau “meditativo” de interiorização e essencialmente de “suspensão” (em kumbhaka ou “conservação” intervalar à inspiração-expiração). Vide ainda Mircéa ÉLIADE, Techniques du Yoga, Paris, 1948, pp. 73 e segs.: «Les postures et la discipline de la respiration». Cf. também : Swâmi SIDDHESWARÂNANDA, « La technique hindoue de la méditation», in : Várs, Auts., Technique et contemplation, («Les études carmélitaines»), Bruges, Desclée de 314

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hesychasmo ortodoxo,317 se aprofunda essa inspiração que serve de órgão “silencioso” para captar ou fixar o sopro do Espírito Santo, de modo encarnacional, como aura até visível.318 É nesse respiro, talvez como resíduo do antigo noeîn sensitivo, um “cheirar” tal presença, um pressentir assim, que se faz circular o que os hesychastas referem como a ‘luz invisível’, ou esse silencioso ritmo espiritual.319 Brouwer, 1949, pp. 17-35, sobretudo pp. 27 e segs. Vide também no Budismo (Theravâda), Sutra Anapananusmrti, do Samyukta Agama, trad. do chinês por Thich NHAT HAHN, in : La respiration essentielle, Notre rendez-vous avec la vie, Paris, Albin Michel, 1996, pp. 161 e segs. 317 Cf., entre outros, Irénée HAUSHERR, S.J., La méthode d’oraison hésychaste, (in : «Orientalia Christiana», vol. IX – 2, nº 36), Roma, Pont. Institutum Orientalium Studiorum, 1927, sobretudo pp. 150 e segs., reproduzindo o fragmento de NICÉFORO, O SOLITÁRIO, Tractatus de sobrietate et cordis custodia, in: MG, t. 147, cols. 946-966 (discutindo também antecedentes deste método em S. Simeão, o Novo Téologo, em Gregório, o Sinaíta…), sobre a técnica da hesykhía, isto é, da “calma” ou “silêncio” assim estabelecida pela oração do coração.Vide também Jean-Yves LELOUP, Écrits sur l’hésychasme, Une tradition contemplative oubliée, Paris, Albin Michel, 1990, pp. 37 e segs., principalmente quando além do fuge e do quiesce dos preceitos monásticos (de ARSÉNIO, in: Apophtegmata, 1, 2…), realça o tace, (“cala-te”), isto é, o “calar”, aprofundando-o nessa respiração silenciosa do Espírito no mais íntimo da alma. Vide ainda a consciência do paralelo desta forma orante hesichasta com o yoga já referida por Mircéa ÉLIADE, Yoga, Immortalité et liberté, Paris, Payot, 1954, pp. 72 e segs., nomeadamente sobre a onfaloscopia e a respiração rítmica; cf. Id., Techniques du Yoga, ed. cit. pp. 60 e segs. e Id., Patañjali et le Yoga, Paris, Seuil, 1962, pp. 66 e segs.: «L’hésychasme»; cf. Jean-Yves LELOUP, Écrits sur l’hésychasme, ed. cit., pp. 140 e segs.: «Le Logos, le Nom et le Son dans la pratique du Yoga»… 318 Vide NICÉFORO, O SOLITÁRIO, Tractatus de sobrietate et cordis custodia: “…sentado numa cela tranquila, retirado num canto, faz o que te digo: fecha a porta e eleva o teu espírito acima de todo o objecto vão ou temporal (…)” (ed. cit., cols. 963-964), seguindo-se a descrição do modo como silenciosamente se concentra o sopro e se fixa o Espírito Santo no mais íntimo.Cf. André BLOOM, «Contemplation et ascèse : contribution orthodoxe», in : Várs, Auts., Technique et contemplation, («Les études carmélitaines»), ed. cit., pp. 49-67, sobretudo pp. 54-56 em que se relaciona a experiência da hesykhía com a “luz” sentida ao nível «thýmico» ou cardíaco dessa concentração orante. Vide também Jean-Yves LELOUP, Écrits sur l’hésychasme, ed. cit., pp. 204 e segs. : «Les effets de la prière : le silence, l’hésychia». 319 Sobre a hipótese etimológica que faz derivar noeîn e nóos (noûs) da raiz indoeuropeia *snu-, donde o alemão sniffen, “cheirar”, etc., cf. Hjalmar FRISK, Griechisches Etymologisches Wörterbuch, Heidelberg, Carl Winter, 1973, t. II, sub nom.Trata-se de um sentido primitivo do « pensar », como já atestado em Homero

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O processo de tal prânâyâma remete o silêncio para a condição “ativa” de um tal processo passivo, como catalisador de uma atenção densificada sem ruído ou externa dissipação, a qual vai permitir que o sopro dessa Presença se faça, habite em nós.320 E a descrição minuciosa deste processo rítmico que associa a respiração do ar a essa outra inspiração espiritual, fixando-a por esse vazio, silêncio ou perfeita calma, é mesmo pormenorizada nas várias fases desta técnica de oração, também dita ‘do coração’.321 na acepção de “pressentir”, “cheirar o perigo”… Cf. outras referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Ver, ouvir e entender… Ou da originária mudez do lógos filosófico – Tradição pré-socrática e destino do pensar”, in: Várs. Auts., Razão e Liberdade. Homenagem a Manuel José do Carmo Ferreira, ed. cit., vol. I, pp. 519-569; sobretudo p. 545. No caso presente trata-se de encarar essa iluminação que provém pelo respiro silencioso e pelo ritmo que pressente no “ar” a presença de um outro sopro espiritual.Não deixa de ser interessante o estudo de Jean de PALACIO, Le silence du texte – Poétique de la Décadence, ed. cit., pp. 201 e segs.: «Le langage du nez», embora referido à “linguagem” dos perfumes… Cf. supra n. 214. 320 Como se sabe das técnicas doprânâyâmao que detona uma modificação consciente resulta de um esforço que se complementa pela suspensão passiva da respiração: cf., por exemplo, Eric BARET, Yoga – Corps de vibration, corps de silence selon le Shivaïsme tantrique cachémirien, Paris, Ed. Almora, 2007, pp. 194 e segs.: «Découvrir les prolongations»… Compare-se ainda com a técnica proposta por Stanislav Grof: cf. Pierre PELLETIER, Les thérapies transpersonnelles, Montréal, Fides, 1996, pp. 195 e segs.: «La respiration holographique: Stanislav Grof». 321 Vide ainda I. HAUSHERR, La méthode d’Oraison Hésychaste, ed. cit., p. 110, citando NICODEMOS, O HAGIORITA («De quelle manière l’esprit entre dans le cœur») : « Par cette même rétention momentanée de la respiration toutes les autres puissances de l’âme s’unissent, elles aussi, et retournent à l’esprit » ; cf. ainda, p. 107 : « C’est pourquoi votre toute-sainteté, une fois qu’elle a libéré l’énergie de son esprit, dont l’organe est l’encéphale (…), il est convenable maintenant qu’elle la ramène à sa propre essence et puissance, en d’autres termes il faut qu’elle fasse rentrer son esprit au milieu de son cœur qui est l’organe de l’essence de l’esprit et de sa puissance, (…) et qu’elle contemple l’homme intérieur. » Explica depois a moção deste jejum (népsis) interior, evitando o desvio em relação a esse silencioso centro cordial, atraíndo quer o “quente e vivo pensamento” da mnéme (“recordação”) de Deus, quer o próprio Espírito que aí ora sem distracções. (Ibid., pp. 109-110). Vide também Hiérothée VLACHOS, Entretiens avec un ermite de la sainte Montagne sur la prière du cœur, ed. cit., pp. 60 e segs. : «Les manières de prier» ; e Alphonse et Rachel GOETTMANN, Prière de Jésus, prière du cœur, Paris, Albin Michel, 1994 e reed., pp. 69 e segs. : «Pratique de la prière de Jésus», pondo em relevo essa ‘técnica’ do rítmico silêncio…

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Independentemente de uma análise das diversas fases da prática da hesykhía, que aqui não se poderia desenvolver, não pode deixar de se fazer notar o adensamento progressivo do silêncio, desde as formas preliminares da reclusão e da anacorese eremítica ou prémonástica, até à oração espiritual ritmada por essa calma divina, assim infusa e recolhida, passando por estágios intermédios da tranquilidade e pacificação interior em que estará ainda presente uma influência da meditação estóica.322 De salientar, no entanto, que não basta a amerímnia, ou mesmo tal ataraxia, mais ascéticas do que características do silêncio místico, outrossim exigindo a népsis e a vigília de uma diferente “escuta” em que se transforma a própria oração.323 Mas é sobretudo a silenciosa recordação constante, a rítmica oração acertada pela respiração e batimento cardíaco, ainda associada a postura prostrada e ao arrependimento ou conversão assim profunda, frequentemente adornada pelo pénthos ou “dom de lágrimas”, que corresponde a

322

De facto, o tema e a prática da tranquillitas como motivo da ética estóica (cf. Michel SPANNEUT, Le stoïcisme des Pères de l’Église – De Clément de Rome à Clément d’Alexandrie, Paris, Seuil, 1957, pp. 248 et passim; e vide com interesse: Id., (ed. e trad.), Commentaire sur la Paraphrase chrétienne du Manuel d’Épictète, («Sources chrétiennes», nº 503), Paris, Cerf, 2007) parece estar presente como fundo comum do exercício monástico desta serenidade. Cf. García M. COLOMBÁS, O.S.B., El Monacato Primitivo, Madrid, B.A.C., 19982, pp. 562 e segs.: «Silencio» e pp. 691 e segs.: «Hesychía». Vide Pierre ADNÈS, art. «Hésychasme», in : DS t. VII, cols. 381-399 ; também : Un frère Carme, L’hésychia – Chemin de la tranquillité surnaturelle et de la fécondité ecclésiale, Toulouse, Éd. du Carmel, 2008, pp. 35 e segs. : «Tais-toi !». 323 São estas instâncias diferenciadas pelo próprio exercício de “recolhimento” e observação do funcionamento ainda ruidoso ou já silencioso das várias faculdades. O “jejum” do coração, qual népsis que caracteriza o andamento interiorizado desta prática do “deserto” permite aprofundar o silêncio: vide Marie-Madeleine DAVID, Le Désert intérieur, Paris, Albin Michel, 1983, pp. 129 e segs.; cf. outras referências em nosso estudo : Carlos H. do C. SILVA, “Deserto e Metamorfose de Vida”, in: PublicaçõesTerraço/ Graal, nº 10, Junho (2001), núm. integral, pp. 5-38; cf. Gregory COLLINS, “Simeon the New Theologian: An Ascetical Theology for Middle-Byzantine Monks”, in: Vincent L. WIMBUSH e Richard VALANTASIS, (eds.), Asceticism, Oxford, Univ. Pr., 1998, pp. 343-356, salientando o seu modelo de hesychia.

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invocação quase silenciosa do Nome único, quiçá da mera sílaba, como um lamento, uma jaculatória que pauta o silêncio fecundo.324 Já não é o homem a ter a iniciativa da palavra, mas esta gênese espiritual da mesma no seu íntimo, como ensinou S. Paulo, quando refere essa direção do Espírito através de gemidos ou sussurros inenarráveis: “De maneira semelhante é que o Espírito vem em ajuda da nossa fraqueza, pois não sabemos o que devemos pedir em nossas orações, mas é o próprio Espírito que intercede por nós com gemidos inefáveis.” 325

É nesse clima de escuta da Voz assim silenciada ou interiorizada de Deus no íntimo da alma que, enfim, se atinge essa linguagem do Espírito Santo, não como glossolalía espetacular, mas a título de dom profético e operação de transformação em Deus, isto é, da théosis por participação na Caridade do Espírito.326 324

A oração de silêncio tem, assim, este timbre re-cordativo, não apenas como uma calada inteligência de mnéme theoû (ou memoria Dei) (cf. J. LEMAÎTRE, art. «Contemplation [“Le souvenir de Dieu”]», in: Dict. de Spiritualité, 2, cols. 18581862; vide também: A. GARDEIL, O.P., La Structure de l’Âme et l’Expérience Mystique, 2 ts., Paris, Gabalda, 1927, t. I, pp. 77 e segs., sobre a memoria sui e a memoria Dei em St.º Agostinho…), mas enquanto terna consciência que faz voltar ao coração essa doce presença do Espírito, tanto assim referida como glykýs (“doce”), quanto comovida em lágrimas (“diluída” em pénthos ou compunctio)… Sobre este “dom de lágrimas”, cf. Irénée HAUSHERR, S.J., Penthos, La doctrine de la componction dans l’orient chrétien, (in : «Orientalia Christiana Analecta», nº 132), Roma, Pont. Inst. Orientalium Studiorum, 1944, pp. 135 e segs.; vide também Nathalie NABERT, Les larmes, la nourriture, le silence – Essai de spiritualité cartusienne, sources et continuité, Paris, Beauchesne, 2001, pp. 13 e segs. Deste modo, a oração de hesykhía pauta-se por suspiros e jaculatórias (nomeadamente o Nome de Jesus, o “Senhor tem piedade” – Kýrie eleíson… ou outra fórmula equivalente) que melhor recortam o seu silêncio: cf. Alphonde et Rachel GOETTMANN, Prière de Jésus, prière du coeur, Paris, Albin Michel, 1994 e reed., pp. 101 e segs. 325 Cf. Rom 8, 26: ‘Hosaútos dè kaì tò pneûma synantilambánetai têi astheneíai hemôn: tò gàr tí proseuxómetha kathò deî ouk oídamen, allà autò tò pneûma hyperentygkhánei stenagmoîs alalétois.’ 326 Sobre o tema da théosis como “divinização” por participação nessa operação espiritual e inhabitação trinitária, tão característico da tradição teológica ortodoxa

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É assim que a hesykhía acaba por ser caracterizada como essa condição, bem-aventurada, de mansidão de profunda calma em que se dá, mais do que a oração de contemplação passiva, a metamorfose ativa dessa vigília como caridade em ato.327 ESQUEMA II:

(cf. Vladimir LOSSKY, Essai sur la théologie mystique de l’Église d’Orient, Paris, Cerf, 1990 reed., pp. 193 e segs.), vide outras referências em nosso estudo: Carlos H. do C. SILVA, “Théosis – Divinização espiritual ou diferente absolvição da alma?”, entregue para a Rev. Praxis, ainda não publicado; cf., sobretudo Hans Urs von BALTHASAR, Kosmische Liturgie, Maximus der Bekenner, Einsiedeln, 19612; e a tese de Jean-Claude LARCHET, La divinisation de l’homme selon saint Maxime, le Confesseur, Paris, Cerf, 1996…; vide ainda persistência do mesmo tema na Wesenmystik: Alain de LIBERA, Eckhart, Suso, Tauler et la divinisation de l’homme, Paris, Bayard, 1996, pp. 24 e segs., devendo relacionar-se a Abgescheidenheit (“despojamento”, “renúncia”…) com a Gelassenheit (“abandono”, “serenidade”…). O bem conhecido eco filosófico deste clima místico de tal silenciosa calma de “simplificação” (gr. áplosis…), está em Martin HEIDEGGER, “Gelassenheit”…, in: Id., Gelassenheit, Pfullingen, G. Neske, 19593, pp. 9-26… 327 Nesta noção de calma ou de “meditação em calma” vai um misterioso efeito que, aliás, se pressente no denso indicativo da Bem-aventurança que refere tal mansidão… Cf. Mt 5, 5: ‘makárioi hoi praeîs, hóti autoì kleronomésousin tèn gên.’[Vulg.: “Beati mites, quoniam ipsi possidebunt terram.”] Em grego: prâos, literalmente “doce”, “sem violência”, traduzido pelo latim mites (a lembrar o ideal jaina e budista de ahimsa ou de “inofensividade” ou tal “não-violência”); donde ainda praótes, “mansidão” como “doçura”, que tanto pode significar um estado balsâmico, curativo, de alívio…, como remeter para o que na tradição russa se dirá por milosérdije (como no polaco…), na acepção de misericórdia, de “coração doce”, que “faz mercê” ou que “se apieda”… Cf. P. D. OUSPENSKY, “Christianity and the New Testament”, in: Id., A New Model of the Universe, London, Routledge & K. Paul, 19673, pp. 194 e segs.; e vide Terence WADE, Russian Etymological Dictionary, London, Bristol Clas. Pr., 1966, p. 121. A “misericórdia” como o bondoso silêncio «reabsorve» e transforma o mal, a miséria… Vide esta experiência em Santa FAUSTINA KOWALSKA, Diário – A Misericórdia Divina na minha alma, trad. do polaco. P. Estanislau Szymanski (†) e rev. Carlos H. do C. Silva, Fátima, Ed. M.I.C., 20032, vide § 119: “Uma alma, que não saboreou a doçura do silêncio interior, é antes tal um espírito inquieto que perturba os outros (…).” e dizia: D § 118 : “No entanto, para ouvir a voz de Deus é preciso não apenas que a alma esteja, mas seja, silenciosa, e não de um tumular silêncio, porém com o que é próprio da alma, isto é, do recolhimento em Deus. Pode-se muito falar não interrompendo o silêncio e, pelo contrário, conversar pouco, e bastante o perturbar. Oh, que dano irreparável implica a nãoobservância do silêncio!”

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Para melhor se entenderem estes diversos passos do hesychasmo, pode apresentar-se em esquema o resumo destes diferentes adensamentos desde a anacorese e a prática de apatheia e de indiferença…, até aos estados da contínua prática da “lembrança de Deus” e da “oração do coração”: Níveis de consciência

Vocabulário da «hesykhía»

Valências gnósicas

Dimensões místicas

Perspectivas práticas

8. Espírito

Hesykhía

Oração do coração

7. Intelecção

Uma epíklesis silenciosa rítmica Mnéme (theoû), memoria Dei

Mansidão, calma, quietude… Escuta da “Voz” do silêncio Como a anámnesis platónica

Oração na absoluta calma ‘Oração de Jesus’

6. Iluminaçã o

Invocação do Nome ‘Adoração perpétua’

Recordação das Misericórdi as de Deus Oração mental

5. Razão

Prosokhé

Atenção, escuta

Equação: prosokhéproseukhé, “atençãooração”

4. B) Memória 4. A) Imaginaçã o 3. Linguage m 2. Percepção 1. Sensível

Népsis, sobrietas Ataraxia, tranquillitas…

Vigília

Sobriedade do coração Humildade

Oração afetiva Obediência

Imperturbabilid ade

Simplicidad e

Pureza

Ausência de emoções Fuga do ruído, apartar-se

Despojamen to ‘Abjecção’, voto vitimal

Voto de pobreza Abandono (activo)

Amerímnia, imperturbabilit as Apatheía, Anakhóresis,re clusio

Indiferença (ativa)

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Quadro sobre os diversos passos da prática da hesykhía, ou “oração de quietude”. (Como se poderá observar, em comparação com o esquema anterior (supra, parte terceira deste estudo), há neste quadro uma especificação das diversas atitudes que conduzem ao silêncio da quietude mística, salientando, não tanto os vários graus do “silêncio”, mas as várias práticas da respectiva ascese. O vocabulário, particularmente da tradição grega ortodoxa, é típico da corrente da Philokalía e do hesykhasmo.). Este processo, que ainda poderia parecer próprio ou autocentrado,328 compreende-se efetivamente na comunhão, na ‘circulação’ da Presença que traz ao homem essa transfusão de outra ordem de ser, sendo por isso que o silêncio deixa de vir “assinado” para ganhar um sentido transcendente, embora não desencarnado nem insensível.329 A identificação de tal condição de transcendente serenidade, qual paz dos Céus, mas assim antecipada na Terra, ganha à luz da fé um centro que, paradoxalmente, se concebe como universal, tal o silêncio concretíssimo do exemplo de Jesus histórico e,

328

Cf. neste propósito: Ernst TUGENDHAT, Egozentrizität und Mystik, München, V. C. H. BECK, 1997, pp. 51 e segs. 329 Está-se na fronteira do “egóico” e do “não-egóico”, justamente silenciando este binómio e exprime-se, pelo paradoxal refluxo de toda a expressão, o que nem é um aquém, nem um além (vide Maurice MERLEAU-PONTY, «L’entrelacs - le chiasme», in: Id., Le Visible et l’Invisible, Paris, Gallimard, 1964, pp. 172204;também: Jean-Luc MARION, La croisée du visible,Paris, PUF, 1991 e reed., sobretudo pp. 105 e segs.; ainda Id., Le visible et le révélé, Paris, Cerf, 2005, quando aponta a condição «transfigurada» do «phénomène saturé» (pp. 35 e segs.), mas justamente o “lugar” da «transfiguração», como salientámos em nossas meditações sobre a estética cristã. Cf. Carlos H. do C. SILVA, “Do tempo estético à arte de fazer tempo: Para uma delimitação diferencial da essência suspensiva da Arte”, in: Arquipélago (Rev. da Univ. dos Açores, Ponta Delgada), Série Filosofia, nº 8, (2007), pp. 273-305; Id., «Introdução à Estética e problematização da essência da arte» (Curso de «Estética e Teologia» (1º módulo), U.C.P., Fac. de Teol., Lisboa, 2007; org.º em «power-point»)… O silêncio dessa hora intermédia é sensível (encarnacional na acepção que lemos em Michel HENRY, Incarnation – Une philosophie de la chair, Paris, Seuil, 2000, sobretudo pp. 35 e segs.: «Le renversement de la phénoménologie»), mas também não-subjectivo, pois, universalizável – em Cristo – numa tal metamorphôsis (cf. Mt 17, 2…).

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outrossim, a pausa cristã vivida na mística morte e ressurreição do Verbo na alma do espiritual.330 O que está em causa não é a Voz da Vida, mas este seu mistério de encontro pela mortificatio e pelo referido “órgão” de silêncio, como insuflação silenciosa, trabalho oculto do Espírito no mais profundo do humano. Então, por esta purgatio, também ascese silenciosa, prepara-se essa obra espiritual secreta, frequentemente assim referida pelos místicos.331 Mais do que o silêncio ‘místico’ (ainda a sigê) importa este ‘prático’ calar (a siopé como arte de tacere…) para que se realize a renovada ‘encarnação’ da Palavra no coração recolhido.332 Lembre-se o Evangelho: “Ergueu-se, então, o sumo-sacerdote e disse-Lhe: «Não respondes nada? Que dizes aos que depõem contra Ti?» Mas Jesus continuava calado.”333

Não será que o ‘Verbo feito carne’ (Jo 1, 14) deva ser escutado mais na sua linguagem de silêncio, do que na paradoxal palavra que Ele já é? A linguagem da Encarnação é a da Vida, e não tanto a da 330

Tema recorrente na mística e nessa génese silenciosa do Verbo na alma do contemplativo: cf. selecção de Sermões de Eckhart sobre o tema: Marie-Anne VANNIER, (trad. e ed.), Maître ECKHART, Sur la naissance de Dieu dans l’âme,Sermons 101-104, Orbey, Arfuyen, 2004; e Klaus REINHARDT, «L’idée de naissance de Dieu dans l’âme chez Nicolas de Cues et l’influence d’Eckhart», in: M.-A. VANIER, (dir.), op cit., pp. 85-100… Vide supra n. 157. 331 O papel do sofrimento neste exercício tanto de activa purificação, quanto de passiva operação espiritual complementar, é essencial. Trata-se de um assumir o “fermento” da metamorfose espiritual, percebendo que o sofrimento como “dores de parto” da Criação (cf. Rom 8, 22) não se deve explicitar em doloroso queixume, em tormento indesejado…, mas como a dor silenciosa que “dá à luz” um outro estado de ser e de consciência. Sobre o sentido deste místico sofrimento, cf. referências e nossa reflexão: Carlos H. do C. SILVA, “Mística da Cruz – Transfiguração do sofrimento”, in: Didaskalia, XXXIV, (2004), pp. 57-88. 332 Vide ainda: Jean-Yves LELOUP, Écrits sur l’hésychasme, Une tradition contemplative oubliée, ed. cit., pp. 35 e segs. 333 Cf. Mt 26, 62-63 : ‘kaì anastàs ho arkhiereùs eîpen autôi : oudèn apokrínei tí hoûtoí sou katamartyoûsin ; ho dè Iesoûs esiópa. (…).’ Vide supra n. 196 ; e vide a meditação de Jean LAVOUÉ, Le Christ aux silences, Québec, Anne Sigier, 2007.

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expressão mimada do psiquismo humano na sua possível dualidade de vozes. Ali, a voz torna-se unida ao chamamento da Vida e absolve-se nela, nem sequer em ser que transcende o dizível, mas como pura privação de duplicidade.334 O silêncio d’Ele; ou Ele mesmo em (Seu) silêncio… Ao Cristo ensinante, pré-dito e pós-escutado, às muitas palavras ouvidas, à melodia divina cada vez mais autonomizada no opus da celebração, enfim, ao pleno Som da Voz do Espírito na liturgia da Palavra…,335 dá-se a conversão na pausa silenciosa, na quietude irrepetível, no único de um pasmo mudo, ou da interrogação irrespondida por Jesus. O Senhor da Palavra e o Cristo do Santo Silêncio – quais dois termos de um longo “polinômio” que, afinal, se equaciona no ‘zero’ do seu silêncio.336 Evangelhos e catequeses 334

Volta-se ao que se poderia retomar na evidência silenciosa da mística e directa compreensão da Vida, como se diz no zen: “uma flor não fala…” (Zenkei SHIBAYAMA, A Flower does not talk, Zen essays, Rutland (Vermont)/ Kyoto – Tokyo, Charles E. Tuttle Co., 1975). Ecoa aqui o sentido radical da transmissão da «lâmpada», ou do verdadeiro ensino budista, de acordo com o Dafantianwang wenfojueji jing em que se conta como Buddha “tomou uma flor, sorrindo, sem nada dizer…: o que só Mahâkâshyapa (considerado o primeiro patriarca hindu da escola do Chan/ Zen) compreendeu num sorriso e também em silêncio. (cf., entre outros, referência em Philippe CORNU, Dictionnaire encyclopédique du Bouddhisme, Paris, Seuil, 2001, p. 332). Vide ainda Raimon PANNIKAR, El silencio del Buddha – Una introducción al ateísmo religioso, Madrid, Ed. Siruela, 1996, sobretudo pp. 285 e segs. Como se se indicasse que o essencial da vida é apenas directa ou ontologicamente comunicado… É o que numa quase equivalência poética interroga Alberto CAEIRO (no «Guardador de rebanhos», xxvi): “Uma flor acaso tem beleza?” [ou outra adjectivação possível],” Não: têm cor e forma/ E existência apenas.” [a flor é flor, nada mais] (cf. F. PESSOA, Obra Poética, ed. cit., p. 218). 335 Cf. entre outros: Dom André GOZIER, O.S.B., Le mystère de la liturgie, Paris, Cerf, 1990, pp. 19 e segs.; Jean-Yves HAMELINE, Une poétique du rituel, Paris, Cerf, 1997, pp. 136 e segs. : «Éléments d’une éthologie vocale du culte chrétien» ; e vide ainda Samuel ROUVILLOIS, Corps et sagesse, Philosophie de la liturgie, Paris, Fayard, 1995, pp. 99 e segs. : «Le paradoxe liturgique». 336 Não apenas como metáfora “matemática”, porém na meditação da “plenitude do vazio” e da mística Presença…Cf. Lilian SILBURN, «Le vide, le rien, l’abîme», in : Id., (dir.), Hermès «Le vide, expérience spirituelle en Occident et en Orient», nouv. sér., 2, Paris, Éd. des Deux Océans, 1981, pp. 15-62 ; ainda no âmbito teórico da ciência e em seu rebatimento espiritual : Jean BOUCHART D’ORVAL, La plénitude du vide, Montréal/ Paris, Louise Courteau/ PubliSud éd., 1987, pp. 122 e

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variadas, palavras sonoras até aos gritos de alma, enfim na igualdade a “zero”337, sem resíduo, em perfeita assimilação da Palavra em eucaristia viva ou contemplação silenciosa.

segs. : «La frontière d’une frontière est nulle»… e vide o muito recente ensaio de Frédéric NEF, La force du vide, Essai de métaphysique, Paris, Seuil, 2011 ; e cf. também vários artigos em Jérôme LAURENT e Claude ROMANO, (dirs.), Le néant – Contribution à l’histoire du non-être dans la philosophie occidentale, Paris, PUF, 2006. 337 Ter sempre presente o passo (já por nós citado noutros nossos estudos; por exemplo: Carlos H. do C. SILVA, “O miniatural em Santa Teresa do Menino Jesus – Da mudança de escala na via de santidade”, in: Didaskalia, XXXII – 2, (2002), pp. 147-243, ns. 110, 270…) em que St.ª TERESA DO MENINO JESUS, (in: LT 226 [Lettre au Père Roulland de 9 mai 1897] 2vº, lembra a sua aritmética de infância: «… en effet le zéro par lui-même n’a pas de valeur mais placé près de l’unité il devient puissant pourvu toutefois qu’il se mette du bon côté, après et non avant !...» (ed. Sainte THÉRÈSE DE L’ENFANT-JÉSUS ET DE LA SAINTE-FACE, Correspondance générale, t. II : 1890-1897, in : Oeuvres complètes, Nouv. Éd. du Centen., Paris, Cerf/ Desclée, 1992, p. 985). Repercute, deste modo, esse ensino elementar recolhido em: «L’arithmétique de Mademoiselle Lili à l’usage de M. Toto pour servir de préparation à l’arithmétique du grand-papa» de Jean MACÉ, publicada em Paris, Hetzel ed., (1886), que a sua irmã Celina também havia seguido. Em várias Cartas, Teresa identifica-se por Monsieur Toto e àquela sua irmã, por Mademoiselle Lili, mostrando, de outra maneira, esse jocoso e diferente «cômputo» da vida. Interessa, porém, salientar a ulterior clara consciência daquele «seu»zero, silenciosa e misticamente potenciador: como diz Jean GUITTON, Le Génie de Thérèse de Lisieux, Paris, Éd. de l’Émmanuel, 1995 reed., p. 76: «Chez Thérèse on remarque que l’ascétisme est sans cesse rappelé: elle enseigne l’exercice incessant des vertus infinitésimales, par une application inconsciente de l’idée leibnizienne de «l’infiniment petit» du sacrifice.» Conclua-se, pois, a anotação deste estudo com tal equação de silêncio, mas em que ele venha depois e não antes…

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CAPÍTULO 4 DO SILÊNCIO DO MESTRE À SUA PALAVRA INICIÁTICA. UMA INTRODUÇÃO A UMA PEDAGOGIA DO SILÊNCIO E DA PALAVRA Alberto Filipe Araújo338 Ángel García del Dujo339 Mas há palavras e palavras, silêncio e silêncio. David Le Breton, Do Silêncio, p. 13. Quand nous considérons l’état du monde nous pouvons dire (comme le christianisme nous y autorise) que notre civilisation est malade. Si j’étais médecin et qu’on me consultât, je répondrais : ‘Le remède souverain, la première règle à observer par conséquent, c’est le silence ! fais silence, car on ne peut entendre la parole de Dieu ; si l’on l’annonce à grands cris pour couvrir le tapage, elle n’est plus la parole de Dieu : fais silence !

Sören Kierkegaard, Pour un examen de conscience recommandé aux contemporains, pp. 103-104. Et c’est bien aussi ce qu’est la parole: le verso du silence, comme le silence est le verso de la parole. Max Picard, Le Monde du Silence, p. 8. 338

Ver Lista de Colaboradores. Esta publicação teve o apoio financeiro da FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia - Lisboa – Portugal. Este trabalho é financiado pelo CIEd – Centro de Investigação em Educação, projeto UID/CED/01661/2019, Instituto de Educação, Universidade do Minho, através de fundos nacionais da FCT/MCTES-PT. O autor agradece à Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) (Lisboa – Portugal) pela Bolsa de Estudos atribuída e sem a qual não seria possível a realização desta investigação. O presente estudo foi pensado e escrito em colaboração com o Professor Doutor Ángel García del Dujo que é o Decano da Faculdade de Educação da Universidade de Salamanca (Espanha) durante o ano letivo de 2015-2016 que correspondeu ao gozo da sua Licença Sabática prevista no Estatuto da Carreira Docente. 339 Ver Lista de Colaboradores.

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INTRODUÇÃO As Ciências da Educação, particularmente a filosofia da educação e a pedagogia, desconfiaram, desde sempre, do silêncio interior e iniciático para se consagrarem inteiramente à libido educandi e cognoscendi pela palavra, e raras vezes pela Palavra iniciática na sua correlação com o silêncio interior e com o segredo340. Dito de outro modo, o silêncio é evacuado nas Ciências da Educação341, senão mesmo exorcizado, a favor da comunicação342 e, Veja-se sobre a natureza do segredo as palavras de Georges Gusdorf: “O silêncio é mais verdadeiro que a fala, e os poetas, e muitas vezes os escritores também, insistiram na barreira do inexprimível com a qual se chocam os seus mais elevados esforços de expressão. A própria obscuridade dos grandes poetas, o hermetismo de um Rimbaud, de um Mallarmé, de um Valéry, afirma o paradoxo da revelação necessária e impossível (2005: 74). Além disso, leia-se também com proveito os livrinhos de Franco Loi. Il Silenzio, 2012, de Giovanni Gasparini. C’è Silenzio e Silenzio. Forme e Significati del Tacere, 2012 e de Stefano Raimondi. Portatori di Silenzio, 2012. 341 Esta nota da etimologia do conceito de “silêncio” só foi possível mediante a prestimosa colaboração do meu devotado amigo Dr. Fernando Paulo Baptista, a quem agradeço sentida e profundamente. A palavra ‘silêncio’ provém diretamente do substantivo neutro latino ‘silentium’ e designa uma situação caracterizada pela ausência de voz, som ou ruído, uma ambiência de tranquila serenidade, calmaria e sossego, propícia à escuta, à auto-concentração, à reflexão, à meditação, à elaboração criativa, à comunicação (solilóquio, dialogias...), mas remete também para situações de intenso desassossego e excruciante agonismo existencial, experienciado ou ficcionado no quadro da dialéticaentre liberdade, constrangimento, escravidão e opressão, vida e morte, finito e infinito, efemeridade e imortalidade / eternidade... O étimo latino ‘silentium’ pertence à mesma família lexical do verbo ‘sileo, -es, -ere, silui’ (= calar [-se], estar ou ficar calado, não dizer palavra...), silenda, -orum (= coisas que se devem calar e preservar, mistérios, segredos...), silentiosus, -a, -um (= silencioso), silesco, -is, -ere (= ficar em silêncio, sossegar-se, acalmar-se), consilesco -is, -ere (= guardar silêncio, calar-se)..., do particípio presente ‘silens, -tis’ (= silente, que não fala), sendo de sublinhar que o plural «silentes» designa, em registo poético, «os mortos», ou seja, aqueles que, regressados ao seio tumular de Deméter, deixaram de falar para sempre... Estes lexemas latinos têm uma direta relação morfo-semântica com vocábulos portugueses como silenciar, silenciamento, silenciador, silencioso..., e com os homólogos lexemas de outras importantes euro-línguas: silencio, silenciar, silenciario, silencioso (espanhol), silence, silanciaire, silencieux, silentbloc (francês), silenzio, 340

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silenziare, silenzioso (italiano), silențios, silențioase (romeno), silence, silencer, silent, silently (inglês), schweigen, schweigsam, schweig (alemão), stilzwijgen, zwijgen, zwijgend, zwijgzaam (holandês)...Do campo da filologia indo-europeia e no quadro de uma laboriosa e minuciosa metodologia comparatística inter-linguística e inter-lexical de reconstituição das matrizes lexicogénicas, surge como base explicativa para a origem dos lexemas latinos ‘silentium’ e ‘sileo’ (e, consequentemente, de toda a rede lexical neles ancorada...) a raiz * sē(i)-2 (com as variantes sǝi-/sī-/sĭ-/sē-/sǝ-/sei- e ampliamentos sufixais: sēi-l-/sǝi-l-/sĭ-l+ē-), portadora dos significados primigénios de “lançar a semente à terra, semear..., cessar o sopro ou rumor do vento, deixar de falar, fenecer, finar-se, morrer, enterrar o cadáver... Esta raiz está presente em vocábulos de diferentes línguas indo-europeias de que se apresentam os seguintes exemplos: 1) Old Indian: sā́ yaka, sāyikā, sḗnā, nomes designadores de armas [ex.: espadas, lanças, flechas…] usadas, quer em situação de combate, quer na caça (armas que, no fundo, são “semeadoras” da morte), ou vocábulos ligados à agricultura: sī́ ra (arado de semear), sī́ tā (sulco do arado); 2) Latim: serō, -is, -ere, sēvī, sătum (= semear, plantar, produzir), sătiō (= sementeira, plantação), sător (= semeador), Saturnus (= deus do tempo e das sementeiras…), semen (= semente, sémen); 3) Gótico: saian (= semear).Veja-se a categorização do silêncio em quatro níveis feita por Álvaro Gomes. Do som do silêncio, pp. 35-37. Do mesmo autor, veja-se também sobre expressões e lexemas do Silêncio na obra agora citada, p. 43. Patricio Barriuso, em El Silencio, num breve capítulo sobre a lexicografia do silêncio (2004: 11-18), lembra-nos que, embora o silêncio se diga numa só palavra, tal não significa que exista tão-somente um tipo de silêncio, mas uma multitude de sentidos que ele divide entre aquele tipo de silêncio que enobrece o ser humano (2004: 39-56), e que na terminologia de Michel Hubaut corresponde à faceta diurna do silêncio (2006: 43-44), e um outro tipo de silêncio de tipo contrário a que Patricio Barriuso chama de degradação (2004: 56-75), e que na terminologia de Michel Hubaut corresponde à sua faceta noturna (2006: 42-43): « A l’image des hommes, il y a donc de bons et de mauvais silences qui sont les reflets de notre double visage, nocturne et lumineux. Dans le silence nous pouvons nous purifier, nous unifier mais aussi nous détruire » (Hubaut, 2006: 44). A este respeito, Vladimir Jankélévitch escreve: « Aussi le silence le plus caractéristique est-il le silence dans la lumière. Non pas, bien entendu, qu’il faille négliger le silence nocturne ! » (1961: 170). Ver o desenvolvimento que o autor faz destes tipos de silêncio (1961: 170-171). Ler também as duas orações que Michel Hubaut coloca no final do seu livro intitulado Les chemins du silence (1991): Notre Dame du Silence (2006: 116-117) e Prière pour obtenir la grâce du silence (2006: 118-120). Massimo Baldini, por seu lado, escreve sobre “La tassonomia del silenzio” (1988: 11-14): “Il silenzio come la parola, piò assumere significati molteolici, e come la parola ha bisogno di un lavoro interpretativo per essere colta nel suo corretto significato, cosí anche il silenzio deve essere sottoposto ad un siffato lavoro ermeneutico. La plurivocità del silenzio ha spinto filosofi, psicologi, antropologi e psicoanalisti, tra gli altri, a tentarne una tassonomia” (1988: 12). Também Vladimir Jankélévitch distingue dois tipos de silêncio: o silêncio antecedente e o silêncio consequente: “qui sont l’un à l’autre

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por conseguinte, da “sociedade da comunicação” (Breton, 1994, 1997 e 1997a; Breton; Le Breton, 2009). O discurso filosófico e pedagógico da educação está, de acordo com Torralba Roselló, sob o domínio do logos em detrimento da esfera do silêncio e da sua pedagogia (200: 62-72 e 54-62): O silêncio é o grande ausente nos processos educativos. Não o contemplamos nem sequer como instrumento de comunicação e muito menos como sendo uma experiência fundamental do ser humano. Na escola não se ensina a riqueza inerente ao silêncio. Na instituição escolar dá-se atenção ao verbo e à sua articulação oral e escrita, mas prescinde-se do valor comunicativo e expressivo do silêncio. Nem a criança nem o jovem estão acostumados a viver a experiência silenciosa. O silêncio é, para eles, algo de novo, estranho e problemático que há que mascarar de imediato. Não estão preparados para conviver com o silêncio nem para descobrir a lição que comporta o silêncio dentro de cada um. […] O silêncio, ainda que estando gravemente marginalizado no âmbito educativo, transmite uma pedagogia e uns valores dignos de ser considerados e de

comme l’alpha et l’oméga. Le silence-avant et le silence-après, ils ne sont pas plus ‘symétriques’ entre eux que le commencement et la fin, la naissance et la mort ne sont symétriques dans un temps irréversible : car la symétrie est elle-même une image spatiale… » (1961: 164). Lugar aqui para deixar a referência de Pablo d’Ors sobre o “Guía para la Biografía del silencio” (2014: 111-112). Leia-se com proveito o capítulo 1- La Paradoja Inicial da obra El silencio: Un reto educativo de Francesc Torralba Roselló (2001: 7-27), particularmente os pontos “Heterogeneidad linguística” (pp. 7-10) e “Semánticas del silencio” (pp. 18-20). Sobre a história do silêncio, leiam-se as obras de Alain Corbin intitulada Histoire du silence. De la Renaissance à nos jours (2016) e de Sergio Cingolani. Per una Storia del Silenzio (2012). Leia-se o verbete de U. Perone sobre o silêncio (2006: 10619-10621). Sobre o silêncio exterior, interior e místico, veja-se Michel Dupuy, Silence, 1990, pp. 830859 e Elizabeth McCumsey, C.H.M., Silence, 1987, p. 321-324. Do som do silêncio, sua taxonomia, das suas palavras, leia-se Álvaro Gomes e a sua obra intitulada Do som [didáctico] do silêncio ou… Do mito da esfinge e da maiêusis como logro, pp. 25-47. Finalmente reenvia-se o leitor para a bibliografia final sobre o silêncio muito rica sobre a questão que nos ocupa. 342 Sobre esta noção, leia-se, por exemplo, o capítulo 1. La formation d’une notion unificatrice na obra L’utopie de la communication de Philippe Breton, 1997, pp. 1125.

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serem integrados no ato educativo (2001: 54-56; PollaMattiot, 2007: 79-80).

As diferentes disciplinas que constituem as Ciências da Educação (Charlot, 1995; Mialaret, 2006 e 2011; Meirieu; Develay, 1997) elegeram a comunicação, nos seus diversos modelos, como pedra angular da relação educativa em detrimento do valor pedagógico do silêncio, excetuando casos raros como a “Lição de silêncio” do método pedagógico montessoriano (Montessori s. d.a; s. d.: 223-227; Foschi, 2014: 107-158): As nossas sociedades investem tanto na construção de competências na ordem da palavra (e pensemos como a escolarização está ao serviço da capacitação dos indivíduos em ordem a um funcionamento eficaz com a palavra) e tão pouco nas competências que operam com o silêncio. Somos analfabetos do silêncio e esse é um dos motivos porque não sabemos viver na paz (Mendonça, 2015: 90).

Neste contexto, o nosso estudo visa, numa primeira parte, chamar a atenção para o significado do silêncio iniciático do Mestre e da sua Palavra, enquanto, numa segunda parte, nos debruçaremos sobre a importância e a pertinência de uma pedagogia do silêncio e da Palavra iniciática. Terminaremos o presente capítulo com uma conclusão que se pretende reflexiva e onde revelamos quer a importância do silêncio interior, quer da Palavra iniciática com todas as suas implicações. 1. Do significado do silêncio iniciático do Mestre e da sua Palavra O silêncio do Mestre deve ser encarado como um silêncio interior produtivo, em ordem ao uso da Palavra iniciática, que é sempre uma Palavra justa, sensata e autêntica, pronunciada para que o discípulo com ela aprenda e se forme. Daí toda a importância em

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sublinhar-se a dimensão do silêncio interior343 por contraposição ao silêncio exterior ou epidérmico (Kaeppelin, 1997: 65-66): verso e reverso da mesma medalha mas imensamente distanciados como a água e o fogo. Aparentemente assemelham-se na sua forma embora diferindo na sua substância, mesmo admitindo que nem todos os silêncios interiores se equivalham. O silêncio do Mestre é intencional e visa à interioridade do sujeito, enfim, ao “mistério mais íntimo de si mesmo, da realidade e da existência” (Torralba Roselló, 2001: 112; Torralba Roselló, 2014: 149-150). A Palavra iniciática alimenta-se da voz e da sabedoria do silêncio interior do Mestre porque “A palavra brota do silêncio, da plenitude do silêncio. […] o espírito exerce aqui uma atividade criadora: ele extrai a palavra da gravidade do silêncio” (Picard, 1954: 8). Se o silêncio pode existir sem a palavra, esta sem ele não passa de uma órfã incessantemente à procura do seu progenitor na justa medida em que é o silêncio grave que confere à mera palavra a qualidade de Palavra iniciática. Esta afirma-se como tal porque é nela que a verdade viva e interpeladora se manifesta, assim como a bondade (Picard, 1954: 15-18, 19). No entanto, importa sempre sublinhar que Max Picard, na sua obra clássica Le Monde du Silence, escreve que “A palavra e o silêncio fazem um. […] A palavra deve permanecer em relação com o silêncio donde ela foi criada. Faz parte da essência do homem que a palavra se dirija para o silêncio” (1954: 19, 19-26).

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Atente-se à passagem de Jean Rassam sobre a natureza deste tipo de silêncio: « Dans le monde du silence la solitude elle-même ne vient pas du sujet, elle se tient devant lui comme quelque chose d’objectif. Le retour au silence intérieur n’est donc ni fermeture ni resserrement de l’individu sur lui-même ; loin d’être un appauvrissement, il est un enrichissement par l’accueil de l’immense monde objectif du silence. Par sa puissance ontique le silence se révèle comme le lieu de l’accord des êtres dans leur diversité » (1980: 62).

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1.1. Do Silêncio do Mestre à sua Palavra iniciática A dimensão do silêncio interior344, aquele que é superior e evoca a vida da palavra e da Palavra, foi devidamente caraterizada por um Mestre do Silêncio, de nome Omraam Aïvanhov345, que no seu pequeno livro intitulado A via do silêncio (2008) escreveu: Está muito enganado quem pensa que o silêncio é necessariamente o deserto, o vazio, a ausência de toda a actividade, de toda a criação, numa palavra, o nada! Na realidade, há silêncio e silêncio…, mas, de uma maneira geral, podemos dizer que existem duas espécies de silêncio: o da morte e o da vida superior. É precisamente este último que é necessário compreender e é dele que falamos aqui. Este silêncio não é uma inércia, mas sim um trabalho, uma actividade intensa que se realiza no seio de uma harmonia profunda. Também não é um vazio, uma ausência, mas uma plenitude comparável àquela que experienciam os seres unidos por um grande amor e que vivem algo tão intenso que não conseguem exprimi-lo por gestos nem por palavras (Aïvanhov, 2011: 21).

Da citação anterior retemos que o silêncio que o autor valoriza, como nós, é o silêncio da vida superior caraterizado por ser um trabalho interior intenso que deve realizar-se “no seio de uma harmonia profunda”; é um silêncio que se opõe ao vazio porque prenhe de uma intensa e subtil plenitude. Neste sentido, Max Picard 344

Embora a ênfase seja colocada no silêncio interior (Torralba Roselló, 200: 108112), tal não significa que desconheçamos outras tantas modalidades de silêncio recenseadas, entre outros, por Francesc Torralba Roselló sob dezasseis formas. São as seguintes de acordo com o autor de El silencio: un reto educativo: os silêncios epidérmico, interior, obstinado, da plenitude, ético, estético, imposto, massivo, compassivo, cruel, criativo, místico, ascético, litúrgico, do recém-nascido e, por último, o silêncio dos mortos (200: 101-152). 345 Trata-se de um filósofo, pedagogo búlgaro (1900-1986) e, muito particularmente, um Mestre espiritual, discípulo do Mestre Peter Deunov (1864-1944), empenhado em fazer conhecer a natureza profunda do ser humano na linha da tradição oriental e mística, especialmente o esoterismo cristão em que o amor, a sabedoria e a verdade constituíam a sua pedra-angular. Autores como Jiddu Krishnamurti (1895-1986) e Rudof Steiner (1861-1925) costumam ser associados a essa mesma tradição.

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salienta que o silêncio “é um mundo pleno para si. […] O silêncio tem tudo em si; ele nada espera; ele está sempre completamente lá e preenche plenamente o espaço onde ele aparece” (1954: 3). Aliás, este autor, num capítulo dedicado ao “Aspeto do silêncio” (1954: 3-5), insiste no silêncio como tendo aquelas qualidades descritas pelo Mestre Omram Aïvanhov, ou seja, que o silêncio não é nada de negativo, não possui princípio nem fim, é autossuficiente, é eterno porque sempre esteve aí, o silêncio opõe-se à utilidade mundana, sublinha o seu caráter sagrado: “Ele confere às coisas uma inutilidade sagrada, porque é isso aquilo que é o silêncio: inutilidade sagrada” (Picard, 1954: 5). Neste contexto, não surpreende que defendamos que o silêncio interior é aquele que, ao contrário do silêncio exterior346, é o mais desejado e cultivado pelo Mestre, definido por Omraam Aïvanhov como aquele “ser que conseguiu controlar tudo em si, nos diferentes planos: físico, astral e mental. Então, as forças da natureza obedecemlhe, os espíritos obedecem-lhe, e até os animais, as plantas e as pedras lhe obedecem. E é essa a verdadeira mestria, a verdadeira realeza” (2011: 44-45). É pelo silêncio interior, enquanto ato de liberdade interior e de harmonia única, que o Mestre atinge a sua serenidade (Heidegger, 2000) para, num primeiro momento, melhor pensar e, num segundo momento, melhor meditar e contemplar. Deste modo, o silêncio interior não tem nada a ver com o vazio mas antes com uma completude ontológica semelhante àquela que o yoga é capaz de proporcionar (Torralba Roselló, 2001: 110-111)347. O silêncio interior não é dado ou oferecido simplesmente porque alguém o deseja ou dele se acha merecedor. Quem o procura é porque de alguma maneira já sente a sua necessidade, aspira a alcançá-lo. A este apelo damos o nome de vocação, e esta é sempre uma chamada interior, ou seja, uma 346

Sobre o silêncio exterior ou epidérmico, leia-se Torralba Roselló (2001: 106112). 347 O yoga, como é conhecido, permite àquele que a ele se dedica alcançar uma maior amplitude espiritual, assim como um maior conhecimento de si-mesmo e dos outros.

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chamada que provém da interioridade do sujeito (Torralba Roselló, 2014: 150-151)348. Este silêncio, que metaforicamente é considerado de ouro por contraposição à palavra, que é de prata349, somente é alcançado por via longa pontuada de obstáculos, de provações que o iniciado, lembrando aqui Parsifal na sua quête do Graal, terá que vencer colocando todo o seu ser à prova nos seus mais variados planos: Este silêncio interior é autenticamente revelador e edificante para o sujeito. Por seu intermédio, o ser humano descobre-se a si-mesmo como mistério e como interrogante, aprende a respeitar o mistério da alteridade e a venerar a grandeza das formas distintas de vida. O silêncio interior é fonte de sabedoria e de plenitude, mas para o alcançar, exige-se um enorme trabalho de concentração, de progressiva desvinculação no que respeita ao mundo e de imersão em si-mesmo (Torralba Roselló, 2001: 109-110).

O silêncio interior convoca a Palavra interior, o diálogo interior, o pensar em silêncio, a meditação e a contemplação, incompatíveis com a figura de comunicação total e transparente que as Ciências da Educação tanto parecem louvar em nome do omnipresente homo comunicans (Breton, 1997: 50), contraposto ao homo loquens do diálogo, da conversação e da eloquência de que nos fala Georges Gusdorf (1995: 87-94). Esta pretensão obsessiva de tudo comunicar De acordo com Torralba Roselló a vocação “sólo es posible desde la soledad, desde la interioridad. La llamada no es física, sino metafísica, u sólo se puede escuchar por el oído del espíritu. El descubrimiento de la vocación es clave para desarrollar un proyecto vital que tenga sentido” (2014: 151). Leia-se na vasta bibliografia sobre o assunto o estudo de Vasco Pinto de Magalhães, S. J. (2005). Vocação e Vocações Pessoais. 2ª ed. Braga: Editorial A. O. 349 Como escreve Maurice Maeterlinck no seu ensaio Le Trésor des Humbles existe um aforismo suíço, ao qual ele chama de inscrição, que diz o seguinte « Sprechen ist Silberen, Sweigen ist Golden, la parole est d’argent, et le silence est d’or, ou, comme il vaudrait mieux le dire: La parole est du temps, le silence de l’éternité » (2001: 15). Metaforicamente ainda, evocando a metáfora da viagem, é como aquele viandante que depois de muito andar no deserto, já praticamente exangue, encontra um oásis florido e jorrando água fresca. 348

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não deixa de ser uma atitude que condiciona, mesmo impedindo, que a Palavra singular (Breton, 2007; Gusdorf, 1995)350, modelada já por novos valores e por uma aprendizagem exigente (Breton, 2007: 179185)351, revele a interioridade do sujeito, lembrando esta a metáfora, senão mesmo o mitologema ou símbolo352, do labirinto com todas as suas circunvoluções: A interioridade é antes um momento, aquele em que faz irrupção a questão ontológica: o mistério da presença no mundo, ser aquilo que se é ao longo da nossa história. A interioridade é o momento de retorno sobre si, a suspensão da turbulência do mundo e o mergulho breve ou longo sobre aquilo que funda aquilo que se é como indivíduo. […] A interioridade não se opõe ao grito estridente porque ela provém originariamente de um estado de espírito. Mas o silêncio aprofunda-a. […] A interioridade é para mim uma metaforização do mistério da presença no mundo. […] A interioridade é o lugar de espanto sem repouso de existir e ter consciência, e do debate incessante com o divino, com as inúmeras figuras do divino que tenho dificuldade a reduzir à univocidade de um Deus único. (Breton; Le Breton, 2009: 89-90, 97).

Trata-se de uma interioridade forjada pelo sentido da palavra e do silêncio, iluminada por um humanismo integral que se quer educado sob o signo da graça e da comunhão com o sagrado (Reboul, 350

A palavra singular no sentido também que a Palavra profética possui. Todo aquele que é Mestre tem o seu estilo próprio e usa essa palavra privilegiando esta ou aquela figura de sentido, de construção ou de pensamento. No entanto, essa palavra provém do silêncio, do segredo que em dada altura se faz ouvir (Boutang, 1973: 145-153). 351 O uso da palavra, que possui para Philippe Breton três sentidos diferentes (2007: 46-47), é sempre exigente na medida em que ela ultrapassa as três modalidades de ação sobre os outros e sobre o mundo (exprimir, argumentar, informar, Breton, 2007: 25-28) para situar-se num plano decididamente hermenêutico (a trilogia compreensão-explicação-interpretação, Ricoeur, 1986. 137-159, 161-182; 183-211) que passa sempre pela comunicação, pelo discurso e pelo texto da palavra oral ou escrita. 352 Esta noção, usada por Jung, Karl Kérenyi e por Gilbert Durand, designa um tema mítico pregnante no seio da narrativa mítica ou de uma lenda ou gesta heroica. Muitas vezes acontece que um mitologema é também um símbolo.

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2000: 70-71, 84-87; 1992: 221-240; Breton, 2007: 164-178; Breton; Le Breton, 2009: 89-99). A interioridade situa-se nos confins da linguagem, o que significa na região da indizibilidade que nos confronta inevitavelmente com o ontológico que em nós habita, enquanto espaço de silêncio, sanctum sanctorum, de cada um. O silêncio interior, sempre a seu modo iniciático, incuba e alimenta a Palavra353: da Palavra iniciática que compreende já a Palavra interior, a Palavra autêntica: As palavras enraízam-se neste solo, são o rizoma que se alimenta deste húmus, escapam à profusão de sentidos por uma escolha de linguagem que poderia ter sido outra. E acontece que uma palavra proferida a despropósito, inútil, se separa de si própria na sua insignificância e soa então como uma deformação do silêncio, uma contrariedade à sua exigência que dá justamente o seu prémio à linguagem (Le Breton, 1999: 18).

A Palavra volta de novo à sua fonte originária – à do silêncio interior – para melhor se vivificar na sua plenitude com o desejo de que o próprio silêncio a liberte dos seus constrangimentos denotativos. E o silêncio, pela ligação que tem com o ser, tem o dom de devolver à Palavra a sua eloquência perdida num mundo sem silêncio, como escreve Max Picard (1954: 175-177): “O silêncio foi expulso [do mundo] porque ele não era rentável, porque ele era somente existência presente; ele parecia não ter nenhum objetivo, nada dele brotava, ele era improdutivo” (1954: 177). Como não fica difícil compreender que o silêncio interior prepara, sendo mesmo a sua antecâmara, de algum modo o silêncio iniciático, aquele tipo de silêncio caraterístico de um Mestre espiritual, que contém já em si as potencialidades da Palavra iniciática como aquela que é justa, sensata ou autêntica, sabendo que 353

Distinguimos Palavra com letra maiúscula e palavra com letra minúscula: a primeira diz respeito à Palavra interior, que releva do particular, e correlativamente ligada ao silêncio e ao sagrado: é a Palavra encarada como um “enunciado prenhe de sentido” (Breton, 2007:16). A segunda está umbilicalmente ligada ao fenómeno da comunicação que releva do geral (2007: 16 e 25-26 e 18-20).

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ela não é somente um som, mesmo que complexo, e que representa um elemento constitutivo dos rituais de iniciação estudados por Mircea Eliade (1976; s.d.: 195-219). A este respeito, importa voltar de novo a Omraam Aïvanhov que sobre “a palavra de um mestre no silêncio” (2011: 121-134) salienta o seguinte: a Palavra iniciática provém muito da sua fonte originária do silêncio e não significa sempre que ela seja expressa, porquanto “A alma do discípulo vê, sente e regista tudo o que emana da alma e do espírito do seu Mestre. […] A palavra de um Iniciado [de um Mestre espiritual] no silêncio é como um bombardeamento cósmico” (Aïvanhov, 2011: 124, 127). A Palavra iniciática, lembrando o Barqueiro de Hermann Hess ou o Mestre da Música da Ordem de Castália, uma das personagens do romance do Jogo das Pérolas de Vidro do mesmo autor, compreende as palavras ditas do Mestre, a sua atitude, tom e ritmo, os seus gestos e as expressões do seu rosto (Le Breton, 1992; Picard, 1954: 34-35 e 73-80; Courtine; Haroche, 1987: 13-54). A Palavra iniciática é a voz do silêncio e mesmo a sua sabedoria (Kaeppelin, 1997: 63-76). É um tipo de Palavra sóbria, medida e intensa porque alimentada simultânea e particularmente pela fonte viva do silêncio, da alma e do espírito e não, como as palavras comuns, que parecem brotar tão somente do intelecto. A Palavra iniciática é rara porque sóbria, e justamente comedida e refletida. Impõe-se à atenção do discípulo pela sua probidade. No limite, até é mais uma Palavra pronunciada no silêncio; é, por outras palavras, o verbo encarnado no próprio silêncio eloquente: Nos santuários do passado, os Iniciados, que conheciam a natureza humana, não sobrecarregavam os seus discípulos com conhecimentos, como agora acontece nas universidades, onde há tantos pormenores a registar que os estudantes nem sequer têm tempo para viver e respirar. Os Iniciados diziam muito poucas coisas; revelavam algumas verdades essenciais, e depois competia aos discípulos meditar nelas em silêncio, para se impregnarem delas, para as viverem. Sim, os

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Iniciados punham todo o seu amor, toda a sua alma, todo o seu espírito, nas suas palavras, e os discípulos agarravam-nas, saboreavam-nas, absorviam-nas; eles alimentavam-se muito mais da vida contida nas palavras do que das próprias palavras (Aïvanhov, 2011: 131132).

O silêncio iniciático do Mestre desperta no discípulo simultaneamente um sentimento etéreo e responsável no sentido que o deve guardar – guardar o silêncio revelado. É um tipo de silêncio tanto perturbante como amável ao ponto de o discípulo experienciar uma calma serena. Neste contexto, é importante que o Mestre saiba combinar jubilosamente a exigência com a indulgência, o humor com a gravidade. É neste balanço que o Mestre conseguirá abrir e iniciar o discípulo na via do segredo iniciático que é aquele tipo de segredo que encerra em si todo um complexo de mensagens cifradas indispensáveis à iniciação do discípulo. Não há silêncio iniciático que não seja uma tarefa exigente e que não implique sacrifícios múltiplos ao nível do trabalho interior da transformação do iniciado no segredo. Neste sentido, o silêncio, como caminho psicológico e espiritual que é, não se faz sem custo, sem cada um dar-se de si naquilo que possui de melhor de si. E este dar o melhor de si passa necessariamente pelo encontro consigo mesmo e pelo desprendimento daquilo que antes parecia importante e indispensável como, por exemplo, o conforto dos bens materiais, os pequenos poderes, as paixões terrenas… Além disso, aquele que se entrega a este silêncio disciplina-se e disciplina a sua palavra a fim de evitar numerosos atropelos e constrangimentos ao dom da continência e da própria razoabilidade: “O silêncio é aqui uma disciplina que deve gerar uma atitude interior” (Grün, 2004: 33). Por outras palavras, por esta atitude interior o sujeito defende-se dos perigos de falar de qualquer coisa e da mera e simples curiosidade banal e mundana. Também deste modo evita julgar os outros apressadamente, como ao abster-se de falar sem comedimento e controlando a sua ânsia de notoriedade. Resumindo, quando alguém muito fala corre riscos de descuidar a sua vigilância interior. É - 200 -


vigiando e disciplinando-se que o discípulo atinge uma maior maturidade ou capacidade para assumir as suas próprias responsabilidades, nomeadamente iniciar-se na meditação: “Iniciar-se na meditação supõe ter chegado a um ponto em que já não te consentes em culpabilizar as circunstâncias ou os demais. Quando estejas nesse ponto é quando deves sentar-te a meditar” (d’Ors, 2014: 61). O silêncio iniciático que o Mestre compartilha com o discípulo, num kairos desejável, nunca é uma mera coincidência, jamais ocorre por um mero conjunto de circunstâncias aparentemente favoráveis, mas é sempre fruto de um momento madura e sabiamente refletido pelo Mestre. Isso acontece porque se trata de um silêncio que é uma forma de encontro consigo mesmo. O silêncio, que lhe é destilado pelo Mestre, é o caminho que o discípulo tem que percorrer para encontrar-se consigo próprio: Guardar silêncio não significa meramente não dizer nada, senão prescindir das oportunidades de fugir e manter-me tal como sou. Renuncio não só a falar, mas também a todas aquelas ocupações que me afastam de mim próprio. No silêncio obrigo-me a estar comigo. […] No silêncio descobrimos como estamos. O silêncio é como uma análise do nosso estado: já não nos enganamos a nós mesmos, senão que vemos aquilo que ocorre realmente em nós (Grün, 2004: 26-27)354.

Assim, o silêncio iniciático do Mestre tem que ser, ele também, entendido a esta luz de disciplina, de profundidade e de exigência. É por ele que o discípulo se transforma nos seus planos intelectual (logos), afetivo (pathos), ético (ethos) e da imaginação (mythos) ao longo da sua peregrinatio (peregrinação) em que tem simbolicamente de morrer (morte simbólica) para renascer sob a

Sobre a natureza e os significados do “guardar silêncio” na perspetiva de Anselm Grün, veja-se na sua obra Elogio del Silencio as seguintes pp. 67, 77-78. 354

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forma de um “homem novo”355, mais particularmente a um “si mesmo como um outro” (Ricoeur, 1990). O discípulo, à semelhança de Cristo, tem que estar neste mundo sem a ele pertencer. Por isso, deve tudo fazer para desembaraçar-se dos falsos ídolos que o impeçam de aceder à verdadeira vida, àquilo que realmente conta, e aquilo que conta é aceder à contemplação (contemplatio), depois de ultrapassar, pela mão do Mestre, aquilo que na tradição monacal, nomeadamente a beneditina, se designava pela leitura (lectio), meditação (meditatio) e oração (oratio) (Grün, 2004: 95-106). Estes passos, na relação filosófico-mística e educacional que se entretecem entre o Mestre e o discípulo, reduzem-se, na grande maioria dos casos, à lectio, meditatio e contemplatio (Merton, 1997). Todo este conjunto prepara a contemplatio, que é o ponto alto da peregrinatio, encetada pelo discípulo na companhia do Mestre, desde o início da sua formação até ao momento em que o Mestre o acha preparado e merecedor de revelar-lhe o segredo iniciático mediante a Palavra iniciática. E esta peregrinação faz-se mediante a Palavra justa e o silêncio sabiamente guardado: peregrinatio est tacere (peregrinação é guardar silêncio). Ao longo da peregrinação o discípulo forma-se e trans-forma-se pela Palavra do Mestre e pelo silêncio disciplinado até atingir o nível da contemplação. O nível anterior, que já é toda uma “biografia do silêncio”, é o da meditação, para evocar aqui a obra de Pablo d’Ors (2014). A meditação silenciosa (Go, 2008: 76-84)356, nascida no 355

Nunca é demais recordar que, para que todo este renascimento aconteça, a meditação nunca poderá andar longe: “Meditar es asistir a este fascinante y tremendo processo de muerte y renacimiento” (d’Ors, 2014: 95). Leia-se a obra de Thomas Merton sobre O Homem Novo que é uma obra de espiritualidade profunda quer do ponto de vista teológico, quer do ponto de vista simbólico. Explica como este processo de aperfeiçoamento envolve dimensões pessoais e existenciais radicais que precisa de ser acompanhado de mudanças interiores e exteriores, quer no nosso coração, quer no nosso modo de agir para que nos tornemos um novo ser humano. 356 Nicolas Go, na sua obra Les Printemps du Silence, distingue dois tipos de “meditação silenciosa”: a que provém do latim meditari (meditar) e que se faz no silêncio (2008: 76-84) e a meditação silenciaire (silenciária) que faz o silêncio e que está próxima simultaneamente da contemplação e do recolhimento (2008. 76-100). O primeiro tipo de meditação é aquele que mais se ajusta ao objeto da nossa

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silêncio interior, é aquele estado espiritual que convém a uma filosofia da educação: é uma das vias de que o discípulo dispõe. Por meio do pensar encontra-se, por um lado, consigo mesmo, num mar de silêncio onde sente uma espécie de quietude rejuvenescedora e, por outro, debruça-se devota e empenhadamente sobre ideias, obras, etc… A meditação silenciosa, para Nicolas Go, exige concentração, atenção interior e contenção de espírito. Do nosso lado, salientamos que ela não é algo de dado ou de adquirido, pois toda a meditação é acompanhada de custo psicológico e existencial, mesmo que ela represente um ato voluntário por parte de todo aquele ou aquela que a ela se dedique. É esta uma forma de meditação ligada ao sentimento rêveur e mesmo à rêverie (devaneio), lembrando aqui os ensinamentos de Gaston Bachelard (1984: 1-23) assim como a obra de Rousseau intitulada Les Rêveries d’un Promeneur Solitaire (1782), especialmente na sua “Septième Promenade” (1944: 62-76), sobre a qual Nicolas Go se inspira para escrever sobre a relação entre meditação e devaneio: Há certamente na meditação qualquer coisa da ordem do devaneio [rêverie no texto], mesmo da contemplação, mais circunscrita nos seus constrangimentos rigorosos, mesmo metódicos, do exame e do estudo. É aliás uma experiência comum a do surgimento do devaneio no interior da meditação. […] A irrupção do devaneio na meditação é como a de uma criança alegre na quietude da escrita: uma passagem do silêncio ao silêncio, da jubilação à alegria (2008: 77-78)

No entanto, mesmo se o devaneio é parente da meditação silenciosa não significa, contudo, que esta se faça sem custo e que não seja até longamente penosa. Quantas vezes uma ideia original, mesmo uma obra, não é ela o resultado de inúmeras meditações feitas nas mais variadas circunstâncias, mas geralmente acompanhadas de um investigação de cunho filosófico educacional. O segundo tipo de meditação, o autor reserva-o mais para os grandes Mestres, os Sages, assim como a identifica como uma noção próxima quer da contemplação, quer do recolhimento.

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estado de espírito angustiado e solitário. O que não significa, porém, que este tipo de meditação não proporcione algum bem-estar àquele que medita: “a íntima satisfação experienciada na frequência solitária de si mesmo” (Go, 2008: 78). O silêncio meditativo faz-se no silêncio interior sempre acompanhado, claro está, do silêncio exterior ou epidérmico: “Ausência de agitação, labor de longa duração e solidão interior são as marcas da meditação silenciosa” (2008: 79). Meditação silenciosa e silêncio interior são a face e o reverso da mesma moeda em simbiose e em complementaridade únicas que buscam intensamente uma ação criadora que não pode deixar, por sua vez, de ser alimentada por uma rêverie (devaneio) jubilatória (2008: 61-69). Pela solidão interior o sujeito, o discípulo ou o neófito, encontra-se na via de pensar o pensamento e mesmo de criar ideias novas ainda que não ignorando que todo o pensar não se faz de costas viradas para a tradição do saber filosófico ou educacional que seja. Aqui afastamonos de Nicolas Go quando ele afirma: “Meditar não é recordar, nem refletir, ainda menos discutir: é pensar sem nenhuma referência a um saber proveniente de algures” (2008: 80). Se a meditação silenciosa é condição necessária, ainda que não suficiente, para pensar a tradição criticamente e ir mesmo além dela, contudo, por si só não é criadora de novo pensamento porque este depende do sujeito pensante que sempre parece “encontrar a sua solidão no exercício silencioso do pensamento” (2008: 80). Pela meditação silenciosa o sujeito que medita na sua quietude, não como sinônimo de ascetismo, pensa com profundidade de espírito no âmago das coisas, pensa inteligentemente as ideias em ordem a aprofundá-las pela crítica e pela problematização. 1.2 Da Palavra Iniciática do Mestre O silêncio, como já o dissemos, não está separado da palavra, aliás, a Palavra justa ou sensata provém do silêncio interior: é aí que germina para depois se dar a conhecer. Aquele que se exprime por esta Palavra fá-lo sempre com razoabilidade e até mesmo com humildade - 204 -


sincera de acordo, aliás, com a máxima: “O sábio reconhece-se com poucas palavras”. Neste sentido, falar e guardar silêncio não só não se opõem como antes se completam numa simbiose expressiva porque o silêncio é o sacrário da Palavra justa: “No silêncio, o ser humano deixa a riqueza da palavra” (Grün, 2004: 76). Daí que a Palavra é uma espécie de termômetro da sinceridade e profundidade do nosso silêncio interior que, por sua vez, reenvia para o mundo abissal da interioridade do discípulo. Aquele discípulo que fala ao seu Mestre fala com humildade e respeito, não esquecendo a seriedade, a dignidade e a razoabilidade com que o faz. Mas é agradável aos olhos do Mestre que o seu discípulo se dirija a ele amavelmente e com bondade e assim infundirá alegria no seu Mestre. Dito de outro modo, o discípulo que aprendeu a guardar o silêncio interior e não exterior357 também sabe falar e dirigir-se com parcimônia ao Mestre. Quando a ele se dirige nunca perde a compostura e devida atenção àquilo que diz e àquilo que lhe é dito. O verdadeiro discípulo é, portanto, aquele que melhor sabe guardar o silêncio, mas que, ao mesmo tempo, sabe usar a Palavra iniciática para não lhe acontecer o mesmo que a Parsifal que, diante do cortejo do Graal no castelo do rei Amfortas e Titurel, se calou e nada disse como, aliás, veremos na nossa segunda parte, na seção segunda. Mas que significa, então, guardar o silêncio e rompê-lo no momento favorável senão mesmo certo? Não é de uma forma de silêncio passivo que aqui tratamos, mas daquele silêncio ativo que implica que o discípulo, não deixando obviamente de exprimir-se pela palavra, saiba, contudo, prescindir dela de modo desprendido: “Que alguém seja capaz de guardar silêncio é algo que não se manifesta na quantidade das suas palavras, mas na sua capacidade para prescindir delas” (Grün, 2004: 57). Mas, para delas prescindir, o discípulo terá 357

Não significa, contudo, que o silêncio exterior seja encarado como um mal antropológico e ontológico. Embora ao longo do nosso estudo nos inclinemos a realçar a importância do silêncio interior, tal não significa que o silêncio exterior seja objeto de menos atenção e muito menos de desprezo (Torralba Roselló, 2014: 150, 149-150).

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que fazer prova do seu desprendimento e da sua humildade, o que nunca é fácil. Mais, os pensamentos e as emoções são como sinos dentro da cabeça daquele que o silêncio quer guardar. A via do silêncio interior correlativo da Palavra iniciática pressupõe toda uma ascese espiritual complexa, árdua e, quantas vezes, desanimadora. Ou não sabemos nós que aquele que embarca neste tipo de “via-sacra”, a fim de libertar-se, não tem que se despedir daquilo que lhe é mais querido? Libertar-se budisticamente das suas ilusões de si, do mundo e da sociedade também nunca foi uma tarefa fácil e leve em ordem à conquista da paz interior ansiada por todo o discípulo. E esta paz, além de exigir um trabalho constante, para que cada um possa libertarse das ilusões atrás mencionadas, obriga a um desprendimento significativo e profundo do desejo de autoafirmação, do reconhecimento e das ilusões, sejam elas mundanas ou interiores, que sempre teimam em estar à espreita para melhor poderem entrar no espírito do discípulo. A existência, à semelhança do pensamento, não se pode dizer nem pensar sem uma especial atenção ao silêncio interior e à própria reflexão: ambos são relevantes no diálogo entre Mestre e discípulo. Uma existência virada para o silêncio interior e para a Palavra autêntica não pode deixar de fazer do acolhimento e do recolhimento as suas pedras-angulares. Uma existência consagrada à plenitude do silêncio é aquela que vive no recolhimento para melhor acolher o Outro na sua intimidade, para melhor o escutar. Daí que o diálogo seja, a par do silêncio interior, uma pedra angular que, na relação Mestre-discípulo, merece um destaque particular na medida em que não há relação de natureza educacional, no sentido da Um-bildung (um conceito caro a Giancarla Sola, 2013), que não faça do diálogo o seu leitmotiv entre, por exemplo, o Mestre e o discípulo. O diálogo entre eles não passa só por uma cumplicidade e uma vontade de participarem de um ideal iniciático, antes carece de uma intimidade mais profunda que só a experiência do silêncio pode trazer: “É por isso, graças a este silêncio em que a presença de si se revela como presença de si ao ser, que cada consciência se une a uma intimidade na - 206 -


qual todas as consciências se encontram para reconhecerem a sua participação comum no ser” (Rassam, 1980: 125). Daí podermos deduzir que o silêncio é o foyer natural da intimidade designando esta, por um lado, uma interioridade íntima, pessoal e intransmissível e, por outro, possibilitando que uma comunicação pessoal e profunda possa ter lugar. Pelo silêncio e pela intimidade o encontro pode sempre ocorrer entre o Mestre e o discípulo e, por conseguinte, o diálogo: silêncio e diálogo, como lugares propícios para receber toda a presença espiritual onde cada um se revê e se aprofunda quer pelas suas meditações, quer pelo diálogo intenso e enriquecedor, passíveis de conduzir o Mestre e o discípulo ao universo de mútuas descobertas. O diálogo que o silêncio proclama e incita é aquele que se faz mais no plano do ser (ordem do reconhecimento) do que no plano do saber (ordem do conhecimento), sem contudo esquecer o valor da Palavra como manifestação da alteridade recíproca entre Mestre e discípulo. O diálogo, valorizado por uma filosofia do silêncio, sempre carece de uma inclinação especial por parte daquele que está pronto a iniciá-lo na medida em que implica uma abertura que sempre obriga a que aquele que usa a Palavra faça um esforço para ultrapassar as suas resistências noéticas e anoéticas em ordem a receber o Outro. O diálogo é um desafio para que ambos os interlocutores se inventem, se renovem, enfim, se desvelem e se deem mutuamente na e pela Palavra: o eu e o tu buberianos transmudam-se num nós em comunhão e acolhimento recíprocos. Trata-se, portanto, de uma atitude de acolhimento, de disponibilidade para a escuta mútua da Palavra que vale, interessa e interpela aquele que fala, aquele que escuta e vice-versa. Mas esta Palavra brota do homem interior quando este vê nascer em si, sujeitando-se à disciplina do silêncio, a virtude da piedade que emerge como uma das virtudes diletas relativamente a si e ao seu semelhante. Contudo, aquilo que procuramos enaltecer e fomentar é a importância fundante da Palavra iniciática nascida no silêncio contemplativo e meditativo daquele ou daquela que à meditação e contemplação se dedica: “O silêncio não é, portanto, a ausência ou a - 207 -


recusa da palavra, mas, pelo contrário, acolhimento de toda a Palavra interior na qual deveria enraizar-se toda a palavra exterior” (Hubaut, 2006: 93-94; Rassam, 1980: 15-36)358. Dito de outro modo, pretendemos tão somente realçar a importância fundamental da Palavra interior, que coincide com aquilo que Massimo Baldini designa de Palavra autêntica (1988: 38-41)359, gerada no seio do silêncio: “O silêncio, diz Francis Bacon, é o sono que alimenta a sabedoria”; e ainda: “o silêncio é a fermentação do pensamento” (Jankélévitch, 1961: 169). Neste contexto, não parece de todo abusivo encarar o silêncio como palavra no sentido que precisamente lhe confere Massimo Baldini – Palavra autêntica, Palavra interior ou mesmo Palavra iniciática. Esta Palavra fundante brota da plenitude do silêncio enquanto fonte originária do sentido verbal, epitético e substantivo. A voz do silêncio é germinada e fermentada naquilo que, no início do trabalho, designamos de silêncio interior, que é precisamente aquele tipo de silêncio que permite que a Palavra autêntica ocorra sob forma de acontecimento (Torralba Roselló, 2001: 24)360. É por isso mesmo que esta palavra é sempre uma Palavra transfigurada porque alimentada pelo “húmus” criador e regenerador 358

Michel Hubaut (2006: 94) cita Maeterlinck para melhor enfatizar a necessidade da Palavra alimentar-se do silêncio, e deste, por sua vez, doar espessura conotativa à própria palavra que é dita: Nós reproduzimos aqui a passagem pelo autor mencionada: “Les âmes se pèsent dans le silence, comme l’or et l’argent se pèsent dans l’eau pure, et les paroles que nous prononçons n’ont de sens que grâce au silence où elles baignent” (2001: 22). Para um maior desenvolvimento do tema do silêncio em Maurice Maeterlinck, consulte-se a sua obra atrás citada (2001: 15-23). Do seu lado, George Steiner escreve: « Précisément parce que la parole est l’insigne de la condition humaine, qu’elle fait de l’homme une créature d’inquiétude et de recherche, le langage ne devrait trouver ni vie ni repos dans les hauts lieux de la cruauté. Le silence est vraiment une alternative. Quand la cité éructe la sauvagerie et le mensonge, rien ne porte plus loin que le poème non écrit» (1969: 80). 359 Leia-se Massimo Baldini sobre a “Parola autentica e silenzio” (1988: 38-41). 360 De acordo com o autor “El silencio es un agente comunicador, porque con él se comunican estados de ánimo, sentimientos, pasiones, angustias y alegrías, vivencias intensamente arraigadas en el corazón. Pero además, el silencio es el punto de partida y el de llegada de toda comunicación verdaderamente humana. La palabra honesta emana del silencio de la mente. El discurso humano topa con el silencio como término final” (Torralba Roselló, 2001: 24).

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do silêncio interior: a linguagem, escreve Merleau-Ponty, “vive no silêncio; tudo aquilo que nós lançamos aos outros germinou nesse grande país mudo que não nos abandona” (2007: 165). O silêncio oferece-nos, assim, a sua Palavra e é neste sentido que utilizamos a expressão “silêncio eloquente”, ou seja, um silêncio que fala e que comunica pela sua Palavra (Corbin, 2016: 105-126). 1.3 Introdução a uma pedagogia do silêncio e da Palavra iniciática As Ciências da Educação sempre conviveram mal com toda e qualquer pedagogia que faça do silêncio a sua pedra angular optando invariavelmente pela ilusão racionalista, pedagogista e cientificizante da educação (Charbonnel, 1988: 9-100). Veja-se, por exemplo, o caso da Filosofia da Educação que deveria ser a primeira disciplina das Ciências da Educação a debruçar-se sobre o tema do silêncio mas, e assim parece, tende a ignorá-lo ao preferir desposar a palavra que não a Palavra iniciática, o silêncio passivo, ou exterior-epidérmico que não o silêncio interior ou ativo (Baldini, 2005: 83-173)361. Desde a palavra escrita inflacionada aos discursos pedagógico e educativo, desde a exposição, tantas vezes monocórdica, do professor que usa e abusa da palavra oral e escrita até à cacofonia estéril dos alunos, e tão poucas vezes lúcida, assiste-se a um cortejo funesto que coloca o evidentemente (Nóvoa, 2005) no centro da educação, não só da sua história mas também da sua filosofia e pedagogia. É por isso que 361

Não deixa de ser eloquente, e muito sintomático, que nas obras em várias línguas consultadas dedicadas à Filosofia da Educação, nomeadamente dicionários, enciclopédias e obras de referência (veja-se o exemplo do Rapport à l’Unesco de la commission internationale sur l’éducation pour le vingt et unième siècle, présidé par Jacques Delors (1996). L’Éducation. Un Trésor est Caché dedans), não haja uma obra, um verbete ou um capítulo que seja dedicado ao tema do silêncio. Deste modo, o nosso estudo pretende preencher essa lacuna funesta na reflexão filosófica da educação. E àqueles e àquelas que pensam que este tema é secundário no campo epistémico, como alguns e algumas gostam de dizer, da Filosofia da Educação, a nossa resposta é, lembrando o poema de Sophia de Mello Breyner intitulado “As Pessoas Sensíveis” publicado na sua Obra Poética, pedir ao Senhor que lhes perdoe: “Porque eles sabem o que fazem” (2015: 485).

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importa sublinhar que as Ciências da Educação, especialmente a pedagogia e a filosofia da educação, se perderam quando, sem mais, desposaram a ideologia da comunicação, acompanhada do omnipresente virtual, e a ditadura da palavra, afastando, por conseguinte quer o “mundo do silêncio” (Picard, 1954), quer o “mundo da palavra” que importa ser proclamado (Breton, 2007; Le Breton; Breton, 200). Entenda-se, de um silêncio interior como condição para um pensamento reflexivo, crítico e imaginativo que, por sua vez, se exprime mediante uma Palavra sempre respeitosa e devedora do silêncio: “O silêncio está portanto na palavra, mesmo depois que a palavra dele tenha nascido. O mundo da palavra ergue-se acima do mundo do silêncio” (Picard, 1954: 20). Por último, a Palavra iniciática, enquanto afirmação da pessoa na ordem moral e metafísica, está ligada ao segredo na sua aceção filosófica. É, pois, por este tipo de Palavra que nos acercamos ao segredo do homem, ainda que seja sempre difícil exauri-lo na sua plenitude, enfim, há sempre que contar com o “silêncio do segredo” e com o seu poder opressivo: Sem dúvida que existe um segredo do homem, desde que não podemos dizer tudo sem nos suprimirmos a nós próprios, visto que também na ordem do discurso qualquer determinação é negação. Mas esse segredo é apenas a margem da indeterminação entre o real e o virtual, entre o feito e o mérito, entre o presente e o futuro; não é a recusa oposta à expressão, mas ponto de partida e matéria da afirmação pessoal” (Gusdorf, 2005: 79). Há o silêncio dos segredos; as coisas que não devem ser ditas. […] falar é revelar não apenas segredos, mas as nossas personalidades. Não falar, então, é ser-se contido, autónomo, adulto e, por implicação, casto. O julgamento pelo silêncio é um teste à integridade (Maitland, 2011: 245 e 251).

Por isso mesmo é que necessitamos de toda uma pedagogia do silêncio e da Palavra iniciática para que o sentido mais profundo da Tradição, que o segredo também em si encerra, se faça melhor ouvir.

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1.4 De uma pedagogia do silêncio O silêncio interior, que é aquele que nos interessa especialmente realçar, não vale por si só, pois merece uma pedagogia que oriente todo aquele que a este tipo de silêncio se dedique. Esta pedagogia deve ser procurada no próprio silêncio e ela nos indicará as vias da meditação e da contemplação que são eles mesmos possibilidade da mistagogia (Mendonça, 2012: 215-216)362. Pela pedagogia do silêncio acercamo-nos de um modo mais radical de nós e do Outro, que se tornará um Próximo, assim como o mundo da vida e a vida da terra se tornarão menos estranhos. O silêncio só ganha na sua profundidade se, mediante uma pedagogia própria, conduzir o sujeito, na sua qualidade de discípulo ou de outra, até à meditação e contemplação (Torralba Roselló, 2001: 56-57). Fomos educados para interpretar a palavra, mas não para compreender o silêncio. Desde a pedagogia colocou-se a ênfase no estudo e na interpretação da palavra, mas esqueceu-se o silêncio. O nosso tempo requere uma paideia do silêncio, pois não é possível compreender o verbo sem ter experiência do silêncio de onde emana o verbo. Não é possível entender o alcance das palavras sem observar os limites que as delimitam. A experiência demonstra-nos que a hermenêutica do silêncio é múltipla e complexa. Há tantas formas de silêncio! Há tantas semânticas do silêncio! O silêncio possui mil rostos. Estamos, pois, no princípio de um caminho virgem e desconhecido (Torralba Roselló, 2001: 24)363.

Neste contexto, não admira que uma pedagogia do silêncio se revele necessária para reconduzir de novo a Palavra à sua matriz originária – o silêncio interior. E em que consiste esta pedagogia do silêncio? Na superação de uma cultura escolar e acadêmica que O autor escreve “Os livros sapienciais constroem, pelo silêncio, um caminho para a mistagogia (entrada progressiva no mistério)” (Mendonça, 2012: 216). 363 Sobre as semânticas do silêncio, veja-se Francesc Torralba Roselló, 2001: 18-20. 362

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supostamente atribuiu um valor sacrossanto ao domínio da palavra que não da Palavra, da recitação cacofônica que não do pensamento criativo e crítico, da visualização e da imaginação reprodutora que não da imaginação criadora e transformadora utópica, do resultado produtivo, calculador e quantitativo que não da meditação crítica. Uma pedagogia do silêncio visa a instauração do silêncio interior, chamando a atenção parao valor do e a importância do silêncio interior em ordem a que a Palavra se faça de novo ouvir como “poder da palavra” e não como “palavra do poder” (Breton, 2007: 6-7), como lugar de diálogo interior e, consequentemente, lugar de realização integral da pessoa (2007: 48-62). Noutros termos, uma cultura escolar e acadêmica que faz do silêncio e da reflexão interiores uns proscritos em detrimento quer de um aparente silêncio exterior, quer do verbo oral e escrito, a maioria das vezes acrítico, mediatizado pela récita visual ou expositiva, como se de salvíficas revelações se tratassem, está condenada a perder-se na miragem das suas próprias técnicas (2007: 32-47). Pela récita visual sob a forma de intermináveis powerpoints projetados no espaço e no tempo da aula, ou por intermédio de aulas expositivas, pretende-se que os alunos memorizem mecanicamente os conteúdos depositados nas suas cabeças como se elas fossem simples recipientes (Freire, 2005: 66), embora os atores envolvidos no processo de ensino-aprendizagem geralmente não o assumam e quase todos entrem em estado de denegação. Tendem a esquecer a densidade do diálogo e do silêncio, no sentido que Paulo Freire lhe confere (2005: 89-139), como modos de uma “educação problematizadora”364 que atribui ao silêncio interior, como condição de meditação, um valor significativo:

“Ao contrário da ‘bancária’, a educação problematizadora, respondendo à essência do ser da consciência, que é a sua intencionalidade, nega os comunicados e existencia a comunicação. Identifica-se com o próprio da consciência que é sempre ser consciência de, não apenas quando se intenciona a objetos, mas também quando se volta sobre si mesma, no que Jaspers chama de ‘cisão’. Cisão em que a consciência é consciência de consciência” (Freire, 2005: 77). 364

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Assim como a pedagogia da palavra é completamente necessária para descrever o mundo, a pedagogia do silêncio é absolutamente imprescindível para contemplar o mundo e interiorizá-lo. […] A palavra que nasce do silêncio é uma palavra sólida, consistente e firme. Por outro lado, a palavra que brota da palavra, do tecido linguístico, não tem, em geral, a profundidade nem o grau de reflexão daquela que nasce do silêncio. É uma palavra epidérmica que se limita a reproduzir aquilo que já se havia dito e que o formula de um outro modo. É uma palavra que se refere a outra palavra e, neste sentido, pode inclusive encobrir mais a realidade (Torralba Roselló, 2001: 55)365.

Vemos assim que a pedagogia do silêncio deve ensinar a que o sujeito reaprenda a não ter medo do silêncio (Torralba Roselló, 2001: 38-47), a que não tenha medo de escutar-se e de pensar e de pensar-se, mesmo que o pensamento, como o disse Alberto Caeiro no seu poema “O Guardador de Rebanhos”, incomode: “Pensar incomoda como andar à chuva/ Quando o vento cresce e parece que chove mais” (Pessoa, 2014a: 20). O silêncio interior causa medo porque de súbito o sujeito confronta-se com a sua nudez plena de demônios, de interrogações e dúvidas sobre o seu ser, sobre o mundo que o rodeia e, principalmente, sobre o seu destino: “Quando alguém vive a experiência silenciosa, encontra-se totalmente despido consigo mesmo, além de todas as coisas e de todas as máscaras. Então, o eu aflora com natural espontaneidade e, deste modo, interpela, pergunta, provoca e apresenta desafios” (Torralba Roselló, 2001: 39)366. E, mais uma vez, a pedagogia do silêncio tem uma função a desempenhar que é a de aquietar o sujeito passível de ser interpelado, de ser desafiado 365

A palavra epidérmica referida pelo autor está intimamente ligada àquilo que ele designou de “silêncio epidérmico” (Torralba Roselló, 2001: 106-108). 366 Lembramos aqui os versos de Álvaro de Campos no seu poema intitulado “Tabacaria”: “Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?/Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!/ E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!/ […] Quando quis tirar a máscara, Estava pegada à cara./ Quando a tirei e me vi ao espelho,/ Já tinha envelhecido” (Pessoa, 2014: 104 e 108).

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quando se entrega ao silêncio interrogante e interrogador. Pelo silêncio, e nele, o indivíduo perscruta-se a si e contempla o outro e o mundo somente se se sentir em paz interior. Senão, não chega nunca a contemplar: O silêncio e a contemplação estão intimamente vinculados. Sem silêncio interior não é possível contemplar a realidade. A contemplação pressupõe uma atitude calma e de recetividade, pois, numa atmosfera prenhe de palavras e de gritos, a contemplação torna-se inviável, porque a palavra obscurece a atmosfera, escurece-a, tinge-a de um tom grisalho que não permite retê-la em toda a sua transparência (Torralba Roselló, 2001: 56).

Se a pedagogia do silêncio é a condição necessária para assegurar a serenidade tão necessária à meditação e à contemplação não devemos igualmente esquecer a pedagogia do olhar, porquanto toda vita contemplativa a pressupõe: “Este aprender a olhar constitui o ‘primeiro ensinamento preliminar para a espiritualidade” (Han, 2012: 53 e 53-60). Esta pedagogia complementa a pedagogia do silêncio na medida em que não há silêncio interior sem um olhar íntimo que o acompanhe, bem como um olhar penetrante e circunspeto da vida e do mundo se impõe para todo aquele que mergulha nas profundezas desse mesmo silêncio. Trata-se de um silêncio sempre perscrutador, questionador, quase que biográfico, que abre não só caminhos novos como também estimula as reentrâncias do cogito daquele que ao silêncio se dedica. De tal forma que o sujeito do silêncio interior é brindado quer do ponto de vista espiritual, quer do ponto de vista daquilo que Gaston Bachelard designou de “poética do devaneio” como aquela poética que dá um sentido existencial às imagens criadas pelo “cogito rêveur” (Bachelard, 1984). Ambas as pedagogias tendem a ser sistematicamente esquecidas pelos diversos atores escolares ao ponto de afirmar-se que a comunicação, e a pedagogia da Palavra que a acompanha, é o lugar da educação (Sacristán Gomez, 1989: 35-49), muito especialmente da - 214 -


relação pedagógica sempre cada vez mais sujeita ao jugo do virtual (tablet, internet, telemóvel…), à submissão do espartilho das didáticas, batizadas recentemente de metodologias de ensino, dos estudos curriculares e da tecnologia educativa como complexo salvador da alma da educação e da sua voz pedagógica. Quando aquilo que realmente importa, e que aliás sempre importou, é e foi a Palavra mediadora do encontro sob a forma quer do diálogo, quer do silêncio. Pelo encontro367 as palavras animam-se e o silêncio faz-se como meio de atenção ao outro em forma de rosto que nos pede um aumento de mais consciência e de maior responsabilidade: Na expressão plena da palavra, o silêncio é a realização da palavra; ele é esse momento de suspensão em que a ideia faz o seu caminho, alimentando já a réplica vindoura. […] Penso mesmo que mais frequente que na palavra, o silêncio é primeiro. Mas o seu poder é então anunciado pelo rosto. Eu sou do meu lado sensível a esta proeminência do rosto no encontro. […] o rosto ‘fala’ […] num sentido mais elementar, eu diria quase primário. O rosto permite aceder no encontro. Ele é o lugar no homem do sagrado, o lugar do reconhecimento e da nominação de si e do outro. Ele é um poder de apelo. A sua nudez é uma promessa que por vezes se pode pressentir (Breton; Le Breton, 2009: 24 e 34).

Enquanto pela comunicação a alma da educação se foi irremediavelmente perdendo na sua substância instauradora de sentido, já pela Palavra e pelo silêncio ela tornou-se “humana, demasiado humana” e fonte de esperança em que será ainda possível resgatar a libido educandi, ou seja, o desejo comprometido de educar. E este desejo culmina sempre pela transformação (Umbildung)368 do Sobre o “encontro” leia-se “La rencontre s’établit dans un espace émotionnel où la parole joue un rôle essentiel. Mais bien entendu, avant la parole, je soulignerai pour ma part la qualité de présence de l’autre, cette aura qu’il dégage, qui n’appartient qu’à lui et qui provoque d’emblée la prévention ou la confiance” (Breton ; Le Breton, 2009 : 34 e 33-42). 368 Umbildung é um conceito alemão fulcral na tradição da Bildung e do Bildungsroman. É um conceito querido a Giancarla Sola que o explorou num dos 367

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Outro através da meditação (mediatio) e da contemplação (contemplatio) e não de mera lição (lectio) como o faz crer a cultura escolar e universitária atuais conduzindo àquilo que lucidamente Neil Postman designou pelo “fim da educação” e significando em muito o esgotamento de sentido da paideia grega (Werner Jaeger) com as consequências que o mesmo Postman descreveu sob a forma dos “deuses que falham” (2002: 35-77)369, sem esquecer, contudo, que há “deuses que poderão servir” (2002: 78-221)370. Se houvesse, pelo menos em parte, recolhimento ativo e consciente no espaço escolar o silêncio terapêutico por ele gerado certamente que a todos iria beneficiar (Baldini, 1986: 91-95)371. Pelo recolhimento o espaço escolar se transfiguraria em claustro de uma abadia, de um mosteiro ou de uma Cartuxa, onde seria possível saborear as raízes mais profundas e mais radicais do silêncio (Merton, 1953 e 1960) a fim de melhor se apreender o sentido da Palavra que nunca gosta do tumulto cacofônico e destrutivo que carateriza a atual relação pedagógica. O silêncio do claustro, encarando já o claustro

seus livros, datado de 2003, intitulado Umbildung. La “trasformazione” nella formazione dell’uomo citado na Bibliografia final. 369 Neil Postman entende deus na seguinte aceção: “é o nome de uma grande narrativa, uma narrativa que possui credibilidade, complexidade e poder simbólico suficientes para permitir que o indivíduo organize a vida em função dela” (2002: 20). Quanto aos deuses que falham, Neil Postman indica os seguintes: os da Utilidade Económica, do Consumismo, da Tecnologia, do Tribalismo ou do Separatismo (2002: 35-77). 370 Sobre os “deuses que poderão servir”, Neil Postman indica os seguintes: “a nave espacial terra”, “o anjo caído”, “a experiência americana”, “a lei da diversidade” e, por fim, “os tecedores de mundo/os criadores de mundos” (2002: 78-108). 371 Massimo Baldini, na sua obra Le Parole del silenzio, elaborou uma antologia sobre vários temas ligados ao silêncio. Um dos capítulos dessa antologia – o capítulo 10 – é dedicado ao “Silenzio e Raccoglimento” (1986: 91-95). O tema do recolhimento, ligado à conhecida “Lição de silêncio” como uma das inovações do seu método pedagógico, foi tido em grande consideração no espaço escolar, nomeadamente dos primeiros anos, pela pedagoga italiana Maria Montessori (18701952) na sua obra La scoperta del bambino (1948 – edição original em inglês e traduzida para italiano em 1950)

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como uma “escola do silêncio” (Mendonça, 2012: 219-220)372, mais do que uma mera metáfora para designar da urgência e da pertinência de voltar-se ao ideal do silêncio como fonte inspiradora da Palavra, deveria converter-se como numa das tarefas mais urgentes de quem pensa a educação nas suas múltiplas vicissitudes. Pelo silêncio que o recolhimento destila, o pensamento faz-se novamente ouvir, murmurar e bater devagarinho dentro de cada um: é o trabalho silencioso do pensamento. É como aquela visita, ou estrangeiro, que nos bate à porta, num dos entardeceres da vida atravessada pela quietude do silêncio da natureza e pela luz encantatória, e que partilha connosco do mesmo pão no seio de um silêncio reconhecido e agradecido: O silêncio instala no mundo uma dimensão própria, um peso que envolve as coisas e incita a não esquecer a parte que cabe ao olhar pessoal com que as vemos. O tempo passa aí sem pressas, a passos humanos, convidando ao repouso, à meditação, ao retorno sobre si mesmo. […] O silêncio proporciona uma densidade que transtorna a consciência e mesmo, às vezes, a modifica (Breton, 1999: 146-147, 149).

É por isso que a educação, na sua ação pedagógica de formar o Outro, não deverá tão-somente privilegiar a Palavra, mas ter em conta esse grande Mestre que é o silêncio, tão desprezado na relação educativa atual por esta o considerar patrimônio do “sagrado claustral”. O silêncio é necessário ao ato de pensar que se pretende reflexivo e não há educação que resista à falta deste tipo de pensamento, crítico pela razão que o ato de pensar dá-se mal fora de um tempo que lhe seja propício, ou seja, inscreve-se num tempo longo. A educação contemporânea negligenciando a dimensão pedagógica do silêncio, erradicando, por exemplo, a meditação e mesmo a contemplação, coloca em causa não somente a formação do A este respeito, Tolentino de Mendonça escreve: “A vida monástica faz do silêncio uma condição da existência e um acompanhamento necessário para a vida espiritual. […] Os Padres do Deserto tornaram o silêncio uma cultura” (2012: 2019; Laroche, 2015). 372

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educando, como também não o ajuda a que ele encontre o seu caminho, enfim, o seu destino. O educador, e muito especialmente um Mestre, deve saber qual o momento oportuno de fazer silêncio e de falar. Quando ocorre o momento de escutar o educando, ou o discípulo, é o momento do comprometimento, do empenhamento em que o educador, ou Mestre, se dá conta que há sempre um terceiro que acompanha, presente no diálogo – é o silêncio que escuta e, quando respeitado, é o próprio diálogo que ganha em profundidade e em plenitude: “Finalmente, a presença do silêncio no seio do diálogo significa que a alteridade e a reciprocidade das consciências são e permanecem correlativas e complementares” (Rassam, 1980: 139). Esta questão é crucial para uma reflexão filosófico-educacional que se reclama de um humanismo integral e aberto que coloca a pessoa do educando, do discípulo, em primeiro lugar, em detrimento de simples e pobre comércio de palavras feito à pressa e com pressa de tudo dizer. Um diálogo que considera o lugar do silêncio é aquele que considera a pluralidade de consciências, o que significa que é a alteridade que é respeitada. E o respeito pela alteridade é o caminho direto para a intimidade e a comunidade ontológica de duas consciências dialogantes e que buscam o ser da vida. A intimidade transforma o Outro num Tu, mesmo no nosso próximo que é reconhecido como tal e que é aceite na sua diferença. O Mestre acolhe o seu discípulo porque ele antes se soube recolher e, sem o recolhimento, parece-nos que não há acolhimento que resista: “É preciso ser recolhido para ser acolhedor, é preciso ser acolhedor para se ser capaz de recolher-se. É o sentido do mistério da nossa intimidade que nos dá ser aberto ao outro, e a comunhão, a mais pura, é aquela que dá a cada um a consciência mais expressiva da sua singularidade” (Rassam, 1980: 136). Porém, todo este movimento não se faz nem sem o silêncio perscrutador, nem sem a Palavra sóbria e reflexiva que naturalmente já se distancia das palavras ditas no império da comunicação.

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1.5 Para uma pedagogia da Palavra iniciática A Palavra torna-se iniciática quando reconhece que, por um lado, é do silêncio que lhe advém a sua inspiração espiritual e, por outro lado, ela é devedora de toda uma tradição mítica e simbólica que lhe confere um poder arquetípico, ou seja, trans-histórico, transcultural e atemporal na arte e na sabedoria de formar o discípulo. A Palavra e o silêncio completam-se reciprocamente nos planos fenoménico, linguístico e ontológico: se o silêncio é o berço acolhedor da Palavra, esta, por sua vez, é a voz do silêncio sem o qual ele permanecerá prisioneiro ao e no nada: “o silêncio não é portanto o nada. […] O silêncio é, por sua vez, o não-ser relativo ou parcial, e não o nada absoluto” (Jankélévitch, 1961: 169-170)373. Nunca o silêncio, por não ser um nada absoluto, aniquila de forma niilista a possibilidade de o sentido emergir através da Palavra. Por isso, silêncio e Palavra estão nos braços um do outro (Rassam, 1980: 1736: Torralba Roselló, 2001: 23-27), quer dizer, a sua relação solidária é uma “amizade” para sempre na medida em que o silêncio permite que a Palavra respire e quando ela o faz tende a melhor meditar: Palavra e silêncio parecem excluir-se. O silêncio não é ele ausência ou cessação da palavra? E contudo, não só o silêncio, sofrido ou consentido, pode ser tão expressivo quanto a palavra, mas a própria palavra, considerada menos na sua única aparência como um acontecimento, que no ato que a constitui, pressupõe um fundo silencioso sobre o qual ela se forma. A palavra só pode realizar-se em ligação íntima com um silêncio primordial, em que ela aparece inicialmente como uma rutura, enquanto sua expressão ou a modulação (Rassam,1980: 17).

Pelo silêncio a Palavra ganha o seu tempo para melhor dizerse, porquanto não necessita o sujeito de calar-se para escutar o Outro? Sobre a relação entre o “silêncio e o nada” leia-se o capítulo IV – Le Silence et le Néant da obra Le Silence de Joseph Rassam (1980: 75-91). 373

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Pode o sujeito pensar no barulho e imerso no ritmo frenético e, tantas vezes, ensurdecedor da comunicação? Não carece o sujeito de abstrair-se para encontrar condições de uma interioridade mais profunda e logo mais sentida? Só a Palavra, nos seus planos denotativo e conotativo (Reboul, 1980: 136-140)374, é capaz de oferecer-nos o sentido da vida, do mundo e da existência em geral. Oferece-nos ainda mais sentido, se ela tiver a perspicácia e a sensibilidade, o bom senso de alimentar-se, em permanência, do silêncio gerador da Palavra instauradora de sentido à semelhança da planta que só vive, cresce e se embeleza se as suas raízes estiverem mergulhadas em terra fértil. Caso contrário, estiola e morre: O silêncio nunca é uma realidade, mas uma relação, aparece sempre na condição humana, no interior de uma relação com o mundo. […] O silêncio não é apenas uma certa modalidade de som, é principalmente uma certa modalidade de sentido. […] O silêncio é um repouso moral de que apenas o ruído é o inimigo, representa uma modalidade do sentido, uma interpretação que o indivíduo faz daquilo que ouve, e um caminho de reencontro consigo próprio para voltar a encontrar o contacto com o mundo. Mas exige às vezes o esforço de o procurarmos, de o ir buscar propositadamente (Le Breton, 1999: 143, 145).

Deste modo, pensamos que a Palavra, doadora de sentido, deve procurar um equilíbrio, um diálogo fecundo com o silêncio para não estiolar e morrer sob os escombros das figuras de retórica, dos verbos, nomes, advérbios e epítetos, particularmente daqueles que privilegiam a denotação em detrimento da conotação (Reboul, 1980: 136-139). O silêncio, como salienta David Le Breton, é uma modalidade de sentido (Le Breton, 1999: 141-146), mas nós, pelo 374

No presente estudo atribuímos uma importância fundamental ao papel da conotação no sentido que “fazer silêncio”, “estar em silêncio”, “guardar silêncio”, “manter o silêncio”, “viver o silêncio”, “alegrar-se no silêncio”, “conviver com o silêncio”, “viver em silêncio”, “apreciar o silêncio”, “saborear o silêncio” “contemplar no silêncio”, “meditar no silêncio”, etc, pressupõe todo o processo da conotação na sua máxima expressão (Reboul, 1980: 137).

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nosso lado, perguntamo-nos se não será mais do sentido porquanto é a sua assinatura, a sua marca que faz toda a diferença quer no modo como existimos, quer no modo como dizemos aquilo que importa e que interessa. É, portanto, aqui que reside todo o enjeux da nossa reflexão visto que encaramos o silêncio como uma espécie de arquétipo, de matriz simbólica, geradora do sentido (García Barriuso, 2004: 138-140)375. Donde, por sua vez, brotariam os diversos sentidos mediados pela linguagem (Brun, 1985) e esta nos colocaria na via do simbolismo cósmico (História das Religiões), poético (a Poética) e onírico (a Psicanálise) como nos ensinou Paul Ricoeur (1987: 65 e 1988: 173-181; Brun, 1985: 67-102). Daquilo que precede, compreende-se que a Palavra iniciática implica o silêncio interior e este, ao fazer com que essa Palavra se torne semanticamente mais significativa, incita-nos a refletir e a estar mais próximo dos outros e dos seus rostos. Noutros termos, pela Palavra iniciática a singularidade da humanidade refletida nos rostos reacende-se para melhor se iluminar. A Palavra iniciática é ritualizada pela simples razão que não diz qualquer coisa, nem é dita no seio de uma conversa ou diálogo normais. Trata-se, pois, de um tipo de Palavra rara, original e sábia que carece de toda uma pedagogia particular que, por sua vez, cultive o diálogo intenso entre o silêncio e a Palavra inspirada. Este diálogo é sempre delicado porque a Palavra iniciática deve regurgitar ao silêncio que a habita (Picard, 1954: 19-30): “A palavra deve continuar em relação com o silêncio em que ela foi criada. Faz parte da essência do homem que a palavra se dirija para o silêncio; faz parte da essência do homem regressar ao lugar donde ele veio” (1954: 19). Importa, portanto, que uma pedagogia do silêncio tenha consciência que a Palavra brota de um pensar silencioso reflexivo e tende a ele regressar na medida em que “O silêncio é como uma Patricio García Barriuso trata do “silêncio como símbolo” na sua obra dedicada ao Silencio e que confirma para nós a importância da nossa abertura ao simbolismo arquetipal: “Ha sido – escreve o autor – un arquetipo en las tradiciones espirituales de todas las religiones” (2004: 138). 375

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meditação sobre esta palavra [o autor refere-se à palavra absoluta]” (1954: 25). O que significa que silêncio vital e Palavra absoluta alimentam entre si a Palavra iniciática e uma pedagogia desta Palavra deve valorizar o sentido iniciático. Este tipo de sentido, além de ser transmitido metafórica e alegoricamente, a maior parte das vezes, pelo Mestre ao discípulo, também incita a que o Mestre confronte o próprio discípulo com a sua interioridade, ou seja, com a pessoa que se é. Uma pedagogia que, ao valorizar a Palavra vital, contribui para uma “visão do mundo” construída na base da alteridade desse mesmo mundo e da reflexão de si mesmo. Um Mestre espiritual é sempre um pedagogo carismático que deve ensinar o seu discípulo a viver entre o silêncio e a Palavra (Picard, 1954: 27-30): um silêncio de ouro e uma Palavra libertadora e criativa. Resumindo em que consiste uma pedagogia da Palavra iniciática? Salientamos que a pedagogia da Palavra iniciática não pode deixar de ser senão uma pedagogia da mestria, da fascinação, do espanto e da influência e que leve a que a Palavra possa ser tornar-se audível. Trata-se de uma pedagogia que deve suscitar vocações e encontros entre rostos: “Fora dos discursos e a despeito deles, estabelece-se um contato entre o mestre e o discípulo, diálogo sem palavras, sempre diferente, diálogo escondido, o único decisivo” (Gusdorf, 1995: 73). Neste contexto, salientamos que a um diálogo audível e silencioso denominamos, na linha de Georges Gusdorf, de comunicação indireta (1995: 73-74 e 79-80) que, por sua vez, pressupõe uma conceção de homem “que insiste no núcleo secreto de cada vida” (1995:74). Deste modo, chegamos à figura do segredo iniciático estreitamente ligado à Palavra iniciática. Esta Palavra é-o na medida em que comunica ao discípulo, num tempo e num espaço sagrados, um segredo reservado à categoria dos Mestres espirituais. O segredo iniciático somente é comunicável através da iniciação ritual mediante a ação de um Mestre que é “operador de uma experiência iniciática. Graças a ele o espírito dirige-se ao espírito sem qualquer poder senão o do espírito” (Gusdorf, 1978: 315; Eliade, s. d.: 195-219; 1976: 133-180). Só por ela o iniciado pode aceder ao - 222 -


conhecimento cifrado, mantido em sigilo através do juramento, comprometendo de forma definitiva aquele que o presta. A iniciação é um processo contínuo mesmo para os já iniciados na Tradição: ela é o início de um longo caminho de aprendizagem à meditação e á própria contemplação. Finalmente, uma pedagogia da Palavra iniciática deve, em última instância, despertar em cada discípulo, pela mão do Mestre espiritual, a consciência de si, e deste modo bem podemos afirmar, com Georges Gusdorf, que ela se transforma numa “pedagogia da pedagogia” (1978: 309-318) em virtude dela não se ater simplesmente nem a um conjunto de técnicas (práticas pedagógicas), nem a um conjunto de teorias filosófico-pedagógicas da educação, mas antes a uma sabedoria. Em resumo, a pedagogia da Palavra iniciática não se confina a uma mera pedagogia dos pedagogos, mas antes, e muito especialmente, ela abre-se a uma pedagogia dos Mestres espirituais que faz da relação Mestre-discípulo o núcleo emblemático de todo o ensino (1978: 316-317; 237-265). Um Mestre é sempre um iniciador, uma espécie de profeta carismático antes de ser um pedagogo. É por isso mesmo que “a palavra do mestre põe o homem em movimento. […] Os que ouviram um dia o canto da verdade, o seu apelo e a sua convocação, pela voz de um mestre, esses doravante já não poderão esquecê-lo, mesmo que lhe sejam infiéis” (1978: 316). E, deste modo, podemos dizer que a Palavra iniciática do Mestre, mediante a sua pedagogia, surpreende e atordoa o espírito do seu discípulo, renovando-o para que ele melhor se cumpra de acordo os clássicos aforismas de Goethe e de Píndaro: “Morre e devém” e “Torna-te naquilo que és”.

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CONCLUSÃO Num tempo em que “fazer silêncio” parece, desde logo, ser motivo de excomunhão376 por parte daqueles que veem na follecomunicação uma espécie de ilha do náufrago, num tempo em que “a tagarelice desenfreada da ideologia da comunicação é uma tecnicização do sentido que nos circunscreve num mundo limitado, sem horizonte, no qual nós nos tornamos utensílios, figuras descartáveis, sem rosto nem voz” (Breton; Le Breton, 2009: 26), nós afirmamos que quer o silêncio interior, quer a Palavra iniciática servem de antídotos ao “desaparecimento de si” (Le Breton, 2015) no turbilhão do ruído tóxico e da incontinência verbal castradora do ato de pensar, da assunção da interioridade de cada um e, por consequência, mesmo de o existir: “Está-se cada vez mais num mundo da palavra mas num universo em que é necessário vomitar. Nós não cessamos de comunicar, mas encontramo-nos cada vez menos” (Le Breton, 2016: 12; Kaeppelin, 1997: 13-23; Breton; Le Breton, 2009). Não é que tenha sido nossa intenção escrever um manifesto anticomunicação, uma espécie de reflexão maniqueísta em que a Palavra e o Silêncio, no seu sentido substantivo, seriam os seus antídotos eleitos contra os excessos dessa mesma comunicação, mas tão somente refletir que a comunicação atual muito teria a ganhar se considerasse com maior profundidade as dimensões heurísticas da Palavra e do próprio silêncio: Certamente, o meu elogio do silêncio é também um elogio da palavra! A matéria primeira da ligação social, da amizade, do amor, é a troca de palavras, mas num Sublinha Francesc Torralba Roselló que “El silencio, en la cultura actual, no comunica nada, agota mentalmente y empaña la mente del individuo. No sólo no seduce, sino que tiene un efecto somnoliento y disuasorio. Callar no está bien visto. Denota aburrimiento, apatía y mediocridad. El orador público o sofista reciclado parlotea sobre cualquier tema, se expresa con solidez sobre todo y no puede frenar la velocidad de movimientos de su lengua. El silencio está mal visto. Hoy sólo callan los ignorantes. Todo el mundo expresa su parecer, y además sin complejos” (2001: 22-23). 376

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mútuo reconhecimento do direito a calar-se em consideração do rosto do outro. O silêncio é um lugar essencial de comunicação entre amantes ou entre amigos. Poder calar-se conjuntamente é um grande sinal de cumplicidade (Le Breton, 2016: 12).

Nesta linha de ideias, evocando os versos de Paul Valéry «Entends ce bruit fin qui est continu, et qui est le silence. Écoute ce qu'on entend lorsque rien ne se fait entendre» (2008: 300), não podemos deixar de sublinhar a importância que toda a reflexão filosófico-pedagógica tem em “escutar aquilo que não se ouve” quer no seu sentido literal, quer no seu sentido metafórico. Tratar os temas do silêncio interior, da Palavra iniciática e da sua pedagogia deveria ser uma das preocupações principais da filosofia da educação e das pedagogias que de algum modo a acompanham mas tal não acontece, o que contribui naturalmente para o seu enfraquecimento epistêmico. Porém, tal não significa que o nosso estudo deva ser encarado como uma defesa de uma "filosofia do silêncio" e da Palavra iniciática sem mais, mas antes como uma reflexão sobre o modo como o silêncio interior pode levar o sujeito a dar maior valor e importância àquilo que diz e como o diz, ou seja, à palavra dita e, por maioria de razão, à Palavra iniciática: "É pela palavra e não pelo silêncio que o homem é primeiro homem. A palavra tem a supremacia sobre o silêncio" (Picard, 1954: 1)377. Neste sentido, escreve Rosa Montero que é “a 377

Trata-se daquela Palavra com peso semântico, com envergadura metafórica poderosa capaz de abrir a porta do símbolo cósmico, poético e onírico. A Palavra, ao contrário da palavra que é efémera e leve, pesa, torna-se inesquecível porque marca indelevelmente aquele que a ouve. A Palavra perdura, ou permanece, e ressoa para todo o sempre naquele que a ouve ou simplesmente já a ouviu. Ela diz mais daquilo que diz ou que anuncia. O seu dizer inscreve-se no domínio da semântica profunda, ou seja, atribui ao significado, ao sentido e à conotação uma primazia sobre o mero conceptual (aspetos lógico e cognitivo). Resumindo: é a dimensão hermenêutica que se sobrepõe ao mero uso linguístico: “toute ‘extraction’ du sens (toute ‘compréhension’) d’une langue humaine est une opération métalinguistique, donc que le référentiel de tout ‘langage’ humain est à rechercher dans l’infini projet humain qui subsume ce langage : seule une explication anthropologique exhaustive peut rendre compte des modalités de notre compréhension » (Durand, 1979a : 76 e 37-83; Mauro, 1969).

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palavra que nos faz humanos”, quase que parafraseando Max Picard ao afirmar que “o silêncio absoluto, que é o silêncio da incomunicação, de uma incompreensão total que desfaz a convenção salvadora da palavra” (Montero, 2007: 105-106). Neste contexto, sublinhamos que, por um lado, não fazemos apologia deste tipo de silêncio que mata ou fere a Palavra de morte, mas que, por outro lado, parece não haver Palavra que entusiasme, ou que prevaleça, se ela não se alimenta do silêncio vivo, do silêncio interior, entendido este como aquele que inquieta, que conduz à reflexão e, em última instância, à meditação. Não há Palavra que se consiga fortalecer semanticamente sem antes ter passado pela plenitude do silêncio, como muito pertinentemente nos recorda Max Picard na sua obra Le Monde du Silence (1954: 8-14), e do que seria do (s) silêncio (s) se não se desse(m) às palavras e à própria Palavra? Silêncio e Palavra são, portanto, a condição do nosso pensamento e da nossa existência na medida em que ambos carecem do silêncio e da Palavra para melhor atingirem a sua plenitude e mesmo a sua razão de ser. E por que não terminar com uma poesia devotada ao silêncio devida a Tolentino de Mendonça: “O silêncio só raramente é vazio// diz alguma coisa// diz o que não é” (2015: 15). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E CONSULTADAS A – Do Silêncio ABBÉ DINOUART [Joseph A.] (1987). L’art de se taire. Principalement en matière de religion (1771). 4e édit. Grenoble: Editions Jérôme Millon. AGOSTINI, Daniela de ; MONTANI, Pietro (A cura di). L’Opera del Silenzio. Fasano: Shena editore.

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CAPÍTULO 5 AS POLIFONIAS DO SILÊNCIO: A PRESENÇA DO NÃO VERBAL EM PSICOTERAPIA Walter Boechat378 INTRODUÇÃO Nas origens do método psicanalítico, Freud tratou juntamente com Breuer a famosa paciente Anna O. Esta empregou diversas metáforas para descrever o novo método terapêutico que surgia e que futuramente Freud denominaria de psicanálise. Anna O. denominou o método de limpeza de chaminé e também usou a imagem que se tornou famosa, de cura pela fala. A última imagem faz sentido, na medida em que as curas até então tinham como base a medicação e pouquíssima atenção era dada ao poder terapêutico da comunicação e da linguagem. Na tradição da cura pela fala a interpretação sempre ocupou a posição central: o que falar, quando falar e como falar. Pouco a pouco uma outra questão chama a atenção dos psicanalistas de diversas linhas, os signicadosdo silêncio. De fato, o silêncio em comunicação ocupa a mesma posição que a linguagem, sem o silêncio não há a linguagem e vice-versa. O silêncio e a linguagem constituem um par de opostos essencial assim como espírito-matéria ou mente corpo. Não existe o som sem o silêncio, nem esse último sem o primeiro. O silêncio se configura, portanto, como uma pré-condição mesma para a comunicação em psicoterapia ou em qualquer outra forma de comunicação. Mas não devemos também identificar a comunicação com a linguagem falada em si. Os processos de transformação dentro de um 378

Ver lista de Colaboradores.

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processo terapêutico envolvem uma grande complexidade de fatores, diversos deles transcendendo a linguagem. São os processos não verbais presentes na transferência e contratransferencia aos quais me refiro aqui como as polifonias do silêncio. 1. Os silêncios da comunicação verbal Em primeiro lugar, os processos não verbais estão presente na própria comunicação verbal. Nessas não só o conteúdo do que o analista expressa em uma interpretação e’ importante, mas também a maneira como expressa, o tom de voz, (a vocalização- voicing) o gestual e a atitude que acompanham uma interpretação. Todas essas interferências matizam o campo transferencial de forma sutil e atuam no processo terapêutico. A questão do voicing na interpretação torna-se bem evidente em paciente bem regredido, pois nesses o conteúdo da interpretação não é tão importante quanto a maneira de falar, o ritmo, o gestual e outros componentes do infra-verbal.379 Lembro-me nesse contexto de um paciente psicótico com o qual eu encontrava grande dificuldade de comunicação quando em certa sessão passou a olhar-me fixamente, com expressão atenta e curiosa, enquanto eu interpretava para ele uma experiência sua. Foi necessário que se passasse alguns minutos para que eu compreendesse que esse paciente não estava entendendo o conteúdo do que eu dizia, mas que seu olhar atento era muito mais uma resposta emocional ao meu tom de voz, minha vocalização e ao ritmo de minhas palavras. Era como se eu embalasse meu paciente dentro do campo transferencial, como uma mãe embala seu bebê, oferencendo-lhe um continente não verbal que estruturasse seu ego muito pouco estruturado. Nesse contexto do campo transferencial o conteúdo da Prefiro aqui o termo infra-verbal a expressão pre’-verbal, pois muitos dos elementos não-verbais presentes na comunicação em terapia não são anteriores à comunicação verbal, mas acontecem conjuntamente a ela, formando um todo com a comunicação verbal propriamente dita. 379

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comunicação verbal em si tinha pouquíssima ou nenhuma importância para o processo terapêutico.Os conteúdos do silêncio extrapolavam em muito em importância o conteúdo verbal comunicado em si. 2. As origens do estado silencioso Na organização da consciência, há um estado original de silêncio, que acompanha o estado de não ser, necessário para o desdobramento da consciência e do ser a partir deste estado: e um momento de repouso silencioso anterior mesmo ao estado de consciência e de comunicação. O psicanalista inglês Donald Winnicott chamou esse estado de solitude. (Winnicott, 2000, apud Safra, 2009). Esse estar só consigo mesmo nas origens e reencontrado nos momentos de silêncio criativo em toda vida do indivíduo. No momento do silêncio essencial o indivíduo volta a contactar seu ser mais genuíno e autêntico. O estado de solitude, ocorrendo em momentos primordiais do desenvolvimento prepara também o indivíduo para as experiências fundamentais de seu desenvolvimento que vem a seguir. Os estados de solidão e silêncio ocorrem desde o princípio do desenvolvimento da personalidade, mesmo no estado da solidão uterina. O estado uterino, no qual modernas pesquisas revelam já a existência de uma consciência, embora em forma rudimentar. E’ o chamado psiquismo fetal, sobre o qual tem se pesquisado bastante. Os momentos iniciais da vida nos quais o feto está mergulhado no líquido amniótico são dominados por profundo silêncio, mas não por ausência de consciência. Freud (1917) denominou esse estado de sentimento oceânico, uma de suas protofantasias ou fantasias originárias, das quais todos os seres humanos compartilhariam. O feto recebe suas impressões iniciais mergulhado no oceano do líquido amniótico. Esse sentimento oceânico seria a raiz imaginar do sentimento universal de religiosidade, uma percepção irracional de se estar contido em totalidade sem limites.

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As pesquisas de psiquismo fetal se desenvolveram a partir do emprego dos exames por ressonância magnética na década de 1990. Antes disso, tinha-se uma percepção vaga do feto e do seu desenvolvimento intrauterino. A primeira visão do feto pelos pais através do exame de ressonância poderia ser considerado uma antecipação do encontro mãe - bebê após o nascimento. Passou-se a estudar o psiquismo fetal pelos movimentos do feto, suas reações aos estímulos intrauterinos e exteriores. As observações intrauterinas foram mais além, conseguindo detectar o sono REM (rapid eye movement) no qual a retina do feto, tão logo se forma no terceiro mês registra esse tipo de movimento dos olhos. A descoberta e’ importante, pois confirma que o feto sonha. O conteúdo desses sonhos nos jamais poderemos saber, mas podemos imaginar que sejam muito primitivos, sonhos de natureza arquetípica, já que os estímulos do mundo externo e do meio intrauterino são bastante essenciais: percepções do batimento cardíaco da mãe no cordão umbilical, movimentos da mãe, alguns sons do meio externo. Alguns autores chamaram desse estado de consciência intra-uterina de ego fetal, outros de proto-ego. Mas o fundamental aqui é que percebamos que nos silêncios do período uterino há um psiquismo fetal e os inícios em forma fundamental de um processo que Jung chamou de processo de individuação. Esse estado original pré-consciente que abriga um ego em organização, é permeado pelo silêncio das origens. É fundamental que em diversas situações da vida adulta se retorne a esse estágio de silêncio fundamental e de isolamento nas origens de nossa identidade. A valorização do psiquismo fetal em psicanálise levou diversos autores a procurar integrar esse período do desenvolvimento como uma etapa do processo de individuação. O psicanalista argentino Raskovsky denominou esse período de fase umbelical, que se antecederia as clássicas fases do desenvolvimento nomeadas por Freud de fase oral, anal e genital. O analista junguiano Erich Neumann procurou definir esse estágio uterino do desenvolvimento como uroborico, fazendo referência a uma antiga imagem da alquimia - 239 -


egípcia do uroboro, Gr. O comedor de cauda. O uroboro e’ representado como a serpente ou dragão que come a própria cauda, expressando-se em forma perfeitamente circular, simbolizando o momento pré-consciente, atemporal do estado uterino. O estágio uroborico antecederia ao período embrionário extra-uterino (Portman, apud Neumann, 1973), no primeiro ano de vida, no qual há dependência emocional total do recém-nascido de sua mãe. A pontuação desses estados iniciais silenciosos do desenvolvimento e’ fundamental pois eles se repetem com frequência em psicoterapia como o silêncio necessário para a organização de novo estado de consciência. É verdade que o estágio urobórico também está presente nas profundas regressões, cabe ao analista entender esses estados e ter a atitude empática necessária a cada um deles, quando analista deverá ser um continente simbólico para o silêncio que emerge na análise em cada situação dada. 3. A patologização do silêncio O silêncio tende a ser visto em psicoterapia de forma patológica, algo a ser evitado, ou como sinal de resistência por parte do cliente. Também há situações nas quais silêncio se manifesta na constelação de um complexo afetivo, como manifestação de um conteúdo emocional indesejável que toma a consciência e imobiliza o ego. Ao contrário, desejamos lembrar que o silêncio é elemento fundamental tanto para o analisando como para o analista. Os silêncios presentes na escuta do analista são essenciais para uma escuta simbólica. Uma evitação exagerada do silêncio por parte do terapeuta pode representar uma ansiedade contratransferencial para o agir e o atuar terapeuticamente, da mesma forma que o silêncio prolongado demais pode causar frustração e sentimentos de rejeição. É importante discriminar nesse contexto o silêncio bem-vindo, diria mesmo fundamental para o paciente do silêncio defensivo que paralisa o processo.

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As primeiras associações com o estado silencioso são com o mutismo patológico. Ao nos defrontarmos com a questão do silêncio associamos sempre a constelação na consciência por conteúdos chamados por Carl Jung de complexos afetivos inconscientes (Jung, 1934/2011). Essa valorização unilateral do som e da fala se constela em um contexto cultural dado, na sociedade do espetáculo, recheada de excesso de estímulos, a sociedade da comunicação por excelência. Nesse contexto o estado de silêncio já é olhado com desconfiança. Torna-se importante nesse contexto de hipervalorização dos sons e da comunicação, o resgate da introversão e do silêncio meditativo, tão essenciais na reflexão, na criatividade e no insight em psicoterapia. Esses silêncios tão fundamentais aparecem nítidos após intervenções do analista após as quais há uma pausa sutil no fluxo da comunicação, às vezes rápida, durante as quais o analisando tem a necessidade vital de estar só para elaborar conteúdos evocados pela interpretação. São pausas férteis de percepções, de descobertas de novos caminhos e tomadas de decisão. 4. Artes expressivas silenciosas em terapia A escola junguiana, desde suas origens, prioriza o silêncio como expressão simbólica das forças autotransformadoras do inconsciente. Em seu Livro Vermelho, Jung (2010) organiza diálogos simbólicos em forma literária com vários personagens de fantasia. O livro é ilustrado pelo autor com diversas imagens que procurariam expressar conteúdos de difícil expressão em termos conceituais pela linguagem da lógica consciente. Em momentos- limite do livro, no qual experiências centrais tomam lugar, a expressão não verbal pelos desenhos toma lugar. Se a psicanálise seria, em suas origens, uma cura pela fala, como expressou a paciente de Freud e Breuer Anna O, em feliz metáfora, podemos talvez propor uma metáfora semelhante para o método junguiano, dizendo que é uma cura pela não fala, ou uma cura pelo silêncio. Isso devido ao lugar central que as imagens simbólicas desempenham no processo terapêutico junguiano, seja por - 241 -


imagens de devaneio, sonhos ou transferenciais que emergem durante o processo terapêutico. Gradualmente técnicas expressivas não verbais foram ganhando espaço dentro dos teóricos junguianos. O desenho, modelagem e pintura passaram a fazer parte do enquadre analítico junguiano no qual o silêncio para a emergência do símbolo é priorizado e a interpretação em si passou a ocupar um lugar secundário, ou acessório. Enquanto outros teóricos focavam a interpretação como momento prioritário da comunicação e da transformação em análise, em autores junguianos e pós-junguianos a imagem simbólica e os intervalos silenciosos passaram gradualmente a ocupar o centro de atenção. Diversas autores desenvolveram abordagens específicas para o emprego das técnicas expressivas, Kalf (1980) desenvolveu um processo ao qual chamou Técnica do Jogo de Areia (sandplay technic) no qual uma caixa de madeira de dimensões dadas com areia é usada. Na caixa, o paciente é convidado a colocar as mais variadas miniaturas que lhe são oferecidas, figuras humanas, da natureza, animais, etc. O paciente irá construir uma cena de devaneio ou sonho. Pronta a cena é após associações do paciente, a interpretação poderá surgir ou não. No Brasil, Nise da Silveira (2015) usou artes expressivas com psicóticos crônicos em grandes hospitais para mobilizar forças autocurativas do inconsciente. 5. Os discursos do corpo em terapia A comunicação silenciosa está sutilmente presente também no próprio corpo e nos gestos. O corpo tem diversas formas de comunicação que não a formas do verbal e os conteúdos do mundo interno se expressam a todo momento por ele. Se nos finais do século XIX e princípios do século XX os limites consciente-inconsciente atraiam a atenção dos estudiosos da alma e os grandes pioneiros Freud, Jung e seus seguidores procuravam descrever as manifestações simbólicas do inconsciente, atualmente, na nova transição dos séculos XX para o XXI, o limite alma-corpo ganha estatuto de um novo - 242 -


terreno a ser estudado pelos psicanalistas. Diversos trabalhos, artigos e livros se dedicam aos aspectos simbólicos das manifestações corporais. E não apenas os teóricos reichianos e neoreichianos se dedicam a essa exploração psicológica do corpo, mas psicólogos e psicanalistas das mais diversas linha teóricas. Pode-se observar que os processos simbólicos que ocorrem em psicoterapia não estão confinados as memórias de infância, as fantasias, sonhos e experiências psíquicas diversas, mas que a todo instante o simbolismo do corpo se apresenta de modo significativo. A comunicação não verbal pelos gestos e pelo corpo de uma forma geral está sempre presente em análise juntamente com a forma verbal usual de comunicação. A forma dissociada de ver corpo e mente, de percebê-los como uma dualidade inevitável pode ser entendida na verdade como uma questão cultural, típica do paradigma da modernidade. Umas das características da modernidade e a percepção do mundo como constituído de pares de opostos. Desde a oposição fundamental homem-natureza, se constituíram outros pares de opostos irredutíveis, estáveis e hierárquicos: espírito-matéria, mente-corpo, homem-mulher, colonizador-colonizado, pensamento científico- pensamento popular, hemisfério norte-hemisfério sul, consciente-inconsciente, entre outros. (Sousa Santos, 2000). A grande questão desde opostos é que eles são rígidos e hierárquicos, o espírito é superior a matéria, a mente ao corpo, o homem a mulher, o colonizador ao colonizado, etc. Com a emergência das disciplinas do novo paradigma da complexidade (Edgar Morin) tem-se procurado superar essa rigidez dicotômica de visão do mundo; a antropologia e psicanálise tem mostrado o quanto o colonizador pode aprender com o colonizado e seus mitos, a pesquisa dos contos folclóricos e tradições populares mostrou o quanto a sabedoria popular pode enriquecer o conhecimento acadêmico, os movimentos sociológicos superam a rigidez e a hierarquia de gênero, a psicologia profunda, principalmente com Jung, resgatou a noção de realidade da alma e o inconsciente ganhou estatuto próprio, e não apenas de derivado da consciência, uma partie inferieure com seus - 243 -


automatismos como queria Pierre Janet. Nessas polaridades relativizadas na crise de paradigma a oposição mente-corpo nos interessa de forma particular. Mais e mais as imagens mentais de fantasia e sonho adquirem a densidade de corpos físicos, mais e mais o corpo ganha a sutileza transcendente do símbolo. A emergência do corpo em terapia e sua importância da comunicação depende em muito da maneira do olhar do terapeuta, de sua própria perspectiva. Certa ocasião acompanhei um debate sobre a emergência de sonhos em psicanálise hoje. Os debatedores argumentavam das causas para que os sonhos estivessem tão presentes na época romântica dos escritos de Freud e tão ausentes na contemporaneidade. Argumentavam que isso provavelmente era devido à sociedade de informação, a internet e aos múltiplos estímulos da cultura do espetáculo. Esses argumentos contrastavam em muito com os achados em minha clínica, pois em minha experiência como analista os sonhos continuavam presentes como sempre e o amplo material da internet e nos estímulos sociais se constituíam no próprio tecido básico destes mesmos sonhos. A razão destas perspectivas tão divergentes derivavam de que um fator fundamental estava sendo esquecido: o observador. É evidente que para o observador para quem o sonho em princípio não tem importância ou significado maior, ele vai olhar pouco para esse fator e o sonho deixará de ter papel importante na clinica. Penso que o mesmo acontece com o corpo. Na medida em que o terapeuta não olha para o corpo ou não valoriza suas manifestações em clinica, ele se cala em suas manifestações. Na medida, entretanto em que é olhado é valorizado, o corpo passa a desempenhar uma papel ativo em psicoterapia. Em minha própria experiência somente passei a visualizar a silenciosa presença do corpo, simbólica e cheia de significados, após ter feito um curso de especialização em psicossomática no qual aprofundei teoricamente os múltiplos significados na relação corpo-mente. Desde então passei a perceber a riqueza dos discursos simbólicos dos corpos de meus pacientes em terapia. Pude ver com clareza que o corpo é um locus privilegiado de manifestação simbólica daquilo de Jung chamou de - 244 -


processo de individuação, a maneira pela qual o potencial inerente a cada pessoa contido no inconsciente emerge e é integrado em seu processo consciente. A fantasia da modernidade de que o corpo é uma entidade separado da mente, a fantasia do corpo como máquina é uma herança cartesiana inteiramente superada. Essa fantasia tem o substrato na contenda filosófica do século XVI entre René Descartes e Spinoza. Esse último, ao contrário do primeiro, apresentou uma visão de mundo não criacionista, cujo moto central pode ser resumido em seu famoso aforismo, Deus ou Natureza: Deus é a Natureza invisível, a Natureza é Deus visível. Levado para o terreno da relação mente-corpo, a dicotomia é definitivamente superada em favor de uma unidade, uma totalidade corpo-mente indissolúvel. A perspectiva dicotômica da relação corpo-mente é realmente um modo de ver moderno profundamente arraigado na cultura e de difícil solução. Nas abordagens da medicina e psicanálise buscou-se essa unidade corpo-mente, criando-se uma disciplina própria, a psicossomática, que procuraria interligar a res cogita com a res extensa cartesianas de forma unificada. Mas o próprio termo psicossomática seria o que a psicanálise chama de denegação, quando se procura negar algo e termina-se enfatizando aquilo que se quer negar. A expressão psicossomática já contém os termos psique e somática como opostos separados e irreconciliáveis. 6. O corpo, os gestos e as linguagens do silêncio O folclorista brasileiro Câmara Cascudo, estudando a relação entre os gestos e a comunicação se pergunta: “ falaria o homem musteriano, o infra-homem de Nenderthal?” (2003, pp. 17 e 18). E concluiu dizendo que nesses estágios primitivos de desenvolvimento os precursores do homem moderno usariam muito mais os gestos em sua comunicação, para suprir a deficiência de linguagem falada e que a arte rupestre e a escultura também muito ajudariam nesse processo. Da mesma forma, percebemos que as crianças quanto mais de tenra - 245 -


idade usam os gestos para vivamente comunicar, muitas vezes com bastante sucesso, quando são ainda incapazes de fazer uso da linguagem articulada. O adulto em momentos de comunicação muito emocionada, quando sua comunicação está toldada por complexos afetivos, a linguagem falada vem acompanhada de gestos emocionados. É a linguagem corporal se fazendo presente em ambos os casos. O gesto em si tem importante papel na transferência como portador de símbolos que, em seu silêncio, expressam mais que todo um discurso falado. Certa vez, um jovem paciente, falando de memórias traumáticas e repetidas de infância relativas a um pai muito violento, reclinado na poltrona, fez um gesto de proteção, como se protegesse seu próprio rosto da figura do analista. Ficou claro um temor silencioso de mim, como se eu pudesse ser autoritário ou mesmo impaciente com seu sofrimento, assim como seu pai foi intolerante. Presenciei a emergência na transferência de um material gestual rico em conteúdo simbólico que representou uma mensagem da necessidade de tato e delicadeza em lidar com a fragilidade do jovem paciente. As associações dos gestos e da linguagem falada sempre foram foco de estudo não só de psicanálise, mas nas diversas ciências humanas. A escola do mito e do ritual de Jane Harrison (Harrison, apud Pathai, 1972, p. 32 e ss.) preocupou-se com as relações entre o mito e o ritual, entre a coisa falada (tô legomenon) e a coisa representada (tô dromenon). Qual viria em primeiro lugar, o mito ou o ritual? Teria o mito Cristão com toda sua riqueza simbólica toda sua eficácia civilizacional sem a sustentação do ritual da Missa? Na simbologia dos mistérios de Eleusis, fundamentais no mundo Helênico, a deusa-mãe Deméter (Gr. Mãe-terra) teria sua hipóstase na terra fértil. Sua filha perdida Perséfone seria a semente do trigo que deveria renascer do mundo ctonio. Pois bem, os mistérios existiram por si só sem os rituais da colheita do trigo? Jane Harrison em sua obra Themis conclui que o mito é sempre a expressão do ritual: “não há ritual sem mito, não há mito sem ritual” (op. cit., p. 34.) Esses - 246 -


estudos transculturais do mito também demonstram o gesto e o corpo acompanhando a linguagem, ou melhor, gestos e palavras como fenômenos associados na cultura. 7. Corpo, gestos e ritmo Discutindo a simbologia da libido em seu livro Símbolos da transformação (1911/1951) Jung relata o caso clínico de uma paciente esquizofrênica a qual acompanhou nos inícios de sua vida profissional no hospital Burgholzli, na primeira década do século XX. A paciente, mergulhada em mutismo, profundamente regredida, fazia gestos repetidos com o tronco, batendo na parede. Ao mesmo tempo suas mãos faziam um gesto repetido de rotação junto as têmporas. Jung considerou que esses gestos com um ritmo próprio, precursores de processo de masturbação, seriam a manifestação mais primordial da libido. O ritmo na verdade, pode ser considerado como o símbolo primordial da libido. Como a linguagem do inconsciente e analógica, não obedecendo a lógica da causa e efeito do pensamento racional, Jung lança mão em suas abordagens do método de amplificação, no qual os processos inconscientes são espelhados em formas análogas em mitos na arte e na produção cultural. A cultura dos aborígines Waschandi da Australia, por exemplo, o ritmo aparece de forma clara como elemento de transformação da libido. Em períodos anteriores ao período da caça, os homens são proibidos de se aproximar das mulheres e executam ritual rítmico, com as lanças apontando para um buraco cercado de tufos de vegetação. Dançam ao som de tambores, que soam ritmicamente. Ao mesmo tempo entoam um cântico repetido: “não é um buraco, não é um buraco, e uma vagina!” (Jung, 1951/2011, p. 182.). A abstinência sexual e posteriormente o ritual apropriado, possibilitariam uma transformação da libido sexual em energia a serviço cultural, as fálicas armas dos guerreiros tornam-se ricas em eficácia para a caça.

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O ritmo já aparece nas primeiras relações do bebê com a mãe no ato de sucção de seio. O prazer é a gratificação da fome são acompanhados do ritmo próprio de cada bebe que simboliza aqui, os primórdios de sua individuação em período pré-verbal. Esses primórdios rítmicos da libido emergem de maneira silenciosa no ritual da análise, que obedece seu ritmo próprio, gestos e manifestações corporais dependendo de cada paciente. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CÂMARA CASCUDO, L. (2003) História dos nossos gestos. São Paulo: Global. FREUD, S.(1917/1980). Conferências introdutórias sobre psicanálise – Parte III. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad.) Vol. 16. Rio de Janeiro: Imago. JUNG, C. G. (1934/2011) Considerações gerais sobre a teoria dos complexos. O. C. Vol. 8/2 Petrópolis: Vozes. JUNG, C. G. (1911/2011) Símbolos da transformação. Petrópolis: Vozes. KALFF, D. (1980) Sandplay therapy. S. Francisco: Sigo. NEUMANN, E. (1973) The Child. London: Hodder & Stoughton. PATAI, R. (1974) O mito e o homem moderno. S. Paulo: Cultrix. SILVEIRA, N. (2015)O mundo das imagens. Petrópolis: Vozes. SOUSA SANTOS, B. (2000) A critica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. S. Paulo: Cortez. - 248 -


WINNICOTT, D. (2000) Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago. Documentos eletrônicos SAFRA, G. (2009) Dimensões do Silêncio: a construção do si mesmo e perspectivas clínicas.- Conferência realizada em 27/03/2009 no Circulo Psicanalítico do Rio de Janeiro. (CPRJ). Sítio da internet: www.cprj.com.br ( consultado em 2 de novembro de 2016.)

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CAPÍTULO 6 OS SILÊNCIOS NA LITERATURA INFANTIL: DOS NÃO DITOS AOS ENTREDITOS Fernando Azevedo380 Se o escutarmos, o silêncio fala-nos e elucida-nos constantemente acerca do estado dos lugares e dos seres, acerca da textura e da qualidade das situações que enfrentamos. É o nosso companheiro íntimo, o âmago permanente do qual tudo se liberta. Smedt, 2006, pp. 9-10.

Abordar os silêncios na literatura infantil constitui um tema aliciante, mas simultaneamente difícil. Aliciante porque inovador, difícil porque trata precisamente daquilo que não se expõe, não se verbaliza, não se mostra, mas se pressente, se intui, a partir dos não lugares e dos não ditos. Ainda que não existam temas que possam ser considerados tabu na literatura infantil, há porém temáticas que, envolvendo a relação do leitor com as comunidades interpretativas, se afiguram polêmicas e, nessa medida, alvo de algum tipo de silenciamento ou de oclusão. Recordemos que a literatura infantil é constituída por um conjunto de textos singularizados pela existência de um destinatário extratextual específico381, fato que acarreta que os seus textos tenham necessidade de se adequarem, para se tornarem recomendáveis (Ewers, 2009), não apenas ao nível do desenvolvimento cognitivo e

380

Ver Lista de Colaboradores. Perry Nodelman (2008) sublinha que a construção das características da audiência destes textos não deriva tanto dos receptores em si, mas das ideias que os produtores e os consumidores possuem acerca dessa audiência. 381

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linguístico dos seus leitores, para serem textualmente compreensíveis por eles, como também adequarem-se aos valores e sistemas ideológicos predominantes nas comunidades interpretativas a que eles pertencem382. Importa, igualmente, que esses textos respeitem os interesses, as preferências e as necessidades dos seus leitores, cumprindo o princípio de uma relevância textual. Hans-Heino Ewers (2009) considera que este princípio da adequação do texto ao leitor parece ser o mais proeminente tópico da teoria da literatura infantil desde o passado até aos dias de hoje. A este princípio têm correspondido respostas muito diversas em função dos períodos histórico-políticos e dos contextos socioculturais em que se situam as comunidades interpretativas. Amy McClure (1995), num artigo consagrado ao silenciamento de determinadas temáticas nas obras para crianças, refere que na base destes procedimentos reside sempre o desejo, por parte dos adultos, de proteção relativamente às crianças, considerando que a sua exposição a determinados conteúdos, próprios da sociedade contemporânea, lhes poderá ser prejudicial. Esses conteúdos incluem, por exemplo, questões ligadas à violência, sexualidade, religião, política, valores, etc. Acresce a isso que estes textos, como demonstrou Zohar Shavit (2003), preveem sempre um duplo leitor-modelo: a criança, mas também o adulto, aquele que é o mediador da relação da criança com o texto literário. Este ensaio não tem pretensões de exaustividade. Ele busca apresentar, ao leitor, uma panorâmica genérica sobre os silêncios, entreditos e não ditos que a literatura infantil, publicada em Portugal, tem exibido. Assumimos que o silêncio, entendido aqui como ausência verbal explícita ou como ocultamento temático, é portador de significado, sendo pragmaticamente relevante à luz de dimensões 382

Como assinala Mark West (1992), refletindo sobre os mecanismos da censura na literatura infantil no contexto da sociedade norteamericana, esta é, muitas vezes, realizada pelos próprios editores e/ou autores, ainda antes de ser efetuada por grupos de poder e/ou de pressão junto de bibliotecas e de organismos públicos.

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como o contexto da enunciação, os interlocutores ou os efeitos perlocutórios que o mesmo procure atingir. A morte, associada à dor e ao sofrimento pela ausência dos entes queridos, é uma dessas temáticas, que tem sido abordada, nos textos de potencial receção leitora infantil, maioritariamente através de entreditos e de não ditos. Por exemplo, no álbum narrativo Querida Avô, escrito e ilustrado pela autora suíça Birte Müller (2004), aborda-se uma questão importante na vida de uma criança: onde está a alma da avó que faleceu? Incapaz de compreender racionalmente a súbita ausência da avó, a jovem Felipa, imbuída pela saudade pungente, indaga junto dos animais que lhe são mais próximos aonde se poderá encontrar a avó. Escrito num registo predominantemente afetivo, o leitor é convidado a percorrer os lugares mais familiares da jovem aldeã (a casa, o curral dos animais, a montanha), conhecendo a ação discursiva que ela estabelece com os animais que contextualizam a sua vivência: o burrico, os porcos, os lamas. A morte é, deste modo, abordada de modo indireto, percebendo-se, mas não sendo explicitada. Teresa Mendes (2013) realça, num artigo sobre a morte dos avós na literatura infantil, que neste álbum é visível a dimensão espiritualizada da morte e que a neta, apesar de triste, aceita com normalidade a morte da avó, sem drama, angústia ou revolta. Vencedor do Prémio Bissaya Barreto de Literatura para a Infância, no ano de 2008, e recomendado pelo Plano Nacional de Leitura, o álbum narrativo O Livro da Avó (Silva, 2007) apresenta a perspetiva do neto face à avó e à sua ausência. Num texto singelo e repleto de emoção, o neto relembra a vida, os traços mais característicos, as histórias, as visitas da infância a casa da avó, os momentos de partilha, de festa e de brincadeira, mas também a afetividade e o carinho que o uniam a essa pessoa. A dor imensa da saudade da ausência é dada a ler predominantemente de modo gráfico. A nível verbal, pouco ou nada é explicitado, deixando que seja o silêncio, acompanhado do texto icônico, a permitir, ao leitor, encontrar a solução para o que é - 252 -


entredito… Depois de expressar a ausência inesperada do ser querido, o livro exibe, num primeiro momento, a imagem de um largo oceano, expressão metafórica para as lágrimas copiosas que invadem o neto e que o impedem de falar. Num segundo momento, a dor da ausência e a saudade são expressas pela afirmação, em letras manuscritas, ocupando toda a mancha gráfica da página: “fazes-me falta!” A opção pela letra manuscrita, em detrimento da letra de imprensa, busca comunicar ao leitor a voz íntima do neto, e o grito abafado, pela dor, que o mesmo expressa, provavelmente em espaços e momentos de solidão. O silêncio é, deste modo, expressão de valores que a comunicação verbal não consegue atingir. O silêncio permite desvelar o inefável, o inenarrável, a dor, a saudade, algo que, sendo estritamente humano, muitas vezes está para além do que se diz ou do que se verbaliza. A expressão silêncio é também, com alguma frequência, utilizada para designar aquilo que não tem voz ou visibilidade social e coletiva. Os sujeitos da enunciação aos quais é denegada capacidade de intervenção no real empírico e histórico-fatual são, muitas vezes, designados como participantes de um corpo que foi silenciado, isto é, esquecido. Por exemplo, nos contos de fadas, como demonstramos noutro lugar (Azevedo, 2011), as mulheres não parecem ter voz ou capacidade de ação. A sua emancipação, dentro do quadro normativo social, só existe explicitamente383 no momento em que contraem matrimônio com o príncipe. Ou quando, libertas dos constrangimentos desse quadro normativo social, se apresentam como bruxas. Porém, e dado que a voz discursiva nestes textos é predominantemente masculina, com a convocação de valores patriarcais e conservadores, a imagem da bruxa é, naturalmente, apresentada em termos disfóricos, contribuindo, à sua maneira, para a construção social do medo na 383

Noutro lugar (Azevedo, 2014), demonstrámos que certos contos de fadas dos Irmãos Grimm comportam uma dimensão questionadora do statu quo. Porém, essa dimensão é sempre dada a ler nas suas entrelinhas, nos interstícios das vozes dominantes.

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criança. Em qualquer dos casos, aquilo que predomina, nos contos de fadas, é o silenciamento de um corpo que apenas se dá a ler enquanto adjuvante da figura masculina e heroica. Por vezes, determinadas temáticas que, pela sua natureza interrogadora da praxis, se podem revelar marcadamente comprometidas são apresentadas, ao leitor, através do recurso explícito do silêncio. Encontramos, com efeito, alguns textos, na literatura de potencial recepção leitora infantil, que se fundamentam primordialmente na descodificação e interpretação dos signos visuais, abandonando o texto verbal. Falamos, a este propósito, de Wordless Picture Books. Estes textos,exigindo da parte do leitor a perscrutação atenta dos signos visuais, e a realização de inferências múltiplas por forma a preencher aquilo que não se diz, mas se pressente, exibem uma elevada pluri-isotopia (Doonan, 1993; Durán, 2002; Lewis, 2001; Nikolajeva, 2008; Nikolajeva & Scott, 2001; Nodelman, 1989; Sipe, & Pantaleo, 2008). Como sublinham Emma Bosh e Teresa Durán (2009: 40-41), estes signos são ‘‘more polyvalent or ambiguous than spelling signs and they show greater variety; furthermore they do not interact within such closed systems and are not bound to such strict combination laws’’. O silêncio, dado a ler pela ausência de texto verbal, torna-se, neste caso, vitalmente importante, na medida em que possibilita dizer muito mais do que se se recorresse apenas à articulação texto verbal-texto icônico. Gostaríamos de destacar, neste ensaio, uma obra que, a nosso ver, se apresenta como singular. Trata-se do álbum gráfico, de Mariana Chiesa Mateos (2010), intitulado Migrando. Este é um texto sem palavras, onde o silêncio acompanha o texto icônico, obrigando, dado o protocolo da relevância que rege a recepção dos textos literários, o leitor a olhar, a pensar, a refletir atentamente sobre o que é mostrado, o que não é dito e o que é entredito. Os aforismos de origem popular ensinam-nos que a palavra é de prata e o silêncio de ouro. Ou que o silêncio é um amigo que nunca trai.

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Cartonado e constituído exclusivamente por imagens coloridas e em grandes planos, esta narrativa visual apela à participação ativa do leitor na construção dos seus significados, propondo, pelo menos, dois percursos diferentes de uma mesma viagem, metáfora para a expressão de uma circularidade que, interrogando o leitor, lhe demonstrará que todos somos sempre viajantes por razões várias e que, por isso, é importante sentirmo-nos sempre em casa. O texto é antecedido de um breve prefácio onde a autora textual, socorrendo-se de um discurso em 1ª pessoa, afetivamente recorda alguns dos percursos biográficos de familiares seus, explicitando os destinatários potenciais da obra: “A todos os que deixaram a terra onde nasceram para re-existir noutro lugar.” (Mateos, 2010: s/p). Se uma das leituras exibe a partida metafórica de uns seres, por razões que se prendem com a violência e a morte existentes num primeiro espaço, o atravessar do oceano, e o desembarque num outro espaço, com o esforço da construção de outra vida, invertendo o livro, deparamo-nos com uma outra viagem, também ela antecedida por um breve prefácio. Neste, a autora textual sugere outro percurso de leitura para as páginas seguintes: “O mundo ficou às avessas. Da Europa já não se parte, é lá que se chega. Em pequenos barcos, frágeis cascas de noz. Deixando noutras terras guerra e fome. E o mar tornou-se uma palavra amarga.” (Mateos, 2010: s/p) Tal como no prefácio que referimos anteriormente, também aqui, a autora textual explicita os destinatários potenciais da obra: “A todos os que pensam que as pessoas também pertencem à espécie migratória.” (Mateos 2010: s/p). Este novo percurso de leitura conta várias histórias em simultâneo: a da dor da despedida e da partida de duas pessoas, o bem-estar de um grupo de pessoas que, a partir de uma praia, em lazer, vislumbra a chegada de um pequeno barco carregado de pessoas, o socorro a estas pessoas, os riscos e as dificuldades que estes emigrantes têm que passar para poderem entrar noutro país e, finalmente, novamente a metáfora da viagem circular e inacabada. - 255 -


Esta é, sem dúvida, uma obra que, mostrando-nos percursos diferentes de várias viagens, meios de transporte diversificados, interroga, pela ausência da verbalização e do uso da palavra, os seus leitores acerca dos protagonistas: quem são? O que os move? Se em todos os momentos da partida e da viagem, as personagens não têm rosto – exibem-se tão somente como sombras negras, legíveis pelos seus perfis – , é no momento da chegada que o leitor se apercebe que são sempre seres humanos, homens, mulheres e crianças, gente de todas as raças, no fundo, a humanidade. O texto não o diz, mas, solicitando, pelas representações gráficas, a cooperação interpretativa do leitor, deixa-lhe a possibilidade de se interrogar acerca da vida e da biografia de cada um, permitindo-lhe reler as palavras iniciais do prefácio a uma outra luz: “Este é um livro habitado por aves migradoras e árvores nossas conhecidas.Há quem persiga os sonhos e há quem seja perseguido. Este é um livro de desenhos e a história re-inventa-a o leitor. Não existe um olhar único nem um único final possível. […] Este é um livro habitado pela água oceano mar que sustenta separa e une esperanças terras destinos. Um livro sem palavras. Talvez porque as palavras se esconderam à espera da maravilha de um gesto (Mateos, 2010: s/p).

Uma outra obra, onde o silêncio impera, de forma ainda mais marcante do que na obra de Mariana Chiesa Mateos (2010), é o álbum gráfico Emigrantes, de Shaun Tan (2011). Trata-se, mais uma vez, de um Wordless Picture Book, isto é, de uma obra onde só existe texto gráfico e icônico, o que supõe, para a sua adequada leitura, a convocação e conhecimento de códigos visuais e a sua articulação com uma competência enciclopédica. Emigrantes (Tan,2011) evoca aspetos universais da experiência da emigração. Numa história, aparentemente perdida no tempo, um homem parte da sua terra natal empobrecida, onde deixa a mulher e os filhos, para um país distante. Aí, ele depara-se com

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hábitos diferentes, animais peculiares e línguas indecifráveis. Apenas acompanhado de uma singela mala, ele tem que encontrar um lugar para viver, comida para se alimentar e um trabalho para se sustentar. Graficamente, o álbum assemelha-se a um antigo álbum de fotografias, com os desenhos, maioritariamente em tons de sépia, organizados, ao longo das várias páginas. Capa e contracapa manifestam uma unidade e recuperam as velhas e antigas encadernações, em pele, já desgastadas pela passagem do tempo, dos álbuns de fotografias. Na capa, em grande plano, e logo abaixo do título da obra, grafado em maiúsculas, aquilo que pretende ser uma fotografia, envelhecida pelo tempo e pelo uso, onde se vê um homem vestido com fato, chapéu, e uma grande mala, em pose interrogativa, olhando para um animal estranho. Ainda que pela sua indumentária, o leitor rapidamente se aperceba que o homem retratado é de um tempo passado, o insólito animal com que ele se depara, introduz uma marca de estranhamento que estimula o leitor a percorrer este álbum, buscando encontrar uma coerência para os dois elementos apresentados. Na contracapa, um pequeno texto que coloca a obra sob a égide de uma homenagem a todos os emigrantes, refugiados e deslocados que empreenderam a viagem de partir rumo a um país misterioso, onde não têm família ou amigos, onde tudo é desconhecido e o futuro uma incógnita. Alguns dados também sobre o autor e ilustrador Shaun Tan e, ao centro, a reprodução de uma fotografia antiga onde se vê um balão, transportando uma espécie de caixa, elemento relevante na obra, enquanto metáfora do elemento de ligação que une todos os que emigraram face ao local de partida e às pessoas que aí habitam. As guardas do álbum exibem em fotografias, tipo passe, a preto e branco ou em tom sépia, os rostos de homens e mulheres, de diferentes raças e etnias, rostos de diversas faixas etárias (crianças, jovens, adultos e idosos) e com indumentária muito variada. No fundo, os rostos daqueles que foram os emigrantes do passado, - 257 -


metáfora para que o leitor, estabelecendo uma relação com o seu mundo empírico e histórico-fatual, se interrogue acerca da realidade dos dias de hoje e tome consciência que todos somos humanos e todos, em algum momento das nossas vidas, tivemos que enfrentar o desconhecido, a saudade, a partida. O álbum gráfico apresenta-se todo ele em tons de sépia, que alternam com o cinzento. Ainda que nada nos seja dito, é fácil ao leitor inferir que se trata de uma história de sofrimento, de dor, de saudade, pela partida e abandono dos entes queridos. No fundo, uma homenagem a todos os que, sendo emigrantes ou refugiados, têm que abandonar a sua terra natal, as suas famílias e amigos, para partir em busca de uma vida que, sendo desconhecida e apresentando riscos, se espera que permita concretizar sonhos e assegurar outro futuro aos entes queridos. Ainda dentro da categoria dos álbuns gráficos, gostaríamos de fazer referência a uma outra obra onde o silêncio também impera. Trata-se de Dança, de João Fazenda (2015), publicado em Portugal pela editora Pato Lógico. Esta é uma obra que nos mostra, pela ausência de palavras, que a música e a dança podem ajudar a transformar as pessoas e a torná-las mais sociáveis. O texto exibe dois mundos diferentes: o da cor, da alegria, do movimento, da sociabilidade, onde são visíveis casais que dançam e, perdendo o peso, parecem levitar, e um outro, composto exclusivamente por homens, desenhados com formas quadradas, a preto e branco ou com uma reduzida paleta de cores. Este mundo masculino, onde parece imperar o individualismo, a solidão e a incomunicabilidade – o mundo do trabalho, do computador, da rotina – é subitamente abalado pelo desejo de um dos seus membros em dançar com uma mulher, graficamente desenhada com formas redondas, algo fluídas, e coloridas. É pela dança que o executivo ganha cor e leveza e atinge a felicidade ao ter o seu corpo co-fundido com o da sua companheira. A dança torna-se, assim, o leitmotiv que possibilita a metamorfose dos sujeitos e a sua emancipação face à

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rotina e aos constrangimentos de um mundo cinzento, excessivamente ordenado, previsível e racional. Ainda que se trate de um álbum gráfico, sem palavras, o leitor pode, graças à força do texto gráfico e ao silêncio expresso, aperceberse de todo um conjunto de sentidos implícitos e efetuar a sua leitura do mundo. CONCLUSÃO Os textos literários, e em particular aqueles que permitem iniciar a criança para se tornar habitante, de pleno direito, dessa grande casa que é a literatura, possuem uma capacidade de interrogar a praxis. Mesmo não dizendo explicitamente ou silenciando certos temas, vozes ou tópicos (e, por esse ocultamento, permitindo sugerir, indiciar ou tornar patente), os textos literários mostram-se capazes de suscitar, nos seus leitores, a consecução de importantes e significativos efeitos perlocutivos384. Como sublinhou George Steiner (2014: 21), “a literatura lida, essencial e constantemente, com a imagem do homem, com a forma e os motivos do comportamento humano”, sendo que o leitor nunca possui um papel passivo. Convocada a voz do livro, ela entra na nossa intimidade e possibilita uma modificação dos nossos ambientes cognitivos. Deste modo, os textos literários constituem elementos importantes e imprescindíveis na construção do sujeito, na sua capacidade de olhar o mundo, de o interrogar, de o pensar de forma alternativa e euforicamente transformadora.

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Por alguma razão, os regimes opressivos e totalitários procuraram sempre condicionar e vigiar de perto aquilo que era publicado, inclusivamente no caso da literatura para os mais novos.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO, F. (2011). Poder, Desejo, Utopia. Estudos em Literatura Infantil e Juvenil. Braga: Centro de Investigação em Formação de Profissionais de Educação da Criança / Instituto de Educação. AZEVEDO, F. (2014). Os contos dos Irmãos Grimm e o seu poder questionador. Álabe. Revista de Investigación sobre Lectura y Escritura, 9, 1-8. BOSH, Emma and DURÁN, Teresa. (2009). OVNI: Un álbum sin palabras que todos leemos de manera diferente. Anuario de Investigación en Literatura Infantil y Juvenil, 7(2), 39–52. DOONAN, J. (1993). Looking at Pictures in Picture Books. Stroud: Thimble Press. DURÁN, T. (2002). Leer antes de leer. Madrid: Anaya. EWERS, H.-H. (2009). Fundamental Concepts of Children’s Literature Research. Literary and Sociological Approaches. New York and London: Routledge. FAZENDA, J. (2015). Dança. Lisboa: Pato Lógico. LEWIS, D. (2001). Reading Contemporary Picturebooks: Picturing Text. London: RoutledgeFalmer. MATEOS, M. C. (2010). Migrando. Lisboa: Orfeu Negro. MCCLURE, A. (1995). Censorship of Children’s Books. In S. Lehr (Ed.), Battling Dragons. Issues and Controversy in Children’s Literature. Portsmouth, NH: Heinemann, pp. 3-30.

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CAPÍTULO 7 PALAVRA E SILÊNCIO(S) NA UTOPIA Joaquim Machado de Araújo385 Enquanto revelação da “nova ilha de Utopia” e discurso “sobre a melhor constituição de uma república”, o texto de More é ele mesmo noema do dizer, acontecimento de linguagem fixado na escrita. A Utopia é da ordem do logos e requer a palavra para ser anunciada, mas comporta igualmente o silêncio, entendido como pausa, ausência de fala, de som ou de ruído, como omissão, segredo ou interrupção de correspondência. Etimologicamente, silêncio deriva da palavra latina silentium, associada ao verbo intransitivo silere (calar-se, guardar silêncio, estar silencioso, não fazer barulho). Assinala Le Breton que este verbo “não se aplica apenas às pessoas, mas também à natureza, aos objetos, aos animais” e que “designa de preferência a tranquilidade, uma tonalidade agradável da presença que não é perturbada por nenhum ruído” (1999:23). Mas, em latim há ainda outro verbo relacionado com o silêncio. Trata-se do verbo tacere, verbo intransitivo (calar-se, estar calado, guardar silêncio) ou intransitivo (calar, não dizer, não falar de): “tacere é um verbo ativo cujo sujeito é uma pessoa, assinala uma paragem ou uma ausência de palavra relacionada com alguém” (1999:23). Ensaiando “uma taxonomia do silêncio”, Álvaro Gomes (2000:36-37) categoriza o silêncio em quatro níveis: o silêncio cósmico e geofísico, a que Pitágoras chama “música das esferas”; [a consciência de um] silêncio por oposição ao som, mensurável em decibéis; o silêncio na interação, assumindo feições quer tácticas quer estratégicas; e o silêncio profundo, que resulta de uma comunicação 385

Ver Lista de Colaboradores.

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profunda, de uma interação que pode ser ou não ser verbalizada. O autor refere ainda o silêncio místico, ou outras dimensões do silêncio que apontam para um âmbito metafísico, a justificar a consideração de um quinto nível (2000:37, nota 39). O espaço da Utopia é o da conversação (sermo), em que têm lugar a palavra e o silêncio: o silêncio não é apenas “pausa devida a fadiga linguística”, pode corresponder a uma “vontade deliberada de se calar” (Neher, 1999:21); ele vem a ser “uma forma de discurso para além da palavra” (Le Breton, 1999:75). O silêncio pode assumir várias formas e até encobrir-se na forma de palavra, quando “as palavras propagadas são-no para nada” como acontece nos casos de charlatanice, mimetismo ou demagogia (Neher, 1999:16), assim como pode ter significados diversos: tanto pode ser sinal de cobardia, distração ou ignorância, como expressão do conhecimento, da vontade e até do heroísmo; tanto é discrição, como finge desconhecimento; tanto encobre a cumplicidade a pretexto de neutralidade como é fruto vigoroso de uma decisão de consciência (Neher, 1999:16-18). Pretendemos aqui recensear a presença do silêncio e as suas diferentes formas na Utopia de More, seja no aparecimento da obra seja no próprio texto utópico que justifica e anuncia a ilha de Utopia com pessoas, leis e instituições, distinguindo o tempo do diálogo sobre o lugar da filosofia no conselho régio e o tempo do discurso sobre a melhor constituição da república. Deparando-nos com uma conversa não terminada, assinalamos também o caráter enigmático da obra reforçado pelo desafio semântico proposto pelo seu autor, bem como a necessidade de uma análise da política da palavra e do silêncio que vigora na melhor das repúblicas. 1. Silêncio e ruído no aparecimento de Utopia A gênese da Utopia deve-se à amizade que Erasmo e More foram aprofundando e pode ser interpretada como a resposta da razão à loucura cujo elogio o primeiro dedica ao segundo, ao mesmo tempo - 264 -


que lhe pede que a defenda zelosamente, já que, como advogado que é, pode defender de modo excelente mesmo uma causa não excelente (Erasmo, 1990:14). Assim, a Utopia seria um Elogio da Sabedoria que, com Moriae Encomium (Elogio da Loucura), completaria o díptico necessário para explicar o fato de ser a loucura quem aguenta o mundo e a sabedoria vir a ser loucura aos olhos do louco. Neste sentido, a crítica da Moria aos vícios sociais e abusos da época seria o limiar que seria preciso atravessar antes de empreender a reforma do pensamento e dos costumes (Santidrián, 1997:40) para que aponta a melhor constituição de uma república. Se o mundo dos viventes pode ser explicado pela loucura, então onde encontrar a sabedoria? Esta era a questão que ocupava o pensamento de More, frequentemente ocupado com as obrigações inerentes à sua atividade política. E é num tempo de pausa proporcionado pela interrupção das negociações diplomáticas que decorreram em Bruges de meados de maio a fins de outubro de 1515, que More aproveita para visitar Antuérpia, cidade de humanistas, onde conhece Pedro Gilles, jurista e secretário da cidade. É no cenário de um jardim sugerido durante este tempo de otium, intercalado em tempo de negotium e passado em Antuérpia, que More lança mão das suas reflexões e notas acumuladas desde o convite da Moria e compõe o discurso, seguindo o mesmo modelo da Moria, em que o Orador não se nomeia, fala na primeira pessoa e dirige-se a um auditório indeterminado. Inspirando-se no contexto internacional das descobertas e nas narrativas de viagem – de que se destacam as Quatuor Americi Vespucii Navigationes – coloca o discurso nos lábios de Rafael Hitlodeu, um capitão de navios português, entrelaçando o atrativo do romance de aventura e a poesia da lenda sob a forma de relato de viagem. Este discurso, que Pedro Gilles teve em mãos em setembro/outubro de 1515 e Erasmo vê na sua deslocação a Londres em julho de 1516, seria a resposta à pergunta que procurava saber onde encontrar a sabedoria. Trata-se de um texto “levado a termo mas não acabado” (Prévost, 1978: 66, nota 4), porquanto, de volta a - 265 -


Londres, More não está ainda satisfeito com o manuscrito de Antuérpia, a que ele e Erasmo várias vezes referem designando-o Nusquama nostra (Em Parte Nenhuma). Por isso, acrescenta novos fragmentos e estrutura a obra em duas partes – o Livro I e o Livro II – e, ainda antes da primeira publicação, dá-lhe o título de Utopia e fá-la anteceder de uma carta que envia a Pedro Gilles. A obra surge primeiramente em Lovaina, antes do Natal de 1516, das mãos do impressor Thierry Martens, mas a carecer de algumas correções, e é editado por Guillaume Budé em Paris em fins de setembro ou princípios de outubro de 1517, também com algumas falhas. A edição de Basileia de março de 1518 retoma a de Lovaina, corrigida por More e Erasmo e a carta de Guillaume Budé da edição de Paris, acrescentando uma carta de Erasmo de agosto de 1517. A grande procura da Utopia e a possibilidade de More e Erasmo lhe melhorarem ainda o texto, apesar da edição de março de Basileia ser já superior em qualidade às de Lovaina e Paris, levam a uma quarta edição na mesma cidade, em novembro de 1518. O conteúdo do epistolário introduzido na Utopia permite compreender a “implicação” do grupo de humanistas nas tarefas de publicação e edição da mesma e na sua aceitação perante o público letrado e os “homens de Estado”, bem como o papel central que cabe a Erasmo na afirmação desta obra no panorama cultural da época, ao mesmo tempo que o seu autor se “autoriza” no mundo das letras (Araújo, 2006:40) Assim, a Utopia é constituída por duas espécies de materiais: o texto nuclear, os dois livros da Utopia propriamente dita, que são a parte essencial; documentos diversos cuja qualidade, número e colocação no corpo do livro variam em cada uma das três primeiras edições e é estabilizado na edição de novembro de 1518. As várias moedurasa a que foi sujeito o texto resultam do grande cuidado que More e Erasmo colocaram no melhoramento desta edição, através de mudanças de estilo, correção de pontuação defeituosa, introdução de notas marginais, mudanças operadas nas gravuras, reimpressão do alfabeto utopiano (Prévost, 1978). São elas que justificam a - 266 -


mensagem incluída por More na sextilha de Anemólio, o poeta da ilha, nas edições de 1518, segundo a qual a Utopia supera a cidade de Platão porque o que esta delineou com as letras mostrou-o aquela com homens, meios e óptimas leis, pelo que deveria ser chamada Eutopia, lugar feliz (1978:11). 2. Discurso e silêncios num diálogo entre humanistas Em toda a obra de More, é dado a Rafael um estatuto privilegiado de participação que deriva do fato de ele ter a autoridade de quem esteve na ilha e experienciou as suas leis e costumes, a ela aderiu sem reservas e tornou-a pátria de eleição por aí ter descoberto (melhor dizendo, reconhecido) a realização concreta do seu ideal de vida (Araújo, 2004:66), a melhor forma de república capaz de garantir a paz e a felicidade de todos e de cada um (More, 1978:156), e da qual jamais teria saído e se não fosse o impulso de dar a conhecer Utopia, essa República que ele “desejaria se estendesse a todas as nações” (1978:160), se não fosse o imperativo moral de a dar a conhecer a quem a procura mas ainda a não localizou Por isso, destaca-se na Utopia o seu discurso sobre a melhor constituição de uma república, que ocupa o Livro II, mas More faz preceder este discurso por um outro sermo, um diálogo em que participam o próprio More e Pedro Gilles, sobre quem More escreve que “não há pessoa que melhor combine simplicidade e sabedoria” (1978:26). 2.1. Conversar e desconversar, ouvir e (não) escutar A conversa inicia-se a pretexto da amicitia caraterística dos humanistas e dá-se após a missa da catedral de Notre Dame, em Antuérpia, quando More inicia o retorno ao hotel e repara em Rafael, que conversava com Pedro Gilles, ao mesmo tempo que este repara em More, se lhe dirige e lhe diz que gostaria que conhecesse o marinheiro português, revelando-lhe aspetos importantes que - 267 -


reforçaram o interesse de More em conhecer e ouvir aquela pessoa de quem Pedro Gilles diz não haver “ninguém que possa descrever como ele o descobrimento grandioso de homens e de terras desconhecidas como sei estares todo ansioso por ouvir” (1978:27). A este relato de Pedro Gilles (1978:27-28) segue-se a saudação mútua de More e Rafael e a troca de conhecimentos, habitual em circunstâncias análogas, e depois dirigem-se os três para o hotel de More e aí, no jardim, sentado num banco ficam a conversar. Nesta conversa, Rafael conta a sua viagem para Utopia, uma imaginária deslocação geográfica em que muitos foram os lugares vistos, mas que More omite porque tornaria longa a obra e não se enquadra no seu objetivo, mas reservando para o Livro II “aquilo que é bom não ignorar, particularmente aquelas coisas que se relacionam com a retidão e o bom senso que ele advertiu terem-se alguma vez arreigado entre povos que vivem em paz e de modo civilizado” (1978:30-31). Os seus interlocutores interromperam-no por vezes porque queriam saber detalhes de usos e costumes, a que ele ia respondendo de bom grado, e o relato da deslocação geográfica orienta-se para uma outra viagem, a da análise e crítica da realidade social da época e da indagação das causas das coisas e da procura de outro modelo de organização social. Este percurso analítico e causal é desenvolvido no Livro I e inicia-se a propósito da questão colocada por Platão sobre o lugar do sábio na corte e a sua relação com o bem público. O diálogo filosófico desenvolve-se em três debates parcelares: os diversos crimes em Inglaterra, as ambições territoriais e a cupidez dos soberanos, explicitando em todos eles as intervenções habituais dos conselheiros régios, numa denúncia que aponta para soluções que promovam a paz e a justiça, recusem a libido dominandi, reduzam o tesouro real e legitimem a governação, ilustrando cada debate com exemplos de um povo que se afasta dos usos e costumes europeus e se aproxima dos referenciais utópicos: os Poliléritos, os Acórios e os Macários (Araújo, 2012). Nestes três debates, More segue um modelo formal dos diálogos de Cícero com longas falas de Rafael pontuadas por breves - 268 -


interrupções ora de Pedro Gilles ora de More que concordam ou apresentam objeções à posição defendida por aquele, nomeadamente a conclusão de que “junto dos príncipes não há lugar para a filosofia” (1978:61) e a afirmação radical de que, não integrando o conselho régio, Rafael não se vê compelido a viver contrariamente aos seus princípios: vivo ut volo, “vivo como quero” (1978:32). More e Pedro Gilles defendem, pelo contrário, uma posição menos radical, uma via mais indireta, um caminho oblíquo que cultiva uma philosophia civilior, uma filosofia que conhece o teatro do mundo e se lhe acomoda, ao contrário de uma philosofia scholastica que tem resposta apriorística para todas as situações (1978:61-62). Nos seus relatos, Rafael reproduz falas dos outros imaginários intervenientes no diálogo, na maior parte aportando argumentos dissonantes da sua perspectiva, que, entretanto, os conselheiros até podem ouvir mas não acatam (1978:34) ou repõem e reencaminham o debate para a substância do assunto em discussão, como é o caso do cardeal John Morton, pessoa “elegante e persuasiva” (1978: 35), quando interrompe o advogado que se propunha recapitular os argumentos de Rafael: Guarda silêncio (tace), pois não me parece que vás responder em poucas palavras se começas assim. Por agora, dispensamos-te de responder, mas reservamos-te tal tarefa por inteiro da próxima vez que nos encontrarmos, que gostaria que fosse já amanhã se não houver impedimento da tua parte ou da parte do nosso amigo Rafael (1978:43).

Refere ainda intervenções que introduzem a desconversa no diálogo, como é o caso burlesco em que se envolvem a ira de um frade mendicante e as graçolas do bobo da casa do mesmo cardeal a propósito da resolução dos casos de ociosidade e de mendicidade, e que é superado graças à intervenção do cardeal que inicialmente sorri com a boutade do bobo como se tudo não passasse de brincadeira, e mais tarde sugere ao frade que se acalme, lhe louva os sentimentos que o movem e o alerta para o ridículo da situação em que se podia - 269 -


colocar, se não se controlasse: O silêncio apresenta-se como uma técnica de controlo da emoção, deixando claro aos olhos de quem observa, a reprovação ou a recusa da situação. Dá menos espaço à réplica enfurecida do outro que uma palavra sempre desastrada, que ele pode facilmente utilizar para envenenar a situação (Le Breton, 1999:82-83). Contudo, o frade não entendeu as virtualidades do emprego judicioso do silêncio como o cardeal lhe sugeria (Araújo, 2012:173180). E assim, ao perceber que a desconversa jamais teria fim, o cardeal faz um sinal ao bobo para que se retire, dá novo rumo à conversação e, “pouco depois, levanta-se da mesa para dar audiência a visitantes com quem tinha assuntos a tratar e despediu-se de nós” (1978:52). A análise crítica da realidade econômica, social e política estava feita: a desordem económica gera desordem social e esta gera a desordem moral. A solução requer a transformação radical das pessoas e das instituições como a que se operou na ilha de Utopia: “A exemplaridade utópica pretende afinal contribuir para a transformação das pessoas e das instituições” (Abreu, 1999:63) 2.2. Exposição e escuta, memória e discernimento Na sermo do Livro II, a palavra é de Rafael. É a ele que compete dizer tudo sobre o novo mundo da ilha de Utopia, cujos habitantes ultrapassam os europeus, não necessariamente em inteligência, mas, pelo menos, em dedicação e aplicação ao trabalho (More, 1978:68). E, se os europeus, que não lhes são inferiores nem pelo engenho nem pela riqueza, quiserem “acomodar” à sua organização política e social o que existe de melhor entre eles, importa ouvir o testemunho de quem teve o privilégio de encontrar a ilha. Contudo, “dizer não é suficiente, nunca é suficiente, se o outro não tiver tempo para ouvir, para assimilar, para responder” (Le Breton, 1999:13). O que não é o caso de More e de Pedro Gilles tornados personagens da ficção. Diz More: - 270 -


Portanto, meu caro Rafael (…), peço-te vivamente que nos descrevas essa ilha; não te importes com o tempo que vais demorar, mas expõe-nos como é de regra, o que respeita aos campos, aos rios, às cidades, aos homens, aos costumes, às instituições, às leis, enfim, tudo o que tu julgues que vale a pena conhecer. Considera que está em causa tudo o que ainda não conhecemos (More, 1978:69).

Importava salvaguardar as condições necessárias para a escuta e, porque “o tema exige disponibilidade de tempo”, os interlocutores primeiro cuidam do corpo, tomam a refeição do meio dia e, voltando para o jardim, sentam-se no mesmo banco em que estavam quando interromperam a conversa. Importava também prevenir qualquer interrupção e, por isso, More recomendou aos criados que ninguém os interrompesse. Finalmente, More e Pedro Gilles encorajam (hortamur) Rafael a dizerlhes o que lhes tinha prometido. É neste ambiente de estudiosidade e de escuta que se dá início à sermo (1978:70) sobre a melhor forma de governação: Rafael, “logo que viu a nossa atenção e a nossa ansiedade de escutar (ubi nos vidi intentos,atque avidos audiendi) depois de ter ficado um momento em silêncio e se ter sentado a pensar (cum paulister tacitus et cogitabundus assedisset), retomou a exposição (in modum exorsus est)” (1978:69). Junta-se, pois, o silêncio que os criados teriam que garantir para que ninguém os interpelasse (ne quis interpellaret), isto é, para garantir a tranquilidade necessária e a não interrupção por qualquer ruído, e o silêncio que os interlocutores se impõem – seja pela atenção e avidez de saber (More e Pedro Gilles) seja pela paragem que o orador (Rafael) se impõe (tacere) para pensar e organizar o pensamento – e, assim, cria-se o ambiente propício para a transmissão e receção da mensagem utópica. Pedro Gilles refere em carta de 1 de novembro de 1516 a Jerónmo Busleyden que considera Rafael “um homem dotado de mais conhecimentos sobre nações, povos e negócios do que o famoso Ulisses”, diz que, segundo ele, “não nasceu homem semelhante a este - 271 -


(…) nos últimos oitocentos anos; comparado a ele, Vespúcio parece não ter visto nada de especial” e atesta que o que descreveu tinha sido visto por ele mesmo e não contado por outros: “ficou perfeitamente claro que ele não estava repetindo algo que ouvira de outrem, mas que descrevia exatamente o que vira de perto, com seus próprios olhos, e o que vivera em pessoa por um longo período de tempo” (More, 1993: 183). Atesta ainda que o que More faz é transcrever exatamente o que Rafael descreve: “toda vez que o leio, tenho a impressão de estar a ver até mais do que ouvi das palavras de Rafael Hitlodeu – pois eu estava presente quando de seu discurso, ao lado de More”. Atribui este fato “à precisão de sua memória esplêndida, que pôde repetir, quase palavra por palavra, todas as coisas que ouviu uma única vez”, admitindo ainda que tal se pode dever também “a seu discernimento, que soube identificar as fontes dos males que surgem nas repúblicas e das benesses que delas podem originar-se, fontes estas que o homem comum ignora por completo” (More, 1993:184). Neste sentido, a transcrição do discurso de Rafael faria de More um exímio copista, e nada mais do que isso, como teria afirmado “um camarada muito tolo” numa reunião de pessoas importantes, a que se refere Beatus Rhenanus em carta de 23 de fevereiro de 1518 a Vilibaldo Pirckheimer, conselheiro do imperador Maximiliano e senador de Nuremberga. Pode parecer fruto da perspicácia esta perspectiva de que, tal como um escriba pago, More simplesmente regista o que outros dizem ou de que, tal como um secretário, pode estar presente na reunião, mas “não expressa nenhuma ideia própria” (More, 1993:192), mas, na opinião daquele humanista que supervisionou a impressão das edições de 1518 de Utopia, ela apenas confirma ”a astuciosa inteligência de More, capaz de confundir (…) homens de prestígio e teólogos da mais insigne formação” (ib.:192) que não seriam capazes de ver na Utopia, “como num espelho, tudo o que diz respeito à justa constituição de uma república” e “trazer-nos de volta os costumes e as instituições dos ilhéus” (ib.:193-194), como já afirmara Jean Desmarez de Cassel, em carta a Pedro Gilles de 1 de dezembro de 1516. - 272 -


Em poema, este orador e professor da Universidade de Lovaina, afirma a capacidade da Utopia em harmonizar no seu seio todas as virtudes: Cada virtude possui o seu ninho: O que cá não existe abunda por lá. Utopia, porém, reúne sozinha, As virtudes todas num só lugar (ib.: 195).

2.3. A contrariedade do ruído e a importância da atenção e da memória Ao endereçar a Utopia a Pedro Gilles, More afirma que o seu papel foi o de “repetir apenas aquilo que, a nós dois, foi contado por Rafael” (1993:3), que “nada me restava fazer senão pôr por escrito aquilo que ouvira” (1993:4). Mas o próprio More deixa-se tomar por uma “grande dúvida” que tomou o seu espírito e que tem a ver com o comprimento da ponte sobre o rio da capital da ilha. De acordo com o que retém na memória, Rafael disse que ela media quinhentos passos, mas John Clement afirma que ele está a exagerar, que está a acrescentar duzentos passos, que “o rio, na verdade, mal chega a trezentos passos naquele lugar” (ib.:6). Este criado de More, que progredia a olhos vistos no estudo do grego e no latim, também escutara Rafael: “Como sabeis, ele lá estava conosco, pois sempre o quero presente em conversas que possam serlhe de proveito” (ib.:5). Assim sendo, More apela à memória de Pedro Gilles, pede-lhe que ele a consulte e declara que, se a memória de Pedro confirmar a de John Clement, ele cederá a ambos e confessará o próprio engano, mas que, “se essa medida se apagou também da vossa memória, ficarei com a minha e conservarei a cifra que já tenho”, preferindo, em caso de dúvida, “enganar-me com sinceridade a afirmar algo em que não creio” (ib.:6). Avança, no entanto, que a questão pode facilmente ser esclarecida se ele perguntar ao próprio Rafael, diretamente, se ele se encontrar por perto, ou por carta, ao mesmo tempo que acrescenta que - 273 -


é mesmo preciso consultá-lo, porque não tem qualquer informação sobre a localização geográfica da ilha: Um outro problema surgiu – não sei se por culpa minha, vossa ou de Rafael. O facto é que não nos ocorreu perguntar-lhe, e nem ocorreu-lhe dizer-nos, em que região do Novo Mundo encontra-se Utopia. De bom grado ofereceria uma grande recompensa em dinheiro, fosse a mesma necessária para que eu pudesse registar essa informação, pois o facto de saber qual o oceano em que se situa essa ilha, sobre a qual tanto escrevi, é coisa que me envergonha muito (ib.:6).

A “transcrição” do discurso de Rafael feita por More guarda, pois, silêncio sobre o assunto, ao mesmo tempo que a designação da ilha sugere a sua localização em local não definido e faz dela um nãolugar onde se encontra tudo o que é essencial para assegurar a felicidade dos seus habitantes: a Utopia bem merece o nome de Eutopia (1978:11). Na carta de 1 de novembro de 1516 a Jerónimo Busleyden, Pedro Gilles retoma a ficção como história verdadeira e refere-se à ilha anunciada por Hitlodeu como se ela tivesse localização geográfica definida, assegurando que essa informação não consta no relato de More, não porque Rafael tivesse tido a intenção de esconder tal informação, mas porque a “mencionou apenas de passagem, como se a desejasse guardar para outra ocasião”, e, ao mesmo tempo, declara que a receção da informação por parte daqueles que escutavam o marinheiro português foi prejudicada precisamente porque dois ruídos quebraram o silêncio imposto e impediram quer More quer Pedro Gilles de ouvir Rafael: E, nesse momento, um infeliz acaso impediu-nos ambos de ouvir o que ele dizia. Quando Rafael começava a abordar o assunto, um dos criados de More entrou e disse-lhe algo ao pé do ouvido; e, embora eu estivesse, por essa mesma razão, aplicando toda a minha atenção a ouvir o que Hitlodeu dizia, um dos nossos companheiros – o qual, suponho, havia apanhado um

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resfriado a bordo do navio – tossiu tão alto que algumas das palavras de Rafael me escaparam (ib.:185).

Pedro Gilles assevera ainda não descansar enquanto não esclarecer cabalmente a questão, “não só a posição aproximada, mas a exata latitude” (ib.:185). No entanto, o problema está em aceder à fonte testemunhal, o próprio Rafael, que uns dizem ter morrido no caminho de regresso à sua terra natal e outros dizem não ter resistido “às fortes saudades que sentia da Utopia e fez-se novamente ao mar em direção àquela parte do mundo” (ib.:185). Reafirma, assim, mais uma vez a existência física da ilha, mesmo sabendo que o seu nome “não se encontra nos tratados dos cosmógrafos”, fato para o qual Rafael tinha uma “explicação simples”: “Segundo ele, ou o nome que os antigos lhe haviam dado mudara com o tempo, ou eles sequer haviam chegado a descobrir a ilha. Hoje descobrem-se todos os dias terras de que os antigos geógrafos não tinham conhecimento” (ib.:185186). Afirma entretanto Pedro Gilles que o testemunho da palavra de More dispensa todos estes argumentos que visam comprovar a veracidade da história. Mas também é verdade que, terminado o discurso de Rafael, o relato de More dá conta de “não poucas” objeções que foram tomando o seu espírito, nomeadamente o fato de lhe parecerem ridículas algumas leis e costumes, mas sobretudo questionaria o alicerce de toda a organização social da ilha, isto é, a comunidade de bens aliada à falta de circulação de moeda que abalaria a nobreza, a magnificência, o esplendor e a majestade que “constituem a glória e o ornamento de um Estado” (1978:161). Contudo prefere guardar silêncio por deferência para com o orador, alegando ao leitor duas razões: 1ª) Apercebera-se que Rafael estava cansado de tanto ter falado; e 2ª) não estava muito seguro de que ele fosse muito tolerante com qualquer opinião que contradissesse ainda que uma pequena parte das suas opiniões (sententia), como deduzira do que ele dissera sobre certos conselheiros que tinham medo de não parecer suficientemente sábios a menos que encontrem algo que criticar nas ideias dos outros. - 275 -


More opta, por isso, pelo silêncio inteligente que o cardeal Morton sugerira ao frade mendicante, faz algumas considerações simpáticas sobre as instituições, louva o discurso (oratio) de Rafael e, tomando-o pela mão, convida-o para a ceia, “não sem antes lhe dizer que teríamos de encontrar um outro momento para refletir mais profundamente aquelas questões e discuti-las mais longamente com ele” (1978:161). E acrescenta: “Oxalá, isso possa acontecer um dia!” (1978:161). 3. Desafio semântico e noética da utopia Por fim, More termina o Livro II, reafirmando a impossibilidade de concordar com tudo o que Rafael disse, a despeito da erudição e da experiência incontestáveis deste. Parece, pois, que More pretende, no final, descartar a responsabilidade, não da existência da conversação, mas do seu caráter comprometedor com o modelo de governação que colocou na boca de Rafael. Parece preferir que, no fim, tudo fique como se nada tivesse sido dito. Mas não é o caso, porquanto ele facilmente confessa: “há muitas coisas na República Utopiana que eu desejaria ver nas nossas cidades. Desejo mais que o espero (optarim verius, quam sperarim)” (1978:162). Este final da Utopia parece querer prolongar a conversação dada por finda por Rafael, ao mesmo tempo que introduz um período (sem prazo definido) de silêncio na palavra utópica anunciada e reforça o carácter enigmático que resulta do processo especular imprimido por More à narrativa e que se prolonga na escolha dos nomes que contêm a própria negação para designar o rio (Anidro, rio sem água), a cidade (Amaurota, cidade não visível, cidade obscura), a própria ilha (Utopia, não-lugar, nenhures), o príncipe (Ademo, sempovo). O mesmo acontece com o duplo nome do orador – Rafael (o anjo que guia e cura Tobias) Hitlodeu (tagarela) – que ao mesmo tempo valoriza e desvaloriza o conteúdo do seu discurso. More torna-se, pois, intencionalmente ambíguo pelo uso que faz da linguagem (Araújo, 2016:17). Quererá ele dizer que a etimologia não é simples artifício, mas “uma coisa outra” (Marin, - 276 -


1973:118) e que os vocábulos são, por si, um “desafio semântico” (Prévost, 1978)? Se assim for, a sua apreensão pelo leitor carece de uma operação semântica que, segundo Prévost (1978:132 e 138), passa por três componentes: 1) a apreensão de uma realidade concreta e sensível, descrita com muitos detalhes, como a capital Amaurota e a ilha Utopia; 2) a negação do carácter material e sensível desta cidade e deste país; 3) “algo” de inefável e de misterioso que manifesta a sua presença pelo poder e a profundidade do abalo que provoca o carácter tricéfalo dos vocábulos utópicos. De igual modo, uma noética dos três níveis da Utopia comporta uma operação que passa por: 1) o meio espacial e temporal da narrativa, na sua forma romanesca; 2) o universo abstrato das especulações da filosofia política com a sua coesão mas também com as suas incoerências; 3) o mundo das realidades transcendentes tornadas presentes no espírito do leitor (Araújo, 2006: 81-82). Mas, ao mesmo tempo que transforma o final do discurso em pausa da conversação, More declara que há aspetos da Utopia que vale a pena que passem para o plano da ação humana e social, porquanto a transformação das pessoas e das instituições é do plano da deliberação na ação (optarim), dando especial realce ao enigma da ponte a construir para ligar, não já, as margens do rio de Amaurota, mas o continente à ilha da boa governação (Araújo & Araújo, 2002). CONCLUSÃO Neste texto, descrevemos o processo de construção do texto utópico de More num contexto de amicitia (Cícero) humanista dos inícios do século XVI e acompanhamos as diversas suspensões devidas às obrigações e responsabilidades profissionais, políticas e familiares de More, bem como o cuidado deste em burilar a escrita que contribuem para o adiamento da publicação da obra e estão na base da vivência da alegria da palavra já escrita, mas também do silêncio da palavra que ainda falta e da agitação mais ou menos

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ruidosa que a pressa de publicar a obra acaba por aportar ao círculo humanista. Depois, debruçando-nos sobre o sermo de Rafael Hitlodeu, textualmente apresentado como durando uma jornada dividida por um intervalo para refeição, damos conta do encontro de humanistas, das conversas e suas pausas, do diálogo filosófico sobre o lugar da filosofia na governação e o interesse público do papel do filósofo no conselho régio, ele mesmo integrando três debates e a descrição de três micro utopias, que vêm a ser aproximações à melhor das Repúblicas. Neste diálogo, deparamo-nos com o relato de Hitlodeu, mas também com interrupções dos seus ouvintes, bem como intervenções de outros participantes nos debates imaginários, onde há lugar para esgrimir ou ajuntar argumentos, mas também para a desconversa e para o silêncio inteligente. Segue-se o discurso sobre a república que consegue reunir todas as virtudes, com orador único e ouvintes atentos e ávidos de apreender a informação, prejudicada entretanto por uma situação de ruído não desejado que acaba por não permitir responder à questão mais importante de onde encontrar tal república. Terminado este discurso, o narrador declara ter algumas objeções, mas opta pelo elogio à qualidade do discurso, confessa a necessidade de refletir melhor sobre o assunto, a melhor forma de aliar a reserva e a enunciação de uma eventual divergência, e deixa o diálogo em aberto para novo encontro. A Utopia é, mesmo assim, a exposição de um modelo de sociedade que se apresenta como mais justa e mais feliz, assumindo um indiscutível caráter político. Como sociedade ficcionada, a ilha de Utopia corporiza também uma política da palavra e do silêncio em uso na cidade utópica: “não existe palavra sem silêncio” (Le Breton, 1999:17). Assim sendo, este estudo merece ser continuado com um outro sobre o estatuto de participação dos cidadãos da ilha e os princípios que nela regem o uso da palavra.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Abreu, Luís Machado de (1999). As três viagens da Utopia. In A. F. Araújo & J. Magalhães, História, Educação e Imaginário. Actas do III Encontro de História, Educação e Imaginário (Universidade do Minho, 2 de Novembro de 1998) (pp. 61 – 68). Braga: Departamento de Pedagogia / Instituto de Educação e Psicologia / Universidade do Minho. Araújo, Joaquim Machado de (2004). Utopia, itinerância e escatologia, in A. F. Araújo & J. M. de Araújo (orgs.) História, Educação e Imaginário. Actas do VII Colóquio realizado na Universidade do Minho em 8 de Março de 2004 (pp. 57 – 76). Braga: UM/IEP/CEEP. Araújo, Joaquim Machado de (2006). Tomás More e a Utopia. Porto: Edições Afrontamento. Araújo, Joaquim Machado de (2012). Utopia, Diversidade e Tolerância. Porto: Edições Afrontamento. Araújo, Joaquim Machado de (2016). Felicidade e Liberdade: Para uma utopia do humano. V. N. Gaia: Fundação Manuel Leão. Araújo, Joaquim Machado de; Araújo, Alberto Filipe (2002). L’énigme du pont d’Amaurote, Moreana, vol. 39, 151-152 (December 2002), 69 – 83. Bergson, Henri (1993). O Riso. Ensaio sobre o significado do cómico, 2ª ed. Trad. de Guilherme de Castilho. Lisboa: Guimarães Editores. Cícero (1994). A Amizade. Int., trad. e notas de Sebastião Tavares de Pinho. Coimbra: Instituo Nacional de Investigação Científica.

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Erasmo (1990). Elogio da Loucura. Trad., pref. e notas de Maria Isabel Gonçalves Tomás. Lisboa: Publicações Europa-América. Gomes, Álvaro (2000). Do som (didáctico) do silêncio ou… Do mito da esfinge e da maiêusis como logro. Lisboa: Didáctica Editora. Le Breton, David (1999). Do Silêncio. Trad. de Luís M. Couceiro Feio. Lisboa: Instituto Piaget. Leclercq, Jacques (1958). Leçons de droit naturel, II – L’État ou la politique, 4e ed. Namur/Louvain: Maison d’Éditions/Société d’Études Morales, Sociales et Juridiques More, Thomas (1978). De Optimo Reip. Statu deque nova insula Utopia, libellus vere aureus, nec minus salutaris quam festivus... Présentation du texte original, apparat critique, exégèse, traduction et notes (édition bilingue) par André Prévost. Paris : Nouvelles Éditions Mame. More, Thomas (1993). Utopia. Ed. de George M. Logan, Robert M. Adams; trad. de Jefferson Luiz Camargo, Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes. Neher, André (1999). El exilio de la palabra : del silencio bíblico al silencio de Auschwitz. Trad. de Alberto Sucasas Peón. Barcelona: Riopiedras Ediciones. Prévost, André (1978). L’Utopie de Thomas More; présentation du texte original, apparat critique, exégese, traduction et notes. Paris: Nouvelles Éditions Mame. Ruyer, Raymond (1988). L’Utopie et Les Utopies. Brionne: Gérard Monfort. Santidrián, Pedro R. (1997). Vida de Santo Tomás Moro. Madrid: San Pablo. - 280 -


CAPÍTULO 8 O(S) SILÊNCIO(S) ENSURDECEDOR(ES) EM HARD TIMES DE CHARLES DICKENS Armando Rui Castro de Mesquita Guimarães386 1. INTRODUÇÃO387 Pode parecer estranho e algo paradoxal abordar a questão do silêncio em Hard Times de Charles Dickens, uma vez que a ação deste romance decorre numa cidade industrial do Norte de Inglaterra, no meio do barulho de fábricas, chaminés fumegantes e sirenes, assim como numa escola, num circo e em casa de pessoas que, de silenciosas, tinham pouco. Mas vale a pena explorar o tema do silêncio neste romance, porque o silêncio de que quero aqui falar não é a ausência de ruído, ou o silêncio que advém da paz interior ou da serenidade, mas de dois outros tipos de silêncio que designarei por silêncio comportamental e por silêncio social. Por silêncio comportamental entenderei aquele silêncio que impomos a nós próprios – silenciando o que pensamos, sentimos, desejamos e receamos -, o silenciar das nossas emoções, dos nossos sentimentos, desesperos e ressentimentos de que temos consciência mas que não queremos que venham à superfície, enterrando-os num tumular e cúmplice silêncio. Por silêncio social quero significar aquele silêncio que impomos sobre e aos outros, silenciando-os enquanto outros «eus» que sofrem e sentem, sonham e desesperam, pensam e desejam como 386

Ver Lista de Colaboradores. Texto abreviado da Conferência realizada no Colóquio Internacional: Do(s) silêncio(s) ao silêncio,no Auditório do Instituto de Educação da Universidade do Minho, a 18 de Novembro de 2016. 387

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nós, recusando-nos a criar em nós aquela disponibilidade interior necessária para sermos verdadeiramente capazes de os escutar e para sermos também capazes de os percepcionar nas suas reais condições e situações de vida. Este romance presta-se, magistral e pertinentemente, à descoberta e localização, em vários dos seus personagens e situações, destes silêncios comportamental e social que nos tornam menos humanos e menos solidários. E para além destes silêncios comportamentais e sociais, há neste romance outros silêncios que surgem bastante ruidosos. São eles, por um lado, o silêncio do próprio Dickens sobre momentos dolorosos e críticos da sua vida, assim como o silêncio imposto aos homens pela religião, o silêncio sobre a sexualidade, o silêncio sobre as relações com os criados e o silêncio acerca das condições de vida dos operários. Hard Times é o menor romancede Charles Dickens e é conhecido como sendo um «romance industrial». Hard Times foi publicado em prestações semanais entre 1 de Abril e 12 de Agosto de 1854, em Household Words e foi depois publicado num só volume nesse mesmo ano (cf. Thornhold, 2000: IX). Os temas que são tratados em Hard Times são numerosos: trata de teorias econômicas e filosóficas do seu tempo, concretamente a teoria econômica da Escola de Manchester e do Utiltitarismo; trata da industrialização; da educação; do urbanismo industrial; da família, do casamento e das leis do divórcio; das classes sociais e das relações entre elas; do Parlamento e dos novos lugares criados para as cidades industriais, que estavam subrepresentadas no Parlamento; e trata da necessidade da imaginação e de entretenimento na vida das pessoas (ibidem: X). Neste romance, Charles Dickens opõe duas visões do mundo e da vida: 1) a visão dominante é representada por dois personagens: por um lado, temos o materialismo e o capitalismo sem freios, na figura de Josiah Bounderby, industrial e banqueiro, em Coketown; e, por outro, temos o pensamento estatístico, petrificado em teorias e personificado em Thomas Gradgrind, o utilitarista e benfeitor local; 2) - 282 -


a alternativa é personificada nas gentes do circo, especialmente na jovem Sissy Jupe, «o Poder da Afeição» - é assim que aparece descrita nos rascunhos da obra -, e no Sr. Sleary, o dono do circo. A escrita e publicação de Hard Times visou, por um lado, aumentar as vendas do semanário de Charles Dickens, Househoild Words, o que foi conseguido; e, por outro lado, havia uma clara intenção político-filosófica de denunciar e alertar para as péssimas condições de trabalho e de vida de milhões de operários (ibidem: XXI). 2. Que silêncios encontramos em Hard Times? 2.1. Há o silêncio físico, institucional. Por exemplo, o silêncio aterrorizado que encontramos na sala de aulas, em Coketown, um silêncio resultante da intimidação e do autoritarismo do professor. Nesta escola, patrocinada por Thomas Gradgrind, os alunos estão calados, respondem só quando se lhes pergunta alguma coisa, dispostos em filas bem ordenadas, cabeças disponíveis e prontas para serem enchidas com fatos e nada mais do que fatos (Livro 1, Cap. I). 2.2. Depois encontramos o silêncio cobarde. Logo no início do romance, Thomas Gradgrind descobre, horrorizado, que a sua filha, a «metálica» Louisa, e o seu filho, o «matemático» Tom, estão furtivamente a espiar o circo, esse mundo perigoso da imaginação, do entretenimento, do riso solto, repreendendo-os por estarem a fazer algo de absolutamente inútil. Perante o raspanete do pai, Tom nada diz e nada explica, mantendo-se sempre cobardemente silencioso e é a irmã quem, corajosamente, responde ao pai dizendo que aí estava porque queria estar e que ninguém a desencaminhara (Livro 1, Cap.III). 2.3. Há, em seguida, o silêncio da indisponibilidade, que é imposto ao outro pela nossa recusa em o escutar. Na sequência do episódio - 283 -


anterior, Louisa desabafa com o pai dizendo que se sentia cansada, não sabendo bem porquê, mas o pai, sempre seguro de si, não consegue silenciar os seus preconceitos e ideias feitas e responde à filha que tudo o que sente não passa de uma infantilidade, acrescentando como conclusão que, assim sendo, não vai escutar mais nada do que a filha lhe tenha para dizer. Aqui não se trata só de fazermos silêncio sobre o que sentimos, sobre as nossas emoções, desconfortos e sofrimentos, mas trata-se também de os outros nos silenciarem por não terem nem disposição nem disponibilidade para nos escutarem (Livro 1, Cap. III). 2.4. Há, ainda, o silêncio de submissão. Em Hard Times o silêncio submisso encontra-se representado na mulher de Thomas Gradgrind. Esta senhora é a caricatura acabada da mulher ideal vitoriana: maternal, doméstica, apagada, frágil e enfermediça, pondo os interesses do marido sempre em primeiro lugar. Segundo o marido, os seus dois grandes méritos eram ser muito boa a fazer contas e ser uma mulher completamente desprovida de imaginação. Mas nada melhor do que ouvirmos o próprio Dickens: “Em primeiro lugar, ela era bastante satisfatória com números; e, em segundo lugar, não tinha nada de «nonsense». Por «nonsense», (o marido) queria dizer imaginação; e verdade seja dita, é provável que ela estivesse livre de qualquer mistura dessa natureza, tanto quanto qualquer ser humano seja capaz de atingir a perfeição de ser um completo idiota” (Livro 1, Cap. IV, 15). 2.5. Depois, há aquele silêncio identitário, que resulta de se exigir ao outro o silêncio acerca da sua identidade, das suas raízes, da sua história pessoal. É o que é exigido a Sissy Jupe, a menina que Thomas Gradgrind acolheu em sua casa depois de ter sido abandonada pelo pai. Quando a recebeu em sua casa, Thomas Gradgrind coloca duas condições: não mais contatar a gente do circo (com quem ela sempre vivera) e, em circunstância alguma, falar com Louisa acerca do seu passado circense (Livro I, Cap. VII: 37). Este silêncio imposto, - 284 -


mesmo quando movido pelas melhores das intenções, não deixa de ser um silêncio mutilador e castrador. 2.6. Depois há o silêncio verborreico: uma outra forma de silenciarmos quem somos e de onde viemos, alcança-se pelo barulho, pelo ruído, pela verborreia. É o caso de Josiah Bounderby, o banqueiro e industrial, um homem que estava sempre a gabar-se de ter vindo do nada e de ser hoje um homem rico, bem sucedido e poderoso (Livro 1, Cap. IV). Este auto-barulho, o estarmos contínua e exaustivamente a falar de nós e só de nós, é uma estratégia possível para silenciarmos algumas verdades, ou vergonhas, incômodas sobre nós, que não queremos enfrentar e que não queremos que os outros saibam. É a velha estratégia de tanto repetir para nós próprios uma mentira acerca de nós, que nós mesmos acabamos por acreditar no que dizemos. 2.7. Finalmente, em Hard Times, encontramos o silêncio-entulho: outra forma de nos silenciarmos é não permitir a existência de zonas de silêncio que nos possam levar a pensar e a refletir. E assim enchemos as nossas cabeças com fatos e mais fatos, conhecimentos em cima de conhecimentos, para não termos de ficar a sós conosco mesmos e ter de pensar seriamente sobre o que verdadeiramente importa e é necessário. É também uma boa estratégia para não termos de enfrentar os nossos próprios receios, medos, vacilações, entulhando as nossas cabeças com toneladas de ruídos fatuais. E na azáfama de os digerir não temos tempo para mais nada, para mais nada de sério e de importante como o olharmos e refletirmos sobre o que realmente queremos, desejamos, sonhamos e sentimos.

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3. Outros silêncios estruturais 3.1. Os silêncios nas relações entre criados e patrões Este romance de Charles Dickens coloca o problema das relações entre criados e patrões, nomeadamente a relação de Josiah Bounderby com a sua governanta, a Sra Sparsit. A Sra. Sparsit era uma viúva, supostamente de boas famílias, mas que, sem meios, não teve outra alternativa do que trabalhar como governanta para sobreviver. E Bounderby gostava de contrastar as suas origens humildes com as boas famílias da Sra Sparsit. Como escreve Dickens: o que nele tinha sido deficitário, na Sra Sparsit fora excesso (Livro 1, Cap. IV, 13). Na sua relação com o patrão, a Sra Sparsit cumpria escrupulosamente o papel que dela era esperado: sempre atenta a todos os pormenores, cordial, respeitosa, sabendo claramente qual era o seu lugar naquela casa. Mas, na verdade, não só odiava o que tinha de fazer como odiava aquele para quem trabalhava, que via como um fanfarrão prepotente, desprovido de bom gosto e de educação. No entanto, o curioso é constatar que Bounderby, apesar de toda a fanfarronice, tinha medo da sua governanta, o que ficou provado quando teve de comunicar à Sra Sparsit que ia casar com Louisa, a filha de Thomas Gradgrind e se colocava o problema do que fazer agora com a governanta. E Bounderby interrogava-se, tendo de a mandar embora, como é que ela reagiria, se faria alguma cena (Livro 1, Cap. XVI, 81-82). Pelo sim e pelo não, resolveu passar pela farmácia e comprar sais no caso dela desmaiar. Ganhando coragem, diz à Sra Sparsit que vai casar com Louisa ao que ela impavidamente responde desejando-lhe as maiores felicidades. Esta reação deixa-o algo desconcertado e avança informando-a que, nestas novas circunstâncias, não seria adequado ela ficar a viver com ele. Ela, de novo, concorda plenamente, sem fazer ondas e então, Bounderby, aliviado, oferece-lhe a possibilidade de ficar a viver num apartamento por cima do seu Banco, em instalações dignas e adequadas a uma senhora da sua posição e fornecer-lhe-ia ainda uma empregada (surda) - 286 -


e um empregado. No final do romance, a Sra Sparsit, de novo governanta de um Bounderby separado de Louisa, em ordem a descobrir o paradeiro de um suposto ladrão do Banco, que fora várias vezes vistos com uma velha, encontra essa velha e obriga-a a dirigir-se a casa de Bounderby. Só que esta velha era a mãe de Bounderby que vinha de vez em quando a Coketown para, de longe, deliciar-se no sucesso do filho. Quando se descobre que a mãe de Bounderby, ao contrário do que ele alegava em alto e bom som, não o abandonara nem o maltratara, mas que sempre se preocupou com ele e que, para não o envergonhar, manteve-se todos estes anos afastada do filho, a vergonha de Bounderby foi colossal. Descoberto o seu embuste por causa da ingerência canina da Sra Sparsit, Bounderby não teve outra alternativa senão despedir a governanta. Então, fria e acidamente, a Sra Sparsit vira-se para um retrato a óleo de Bounderby e respondelhe: “Se aquele quadro pudesse falar, senhor – mas ele tem a vantagem sobre o original de não possuir a capacidade de se comprometer a si próprio nem de desagradar aos outros – o quadro poderia testemunhar que já passou um longo período de tempo desde que eu me dirigia habitualmente a ele como sendo o quadro de um simplório. Nada que um simplório faz, pode provocar surpresa ou indignação; o comportamento de um simplório só pode provocar desprezo”. E vai-se embora, altivamente, deixando Bounderby sozinho (Livro 3, Cap. IX, 285). Neste período, havia códigos e regras de conduta entre empregados e patrões que se baseavam fundamentalmente no que se podia ou não dizer, quando e como dizer e a quem dizer o quê. Discursos pontuados por silêncios e por assuntos tabu, assim como se pressupunha que os criados soubessem ser discretos e capazes de esquecer certos assuntos e conversas que pudessem ter ouvido da boca dos seus senhores. Só que esta discrição nem sempre era mantida e o falatório downstairs acerca do que se passava upstairs era muitas vezes tema de bisbilhotice e de chacota. Era, no fundo, uma situação de silêncio faz-de-conta. Este código e regras de conduta e a natureza - 287 -


da relação entre criados e patrões é cuidadosa e minuciosamente desenvolvido e explanado num famoso livro, um verdadeiro bestseller vitoriano, intitulado: Mrs Beeton’s Book of Household Management (1857-61) (Beeton, 2000). Este manual, bastante minucioso e detalhado nas suas prescrições e exigências, revela que essas relações nem sempre corriam bem. “De fato, o livro de Beeton é um guia útil para os problemas que as classes médias vitorianas enfrentavam para manter as distinções de estatuto apropriadas entre elas e os seus criados, e a energia que dispendiam neste processo. A literatura do período está cheia de criados presunçosos (Sam Weller em Pickwick Papers, os vários estalajadeiros e empregadas que levavam a melhor sobre o jovem David Copperfield, a mandona Bessy, em Jane Eyre, o pretencioso Phoebe, em Lady Audley’s Secret, de Mary Elizabeth Braddon, e muitos outros), sugerindo quer uma dificuldade em manter os criados nos seus lugares, quer uma profunda ansiedade sobre o fato. Se nós lermos entre as linhas, ao delinear prescrições tão detalhadas acerca das qualidades que se esperam de um criado, Beeton está tacitamente a reconhecer que estas expectativas não eram habitualmente cumpridas – a reserva respeitosa, comportamento modesto e o comportamento educado exigido a um criado ou a uma criada de quarto, por exemplo, é particularmente exagerado, sugerindo que estas qualidades desejáveis frequentemente não se verificavam” (Humble, 2000: XXVII). A identidade da classe média estava, assim, muito dependente da sua capacidade de se distinguir e apartar das classes trabalhadoras. 3.2. O silêncio acerca das condições de trabalho e de vida dos operários Em 1845, Friedrich Engels publica A Situação da Classe Trabalhadora em Inglaterra, obra que resultou da estadia em Inglaterra do jovem Engels, de Novembro de 1842 a Agosto de 1844, para onde o pai o enviara, aos 22 anos, não só para o afastar das más companhias políticas, mas também para o habilitar para lhe suceder à frente das fábricas têxteis da família Engels, na Alemanha. Para a - 288 -


escrita do livro, Engels teve à sua disposição, e com fácil acesso, várias fontes: para além das suas observações pessoais, Engels pôde contar com as obras de vários autores, tais como P. Gaskell, J. Wade, G. Potter, E. Baines e Thomas Carlyle, que escreviam e estudavam esse mesmo problema; teve também acesso a muitos documentos oficiais, como relatórios de comissões parlamentares e de inspetores fabris, assim como muito material que se publicava na imprensa britânica desse tempo (Engels, 1986: X). De fato, ninguém, na GrãBretanha, durante todo o século XIX, ignorava, ou poderia ignorar, o que se passava no interior das fábricas, das minas, das siderurgias, etc. Mas o silêncio a que me refiro aqui é uma outra forma de silêncio: trata-se de um silêncio anestesiante para as classes não operárias, em que se adoptava uma estratégia tranquilizadora e tranquilizante pela divisão do mundo operário em dois campos distintos: o campo dos trabalhadores que, em grupo, são vistos como uma multidão ameaçadora; e o campo do operário individual, que até é um homem simpático e inofensivo, especialmente se, como Stephen Blackpool, em Hard Times, ele se recusa a juntar-se a um sindicato (Livro 2, Cap. IV). Aliás, o medo de os trabalhadores se associarem em sindicatos, e o poder que tal união ou associação traria, encontrase patente em vários dos chamados romances industriais que insistiam em apresentar os líderes da classe operária como vilões apostados em enganar as pessoas e sedentos de sangue. Em Hard Times, este esteriotipo encontra-se presente na personagem de Slackbridge, o líder sindical em Coketown (idem: Livro 2, Cap. IV). A outra estratégia para silenciar qualquer denúncia ou reclamação por parte dos operários era fazer como Josiah Bounderby fazia em relação aos trabalhadores das suas fábricas: para ele, os operários eram todos uns ingratos, uns devassos, pessoas que viviam desenvergonhadamente melhor do que podiam e que a única coisa que queriam era comer sopa de tartaruga com colheres de ouro e comer carne de veado. E quanto às condições de trabalho nas suas fábricas, elas eram tão boas que só faltava mesmo alcatifá-las, de tão confortáveis que eram (Livro 1, Cap. IX, 55). - 289 -


Ao clamarem que os trabalhadores não passavam de um grupo de pessoas ingratas e preguiçosas, os patrões procuravam assim sossegar as outras classes sociais na ilusão de que tudo estava bem nas fábricas do Reino de Sua Majestade, que todas as reclamações eram injustificadas e que só podiam vir de gente mal-agradecida e malformada. Mas a verdade era que as outras classes não queriam ver, de fato, como viviam os operários, não fosse isso desassossegá-los e deixá-los mal-dispostos pois, em Hard Times, este distanciamento e fechar de olhos está patente no episódio em que Louisa vai com o irmão visitar Stephen Blackpool, que o marido havia despedido injustamente e vê, pela primeira vez na sua vida, as más condições de vida e de habitação dos operários de Coketown (Livro 2, Cap. VI, 124). 3.3. O silêncio da religião Num Domingo de Março do Ano da Graça de 1851, realizouse em toda a Grã-Bretanha, o primeiro censo de frequência religiosa: em Inglaterra e no País de Gales, de uma população de quase 18 milhões de habitantes, só pouco mais de 7 milhões tinham assistido a alguma espécie de serviço religioso nesse Domingo. Na Escócia, pouco mais de 60% frequentou alguma igreja. E dos que não iam a nenhuma igreja, a maioria eram operários embora houvesse já uma boa percentagem de gente educada. Charles Dickens, em Hard Times, vai aproveitar estas estatísticas para pôr a nu o lugar da religião em Coketown e mostrar que se havia silêncio nos templos e nas igrejas de Coketwon, era porque a religião já nada tinha a dizer aos trabalhadores que valesse, de fato, a pena. Isto é, o silêncio de quem não tem nenhuma Boa Nova, ou evangelho, a anunciar aos outros, encontrará como resposta o silêncio de igrejas e templos vazios. E não obstante haver 18 denominações religiosas na cidade, aos Domingos a classe operária pura e simplesmente não aparecia para nenhum serviço religioso pois “era coisa que não lhes dizia respeito” (Livro 1, Cap. V. 19). Perante - 290 -


esta indiferença religiosa generalizada, várias soluções eram propostas: no Parlamento havia quem sugerisse que se criassem leis para fazer dos operários religiosos à força; depois, havia na cidade, diz Dickens, várias sociedades contra o consumo de álcool que procuravam demonstrar, através das estatísticas, que os trabalhadores eram todos uns bêbados; por sua vez, os químicos e farmacêuticos mostravam, também com estatísticas, que se eles não bebiam, então drogavam-se com ópio; seguia-se o capelão da prisão que, também com estatísticas, apregoava que os operários dedicavam-se a actividades pouco lícitas; e, finalmente, lembra Dickens, havia o coro das pessoas de bem, como Thomas Gradgrind e Josiah Bounderby que acreditavam que os operários eram todos uns ingratos, eram intratáveis e viviam descaradamente acima das suas possibilidades. E Dickens termina a caracterização dos trabalhadores de Coketown, segundo as pessoas respeitáveis, dizendo que para aqueles dois, Thomas Gradgrind e Josiah Bounderby, era inconcebível que os operários pudessem simplesmente querer, no seu dia de folga, algum descanso e entretenimento, procurando assim algum alívio físico e psicológico (Livro 1, Cap. V, 19-20). Este silêncio das religiões tem a ver com o alheamento de muitas das confissões religiosas da altura acerca das condições de vida e de trabalho dos operários, que restringiam a sua pregação a um evangelho de resignação e de aceitação passiva dessa exploração e sofrimento. Se a única coisa que tinham a dizer a essa população sofredora era «resignai-vos», esta é «vontade de Nosso Senhor Jesus Cristo», era compreensível que as pessoas preferissem então o descanso e o alívio de um pub, de um jogo de cartas, ou de qualquer outra diversão que lhes permitisse esquecer, por umas horas que fossem, o sofrimento de seis dias de árduo trabalho. William Blake, profética e ironicamente, já havia escrito, anos antes, que “Um bom pub local tem muito em comum com uma igreja, excepto que um pub é mais quente e conversa-se mais” (cit. In McLaren, 2012; 6). Não admira, então, que se preferissem os pubs às igrejas.

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3.4.O silêncio sobre o sexo e a sexualidade Talvez o maior tabu deste período tenha sido o sexo, sendo a sociedade vitoriana, por excelência, uma sociedade claramente dualista e hipócrita. O homo victorianus apresentava, para consumo externo, a sua persona respeitável e familiar, mas havia escondido o seu lado tenebroso. No domínio sexual, muitos homens transforrmavam-se em verdadeiros Dr. Jeckyll e Mr. Hyde, “abandonando-se a prazeres pecaminosos fora de casa e assumindo a função de maridos extremosos e pais dedicados no seu interior” (Robbins, 1995: 13). Em relação à mulher também vigorava a hipocrisia e a dualidade de critérios: por um lado, a Madonna, ou mãe de família; e, por outro, a Madalena, a mulher perdida, pecadora. Estas atitudes alimentavam, por sua vez, uma prostituição florescente sendo que, por volta de 1850, calcula-se que haveria em Londres entre 50 a 80 mil prostitutas, havendo mesmo quem avance a existência de 120 mil (cf. idem: 138-139). Perante este panorama, é comprensível que houvesse indivíduos e organizações empenhadas em fazer alguma coisa por estas «mulheres perdidas», internando-as simplesmente em lares ou asilos. Mas havia outras pessoas que criticavam estas iniciativas, como o romancista Anthony Trollope, pois mais não era do que reconhecer que o único tipo de arrependimento possível para estas mulheres era a prisão. Charles Dickens defendeu também outras alternativas: “Em Oliver Twist tinha criticado, antes de todos, a noção geral de que a mulher só podia ser pura ou totalmentte corrupta. Nancy era companheira de assassinos e ladrões, prostituta mas, apesar disso, boa. A sua morte foi mais um ato de redenção do que destruição. As críticas observaram, no entanto, que nada na personagem de Nancy indicava explicitamente que se tratava de uma prostituta. Só no Prefácio à 3ª edição (1841) é que Dickens utilizou este termo, que não aparece no romance” (idem: 148). Mas Charles Dickens não se limitou a denunciar tudo isto nos seus romances. Fez - 292 -


também algo de concreto em prol delas. Na década de 1840, Charles Dickens trabalhou com Angela Burdett-Coutts na criação de um lar para as prostitutas onde pudessem aprender uma profissão para poderem abandonar essa vida e autoregenerarem-se. Dickens pensava que o melhor que elas podiam fazer, depois de recuperadas, era irem para as colônias começar uma nova vida (ibidem: 148). O silenciamento do sexo e da sexualidade fez também com que tenha surgido, como nunca antes, uma verdadeira indústria de pornografia e de gravuras indecentes. A par disto, sempre que havia um escândalo sexual, a circulação dos jornais aumentava exponencialmente numa desenfreada procura de detalhes sórdidos, detalhes estes que, no entanto, visivelmente não se encontravam nos romances quer de Dickens quer de Trollope. Em resumo, especialmente depois de 1850, havia como que um acordo tácito para fazer de conta que o sexo não era o que era. Por sua vez, este silenciar da sexualidade fazia com que, por exemplo, nas classes médias, as raparigas desconhecessem completamente quem era o homem: tinham uma imagem idealizada, abstrata, muito pouco carnal, o que era reforçado na literatura romântica da altura e nas publicações periódicas e nos jornais. De fato, “De todos os autores que poderiam ter explorado o nexo sexual entre homem e mulher, nenhum estava melhor equipado do que Dickens, mas como os seus contemporâneos, ele evitou o explícito, colocando, por exemplo, o Major Bagstock, em Dombey & Son, em ebulição, mas usando analogias para indicar a sexualidade exuberante do major” (Pearsall, 2003: 39). Esta habilidade e capacidade de se produzir humor em relatos de natureza sexual sem usar palavras sexuais, tão marcante no primeiro período da época vitoriana, pode ser ilustrado com a descrição da noite de núpcias da Rainha Victoria, que foi apresentada, por exemplo, como um ensaio para montar a cavalo, como uma operação militar ou como uma incursão exploratória (idem: 394). Quando chegamos a Charles Dickens, embora ele usasse a linguagem comum das pessoas do seu tempo, esta havia sido expurgada de tudo o que pudesse causar algum embaraço ou rubor a uma senhora ou - 293 -


menina respeitáveis. Exemplo disso é o comentário de uma tal Mary Mittford, defensora do recato feminino e dos bons costumes que declarou, a propósito de Pickwick Papers, que se tratava de uma obra divertida, “sem nada de desagradável: uma senhora podia lê-la toda de voz alta” (cit. in Pearsall, 2003: 408). 3.5. O Silêncio de Charles Dickens sobre certas experiências da sua vida A infância de Charles Dickens foi marcada por algumas experiências verdadeiramente traumatizantes e que ele nunca esqueceria: a prisão do pai, o seu trabalho numa fábrica, o ter abandonado a escola. Relativamente ao seu tabalho na fábrica, só já homem maduro e bem sucedido é que vai confessar a John Foster o quão doloroso foram esses doze meses que passou na fábrica. Felizmente para todos nós, e para o próprio Dickens, ele conseguiu ultrapassar esses traumas, usando diferentes estratégias. Dickens teve consciência de que todas essas experiências de solidão e de abandono, de fome e de humilhação, teriam de ser superadas, que teria de olhar para a frente e não passar a vida a lamuriar-se. Aprendeu que tinha de confiar em si mesmo e que não podia depender de mais ninguém. No entanto, em relação à sua experiência de trabalho na fábrica de graxa em que passava o dia a colar rótulos em frascos e, por vergonha, evitava conviver com os outros miúdos que, como ele, aí trabalhavam -, Somerset Maugham, embora reconhecendo que tal experiência foi traumática, relativiza-a em certa medida. Maugham recorda que estando nós tão habituados a ouvir políticos, industriais e celebridades a gabarem-se de na sua juventude terem lavado pratos ou vendido jornais, torna-se difícil entender a reação de Charles Dickens de ter escondido por tanto tempo este episódio da sua vida, uma vez que não teria sido uma experiência estranha ou invulgar para rapazers da sua idade e classe social (Maugham, 2001: 142). A explicação que Somerset Maugham avança é a seguinte: “Como a sua imaginação foi trabalhar nas suas lembranças, ele encheu-se, desconfio eu, de piedade pelo pequeno rapaz que foi; ele deu-lhe a dor, a aversão, a - 294 -


mortificação que pensou que ele, famoso, rico e amado, teria sentido se ele tivesse estado no lugar do pequeno miúdo”. (…) “Não penso que Dickens tenha conscientemente exagerado; ele não podia estar a exagerar: o seu talento, o seu gênio, se quisermos, baseava-se no exagero” (idem: 142-143) Sem dúvida que o exagero fazia parte do seu trabalho, da sua mestria, do seu modus operandi: as suas obras revelam um extravagante sentido do cômico, com fortes poderes de caracterização de personagens que não só se tornariam inesquecíveis como começariam a fazer parte do imaginário popular e da linguagem quotidiana das pessoas, de tão familiares que se tornaram, a par de uma consciência social muito apurada e forte. O outro episódio da sua vida que Dickens colocou também no silêncio foi o fim do seu casamento e a sua relação com Ellen Ternan, a sua amante. As relações de Charles Dickens com a sua mulher Kate foramse deteriorando ao longo dos anos e ele foi gradualmente distanciando-se dela e a vê-la e a senti-la cada vez mais como uma estranha. Queixava-se que ela não foi capaz de o acompanhar ao longo da sua vida, sendo, no entanto, mais grave a acusação de que ela nunca fora uma boa mãe. Apesar das dificuldades maritais, o casal foi mantendo as aparências de harmonia, como era da praxe naqueles tempos. Só que numa peça de teatro amador em que Dickens participou, ele vai conhecer uma jovem de 18 anos, Ellen Ternan, por quem se apaixona. As relações com Kate passam a ser cada vez mais tensas, tendo a gota de água resultado de um episódio digno de telenovela: um dia, Charles Dickens decidiu oferecer uma bracelete a Ellen, com o nome dela gravado. Mas o ourives enganou-se e envioua para a casa de família e Kate não lhe perdoou. Dickens ainda tenta salvar o insalvável e, pouco depois, a separação foi efetivada. E terminava assim 22 anos de casamento. Os termos da separação foram uma negociação difícil mas, finalmente, em 1858, chegaram a acordo e Kate montou uma casa para si e para o filho mais velho, Charles Junior, enquanto os outros nove filhos ficaram a viver com o pai. Hoje - 295 -


crê-se que Kate tinha problemas de bebida e que terá sido este problema que a fez sair de casa e deixar os filhos com o marido. A relação de Charles Dickens com Ellen durou doze anos, até ao fim da vida do escritor. Foi uma relação muito discreta, em modo furtivo, uma relação praticamente desconhecida de todos exceto dos seus amigos e associados mais próximos. O silêncio público em que viveram esses doze anos resultou no fato de, ainda hoje, pouco se saber de como seria a relação entre os dois amantes. CONCLUSÃO Os silêncios que procurei explorar aqui, a propósito deste romande de Charles Dickens, têm fundamentalmente a ver com o silêncio que impomos a nós mesmos em relação ao que ex imo corde mais desejamos, pensamos, queremos ou sentimos, assim como o silenciar dos nossos medos, apreensões, ressentimentos e raiva porque não é socialmente correto manifestar ou exteriorizar. Tem também a ver com o silêncio que impomos ao outros, não lhes facultando ou permitindo tempo e espaço para também eles dizerem o que sentem, querem, anseiam, sonham, temem ou ressentem. Tem a ver com todos aqueles silêncios que impomos aos outros para não termos de os ouvir ou escutar, para não termos de os acolher, não vá contecer termos de sair das nossas zonas de conforto e constatar que, no fundo, até nem somos assim tão boas pessoas. Tem a ver com os silêncios que, enquanto sociedade, impomos aos menos afortunados do que nós, aos que têm cor de pele diferente da nossa, aos que não vivem, não se vestem e nem comem como nós, aos que não acreditam nos mesmos deuses que nós, ou aos que vivem uma sexualidade «desviante» e diferente da «normal». Neste romance de Charles Dickens estes e outros silêncios ensurdecedores ganham uma maior intensidade porque acontecem num mundo dominado e pautado pela preocupação pelos fatos, pelas estatísticas, crentes e confiantes no poder transformativo da ciência e - 296 -


da técnica, por homens, alguns deles pelo menos, verdadeiramente bem intencionados. Mas este pretenso controlo científico-técnico conduziria a resultados que, humanamente falando, foram catastróficos, porque acabaram silenciando aquilo que de mais humano, de mais nosso e íntimo existe em cada um de nós: a nossa interioridade, os nossos sonhos, os nossos receios, tudo aquilo que não é nem mensurável nem vendável. E se o utilitarista Thomas Gradgrind tivesse estado mais atento ao mundo à sua volta, isto é, se estivesse estado mais atento àqueles fatos que têm a ver com os afetos, as emoções, o coração, teria percebido também que a base programática de um utilitarismo estreito e quantitativo, à Jeremy Bentham e à James Mill, seria humanamente insuficiente para alcançar a maior felicidade possível para o maior número de pessoas, pois lhe faltava alma e calor humano, o que John Stuart Mill, discípulo de Bentham e filho de James Mill, acabou descobrindo à sua própria custa, levando-o a reformular o utilitarismo estreito e quantitativo de Bentham e de James Mill, num utilitarismo alargado e aberto a todas as experiências criativas e verdadeiramente humanas, o que John Stuart Mill resumiu dizendo que mais vale ser um Sócrates insatisfeito do que um porco satisfeito. A vida não é só fatos, é também imaginação, sonho, riso, calor humano, ternura, algo que não é nem mensurável nem transacionável. O silêncio, enquanto meio e processo para o reencontro de nós mesmos no mais íntimo de cada um de nós, enquanto processo criativo atento a nós próprios e aos outros, pode ser um instrumento de salvação, mas pode ser uma arma para a destruição do que de mais humano existe em nós e nos ouros se com essa estratégia nos fecharmos a nós próprios e aos outros. Finalizo fazendo minhas as palavras com que Charles Dickens termina Hard Times: a decisão, por um silêncio criativo ou destruidor, está nas nossas mãos: é responsabilidade nossa fazer acontecer uma coisa ou outra.

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CAPÍTULO 9 ANTÍFONA DO SILENCIO Maria Helena Vieira388 Enfin, il nous faut considérer la parole avant qu’elle soit prononcée, le fond de silence qui ne cesse pas de l’entourer, sans lequel elle ne dirait rien.389 Merleau-Ponty, Signes, p. 58.

INTRODUÇÃO390 No cerne de uma perspectiva fenomenológica da comunicação está a compreensão de que o significado se encontra não na palavra materializada ou objetiva, mas naquele mundo intersticial e intangível que rodeia coisas e palavras, quem as diz e quem as escuta. Isso mesmo sublinhou Noam Chomsky quando alertou para a existência de uma gramática generativa, e para a importância primordial da “estrutura profunda” da linguagem, subjacente à superfície do verbalizado (Chomsky, 1965). Ironias, segundos sentidos, contradições, homonímias, paronímias, aí estão a comprovar que, como dizia Cassirer (2001), as palavras não são etiquetas que se possam colar a realidades circunscritas, a tradução entre línguas não é uma simples troca de rótulo para uma mesma realidade que se pudesse imaginar existir e, finalmente, existem várias formas de objetivação da realidade. Assim, neste trabalho apresenta-se uma reflexão que, a partir de uma pequena citação seminal de Merleau-Ponty, propõe que o silêncio é um ponto de refracção: 1. entre o pensamento verbal e a 388

Ver Lista de Colaboradores. Enfim, temos que considerar a palavra antes que ela seja pronunciada, o fundo de silêncio que não cessa de a rodear, e sem o qual ela não significaria nada. (Tradução da autora) 390 Para o Alberto Filipe Araújo, por não me deixar esquecer da poesia e do silêncio. 389

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palavra dita; 2. entre o não dito e não verbalizável e o verbalizado, mas também entre o não dito e indizível e a música; 3. entre os sentidos construídos heuristicamente por cada indivíduo e as realidades culturais que resultam da intersecção desses sentidos individuais numa compreensão e manifestação colectiva da cultura, da arte e da música. 1. Considerar a palavra antes que ela seja pronunciada A pergunta do rapaz curioso ao velho soldado sentado em frente do supermercado, num poema do poeta americano Edgar Lee Masters (2015) “Como é que perdeu a sua perna?” atingindo o sentido mais profundo do sofrimento do interlocutor, encontra uma reação inesperada e singela, e reconfigura-se no eco de uma resposta que, à superfície, poderia parecer desfocada, se o sentido e o significado das palavras pudesse alguma vez ser contido nelas: A curious boy asks an old soldier Sitting in front of the grocery store, “How did you lose your leg?”. And the old soldier is struck with silence, Or his mind flies away Because he cannot concentrate it on Gettysburgh. It comes back jocosely And he says. “A bear bit it off”. 391 391

Um rapaz curioso pergunta a um velho soldado/sentado em frente de um supermercado/ “Como é que perdeu a sua perna?”. E o velho soldado fica subitamente em silêncio*/Ou o seu pensamento divaga para longe/porque não o consegue concentrar em Gettysburgh./A resposta vem jocosa/ E ele diz: Um urso comeu-a”. (Tradução da autora). *Esta própria tradução revela a dificuldade em circunscrever o sentido veiculado pelas palavras em inglês. Enquanto em português a norma linguística nos leva a formular a expressão “fica subitamente em silêncio”, em inglês a expressão “is struck with silence” traduz, mesmo que na voz passiva, uma acção, brutal, do silêncio sobre o velho soldado, independentemente da sua própria vontade. “Struck” é muito mais violento do que “reached” (“atingido” no sentido de “alcançado” pelo silêncio). Em inglês o velho soldado “é atingido pelo silêncio”, como se fosse atingido por um raio [struck with lightning], (o que acaba por revelar um significado muito mais poderoso desse silêncio). Em português, dizer “O velho soldado é

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A resposta do velho soldado, “Um urso comeu-a” consiste numa espécie de “refração de sentido” ou “refração de significado” que, ao emergir da estrutura profunda do significado doloroso daquela realidade pessoal e social (a batalha de Gettysburgh, a mais sangrenta da Guerra Civil americana, com os seus mutilados, mortos, e vidas desfeitas) transfigura o olhar do rapaz sobre o foco da sua curiosidade, a perna amputada, reconduzindo-o para o imaginário simbólico próprio das histórias contadas na sua idade: o lobo mau, o urso da floresta, o “bicho-papão” (este último, tão frequente na tradição oral portuguesa). Edgar Lee Masters revela assim, neste poema magnífico, o poder do contexto como razão de reconfiguração de sentidos ou mesmo de formas de apresentação de uma mesma realidade. O ponto crucial, porém, é aquele momento em que a personagem “velho soldado” fica subitamente em silêncio (porque é “atingido por ele”, como o original inglês expressa). “Struck with silence”, o velho soldado expande os seus horizontes de entendimento do mundo, desde o centro da sua dor, e da dor social e política que carrega, para incluir o entendimento do outro, do jovem rapaz, e lhe estender, fenomenologicamente, a mão de uma nova palavra, reconfigurada e metafórica que lhe permita aceder à mesma realidade sem ser esmagado por ela. Na interseção dos dois entendimentos, só possível no cruzamento de um silêncio quase orante (orante, pela condição primordial da oração que é o reconhecimento da existência de um outro e das suas características) torna-se possível o crescimento mútuo, a fusão de horizontes (“Horizonverschmelzung”, segundo Gadamer, 1987) e a simultaneidade de perspectivas. Ao mesmo tempo que o rapaz divaga sobre a possibilidade de um urso ter devorado a perna, o velho soldado recorda os horrores da batalha; ao mesmo atingido pelo silêncio” não seria uma tradução aceitável, uma vez que o comum nesta língua é a acção do sujeito (“ficar em silêncio”), o que indicia diferentes contextos culturais de relação com o silêncio, e diferentes perceções do poder desse silêncio. O poder de “atingir”. E de ser “atingido”.

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tempo que o rapaz se compadece do velho soldado, o velho soldado compadece-se da própria humanidade: And the boy wonders, while the old soldier Dumbly, feebly lives over The flashes of the guns, the thunder of cannon, The shrieks of the slain, And himself lying on the ground, And the hospital, surgeons, the knives, And the long days in bed, 392

Lee Masters termina a estrofe sublinhando as imensas possibilidades contidas nesse momento de silêncio. Para além da dúvida de interpretação, da imaginação do momento que não se viveu, da fantasia metafórica, da recordação do momento vivido, do reviver do sofrimento, da visualização dos fatos, da lembrança dos sons, aquele momento de silêncio permite um outro tipo de “refração” (para usar o termo antes apresentado). Uma refracção transfigurada para um outro patamar de entendimento, para uma outra linguagem, com novos códigos: uma linguagem artística. No entanto, nesse outro patamar, e através dessa outra linguagem, passa a viver-se a realidade com uma outra percepção, mais profunda ainda e, por isso, de forma eventualmente ainda mais dolorosa, e difícil de comunicar. But if he could describe it all He would be an artist. But if he were an artist there would be deeper wounds Which he could not describe. 393

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E o rapaz interroga-se, enquanto o velho soldado/ Atordoado, enfraquecido, revive/ Os flashes das carabinas, o estrondo do canhão/ Os gritos dos assassinados/ E ele mesmo deitado no chão/ E o hospital, cirurgiões, facas/ E os longos dias na cama. (Tradução da autora) 393 Mas se ele [o velho soldado] conseguisse descrever tudo/ Seria um artista. / Mas se ele fosse um artista existiriam feridas mais profundas/Que ele não conseguiria descrever. (Tradução da autora)

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2. Considerar o fundo de silêncio que rodeia a palavra e a música O “momento de corte” ou de transição entre a linguagem das palavras e a linguagem artística, funciona como o momento de transição entre o uso da língua materna numa perspectiva funcional de uso diário e o seu uso literário. No caso da língua materna a vivência artística constrói-se numa perspectiva inclusiva em que a literatura emerge como metalinguagem radicada na própria linguagem, como num gigantesco processo de haiku japonês394. Este procedimento é complexo, pode ser desenvolvido através de recursos estilísticos diversos e é determinado por fatores culturais. No caso de outras artes, como a música ou as artes visuais, o “momento de corte” é mais acentuado, uma vez que a nova “linguagem” ou patamar de comunicação se constrói a partir de outros elementos (sons, cores, materiais) e de outras formas de relacionamento entre esses elementos (que só por metonímia se poderão apelidar de “gramaticais” ou “sintácticas”, como em “a gramática musical” ou a “sintaxe das cores”). Saussure já tinha feito compreender no seu Curso de Linguística Geral (Saussure, 1995) que a comunicação é um processo complexo, e indicou três realidades que denominou “triângulo linguístico” e que a constituem: significante, significado e referente. O significante, como a realidade material (escrita ou sonora) da linguagem; o significado (o que a palavra escrita ou oral quer dizer); e o referente (a realidade, física, sensível ou sentimental) a que estão ligados a palavra material e o significado que lhe é atribuído. JeanJacques Nattiez, num artigo editado em Portugal nos anos oitenta pela Editora Vega, num livro pioneiro intitulado “Semiologia da Música” O “haiku” é um breve poema japonês construído a partir da justaposição de duas imagens ou ideias e um “kireji” (“palavra que corta”) e que é colocado entre essas ideias para redirecionar ou “refractar” os sentidos habituais para novos sentidos. Esse elemento “kireji” permite compreender a estrutura do pensamento que deu origem à nova realidade poética. Veja-se, por exemplo, o seguinte “haiku” de Tolentino de Mendonça: “A história relata o que aconteceu/ o silêncio narra/ o que acontece” (Mendonça, 2013, p.21). 394

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(sem data), coordenado pela Professora Maria Alzira Seixo e compilado a partir de traduções de artigos da Revista Musique en Jeu (das Edições du Seuil), viria a sublinhar que, numa óptica Saussureana, a música só poderia ser “significante puro” (sem significado, nem referente), (Nattiez, s/d, pp. 17-40). No entanto, não deixou de reconhecer que a música não é, contudo, desprovida de possibilidades expressivas ou significantes, mas esta função semântica é-lhe dada de certo modo do exterior pelo ouvinte: não nos parece, pois, que a ligação entre a face significada e a face significante possa ser comparada à ligação que se manifesta na linguagem […] (p. 26).

Isto aplicar-se-á, como se depreende, às próprias correntes referencialistas da arte, que consideram que a obra de arte está ao serviço de um referente (político, social, imagético) que lhe é exterior. Mesmo no caso de um hino nacional ou de uma canção de embalar, providos de texto, ou de uma marcha fúnebre, a ligação significativa do fenómeno sonoro a um referente exterior será sempre, segundo Nattiez, uma ligação imposta “do exterior pelo ouvinte” sobre a música, a partir de convenções culturais ou tradições identificáveis por um determinado grupo social (que poderão ser diversas das convenções e tradições de outro grupo). A ligação da música a esse “significado” tradicionalmente associado aos sentidos veiculados e descritos pela linguagem materna (a música triste é “lenta”, a música alegre é “rápida”, a música nacionalista é “marcada”, a música de embalar é “suave”) foi estudada sob uma óptica que podemos considerar radicada na filosofia da linguagem. Nesse sentido, as reflexões sobre o fenómeno musical e o seu poder expressivo e comunicacional realizaram-se quase sempre a partir de instrumentos próprios de outros modos expressivos e comunicacionais centrados no filtro da própria linguagem verbal: a música olhada através da linguagem verbal, tal como a linguagem verbal é olhada pelo filtro de si mesma. O corte do silêncio que - 308 -


potencia um olhar refractado sobre a realidade e uma nova forma de expressão, não é capaz de elidir muitas vezes o pensamento verbal característico da anterior realidade, ou melhor, da anterior forma de se situar na realidade. Será sempre muito difícil de atingir o que Tolentino de Mendonça (2013, p. 16) descreve num outro dos seus “haikus” de “A Papoila e o Monge”: O teu silêncio seja tal que nem o pensamento o pense

Para se situar na esfera da experiência artística será necessário, então, desligar-se o mais possível da linguagem verbal, das suas gramáticas e sintaxes, e da sua constelação de significados tradicionais. Como se se passasse a viver num outro mundo. Num artigo sobre investigação educacional, John Keeves (1997, p.1) evoca Popper e Eccles, na sua conhecida divisão do campo da pesquisa humana em três mundos. Esses três mundos, que de algum modo ecoam o triângulo linguístico de Saussure, serão, na verdade, as três faces da realidade, onde podemos encontrar todas as entidades e actividades humanas. Vale a pena recordar a definição que dão desses três mundos, uma vez que a música, enquanto arte, enquanto atividade humana, se situa numa perspectiva de mediação hermenêutica entre eles, mais do que numa mera transmutação entre duas linguagens através da porta do silêncio: The entities of the real world which include physical objects, as well as the various structures created by human society and which include schools and universities, form World 1. World 2 is the world of subjective experiences, a world of individual mental states that comprises the states of conscious thought and psychological dispositions as well as the unconscious states of mind of individuals. Wisdom is an entity of World 2. There is, however, in addition, World 3 which has been created as a new objective world, that is the product of human minds. It should be noted that World 3 not only contains the corporate body of propositional

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knowledge concerned with causal explanation, but also the works of art, music and literary writings that are all part of the world of shared knowledge. The important point is that World 3 objects have acquired a reality of their own. 395

A experiência musical, mais abrangente, portanto, do que o fenômeno musical enquanto realidade física ou sonora (Mundo 1), mais abrangente ainda do que a percepção individual e psicológica, necessariamente subjetiva, do fenômeno sonoro (Mundo 2), pertence a esse mundo do “conhecimento partilhado” (Mundo 3) de que nos falam Popper e Eccles, um “novo mundo objetivo que é o produto das mentes humanas” e no qual “os objectos adquiriram uma realidade própria”. A complexidade da experiência musical, de longo e diverso percurso histórico e de claras implicações sociais e políticas, reclama um estudo e uma reflexão que não se limitem a nenhum desses mundos, mas que procurem relacioná-los. O estudo da acústica musical, a análise formal e harmônica de uma obra, o prolongado devotamento técnico à performance de uma obra, ficariam muito incompletos se desligados das experiências subjectivas de quem os realizam. No entanto, tantas vezes as escolas promovem aprendizagens pedagógicas centradas na música-enquanto-objeto desligado da experiência subjetiva dos estudantes, do seu gosto, do patrimônio cultural que trazem de casa, do patrimônio cultural da própria região e país em que habitam. Tantas vezes o contexto da 395

As entidades do mundo real, que incluem os objectos físicos, bem como as diversas estruturas criadas pela sociedade humana, e que incluem escolas e universidades, formam o Mundo 1. O Mundo 2 é o mundo das experiências subjectivas, um mundo de estados mentais individuais, que abarca os estados de pensamento consciente e as disposições psicológicas, bem como os estados mentais inconscientes dos indivíduos. A sabedoria é uma entidade do Mundo 2. Existe, contudo, para além destes, o Mundo 3, que foi criado como um novo mundo objectivo, e que é o produto das mentes humanas. Deve sublinhar-se que o Mundo 3 contém, não apenas o corpus de conhecimentos verbais relacionados com explicações causais, mas também as obras de arte e os textos literários, que são, todos, parte do mundo do conhecimento partilhado. O aspecto mais importante é que os objectos do Mundo 3 adquiriram uma realidade própria. (Tradução da autora).

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experiência coletiva e do conhecimento partilhado (que, segundo Popper e Eccles, definem a própria música e situam o próprio facto musical) são ignorados a favor de uma postura auto-centrada, em que a experiência musical se transforma num diálogo apenas consigo mesmo. Para além do estudo fatual do fenômeno sonoro, da sua evolução histórica, da compreensão do seu significado subjetivo para diferentes actores sociais, torna-se necessário fazer a hermenêutica dessas experiências pessoais verbalizadas (passadas e presentes), e desse conjunto de conhecimentos e saberes partilhados (construídos de forma heurística por cada indivíduo) de forma a alcançar a reconfiguração conceitual dos sentidos mais profundos das atividades humanas envolvidas no ato musical (ouvir, tocar, cantar, criar, compor). Quer de um ponto de vista da reflexão filosófica, quer de um ponto de vista do pensamento pedagógico, sãos os Mundos 1 e 2 que têm tido prioridade de atenção, faltando muitas vezes desenvolver um olhar mais crítico e fenomenológico sobre o próprio sentido das atividades musicais, a sua função social e humana. Porque se toca o que se toca? Porque se canta o que se canta? Como se toca e canta e porquê? Porque se canta cada vez menos? Como se ensina e aprende música? Que músicas são consideradas dignas de pertencer ao currículo escolar? Que músicas são consideradas parte dos tempos de lazer? Que instrumentos se tocam? Com quem se faz música? Onde se faz música? Qual é o papel da notação? Qual é o papel da tradição oral? Qual é o papel da música e da aprendizagem musical na escola? Estas perguntas muito raramente são feitas, porque encontrar as respectivas respostas não parece fazer parte das preocupações. Saber o que é a música enquanto fenômeno sonoro (Mundo 1) e avaliar o seu impacto na esfera da experiência pessoal e subjectiva (Mundo 2) têm sido os fios da trama histórica, bem como do planeamento curricular e social, escolar, associativo ou cultural. Porém, estes dois “mundos”, são apenas olhares fragmentados sobre uma realidade mais ampla, multifacetada e tridimensional, e a predominância de cada mundo define o próprio conceito de “música”. - 311 -


Pensar a música como um fenômeno sonoro ou acústico é diferente de pensar a música como experiência pessoal, e diferente ainda de pensar a música enquanto “fato social total”, (Mauss, 1925, 2008). Da mesma maneira, quando pensamos o silêncio no seio do paradigma do Mundo 1, situamo-nos na procura do silêncio acústico, do fenômeno da ausência de som ou da ausência de ruído. E muitas vezes esse silêncio não é o silêncio primordial, não é a porta de fronteira entre a realidade dominada pela linguagem verbal e a realidade da experiência artística ou poética. Trata-se de um silêncio de qualidade inferior, uma mera interrupção do ruído e do mundo dos sons, um mundo em que a própria linguagem verbal faz muitas vezes parte desse ruído, um mundo em que não estamos empenhados, individual ou coletivamente, quer dizer, subjetiva ou objetivamente, um mundo que apenas “acontece”, ou nos acontece: Quando a linguagem já não está relacionada com o silêncio ela perde a sua fonte de frescura e renovação e, por isso, algo da sua substância… No mundo moderno a linguagem… emerge do ruído e dispersa-se no ruído… é isso o que o silêncio é hoje; a suspensão momentânea do ruído… A invenção da imprensa, a técnica, a educação obrigatória – nada alterou tanto a humanidade como esta falta de relação com o silêncio… O homem que perdeu o silêncio não perdeu apenas uma qualidade humana, mas a sua própria estrutura global foi alterada. 396

Max Picard, The world of silence, pp. 40-41

Pelo contrário, o silêncio fecundo, aquele que impregna de sentido a linguagem ou a música, é o silêncio que exige empenho 396

Original: When language is no longer related to silence it loses its source of refreshment and renewal and therefore something of its substance.... In the modern world language...springs from noise and vanishes in noise....- that is what silence is today: the momentary breakdown of noise..... Nothing has changed the nature of man so much as the loss of silence. The invention of printing, technics, compulsory education – nothing has so altered man as this lack of relationship to silence.... Man who has lost silence has not merely lost one human quality, but his whole structure has been changed thereby. (Trad. da autora).

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individual ou coletivo. Empenho ou “escuta”. “Ascoltare il silenzio”, como diria Emanuele Ferrari (2013) no título da sua obra sobre o silêncio na música. Um silêncio que rodeia a palavra ou os sons e em que o ouvinte ou os ouvintes se colocam naquilo que poderíamos designar por “modo de ressonância”: Comincia il concerto. La sala è piena, Le luci si spengono, il pubblico tace. Entra il pianista e suona un Notturno di Chopin. Dopo uma giornata passata a casa o al lavoro, da soli o con gli altri, siamo pieni di emozioni, pensieri e ricordi. La musica si spande e fa risuonare le voce che abitano la nostra vita interiore; arriva a tutti, ma dà l’illusione di parlare solo a noi. Ha il tono di una confessione che rivela la nostra stessa anima. Si alimenta della vita interiore, del rumore emozionale che è in noi: le nostre emozioni sono messe in risonanza. (Ferrari, p. 13) 397

Neste sentido, quando falamos de uma corrente expressionista da arte ou da música, na esteira de uma Suzanne Langer (1948, 1954), não se trata de uma perspetiva da arte como “modo de expressar”, como “veículo de expressão”, espécie de “tradução da vida para uma nova esfera”, mas do próprio processo de transformação simbólica da experiência. A arte como uma nova experiência e não como tradução da experiência. Por esse motivo, quer numa experiência individual, quer numa experiência coletiva, o silêncio surge como uma “condição de ressonância” com a realidade dos sons e com a realidade dos outros que partilham a experiência artística. Na verdade, não ouvimos música: somos música. Não tocamos música: somos a própria música que tocamos. Fazemos parte da caixa-de-ressonância da vida individual e coletiva, também através do mundo dos sons, 397

Começa o concerto. A sala está cheia. As luzes apagam-se, o público cala-se. Entra o pianista e toca um Nocturno de Chopin. Depois de um dia passado em casa ou no trabalho, a sós ou com os outros, estamos cheios de emoções, pensamentos e recordações. A música expande-se e faz ressoar as vozes que habitam a nossa vida interior. Chega a todos, mas dá a ilusão de falar só para nós. Tem o tom de uma confissão que revela a nossa própria alma. Alimenta-se da vida interior, do rumor emocional que existe em nós: as nossas emoções são postas em ressonância.

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sintonizando com referentes exteriores de que nos apropriamos, construindo formalmente o modo de organização dos sons de modo a potenciar a sintonia, e experimentando em novos patamares de expressão a própria vida. 3. Considerar que a palavra e a música não dizem nada, se nelas não nos dissermos a nós mesmos A consideração da música como uma realidade sonora objetiva, como uma experiência pessoal e subjetiva ou como um produto coletivo das mentes humanas e experiência partilhada são ângulos de abordagem que assumem cristalizações mais ou menos predominantes na actividade humana e nas organizações sociais. Abeles, Hoffer e Klotman (1995, pp. 123-147) destacam que os fazeres musicais traduzem, por isso mesmo, funções sociais valorizadas por cada tipo de sociedade como mais ou menos relevantes para o seu funcionamento ou organização. Assim, os autores referem diversas “listagens” de fazeres musicais apresentadas na bibliografia tradicional que descrevem “funções sociais” que podem ser identificadas como fatores de influência sobre o tipo de produção musical em cada comunidade. Alan Merriam, por exemplo, apresenta uma lista de dez funções da música (expressão emocional, apreciação estética, diversão, comunicação, representação simbólica, resposta física, adaptação às normas sociais, validação de instituições sociais e de rituais religiosos, contribuição para a continuidade e estabilidade da cultura e contribuição para a integração na sociedade). Kaplan, por seu lado, descreve oito funções sociais da música primordiais (forma de conhecimento, apropriação coletiva, experiência pessoal, terapia, força moral e simbólica, conforto ocasional, indicador de mudança, conector entre o passado e o futuro). Honigsheim reconhece seis funções sociais da música (função cerimonial, diversão, acompanhamento do trabalho, uso doméstico, concertos e função oratória) e, finalmente, Gaston sublinha sete funções (experiência estética, favorecimento do fenômeno religioso, - 314 -


comunicação, expressão emocional, resposta rítmica, prazer, poder grupal), (Abeles, Hofffer e Klotman, 1995, pp. 123-124). Consoante o maior ou menor empenho pessoal necessário à realização das diferentes atividades musicais associadas às mais diversas funções sociais, maior ou menor será o papel do silêncio. É curioso notar que até a predominância de certas actividades musicais numa dada sociedade acaba por moldar a própria linguagem e definir o paradigma subjacente ao conceito de “música”. Em África, a tribo dos xhosas, por exemplo, (povo “banto” do grupo ngumi que habita no extremo sul da África na província sul-africana do Cabo) não formula ideias gerais sobre “o que é a música”. Toda a terminologia musical traduz as próprias atividades realizadas, os próprios fazeres musicais, sem uma objetivação concreta da música enquanto realidade acústica ou sonora, e sem referências mais pessoais ou individualizadas às experiências estéticas subjetivas do ouvinte, performer ou criador musical. A música emerge como uma realidade coletiva, em que os fazeres musicais só fazem sentido enquanto promotores da experiência em grupo, numa clara sintonia (ou ressonância) física e espiritual na acção. Uma acção que é tal, “que nem o pensamento a pensa”, parafraseando Tolentino de Mendonça (2013, p. 16); isto é, que nem o pensamento verbal a define, categoriza ou conceitualiza fora da acção em si mesma: Não existe uma palavra para música, mas existem palavras para designar cantos e para os acontecimentos da comunidade que envolvem canto. Não existe palavra significando simplesmente “cantar”. Existem palavras que significam puxar o canto, seguir o canto, cantar batendo palmas, cantar batendo palmas para os outros (dançarem), dançar com participação no canto. David Dargie, Música de Igreja entre os Xhosas, pp. 65-6

O significado da palavra “música” varia, portanto, consoante a sociedade ou o grupo, e varia também ao longo dos tempos, projetando esse impacto conceitual não apenas no sentido da atividade - 315 -


musical, mas também na própria definôição dos processos educativos que contribuem para perpetuar o fenômeno enquanto patrimônio cultural e social. A palavra “música” em si mesma não tinha, na sua origem grega, um sentido substantivo e exterior a nós próprios, como o que lhe damos hoje nas sociedades ocidentais. Pelo contrário, “música” era uma forma adjetivada de “musa”, uma das nove deusas irmãs que presidiam às artes e ciências. Esta característica verbal sugere uma propriedade das acções e atividades respeitantes à busca da beleza e da verdade. A música tinha um papel tão importante na vida social que, em geral, um homem distinto e educado era chamado de “musical”, enquanto uma pessoa inferior e bruta era simplesmente “sem música”. Esta valorização da arte e da música na educação atingiu o seu auge nos séculos V e IV a. C., embora tivesse sido favorecida por uma concepção científica desenvolvida por Pitágoras já no século VI a. C. Platão (c. 427-347 a.C.) em A República, sublinha várias vezes a ideia da música enquanto meio privilegiado para uma boa educação e desenvolve, na típica forma de diálogo, o conceito que mais tarde viria ser apelidado de “doutrina do ethos”, segundo o qual a música (na sua variedade) tem a capacidade de afetar profundamente o ser e o estado de espírito: Não é, então, por este motivo, ó Glaucon, que a educação pela música é capital, porque o ritmo e a harmonia penetram mais fundo na alma e afectam-na mais fortemente, trazendo consigo a perfeição, e tornando aquela perfeita se se tiver sido educado? E, quando não, o contrário? E porque aquele que foi educado nela, como devia, sentiria mais agudamente as omissões e imperfeições no trabalho ou na conformação natural, e, suportando-as mal, e com razão, honraria as coisas belas, e, acolhendo-as jubilosamente na sua alma, com elas se alimentaria e tornar-se-ia um homem perfeito; ao passo que as coisas feias, com razão as censuraria e odiaria desde a infância, antes de ser capaz de raciocinar, e, quando chegasse à idade da razão, haveria de saudá-la e reconhecê-la pela sua afinidade com ela, sobretudo por ter sido assim educado. (Platão, 1972, p. 133).

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Curiosamente, numa leitura intertextual, podemos compreender que Platão se refere à capacidade da música educar o homem, não tanto apenas através dos sons em si mesmos (e A República é pródiga em referências aos supostos impactos emocionais concretos de certas escalas musicais, como a frígia ou a dórica), mas através do silêncio interior da alma que os sons podem potenciar, da quietude das preocupações do mundo que eles podem originar. Isso mesmo é tornado patente numa outra obra, Fedro, onde Platão criticou, pela boca de Sócrates, a própria escrita, como uma invenção perversa que colocou o pensamento fora do interior do homem, fora da interioridade que o gerou. Mutatis mutandis, a materialização sonora do pensamento musical, afastá-lo-á da pureza original da sua geração, do seu sentido. Esta concepção da materialização das diferentes formas de pensamento humano (verbal, ou musical) como um processo de contaminação do “pensamento” original no contato com a realidade do mundo, sublinha a fronteira entre uma interioridade silenciosa e uma exterioridade ruidosa, entre o silêncio como possibilidade de “iminência do todo” (para usar a feliz expressão de Merleau-Ponty, 1960, p.51) e o som (palavra ou música) como possibilidade de projeção desse silêncio interior e anterior, ou de ruína mal refractada dessa totalidade. Na sua obra “La Musique et l’Ineffable”, Jankélévitch (1961, pp. 163-164) contempla a própria vida humana como um hiato entre o silêncio que antecede o nascimento e o silêncio da morte. A música surge, durante a vida, no meio do ruído do mundo, como a possibilidade de abrir um corte para esse silêncio existencial, surge ela mesma como semelhante à vida, no seu equilíbrio entre esses profundos silêncios que lhe são necessários para se investir de sentido. No entanto, a vida, ou a música, não são, segundo Jankélévitch, um intervalo que possa ser visto como um espaço entre dois silêncios opostos ou simétricos, uma vez que a noção de simetria não se pode aplicar sobre uma linha temporal de duração contínua e sem retorno. A “duração encantada” da música e da vida impõem-nas como realidades permanentemente paralelas e coincidentes ao silêncio - 317 -


primordial, podendo manifestar-se ou não como irrupções, ou erupções, desse mesmo silêncio: La musique tranche sur le silence, et elle a besoin de ce silence, comme la vie a besoin de la mort et comme la pensée, selon le Sophiste de Platon, a besoin du nonêtre. La vie, toute semblable à l’oeuvre d’art est une construction animée et limitée qui se découpe dans l’infini de la mort; et la musique, toute semblable a la vie, est une construction mélodieuse, une durée enchantée, une très éphémère aventure, une brève rencontre qui s’isole entre commencement et fin dans l’immensité du non-être. On peut distinguer à cet égard un silence antécédent et un silence conséquent qui sont l’un à l’autre comme l’alpha et l’oméga, Le silence-avant et le silence-après, ils ne sont pas plus “symmétriques” entre eux que le commencement et la fin, la naissance et la mort ne sont symmétriques dans un temps irréversible: car la symmétrie est elle-même una image spatiale. 398

Nesse sentido, há que concordar com Luisa Morozzi (1999, p. 95) quando se refere à música como “metáfora do silêncio”, e talvez mesmo acrescentar que, por isso mesmo, a música será também uma “metáfora da vida”, dessa vida ampla que se estende silenciosa desde antes do nascimento e para além da morte, como um magma. Não admira, portanto que, desde sempre, a música tenha tido uma relação próxima com a procura espiritual do sentido da vida, pela possibilidade de contribuir (de forma metafórica, e de forma real na coincidência vivida da duração do tempo), para essa religação/religião 398

A música corta o silêncio, e ela precisa desse silêncio como a vida precisa da morte e como o pensamento, segundo o Sofista de Platão, precisa do não-ser. A vida, em tudo semelhante à obra de arte, é uma construção animada e limitada que se recorta no infinito da morte; e a música, em tudo semelhante à vida, é uma construção melodiosa, uma duração encantada, uma aventura muito efémera, um breve encontro que se isola entre o princípio e o fim na imensidade do não-ser. […] Pode distinguir-se, a este respeito, um silêncio antecedente e um silêncio consequente que são, um e outro, como o alfa e o ómega. O silêncio-antes e o silêncio-depois não são mais “simétricos” entre eles do que o princípio e o fim, o nascimento e a morte são simétricos num tempo irreversível: porque a simetria é ela própria uma imagem espacial. (Tradução da autora)

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entre vida e morte, exterior e interior, som e silêncio, eu e o outro desconhecido, Vida Eterna, que permanece antes e depois, alfa e ômega. A literatura espiritual da teologia monástica manifesta uma coincidência nesta procura de uma religação não verbal, ou não intelectual à experiência de Deus, do silêncio de Deus, alicerçando-se numa perspectiva de sintonia vibrátil com o amor e a bondade, e não tanto com as especulações formais e verbais da teologia escolástica. É o que se verifica, por exemplo, num pequeno tratado inglês, anônimo, do século XIV intitulado “The Cloud of Unknowing” (A Nuvem do Não-Saber, editado em Portugal na Colecção Teofanias da Editora Assírio e Alvim, com prefácio de José Mattoso), e no qual se exorta à quietude do pensamento para encontrar a Deus, no silêncio: Eleva o coração para Deus, com humilde impulso de amor, e busca-O a Ele mesmo, não aos seus dons. Além disso, detesta pensar noutra coisa que não seja Ele mesmo. Deste modo, nada actue na tua inteligência, nem na tua vontade, senão o próprio Deus. (Anónimo do Séc. XIV, p. 33).

O silêncio emerge, assim, na vida da humanidade, não como uma realidade física ou acústica, não como uma pausa entre os sons ou um hiato na música, não como uma “substância”, como David Le Breton, mas antes, como esclarece o antropólogo francês, “como uma relação”: “O silêncio une e separa; trata as feridas ou aviva-as; revela uma informação ou esconde-a; assinala um desacordo ou um acordo, indica o vazio ou a atividade” (Le Breton, 1997, p. 77). O silêncio entre a pergunta do rapaz curioso ao velho soldado e a resposta que obteve (cf. poema de Edgar Lee Masters apresentado no início deste capítulo) testemunha este silêncio-como-relação, um “silêncio antifonal” capaz de entrar em diálogo com o silêncio do inefável, capaz de uma compreensão muito mais profunda do que a que poderia ser expressa em palavras, um silêncio-bondade que une, trata as feridas e revela uma informação, escondendo-a:

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I have known the silence of the stars and of the sea, And the silence of the city when it pauses, And the silence of a man and a maid, And the silence for which music alone finds the word, And the silence of the woods before the winds of spring begin, And the silence of the sick When their eyes roam about the room. And I ask: For the depths Of what use is language? A beast of the fields moans a few times When death takes its young, And we are voiceless in the presence of realities – We cannot speak. 399

Porque há silêncios e silêncios e, como diz Masters neste início do poema do qual analisamos algumas estrofes, há o silêncio das estrelas e do mar, o silêncio para o qual apenas a música encontra a palavra, e há o silêncio de ficar sem voz na presença de realidades que não conseguimos explicar. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABELES, HOFFER & KLOTMAN (1995). Foundations of Music Education. New York: Schirmer. ANÓNIMO DO SÉC. XIV (2006). A Nuvem do Não-Saber. Lisboa: Assírio e Alvim. CASSIRER, Ernest (2001). Filosofia das Formas Simbólicas – A Linguagem. São Paulo: Martins Fontes.

399

Eu conheço o silêncio das estrela e do mar/ E o silêncio da cidade quando pára/ E o silêncio de um homem e de uma jovem/ E o silêncio para o qual apenas a música encontra a palavra/ E o silêncio da floresta antes dos ventos da primavera começarem/ E o silêncio dos doentes/ Quando os seus olhos vagueiam pelo quarto./ E eu pergunto: Para que uso profundo é a linguagem?/ Um animal do campo ruge algumas vezes/ Quando a morte lhe leva a cria/ E nós ficamos sem fala na presença de realidades – Que não conseguimos explicar.

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CHOMSKY, Noam (1965). Aspects of the Theory of Syntax. Cambridge, MA: MIT Press. DARGIE, Davie (1989). “Música de Igreja entre os xhosas”. In Cone, Burnim, Stone & Gelineau (Eds), (1989). Música e Experiência de Deus. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, pp. 65 [209] – 73 [219]. FERRARI, Emanuele (2013). Ascoltare il Silenzio: Viaggio nel Silenzio in Musica. Milano: Mimesis Edizioni. GADAMER, Hans-Georg (1997). Verdade e Método. Petrópolis, RJ: Editora Vozes. JANKÉLÉVITCH, Vladimir (1961). La Musique et l’Ineffable. Paris: Librairie Armand Colin. KEEVES, John (1997). The methods of educational inquiry. In John Keeves. Educational research, methodology and measurement : An International Handbook (pp.1-7). London : Cambridge University Press. LANGER, Suzanne (1954). Philosophy in a New Key. A Study in the Symbolism of Reason, Rite and Art. Cambridge: The New American Library. LE BRETON, David (1997). Do Silêncio. Lisboa: Edições Piaget. MASTERS, Edgar Lee (2015). Songs and Satires. Online Editor: Createspace. MAUSS, Marcel (2008). Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70. MENDONÇA, Tolentino de (2013). A papoila e o monge. Lisboa: Assírio e Alvim. - 321 -


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A

República.

Lisboa:

Fundação

Calouste

SAUSSURE, Ferdinand de (1995). Curso de Linguística Geral. Lisboa: D. Quixote.

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CAPÍTULO 10 PARA UMA MITOCRÍTICA AFRICANA DO SILÊNCIO INQUISITORIAL DESMITOLOGIZADOR Carlos André Cavalcanti 400 Silencio Atotô Silêncio, atotô..atotô..atotô ooo Suas flores sagradas são deborô Que limpam meu corpo e tiram a minha dor Sua palha divina é seu ajê, Orixá poderoso obaluaê Silêncio atotô, atotô, atotô Senhor da terra, Senhor da vida, Senhor da chaga, Senhor da partida… Seu nome santo Me faz refletir Da vida o que levo E o que deixo aqui, Silêncio, atotô, atotô, atotô Canto da Umbanda para o Orixá Obaluaê

SEGREDO: UM SILÊNCIO CIVILIZATÓRIO? Em busca de um silêncio. Não o silêncio interior do homem ocidental moderno, acalanto desesperado, antídoto contra a histeria da

400

Ver Lista de Colaboradores.

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inflação de palavras e símbolos da contemporaneidade. Tampouco sua aparente continuidade: o silêncio interior por motivação iniciática. Muito menos o silêncio contemplativo e introspectivo. Também não o silêncio passivo diante da exacerbação tagarela dos meios de comunicação do nosso tempo.... Então, de que silêncio falamos quando tratamos de Inquisição Moderna? Não basta dizer que trataremos do silêncio imposto ao outro, o que se dá por evidente em se tratando de uma instituição inspirada e inspiradora da intolerância religiosa. Não, pois seria pouco e superficial, ainda que pertinente. O silêncio inquisitorial atende pelo nome de Segredo do Processo, teologicamente nasce do segredo em confiança oferecido ao sacerdote pelo fiel no confessionário. O silêncio inquisitorial é parte dos contundentes modelos de empoderamento clerical imanente, que acabaram sendo culturalmente adotados como “naturais” do cristianismo, quando não são. Surgidos – tais modelos – ou consolidados com as grandes reformas do século XIII (Durand, 2009), antecessoras das reformas dos séculos XVI/XVII e que trouxeram consigo a própria inquisição, as universidades cristãs e a clausura feminina, por exemplo. Mesmo assim ou por isso mesmo, é contraditorial. Ora institucional, ora cosmogônico. O silêncio inquisitorial institucionalizado descarta ou submete petulantemente o silêncio obsequioso dos eremitas e mesmo as regras tendencialmente mundanas e um tanto fixadas numa moral genitálica do silenciamento coletivo dos cenobitas. Sua tradição está em Kronos muito mais que em Kayrós. A hegemonia é do tempo histórico do homem no exercício do poder. Este formato do silêncio inquisitorial foi ato de perseguição à magia, à imagem e ao mito. Os inquisidores foram, no tempo longo, grandes desmitologizadores e promotores do desprezo dos cristãos “cultos” contra as crenças e vivências presentes na Cultura Popular e nas religiões nãos cristãs. É antes do poder mundano que estamos falando quando analisamos esta faceta imanente do silêncio inquisitorial. Se retirarmos da palavra “civilizatório” qualquer indução de obrigatória positividade relativa a valores admiráveis do tipo “bem

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X mal”, teremos o fio condutor do silêncio inquisitorial tribunalício e de seu veio intolerante: O segredo foi sempre o nervo vital da Inquisição. Era escrupulosamente guardado por seus responsáveis, e duramente castigados aqueles que o quebravam. O homem que emergia dos recessos dos edifícios inquisitoriais fora testemunha, via de regra, de muitos dos procedimentos do Tribunal, vira a muitos, ouvira ou soubera de muita coisa. Estava pois obrigado, como os oficiais do Santo Ofício, a manter o segredo. Para reforçar sua vontade, ameaçavam-no de ser chamado à responsabilidade, em caso de perjúrio. (Siqueira, 1978, pág. 232).

O silêncio/segredo inquisitorial, porém, privilegiou a autoridade hierárquica “deste mundo”. Era imposto com determinações jurídicas e/ou judiciais: 1- O anonimato dos acusadores e o resguardo das confissões. O réu e seu procurador jamais saberiam a identidade dos seus acusadores, que era preservada pela rigidez da conduta da Mesa do Santo Ofício. Por outro lado, o conteúdo das confissões do réu estava igualmente protegido pelo mesmo princípio do segredo, seguindo a tradição da inviolabilidade da confissão. Esta proteção, entretanto, ruiria na leitura dos processos nos autos-de-fé, pois julgava-se o ato pedagógico coletivo superior aos interesses ou às reservas individuais uma vez que houvesse uma condenação de ato pretensamente cometido publicamente; 2- A reserva dos Autos do Processo. Os Autos escritos do processo só eram acessíveis ao inquisidor, aos membros da mesa e ao notário. O réu não as conheceria; 3- A criminalização da fala do réu após a liberdade. Como a imensa maioria dos réus inquisitoriais recebia penas que permitiam o retorno ao convívio social, ficavam - 325 -


impedidos de falar sobre qualquer fato sucedido enquanto estiveram nos cárceres do Santo Ofício. SE não cumprissem esta determinação de silêncio absoluto, seriam postos em novo processo como reincidentes impertinentes (culpa de quebrar segredo do Santo Ofício), cuja gravidade seria bem maior e 4- A obrigatoriedade do segredo pelos servidores do Tribunal. A honra inquisitorial por juramento regimental feito quando da chegada como servidor, era um valor central na pertença ao Santo Ofício da Inquisição. Parte deste honorabilidade era garantida na seleção dos que nele atuariam. Deviam ser homens discretos e confiáveis. Absolutamente silenciosos quanto aos assuntos do tribunal uma vez fora dele. Obedecedores do segredo! O silêncio público absoluto sobre o que ocorria dentro do tribunal era a quarta pilastra de sustentação deste segredo inquisitorial. Os regimentos inquisitoriais buscavam ordenar estes princípios, como neste trecho documental do Regimento de 1640: Na Inquisição se haverão com tal moderação em tudo, e com tanta gravidade, que possam aos outros ministros aprender deles o modo com que se devem tratar; escusarão porfias nas matérias, que não tocam ao S. Ofício, e nas coisas, que em serviço dele houverem de fazer, serão conformes quanto lhe for possível; e acontecendo entre eles alguma inquietação ou diferença, a terão em segredo, e nos darão conta para mandarmos prover no caso como for justiça. (Regimento Inquisitorial de 1640, Título III - Dos Inquisidores. In: Siqueira, 1996, p.702)

O segredo, portanto, faz do próprio grupo-inquisição (Carvalho, 1987, pág. 67) um grupo socialmente distinto em seu contexto histórico. Depositários primeiros do silêncio misterioso, seus membros em sociedade ganhavam um extraordinário poder simbólico. O Santo Ofício preservava com muito cuidado este aspecto. Sonia - 326 -


Siqueira (1978, pág. 163) nos informa sobre um interessante caso de recusa de um colono da Bahia que bebia demais e que, ao beber, não guardava o devido silêncio: Francisco Xavier de Moraes, da Bahia, foi inabilitado por “não ser capaz de servir ao Santo Ofício em matéria de segredo por ser homem que se embebeda, de maus procedimentos, vida e costume desacreditador (sic) de casas honradas, concubinado, introduzindo a concubina na assistência de sua mulher. Pobre sem cabedal algum porque o que lhe deram em dote já o dissipou com suas extravagâncias e de tal sorte vive que já lhe deram um tiro, de que ficou ferido e de presente se retirou a mulher para casa de seus pais”. Tudo isso disseram sete testemunhas sobre o habilitando.401

Esta ambiguidade entre o imanente e o transcendente, entre a imposição do silêncio pelos segredo do processo imposto pelo clero e a vivência do silêncio pela conversão profunda para a Sagrada Palavra numa vida interior intensa, não é de todo inconsciente para os contemporâneos da inquisição, seus partícipes: Dúvidas quanto à validez da autoridade e da hierarquia deixavam entrever as fermentações do racionalismo e do individualismo, a sedução do primado do particular sobre o universal. A razão individual exaltada levava os indivíduos mais facilmente a constituírem-se em árbitros dos conhecimentos. Mesmo daqueles que proviessem de fontes autorizadas. O Pe. Francisco Pinto Doutel, por exemplo, repreendido pelo Visitador de Pernambuco por não se ter conformado com o que dizia o Frade João Seixas, carmelita, pregador e letrado, objetou que não tinha consciência que o frade fosse muito letrado, tendo para si que seria muito duro que Deus cerrasse as portas da misericórdia aos penitentes ainda que prescritos. Achara melhor, portanto, optar por suas próprias idéias sobre a predestinação (Siqueira, 1978, pág. 15).

401

Id. maço 137, proc. n.º 2058. ANTT.

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Entretanto, o silenciamento imposto pelos regimentos e processos inquisitoriais carrega também, ainda que hegemonizada e subestimada, a rica cosmogonia cristã do perdão através da confissão e do arrependimento. A intimação simbólica e mítica para esta “inquisição epifânica” já estava há tempos impregnada na alma do povo. Vinha de um cristianismo comunitário ainda com o aroma doce do Movimento de Jesus. O mitologema que representa esta intimação é a misericórdia: Aconteceu num dia destes, ter ido uma moça ignorante à roça trabalhar, e começando a trabalhar, apareceu-lhe uma dor de barriga tão grande que teve logo de voltar à casa. Entrando em casa disseram-lhe que era dia santo. Achando-se culpada de ter ido à roça, foi logo a um Padre pedindo-lhe que rogasse a Deus por ela, que Deus usaria de misericórdia com ela, pois o que fizera fora ignorantemente Ex illa hora sanata est.402

Na linguagem, há uma relação léxica muito íntima entre silêncio e segredo, como nos mostra o mestre Alberto Filipe Araújo: “O étimo latino ‘silentium’ pertence à mesma família lexical do verbo ‘sileo, -es, -ere, silui’ (= calar [-se], estar ou ficar calado, não dizer palavra...), silenda, orum (= coisas que se devem calar e preservar, mistérios, segredos...), silentiosus, -a, -um (= silencioso), silesco, -is, -ere (= ficar em silêncio, sossegar-se, acalmar-se), consilesco -is, -ere (= guardar silêncio, calar-se)..., do particípio presente ‘silens, -tis’ (= silente, que não fala), sendo de sublinhar que o plural «silentes» designa, em registo poético, «os mortos», ou seja, aqueles que, regressados ao seio tumular de Deméter, deixaram de falar para sempre...” (Araújo, 2018, p. 22).

Na linguagem, como no fundamento fundante misericordioso do cristianismo, também se mostra a confluência que aproxima o fiel CARTAS DOS PRIMEIROS JESUÍTAS. “Carta do Pe. João de Azpilcueta aos Padres e Irmãos de Coimbra.” Bahia, 28/3/1550. t. I, p. 179 402

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dos atos inquisitoriais. Em palavras sem arrodeios, podemos afirmar que o silêncio contraditorial da inquisição, ora transcendente ora imanente, faz uso do celestial para ganhar os corações e as mentes para os atos mundanos de autoridade e intolerância dos “homens da fé”. As massas seguem e amam os inquisidores, com raras exceções. Nesta história vivida no tempo de Cronos, as massas não se revoltam contra o tribunal. Antes, pelo contrário. Como afirma Jean Baudrillard para o século XX, mas com aplicação cosmopolita: Na representação imaginária, as massas flutuam em algum ponto entre a passividade e a espontaneidade selvagem, mas sempre como uma energia potencial, como um estoque de social e de energia social, hoje referente mudo, amanhã protagonista da história, quando elas tomarão a palavra e deixarão de ser a “maioria silenciosa” - ora, justamente as massas não têm história a escrever, nem passado, nem futuro, elas não têm energias virtuais para liberar, nem desejo a realizar: sua força é atual, toda ela está aqui, e é a do seu silêncio. Força de absorção e de neutralização, desde já superior a todas as que se exercem sobre elas. Força de inércia especifica, cuja eficácia é diferente da de todos os esquemas de produção, de irradiação e de expansão sobre os quais funciona nosso imaginário, incluindo a vontade de destruí-los. (Baudrillard, 1985, pág. 5).

Precisamos confluir os aspectos históricos – no sentido de uma História convencional – e míticos imaginários deste silêncio inquisitorial tão contraditorial quanto o trajeto cultural do próprio Ocidente. O aspecto histórico se pode dividir em dois cenários: entre o jurídico-cultural, na busca de classificar as formas de Intolerância e o clerical, nas noções da própria mentalidade clerical dentro da inquisição. O aspecto imaginário bebe da análise durandiana do imaginário lusitano. Vamos primeiro aos três cenários, para conhecelos, e, depois, às possibilidades mitocríticas.

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CONTEXTO HISTÓRICO: AS FORMAS DA INTOLERÂNCIA O aspecto do silenciamento como componente do segredo inquisitorial, entretanto, é uma inovação a mais nos estudos inquisitoriais da História das Religiões. Como o tema do silêncio ainda parece novo para a historiografia das inquisições, necessita, então, de uma ação aproximativa a partir das noções – ou conceitos, se preferir – das quais dispomos hoje na literatura científica para a sua análise. É o que buscamos fazer aqui ao trazer, além de uma proposta de trajeto científico, algumas possibilidades outras para estudos que daqui – quiçá! – se depreendam! Ousamos intentar um texto seminal diante do ineditismo temático na historiografia. Para isso, buscamos o contexto no qual se pode conceituar o sentido do segredo silenciador dos inquisidores, hegemonicamente voltado para diluir e racionalizar as imagens que compunham as constelações de valores e mitos dos “inimigos da fé”. A Santa Inquisição foi parte e não contraponto do processo de consolidação do racionalismo como visão de mundo hegemônica no Ocidente!! O racionalismo dos inquisidores tem base teológica no tomismo e na contrarreforma, mas também tem longa tradição na racionalização do direito positivo segundo fins desde meados da Idade Média! A antiga justiça popular, originalmente um procedimento expiatório entre os clãs, é por toda parte arrancada de sua primitiva irracionalidade formalista pela ação do poder principesco e magistrático (proscrição, imperium) e, eventualmente, do poder sacerdotal organizado, sendo ao mesmo tempo fortemente influenciado por estes poderes o conteúdo do direito. Essa influência difere de acordo com o caráter da dominação. Quanto mais o aparato de dominação dos príncipes e hierarcas era de caráter racional, administrado por “funcionários”, tanto mais tendia sua influência (no ius honorarium e nos meios processuais pretórios da Antiguidade, nas capitulares dos reis francos, nas criações processuais dos reis ingleses e do lorde Chanceler, no procedimento inquisitorial eclesiástico) a dar à justiça um caráter racional quanto

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ao conteúdo e à forma (ainda que racional em sentidos diversos), a eliminar meios processuais irracionais e a sistematizar o direito material, e isto significava sempre também: a racionalizá-lo de alguma forma (Weber, 1999, p. 100. Grifo nosso em negrito).

Desta racionalização do direito pelos inquisidores, nasceu também o refinamento das práticas processuais e culturais de Intolerância Religiosa. Partimos, neste pequeno ensaio, da constatação de que não se pode nem se deve simplificar todas as formas de exclusão e perseguição como se fossem um único fenômeno histórico ou social. Por exemplo, entre as penas aplicadas pelo fundamentalismo muçulmano dos nossos dias e a Inquisição espanhola do século XV, vão diferenças que se há de respeitar para a devida compreensão de ambos os fenômenos. Buscamos, porém, o elo maior ou, se preferirem, as correntes mais profundas deste movimento das bacias hidrográficas do imaginário, onde a semântica das novas constelações míticas vai criando novas correntes e aos poucos sobrepujando as correntes da formação anterior, que será hegemonizada. Neste sentido, levamos em conta que a intolerância se estende ao longo da História nas mais variadas formas e razões. Fosse a intolerância algo binário ou perfeitamente antagônico a um conjunto de valores inspirados pela razão humana/humanista ou substantiva, para citar terminologia weberiana consagrada (Rouanet, 1987, p. 12), seu combate seria fácil e os argumentos para a controvérsia teriam um poder hercúleo. Mas não é isso que ocorre. Com o objetivo de captar esta complexidade, propomos uma classificação que busca abarcar este amplo leque das incursões da/na intolerância: a) Intolerância Guerreira: Forma imemorial se admitirmos a cronologia da h(H)istória dos historiadores. Baseia-se na busca direta das riquezas do adversário. Comum nas guerras, pode envolver as mais diversas assertivas, justificá-las e dar-lhes sustentação moral e histórica. Mas - 331 -


seu objetivo central é a pilhagem e o botim, com a consequente eliminação do perdedor por escravidão ou assassinato. Forma tendencialmente menos complexa que tende a ter tempo histórico mais curto que as demais, mas não é uma forma primitiva que antecedeu a “evolução” da intolerância, posto que está, de certa forma, em todos os atos intolerantes deste homo sapiens cujos impulsos de primata nos forjam tanto quanto “o social”. b) Intolerância Civilizatória: Para compreendê-la é preciso retirar o juízo de valor da palavra civilizatória, pois, ao utilizá-la, nós não a conceituamos como melhor nem superior. A Intolerância Civilizatória busca a supressão das diferenças pela imposição de um paradigma que, em sua lógica interior, se considera e se diz superior e que só pode ser assim analisado pelo historiador em função de valores autoatribuídos pelo próprio agente histórico. A submissão do vencido ocorre aqui por sua inclusão/conversão para uma outra ordem mental e valorativa – diversa e oposta à sua original –, onde aqueles que ingressam no “novo” quadro de valores são tidos eles mesmos como o “butim” alcançado. É uma intolerância escatológica, pois o seu projeto “histórico” determina sua própria superação, tendo em vista que o objetivo primordial é a conversão de todos os homens aos preceitos hegemônicos. Ao chamar à obrigatoriedade disciplinar pessoas que fazem parte do mesmo grupo ou do mesmo universo políticoreligioso, a intolerância busca legitimar-se no quadro do medo obsidional. Este medo pétreo, coriáceo, já nasce sob o símbolo do poder mundano do homem. A obsidiana era a pedra da qual os antigos romanos faziam a coroa para homenagear os seus generais que conseguiam sair do temerário cerco do inimigo e voltar para Roma com suas legiões ainda ativas. O medo obsidional, portanto, é o medo de quem está no limite do desespero - não tem mais nada a perder que não a própria vida. Deste desespero vem a imposição do silêncio civilizatório inquisitorial, pois todo o imaginário inquisitorial gira em - 332 -


torno da autovitimização de uma fé acuada expressa em seus santos mártires. Os processos inquisitoriais obedecem à lógica desta forma de intolerância, posto que todos eles devem terminar – de uma forma ou de outra – na metáfora escatológica da Palavra de Deus vitoriosa com o silêncio absoluto dos subjugados, que devem abjurar dos seus erros e sobre eles fazerem silêncio para sempre. c) Intolerância Totalitária: Em princípio típica do século XX, a Intolerância Totalitária marcou os regimes de força do período com a aplicação de um valor inverso ao da Intolerância Civilizatória. A coesão social, neste caso, é tentada através da vivência de antagonismos irreconciliáveis, onde não se privilegia a conversão nem qualquer forma da catequese. Ao contrário da anterior, esta forma de Intolerância é tendencialmente unitarista e sua “ideologia” é a da própria exclusão física do outro. Ao contrário da Intolerância Guerreira, não se contenta com a pilhagem e o butim, pois estabelece políticas de mercado e de produção para o território geográfico e/ou humano do adversário vencido. Está ligada ao mercado e a reprodutibilidade da produção capitalista moderna. No Nazismo, por exemplo, nunca ficou totalmente claro se haveria um “projeto de sociedade” que fosse possível sem a guerra, sem a censura, sem os guetos, sem a mão-de-obra barata (militarizada com baixos soldos nos países do eixo e escravizada entre os inimigos irreconciliáveis) e sem a rígida disciplina formal. Os dois últimos tipos de intolerância são teleológicos, pois, ao se proporem realizar um “projeto”, encaminham-se também para tentar “congelar” a h(H)istória, buscando dominar o tempo e negar a morte. Na Inquisição, busca-se negar a história com o poder da Cristandade. No nazismo, tenta-se negar a história com o “império ariano de 1.000 anos”. Em ambos, a imposição ao outro de um silenciamento autodenominado como salvífico, purificador e civilizatório. Este, o silêncio inquisitorial. A um só tempo civilizatório e intolerante. Aliás, intolerante porque civilizatório. A dinâmica - 333 -


tectônica das contradições dos grupos humanos, de maneiras diversas nega esta paralisia, mas convive – às vezes longamente – com seu mito hegemônico. Entre os séculos XIII e XIX conviveu em diversos formatos e espaços com o silêncio civilizatório das várias formas de inquisição que a cristandade – católica ou protestante – conheceu. O silenciamento inquisitorial tem um poderoso apelo moral, pois busca também silenciar o ranger das camas e as súplicas de amores não reprodutivos. Neste sentido, ajuda a carrear as energias vitais para outros campos e afazeres. O que é sublimado num aspecto de eros, é transformado em ações para outras facetas da vida, inclusive a religiosa. Desvendar possíveis estruturantes que determinam o estabelecimento das ações intolerantes seria papel de uma ciência metanóica que permitiria, pelo menos, a caracterização clara do processo. Por enquanto, nem este, que pretensamente seria talvez um instrumento de escolha para os indivíduos, está desvendado. No caso da Inquisição, o fenômeno do medo obsidional será caracterizado a seguir como um conjunto mitologêmico detonador do processo. Como antecessora do processo de racionalização e desmitologizamento – desmagificação, talvez – que marca o mundo contemporâneo, a Inquisição foi veículo da expressão do medo. Levemos em conta todos os significados amplamente conhecidos para o termo obsidiar: cercar, espiar, molestar e causar obsessão. Entre os séculos XIV e XVII, nos mostra Delumeau (1989, p. 32), houve um “acúmulo de agressões” contra as populações do Ocidente. Nas palavras e imagens da época, vemos o testemunho do medo de uma civilização que se sentiu cercada e molestada. O próprio historiador francês teve essa percepção: Constituiu-se ‘um país do medo’ no interior do qual uma civilização se sentiu ’pouco à vontade’ e povoou de fantasmas mórbidos. Essa angústia, prolongando-se, arriscava-se a desagregar uma sociedade, assim como pode fender um indivíduo submetido a estresses repetidos. Podia provocar fenômenos de inadaptação,

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uma regressão do pensamento e da afetividade, uma multiplicação das fobias; introduzir uma dose excessiva de negatividade e de desespero. A esse respeito é revelador ver com que insistência livros piedosos e sermões combateram entre os cristãos a tentação do desencorajamento nas proximidades da morte: prova de que essa vertigem do desespero realmente existiu numa escala bastante ampla e de que muita gente experimentou um sentimento de impotência face a um inimigo tão temível quanto Satã.” (...) “Desmascarar Satã e seus agentes e lutar contra o pecado era, além disso, diminuir sobre a terra a dose de infortúnios de que são a verdadeira causa. Essa denúncia se pretendia, pois, liberação, a despeito – ou melhor por causa – de todas as ameaças que fazia pesar sobre os inimigos de Deus desentocados de seus esconderijos. Numa atmosfera obsidional, a Inquisição apresentou tal denúncia como uma salvação. Esta orientou suas temíveis investigações para duas grandes direções: de um lado, para bodes expiatórios que todo mundo conhecia, ao menos de nome – heréticos, feiticeiras, turcos, judeus, etc. –; de outro, para cada um dos cristãos, atuando Satã, com efeito, sobre os dois quadros, e podendo todo homem, se não tomar cuidado, tornar-se um agente do demônio. Daí a necessidade de um certo medo de si mesmo (Delumeau, 1989, p. 32).

Para prosseguirmos em nossa trilha pelo mundo inquisitorial, devemos delimitar mais precisamente o significado das noções/conceitos de Pedagogia do Medo e Pedagogia do Desprezo. Tanto na terminologia quanto na superficialidade com que refletem a História, estes conceitos são, inicialmente, de uso apenas formal, posto que aplicam para a Inquisição portuguesa a noção de fundo que está contida nos valores civilizacionais do Tribunal da Fé e nos mitologemas durandianos que apresentamos. Pensamos vencer um certo “contentamento com o superficial” que marca a História. Jean Delumeau tentou fazê-lo lançando mão de vetores da psicologia. Para o historiador francês, o medo pode ser compreendido “do singular ao coletivo”, da psicologia individual ao quadro conjuntural da sociedade:

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Ao mesmo tempo manifestação externa e experiência interior, a emoção de medo libera, portanto, uma energia desusada e a difunde por todo o organismo. Essa descarga é em si uma reação utilitária de legítima defesa, mas que o indivíduo, sobretudo sob o efeito de agressões repetidas de nossa época, nem sempre emprega com discernimento (Delumeau, 1989, p.23).

A Pedagogia do Desprezo é uma forma histórica de desmitologizamento. Por Pedagogia do Desprezo entendemos a mentalidade inquisitorial que, sob influência da Ilustração iluminista, substituiu o medo de bruxa e de hereges por uma consciente e programada reação de ridicularização das mesmas crenças quando encarnadas em bruxas, feiticeiras e hereges. Por desmitologizamento, compreendemos o ato cultural que busca um “mundo sem mitos”, exacerbado pela soberba do racionalismo e pela ilusão empiricista. Além de apresentar detidamente os conceito/noções de Pedagogia do Medo – desenvolvido por José Carlos de Paula Carvalho – e sua congênere Pedagogia do Desprezo – conceito/noção de nossa autoria – , encontramo-nos aqui também com quatro grandes grupos míticos lusitanos desvendados por Gilbert Durand e com a argumentação de Jean Delumeau em História do Medo no Ocidente (1989), onde o historiador francês desenvolve a noção de uma Cristandade ameaçada, pressionada externamente pelos muçulmanos e internamente pelas heresias. Em Portugal, o medo obsidional e a ação inquisitorial encontraram ressonância na estrutura do imaginário lusitano e seus mitologemas, que marcaram a identidade mais profunda do Império Português. CONTEXTO CLERICAL: AS PEDAGOGIAS DO MEDO E DO DESPREZO O desmitologizamento de valores e o fortalecimento de uma certo racionalismo de base teológica que a faceta institucional das ações inquisitoriais – inclusive o silenciamento imposto aos pretensos adversários – provocou no Ocidente, ainda não foi devidamente “mensurado”. A periodização que utilizamos para analisar as culpas - 336 -


de práticas mágicas e outras nos processos do Tribunal português com réus do Brasil é dividida em duas fases conceitualmente distintas que buscam abarcar este processo conceitualmente através das noções de Medo e de Desprezo. Elas estão baseadas nas mudanças da mentalidade clerical acerca das culpas inquisitoriais. Tais mudanças estão refletidas nos processos, na jurisprudência e nos regimentos inquisitoriais. Na primeira fase, que datamos, ainda que de forma maleável, da fundação do Santo Ofício até o Regimento de 1640, a ação inquisitorial norteou-se pelo princípio que José Carlos de Paula Carvalho chamou de Pedagogia do Medo (Carvalho, 1987). A esta Pedagogia corresponderam Narrativas do Medo, das quais sobreviveram algumas. No período seguinte, que vai de 1640 até a supressão do Tribunal, a ação inquisitorial foi paulatinamente adotando outro princípio, que chamamos de Pedagogia do Desprezo, conceito didático que nós criamos para compreender as mudanças havidas no período – tempo longo – imediatamente posterior à era do medo. A Pedagogia do Medo tem raízes na tradição inquisitorial medieval. José Carlos de Paula Carvalho dedicou ensaio ao tema Inquisição apontando este e outros caminhos. Antes que outros autores o fizessem com continuidade acadêmica e aplicabilidade em outras pesquisas, ele lançou, no I Congresso Internacional sobre Inquisição (Lisboa e São Paulo, 1987), a noção de Pedagogia do Medo. Após argumentação semelhante a esta que fazemos, onde afirma que “todo o alicerce da lógica tomista-aristotélica serve ao ’colonialismo cognitivo’ da/pela cristandade ocidental via Inquisição” (Carvalho, 1987, p. 65), o autor indica que a ação dos homens da fé ocorre: “(...) pela instauração de uma pedagogia do medo... do outro, que libera as pulsões de agressividade inquisitorial: desde a simbólica do ‘bode expiatório’ à purificação coletiva pelos autos-da-fé, o outro é exorcizado, é ‘tratada’ a alteridade/a diferença como ameaça da Sombra Coletiva.” (Carvalho, 1987, p. 66). À Pedagogia do Medo opôs-se de forma contraditorial, lenta, mas decisivamente, uma Pedagogia do Desprezo. Os processos de - 337 -


vítimas da Inquisição após 1640 dizem respeito, muitas vezes, à hegemonia da mentalidade do desprezo e não à do medo. Trata-se da descrença em magias e bruxas, resultante de tendência desmitologizante. Nos processos com a marca desta nova pedagogia, os réus passaram a receber um tratamento de distância e desinteresse por suas culpas, que agora seriam consideradas consequência de ignorância e falta de conhecimento religioso. As condenações duras perderam o sentido, pois este tipo de crime passou a ser encarado como algo superficial, difícil até de se provar (sic), na medida em que envolvem atos humanamente “impossíveis”, como voar ou transformar a natureza material das coisas. Para a própria fé dos inquisidores, a concepção de desprezo tem fortes conseqüências: ao negar a mística do mitologema medo inquisitorial em seu valor ontológico, o inquisidor estava fazendo-o não só para o réu, mas sobretudo para si e, principalmente, para os fiéis católicos. A morte, cuja concepção específica determina a singularidade de uma cultura, passou a receber uma expectativa “terrena”, perdendo sua aura purificadora. Um exemplo de desprezo está no parecer que o Conde d’Aguiar deu para o caso do mandingueiro (portador de bolsa de mandinga) Matias Guizanda a pedido de Dom João VI: Este pobre miserável, supersticioso e ignorante se devia mandar pôr em liberdade, mas porque ele pode ter culpa em juízo competente, e ser réu talvez de outros crimes, de que não tenho notícia nem posso tê-la, por ser tudo passado na vila do Recife de Pernambuco, onde se acha preso e onde reside o suplicante comissário do Santo Ofício; por isso, nada possa informar a Sua Alteza Real nesta matéria. (Arquivo Público do Estado de Pernambuco, Ordens Régias vol. nº 35, p. 136).

Diante da hegemonia evidente das concepções do inquisidor e não das do réu, consideramos os documentos inquisitoriais como sendo prioritariamente – salvo exceções pontuais – fontes para o estudo da mentalidade inquisicional em si. Verificamos que, em sua maioria, os processos são fontes menos credenciadas para o - 338 -


entendimento de uma mentalidade outra que não tenha ocorrido intramuros do Tribunal. Daí a imensa aplicabilidade dos conceitos/noções de Pedagogia do Medo e de Pedagogia do Desprezo à luz dos documentos inquisitoriais, que trazem em si as obsessões de ambas as pedagogias. No maior e melhor de todos os documentos do Direito Inquisitorial português, o Regimento de 1640, identificamos obsessões semelhantes às localizadas nos processos inquisitoriais. Daí é que devemos e podemos descrever o cenário histórico-antropológico nos mitologemas da identidade cultural portuguesa que nos permitiram elaborar os já elencados conceitos pedagógicos com a configuração anteriormente indicada. O entendimento analítico da “sombra coletiva” de que nos falou Carvalho é possível através do percurso que estamos trilhando. A aceitabilidade acadêmica das análises baseadas no imaginário já é inconteste após a vertiginosa ascensão de campos hoje tão comuns na historiografia, tais como: mentalidade, vida privada, religiões, simbolismo e Nova História. Mesmo para quem discorda destas abordagens já nem tão recentes, é mister perceber que o caminho para uma História do Imaginário vem se abrindo com firmeza por via paralela, desde que o próprio Max Weber colocou em dúvida as principais ilusões racionalistas das ciências humanas (Lazarte, 1996). CONTEXTO IMAGINÁRIO: AS NARRATIVAS MÍTICAS LUSITANAS Para a atuação do Santo Ofício, a identidade portuguesa funcionou com especificidades que nos interessam no entendimento da mentalidade obsidional. Buscamos, então, um texto clássico de Gilbert Durand, em que o filósofo francês debruçou-se sobre a realidade lusitana. Trata-se de O Imaginário Português e as aspirações do Ocidente Cavaleiresco (Durand, 1986) que foi em parte lido como conferência pelo mestre de Grenoble nas comemorações das grandes navegações na cidade portuguesa de Tomar. Deste trabalho durandiano, forte até em seu contexto de produção, partimos para a compreensão das especificidades lusitanas da Inquisição. - 339 -


Em paralelo ao afastamento dos mitos formadores inquisitoriais, que inspiraram os primórdios da Inquisição, devemos analisar o significado deste esvaziamento do Tribunal no contexto da cultura portuguesa. Representamos este movimento de mentalidade intrainquisitorial com as noções de Pedagogia do Medo e Pedagogia do Desprezo. Verificamos que três dos mitologemas formadores do imaginário português possuem componentes que constelam com três dos valores do ato civilizacional inquisitorial, que também poderia ser analisado em termos de tipos ideais. A consolidação dos valores inquisitoriais foi possível dentro da adequação semântica consteladora destes aos componentes do imaginário lusitano. Perceber esta teia de relações permite trabalhar com a singularidade portuguesa da ação inquisitorial. Uma noção que tem sido muito repetida na História dá como certa a relação entre infraestrutura e superestrutura, onde a primeira determinaria a segunda. Não precisaremos buscar estas determinantes causais. Como já vimos anteriormente, esta busca não é pertinente à teoria e ao método escolhidos. As narrativas cheias de imagens que compõem o imaginário formador de um povo não são efeito ou causa: existem enquanto paradigma cultural. Porém, mesmo que tais narrativas fossem apenas efeito de uma determinante “infraestrutural”, sabemos que “eles são, de facto, persistentes – ’coriáceos’ como diria Roger Bastide – e que, na ordem das induções, a permanência pode funcionar como causalidade” (Durand, 1986, p. 10. Grifo nosso). Há quatro grandes grupos míticos lusitanos: O Herói Fundador vindo de fora; A Vocação Nostálgica do Impossível; O Salvador Rei que espera, escondido, a hora do regresso e A Transubstanciação dos Atos. Os verdadeiros mitos são as “narrativas ou situações imaginárias que se distinguem pela sua persistente redundância, traço que, segundo Lévi-Strauss, caracteriza o mito”. Os verdadeiros mitos são também aqueles que “acompanham, como um fio permanente, a alma de um povo, e nos quais se objectivam os acontecimentos” (Durand, 1986, p. 10). Resultado analítico similar – talvez menos aprofundado – pode-se, - 340 -


talvez, obter com noções concebidas por Toynbee e Spengler (espírito nacional, por exemplo). A análise mítica merece os cuidados dos trabalhos mais finos. Nesse sentido, enfatiza Durand (1986, p.10): (...) nesta ’légende dorée’ das culturas, em que se repetem com monotonia os ’mitologemas’ (estruturas quase formais de um mito ou de uma sequência de mitos) que, fora do seu contexto histórico-cultural adquirem o aspecto redutor de estereótipos” é preciso “saber de que modo uma cultura torna específico este ou aquele tipo de narrativa, e constrói, por assim dizer, uma identidade sócio-cultural imaginária (Grifo nosso).

De forma similar à formulação de um tipo ideal, o mitologema é proposto com o conhecimento histórico empírico aproximativo do objeto na medida do possível para a ciência. Primeiro Mitologema: O Herói Fundador vindo de fora. Na tradição de caracterização mítica através da Antiguidade Clássica, poderíamos buscar o fundador no herói troiano que retorna ou, como ressalta Durand (1986, p. 11), em Dionísio, Hermes e Apolo. Entre os cristãos, lembra a transcendência geográfica da política das Cruzadas e o papel de santos fundadores que vieram de longe, como Pedro, Paulo e Santiago. Este último veio em viagem fúnebre cheia de simbolismo fundante. Mas é em Portugal, com sua quádrupla fundação, que Durand se concentra para sua argumentação. Citamos um trecho, enriquecido pela reconhecida erudição do autor, em que este delimita o mitologema luso: Portugal não escapa, é claro, a este arquétipo do ’fundador vindo de fora’. Mas a origem exterior e transcendente é aqui consideravelmente acentuada. Senão vejamos: em primeiro lugar, um fundador précristão – que Vasco da Gama/Camões exalta nos Cantos I, II, III, VI e VIII de Os Lusíadas, e que figura nas bandeiras que ornamentam o navio almirante no Canto

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VIII – Luso, portador do tirso de seu pai, Baco, ele próprio um estrangeiro na Grécia: Luso tem aliás como seu duplo outro herói epônimo, Lisa (Os Lus., Canto III), a que se segue de imediato (Canto III, 25) uma redundância cristã: Henrique, ’segundo filho de um Rei de Hungria’ (na realidade, Borguinhão), recebe do rei de Castela as terras portuguesas e a própria filha do rei, Teresa. É o filho deste ’húngaro’ que conquista Lisboa, Lisboa ela própria fundada por um estrangeiro (Os Lus., III,57), ’facundo por cujo engano foi Dardânia acesa’, Ulisses. Mas é ainda de um modo mais profundo que a sensibilidade imaginária de Portugal se enraíza, para lá desta quádrupla fundação: o próprio Santo Fundador aquele que ’Do Sacro Promotório conhecido à cidade Ulisseia foi trazido’ (III, 74) por Afonso, o conquistador de Lisboa, é estrangeiro. É talvez necessário debruçarmo-nos um pouco sobre a figura arquetípica deste santo espanhol (de Saragoça ou Valência), cujo corpo martirizado foi trazido pelas ondas até ao ’sacro Promontório’. Trata-se de S. Vicente, o ’vitorioso’ diácono martirizado na época de Diocleciano, queimado numa grelha como S. Lourenço, envolvido numa pele de boi com uma mó atada ao pescoço e deitado ao mar, como S. Floriano, Santo Antonino de Pamiers ou S. Estanislau de Cracóvia. Tal como o corpo de Santo Antonino é guardado por duas águias brancas, o de S. Vicente, trazido pelo mar até ao Algarve, é guardado por dois corvos gigantes – que irão figurar no brasão de Lisboa (Durand, 1986, p. 12).

Este simbolismo engendra o espírito colonizador, catequizador e fundador dos portugueses. Ser salvo das águas é consagração iniciática das mais universais. Este “mensageiro fundador vindo do além absoluto, simbolizado pela navegação funerária com a proteção de aves divinas” (Durand, 1986, p. 14) bem poderia ser função componente de uma mitanálise dos navegadores portugueses modernos. O simbolismo das águas desenvolvido por Bachelard pode indicar o caminho de outra análise. Na História de Portugal, se for possível relacionar mitologemas e fases históricas, percebe-se que o período que vai da formação do Estado português – o primeiro Estado central forte da Europa, antecipando-se à Idade Moderna – até a expansão colonial, é - 342 -


marcado pelo Herói Fundador. Os demais mitologemas parecem submeter-se a este. Pela natureza do próprio mito fundador, sua fase hegemônica no imaginário lusitano coincide com o ápice político e geográfico do Império Português, um feito, aliás, que a nação portuguesa não mais repetiria, remetendo-nos a outra possibilidade analítica: a saudade do impossível, mitologema que pode ter estado presente na tardia política colonialista portuguesa do século XX, quando se mantiveram colônias remanescentes na África e na Ásia no limite do que foi militarmente sustentável. Para o estudo da Inquisição, este mitologema guarda uma certa distância, mas o aspecto catequético dos lusitanos ao se lançarem como “fundadores vindos de fora”, nos reaproxima ambos. Uma catequese heroica no sentido que esta palavra tem para a Teoria Geral do Imaginário, na qual o ato heroico varia entre a proximidade e o extremo da dominação e da exclusão. Além disso, observamos que a história da fundação e dos primeiros tempos da Inquisição está ligada a uma tradição cristã de martírio que se compõe e pôde constelar com esta heroicidade e com este mitologema. Um destes mártires foi canonizado – São Pedro Mártir – por ter sido assassinado por “hereges”. Este primeiro mitologema nos permite compreender, então, o cenário mais abrangente do imaginário lusitano. Os outros três mitologemas estarão ligados a três valores civilizacionais da inquisição. Segundo Mitologema: A Vocação Nostálgica do Impossível. A rápida queda da hegemonia ultramarina portuguesa e a crise organizacional do Império marcaram uma fase que reputamos como hegemônica deste mitologema associado a um outro, que veremos adiante (o Salvador Rei que espera, escondido, a hora do regresso). Nesta fase, deu-se a lenta derrocada da colonização do Brasil, passando primeiro pela crise do açúcar, depois pelo esgotamento das minas de ouro e, já nos dois momentos históricos citados, pelas revoltas nativistas e nacionalistas, até chegar à nossa Independência, - 343 -


arranjada em 1822. Este relacionamento entre a história e o mito – percurso que propomos às análises de origem durandiana e similares – abre a porta do tempo numa conceituação que, sem ele, poderia parecer “anistórica”. Tratando-se de um “tempo mítico”, livra-nos do peso das tradicionais periodizações históricassuperficiais, que são cada vez menos úteis quanto mais avançam os novos paradigmas da ciência e que, como indica a própria condição de superficialidade, são também pouco profundas. A nostalgia que possam ter os portugueses de hoje pelo passado de glória do seu país pode aparentar inserir-se nas banalizações da imagem, tão comuns na pós-modernidade. É apenas uma aparência, porém, pois nada há de banal neste mitologemas lusitano. Para não nos deixarmos influenciar no trabalho científico pelo ambiente desmistificado que nos cerca nestes anos de transição nos quais se findou o segundo e iniciou-se o terceiro milênio (2), devemos buscar na própria h(H)istória o valor do mito. A fidelidade ao impossível é ilustrada por Durand nas histórias de amores inacessíveis que se tornaram clássicas: a história de Inês de Castro e as narrativas sobre Soror Mariana. Camões, em Os Lusíadas, “consagra uma parte significativa do Canto III” (Durand, 1986, p. 15) ao drama do filho de um rei que teve sua amada, Inês, assassinada pelo pai e, “numa nostalgia inconsolável” (Durand, 1986, p. 15), partiu para a vingança. Já Soror Mariana teve que amargar na reclusão de um convento a impossibilidade de realizar seu amor pelo francês Chamilly. A Vocação Nostálgica do Impossível teve sua superação com o posterior desmitologizamento e banalização da própria ideia da morte purificadora e transcendente, ícone mítico e simbólico de redenção e libertação espiritual que até então movera os inquisidores por séculos. Em obra clássica, Jean Delumeau (1989) demonstrou o caráter coletivo do fenômeno do medo no seio da civilização cristã na Idade Moderna. Do medo veio a atitude obsidional que levou a uma agressividade defensiva. Mesmo que para nós – hoje em dia – pareça estranho vincular o ato inquisitorial ao sentimento de medo da - 344 -


civilização que o pratica, devemos evitar o mecanicismo explicativo da História dos historiadores, para compreender o que se passou. A concepção da Idade Moderna como um período de Renascimento e esplendor é tão empobrecedora quanto o simplismo do seu contrário, que seria conceber a Idade Média como tendo sido a “idade de trevas” que a antecedeu. A época moderna foi marcada pelo medo do herege e pelo medo do invasor muçulmano. Para Delumeau, “a Inquisição foi (...) motivada e mantida pelo medo desse inimigo sem cessar renascente: a heresia que parecia perseguir incansavelmente a Igreja” (Delumeau, 1989, p. 22). Além do medo inquisitorial do herege, havia o medo do invasor muçulmano, que ao primeiro poderia ser relacionado. Delumeau viu dois planos de medo: os espontâneos e os refletidos. A identificação dos dois níveis de medo conduz (...) a assentar face a face duas culturas das quais cada uma ameaçava a outra e nos explica o vigor com que não só a Igreja, mas também o Estado (estreitamente ligado a ela) reagiram, num período de perigo, contra o que pareceu à elite uma ameaça de cerco por uma civilização rural e pagã, qualificada de satânica. Em suma, a distinção entre os dois planos de temor será para nós um instrumento metodológico essencial para penetrar no interior de uma mentalidade obsidional que marcou a história européia no começo da Idade Moderna, mas que cortes cronológicos artificiais e o sedutor termo ’Renascença’ por muito tempo ocultaram (Delumeau, 1989, p.33).

Na tipificação do ato civilizatório – e, por isso mesmo, intolerante do tribunal inquisitorial, vemos a lenta, porém inelutável, ascensão do valor que se pode chamar de abjuração imanente do medo. Ele acompanha a ascensão da Pedagogia do Desprezo após meados do século XVII e antecede a perda do sentido da morte que caracterizará a cultura ocidental a partir do século XIX. No imaginário do inquisidor, a lenta aceitação da imanência desmitologizante da morte corresponde à perda do medo e à superação, neste campo, da

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vocação nostálgica do impossível. Uma morte desencantada torna “realmente” impossível o que se pretendia impossível. Todos os mitologemas possuem a capacidade de marcar a alma de um povo, mesmo que nem sempre mantenham uma influência posterior sobreposta a outros mitologemas. Ao admitirmos que uma dessas formações míticas perdeu parte de sua força, não estamos admitindo seu desaparecimento nem a impossibilidade de reencontrála fortalecida em outro momento da História. Esta noção é importante para compreendermos a bacia semântica que se estabeleceu para que o silêncio civilizatório, tão característico da dimensão imanente do mundo vivido, conseguisse hegemonizar um Tribunal que seria, em princípio, fortemente transcendente. Ocorre que as fontes históricas inquisitoriais e a própria historiografia que estuda a História Portuguesa mostram que uma grande mudança de mentalidade ocorreu ao longo da Idade Moderna em Portugal. Poderíamos levantar uma hipótese apenas como intenção provocadora do debate: à diminuição dos impulsos de “vocação nostálgica” e de “salvador que regressará” corresponderia a ascensão de um mitologema que denominamos provisoriamente de “encenação pragmática da vida”, que tentaria abarcar o cidadão português de hoje. Terceiro Mitologema: O Salvador Rei que espera, escondido, a hora do regresso. A perda da soberania nacional para a Coroa espanhola após a morte de Dom Sebastião, intuição coletiva que se tornou fato logo depois, somou-se à decadência imperial ultramarina, a que já nos referimos. Aqui, nossa hipótese admite que este Mitologema, associado ao anterior, representa a história portuguesa no tempo longo: da União Ibérica até o período pombalino, quando a própria Inquisição passou por reformas profundas. O desespero coletivo – inconsciente? – presente no fluxo místico induzido pela espera do rei tem fortes características religiosas, como demonstrou Jacqueline Hermann em No reino do Desejado (Hermann, 1998). O - 346 -


escondimento implica numa forma de silêncio transcendente, que superaria a morte. Trata-se de mitologema universal presente, por exemplo, entre celtas, germanos e persas (Durand, 1986, p. 16 e 17). Em Portugal, a presença deste mitologema não está restrita a Dom Sebastião. Uma componente franciscana, ligada à vontade missionária, ao otimismo transcendente e à sensibilidade fraternal – valores daquela Ordem – está associada à divulgação, pelos frades, “(...) das esperanças messiânicas do cirteciense calabrês Joaquim de Flora. Pode mesmo falar-se, a propósito, do messianismo, de um ’primeiro sebastianismo’ – ’avant la lettre’! – veiculado pela espiritualidade franciscana.” (...) “O próprio S. Francisco era, para os seus discípulos – pelo menos... – o anunciador, o Segundo Precursor dos novos tempos, da vinda do Espírito Santo” (Durand, 1986, p. 17). Dom Sebastião, jovem e promissor rei da nação portuguesa, um “Rei Desejado” (Hermann, 1998, p. 73), desapareceu no dia quatro de agosto de 1578, derrotado pelos muçulmanos na tresloucada batalha de Alcácer-Quibir. O corpo teria sido encontrado pelo monarca do Marrocos e enviado a Belém, onde está sepultado, mas o povo português não acreditou na morte trágica de alguém que havia sido tão aguardado. A própria elite intelectual portuguesa vivenciou esta comoção em forma de esperança, como no caso do Pe. Antônio Vieira, em sua História do Futuro (Vieira, 1998). Vieira acreditava que “Portugal é o reino que deve assumir a vinda do Reino de Deus” (Durand, 1986, p. 18). Estas características guardam paralelo com outro dos valores da Intolerância Civilizatória da Inquisição: o pragmatismo da morte. O esvaziamento progressivo do mitologema do Salvador Rei levou ao fortalecimento daquele valor pragmático. O distanciamento no tempo e no espaço, o desmascaramento de impostores travestidos de D. Sebastião e a ascensão de novos monarcas foram fatores de esmorecimento da largueza e profundidade da presença do mitologema do Salvador na sociedade portuguesa. Mesmo que episódios históricos tidos como sebastianistas tenham ocorrido por muito tempo adiante, o desmitologizamento do fundamento fundante - 347 -


da morte salvífica – presente em toda a cristandade moderna – favoreceu a abjuração imanente do medo enquanto valor coletivo em ascensão. Abjurar o medo da morte é também converter o silêncio introspectivo em um silêncio disciplinar, resultante do medo do poder temporal da inquisição. O ato de esperar a salvação, porém, sobreviverá como mitologemas hegemonizado, pois tem paralelo no milenarismo, cujas atualizações históricas pululam, por exemplo, na vida brasileira. Delumeau também dedicou-se com maestria a este tema em Mil Anos de Felicidade – Uma História do Paraíso (Delumeau, 1997). Afirmando que “modernidade e milenarismo não são necessariamente excludentes um do outro” (Delumeau, 1997, p. 13), o historiador abre caminho para uma aproximação entre um mito moderno que poderíamos chamar de “Paraíso Perdido” (dentro da idéia weberiana de desencantamento do mundo) – representando a nostalgia da mística perdida do homem contemporâneo – e o mitologema que analisamos aqui do rei salvador escondido. Afinal, também o milenarismo teve rasgos intolerantes, pois só é possível alcançar os mil anos de felicidade com a conversão dos infiéis. Um cenário de aproximações entre o sebastianismo, o milenarismo e a Inquisição pode ser pensado também para estudo futuro. Como ainda não se trata de tema nosso, deixamos apenas a referência Quarto Mitologema: A Transubstanciação dos Atos. Nos mais diversos setores da pesquisa científica ligada à área das humanidades, é possível dizer que cada povo desenvolve identidade diferenciada que seria chamada por alguns de “espírito nacional”, por outros de “alma de um povo” e até de “ideologia da nacionalidade”. Durand (1986) afirma a especificidade portuguesa dizendo que “o imaginário português encontra-se, mais do que qualquer outro, sob o signo do além” (Durand, 1986, p. 21). Este mitologema – também denominado Transmutação dos Atos – é o mais significativo do aspecto transcendente do imaginário lusitano. - 348 -


Contraditorial ao silêncio imanente e mundano da gênese desmitologizante da inquisição. O fundamento deste mitologema está num dado hagiográfico produzido e amplamente difundido pela forte tradição franciscana em Portugal. A transformação milagrosa da água em vinho e do pão dos pobres em rosas está entre os milagres franciscanos. Duas santas da Ordem Terceira, Santa Isabel e Rosa de Viterbo, possuíam os poderes da transubstanciação associados a dons taumaturgos. Há uma longa tradição católica que associa tais poderes a milagres divinos. As tentativas racionalistas e redutoras de oficializar esta tradição como sendo algo da ortodoxia católica desaguaram no Concílio de Malines, em 1607, que chegou à seguinte conclusão, risível nos dias de hoje: “É supersticioso esperar qualquer efeito de qualquer coisa, quando tal efeito não pode ser produzido por causas naturais, por instituição divina ou pela ordenação ou aprovação da Igreja” (in Thomas, 1991, p. 53). Ou seja, atribuía-se a Deus e à Igreja o poder de realizar a transubstanciação. Em Religião e o Declínio da Magia, Keith Thomas concluiu a este respeito: “Portanto, não era supersticioso acreditar que os elementos podiam alterar suas naturezas, depois de pronunciadas sobre eles as fórmulas de consagração: isso não era magia, e sim uma operação efetuada por Deus e pela Igreja, ao passo que a magia supunha o auxílio do Demônio” (Thomas, 1991, p. 53). Devemos observar que estas crenças nas transformações da natureza das coisas não são exclusivas de Portugal, nem se iniciam por lá. A singularidade portuguesa parece ter estado na intensidade da politização e cotidianização deste mitologema. Sabemos, por exemplo, que a missa passou por mudanças na Idade Média. Um poder especial – até mágico e encantatório – era atribuído aos sacerdotes cristãos. Pelo menos entre os ingleses, que aderiram ao protestantismo, o processo de desmitologizamento chegou mesmo a retirar do clero este atributo coletivo. Pensamos que processo semelhante atingiu parte do clero católico na contrarreforma e influenciou a Pedagogia do Desprezo entre os inquisidores. Falta à nossa historiografia pesquisa - 349 -


documental que possa comprovar esta hipótese. Para o mundo protestante, temos o depoimento do próprio historiador de fé anglicana Keith Thomas, mesmo que aparentemente simpático à Reforma: Em comparação, a Reforma é comemorada, com justiça, por ter privado o sacerdote da maior parte das suas funções mágicas. Os seus poderes de exorcismo foramlhe retirados e suas fórmulas de bendição e de consagração foram bastante reduzidas. O fim da crença na transubstanciação, o abandono das vestes católicas e a abolição do celibato clerical foram diminuindo, de forma cumulativa, a mística do clérigo na comunidade. Ao mesmo tempo, o crescimento dos meios para a educação dos leigos enfraqueceu o monopólio do clero sobre a erudição que, mesmo antes da Reforma, já estava desmoronando. A aparente diminuição da participação do clero na magia popular deve ser atribuída a essas mudanças. Mas a mudança foi gradual e a associação, na mente popular, entre a magia e o sacerdócio demorou para ser erradicada (Thomas, 1991, p. 231).

Na memória portuguesa, a magia aparece também na política. Ficou a imagem de Isabel, a “Rainha Santa”. É uma História hagiográfica que funda longa tradição no catolicismo. Na verdade, são duas santas homônimas: Isabel da Hungria foi tia-avó de Isabel de Portugal, que nos interessa aqui. Isabel de Portugal nasceu em 1271, filha de Pedro III, rei de Aragão. Já aos 12 anos, casou-se com o rei Dinis, de Portugal, tendo sido mãe do rei Afonso IV, que comandou uma revolta contra o próprio pai. Isabel passou para a memória popular como caridosa – fundou orfanatos e “postos de defesa da mulher” (Attwater, s/d, p. 160) – e pacificadora, tendo realizado a paz com Castela por sua simples presença no campo de batalha como mediadora. Faleceu em 1336, em Estremoz, quando retornava da “batalha”. Milagres lhe são atribuídos: o pão transformado em rosas ou o inverso: as rosas que viraram pão para saciar a fome dos pobres e “o milagre quase crístico – tendo-lhe o seu confessor aconselhado a temperar a sua penitência bebendo um pouco de vinho – da água - 350 -


milagrosamente convertida em vinho” (Durand, 1986, p. 19). O próprio Durand questiona: “Qual o sentido que poderemos dar a esta insistência franciscana em fixar a taumaturgia das rosas e do vinho, e em atribuí-la à Rainha Santa, Rainha de Portugal? e “Penso que é necessário dar a estas transformações o sentido que o hagiógrafo dava à lenda de Isabel da Hungria e da Turíngia: ver rosas em lugar do pão, ver o sangue de Cristo em vez do vinho, é ’ver com os olhos da alma’ – ’per interiores oculos’ ” (Durand, 1986, p. 20). Para a História do Brasil, que teve uma Princesa Isabel que teria sido homenageada como Santa no nome de um belo teatro situado no Recife, o mitologema da transubstanciação permitirá enriquecer a análise processual inquisitorial. Levantaremos a hipótese de que a inexistência de um significativo aumento do número de processos contra práticas mágicas em Portugal, no século XVII, foi fruto da maior aceitabilidade na cultura lusa diante de práticas “transubstanciosas” equivalentes ao feitiço. Isso poderá ajudar a entender a inexistência de uma “caça às bruxas” no Império português na proporção que ocorreu alhures, enquanto boa parte da Europa ardia em fogueiras sistemáticas. Os quatro mitologemas interagem em um foco único: “a paixão do além, o absoluto ’exotismo’ do imaginário” (Durand, 1986, p. 20). O Salvador oculto ecoa o Fundador vindo de fora, pois o retorno do rei fundaria uma “nova ordem”. A Nostalgia do Impossível demonstra a crença no Além Absoluto, fruto da transubstanciação do mundo, tendo em vista que a crença no impossível ultrapassa o cotidiano deste mundo e aponta para o “além”. Este interrelacionamento é restrito aos mitologemas. Propomos um quadro maior para servir de esteio à compreensão do Santo Ofício. O Tribunal da Fé representou o espelho dos movimentos mais profundos da bacia semântica lusitana, pois antecipou o desmitologizamento que passaria a integrar a cultura portuguesa – sem necessariamente hegemonizá-la de forma prometeica durante a após a ilustração iluminista.... Neste contexto, o caráter intimidatório do silêncio coercitivo ganhou contornos ampliados, pois pretensamente buscará no próprio - 351 -


Iluminismo a sua justificativa. O Tribunal será transformado em instituição régia, buscando no Direito do Rei ampliar a sua base social de sustentação. Contudo, a maior denotação do silêncio inquisitorial permanecerá: era o Segredo do Processo. Tem dois aspectos: a) nem o réu e nem o seu procurador conhecerão o conteúdo do processo, que é exclusivo da Mesa e b) ao sair penitenciado mas vivo, ficará o réu proibido de falar sobre o que se passou com ele dentro dos cárceres inquisitoriais. Existem obras escritas fora do cárcere que rompem o silêncio imposto e que são, provavelmente, muito mais próximas da “palavra da vítima” do que os próprios processos, como as do réu Hipólito José da Costa (1974) e do ex-secretário do Santo Ofício Pedro Lupina Freire (in Vieira, 1951). Ao contrário dos processos inquisitoriais, que eram ditados pelo inquisidor ao notário, as obras escritas com a própria pena de um réu ou de um ex-funcionário são fonte muito mais segura para identificar as estratégias inquisitoriais. A menos que se trate de um discurso muito singular, como o do moleiro estudado por Ginzburg (1987), a intervenção de agentes entrepostos entre o que diz o depoente muitas vezes vindo da sessão de tortura – e o depoimento anotado, torna os processos inquisitoriais no mínimo duvidosos para o conhecimento da história de vida de cada réu e mesmo para o levantamento de uma História Social. O drama individual enfrentado diante da Inquisição deve-se, em grande parte, à forma que o processo assumia perante o réu. Ao contrário do Direito Moderno, que garante prerrogativas ao cidadão acusado do crime, o Direito Inquisitorial tratava o súdito como previamente culpado. As três características do processo inquisitorial que nós identificamos são: a culpa recôndita e silenciada, a defesa autoacusatória e o apenamento prévio. A culpa recôndita era chamada pelos inquisidores de “segredo”. Por este princípio, toda e qualquer acusação que chegasse à mesa inquisitorial seria mantida em sigilo e silêncio diante do acusado. Os inquisidores poderiam, então, simplesmente inventar uma culpa – como possivelmente fizeram com - 352 -


Antônio José da Silva, no século XVIII, e com Matias Guizanda, no século XIX – ou retirar de uma pequena denúncia um enorme processo. Quando o prisioneiro era chamado a confessar suas culpas, buscava de todo modo coincidir aquilo que falava com o que certamente estaria nas mãos dos inquisidores. Neste “teatro de sombras”, o réu sempre perdia, pois acabava por fazer uma defesa autoacusatória. A uma culpa inicial somavam-se outras que ele confessava de viva voz. O Tribunal não trabalhava com a hipótese da inocência do acusado. Toda a ação dos juízes inquisitoriais se fazia no sentido de alimentar a papelada processual com novas confissões e acusações, das quais poderiam surgir outras prisões. Para entendermos a lógica processual da Inquisição, desenvolvemos aqui um paralelo simples que servirá ao leitor como introdução ao tema. O cidadão contemporâneo está habituado a pensar numa justiça que segue a linearidade de evolução dos processos. O nosso direito de tradição romana garante uma cronologia na construção do ato judicial. No caso, por exemplo, do crime comum, primeiro abre-se o processo a pedido de uma autoridade pública ou de um advogado; em seguida faz-se o levantamento das provas e dos indícios, partindo-se de investigações. Só então, é possível caracterizar um cidadão como réu. Depois de tudo, verifica-se, com o apoio de jurados em um ato público de julgamento, a culpabilidade ou não do acusado. O réu cumprirá pena após o desfecho legal deste trâmite processual. Vê-se que há – na letra da lei – uma evolução linear na qual se pode confiar razoavelmente na previsibilidade positiva para uma defesa civilizada do acusado. Mesmo assim, estão no dia a dia da Justiça contemporânea diversas formas disfarçadas de subverter esta neutralidade. Agora, vejamos o Tribunal Inquisitorial. Na Inquisição, a temporalidade linear não ocorre. Podemos lembrar que na justiça comum daquela época tais princípios também eram pouco ou nada reconhecidos. Mas é preciso firmar este raciocínio para que o leitor tenha clareza no entendimento dos documentos inquisitoriais. Não havendo uma “lógica de evolução do processo”, a culpa, a defesa e o apenamento não precisam vir nesta - 353 -


ordem. Da leitura dos processos, depreendemos que os três atos processuais existem em paralelo desde o momento em que o infeliz adentra a prisão inquisitorial até o momento em que recebe a sentença (1). No período de atuação do Tribunal do Santo Ofício em Portugal prevaleceu a noção absolutista de que a fidelidade ao rei e à religião era uma exigência política que tornava os dois princípios inseparáveis. Rei e Igreja queriam que se mantivesse este princípio, benéfico para ambos. No século XIX, a Igreja Católica pareceu muitas vezes atônita diante da necessidade de se separar dos Estados Nacionais. No século XVIII, ainda se acreditava que a presença de uma outra religião poderia enfraquecer o Estado. Portanto, a autoridade de um rei estava diretamente vinculada à obrigatoriedade de seus súditos comungarem da mesma fé. O enfraquecimento da religião do rei era assunto de Estado. A Inquisição atuou dentro desta crença durante toda a Idade Moderna. Esta mesma noção provocou os mais diversos conflitos na Europa. As guerras de religião na França do século XVII, a repressão dos luteranos sobre os anabatistas na Alemanha do século XVI, os conflitos entre o Parlamento e os Stuart na Inglaterra moderna e a imposição do protestantismo aos irlandeses são alguns episódios que carregam em si a ideia de que a fé seria a base do poder. A supremacia simbólica da fé sobre o poder financeiro está no bojo de todos os confiscos inquisitoriais. Neste ato, a elite política e religiosa de Portugal impunha principalmente aos judeus – cuja riqueza não se originava da terra, mas do comércio e da agiotagem – a dimensão religiosa do exercício do mando. De um ponto de vista estritamente econômico, esta imposição levou Portugal a um conhecido atraso em relação às potências europeias da época. Este fator trouxe milhares de judeus para o Brasil, pois aqui – ao contrário do que ocorria na Corte – os cristãos novos, e mesmo os judeus, podiam obter a propriedade das terras. Como a terra era o principal símbolo de poder, ao lado da fé e do sangue nobre, os judaizantes vieram para cá certamente em quantidade elevada. Com eles, para impedir um poder paralelo nas distantes terras coloniais, veio a

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Inquisição. A força do silenciamento inquisitorial aqui, porém, foi bem menor. Outra decorrência do privilegiamento das perseguições inquisitoriais contra os não judeus é captar a pluralidade racial do que Darcy Ribeiro (1978 e 1997) conceituou como Processo Civilizatório. Neste sentido, nosso corte espacial para definir a Pedagogia do Desprezo que nos é tão cara – é, também, um corte analítico. Analisamos Portugal e Brasil entre o regimento de 1640 e o fim das atividades inquisitoriais. Mesmo marcados pelo seu formalismo ordinário, os processos inquisitoriais oriundos do Novo Mundo tiveram alguma singularidade em função desta origem. O desmitologizamento tem expressão cotidiana no ato investigativo, pois somente uma justiça parcialmente laica ou “mundana” desenvolveria seus processos tendo a investigação de fatos comprováveis como base de sua ação. É imperioso admitir que, naquela época, a tortura estava legal e oficialmente inclusa no ato investigativo. Por outro lado, a coação sobre o réu ou sobre a testemunha era vista como uma forma de quebrar-lhes a resistência: um caminho para se chegar à verdade para depois silenciá-la de uma forma ou de outra. Os dilemas comprobatórios, porém, passaram a expor a ruptura entre a receptividade ao iluminismo com sua carga de empiria e racionalismo e a manutenção de culpas “mágicas” como passíveis de processo e acusação. Estes dilemas puseram fim à onda de caça às bruxas na França, quando magistrados “modernizadores” venceram o longo debate jurídico em torno da possibilidade ou não de se “provar” a existência do crime de magia e correlatos (Mandrou, 1979). Nesse sentido, transcrevemos um trecho elucidativo de Francisco Bethencourt, extraído de um texto pouco conhecido do autor: O processo por inquérito representa uma nova capacidade de iniciativa do poder judicial, que deixa de estar limitado ao julgamento dos casos apresentados, paraproceder à averiguação dos factos. É neste contexto que surge igualmente a substituição da

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ordália pela tortura: repudiada a primeira forma de resolução dos casos graves e de prova difícil (v.g. adultério, homicídio ou heresia) como ’tentar a Deus’, a tortura surge como a resposta possível, assente na transferência da noção central de confissão, entretanto difundida ao nível da prática religiosa, para a prática judiciária. Numa palavra, a insistência dos juízes da fé no termo ’Inquisição’ correspondia, entre os séculos XIII e XVI, à tentativa de reclamar (ostentar) os desenvolvimentos mais recentes do processo penal (Bethencourt, in Centeno, 1993, p. 105. Grifos nossos).

Ou seja, a justiça “mágica” baseada na vontade do príncipe (Ordalium) foi superada pela justiça dos inquisidores, que montam processos escritos com testemunhas, interrogatórios, prazos e provas através da tortura. A vontade do príncipe perece.... Se os inquisidores se orgulhavam tanto de o serem, não era sem razão: abriam caminho para um novo processo penal, antepassado do que se utiliza hoje em dia no Ocidente Cristão. Bethencourt nos levou a desenvolver a nossa análise sobre o próprio termo que denomina o Tribunal: Santo Ofício. O historiador português afirmou que “os historiadores utilizam descuidadamente esta designação sem a questionar” (Bethencourt in Centeno, 1993, p. 105). Analisando uma ambiguidade de caráter soteriológico que está sob esta constatação, percebemos o tema do medo, que permeia a busca do significado desta utilização descuidada. O próprio termo Santo Ofício carrega em si o paradoxo entre a purificação pela fé (Santo) e a prova investigativa (Ofício). O Tribunal viveu estas duas faces de sua atuação tentando conciliá-las através da santificação e canonização de seus mártires, na busca de impedir o desmitologizamento através de uma tentativa de “overdose” simbólica. As narrativas míticas que sustentariam esta ação, porém, já estavam tendencialmente esvaziadas de seu sentido.

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CONFLUENCIANDO: SOTERIOLOGIA

MENTALIDADE

OBSIDIONAL,

SILÊNCIO

E

Se o “histórico”, o “clerical” e o “imaginário” fossem ilhas remotas umas em relação às outras, bastariam-nos em si cada uma neste pequeno ensaio de história das religiões e do imaginário, mas não são. Há que se compreender uma contextualização histórica convencional. A mentalidade obsidional que influenciou parte do medievo e toda a Idade Moderna repercutiu no batismo do Tribunal como um santo ofício. Na santificação de um ofício intolerante, está a busca de consagração de um caminho único para a salvação das almas: a soteriologia inquisitorial, que realiza à força a ascese católica tradicional. Segundo Aurélio Buarque de Holanda, soteriologia é uma palavra que vem do grego sotérion, salvação, significando“parte da teologia que trata da salvação do homem” (Holanda, 1986, p. 1326). Fazemos uso do termo para referir adequadamente o salvacionismo inquisitorial na lógica do catolicismo. Talvez fosse possível afirmar que uma religião de Deus único e “povo escolhido” – na influência judaica – teria que ser intolerante e silenciadora do outro. Não entraremos no mérito desta questão, que nos parece, em princípio, mais afeita à Teologia que à História das Religiões, sendo que esta pode se utilizar da primeira para a análise do dado. O posicionamento weberiano que nos inspira recusa todo determinismo, principalmente aqueles que caem no generalismo. O “cartesianismo” (de parte) dos teólogos, além do mais, não é objeto deste trabalho. O movimento que vai do medo ao desprezo foi antecedido pela clássica luta que marcou a História da Cristandade: entre as forças centrífugas que buscaram desagregar o cristianismo e as variáveis centrípetas que lograram vencer e agregar a civilização buscando a até agora inatingível unidade na fé. As heresias medievais, cujas características reagregadoras – ou desagregadoras – nos abstemos de comentar mais profundamente neste trabalho de temática outra, tiveram importante papel na formação de uma mentalidade de medo obsidional defensivo que fortaleceu a Inquisição. Está clara a oposição - 357 -


entre as duas tendências, mas não se pense que as heresias seriam menos intolerantes. A disputa entre as autoridades romanas e os hereges era uma disputa entre dois conjuntos valorativos intolerantes entre si e para com as demais religiões. Magno Máximo, general romano que usurpou o trono ao Imperador Graciano, teria sido o responsável pela execução do primeiro herege na História do cristianismo no ano 385. Porém, Prisciliano – o herege executado – foi decapitado “por acusação de praticar a magia, não por ser herege” (Frangiotti, 1995, p. 110) (3). Sacerdotes católicos que atuavam na corte de Máximo teriam sido os responsáveis pelas acusações que levaram à pena capital um homem que já tivera suas teses um tanto singulares condenadas no Concílio de Braga. Poderíamos elaborar uma súmula de seu ensinamento, nos seguintes termos conforme a condenação emitida pelo concílio de Braga: 1. O Filho de Deus não existia antes de nascer de Maria; 2. Jesus Cristo não nasceu na verdadeira natureza de homem; 3. os anjos e as almas humanas são emanações de substância divina; 4. as almas humanas pecaram num lugar celestial onde habitavam e, por isso, são precipitadas dentro dos corpos na terra; 5. o demônio não foi criado por Deus, nem foi primeiramente um anjo de luz, mas saiu do caos e das trevas; 6. as almas e os corpos humanos sofrem a influência dos astros; 7. a carne não ressuscitará e ela não é a criação de Deus, mas dos anjos maus; 8. o matrimônio é mau e a procriação dos filhos condenável, porque é o demônio quem forma o corpo no seio da mãe (Frangiotti, 1995, p. 108).

O exemplo de Prisciliano nos permite ilustrar o caráter opositor entre as tendências centrífugas e centrípetas. As heresias, movimentos inversos ao da unidade cristã propalada originalmente pela Igreja, buscam numa “ortodoxia da palavra” as referências para a contestação ao teor do paradigma tradicionalmente hegemônico; agarram-se em citações e detalhes, geralmente de origem bíblica, para propor uma “purificação dos atos”. Dito assim, tal conflito fica - 358 -


reduzido a uma luta ideológica, como as que Roque Frangiotti denominou, no subtítulo de seu livro, como sendo “conflitos ideológicos dentro do cristianismo” (Frangiotti, 1995). Para os padrões civilizatórios do mundo cristão, contudo, a vitória dos hereges teria significado, na verdade, um profundo reordenamento social, que até poderia ser totalmente desagregador. Não se tratou, portanto, de “diferentes projetos de civilização”, mas da manutenção ou não do impulso civilizador que sucedeu ao do Império Romano. Assim sendo, somos hoje fruto, queiramos ou não, da Intolerância Civilizatória e do seu silenciamento mundano do Outro que a Igreja Cristã conseguiu impor. Ou seja, o catolicismo, por sua vez, agregou as experiências históricas, tornando-se – como virtualmente o foi – um paradigma civilizatório. A purificação provinha, então, dos exemplos e direcionamentos da hierarquia clerical. Não deixaremos de ressaltar, contudo, que o paradigma foi tantas vezes esquecido quantas foi a hierarquia capaz de abandonar seu papel pedagógico em nome de interesses menores. Na Idade Média, não se tratava, porém, de um falseamento ou de um embuste, como chega a fazer crer uma “análise histórica” maniqueísta presente também nas artes (literatura e cinema, por exemplo). O movimento histórico que levou à perseguição aos hereges teve significado em si, muito além da mera vontade de poder da Igreja. Uma versão histórica simplória talvez faça o “gosto da plateia”, mas não é capaz de explicar tendência tão profundamente arraigada na história ocidental. Sua “deterioração” posterior pelo embate entre medo e desprezo parece estar já inoculado nas contradições do próprio processo civilizatório. A imagem das forças centrípetas, com as setas voltadas para o centro do círculo, bem representa a busca de coesão que norteou os cristãos em seu sonho de unidade. O unitarismo (uma só Igreja e um só cristianismo unindo todos os homens) é um desejo inerente a esta fé. Há, porém, uma contradição sempre repetida na história da cristandade: dois tipos de soteriologia são possíveis. A salvação do crente não está afeita apenas ao caminho ortodoxo. Não existe uma - 359 -


ordem consensual em torno do caminho para a salvação: não há, por exemplo, uma casta que se possa dizer descendente de profetas, como ocorre para muçulmanos. À soteriologia unitarista cristã correspondem várias outras, particularistas, que se anunciam igualmente cristãs. Este tema está marcado por tabus, alguns dos quais vimos apontando implicitamente. Neste caso, o tabu está em associar a imagem dos inquisidores ao ato da salvação das almas, tão caro ao Ocidente cristão. O tabu não resiste a uma equilibrada utilização de método: apontar o papel do agente histórico e de “seus” valores não significa julgá-lo positivo – nem negativo – e também não deve nos levar a uma expectativa de julgamento. Ao ponto que avançamos, o leitor terá notado que o método vai permitindo evitar “julgamentos” exatamente por trabalhar com mitologemas e valores, o que o faz prescindir de colocar no centro da análise as disputas e interesses em torno da ação soteriológica do Tribunal. Este despojamento alivia parte das tensões do fazer científico e clareia o olhar. A aplicação intolerante e excludente da soteriologia cristã por parte dos inquisidores não nos autoriza a buscar a dramatização dos gestos inquisitoriais como forma de comover o leitor e embasar alguma análise que necessite desta “emoção” para validar-se. Se tomamos este caminho, a própria intolerância aparece como um monstro disforme e incompreensível a ser combatido pelo gládio e pela espada, como os que a psicologia infantil detecta nos desenhos das crianças. Esta atitude em nada ajudaria, por exemplo, àqueles, dentre os leitores, que desejarem combater a intolerância. A estes fazse mister trilhar os complexos caminhos que levam – ou levaram até hoje – a História a viver constantes “espasmos” de intolerância. Talvez este tabu caia por terra se o historiador admitir desde cedo que o ato intolerante é ambíguo e, como no mito de Prometeu, carrega em si o anseio de justiça. No pluralismo de soteriologias que marcou a História cristã, a Inquisição foi, depois da oficialização do cristianismo como a religião do Império Romano, o maior dos seus movimentos agregadores e - 360 -


centralizadores. Num processo extremamente traumático e intolerante, a soteriologia inquisitorial ajudou a vencer e submeter uma concepção espiritualista tradicional no cristianismo. Em sua fase medieval, bem antes de erguer-se como embuste na segunda metade da Idade Moderna, teve papel evangelizador e até civilizador, enquanto partícipe da consolidação da Cristandade. Claro está que poderíamos julgar negativa a civilização que adveio deste processo, bem como o método intolerante para alcançá-la. Entretanto, não temos como negar que os inquisidores tiveram um papel preponderante para o conhecimento e expansão de padrões comportamentais minimamente homogêneos em todo o mundo ocidental, além de terem sistematizado uma cultura jurídica singular, da qual já vimos falando. Isso não pressupõe segui-los ou endeusá-los, mas compreendê-los e à sua intolerância silenciadora como parte do que somos hoje nós mesmos. Mesmo quando o ato inquisitorial foi sendo “desmistificado”, o valor do aprimoramento jurídico permaneceu. Já a autenticidade da comunicação de padrões comportamentais sucumbiu diante das críticas desferidas contra o Tribunal em função da degradação por que passou o clero que o compunha, sempre em busca de “fazer carreira” e de exercer o poder “simbólico” do Santo Ofício. Uma “soteriologia histórico-temporal” filiada à componente valorativa que denominamos de Abjuração do Medo pela Imanência, indutora de projetos inconfessáveis de poder, tomou a cena à Ascese Católica Tradicional, hegemonizando-a e submetendo-a. Esta “soteriologia sem transcendência” é um embuste, pois mantém a exterioridade do ato místico, mas restringe-se, agora, ao jogo simbólico do poder. A questão que se impõe aqui é determinar os limites do embuste em pesquisas futuras. Descartamos por completo um total esvaziamento mí(s)tico, que seria não apenas improvável como insustentável. A superação do medo obsidional levou ao desnudamento do “medo de bruxa” e, por conseguinte, à desvalorização do seu oposto cristão típico do medievo pós reformas do século XIII: o medo de Deus, grandemente incentivado pelo clero depois que a Igreja se aproximou do Estado. Esta aproximação com o Estado gerou um - 361 -


medo de Deus que difere do temor judaico-cristão original – referente às hierarquias celestes “universais” –, pois tenciona, pelo terror, impor o respeito às hierarquias terrenas, clericais ou não. Nesta troca das hierarquias celestes pelas terrenas, sobreveio o silenciamento do outro de alguma forma opositor. Uma fé mais “pensada” que “vivida” foi o cenário da Pedagogia do Desprezo. Ao mesmo tempo, no mesmo turbilhão crítico, a intolerância deixou de ser aceita sem restrições pela grande maioria das pessoas em Portugal e Espanha. A unanimidade ruiu e, com ela, o significado salvífico da Inquisição. A atuação inquisitorial no Brasil coincide com a forçada transição do medo ao desprezo, daí a singularidade e a riqueza dos processos aqui engendrados. O período do “desprezo pelas crenças dos ignorantes” demonstra uma mudança de sentido e significado na própria ação pedagógica do intolerante. PARA UM ENSAIO MITOCRÍTICO: O “ORIXÁ DA MORTE” DESVENDA A INQUISIÇÃO George Steiner nos recorda que “a tradição ocidental também conhece transcendência da linguagem com vistas ao silêncio” (Steiner, 1988, pág. 31). Mas o próprio Steiner é quem nos adverte que “este tipo de experiência traz consigo uma sabor de misticismo” (Steiner, 1988, pág. 31). Ou seja, na seara do desmitologizamento ocidental (que se pode conceituar como desmagificação ou desencantamento do mundo, guardadas as diferenças entre as noções), a linguagem transcendente se transmuta para um mero misticismo. Ora, se foi a própria inquisição que estigmatizou com o desprezo racionalista e redutor depois de perseguir com o medo desmitologizador todas as formas de africanidade que estiveram diante de suas mesas expiatórias, nada mais natural do que, agora, fazermos uso de uma das cosmogonias mais ricas entre as que foram inquisitoriadas para a análise mítica dos inquisidores em estudos futuros. Ao estilo da exegese do ser que a psicanálise realiza com os mitos ocidentais do panteão dos deuses do mundo helênico, nós propomos o panteão dos - 362 -


deuses vindo de um mundo não helenizado: os deuses da Religião dos Orixás e sua cosmogonia do mundo, como prefiro denomina-la. Nela, o candomblé e a umbanda do Brasil! Deles, o Orixá da Morte e da Vida, que é Obaluayê ou Omulú, para citar os nomes mais usuais dele. Num protoensaio para uma mitocrítica, aventamos a hipótese de ser a constelação de valores, mitos e mitologemas da Santa Inquisição, muito contraditorialmente e de forma complexa, com aspectos dialéticos e contraditoriais, observável através da bela e profunda narrativa mítica do Orixá Obaluayê. Como ele, a inquisição carrega em si a morte e a vida. Ora propõe a cura amorosa em vida através da confissão, da misericórdia e do perdão, ora propõe a morte como saída para obter a mesma cura através do fogo purificador que leva o corpo do réu apenado para salvar a alma, segundo o imaginário inquisitorial. Ela própria, porém – a inquisição –, está coberta de chagas sacrificiais dos seus mártires e do próprio Cristo, acreditam seus fiéis. Na metáfora mitocrítica da inquisição, tornam-se estas chagas motivos de humilhações dos cristãos a serem vingadas pelo próprio martírio dos não cristãos. Há, no entanto, outras chagas no corpo mítico da inquisição. São estas que tornaram disfarçada a ação inquisitorial, que é diametralmente oposta aos princípios cristãos de amor ao próximo e de não matar. As outras chagas são os atos de guerra cruzadista e longa perseguição a cristãos (pela unidade interna) e a não cristãos. Para tornar o ato inquisitorial moralmente aceitável, foi preciso encobri-lo de pressupostos e justificativas presentes em suas bulas fundacionais nos séculos XII e XIII(!). Se na narrativa de Omulú, é Iemanjá, que salva-o do abandono na praia em que sua mãe Nanã Buruku o colocara, na inquisição cristã – religião nascida do abandono dos seguidores de Jesus à própria sorte pelos judeus ao final do primeiro século – são Maria e os santos mártires que acalantam e purificam inquisidores e inquisitoriados. Judeus, aliás, que nada mais são que os alegados antepassados dos cristãos novos que a inquisição persegue e às vezes até queima inclementemente. Iemanjá cobre Omulú de palhas para esconder suas - 363 -


feridas. Somente quando Iansã vê Omulú espreitando uma festa de orixás, é que vai até ele e o cura de suas chagas com o poder de sua ventania. Com isso, Omulú se expõe belo ao mundo. O trajeto mítico em muito se aproxima das quedas às tentações “mundanas” (de beleza no mito de Obaluayê e de poder temporal na inquisição). O orixá se põe recôndito pela feiura de suas feridas. O ato inquisitorial esperou séculos para se consolidar institucionalmente e “aparecer”. Reginaldo Prandi nos recorda que Omulú, por ele também chamado de Xapanã, herdou os saberes da peste e da morte porque foi traído pelos irmãos orixás, que dividiram somente entre eles os bens que Olodumaré resolveu repartir no mundo. Sem a presença de Omulú, portanto, que acabou ficando com o que ninguém desejava ficar. Entretanto, quando o ressentimento o fez procurar Orunmilá, ele foi ensinado a fazer sacrifícios, pois seu poder enjeitado poderia ser maior que o dos outros (Prandi, 2009, pág. 211). Enfim, quando a varíola se abateu sobre o mundo, todos os outros orixás foram chamados e nada conseguiram resolver. Foi preciso apelar a Xapanã/Omulú para, depois de receber sacrifícios em sua homenagem, deter a peste e cessar as mortes. Deste mitologema do médico-que-estancou-a-morte-porque-se-sacrificou, vemos o mitologema da inquisição-mártir-que-detém-a-peste-social-da-heresia, pois este era o real propósito dela. Antes de salvar a alma de cada um, salvar as almas de todos que tiveram o contágio com a morte espiritual representada por hereges e “inimigos da fé”. O propósito primeiro é a misericórdia, desde que a Santa Igreja receba os “sacrifícios”, ou seja, seja honrada com o arrependimento dos que erraram e com a adesão dos que se mantiveram retos em seu pertencimento. O poder de vida ou de morte sobre as pessoas não é aleatório, mas curativo e salvífico, tanto em Omulú quanto na Santa Inquisição, assim se revelam miticamente. O silêncio que se depreende de ambos tem o mesmo sentido: o de preservar o segredo e de ser discreto para quem tem o poder de vida e de morte, de cura e de deixar doença para ser curada pela morte.... Um silêncio profundo, porém desvirtuado do lado inquisitorial pela insistência clerical em manipular e instrumentalizar - 364 -


o Tribunal da Fé, unir espiritualidade cristã com intolerância, para seus interesses imanentes de dominar e ter poder neste mundo de tantos deslizes. Nesta esparrela que é uma queda para as tentações do homem, Omulú, de alto do seu poder de orixá, jamais caiu. Atotô!!!!!!! Não estamos diante de uma coincidência narrativa, como poderia supor o nosso espírito eventualmente marcado pelo desmitologizamento e sua redução dos mitos a meras narrativas experimentais. O elo profundo que vincula estas duas constelações é o mesmo que movimenta o homem para imaginar, lança-o na História e expõe suas angústias: a morte, o elo universal por excelência. Lançado este caminho, que análises futuras possam amadurecê-lo pelo caminho das hermenêuticas instauradoras do Imaginário. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Araújo, Alberto Filipe. Silêncio. Iniciação e Transformação. Maia: ISMAI, 2018. ATTWATER, Donald. Dicionário dos Santos. São Paulo, Círculo do Livro, s/d. BAUDRILLARD, Jean. À Sombra das Maiorias Silenciosas: O fim do social e o surgimento das massas. São Paulo: Brasiliense, 1985. CARVALHO, José Carlos de Paula. A Inqusição e o Problema da Alteridade: uma abordagem da Antropologia Profunda, In: Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, volume 18/19, números 1/2, 1987/1988. COSTA, Hipólito José da. Narrativa da Perseguição. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul/Associação Riograndense de Imprensa, 1974 (Primeira Edição: 1811).

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culpado – essencial à justiça dos estados ocidentais contemporâneos – parece ter recebido forte influência da noção cristã de perdão, tão presente no imaginário do Santo Ofício! Afinal, na justiça secular dos nossos dias, o provimento da pena pressupõe a capacidade do Estado de promover a regeneração do preso, da mesma maneira que os réus reconciliados eram tidos pelo Tribunal do Santo Ofício como reintegrados à fé cristã. Havia, no Santo Ofício, até penas de (re)catequização do pecador com obrigatoriedades litúrgicas. (2) - Referimo-nos aqui ao ambiente desencantado conceituado por Max Weber para caracterizar a relação do homem contemporâneo com a fé e com a morte (Weber, 1992, p. 431 a 453). Esta “nostalgia” mística do homem ocidental hodierno pode dificultar ao historiador a visualização de facetas ditas abstratas nas temáticas que aborda. (3) - Esta diferenciação entre heresia e magia não é consensual. Evitamos fazê-la com a contundência do autor, pois acreditamos ser preciso aprofundar a conceituação para definir se há diferenças claras entre o discurso inquisitorial quando este se volta contra a magia e quando se dá contra a heresia.

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CAPÍTULO 11 A FACE OCULTA DAS PALAVRAS NA TRILOGIA DO SILÊNCIO DE INGMAR BERGMAN403 Rogério de Almeida404 A FORÇA AVASSALADORAMENTE INTRANSPONÍVEL DO SILÊNCIO O silêncio é tudo que inicialmente existe. Mas o silêncio só pôde ser nomeado depois da invenção da palavra. O espaço sideral é silencioso, o intervalo espacial entre os planetas é puro silêncio, o interior da matéria é silêncio. O roçar das pedras ainda tem muito de silêncio. É a palavra humana, quando já não mais grunhido, que rompe o silêncio e o inventa. A partir de então, tudo é palavra, logos, ideia, significado, som, sentido. E o silêncio se apequena. Torna-se silêncio, a face oculta das palavras. O silêncio, então, passa a exigir um sentido, quando não é expressão de uma ausência. O silêncio da opressão, da boca silenciada; o silêncio da vergonha, o calar do consentimento, o silêncio de quem já não encontra as palavras para dizer, o silêncio da morte, o silêncio da indiferença. Há quem queira ver, não no silêncio, mas na sua ausência um sério sinal de enfermidade da sociedade contemporânea (Han405, 2014; Le Breton406, 2006; Zimmermann407, 2015; Araújo, 2018). Excesso de 403

Este capítulo resulta de pesquisa financiada pela FAPESP na modalidade Auxílio Regular. 404 Ver Lista de Colaboradores. 405 Para Byung-Chul Han (2014, p. 40), a comunicação digital destrói o silêncio, elemento essencial para o cultivo do espírito. 406 Para Le Breton (2006, p. 3), o imperativo de comunicar questiona a legitimidade do silêncio, não deixa tempo para a reflexão ou divagação, interferindo

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comunicação, excesso de informação, ausência de contemplação, de pausa, de repouso, de respiro. Silêncio como antídoto ao som e fúria de cada dia, silêncio como busca de algum sentido, um sentido qualquer para o excesso de ruído. Se não se quer o mau silêncio da coerção, dos que são silenciados à força, o silêncio das minorias, dos dizimados, dos invisíveis, dos esquecidos, dos que perderam a voz ou as palavras para narrar suas próprias histórias, também não se quer o bom silêncio da anuência, da complacência ou da indiferença, de quem desistiu de encontrar na palavra qualquer poder, de quem não alimenta esperanças ou não anseia por mudanças ou transformações. O silêncio é hoje reivindicado em seu aspecto positivo, em sua possibilidade de ascensão, de culto, de meditação, um caminho espiritual, uma reverência nostálgica a algo surrupiado de nossas práticas. Trata-se, no dizer de Alberto Filipe Araújo (no artigo que consta desta coletânea408), de um silêncio interior que, contrário ao exterior, é desejado, um ato de liberdade de quem dele necessita para atingir a serenidade do pensar, seja pela meditação ou pela contemplação. Não é fácil, portanto, compreender o que é o silêncio, suas múltiplas possibilidades de sentido e, inclusive, de ausência de sentido. Mais difícil é defini-lo, dizer o que é ou para que serve, como negativamente na interioridade e no pensamento. Um pouco adiante (p. 8), reafirma a importância do silêncio para a plenitude da palavra, seja no diálogo com o outro, seja no diálogo interior. 407 De acordo com Ana Zimmermann (2015, p. 57), “testemunhamos atualmente a potencialização das formas de comunicação por meio de diferentes tecnologias e mídias, da mesma forma em que se acentua a necessidade de expressão. Há uma demanda pela manifestação constante: e-mails, mensagens, emotions e imagens compartilhadas na velocidade de bits por segundo. É socialmente desejável que exploremos continuamente todas as formas de expressão disponíveis. Entretanto, tal excesso pode dificultar a compreensão sobre o que é comunicação e diálogo genuíno”. 408 ARAÚJO, Alberto Filipe. “O Silêncio do Mestre à sua Palavra iniciática. Uma introdução a uma pedagogia do silêncio e da Palavra” (no prelo). Ver igualmente a sua obra intitulada Silêncio. Iniciação e Transformação, 2018.

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usá-lo ou em nome de que reivindicá-lo. Não obstante, o silêncio segue sua vocação, de preexistir a tudo. E de acompanhar tudo que existe como uma força avassaladoramente intransponível. Se rompemos, em algum momento da história, o silêncio de tudo que existe para fazer com que tudo passasse a ter voz, nada efetivamente pôde ser dito que alterasse a condição existencial dessa existência. A menos que se creia no fiat lux de um deus ex machina bíblico e falante. No entanto, onde teria se metido esse deus che parla? Por que mergulhou no absconso de sua solidão silenciosa? Retirado de cena, emudecido, ausente, deus não parece muito preocupado com as questões do cotidiano humano (Através de um espelho [Brasil], Em busca da verdade [Portugal]), com a possibilidade de destruição nuclear (Luz de inverno) ou com as relações afetivas de uma moribunda com sua irmã e seu sobrinho (O silêncio). Ainda assim, para Ingmar Bergman, deus é amor. E a trilogia composta por estes três filmes, mais do que defender essa ideia, parece desenvolvê-la, esgarçá-la, pô-la à prova e discuti-la até o mergulho no niilismo, até a vitória do silêncio. Filmadas no início da década de 60, a trilogia do silêncio409, também conhecida como trilogia da fé – já que disseca a crença e as dúvidas instaladas em seu coração –, poderia muito bem ser compreendida como a trilogia da incomunicabilidade, pois efetivamente o problema central e comum às três obras cinematográficas se resume às dificuldades de comunicação entre as pessoas. É como se, dotados da mais plena vivacidade linguística, da mais astuta habilidade lógica, da mais perfeita capacidade racional, ainda assim, e mesmo sem se saber como, os humanos não 409

No documentário A ilha de Bergman (2004), o cineasta diz que não há conexão entre os três filmes, que na época estava na moda fazer trilogias. No entanto, é possível não só encontrar uma coerência temática e estilística entre as três películas em questão como relacioná-las a outras de sua produtiva carreira. Desse modo, compreendo que seja válido, e até mesmo desejável, que se considere cada filme como uma unidade autônoma e completa, o que não inviabiliza as análises de conjunto, como a que se propõe neste artigo.

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conseguissem, como parecem não conseguir, se comunicar a contento. Algo escapa às palavras, há sempre o que não pode ser dito. Talvez porque não haja nada de fato a se dizer. Em outras palavras, há um silêncio que nenhum ruído, que nenhum sentido, que nenhuma expressão pode corroer. É sobre esse silêncio, perseguido por Bergman em sua trilogia, que desenvolveremos nosso ensaio, a começar por uma descrição fenomenológica dos três filmes em questão – Através de um espelho / Em busca da verdade (1961), Luz de inverno (1963) e O Silêncio (1963) – para que então cheguemos às considerações pautadas por uma abordagem hermenêutica, que coloca em perspectiva as interpretações possíveis. Através de um espelho ou a verdade não causará uma catástrofe Lançado em 1961, o primeiro filme da trilogia do silêncio foi rodado na ilha de Faro, depois de muita pesquisa para que se encontrasse a locação ideal. Esse fato é determinante na vida de Bergman (1995), como ele mesmo relata em seu livro de memórias, pois é lá que construirá posteriormente sua casa. A praia, cercada de pedras, cria um ambiente isolado e, ao mesmo tempo, ressalta-se o presença da natureza, tanto em sua grandeza, o que apequena o homem, quanto em sua beleza, o que confere contornos estéticos particulares à película. Os filmes da trilogia enquadram-se no estilo Kammerspiel, herança que Bergman recebeu da dramaturgia de Strindberg, mas também do cinema de Carl Dreyer e dos pós-expressionistas alemães. O Kammerspiel se caracteriza pela sobriedade de elementos, poucos personagens e maior intensidade e interioridade dos conflitos dramáticos. Na trilogia, o âmbito espacial é reduzido (ilha, igreja, hotel), assim como o tempo da ação (um dia ou algumas horas) (Colina, 1975, p. 9). A narrativa, embora simples, apresenta forte densidade dramática e, com raras exceções, predomina uma abordagem realista. As exceções ficam por conta das visões de Karin (Através de um espelho) e da ambientação onírica em O Silêncio. - 372 -


Impera em toda a trilogia um silêncio de fundo, raramente acompanhado de trilha sonora. Os sons são predominantemente humanos, vozes que buscam se comunicar, que intentam compreender ou justamente expressar a impossibilidade de incompreensão. Através de um Espelho, o primeiro filme, narra o encontro familiar na ilha, mais precisamente na casa de David, um escritor famoso em processo de conclusão de seu último livro, sobre o qual nutre grandes expectativas, já que seu trabalho anterior recebera críticas negativas. É pai de Karin, que vem atravessando problemas mentais, e Minus, um adolescente de 17 anos em processo de descoberta da sexualidade, cuja ambição é tornar-se dramaturgo. O quadro se completa com Martim, marido de Karin, um professor apaixonado por sua esposa e preocupado com a condição de sua saúde. O filme tem início de maneira descontraída e alegre, com os quatro se banhando no mar. Há uma conversa entre Karin e Minus sobre o pai e sua pretensão como escritor, além de amenidades sobre o quanto Minus se desenvolveu, como está alto etc. Depois David e Martim saem de barco e, por volta dos sete minutos de filme, por meio de enquadramentos em primeiro plano que salientam a tensão expressa no rosto das personagens, ficamos sabendo da doença, provavelmente incurável, de Karin. Na sequência há um jantar no jardim, que vai pouco a pouco se tornando tenso, principalmente quando David, que descobrimos ser um pai ausente, anuncia que viajará novamente a trabalho. Após entregar presentes a todos, numa tentativa de retomar o clima ameno, levanta-se para buscar cigarros. É então que acompanhamos o modo como os três desdenham dos presentes recebidos: queixam-se de que é repetido, que o tamanho é impróprio e que provavelmente o pai lembrou deles na última hora. Ao mesmo tempo, sozinho dentro de casa, David irrompe num choro convulsivo (14), sem que saibamos se se trata de sentimento de culpa ou manifestação de dor gerada pelo afeto que os liga. Quando retorna ao grupo é recebido com falsa

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alegria e levado para a encenação de uma peça improvisada a partir de um texto escrito por Minus. Tais pormenores estão aqui descritos, pois são fundamentais para a compreensão da arte de Bergman. O diretor sugere sentidos que vão se sobrepondo em camadas, uma vez que as cenas, consideradas em seu significado literal, parecem pouco ou nada dizer. O que importa não está dito, mas sugerido, menos pelas palavras que pela mise-en-scène, efeito que exige do espectador uma tradução constante, atividade de intérprete que busca no silêncio a parcela de incomunicabilidade que parece permear a relação entre as personagens. Por volta dos 25 minutos de filme todos vão para a cama, mas tanto Karin quanto seu pai David têm dificuldades para dormir. Aos 30 minutos, Karin comporta-se estranhamente, ao se encostar à parede e depois lançar-se ao chão, como que em transe. Então busca seu pai no quarto e o encontra revisando seu livro. David coloca Karin para dormir, como se ainda fosse criança, quando Minus o chama para recolher as redes. Na cena seguinte, Karin se levanta e lê no diário do pai um apontamento sobre si mesma, acerca da condição incurável de sua doença: “A minha curiosidade me apavora, assim como o impulso de registrar o progresso da doença e fazer uma descrição detalhada da sua gradual desintegração” (37’). Os segredos pouco a pouco parecem emergir à superfície das relações. Tal episódio será depois resgatado, primeiro por Karin, que o narra ao seu marido, depois por Martin, que o leva ao sogro, e finalmente numa conversa direta entre filha e pai. Karin e Minus, sozinhos na ilha, conversam sobre diversas coisas, a começar pelo desabrochar da sexualidade do jovem. Aos 49 minutos Karin diz que anseia pelo momento em que deus atravessará a porta e se mostrará a todos. No instante seguinte, Karin confessa estar confusa por conta de sua doença de modo a não saber distinguir o sonho da realidade. Há um corte para o barco onde se encontram David e Martin. O marido de Karin se ressente do comportamento do sogro, que - 374 -


parece não se importar com a doença de Karin, contando-lhe que ela leu seu diário. Martin então confessa que tentou, não há muito tempo, se suicidar, ao acelerar seu carro sobre um desfiladeiro, mas que o carro morreu. Inquirido por Martin sobre a razão de sua confissão, David diz que não quer mais mentir e que a verdade não causará uma catástrofe. Depois acrescenta que de seu vazio interior nasceu um amor incompreensível por Karin e Minus. Um novo corte nos recoloca de volta à ilha, onde acompanhamos uma crise nervosa de Karin, que se aloja num velho barco abandonado na orla. Sob o olhar assustado do irmão, ela diz que não está bem, deita-se e fica em silêncio; na sequência, enquanto ele tenta reanimá-la, é abraçado por ela, que o seduz. Há um corte para o exterior, vemos a chuva caindo sobre restos de madeira da antiga embarcação e, num movimento vertical ascendente da câmera, flagramos os dois se levantando. Não é possível dizer o que se passou, pois a elipse temporal indicada pelo corte é propositalmente imprecisa. Há claramente um momento incestuoso, mas se houve algo mais que o abraço – e a montagem indica que houve – não é possível afirmar o quê. De todo modo, trata-se de uma expressão amorosa. O irmão volta correndo para casa para buscar água e uma manta para agasalhar Karin, mas para bruscamente no quarto, ajoelhase, olha para a janela luminosa e murmura: “Deus”. David e Martin retornam do passeio de barco e Karin confessa a seu pai que uma voz a forçou a ler seu diário, dando a entender indiretamente que a relação incestuosa aconteceu pela mesma razão. Seria apenas sua doença ou essas vozes significariam algo mais? Karin lamenta não entender a confusão que vive. Seu pai então se desculpa e diz ter se sacrificado pela arte, que ficou famoso na mesma época em que a mãe de Karin morreu e que isso foi mais importante para ele que sua perda. Por fim, acrescenta que a vida sempre se mostra ridícula e sem sentido, mas que nos protegemos disso vivendo num círculo imaginário. Karin, em surto, está defronte a uma porta e insiste que deus está chegando, que é preciso esperar, enquanto seu marido insiste que ninguém virá. Ela então se ajoelha, a porta se abre e ela grita - 375 -


desesperada tentando se defender de algo invisível. Sua visão de Deus coincide com a descida de um helicóptero, chamado por Martin, para levá-la ao hospital. Pouco depois, já sedada pelo marido, diz ter visto deus sob a forma de uma aranha que tentou penetrá-la, sem conseguir. Esse deus-aranha é descrito por Karin como tendo rosto e olhos terríveis e impassíveis. Karin é levada pelo marido a uma clínica e o filme se encerra com uma conversa entre pai e filho. Minus diz ter visto a realidade ao abraçar Karin no barco e que não pode suportar esse novo mundo. David diz que é possível, desde que se agarre a alguma coisa. Minus devolve perguntando se seu pai pode dar alguma prova da existência de deus. Ele diz que sim, e argumenta a favor do amor, de todo tipo de amor, concluindo: “Não sei se o amor é a prova da existência de Deus ou se é o próprio Deus” (1’28). O amor é como uma suspensão temporária da sentença de morte. O filme termina com Minus dizendo para si mesmo: “Papai falou comigo”. Da trilogia, este é o filme que mais luta contra a perspectiva niilista do esvaziamento de valor e sentido da vida. Não se trata da rejeição do niilismo, mas de sua exposição. É como se o filme se perguntasse, ao constatar o silêncio de deus (Nietzsche diria sua morte), sobre o que fazer. A resposta, ainda que tímida, é o amor. Somente o amor – todo tipo de amor (daí a mistura entre o fraterno e o erótico na consumação do incesto) – poderia nos aquecer na imensidão silenciosa e fria da existência. Não é a requisição de um sentido para a existência – a loucura de Karin sinaliza para a irracionalidade da vida –, mas a aposta no amor como resistência ao niilismo, amor como possibilidade de comunicação, como o enaltece Minus com sua frase final. Luz de inverno ou deus está silencioso A narrativa do segundo filme da trilogia, embora não guarde relação direta com a do primeiro, retoma a tese de que deus é amor, mas pelo seu aspecto negativo, isto é, pela possibilidade de que a espécie humana se autodestrua pela bomba nuclear. É também, dos - 376 -


três filmes, o que coloca a questão da fé de maneira mais explícita, já que o protagonista é um pastor descrente, mergulhado no niilismo e angustiado pelo silêncio de Deus. O pastor Tomas Ericsson conduz uma missa para poucas pessoas numa paróquia rural, no frio inverno da Suécia. Embora solene, seus gestos parecem mecânicos, indiferentes ao ritual que celebra. Ao final do culto, que consome mais de dez minutos do filme, descobrimos que está gripado, ainda assim recebe Jonas, um pescador que sofre de grave crise de ansiedade. Sua esposa explica ao pastor que, desde que ouviu a notícia de que a China conseguirá desenvolver bombas atômicas, seu marido não consegue mais dormir. O pastor argumenta: “Compreendo seu desespero, mas devemos continuar vivendo”. Jonas questiona: “Por que devemos continuar vivendo?” (19’30). O questionamento faz ressoar a atmosfera existencialista do pós-guerra, expressa com precisão pel’O Mito de Sísifo (1941), de Albert Camus (2004), e sua filosofia do absurdo: a busca de sentido empreendida pelo homem se depara com um mundo ininteligível. Sem Deus ou eternidade, sem razão ou respostas, o homem se vê como Sísifo, a carregar ao topo do monte uma pesada pedra que insiste em voltar para baixo tão logo se completa a jornada. Camus coloca, a seu modo, o suicídio no centro dos problemas filosóficos, já que o homem tem de lidar com sua absurda condição existencial. Embora não o defenda, o suicídio passa a ser uma saída filosófica. Essa questão é crucial em Luz de Inverno, pois não só Jonas não vê razão para continuar vivendo – e de fato, no decorrer do filme, ele se matará – como o próprio pastor não sabe como responder à pergunta, mantendo-se em angustiante silêncio. Então Tomas propõe a Jonas de se encontrarem dali a 20 minutos, tempo necessário para conduzir sua esposa a casa e retornar para uma conversa a sós. Nesse ínterim, chega à igreja a professora Marta Lundberg, que goza da intimidade do pastor, cuja esposa falecera há quatro

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anos.410Vendo sua inquietação, ela lhe pergunta o que se passa. Tomas lhe responde: “Deus está silencioso” (22’20’’). Depois de contar a situação de Jonas e mostrar-se preocupado por não saber o que dizer a ele, pergunta a Marta por que comungou. “É um banquete de amor, não?” (2’55’’) A conversa passa então a girar em torno do relacionamento de ambos, com a insistência de Marta para se casarem, proposta recusada por Tomas. Um pouco adiante ela zomba do pastor, dizendo que deus não está silencioso porque não existe. Mas o comentário parece não perturbá-lo. A relação amorosa e assimétrica de Tomas e Marta prossegue com a leitura, por parte do pastor, da carta que a professora lhe enviou para confessar seu amor e seu desejo de viver com ele. Bergman optou por enquadrar Marta em primeiro plano, olhando para a câmera, como num monólogo, de modo que sabemos que sua presença é a imagem mental que Tomas faz dela. Tal recurso estilístico enfatiza, mais que o conteúdo, os sentimentos que o acompanham, tanto pela entonação da voz quanto pela expressividade do rosto de Marta. Em dado momento (31’), ela dispara: “Tomas, eu nunca acreditei na sua fé”, tocando num dos pontos centrais do filme. Na sequência, Jonas retorna à igreja, conforme havia combinado, e em sua conversa com o pastor expõe toda sua angústia. Apesar de não ter problemas financeiros, de saúde ou familiares, Jonas diz que já há muito tempo tem vontade de se matar. Tomas inicia então um desabafo franco e relata sua tomada de consciência: “Me recusava a aceitar a realidade. Deus e eu vivíamos num mundo organizado onde tudo fazia sentido” (39’45’’). Diz, então, que fazia preces a um deus que lhe dava respostas agradáveis, tranquilizadoras e

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É interessante notar o caráter simbólico expresso pelo nome das personagens. Tomas é o apóstolo de Jesus, conhecido também como Tomé, o cético, que precisa ver para crer. Jonas faz referência ao profeta do Antigo Testamento, que se recusa a cumprir a missão de persuadir os assírios de Nínive a se arrependerem de seus pecados. Marta atestaria a fé de Marta, irmã de Lázaro e Maria, cuja dedicação a Jesus é tida como exemplar. A dúvida de Tomas, o pânico de Jonas e o amor de Marta.

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que toda vez que o confrontava ele se mostrava monstruoso, um “deus-aranha”, retomando a imagem da primeira película. É interessante notar aqui que a fala de Tomas, numa perspectiva hermenêutica, aponta para o modo como cada um interpreta Deus. Em Através de um espelho, deus é a loucura de Karin, um deus-aranha que expressa a ausência de racionalidade da existência, mas é também amor, a possibilidade de conexão entre os homens, ainda que a comunicação seja sempre difícil. Em Luz de Inverno, o mesmo deus-aranha aparece para encarnar o aspecto perturbador, trágico da existência, aquele que não se quer ver, a realidade que não se quer aceitar, daí a busca por um deus que seja justamente o antídoto da realidade, o que pode dar as respostas desejadas e não as verdadeiras. Voltando ao filme, Jonas faz menção de ir, mas Tomas o retém e lança uma questão filosófica sobre deus. Caso ele de fato não exista, faria alguma diferença? Para o pastor, sem deus a vida se torna compreensível e a morte a extinção da vida. “O sofrimento é incompreensível, portanto não exige explicação” (42’30’’). Sua colocação contrária o senso comum. Deus, como criador do mundo e da vida, seria a expressão de uma inteligência superior, uma razão para a existência do sofrimento, a verdade que possibilita a justiça etc. Sem ele, abandonados ao acaso, nada faria sentido. A perspectiva apresentada pelo pastor Tomas liberta o homem de toda responsabilidade, inocentando-o em relação ao sofrimento, que passa a ser inexplicável e, como tal, avesso a qualquer justificativa. Sofremos por acaso, pois a vida não é resultado do gesto de um criador, mas dada ao acaso. A morte se torna, então, leve, pois extinta a vida, extinto o espírito, nada mais resta que a matéria inerte do cadáver. É, portanto, na irracionalidade da existência que Tomas encontra sentido. É a ausência de verdade a verdade última. Na sequência do filme, encontram o cadáver do pescador Jonas, que se suicidou ao pé de uma árvore. O pastor se encarrega de dar a notícia aos Person, mas Marta o retarda retomando a discussão sobre a relação que mantém com Tomas, que volta a recusar sua oferta - 379 -


de casamento, desprezando seus sentimentos. Após a ríspida discussão que entabulam, com Tomas enfaticamente rejeitando o amor de Marta, ele a convida para acompanhá-lo à casa da família do pescador. A Sra. Person, grávida do quarto filho, recebe resignada a notícia dada pelo pastor e recusa sua proposta de lerem um trecho da bíblia. Tomas e Marta seguem então para uma outra igreja, na qual ele era aguardado para celebrar uma missa. O sacristão, que havia pedido para conversar com o pastor, aproveita que faltam alguns minutos para o início da missa, e o questiona sobre o sofrimento. Afirma ter sofrido tanta dor física quanto Jesus e por mais tempo e então explana sobre o que julga ter sido a dor mais profunda de Cristo, quando depois da última ceia se viu só, com os discípulos adormecidos. Tal solidão teria se tornado mais intensa por ter percebido que ninguém o compreendia. “Ser abandonado quando precisa contar com alguém. Isso deve ser extremamente doloroso” (1:14’40’’). Mas o pior viria depois, quando pregado na cruz, chama por Deus. Nesse momento, segundo o sacristão, Cristo teve dúvidas e, para ele, este deve ter sido seu maior sofrimento. “Deus ficou em silêncio” (1:15’35’’). Tomas permanece em silêncio durante e após a fala do sacristão. A ausência de trilha sonora torna a cena ainda mais densa, incômoda. A questão colocada pelo sacristão retoma, em certa medida, A Última Tentação de Cristo, de Níkos Kazantizákis, publicado em 1951 e levado às telas por Martin Scorsese em 1988. Trata-se de uma conjectura sobre o que Cristo teria desejado e temido nos instantes finais de sua vida. Retirado da cruz por uma menina (o diabo) e iniciado na vida ordinária, Jesus se casa, trabalha, tem filhos, enfim, vive o cotidiano das pessoas comuns. Sua última tentação é, no fim das contas, a de viver uma vida comum, o que exporia seu temor de não ter cumprido sua missão divina. Transpassado de dúvidas, Cristo aguarda na cruz pela resposta de Deus. Mas deus está silencioso. A igreja está vazia, não apareceu ninguém, somente Marta se mantém à espera, apesar de rejeitada por Tomas. Paira a dúvida sobre - 380 -


se o pastor rezará a missa ou não. Quem o ouvirá? Qual o sentido de se celebrar uma missa quando não há fieis, quando não há ninguém para comungar?411 O sacristão acende as luzes, o organista se põe a postos e Tomas ocupa o altar para ministrar a missa exclusivamente para Marta. Ou haveria alguma intenção em seu gesto que não percebemos? O final do filme abre-se propositadamente a múltiplas interpretações, pois o serviço oficializado por Tomas pode significar tanto uma aproximação amorosa de Marta, afinal só há ela na igreja, quanto a repetição mecânica, isto é, desassistida de intencionalidade, de um rito que se vê obrigado, por sua condição de pastor, a cumprir, tal qual Sísifo a carregar sua rocha. O ato final de Tomas pode significar uma tentativa de se reconciliar com Deus, ou ao menos de interrogar por sua presença, como o fez Cristo na cruz, mas também pode ser a capitulação de sua fé. Na perspectiva hermenêutica de análise aqui adotada, vale mais seguir as possibilidades interpretativas que fechar numa resposta, e parece ser essa justamente a intenção do diretor, plantar a dúvida no centro da relação com o sagrado, de modo a perturbar essa relação. Não seria justamente a fé, em vez de uma redonda certeza, a dúvida em sua atividade mais exasperante? O que parece não suscitar dúvida é o leitmotiv da incomunicabilidade, que perpassa também esta segunda película da trilogia. A esposa de Jonas não consegue se comunicar com o marido, Jonas não consegue se comunicar com o pastor, o pastor não se comunica com Marta. Quando Tomas dá a notícia da morte do marido à Sra. Persson, ela reage dizendo que precisa comunicar a notícia aos filhos. Quando o sacristão expõe sua tese sobre o sofrimento de Cristo, retoma a questão da incomunicabilidade de Deus... O único indício de comunicação possível é o amor. É o que dá a entender o organista quando lembra a Marta que Tomas pregava, na época em que sua esposa era viva, que “Deus é amor e amor é Deus. O amor 411

O final do filme foi inspirado por um fato testemunhado por Bergman: ao ficar sabendo que um pastor se recusara a celebrar um culto por falta de fiéis, seu pai, que era pastor, não hesitou e, furioso, celebrou a missa em seu lugar.

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prova a existência de Deus. O amor é uma verdadeira força para a humanidade” (1:17’30’’). Depreende-se do contexto que Tomas se comunicava com Deus por meio do amor que nutria por sua esposa. Sua crise, portanto – é possível cogitar –, adviria menos da ausência de Deus que de sua esposa. Deus está silencioso porque o amor desapareceu. E sem amor não há comunicação. O Silêncio ou que bom que não nos entendemos O filme final da trilogia rompe em definitivo com a possibilidade de comunicação entre as pessoas, o amor se torna uma busca inútil e o niilismo contamina todas as relações. Trata-se de um filme que transita entre o onírico e o real, com uma atmosfera pesada, quase insuportável, na qual desejo e morte se entrelaçam de maneira mórbida, sob um calor escaldante e em uma cidade imaginária. Em suas Memórias, Bergman (1995, p. 176) assinala que a cidade retratada no filme derivou de seus sonhos noturnos, daí a imprecisão tanto geográfica quanto linguística. Duas irmãs e uma criança chegam para uma temporada em Timoka, cidade em guerra, ocupada por tanques, onde se fala uma língua desconhecida, e ficam hospedadas em um estranho hotel, com um empregado mudo e uma trupe de anões. Diferente dos dois filmes anteriores – que demandaram uma decupagem narrativa mais detalhada para a discussão de seus temas –, O Silêncio pode ser facilmente resumido a partir do drama de Ester, uma enferma à beira da morte, que vigia a atividade sexual de sua irmã Anna e tenta estabelecer alguma comunicação com seu sobrinho, o garoto Johan, cujas atividades se alternam entre acompanhar o sofrimento de sua tia e perambular pelos corredores e quartos do decadente hotel em que estão hospedados. O filme começa numa cabine asfixiante de um trem, com o garoto tentando decifrar um aviso colado no vagão. Na sequência, estamos num quarto de hotel, Ester vigia sua irmã, trabalha, bebe, se masturba, sofre com sua doença, asfixia-se. Anna vai a cidade, assiste - 382 -


um casal fazendo amor, relaciona-se com um bartender e provoca sua irmã ao se exibir com o amante. Há indícios de uma relação incestuosa entre as duas, Ester parece desejar sexualmente sua irmã, mas nada de concreto é mostrado. O garoto perambula pelo hotel, assiste a um ensaio da trupe dos anões, enfastia-se, conversa com a tia. Ester e Anna discutem. Anna pede a Ester, que é culta e traduziu livros importantes, para explicar por que segue vivendo, já que quando o pai morreu ela havia dito que não queria mais viver. Ester rebate que Anna não a compreende e, contrariando sua acusação de que a odeia, diz amá-la. O tom de voz calmo e superior de Ester irrita a irmã, que pede para que ela saia. Seu acesso de raiva e desespero, expresso por gritos lancinantes, é acompanhado de seu amante, que a acaricia indiferente à sua dor. Na cena seguinte, Anna comunica que partirá no trem das 14h. Ester, na presença do empregado mudo do hotel, agoniza, sufoca, grita, busca ar, enfim, luta contra a morte iminente. Antes de morrer, porém, escreve uma carta para o sobrinho e lhe diz que é importante que a compreenda, no entanto as palavras escritas em um idioma estrangeiro permanecem indecifráveis para ele (e para nós). A cena final, à semelhança da inicial, se passa num trem e repete a mesma incompreensão de Johan frente a um texto. É um filme sobre a solidão e a incomunicabilidade, logo sobre o amor malogrado, a impossibilidade de compreensão e, portanto, de sentido. A vida, e sobretudo a morte, é absurda, daí não haver nenhuma razão para viver, ou para morrer. A conclusão pessimista decalcada de tal constatação é que a vida não tem valor, expressão de um niilismo passivo que conduz à negação da vida. É de se notar que a questão niilista está presente nas três obras, embora nas duas primeiras ainda se busca uma forma de resistência, o amor. Deus é amor e o amor possibilita que as pessoas se comuniquem, estejam juntas, escapem à solidão e ao silêncio. Não se trata – é importante frisar – de uma experiência de plenitude, mas de encontrar um fio ao qual se agarrar para seguir vivendo... É a busca por Deus que empreende Karin em sua loucura, a busca de amor de David e Minus, na primeira película; a dúvida que dilacera o pastor, a - 383 -


esperança amorosa de Marta, na segunda, embora haja aqui o forte contraponto de Jonas, que não vê razão para seguir adiante. Mas no terceiro filme já não há nada que aponte para uma possibilidade, pequena que seja, de salvação. Não há amor, compreensão, nenhum antídoto à solidão. O ruído queixoso do niilismo frente ao silêncio do trágico O que se pode depreender da descrição fenomenológica da trilogia do silêncio de Ingmar Bergman é o itinerário niilista da morte de Deus, para resgatarmos um termo nietzscheano. Precisamente o anúncio da morte de deus e não a negação de sua existência, diferença radical entre quem se depara com uma perda (algo que se buscava não se pode encontrar) e quem jamais esperou o que quer que seja (ética da indiferença)412. Na famosa passagem do aforismo 125 de A Gaia Ciência, intitulado O Louco, Nietzsche descreve esse personagem que, com uma lanterna acesa em plena luz do dia, corre pela praça perguntando onde está Deus, o que causa enorme diversão entre os que não creem. Indignado, o louco diz que deus está morto, que fomos nós que o matamos e que este fato é demasiado grande, porque teríamos que nos converter em deuses para sermos dignos de semelhante ação. No mesmo livro, no fragmento 343, afirma Nietzsche (1983, p. 196) que a morte de Deus é o maior dos acontecimentos recentes e que os filósofos e espíritos livres se sentem iluminados por uma nova aurora: “nosso coração transborda de gratidão, assombro, pressentimento, expectativa – eis que o horizonte nos aparece livre outra vez”. 412

É exemplar o modo como Ricardo Reis, o heterônimo pessoano, defende a indiferença como modo de pensamento e ação por meio da recorrência de imagens sobre a brevidade da vida, a certeza da morte e o inexorável destino. Trata-se de uma “indiferença diante de qualquer sentido transcendente, qualquer engajamento, qualquer finalidade para a existência. Se a morte é dada indiferentemente a cada homem, é com a mesma indiferença que cada homem deve viver. Que diferença poderia nos livrar da morte? (Almeida, 2011, p. 652).

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O mesmo acontecimento – historicamente decisivo para Nietzsche – aparece, no entanto, em chaves ambivalentes. É tanto o mal-estar de um niilismo passivo413, caracterizado pela perda dos valores e sentidos que organizavam o mundo, quanto o limiar de um novo tempo, de transvaloração dos valores, de renovação trágica, uma ponte para além do homem, niilismo ativo pelo qual a alegria passa a ser a expressão da afirmação incondicional da vida. Portanto, de um lado, expressão do absurdo, como nos moldes existencialistas, com origem em Kierkgaard e Schopenhauer, mas aqui mais precisamente com as cores camusianas, de um homem a la Sísifo, preso ao sem sentido da repetição cotidiana; de outro, aprovação da vida frente ao absurdo, ao que há de desagradável na existência, sem a necessidade de busca de um sentido, embora possa jogar com todos os sentidos possíveis (inclusive a ausência de sentido ou o nonsense), já que a vida é dada como aparência, brilho fugaz, efemeridade, superfície sem fundo, insustentável leveza. No niilismo passivo, pautado pelo sentimento da perda, o absurdo se instaura porque falta um sentido, sentido este que, embora necessário, não se encontra mais, ainda que devesse se fazer presente. É este sentimento que se prolonga nas obras de Bergman, especialmente nos filmes da trilogia do silêncio. Por exemplo, em Através de um Espelho, Karin expressa, no auge de sua crise, que “é terrível ver sua própria confusão e não entendê-la” (1’11’’). Um minuto depois David diz que “traçamos um círculo imaginário ao nosso redor para afastar o que não faz parte do jogo”, referindo-se ao modo como construímos sentido para algo que é pressentido como absurdo. Em Luz de Inverno, Jonas está em crise, pois teme que o mundo venha a ser destruído por bombas nucleares, pois ouviu a 413

De acordo com Volpi (2005, p. 48 e 64), o niilismo passivo, para Nietzsche, significa o debilitamento do poder do espírito, incapaz de alcançar os objetivos perseguidos. Para Pelbart (2013, p. 104), trata-se do “nojo pela existência repetitiva e sem sentido (...), o fim do otimismo moral, a consciência de que com o mundo sem Deus e sem finalidade nada mais há a esperar.”

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notícia de que a China as estava projetando. Em vez de o pastor Tomas lhe reconfortar, termina por confessar sua própria incredulidade, reforçando o absurdo do mundo. Aos 42 minutos a pergunta crucial: “Se Deus não existe, isso faria alguma diferença?” Há aqui uma inversão, pois deus deveria ser a própria necessidade, de onde adviriam todos os sentidos. Se sua existência é indiferente (não necessária), todo sentido é casual, uma variação do absurdo. Em outras palavras, na visão de Tomas, a ideia de deus é tão absurda quanto a sua inexistência. O terceiro filme, O Silêncio, é todo ele pautado pelo absurdo, a começar pela cidade inexistente, Tiimoka, e pela língua desconhecida de seus habitantes. Absurdo que se prolonga no desejo incestuoso que Ester devota a Anna, no tédio de Johan, na mudez do funcionário do hotel, nos sete anões... Entretanto, não há melhor expressão do absurdo que a incomunicabilidade que perpassa as relações entre as personagens presentes nas narrativas das três películas. É como se o essencial a dizer sempre escapasse no momento em que devesse ser dito. Ocorre no choro incontido do escritor logo no início de Através de um Espelho, próximo ao fim quando Karin se depara com o deus-aranha, ocorre nas numerosas tentativas que faz Marta de expressar seus sentimentos a Tomas, e ainda mais no silêncio de Tomas quando se depara com a dúvida, como ocorre em suas conversas com Jonas, Marta e o sacristão. Ocorre, por fim, na crise de asfixia de Ester em O Silêncio, uma tradutora que, a despeito de sua racionalidade lógica, por ela mesma admitida, não encontra meios de se comunicar com sua irmã e seu sobrinho. Enfim, o absurdo se dá por conta de, a despeito da totalidade das palavras e da diversidade das línguas, o que faz com que tenhamos todos os meios necessários para a comunicação, não haver nada a ser comunicado. Para Bergman, esse paradoxo se manifesta inaceitável, daí o silêncio como expressão niilista em resposta ao absurdo da existência. Em relação ao niilismo, que para Gianni Vattimo (1996, p. 4) é “desvalorização dos valores supremos”, expressa-se como um

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sentimento de decadência em relação às matrizes imaginárias cristã e grega. A crença de que o mundo verdadeiro estava em outro lugar, seja o paraíso cristão ou o mundo das ideias platônico, perde força, sem que no entanto este mundo, visto como sombra, falsidade ou aparência, ocupe seu lugar. Então, este mundo aqui, cujo pequeno valor era estimado pelo grande valor do mundo metafísico, sucumbe junto com as prerrogativas da moral cristã e do racionalismo socrático-platônico (Almeida, 2015, p. 78e)

Essa constatação de base niilista só é possível a partir do pensamento de Schopenhauer, que na perspectiva de Clément Rosset (2005) recusa a interpretação intelectualista de mundo para descrevêlo como absurdo em relação a qualquer ideia de causalidade, finalidade, necessidade. Essa recusa das ideias interpretativas do racionalismo promoverá uma inversão em relação à primazia da inteligência sobre a vontade. Como consequência, emerge na atividade humana as representações ilusórias, irracionais, movidas por uma vontade impossível de se satisfazer. Ainda segundo Rosset (2005, p. 42), a grande atenção dada ao aspecto pessimista da insatisfação da vontade humana é que impossibilita o reconhecimento de Schopenhauer como filósofo do absurdo, já que o que sua obra esquadrinha predominará na literatura e no pensamento do século XX, como em Kafka, Sarte e Camus. De nossa parte, acrescentaríamos Bergman, cuja obra, ao menos em parte – e certamente nesta trilogia –, trata dessa busca metafísica por algo que, ao cabo, se mostra, mais que inexistente, absurdo. Isto é, não há aceitação de que o mundo é sem sentido, que o que existe de mais eloquente é o silêncio e de que não adianta buscar palavras para traduzi-lo, já que qualquer representação jamais passará de ilusão, mas uma queixa ruidosa de que as coisas sejam assim, daí a dor lancinante que marca suas personagens mais importantes, como Karin, Tomas e Ester, presas de ansiedade, angústia e de uma - 387 -


necessidade de dizer algo que jamais se delineia. São protagonistas que agonizam, definham, sofrem, que não conseguem respirar, que buscam o ar na mesma medida que buscam as palavras para expressar um mundo que, por carecer de causalidade, finalidade e necessidade, sucumbe ao absurdo, queda-se em silêncio. Não se trata de um silêncio qualquer, como o silêncio do constrangimento de quando se tenta estabelecer uma conversa e falta assunto ou intimidade, também não é o silêncio da opressão, quando o poder de outrem cala na boca a palavra da denúncia. É um silêncio ontológico, a priori, existencial, trágico. Há evidentemente nos filmes da trilogia o silêncio cênico, caracterizado pela ausência ou diminuição de intensidade dos sons ambientes, pela não utilização de trilha sonora, pela troca silenciosa de olhares, pela economia das palavras, enfim, decididas pelo estilo cinematográfico esteticamente elaborado por Bergman, como ele mesmo confessa no documentário Bergman faz um filme, e que trata da realização de Luz de Inverno, mas há outras camadas de silêncio em seus filmes, camadas de sentido que o tornam particularmente filosóficos, pois aderem a uma visão niilista de mundo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Rogério de. O imaginário trágico de Ricardo Reis: uma educação para a indiferença. Revista Educação e Filosofia Uberlândia, v. 25, 2011, pp. 635-654. ALMEIDA, Rogério de. Antiniilismo: ou a superação do niilismo pela filosofia trágica. Revista de Estudos de Cultura, no. 3, 2015, pp. 75-83. ARAÚJO, Alberto Filipe. Silêncio. Iniciação e Transformação. Maia: ISMAI, 2018. BERGMAN, Ingmar. Linterna Mágica. Barcelona: Tusquets, 1995. - 388 -


CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. São Paulo: Record, 2004. COLINA, José de la. El inferno es un hotel en Tiimoka. In: BERGMAN, Ingmar. El silencio. México: Ediciones Era, 1975. HAN, Byung-Chul. El enjambre. Para una crítica de la opinión pública posmoderna. Barcelona: Herder, 2014. LE BRETON, David. El Silencio, aproximaciones. Madrid: Sequitur, 2006. NIETZSCHE, Friedrich. Obras Incompletas. (Col. Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1983. PELBART, Peter Pál. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: N-1 edições, 2013. ROSSET, Clément. Escritos sobre Schopenhauer. Valencia/Espanha: Pre-textos, 2005. VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade. Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1996. VOLPI, Franco. El nihilismo. Buenos Aires: Biblos, 2005. ZIMMERMANN, Ana Cristina. Sobre pausas e silêncios. São Paulo: Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, 2015, p. 55-61. FILMOGRAFIA ATRAVÉS de um espelho. Direção: Ingmar Bergman. Suécia: Svensk Filmindustri, 89 min, 1961.

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BERGMAN faz um filme. Documentário para a TV. Suécia, 146 minutos, 1963. ILHA de Bergman, A. Direção: Marie Nyreröd. Suécia: Sveriges Television, Svensk Filmindustri, 174 min, 2004. LUZ de inverno. Direção: Ingmar Bergman. Suécia: Svensk Filmindustri, 81 min, 1963. SILÊNCIO, O. Direção: Filmindustri, 96 min, 1963.

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Suécia:

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CAPÍTULO 12 CORPO E SILÊNCIO: FUNDAMENTOS PARA UM DIREITO AO SILÊNCIO CORPORAL Jorge Bravo414 Demasiadas respostas perturbam o julgamento Provérbio árabe «O corpo é o nosso enraizamento no mundo. Viver é sempre jogar o seu corpo no mundo: vendo, escutando, experimentando. Os gestos e mímicas, a maneira de se falar. É também o lugar das emoções, um instrumento de comunicação» David Le Breton «Não conhecemos as coisas senão através do nosso corpo, mas não sabemos como o nosso corpo conhece, nem quem conhece através do nosso corpo. E não sabemos o que sabemos, enquanto não conhecermos o conhecimento que o nosso corpo tem» Henri Atlan

INTRODUÇÃO O corpo é a estrutura somática do desenvolvimento da personalidade individual que envolve a relevância de múltiplos aspetos incorpóreos (como as sensações, o pensamento, os sentimentos, as convicções, a criatividade). Ele recorta a nossa existência física, sendo reconhecido pelos outros como realidade única, irrepetível e inimitável, dadas as suas características fisiológicas, genéticas e fenotípicas. Numa sociedade marcada pelo protagonismo das tecnologias de controle e vigilância – falando-se numa “sociedade de vigilância” 414

Ver Lista de Colaboradores.

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(física, digital, audiovisual, comunicacional) –, em incessante evolução e expansão, é porventura inconsequente e irrealista pretender que o corpo possa ficar resguardado e a coberto de um qualquer segredo ou que se possa, relativamente a ele, invocar-se uma tutela jurídica que ponha o seu titular a salvo da devassa probatória que todas essas tecnologias hoje permitem415. Assiste-se hoje ao alastrar de espaços de renúncia à privacidade, o que pode ter como consequência a exposição do sujeito a devassas de dimensões da personalidade que podem basear a utilização probatória futura dos respetivos registos, mormente quando esteja em causa a dimensão física ou corporal. Pressupõe o presente trabalho que apenas interessa à nossa abordagem a eventual vulneração da integridade pessoal – em contextos processuais de produção de prova corporal – relativamente à condição e posição processual do imputado, no confronto com a possibilidade de (contribuição para a sua) autoincriminação. Estarão subtraídas do espaço da nossa reflexão as questões atinentes à produção de prova corporal – frequentemente de extraordinária relevância para a descoberta da verdade material – no tocante a outros intervenientes processuais, como a vítima ou terceiros. Embora a relevância probatória do corpo não seja problemática exclusiva do processo penal416, o corpo do agente criminoso sempre

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Sobre a questão, cf. CATARINA FRÓIS, «Bases de dados pessoais e vigilância em Portugal: análise de um processo em transição», A Sociedade Vigilante: Ensaios sobre Identificação, Vigilância e Privacidade (CATARINA FRÓIS, org.),Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa, 2008, pp. 111-133. Será interessante assistir ao impacto que a progressiva aplicação da inteligência artificial poderá vir a implicar sobre valores e direitos como a reserva da vida privada, a integridade pessoal e a autodeterminação informacional. 416 Pense-se, p. ex., no âmbito do processo civil, no interesse da relevância probatória do corpo nos domínios do estabelecimento da filiação, da responsabilidade civil (por acidentes e outros factos ilícitos) de certos contratos que implicam a consideração e utilização do corpo. Também no âmbito do processo laboral, o essencial interesse probatório do corpo releva no tocante à determinação do alcance funcional das lesões sofridas pelos sinistrados de trabalho e à definição dos termos da responsabilidade infortunística (por acidentes de trabalho), da

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concitou o interesse das instâncias punitivas do Estado ou de organismos políticos anteriores a ele, o que se traduzia pela consideração do arguido como objeto do processo (reo). São conhecidas as mais diversas formas de ilimitada disponibilidade do corpo do imputado pelas instâncias repressivas, que vão desde as práticas persuasivas e coercivas de produção de prova (ordálios, tortura), passando pela aplicação de penas corporais, até à mais extrema manifestação da completa submissão do imputado à vontade dos poderes jurídicos do Estado ou de outras entidades, que é a pena de morte417. Ao falar-se de ingerências probatórias sobre o corpo, este não deve ser considerado na sua totalidade ou unidade. Desde logo, porque não existe um conceito legal ou normativo de corpo, devendo ser de acordo com a dimensão corporal que em concreto se mobiliza com finalidades jurídico-probatórias que se deve encontrar o regime jurídico-processual especificamente adequado para solucionar os problemas de ponderação que se colocam. Apesar da ausência de um conceito legalmente precipitado de corpo, tal não constitui um obstáculo propriamente intransponível para equacionar os problemas jurídico-probatórios respeitantes ao corpo418. A inexistência de um conceito normativo de corpo não impede que a sua prévia existência ontológica permita refletir sobre a condição existencial da própria pessoa, em geral, e jurídico-probatória em especial. E a densificação jurídico-categorial de tal realidade pode ser utilização de registo de prova por dados biométricos ou com recurso a videovigilância. 417 Pelo que, em rigor, mesmo em face de finalidades meramente retributivas, não se poderia qualificar como uma verdadeira pena, mas tão só ser encarada como emergência de uma vindicta oficialmente assumida (em que o Estado se arroga o direito de vingar irremediavelmente a ofensa a bens jurídicos, nos casos de crimes sem vítima, ou naqueles em que se “subroga” à vítima), com fundamento no talião. 418 Recorda-se, por outro lado, a existência de um conceito legal de «cadáver» – «o corpo humano após a morte, até estarem terminados os fenómenos de destruição da matéria orgânica» (art. 2.º, al. i) do Dec.-Lei n.º 411/98, de 30-12) –, o qual encerra no seu conteúdo o conceito (indefinido) de «corpo humano», para além da persistente indefinição dos critérios jurídicos da morte.

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apreendida pelos diversos enquadramentos que os regimes normativos positivados fornecem ao intérprete e aplicador. Por outro lado, quando analisado e observado com finalidades probatórias no contexto de um processo penal – sendo o corpo um dado omnipresente no processo –, podendo o Estado recorrer a um formidável arsenal probatório, é cada vez mais tentador a sua utilização, a pretexto da menor invasividade ou inocuidade das tecnologias mobilizadas. E, sobretudo, mais sedutor se torna o acesso a informação corporal produzida antes da própria notícia do crime, ou seja, em momentos contemporâneo, anterior ou subsequente ao da prática do fato ilícito típico. A “presença corporal” do sujeito imputado (suspeito/arguido) em contexto processual pode significar uma condição de vulnerabilidade e deve ser perspetivada, quanto a nós, com base nesse pressuposto. Ainda que todos os indícios e provas possam inquestionavelmente apontar para a culpabilidade do imputado, a sua presença perante as autoridades processuais colocam-no numa posição vulnerável. Esta vulnerabilidade, deve ser entendida face aos poderes estaduais, que mobilizam os seus meios no sentido da cabal demonstração (beyond a reasonable doubt) da sua culpabilidade e do estabelecimento da sua responsabilização. Assim, deve ser tomada a sério a vigência do princípio da presunção de inocência, como veremos, com todas as suas consequências. 1. O histórico castigo do corpo Na obra de Michel Foucault Vigiar e punir – História da violência nas prisões419, que nos fornece uma perspetiva histórica420 e 419

Ed. Vozes (reimp.), Petrópolis, 2002. Para uma visão de diversas perspetivas históricas das questões antropológicas e jurídicas do corpo, cf. JORGE CRESPO,[..]A História do Corpo, [..]Difel, Lisboa, 1990, JEAN-PIERRE BAUD, [..]L´affaire de la main volée: une histoire juridique du corps, Seuil, Paris, 1993, JACQUES LE GOFF – NICHOLAS TRUONG, Uma História do Corpo na Idade Média, Ed.Teorema, Lisboa, 2005, NEIL SHUBIN, Quando Éramos Peixes – Uma viagem pelos 3,5 mil milhões de anos de história do corpo humano, 420

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sociológica sobre a evolução dos castigos e punições corporais desde a Idade Média até à Idade Moderna, o seu Capítulo I da I.ª Parte é sintomaticamente intitulado «O corpo dos condenados». A natureza ritual excessivamente desumana e dolorosa dos suplícios tinha uma justificação jurídico-política, com o propósito de perpetuar o poder pelo terror. À medida que as instituições jurídicopolíticas se aperceberam que, afinal, as multidões sobre que deveria operar a função aterrorizante dos castigos, se identificavam, muitas vezes, com o supliciado ou executado, reformula-se o cariz de tais práticas, mais por uma noção de utilitarismo político-social do que exatamente por razões de natureza humanitária ou altruísta. As cerimônias com exibição do corpo supliciado, esquartejado, amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como espectáculo, foram desaparecendo, com a influência do Iluminismo, deixando o corpo de constituir o alvo principal da repressão penal. Entre fins do séc. XVIII e a segunda metade do séc. XIX a punição passou a ser, gradualmente, um ato ou procedimento administrativo post decisão judicial. Nas primeiras décadas do séc. XIX, as práticas punitivas passaram a implicar menos contacto físico com o corpo, tocá-lo o menos possível, para nele atingir algo que não é o próprio corpo. Este passa a ser instrumento ou veículo. Qualquer intervenção sobre o corpo passa a ter como objetivo privar o indivíduo da sua liberdade, entendida simultaneamente como um bem e um direito. O corpo é, assim, colocado num sistema de coação e de privação, de obrigações e de interdições, e os castigos aplicados passam a ser os trabalhos forçados, o degredo e a reclusão. Em qualquer caso, castigos bem distantes dos castigos corporais da época dos suplícios. Mas também os rituais de execução [da pena] capital manifestam os propósitos do processo de supressão do espetáculo e de anulação da dor. Propõe-se, Estrela Polar, Cruz Quebrada, 2008, DANIEL E. LIEBERMAN, [..]A História do Corpo Humano – Evolução, saúde e doença, Temas e Debates -Círculo de Leitores, Lisboa, 2015.

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em homenagem a uma utopia do poder judiciário, tirar a vida evitando que o condenado sinta o castigo; privar de todos os direitos sem fazer sofrer; impor penas indolores, ao mesmo tempo que se assiste a um movimento das legislações europeias visando um mesmo objetivo: uma morte igual para todos, sem atender à natureza do crime ou ao estatuto social do condenado, uma morte tanto quanto possível instantânea, uma execução, no dizer de Foucault, «que atinja a vida mais que o corpo». A guilhotina, utilizada generalizadamente a partir de 1792, traduz e materializa esse entendimento. A pena de morte passou a ser encarada como um acontecimento processual, reduzida a um acontecimento visível, mas que se esgotava nesse ato. E sobretudo, mais significativamente, tratava-se de aplicar a pena já não a um corpo passível de sofrer a dor, mas a um sujeito jurídico titular, entre outros direitos, do direito de existir. A guilhotina marcou, assim, uma nova ética da morte penitencial, enquanto morte rápida, tendencialmente indolor e desprovida de ritual do suplício. Em meados do séc. XIX o poder sobre o corpo deixou de se centrar no suplício como técnica de sofrimento, embora subsistisse um resquício supliciante nos modernos mecanismos de justiça criminal, com um evidente abrandamento da crueldade penal, afrouxamento esse que foi visto, durante muito tempo, como um fenómeno quantitativo: menos crueldade e menos sofrimento, mais respeito e mais humanidade: «Que o castigo (…) fira mais a alma do que o corpo», como lembra, de novo Foucault. Já não é ao corpo que se dirige a punição, mas à “alma”. À expiação da culpa sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, fundamentalmente, sobre o desejo, o intelecto, as ambições. E o paradigma da justiça punitiva passa a confrontar-se com uma nova realidade, uma realidade “incorpórea”. Todas estas realidades históricas estiveram assentes numa deliberada, ou não esclarecida, atitude de indiferença perante princípios como os da dignidade da pessoa humana, da presunção de inocência, da não autoincriminação, que são, afinal, aquisições relativamente recentes. Contudo, pela progressiva generalização do seu reconhecimento nos sistemas legais processuais, aquelas - 396 -


manifestações são hoje, em quase todo o Mundo, só fatos históricos. O que não significa que as questões respeitantes à ingerência e devassa do corpo não assumam hoje, perante o desenvolvimento científicotecnológico, novos e insuspeitados contornos, a demandar exigentes exercícios de enquadramento e solução. A assunção contemporânea de um processo equitativo postula a exigência da procura da verdade material com respeito pela dignidade da pessoa humana. Mas só a aquisição da verdade mediante provas obtidas de forma processualmente válida poderá traduzir a conformidade constitucional daquele propósito. O tronco de “normatividade jurigênica” representado pelo princípio da presunção de inocência, do qual brotam ramos concretizadores como o direito à não autoincriminação e o direito ao silêncio pode carecer de algumas revisões ou precisões quando aplicadas à realidade natural (real verdadeiro) e normativa (real construído) que se pode identificar como um direito ao silêncio corporal. O princípio da presunção de inocência surgiu na Revolução Francesa421, historicamente ligado à necessidade de limitar abusos do Estado, que emergiam de um sistema inquisitório do Ancien Régime. Consequentemente, no contexto de uma dialética ritual tendente ao apuramento da verdade material, por meios processualmente válidos, o imputado não vê a seu cargo qualquer ônus probatório, no sentido de ter de demonstrar a sua inocência, e deixa de ser objeto ou meio de prova, para poder exercer o seu direito de contraditar as provas da acusação422. 421

Pela primeira vez consagrado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789 (artigo 9.º): «Tout homme étant présumé innocent jusqu’à ce qu’il ait été déclaré coupable, s’il est jugé indispensable de l’arrêter, toute rigueur qui ne serait pas nécessaire pour s’áassurer de sa personne doit être sévèrement réprimée par la loi.». Para uma perspetiva da evolução histórica do princípio, cf. JOSÉ SOUTO DE MOURA,«A Questão da Presunção de Inocência do Arguido», RMP, jan.-mar., 1990, Ano 11.º, N.º 42, pp. 31-47. 422 Outra questão, que aqui apenas enunciaremos topicamente, é a da distribuição de ónus de prova em sistemas processuais adversariais ou de partes – do qual o nosso

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O princípio assume, com poucas diferenças, o mesmo sentido e conteúdo nos principais instrumentos internacionais sobre direitos humanos e fundamentais. Na DUDH, de 10-12-1948, estatui-se, no seu art. 11.º, que toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas». Por seu turno, na CEDH, de 1950, estabelece-se que «qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada» (art. 6.º, n.º 2) e no PIDCP, de 1976, estabelece-se que «qualquer pessoa acusada de infracção penal é de direito presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida (art. 14.º, n.º 2).

É, pois, natural que o princípio da presunção de inocência conheça uma transcendente importância no âmbito probatório processual penal423, não se confinando à fase de julgamento. Mais recentemente, a Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 09-03-2016 (relativa ao reforço de certos aspetos da presunção de inocência e do direito de comparecer em se exclui – ou a sua ausência, no sentido de ser ao Tribunal que compete, no limite – ao abrigo do princípio da investigação –, investigar a hipótese colocada da existência de crime, sendo que um non liquet equivalerá a uma absolvição. Mas, tal só será legítimo, após se esgotarem os meios idóneos a produzir prova sobre certa realidade jurídico penalmente relevante que se pretenda demonstrar. 423 Sobre o princípio da presunção de inocência, cf., entre nós, as importantes recensões de MIGUEL NUNO PEDROSA MACHADO, «O Princípio In Dubio Pro Reo e o Novo Código de Processo Penal», ROA, Ano 49, Setembro 1989, pp. 583-611, JOSÉ SOUTO DE MOURA, «A Questão da Presunção de Inocência do Arguido», loc. cit., CRISTINA LÍBANO MONTEIRO, Perigosidade de Inimputáveis e In Dubio Pro Reo, BFDUC - Stvdia Ivridica N.º 24, Coimbra Ed., Coimbra, 1997, RUI PATRÍCIO, O Princípio da Presunção de Inocência do Arguido na Fase do Julgamento no Actual Processo Penal Português (Alguns Problemas e Esboço para uma Reforma do Processo Penal Português), AAFDL, Lisboa, 2000, e de ALEXANDRA VILELA, Considerações Acerca da Presunção de Inocência em Direito Processual Penal, reimp., Coimbra Ed., Coimbra, 2005.

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julgamento em processo penal), veio sublinhar a importância de consagrar um conjunto de regras mínimas que, a serem adotadas, aprofundam o respeito prático pelo princípio, designadamente no tocante às ingerências corporais probatórias. No art. 7.º, n.º 3 (Direito de guardar silêncio e direito de não se autoincriminar) desse instrumento pode ler-se: «O exercício do direito de não se autoincriminar não impede a recolha pelas autoridades competentes de elementos de prova que possam ser legitimamente obtidos através do exercício legal de poderes coercivos e cuja existência é independente da vontade do suspeito ou do arguido»424. Independentemente do alcance dos efeitos de uma confissão desacompanhada de outros elementos de prova425, a confissão – designadamente a confissão relevante e autoincriminatória – sempre foi um elemento probatório admitido ou, até, estimulado. O que se pretende garantir é que não sejam oponíveis ao imputado formas, mais ou menos explícitas, mais ou menos capciosas426, de condicionar ou de limitar a sua espontaneidade ou voluntariedade na produção de declarações confessórias, que possam assumir-se como elementos autoincriminatórios.

424

Sendo certo que o considerando (29) do seu preâmbulo é muito mais expressivo, ali se mencionando: «O exercício do direito de não se autoincriminar não deverá impedir as autoridades competentes de recolher elementos de prova que, embora possam ser licitamente obtidos junto do suspeito ou do arguido através do exercício de poderes legais coercivos e que existem independentemente da vontade do suspeito ou do arguido, por exemplo, os elementos recolhidos por força de um mandado, os elementos em relação aos quais está prevista uma obrigação legal de conservação e de apresentação a pedido, as amostras de hálito, sangue e urina, bem como de tecido humano para efeitos de testes de ADN». 425 Cf., exemplificativamente, em sentidos divergentes, a ineficácia da confissão desacompanhada de outros elementos probatórios, nos termos dos artigos 174.º, 256.º e 258.º do CPP de 1929, e a relevância mitigada da mesma, nos termos do art. 344.º do CPP de 1988. 426 O termo era expressamente utilizado no art. 437.º do CPP de 1929 (alterado pelo DL n.º 377/77, de 06-09), enquanto integrando motivo de proibição de método de obtenção de declarações. Também a versão originária do art. 261.º do CPP de 1929 proibia perguntas «sugestivas ou cavilosas, (…) acompanhada de dolosas persuasões, falsas promessas ou ameaças (…)».

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Não existe, pois, um princípio de proibição da autoincriminação. O que, porém, não significa que não exista uma garantia de não vulneração das prerrogativas de não autoincriminação, finalidade assegurada pelo princípio nemo tenetur se ipsum acusare, cujo conteúdo procuraremos precisar nas considerações que se seguem. Trata-se de um princípio comum do processo penal contemporâneo continental e anglo-americano427, sendo originariamente concebido como um direito ao silêncio, um direito a guardar segredo sobre factos que possam incriminar o imputado (suspeito ou arguido) ou terceiros (testemunhas). O alcance originário desse direito tem evoluído para uma configuração mais ampla, que invade outros domínios, como os da não obrigação de sujeição indiscriminada do arguido a certas diligências e atos processuais, a entregar documentos, ou a sujeição a diligências de prova ou a exames corporais de forma coerciva, e, até, não autorizados ou determinados por autoridade jurisdicional428. O direito à não autoincriminação conhece momentos de alguma indefinição no tocante ao seu conteúdo e alcance material. Alguns Autores alemães já sufragaram uma ideia de sobreavaliação do princípio nemo tenetur no sistema processual alemão429, pondo em evidência a circunstância de o mesmo só relevar, verdadeiramente, no tocante à prova dos fatos mentais ou, dito de 427

É possível surpreender a manifestação do princípio nemo tenetur, no direito inglês, na Magna Charta, desde, pelo menos, 1679, e, no direito norte-americano, desde a V.th Amendment, em 1791, sendo proclamado na Constituição americana com a seguinte formulação: «No person (…) shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself (…)», reformulando significativamente o conteúdo do já anteriormente aceite privilege against compelled self-incrimination. 428 Para uma perspetiva dessas novas dimensões do princípio nemo tenetur, cf. AUGUSTO SILVA DIAS e VÂNIA COSTA RAMOS, O Direito à Não Auto-Inculpação (Nemo Tenetur Se Ipsum Accusare) no Processo Penal e Contra-Ordenacional Português, Coimbra Ed., Coimbra, 2009, pp. 19-22. 429 Cf. KLAUS VOLK, «Begriff und Beweis subjektiver Merkmale», in Fünfzig Jahre Bundesgerichtshof, Festgabe aus der Wissenschaft (CLAUS-WILHELM CANARIS ANDREAS HELDRICH - KLAUS J. HOPT VON -C. H. BECK, Orgs.), 4.Ed., München, 2000, p. 740.

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outro modo, quanto à fatualidade que revela o elemento subjetivo do tipo de ilícito. No mais, o Estado disporia de instrumentos aptos a obter elementos físicos de prova, por meios coercivos, como forma de suprir a falta de cooperação do imputado. Da mesma forma que o Estado prevê legislativamente que pode ser coercivamente obtida uma amostra biológica (hemática ou de urina) para determinação do teor de alcoolemia no sangue ou de intoxicação por estupefacientes, ou para estabelecer a identificação genética, poderia ser imposto ao imputado um dever de colaboração que passasse por uma obrigação de prestar declarações verbais sobre as circunstâncias fatuais da sua presuntiva intervenção nos fatos sob investigação. O princípio da presunção de inocência surge, por seu lado, articulado com o princípio in dubio pro reo, o qual pode ver-se como um dos seus corolários. Este elucida-nos acerca da metódica dialéticoargumentativa pela qual o decisor penal deve valorar a prova feita e decidir com base nela. O princípio em causa visa, assim, responder ao problema da dúvida na apreciação do caso criminal, não a dúvida jurídica (ou sobre o sentido da norma)430, mas a dúvida sobre o fato431. Em suma, o princípio in dubio pro reo parte da premissa de que o juiz não pode terminar o julgamento com um non liquet, ou seja, não pode abster-se de optar pela condenação ou pela absolvição, existindo uma obrigatoriedade de decisão, e determina que, na dúvida quanto ao sentido em que aponta a prova feita, o arguido tenha de ser absolvido432.

GIUSEPPE BETTIOL, «La Regola “In Dubio pro Reo” nel Diritto e nel Processo Penale», Rivista Italiana di Diritto Penale, Ano IX, 1937 (XV), pp. 247-248. 431 MIGUEL PEDROSA MACHADO, chega, porém, ao aparente paradoxo de que o princípio in dubio pro reo, não dizendo respeito à “questão-de-direito”, mas sim à “questão-de-facto” (rectius, a “questão-de-facto” é que é o seu objeto), não é, em si mesmo, questão-de-facto, mas questão-de-direito, pois trata-se de um princípio de direito («O Princípio In Dubio Pro Reo e o Novo Código de Processo Penal», ROA, Ano 49, n.º 2, set. 1989, pp. 594 e ss.). 432 Não sendo a prova produzida suficiente para formar a convicção do julgador para além de qualquer dúvida razoável, no sentido da culpabilidade do imputado-arguido, este terá necessariamente, de ser absolvido. 430

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Na tensão entre a presunção de inocência do suspeito/arguido e a suspeita da prática do fato ilícito por ele, já se questionou, entre nós, se o princípio não teria afinal, um alcance ficcional, uma vez que, como refere Cunha Rodrigues «(…) a ideia de pré-responsabilidade do arguido assenta numa petição de princípio: a de que o arguido é agente do facto criminoso, hipótese que o processo se destina exactamente a esclarecer»433. Também Souto de Moura, algo provocatoriamente, já se questionou no mesmo sentido: «Se se ficciona o arguido inocente, para que é que se vai provar (…) a inocência?»434. 2. Confissão, tortura e critérios ético-jurídicos de produção de prova corporal A magnitude, intensidade e persistência dos atuais riscos da criminalidade global – essencialmente no quadro das ameaças do terrorismo e do crime organizado – faz com que a questão da tortura reassuma lugar de relevo na discussão sobre a sua admissibilidade e eventual justificação ou legitimidade. Os estados confrontam-se com uma inédita gama de ameaças à sua própria existência e sobrevivência e, simultaneamente, com uma singular necessidade de resistir ao canto de sereia de alguns corifeus que pugnam por uma cedência de princípios e valores que se julgavam definitivamente adquiridos, as quais parecem ganhar novo fôlego, como é o caso da [“excecional”] admissibilidade da tortura, ainda que sob designações mais ou menos eufemísticas. Ocorrências como os atentados de 11 de setembro e muitos outros subsequentes, tiveram a virtualidade de operar um amolecimento das posições tradicionais de salvaguarda do quadro de valores adquirido ao longo de décadas, e transposto para documentos internacionais (DUDH, CEDH, CADH, PIDCP e Convenção da ONU contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes, CDFUE) para os ordenamentos 433 434

«Sobre o princípio da igualdade de armas», RPCC, Ano 1 – Fasc. 1.º, 1990, p. 90. «A Questão da Presunção de Inocência do Arguido», loc. cit., p. 43.

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constitucionais e legais, como é o caso, designadamente da proibição da tortura. A relutância na reabilitação da tortura como meio legítimo (e legal) é uma tarefa que carece de esforços quotidianos e renovados, com o propósito de reafirmar todo um programa de enunciados civilizacionais que se julgava adquirido435, qual seja o da proibição da tortura como meio legalmente admitido, ainda que a título excecional e relativizado; é sedutoramente apresentado como um método que apenas limita temporariamente a integridade física, sem poder ser letal ou afetar grave e irreversivelmente a saúde ou integridade física436 ou, superlativamente, a apresentação de um método como a pílula da verdade437, indolor e supostamente inócuo. A sedução por posições que sufragam a adoção e positivação de uma autorização ou justificação de formas de pressão física moderada, de formas não extremas de tortura, como reação admissível a fenómenos e ameaças criminosos inéditos e de trágicas e catastróficas consequências potenciais (ou reais), não são exclusivas dos defensores do chamado direito penal do inimigo. Mesmo em setores doutrinais ligados à defesa das liberdades cívicas, começou a manifestar-se alguma simpatia para com tais posições, nos chamados casos-limite – não 435

Mesmo a realidade da tortura levada a cabo pela ex-PIDE-DGS durante o período da Ditadura do Estado Novo, não era assumida no discurso oficial, havendo uma clara má-consciência da parte de alguns responsáveis do regime. Cf., sobre o assunto, o notável trabalho documental de entrevistas a ex-presos políticos, com relatos circunstanciados sobre as suas experiências de tortura, No Limite da Dor – A Tortura nas Prisões da PIDE (Testemunhos inéditos), de ANA ARANHA e CARLOS ADEMAR, Parsifal, Lisboa, 2014. 436 Foi a este preciosismo conceitual que a posição oficial da Casa Branca se arrimou, baseada nos Memos on Torture (Os Memorandos “Standards of Conduct for Interrogation under 18 U.S.C. sections 2340-2340ª” e “Interrogation of al Qaeda”), de Jay Bybee para a CIA e Casa Branca, em agosto de 2002, defendendo que «(…) a dor física em que a tortura se traduz tem de ser equivalente à dor causada por uma ofensa corporal grave, como a lesão de órgãos, de uma função do corpo, ou mesmo a morte», assim excecionando métodos de interrogatório como o waterboarding, a injeção de agulhas debaixo das unhas e a perfuração de dentes sem anestesia, remetidos para o conceito eufemístico de “pressão física moderada”. 437 Já não o “soro da verdade”, para se afastar a objeção da necessidade de uma intervenção corporal (injeção).

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como aplicação generalizada de métodos de obtenção de prova (confessória) relativamente a crimes ocorridos, maxime, como método (virtualmente) idôneo a evitar um ataque terrorista de consequências devastadoras – entre os quais Alan Dershowitz438 e Volker Erb439, e, entre nós, Maria da Conceição Cunha440, continuando, porém, a serem prevalecentes as posições doutrinais de rejeição de tais soluções. Os desenvolvimentos da discussão foram incrementados na sequência dos atentados de 11 de setembro, após a edição de um conjunto de legislação federal nos EUA que conferia prerrogativas às agências de segurança e intelligence no sentido de procederem a técnicas de interrogatório «não convencionais», para usar uma expressão eufemística, de que é exemplo paradigmático o USA PATRIOT Act441. 438

Why Terrorism Works: Understanding the Threat, Respondig to the Challenge, Yale University Press, 2003 ; «The Torture Warrant: A Response to Professor Strauss», New York Law School Law Review, Vol. 48 - N.os 1 e 2, 2003, pp. 275-294 (cons. em: http://www.nylslawreview.com/wp-content/uploads/sites/16/2013/11/482.Dershowitz.pdf, acedido em 12-01-2014 – arq.); em todo o caso, opondo-se à tortura de inocentes. 439 «Folterverbot und Notwerhrrecht», Ist Folter erlaubt?[..](WOLGANG LENZEN, Hrsg.), Ed. Mentis, 2006, pp. 19 e ss. Na doutrina alemã, MATTHIAS HERDEGGEN, WINFRIED BRUGGER, WOLGANG JOECKS, manifestam-se a favor de uma relativização da tortura em situações de necessidade, apud AUGUSTO SILVA DIAS, «Torturando o inimigo ou libertando da garrafa o génio do mal? Sobre a tortura em tempos de terror», Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge de Figueiredo Dias - Vol. I (MANUEL DA COSTA ANDRADE - MARIA JOÃO ANTUNES SUSANA AIRES DE SOUSA, orgs.), Stvdia Ivridica 98 Ad Honorem - 5, Coimbra Ed., Coimbra, 2009, p. 212 (nota 14). 440 Em «Uso da tortura e impedimento de actos terroristas», Multiculturalismo e Direito Penal – Grupo de Professores de Direito Penal Jorge de Figueiredo Dias - I Encontro Nova-Direito Lisboa 2012 (FREDERICO DA COSTA PINTO - PEDRO CAEIRO - TERESA BELEZA, org.), Almedina, Coimbra, 2014, pp. 39-57. 441 Sigla de «Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism Act, of 2001» («Lei de 2001 para unir e fortalecer a América, fornecendo os necessários instrumentos adequados para interceptar e evitar o terrorismo», trad. livre do autor), aprovado pelo Congresso dos EUA na imediata sequência dos atentados, após o que o País se considerou em estado de guerra não convencional, declarando reciprocamente, «Guerra ao Terror(ismo) («War on Terror»)». O Presidente George W. Bush viria a homologar tal dispositivo em 26-10-2001,vulgarmente conhecido como Patriot Act. Trata-se de

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A questão da tortura adquire significado na economia do nosso itinerário reflexivo, não porque surjam particulares dificuldades em exautorar o seu uso legal(izado) – mesmo que assuma as formas eufemísticas ou sedutoras de “tortura boa”, “tortura salvadora”, “pressão física moderada” ou “tortura virtuosa”442 – mas também porque o tema se liga às questões da validade e relevância processuais da prova eventualmente obtida mediante tais métodos de obtenção de informações. Todavia, no nosso excurso, não abordaremos os problemas das consequências da violação da proibição da prova obtida por meio de tortura – que se crê definitivamente adquirida no plano da invalidade processual –, nem as particularmente sensíveis questões suscitadas pela tortura no âmbito das atividades dos serviços de informação (intelligence). Também não caberão no nosso estudo, o um documento que introduz significativas alterações no United States Code e noutros diplomas. O seu conteúdo veio objetivamente possibilitar a prática de tortura sobre cidadãos não nacionais e fora do território dos EUA – como em Abu Ghraib e Guantanamo e noutras instalações –, mas há indícios de que poderá ter havido ocorrências no próprio território dos EUA. 442 Glosada por vasta bibliografia e filmografia sobre a temática, de que nos permitimos destacar, como exemplo, os filmes «Unthinkable», de Gregor Jordan, de 2010 (com o título em português «O Dia do Juízo Final») e «Rendition» («Detenção Secreta», em tradução portuguesa), de Gavin Hood, de 2007. Sobre a inconsistência da distinção entre tortura boa e tortura má, cf. AUGUSTO SILVA DIAS, «Torturando o inimigo …», cit., p. 211, «Os criminosos são pessoas? Eficácia e garantia no combate ao crime organizado», Que Futuro para o Direito Processual Penal? Simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português (MÁRIO F. MONTE, Dir.) – M. CLARA CALHEIROS – F. CONDE MONTEIRO - FLÁVIA N. LOUREIRO coord.), Coimbra Ed., Coimbra, 2009, pp. 687-708 e BRUNO MOURA, «A propósito da chamada “tortura salvadora”: outra “quebra de tabu”, agora relativamente à proibição da valoração da prova?», RBCC, Ano 21, N.º 101 – mar.-abr. 2013, pp. 237 ss, chamando a atenção para a premissa errada que, em seu entender, constitui a consideração da existência de uma superioridade da dignidade da vida das vítimas face à do autor do crime. Ambos os Autores se mostram avessos a admitir o uso de qualquer forma (ainda que moderada) de tortura quando tal pudesse constituir o meio idóneo para evitar a produção de resultados mortais ou de grave afetação da integridade física de pessoas inocentes, sem embargo de tais condutas poderem relevar em sede de apreciação da responsabilidade criminal do agente torturador. Manifestando uma posição de abertura relutante a tal solução de admissibilidade, M. CONCEIÇÃO CUNHA, «Uso da tortura e impedimento de actos terroristas», cit., pp. 39-57.

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aprofundamento da questão dogmática surgida a propósito da hipótese de assimilação da ameaça de tortura à tortura, a qual tem sido intensamente debatida na doutrina alemã. A atividade processual probatória encontra-se desde a Antiguidade constitutivamente ligada às múltiplas formas e modalidades de tortura443, vislumbrando-se a mais elaborada no conceito positivado da Quaestio romana – que designava a atividade de indagação, de investigação dos delitos, por parte do pretor, através da inflição da tortura, para extrair declarações444 –, que se alargou na fase imperial, aos patrícios, após se aplicar exclusivamente a escravos e estrangeiros445. A sua assimilação pela Igreja Católica, essencialmente a partir do séc. XII, e, mais tarde pela Inquisição, mais não foi do que o retomar de métodos anteriormente aplicados e que se pode, hoje, chamar de atividade de instrução (dificilmente se assimilaria à noção de investigação) criminal, com outros pressupostos e finalidades, para além de se pretender intimidar e controlar pulsões individuais e sociais de diversos tipos. Atividades essas que repousavam quase exclusivamente em prova tarifada e de natureza pessoal declaratória, nas quais a confissão era erigida em Regina probationem. A proibição da tortura é produto do ideário iluminista, a ele se ficando a dever a sua afirmação, praticamente com a configuração atual. Podem identificar-se, pelo menos, quatro modalidades de tortura: a “tortura-pena” ou “tortura-punição”, enquanto formas cruéis

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Cf. PAOLO MARCHETTI, Testis Contra Se - L´Imputato come Fonte di Prova nel Processo Penale dell´Età Moderna, cit., pp. 77 ss. 444 De acordo com ULPIANO, o Digesto XLVII, X, XV, § XLI, deveria ser interpretado da seguinte forma: “Quaestionem” intellegere debemus tormenta et corporis dolorem ad eruendam veritatem. Nuda ergo interrogatio vel levis territio non pertinet ad hoc edictum (Quaestio deve ser entendida como tortura quando o corpo é submetido à dor, a fim de descobrir a verdade. Interrogatórios de pessoas submetidas ao medo trivial não eram cobertos por esse edital). 445 Sobre a evolução do fenómeno, EDWARD PETERS, História da Tortura, Editorial Teorema, Lisboa, 1985.

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de execução de sanções; “tortura para obtenção de provas” ou “tortura inquisitorial”, com natureza processual, inaugurada nos processos contra a feitiçaria e pactos com o demônio, visando mais a obtenção de confissões ainda que falsas (apenas como meio de evitar o prolongar dos tormentos); a “tortura preventiva”, método de obtenção de informações massiva no quadro de luta contra o terrorismo, aplicado nas famigeradas prisões de Guantanamo, Abu Ghraib e outras, e a “tortura-salvadora», destinada a obter informações sobre as circunstâncias do cometimento iminente de um crime, procurando evitar a prática indiscriminada ou a consumação de crimes contra a vida de uma ou mais pessoas, de que são exemplos o caso Daschner446 e a hipótese ticking time bomb447. O problema da relevância da tortura no cruzamento com a teoria geral das ingerências corporais probatórias surge com a segunda supra enumerada dimensão da tortura para obtenção de provas. Aqui, não parece difícil a refutação da sua admissibilidade, em qualquer grau. Ela continua afirmada diretamente no plano da previsão normativa constitucional e processual. Os principais problemas que se colocam, contendem principalmente com a modalidade da tortura de salvação. 446

Caso decidido na sentença de 20-12-2004 pelo Tribunal de Frankfurt (pub. in NJW, 2005, n.º 10, pp. 692 ss.), que julgou a conduta do vice-presidente da Polícia de Frankfurt, Daschner, e de um agente por si autorizado a ameaçar de provocar dores físicas (não lesões corporais) ao agente (detido) de um crime de rapto do filho de um industrial, na presença de e sob vigilância de um médico. O suspeito confessou o rapto e o homicídio da criança, que entretanto praticara. Daschner referiu que empregou tal método não para o esclarecimento do crime, mas para salvar a vida da criança raptada. Pela controvérsia gerada a propósito da decisão condenatória de Daschner e do agente subordinado – em penas substancialmente atenuadas, mas sem considerar verificadas quaisquer causas de justificação como a legítima defesa de terceiro ou o estado de necessidade –, C. ROXIN considerou a dita decisão como «o caso penal mais controverso na história alemã do pós-guerra»; cf. a exposição e detalhada análise do caso, em AUGUSTO SILVA DIAS, «Torturando o inimigo …», cit., pp. 242-254, em que o Autor culmina refutando a verificação de um estado de necessidade desculpante ou um excesso de legítima defesa com idêntico efeito. 447 Cf. BRUNO MOURA, «A propósito da chamada “tortura salvadora”: outra “quebra de tabu”, agora relativamente à proibição da valoração da prova?», cit., pp. 236-237.

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Há, no entanto, momentos e situações cujos contornos não permitem estabelecer com nitidez os planos da (ir)relevância da tortura, porquanto, na abordagem de hipóteses como as da ticking time bomb ou do caso Daschner448, se torna difícil isolar uma conduta de tortura – qualquer que seja a forma que assuma – a título puramente preventivo (tortura salvadora) ou já a título de investigação criminal (tortura inquisitorial); na verdade, perante a existência de indícios que justifiquem submeter um suspeito a práticas de tortura, p. ex., perante a iminência de um ataque terrorista ou face à iminente consumação da prática de um crime contra a vida ou integridade física grave, de rapto, de cárcere privado, explosão, homicídio, já não é apenas uma finalidade puramente preventiva que está em causa, mas sim a obtenção de informação relevante para uma concreta investigação criminal instaurada, face à relevância criminal daqueles indícios, a título de atos preparatórios de terrorismo (cuja punibilidade é generalizadamente prevista) ou de crimes concorrentes ou crimesmeio (detenção e uso de armas, materiais explosivos, etc). Seria plausível uma separação de planos, conforme o momento e dimensão de apreciação da tortura? Não relevará probatoriamente – por constituir prova absolutamente proibida (art. 126.º, n.os 1 e 2 do CPP) – a tortura aplicada no contexto processual da investigação dos crimes cometidos pelo torturado ou por terceiros, mas já poder interceder a sua finalidade, no plano substantivo-penal449, como causa de justificação, de atenuação especial ou de não punição (v.g., art. 154.º, n.º 3, al. b) do CP), a título de legítima defesa, legítima defesa preventiva ou de estado de necessidade450?

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Daí que, provavelmente por alguma consciência de certo tipo de confusão entre tais dimensões, Daschner ter referido no relatório da ação policial junto do suspeito, que a sua atuação visava «não o esclarecimento do crime, mas salvar a vida da criança raptada». 449 P. ex., num eventual processo contra os agentes estaduais que intervenham em ações de tortura preventiva. 450 Rejeitando a aplicação sistemática destas causas de justificação, AUGUSTO SILVA DIAS, «Torturando o inimigo …», cit., pp. 250 ss.

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Invoca-se, por outro lado, em abono da admissibilidade da tortura, a vantagem do seu escrutínio e controlo pelas autoridades encarregues da supervisão de atividades de prevenção e investigação da criminalidade, nos sistemas em que tal método fosse admissível451. Implícitos num posicionamento de admissibilidade da tortura – ainda que limitada, soft, light ou moderada – estarão os pressupostos de que o torturado detém informação relevante quanto ao crime a cometer ou em execução e, igualmente, quanto à eficácia do método para lhe extorquir tal informação. Mesmo num nível excecional ou fragmentário dos casos-limite em que a tortura fosse admitida, Silva Dias lembra que «(…) a tortura mina os alicerces do Estado de Direito convertendo-o paulatina e irreversivelmente num Estado de não Direito, num Estado-verdugo»452. Se o Estado, através dos tribunais, sancionasse de alguma forma a tortura, essa manifestação de poder corresponderia ao regresso ao modelo inquisitorial autocrático de processo penal, convertendo o arguido em presumido culpado, desprovido de direitos – mormente o direito à não autoinculpação –, e congregando apenas os deveres, de colaboração e de sujeição a medidas de prova, ainda que atentatórias da dignidade humana. Para além disso, não poderia evitar-se o slippery slope, que quase 451

DERSHOWITZ, que considera incompatível com o escrutínio democrático, a subtração de ações invisíveis ao seu radar, propugna, mesmo, por um mandado de tortura (soft), ou “pressão física moderada” como forma de evitar desmandos como os verificados em Abu Ghraib («The Torture Warrant: A Response to Professor Strauss», New York Law School Law Review, Vol. 48 - N.os 1 e 2, 2003, pp. 275-294) em resposta à posição de MARCY STRAUSS, «Torture», no mesmo volume da mesma Revista, pp. 201-274 (respetivamente consultáveis em http://www.nylslawreview.com/wp-content/uploads/sites/16/2013/11/481.2.Strauss.pdf e http://www.nylslawreview.com/wpcontent/uploads/sites/16/2013/11/48-2.Dershowitz.pdf, acedidos em 12-01-2014). Também contra a admissibilidade de qualquer forma ou sucedâneo de tortura, JEREMY WALDRON, Torture and Positive Law: Jurisprudence for the White House, Public Lecture – Victoria University of Wellington, New Zeland, Aug. 19 – 2004, pp. 35 ss, sustentando que «os últimos cem anos mostraram que [tortura] é uma espécie de coisa que não pode ser mantida sob controlo racional». Acrescentaríamos, pois, para além de fazer alastrar a mancha de ignomínia ao aparelho de administração da justiça penal, não ser passível de qualquer controlo jurisdicional. 452 «Torturando o inimigo …», cit., p. 218.

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forçosamente ocorreria, com a tentação de alargar o uso da tortura aos casos de criminalidade violenta e organizada, como o rapto, o tráfico de pessoas e de droga, etc. A manutenção de um quadro normativo jusinternacional, constitucional e legal, de proscrição da tortura – ao lado de outros meios proibidos de prova, como a coação, a hipnose e outros –, bem como a certeza de um juízo consequente de desconformidade constitucional de qualquer solução legal que contrariasse aquela proibição, conferem alguma tranquilidade quanto ao desfecho final do debate em curso sobre a admissibilidade da tortura. Em todo o caso, não deixa de ser preocupante a insistência na colocação do problema por setores não apenas simpatizantes de um «Direito penal [e processual] do inimigo», que um pouco por todas as latitudes, vão conquistando a adesão da opinião popular forma(ta)da por estratégias propagandísticas e de matizes diversos, subliminarmente veiculadas pelos media. Tais setores doutrinais e políticos vêm sugerindo medidas a integrar em programas político-criminais tributários de uma reação “musculada” a determinadas fenomenologias criminosas, que, pela inédita magnitude e gravidade dos atentados a certos bens jurídicos (vida, integridade física, tranquilidade pública), danosidade social e financeira das suas consequências, justificariam uma forma de combate fora dos princípios convencionais da luta contra as formas de criminalidade clássica. Os seus agentes seriam relegados para a categoria de inimigos ou não cidadãos (G. Jakobs), por se tratar de indivíduos a quem não fará sentido aplicar os princípios e normas do direito penal clássico liberal. Portanto, torna-se hoje necessário reafirmar o que se julgaria adquirido e estabilizado, face às aquisições do Estado de Direito desde o Iluminismo, uma tarefa crítica e implicando todo um esforço argumentativo, de modo a tentar convencer da justeza e adequação da manutenção de um princípio como o da proibição da tortura, integrado

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no «universo do “indisponível” no direito (processual) penal»453. Além disso, parece ser hoje necessário denunciar uma estranha apatia e omissão de reações jurídicas perante condutas que assumidamente alguns Estados empreendem – a pretexto de ataques preventivos que configuram uma manifestação superlativa da guerra assimétrica contra o terror(ismo), e que de algum modo, justificam a sua execução no quadro fáctico do direito penal do inimigo454 –, sem consequências dissuasoras, como a dos assassinatos seletivos, apesar de muitas vezes se contemplar a possibilidade de um número não despiciendo de danos colaterais, que mais não são do que vítimas inocentes455. A hipótese da tortura como meio de investigação é de rejeitar liminarmente, não revestindo particular dificuldade – face ao atual 453

WINFRIED HASSEMER, «Unverfügbares im Strafprozeβ», In Festschrift für Maihofer (ARTHUR KAUFMANN et al hrsg.), Frankfurt am Main, Klostermann, 1988, pp. 197 e ss, apud BRUNO MOURA, «A propósito da chamada “tortura salvadora”: outra “quebra de tabu”, agora relativamente à proibição de valoração da prova?», cit., p. 233. 454 Noção desenvolvida por GÜNTHER JAKOBS, que preconizou o Feindstrafrecht como um sistema juspenal paralelo aplicável ao indivíduo (Feind) que se coloca tão sistemática e estruturalmente fora de qualquer fidelidade axiológico-normativa vigente, em relação ao qual não faz sentido tratá-lo como “cidadão”, ou seja, o indivíduo cujo comportamento geral, apesar da sua falta (infração penal), se coaduna com a fidelidade ao Direito instituído. O “arguido-inimigo” pode, pois, ser coisificado como objeto de obtenção de prova, não valendo a presunção de inocência, o direito à não-autoincriminação e a sua manifestação mais relevante, o direito ao silêncio, surgindo a tortura, nesse contexto, como um corolário natural, já que é a antítese de qualquer daqueles princípios e direitos. Ainda quanto à dupla designação dos conceitos “Direito Penal do Inimigo” e “Direito penal de Luta”, diferenciáveis de uma perspetiva de legitimidade da intervenção penal, cf. MASSIMO DONINI, «El Derecho Penal frente al “enemigo”», Derecho Penal de excepción: terrorismo y inmigración (PATRICIA FARALDO CABANA - LUZ MARÍA PUENTE ABA EVA MARIA SOUTO GARCÍA, dir.), Tirant Lo Blanch, 2007, pp. 61 ss. e GÜNTHER FRANKENBERG, Folter, Feindstrafrecht und Sonderpolizeirecht: Anmerkungen zu Phänomenen des Bekämpfungrechts, Rückkehr der Folter: Der Rechtsstaat in Zwielicht? (BEESTERMÖLLER-BRUNKHORST, Hrsg.), Beck, 2006, pp. 66 ss. 455 Sobre a questão, levantando judiciosas interpelações críticas, FELIX HERZOG, «Der Staat als Sniper: Targeted Killings Zerstörtes Rechtsdenken als Reaktion auf den Terrorismus», Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge de Figueiredo Dias - Vol. I (MANUEL DA COSTA ANDRADE - MARIA JOÃO ANTUNES SUSANA AIRES DE SOUSA, orgs.), Stvdia Ivridica 98 Ad Honorem - 5, Coimbra Ed., Coimbra, 2009, pp. 371-385

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acervo normativo jusinternacional e jurídico-constitucional (a DUDH e a CEDH, a Convenção da ONU contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes, a CRP) – a fundamentação do seu repúdio. Questão diversa desta será a da aceitabilidade, ou não, em tese geral, da tortura como meio processual de investigação criminal. Naturalmente que uma tal opção careceria de uma completa reformulação de todo um acervo de normas e instrumentos jusinternacionais e jurídico-constitucionais dos Estados, que significaria uma revolução coperniciana no que se refere ao respeito pela dignidade humana, pela integridade da pessoa humana e da proibição da tortura. Por outro lado, uma coisa é a esconjuração da viabilidade de consagração normativa positivada de qualquer método de tortura – ainda que sob designação disfarçada ou eufemística –, como meio de investigação criminal ou seja, enquanto meio regulado pelo direito processual penal. Outra, completamente distinta, a sua consideração enquanto questão de direito penal substantivo ou material, em que não serão já as regras de direito adjetivo que ditarão a licitude ou ilicitude do ato, devendo convocar-se a dogmática das causas de justificação, concernentes à legítima defesa preventiva, à legítima defesa de terceiro ou ao direito de necessidade (artigos 31.º, 32.º e 34.º do CP) ou até à ação direta (art. 336.º CC). Há, entre nós, algum consenso no tocante ao conceito de tortura, que evola, não só do comando do art. 25.º da CRP e do art. 9.º, al. f) da Lei n.º 31/2004, de 22-07, mas resultando indiretamente do art. 243.º do CP456. O conceito de tortura remete sempre para a prática 456

O complexo normativo referido parece não acolher uma distinção entre tortura e tratamento cruel, desumano e degradante, que também não é estabelecida na Convenção da ONU contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes. O conceito amplo do art. 1.º, n.º 1 deste instrumento pode não ter correspondência plena na norma do art. 243.º do CP, uma vez que nesta não se prevê a circunstância de «qualquer outro motivo baseado numa forma de discriminação». Todavia, o TEDH tem aceite aquela distinção (cf. sobre a questão, PEDRO GARCIA MARQUES, Constituição Portuguesa Anotada (JORGE MIRANDA -

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por agentes de autoridade ou, de algum modo, agentes com a qualidade de funcionários457. As situações limite mais glosadas que podem equacionar-se – e não exclusivamente acadêmicas –, são as que se colocam a propósito de atentados terroristas contra pessoas (ou a utilização de aviões como instrumentos de destruição de massa), em que pode afirmar-se que todas as pessoas em risco têm dignidade e que, sem vida não interessa que a tivessem458. E, aqui, abre-se toda uma gama de interrogações, RUI MEDEIROS, coord.), t. I, 2.ª ed. Coimbra Ed. Coimbra, 2010, pp. 568 ss, MARIA JOÃO ANTUNES, Comentário Conimbricense do Código Penal (F. DIAS, coord.), t. II, Coimbra Ed., Coimbra, 1999, pp. 585 ss, e M. CONCEIÇÃO CUNHA, «Uso da tortura e impedimento de actos terroristas», cit., pp. 39 ss. 457 Ao invés, o alvo da tortura tanto poderia ser o criminoso terrorista, como o seu familiar, amigo ou terceiro, a quem ele teria confidenciado, ou supostamente transmitido o plano criminoso. 458 Discorrendo sobre o paradigmático exemplo do § 14.º, n.º 3 da Luftsicherheitsgesetzes (Lei alemã de segurança aérea) – que prescrevia a permissão da “utilização imediata de armas quando, segundo as circunstâncias, se puder concluir que o avião será usado contra a vida de pessoas e esse for o único meio disponível para remoção deste perigo iminente» – e sobre a decisão da sua desconformidade constitucional pelo Ac de 15-02-2006, BverfG (1BvR357/05 – acessível em https://www.bundesverfassungsgericht.de/entscheidungen/rs20060215_1bvr035705e n.html), cf. AUGUSTO S. DIAS, «Os criminosos são pessoas? Eficácia e garantia no combate ao crime organizado», cit., pp. 697 ss. O Autor esclarece que a justificação do abate de aviões em “casos trágicos” não deve residir numa lógica de «inimigo», no argumento de que as pessoas se tornaram parte da fuselagem do aparelho, ou na consideração de que os passageiros deveriam sacrificar a própria vida para evitar um mal maior para a comunidade, o que significaria a sua coisificação e colocação à disposição de critérios discutíveis de um Estado-Leviatã. A justificação deveria ancorar-se na figura do estado de necessidade defensivo, assentando em quatro pressupostos fundamentais e complementares, de verificação obrigatória: 1) definição ao mais alto nível da hierarquia política do Estado para decidir e ordenar o abate da aeronave; 2) indiciação segura do sequestro do aparelho e da sua projetada utilização como arma de destruição com efeitos potencialmente devastadores; 3) esgotamento de todas as vias alternativas para evitar o destino programado, através do seu desvio e comando a partir do solo ou outro ponto, e 4) comprovação de que as vidas dos tripulantes e passageiros estão irremediavelmente perdidas (loc. cit., pp. 701-702). Na lógica de «casos trágicos» integrar-se-iam as situações que, de acordo com DERSHOWITZ, implicam uma escolha entre dois males, incluindo o abate de aviões sequestrados (Why Terrorism Works, Yale University Press, 2002, p. 132). Nela não se incluirão as hipóteses de abate de aviões de transporte de droga,

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pugnando-se pela proibição absoluta da tortura, que deixaria incólume a dignidade dos terroristas e desprezaria a dignidade de pessoas inocentes que seriam suas vítimas; ou, ao aceitar-se uma forma moderada de tortura, sabendo que advirá uma ação ilícita do torturado ou de terceiro, apesar da instrumentalização destes, os mesmos recuperam a sua dignidade; ou ainda, se os agentes, ao não torturarem, por respeito para com a dignidade do terrorista, não matam ativamente as vítimas, o certo é que deixam que as mesmas morram, podendo previsivelmente, evitar essas mortes ou salvar algumas vidas. Esta omissão é relevante ou não? Dará, ou não, azo ao surgimento de um dever de torturar, para excluir a responsabilidade dos agentes pela morte das vítimas, sem que nada se tivesse feito no sentido de as salvar? Em homenagem à hierarquização de uma grelha valorativa baseada na consideração da sensível superioridade do interesse salvaguardado relativamente ao interesse a sacrificar, Volker Erb defende que a vida humana é a base vital da dignidade humana e, em consequência, «(…) a proibição da tortura … representa maior ofensa à dignidade … é o “tabu” da tortura que encontra o seu limite no direito à vida das pessoas ameaçadas pela bomba e não o inverso»459. De certo modo, Figueiredo Dias exprime a mesma ideia quando refere, a propósito dos estados de necessidade justificante, «(…) não é o (des)valor da vida que se sacrifica que justifica o facto, mas o valor das vidas que se salvam à custa de uma já condenada pelo destino»460. Paradoxalmente, parece que nos instrumentos normativos internacionais (v.g., art. 2.º da CEDH) a tutela da vida não é tão admitida pelo direito brasileiro, inclusivamente com sacrifício das vidas de passageiros e tripulantes, enquanto presuntivamente salvaguardando os bens da saúde e segurança públicas, bens jurídicos de matriz valorativa claramente subordinada à da vida humana, ainda que de suspeitos criminosos. 459 «Folterverbot und Notwerhrrecht», Ist Folter erlaubt?(WOLGANG LENZEN, Hrsg.), Ed. Mentis, 2006, pp. 28 ss., apud AUGUSTO SILVA DIAS, «Torturando o inimigo …», cit., pp. 226-227. 460 Direito Penal, Parte Geral, Tomo I – Questões Fundamentais. A doutrina geral do crime, Coimbra Ed., Coimbra, 2004, p. 426.

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intensa como a da integridade física, em que a proibição da tortura é afirmada de forma absoluta, sem exceções explícitas, ao contrário da tutela conferida à vida. Todavia, esta primeira perplexidade não é idónea a fazer-nos abandonar uma perspetiva de rejeição da tortura como meio probatório de investigação, no quadro de um modelo processual moderno moldado sobre uma conceção de processo equitativo e de respeito pela eminente dignidade da pessoa humana. Entre nós, Maria da Conceição Cunha alertou para o que parece constituir um paradoxo metodonomológico, encerrado na aparente contradição entre uma proibição absoluta da tortura – resultante do art. 2.º, n.º 2 da Convenção da ONU contra a Tortura e dos artigos 3.º e 15.º, n.º 2 da CEDH – e uma proibição relativa de causar ferimentos ou a morte461[..]462. Citando divergências doutrinais – em que Augusto Silva Dias considera que o facto de o art. 2.º, n.º 2 da Convenção contra a Tortura se referir a «circunstâncias excepcionais como…», tal significaria que aquelas circunstâncias seriam exemplificativas e que o sentido era o de manter a proibição absoluta do uso da tortura, incluindo situações de “legítima defesa”, ao passo que Volker Erb admite que o sentido da norma será o de não excluir a legítima defesa, por se tratar de um direito natural, imanente à dignidade humana463 –, a referida Autora inclina-se a aceitar formas moderadas de tortura no contexto de uma legítima defesa preventiva, ou de um estado de necessidade preventivo, ainda que temporalmente limitados464. Começa por se surpreender com a circunstância de, na CEDH, a proibição da tortura anteceder (desde 1950) a proibição da pena de morte (que só ocorreu com a aprovação dos Protocolos Adicionais n.os 6 e 13, respetivamente de 1983 e de 2002). Além disso, 461

Embora este complexo normativo venha perdendo impacto, por força da progressiva adesão à Convenção da ONU contra a tortura e tratamentos degradantes, e à aceitação por número crescente de Estados das moratórias relativas à aplicação e execução da pena de morte. 462 «Uso da tortura e impedimento de actos terroristas», cit., pp. 52 ss. 463 Apud, AUGUSTO SILVA DIAS, «Torturando o inimigo …», cit., pp. 222-223. 464 «Uso da tortura e impedimento de actos terroristas», cit., pp. 52-53.

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face à hipótese de certo tipo de tratamentos de condenados a pena de morte (nos Estados que não ratifiquem os Protocolos), no período que antecede a sua execução poderem ser considerados tortura, não o sendo o método de execução465. Aduz, ainda, argumentos procedentes relativamente às condições de uso de armas de fogo por particulares e por agentes de segurança, que, no plano do ordenamento nacional, apoiam a sua posição. O regime do art. 42.º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 5/2006 (utilização excecional de armas de fogo)466 veio perturbar o entendimento tradicional que havia, no sentido de que, na hipótese de alguém estar na iminência de matar outra pessoa (ou de feri-la com gravidade), se esta não pudesse defender-se eficazmente por outro modo senão disparando contra o agressor, estaria justificada a sua atuação, de acordo com doutrina predominante. Esta solução compreende-se, face a uma preocupação de regulamentar o uso, detenção e utilização civilizada de armas de fogo, mas não podemos deixar de apontar uma grave inconsistência na lei ao pressupor um agente (defensor) dotado de uma estrutura emocional acima da normalidade, bem como um agressor não belicoso ou resignado: se um agressor, mesmo atingido não mortalmente, prosseguir a sua agressão, o defensor tem de suportar passivamente essa reação, não lhe sendo permitido disparar novamente para uma zona letal, se for essa a única forma de evitar a sua própria morte? Mas a incoerência aumenta se se considerar que nenhum problema se suscitará caso a morte do agressor seja provocada pela utilização de outros meios. Cremos que, a pretexto de se regulamentar as condições de utilização de arma de fogo, a referida norma não equaciona adequadamente os termos da relevância de uma causa de justificação como é a legítima defesa com recurso a utilização de arma não proibida. Por outro lado, ainda, a disciplina da utilização de armas de fogo por agentes policiais, previsto entre nós no DL n.º 457/99, de 0511, impõe no seu art. 3.º, n.º 2, o respeito pelos princípios da 465

«Uso da tortura e impedimento de actos terroristas», cit., pp. 44-45 (nota 40). Que considera que o disparo em legítima defesa própria ou de terceiro, em caso algum pode visar zona letal do corpo humano. 466

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necessidade e proporcionalidade, consignando o recurso à utilização das armas como medida extrema, sendo a sua utilização permitida em situações-limite: a) legítima defesa (do próprio ou de terceiro); b) quase legítima defesa (prevenir a prática de crime particularmente grave que ameace vidas humanas); c) para proceder a detenção de pessoa que represente essa ameaça e resista à autoridade ou impedir a sua fuga (…), devendo, sempre que as circunstâncias o permitam, tais disparos ser precedidos de advertência (tiro para o ar – art. 4.º). Em local algum, porém, se refere que os agentes policiais não podem visar zonas corporais letais do agressor. Uma tal discrepância de regimes não pode, naturalmente significar que os critérios de apreciação das condições de relevância da legítima defesa e de quase legítima defesa própria ou de terceiros, sejam mais exigentes tratando-se de particulares do que de agentes policiais. Não pode, quanto a nós, um diploma, ainda que uma lei formal, que consagra o regime (ou regulamento) de utilização de armas de fogo por particulares ter a virtualidade de conformar os termos comuns da legítima defesa com arma de fogo. O que ali se consigna é, no limite, uma específica regulamentação administrativa dos termos ideais da utilização de armas de fogo por parte de particulares467. 467

A entrada em vigor do DL n.º 457/99 já foi glosada por TAIPA DE CARVALHO (Direito Penal, Parte Geral, Coimbra Ed., Coimbra, 2008, pp. 382 ss.), antes da Lei n.º 5/2006 e das alterações introduzidas ao seu art. 42.º pela Lei n.º 17/2009, o qual se pronuncia pela aplicação dos seus princípios aos particulares, relativamente aos quais não poderiam conceder-se faculdades mais amplas de defesa, pela natureza subsidiária da defesa privada (art. 21.º da CRP), defendendo a verificação apenas, da “necessidade do meio”. O dito DL n.º 457/99 consagraria a tese da verificação da proporcionalidade entre os bens ameaçados ou lesados com a agressão e os atingidos pela defesa, sustentada por M. FERNANDA PALMA (enunciada em A Justificação por Legítima Defesa como Problema de Delimitação de Direitos, Vols. I e II, AAFDL, Lisboa, 1990). Também FIGUEIREDO DIAS sustenta a não aplicação dos seus princípios aos particulares, não exigindo a proporcionalidade entre o valor específico dos bens, conquanto os casos de manifesta desproporção sejam de enquadrar no âmbito dos limites éticos da legítima defesa e do abuso de direito (Direito Penal, Parte Geral, t. I, Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime, Coimbra Ed., Coimbra, 2007, pp. 428 ss).

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As questões colocadas relevam essencialmente no quadro da dogmática jurídico-penal. Podem, no entanto, ter a virtualidade de auxiliar na delimitação entre a dimensão material-substantiva e a dimensão formal-adjetiva que episodicamente possa constituir uma concreta situação de tortura: conduta empreendida por agente funcionário, com vista a finalidades de obtenção de declarações confessórias ou incriminatórias, de castigo ou intimidação do visado ou de terceiro, embora podendo ter como sujeito passivo qualquer pessoa detida468. Daí o nosso propósito em convocar a discussão de tal matéria. Mas a própria intervenção de agentes não funcionários (para efeitos penais), pode suscitar dificuldades. Do art. 1.º da Convenção da ONU contra a Tortura decorre que o particular que atua perante com o consentimento tácito do agente público ou perante a sua passividade, pratica também tortura. O art. 243.º do CP restringe, porém, a esfera ativa dos agentes potencialmente torturadores aos funcionários469, a menos que o particular tenha usurpado funções do n.º 1 do preceito470, não parecendo que possa estender-se a ilicitude através da regra do art. 28.º do CP. A tortura por particulares é remetida para a previsão da coação ou das ofensas à integridade física. De qualquer modo, as declarações processuais obtidas através de sevícias perpetradas por particular perante omissão ou Sendo inexorável que haja detenção ou privação de liberdade – numa aceção fáctica ou normativa, legal ou ilegal – em qualquer situação típica de tortura. Acresce que no âmbito da prevenção, perseguição ou investigação de infrações contra-ordenacionais ou disciplinares, pressupostas também no n.º 1 do art. 243.º do CP, não há lugar a qualquer tipo de detenção (cf. AUGUSTO SILVA DIAS, «Torturando o inimigo …», cit., pp. 235 e 236 [nota 86]). 469 Classificando o crime de tortura como crime específico próprio, RUI PEREIRA, «Sobre o crime de tortura no Código Penal português», AA. VV. Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Germano Marques da Silva (MANUEL GUEDES VALENTE, coord.), Almedina, Coimbra, 2004, p. 303 (nota 37). Contra, AUGUSTO SILVA DIAS, «Torturando o inimigo ou libertando da garrafa o génio do mal? Sobre a tortura em tempos de terror», cit., pp. 233 (nota 79). 470 Cf., sobre o conceito de usurpação de funções, CRISTINA LÍBANO MONTEIRO, Comentário Conimbricense do Código Penal, Vol. III, Coimbra Ed., Coimbra, 2001, anot. ao art. 358.º, §§ 21e ss. 468

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contemporização complacente do agente ou autoridade processual teriam de ser igualmente rejeitadas e inutilizadas como prova proibida, por resultarem de uma conduta que materialmente configura uma situação de tortura, no sentido do art. 1.º da Convenção. Sobrarão sempre as questões tormentosas acerca da delimitação conceitual entre tortura e pressão legítima ou desconforto nas diligências com intervenção corporal, como o interrogatório, a reconstituição do facto, o reconhecimento pessoal, a sujeição a exames. Aí, haverá que contextualizar o nível de pressão ou de tentativa de persuasão que a técnica de interrogatório possa assumir, referida a um critério objetivo, desligado da importância de características subjetivas não aparentes do visado. Perante institutos como a garde à vue do direito processual penal francês471, torna-se legítimo indagar se, apesar de todas as precauções legais e procedimentais quanto à sua determinação, não será algo excessivo a manutenção da privação da liberdade de uma pessoa por um período até 48 horas, sem que haja motivos e fundamentos para ordenar, potencial ou alternativamente, a sua prisão preventiva. Em todo o caso, Augusto Silva Dias defende que haverá tortura na hipótese em que num interrogatório policial é dito ao arguido que enquanto não der respostas satisfatórias, não sairá do local, nem lhe será permitido comer ou dormir472. Cremos que, entre nós, a hipótese é extrema e académica, não nos parecendo de muito provável verificação, dada a possibilidade de invocação do regime do art. 103.º, n.os 3 a 5 do CPP, pelo arguido ou defensor. A aceitar tratarse de mera ameaça, teria de se apreciar o grau de seriedade da mesma e a plausibilidade na sua concretização, podendo não extrapolar da técnica de interrogatório porventura considerada adequada a uma particular situação. Parece-nos que pouco diferente seria a hipótese segundo a qual o agente inquiridor dissesse ao arguido que «teria todo Que foi objeto de reforço dos direitos da pessoa “guardada” em junho de 2014, e inovado com o estatuto de “suspect libre” a partir de 2015, o que revela um certo mal-estar com a manutenção de um instituto atualmente já algo insólito. 472 «Torturando o inimigo …», cit., p. 215 (nota 24). 471

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o tempo para o ouvir, ficando ali o tempo que fosse necessário até esclarecer o assunto». Não tendo que se pautar pelos parâmetros de cordialidade ou, até, de simpatia (entrevista cordial), as técnicas e estratégias de interrogatório/inquirição podem recorrer a métodos mais incisivos, estimulantes ou persuasivos, cuja intensidade não pode, nunca, resvalar para a prática de tortura. Pensamos mesmo que o complexo de regras processuais que disciplinam a entrevista em contexto de investigação criminal, destinam-se precisamente a evitar ou minorar a ocorrência de excessos ou abusos, podendo, nessa medida, configurar-se como exclusionary rules, assinalando aos investigadores os limites da sua intervenção473. Concedemos que, de toda a maneira, o tema não é isento de controvérsia, carecendo de amplo e aprofundado debate. Sendo embora inviolável474, a vida humana é um valor que pode ser posto em perigo ou ser mesmo destruído, podendo ferir-se, deter e, até, chegar a matar-se o agressor em legítima defesa. Porque razão, então, não se admitiria que, nas referidas situações-limite se possa coagir, ameaçar, privar da liberdade ou ferir (de forma não grave), quando isso se afigure ser unicamente o meio adequado a evitar a morte de pessoas ameaçadas por atos terroristas?

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Sobre o tema, JAMES RYALS, «Successful Interviewing», FBI Law Enforcement Bulletin, Vol. 60 - 1991, n.º 3 – pp. 6-7, DAVID VESSEL, «Conducting Successsful Interrogations», FBI Law Enforcement Bulletin, Vol. 67 - 1998, n.º 10 – pp. 1-6, VINCENT A. SANDOVAL, «Strategies to Avoid Interviewing Contamination», FBI Law Enforcement Bulletin, Vol. 72 - 2003, n.º 10 – pp. 1-12 (acessível em http://leb.fbi.gov/2003-pdfs/leb-october-2003), HERMENEGILDO FERREIRA BORGES, Entrevista e Interrogatório: Textos de Apoio - caderno I (Hermenegildo Ferreira Borges Org.), Centro de Recursos Didácticos e Audiovisuais - Instituto Nacional de Polícia e Ciências Criminais (INPCC), Barro, Loures, 1998, ANTÓNIO JOÃO MAIA, «Técnicas de Entrevista», Húmus – OBEGEF, 2013 (acessível em http://www.gestaodefraude.eu/wordpress/wp-content/uploads/2013/07/wp030.pdf, acedido em 14-12-2013) e «Técnicas de Entrevista e Interrogatório em Investigação Criminal», RMP, n.º 135, jul.-set. 2013, pp. 107.138. 474 A inviolabilidade (por terceiros) do bem jurídico vida humana (art. 24.º, n.º 1 da CRP) é algo distinto da sua disponibilidade pelo próprio titular, não havendo, quanto a esta, consenso doutrinal no tocante à sua admissibilidade.

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A objeção de que uma tal lógica faria as autoridades do Estado de direito sucumbir à lógica dos terroristas, e aos seus propósitos, é séria. Os fundamentos do paradigma de um direito penal do inimigo – a par de um direito penal do cidadão – não explicam a exceção ao modelo constitucional vigente das medidas de combate ao inimigo, nem previne contra a contaminação da ordem jurídica global, pois a incorporação nela de uma lógica securitária é dificilmente sustentável ou compatível com o ideário do Estado de direito. Todavia, o inédito grau de ameaças à segurança e tranquilidade coletivas aponta mais para um aprofundamento de tal tipo de preocupações, a que dificilmente o ideal garantístico que é atributo de um paradigma jurídico-penal pós-iluminista poderá dar integral resposta. Numa solução ideal, tornar-se-ia necessário reforçar, simultânea e complementarmente, os meios de prevenção e combate aos fenómenos do terrorismo, da criminalidade violenta e organizada, e de outros fenómenos criminais graves, de proteção das suas (potenciais ou reais) vítimas, bem como os mecanismos de proibição da tortura. Até se alcançar um ponto ótimo de desejável equilíbrio entre tais propósitos, o nosso receio é que se continue a sobrevalorizar a aceitabilidade da restrição de certas garantias fundamentais dos cidadãos suspeitos de alguns fenómenos gravemente atentatórios de bens jurídicos tão valiosos como a vida, a integridade física, a liberdade e tranquilidade pública, cujo sacrifício justificará tais argumentações. Poderá parecer que se assiste a um crepúsculo do Estado de Direito. Mas não é fim do dia a preparação do início de um novo dia? 3. Proposições de um direito ao silêncio corporal Julgamos ter demonstrado que a relevância jurídico-probatória do corpo atravessa dimensões marcadamente processuais, mas também substantivas, mesmo no tocante à expiação/execução de penas não imediatamente corporais. Afastamo-nos igualmente de

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paradigmas que pretendem reconverter a tortura como forma híbrida de prevenção e de investigação de crimes. Procuraremos nas linhas seguintes compendiar um feixe de questões que habitualmente se invocam para construir a estrutura de um – eventual ou efetivo – direito ao silêncio corporal, a partir de considerações fundadas nas ramificações emergentes do princípio da presunção de inocência, do direito à não autoincriminação (nemo tenetur se ipsum accusare) e do direito ao silêncio475. A mobilização do corpo da pessoa humana como fonte de prova na investigação criminal, a sua admissibilidade e a consideração dos limites a tais ingerências terão de ser necessariamente diferentes daqueles que se poderiam prever na segunda metade do séc. XX, justamente quando começaram a surgir as preocupações doutrinais e jurisprudenciais sobre essas questões. O direito ao silêncio corporal, enquanto hipótese a integrar como subcategoria do direito ao silêncio476, pode afinal reconduzir-se ao regime da admissibilidade e validade de uma “confissão corporal”, 475

Cf. sobre a questão, DIANA SILVÉRIO, O Silêncio como Garantia de Direitos Fundamentais das Vítimas e dos Arguidos no Processo Penal Português, Universidade Autónoma de Lisboa, Lisboa, 2013, ADRIANA RISTORI, Sobre o Silêncio do Arguido no interrogatório no processo penal português, Almedina, Coimbra, 2007 e MARIA FERNANDA PALMA, «A Constitucionalidade do art. 342.º, do Código de Processo Penal (o Direito ao silêncio do arguido)», RMP, N.º 60, 4.º trimestre, 1994, pp. 101-110. 476 Em latim, o verbo ativo tacere associa-se a uma pessoa significando uma pausa na linguagem (ausência da palavra). Por seu turno, silere é um verbo intransitivo que pode reportar-se a pessoas, mas também a animais, objetos e à natureza, designando preferencialmente a tranquilidade ou uma presença que não é perturbada por qualquer ruído (cf. A. ERNOUT – A. MEILLET, Dictionnaire étymologique de la langue latine, Paris, Klincksieck, 1951, 1.º vol., p. 1103). Longe de ser o contrário da palavra, o silêncio ordena as palavras, integra a linguagem, salvo quando se reporta à solidão do indivíduo, em que estar em silêncio pode significar ausência de linguagem. O silêncio organiza também os ritmos musicais. O silêncio assume frequentemente significado comunicacional. Em contextos processuais, o silêncio pode ter diversas motivações, mas reveste um significado comunicacional: desde a não contribuição para a hétero ou autoincriminação, até expressão de sentimentos de cariz existencial, religioso ou filosófico. Para além da vasta literatura sobre as questões do «silêncio», o tema tem sido glosado por alguma filmografia, como Le Grand Silence (2005), de Philipe Gröning e Silêncio (2016), de Martin Scorsese.

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mais ou menos coerciva, através de ingerências corporais probatórias. Sendo caracterizado pelo presuntivo menor grau de ofensa à dignidade humana e à integridade pessoal e pela maior fiabilidade dos seus resultados do que confissão mediante coação (ou tortura), estará em causa a delimitação da sua concreta aceitabilidade. Ilustrando essa infalibilidade de resultado com o modelo de identificação genéticocriminal, Katja Aas, refere que «a identidade humana conferida pelo perfil de DNA baseia-se num código binário de positivo/negativo, verdadeiro/falso, que produz a ilusão da certeza, a exclusão da dúvida e a percepção da infalibilidade da tecnologia, e, neste sentido, é ilustrativa da construção identitária dominante nas sociedades da vigilância, uma vez que minimiza as eventuais ambiguidades e complexidades, distancia-se da comunicação verbal e praticamente elimina as possibilidades de dúvida, negociação e incerteza»477. Pensa-se que a determinação do ponto de equilíbrio entre a legitimidade da intervenção estadual na perseguição dos crimes, na proteção das vítimas e na responsabilização dos culpados e a exigida proteção do imputado no tocante à extração e obtenção de prova do seu corpo, leva a reequacionar a configuração da tutela jusfundamental (os direitos fundamentais virtualmente afetados) do corpo do imputado no âmbito processual penal. O processo penal, quando esteja em causa a obtenção de prova corporal, é espaço dialético por excelência de utilização da força, através da devassa da reserva da vida privada, da afetação da integridade pessoal (física ou moral), da autodeterminação informacional, da limitação da liberdade, eventualmente do pudor e da saúde, constitucionalmente autorizada, e jurisdicionalmente densificada e concretizada. Como pano de fundo do enquadramento de todas estas questões, podemos invocar comando, sempre atual, da decisão do «“The body does not lie”: identity, risk and trust in technoculture», Crime, Media, Culture, 2 (2), 2006, p. 150, apudHELENA MACHADO – ANTÓNIO AMORIM – SUSANA SILVA, «Políticas de Identidade: perfil de DNA e a identidade genéticocriminal», Análise Social, Vol. XLV (196), 2010, pp. 537-553. 477

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BGH, de 14-06-1960, ao proclamar: «Die Wahrheit kann nicht fragen um jeden Preis»478. A decidida assunção pelos Estados de direito contemporâneos de um processo [..] equitativo [e democrático] postula a[..]exigência da procura da verdade material com respeito pela dignidade da pessoa humana. Porém, só a aquisição da verdade (material ou prático-jurídica) mediante provas obtidas de forma processualmente válida poderá traduzir a conformidade constitucional, ou mesmo supraconstitucional daquele propósito. Parece, aliás, existir uma incompatibilidade entre a afirmação de que o imputado é sujeito processual – emergente da essencial [e eminente] dignidade da pessoa humana e da integridade pessoal (artigos 1.º e 24.º a 26.º da CRP) – e o reconhecimento de que a sua pessoa é usada corporalmente, volvendo-se, virtualmente, em objeto do processo. Duas posições diametralmente opostas são, a tal propósito, concebíveis em abstrato. Uma, que se basearia na admissibilidade indiscriminada de restrições do direito à integridade pessoal, admitindo da forma mais ampla ou ilimitada possível a ingerência corporal probatória, desconsiderando a dignidade humana. A outra, proscrevendo qualquer possibilidade de restrição do direito à integridade pessoal, postulando a inviabilidade de qualquer ingerência corporal probatória, levando à outrance o valor da dignidade humana. Os resultados de uma e de outra são evidentes: a primeira, conduz ao totalitarismo; a segunda, ao colapso de qualquer sistema credível de investigação criminal, que desemboca em anomia social479. 478

«A verdade não pode indagar-se a qualquer preço» (trad. livre do autor). Sobre a questão, embora circunscrevendo a posição às perícias de ADN, cf. MORA SÁNCHEZ, admitindo que os direitos fundamentais devam ser a barreira intransponível para resolver a tensão entre o interesse público na descoberta dos crimes e na punição dos culpados e o interesse da defesa na proteção da liberdade e direitos da pessoa, reconhecendo que a sua consagração de uma forma extrema, inviabilizaria praticamente todo o proceso penal (Aspectos Sustantivos y Procesales de la Tecnología del ADN: Identificación Criminal a través de la Huella Genética [Cátedra de Derecho y Genoma Humano], Comares Ed., Granada, 2001, p. 81). 479

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Maria Elizabeth Queijo ensaiou uma interessante posição sobre este problema ao sublinhar que, «Há uma tensão permanente entre o interesse na apuração dos delitos e o respeito aos direitos fundamentais do acusado, entre eles o de não se autoincriminar, que exige uma solução harmoniosa. Ambos os interesses são públicos: o primeiro, voltado à persecução penal, e o segundo, vinculado à construção de um processo penal ético. Não poderá ser inviabilizada a persecução penal, pelo reconhecimento de direitos fundamentais ilimitados, mas não será admissível também que sejam eles, inclusive o nemo tenetur se detegere, aniquilados, para dar lugar ao direito à prova ilimitado e à busca da verdade a qualquer custo, com a colaboração inarredável do acusado»480. O Tribunal Supremo espanhol também já teve oportunidade de se pronunciar sobre a questão, no aresto de 29-01-2013 (proferido no conhecido caso “Marta del Castillo”), afirmando que: «El ejercicio de las garantías procesales, comprensivo de los derechos a no declarar contra uno mismo y ano confesarse culpable, en ningún modo confiere al encausado un derecho absoluto»481. Numa das suas obras de referência, Figueiredo Dias defendeu que o facto de o arguido ser considerado um sujeito do processo penal «(…) não quer (…) dizer que o arguido não possa, em determinados termos demarcados pela lei por forma estrita e expressa, ser objecto de medidas coactivas e constituir ele próprio um meio de prova. Quer dizer sim, que as medidas coactivas e probatórias que sobre ele se exerçam não poderão nunca dirigir-se à extorsão de declarações ou de 480

O direito de não produzir prova contra si mesmo: o princípio do nemo tenetur se detegere e suas decorrências no processo penal, 2.ª ed., Saraiva, São Paulo, 2003, p. 480. 481 Cf. STS, 2.ª, 62/2013, disponível em www.poderjudicial.es. Ainda sobre este caso veja-se, com interesse, MANUEL JESÚS DOLZ LAGO, «El caso ‘Marta del Castillo’ y la jurisprudencia – breve comentario a la STS, 2.ª, 62/2013 de 29 de enero», in Diario La Ley, ano 2013, n.º 8038, José VICENTE RUBIO EIRE, El derecho de un acusado en el procedimiento penal a no ser forzado a realizar ninguna actividad humana que pueda provocar su autoincriminación, Madrid, 22-5-2013, in http://www.elderecho.com/ e JOSÉ MARIA DE PABLO HERMIDA, «La sentencia ‘Marta del Castillo’ y la presunción de inocência», El Mundo, 29-01-2013, p. 20.

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qualquer forma de autoincriminação, e que, pelo contrário, todos os actos processuais do arguido deverão ser expressão da sua livre personalidade»482. Na mesma obra, entendeu que «O estatuto jurídico que ao arguido seja assegurado em um certo processo penal, constitui, por excelência, a pedra de toque para avaliar o espírito do ordenamento jurídico processual penal respectivo, enquanto é naquele que faz crise a questão que já atrás dissemos decisiva nesta matéria: a da forma de conceber as relações entre o Estado e a pessoa individual e a consequente posição desta na comunidade»483. E acrescenta que «o arguido é sujeito e não objecto do processo significa, em geral, ter de se assegurar àquele uma posição jurídica que lhe permita uma participação constitutiva na declaração do direito do caso concreto, através da concessão de autónomos direitos processuais, legalmente definidos, que hão-de ser respeitados por todos os intervenientes no processo penal». O mesmo Autor, após a edição do atual Código de Processo Penal, expressaria a ideia de que este diploma «(…) confere ao arguido o papel de sujeito do processo sob o duplo ponto de vista, que corresponde essencialmente à dupla referência que lhe é feita no texto constitucional: enquanto o arma, por um lado, com um direito de defesa (art. 32.º-1) a que por várias formas confere efectividade e consistência; e enquanto lhe confere, por outro lado, uma fundamental presunção de inocência até ao trânsito em julgado da condenação (art. 32.º-2)»484. O que está em causa é, assim, a determinação dos limites até onde é ou deve ser, face à Constituição e à Lei –, consentida a compressão de direitos fundamentais, mormente o direito à integridade pessoal e à reserva da vida privada, tendente à prossecução de procedimentos de investigação, segundo critérios de imprescindibilidade, de idoneidade, de proporcionalidade (em sentido 482

Direito Processual Penal, I, Coimbra Ed., Coimbra, 1974, p. 430. Idem., p. 427 e ss. 484 «Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal», Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, Centro de Estudos Judiciários - Almedina, Coimbra, 1988, p. 27. 483

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amplo e restrito) e de subsidiariedade. Esse ponto de equilíbrio resultará da tensão entre os interesses da procura da verdade material, da integridade da investigação e da boa e eficaz administração da justiça, da segurança e tranquilidade públicas, da prevenção do crime e de interesses indemnizatórios das vítimas, por um lado, e o conteúdo do direito de defesa que se materializa num complexo em que pontificam o princípio da presunção de inocência, o direito ao silêncio e à não autoinculpação/autoincriminação, o direito à integridade pessoal e à autodeterminação corporal e informacional, por outro. Os problemas colocados no estabelecimento de eventuais limites à sujeição do imputado a medidas probatórias com recurso a prova corporal são hoje intensificados pela infindável gama de tecnologias de vigilância, imagiológica, neurobiológica, biométrica, genética e outras, cuja acessibilidade e estatuto científico favorecem uma atitude de sedução na sua aplicação pelo Estado, em função da fiabilidade e conclusividade dos seus resultados. Esses meios tecnológicos permitem um grau de verosimilhança dos resultados produzidos, para mais encontrando-se muito associados – e, por vezes, mesmo de forma indissociável – a procedimentos ou atos médicos, ganhando alguns deles um estatuto de «mecanismos de verdade corporal», equiparáveis a «novos polígrafos»485. Dos significados comunicacionais-probatórios e jurídicoprocessuais do silêncio, pode extrair-se que não existe qualquer 485

Refira-se, a título de exemplos de medidas corporais probatórias com reforçado potencial tecnológico, a análise de expressão (emocional) facial, o “testemunho olfativo”, a estimulação cerebral profunda ou a “técnica P300” (ou EP300 ou P3). Esta técnica consiste na medição neurofisiológica da atividade de certas estruturas cerebrais – que ocorre entre 300ms e 500ms após a apresentação do estímulo, com voltagem positiva e amplitude de 5-20 mV –, mediante a estimulação com imagens ou sons, permitindo aferir da existência de prévia informação sobre os mesmos, por parte do visado. A sua ainda relativamente recente aplicação – por exemplo em Espanha, no caso «Marta del Castillo» e noutros –, suscitou intenso debate mediático e doutrinal sobre a analogia com um “novo polígrafo”. Sobre a questão, MARTA MADALENA BOTELHO, [..]«O Exame Neurológico P300 em tribunal e a (in)Viabilidade da sua Utilização no Processo Penal Português», RPCC, Ano 24 – N.º 1, janeiro-março 2014, pp. 57 -86.

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consequência imediata para o silêncio declaratório, sendo valorado por instâncias jurisdicionais como o TEDH uma dimensão restritiva do direito ao silêncio, apenas quanto ao silêncio declaratório. Sem embargo de, muitas vezes, o silêncio do imputado não ajudar a desmontar (e desmentir) a versão da acusação – caso em que a ausência de uma explicação para rebater a prova incriminatória pode comprometer a posição da defesa –, em termos programáticos vigora a regra da inexistência de ónus a cargo do imputado para prova da sua posição de defesa processual486. E quanto ao silêncio corporal? Já vimos que não poderá ser admissível nos mesmos termos do silêncio declaratório. Mas qual deverá ser o seu concreto alcance e conteúdo? Os critérios que classicamente têm sido ensaiados no sentido da abrangência de determinada diligência de pelo princípio nemo tenetur são o critério da dependência ou independência da vontade do arguido487 e um segundo critério, adotado pelo BVerfG e pela generalidade da doutrina alemã, que assenta na distinção entre conduta ativa e tolerância passiva488. De acordo com este segundo critério, importa distinguir as diligências de prova que, pela atitude passiva que lhes é inerente, em nada interferem com o direito do imputado a não contribuir para a sua própria incriminação – mas tornam o corpo um

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O valor do silêncio como confissão só em contados processos, de natureza civil ou análoga – em que o princípio dispositivo vigora na plenitude – e com efeito cominatório legalmente assinalado nesse sentido. 487 Segundo esta conceção estariam subtraídos ao princípio nemo tenetur prestações pessoais conseguidas sob ameaça de sanção, mas independentes da vontade do sujeito, que não passam por uma elaboração espiritual da sua parte. 488 Cf. KARL-HEINZ GÖSSEL, «As proibições de prova no direito processual penal da República Federal da Alemanha», RPCC, Ano 2, fasc. 3, jul.-set, 1992, p. 423 e CLAUS ROXIN, «La protección de la persona en el proceso penal alemán» (trad. castelhana, pub. em Revista Penal, n.º 6, julio 2000, Ed. Ciss Praxis Profesional, Barcelona, p. 120, disponível em http://www.uhu.es): «El procesado no tiene que colaborar con las autoridades encargadas de la investigación mediante un comportamiento activo (…), [aunque] se impone al procesado una obligación a tolerar...».

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suporte disponível para estabelecer, ou não, a sua culpabilidade489 – daquelas diligências em que fosse (ilegitimamente) constrangido a contribuir ou colaborar de forma ativa para a sua incriminação490. Apesar de, sobretudo o último destes critérios ter vindo a sofrer críticas por ser visto como redutor e de difícil operatividade e por se tornar especiosa a delimitação entre ação e sujeição491– não cremos existir razão para os abandonar completamente, parecendo-nos ainda válidos no auxílio da compreensão das categorias do consentimento e da coercibilidade. É, no entanto, apontada a dificuldade ou ambiguidade da distinção defendida por Claus Roxin, entre tolerância passiva e colaboração ativa do imputado, como se evidencia mesmo em casos havidos classicamente de tolerância passiva. Assim, não deixa de coexistir uma participação ativa, como é o caso de sujeição a recolha de sangue, saliva, urina, corte de cabelo, de tecidos corporais, álcool no sangue a partir do ar expirado ou do sangue etc., em que, sem a colaboração (necessariamente ativa) do arguido expondo voluntariamente o seu corpo fica comprometido o resultado a alcançar. Descortinam-se aí espaços de confluência de (colabor)ação e tolerância, com um hibridismo que torna aquela posição dificilmente sustentável. 489

Será, em princípio, o caso de provas dactiloscópicas, fotográficas ou provas de natureza análoga, as revistas, buscas e apreensões, os reconhecimentos, grande parte dos exames periciais de sujeição à recolha de amostras de cabelo, de sangue e de urina, assim como de tecidos corporais para determinação do perfil de ADN. 490 Estariam nesse âmbito as condutas coercivas de apresentação documentos ou objetos incriminatórios (v.g. a arma do crime), participação na reconstituição do facto, gravação de voz para realização de uma peritagem fonético-linguística ou o fornecimento de uma palavra-chave de um computador. 491 Ilustrando a difícil distinção entre ação/sujeição costuma referir-se, v.g. apertar o punho para extração de sangue ou o reconhecimento, convencionalmente classificado como “sujeição”, mas podendo demandar um comportamento ativo do visado, no sentido da sua colaboração com as autoridades, a fim de não viciar e comprometer o resultado da diligência. E, também nos casos de colaboração, poder interceder um comportamento violador da dignidade humana, como num caso de administração de eméticos (em situações que se mostre desproporcional, v. caso Jalloh c. Alemanha).

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De todo o modo, o critério pelo qual a doutrina e a jurisprudência constitucional nacionais têm optado é o da ponderação de bens e da concordância prática, encabeçado pelo magistério autorizado de Figueiredo Dias e Costa Andrade, de acordo com os quais as restrições ao nemo tenetur devem obedecer a dois pressupostos: i) devem estar previstas em lei prévia e expressa, de forma a respeitar a exigência de legalidade e; ii) devem também obedecer ao princípio da proporcionalidade e da necessidade, previsto no art. 18.º, n.º 2 da CRP492. Há ainda um outro aspeto suscetível de fazer infletir a posição tradicional, qual seja a de reconhecer que a obrigação de alguém expirar hálito, ou fornecer células, tecidos ou secreções corporais não só pode contribuir para a ilibação da suspeita sob o indiciado, como, frequentemente, acaba por ser decisivo para a sua responsabilização. É, em todo o caso, maioritária, entre a doutrina estrangeira do nosso entorno jurídico-cultural, bem como nacional, a posição de acordo com a qual o direito ao silêncio é uma manifestação do princípio da não autoincriminação493. Sufragamos este entendimento. O princípio nemo tenetur se ipsum accusare compreende, no seu conteúdo potencial máximo, como corolários, 1) o direito ao silêncio e 2) o direito de não facultar meios de prova, nomeadamente documentos, v.g. correspondência pessoal, diários íntimos, isto é documentos sobre os quais não recai nenhum dever de apresentação ou entrega às autoridades judiciárias e que estão cobertos pela reserva da vida privada. Podendo subsistir sempre uma margem de ambiguidade na delimitação entre condutas passivas e ativas no tocante à colaboração com as autoridades processuais, os concretos contornos da 492

«Poderes de Supervisão, Direito ao Silêncio e Provas Proibidas (Parecer)», Estudos sobre o Mercado de Valores Mobiliários, Almedina, Coimbra, 2009, p. 45. 493 Cf. CRUZ BUCHO, «Sobre a recolha de autógrafos do arguido: natureza, recusa, crime de desobediência v. direito à não auto-incriminação (notas de estudo)», acessível em http://www.trg.pt/ficheiros/estudos/sobre_a_ recolha_de_ autografos_ do_arguido.pdf.

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exigibilidade dessa colaboração devem ser legalmente assinalados (reserva de lei). Surge, assim, uma dupla dimensão de coercibilidade na sujeição do imputado a ingerências corporais probatórias, materializadas ora em cominações sancionatórias (crime de desobediência, multas processuais, equivalência da recusa à prova do facto probandum) – em que a consequência processual equivale ao resultado do meio de prova não aplicado – ora na utilização da coerção física (aplicação da força corporal), nos casos em que o resultado probatório ficaria inexoravelmente prejudicado pela preclusão do meio de obtenção de prova. Será de acordo com este enquadramento que julgamos constitucionalmente admissível a coercibilidade no quadro das ingerências corporais probatórias – excluindo as intervenções corporais profundas – e, consequentemente, dentro do mesmo que poderá desenhar-se o conteúdo do direito ao silêncio corporal. 4. CONCLUSÃO Do excurso precedente pode concluir-se que o corpo é, sincreticamente, causa, origem, móbil, objeto, instrumento e finalidade no processo penal. O direito ao silêncio corporal, enquanto hipótese a integrar como subcategoria do direito ao silêncio, pode afinal reconduzir-se ao regime da admissibilidade e validade de uma “confissão corporal”, mais ou menos coerciva, através de ingerências corporais probatórias. Sendo caracterizado pelo presuntivo menor grau de ofensa à dignidade humana e à integridade pessoal e pela maior fiabilidade dos seus resultados do que confissão mediante coação (ou tortura), estará em causa a delimitação da sua concreta aceitabilidade. Ilustrando essa infalibilidade de resultado com o modelo de identificação genéticocriminal, Katja Aas, refere que «a identidade humana conferida pelo perfil de DNA baseia-se num código binário de positivo/negativo, verdadeiro/falso, que produz a ilusão da certeza, a exclusão da dúvida e a percepção da infalibilidade da tecnologia, e, neste sentido, é - 431 -


ilustrativa da construção identitária dominante nas sociedades da vigilância, uma vez que minimiza as eventuais ambiguidades e complexidades, distancia-se da comunicação verbal e praticamente elimina as possibilidades de dúvida, negociação e incerteza»494. É, por isso, imperioso que o legislador se debruce com maior preocupação e rigor sobre um feixe de questões de que pode resultar o recorte normativo do direito ao silêncio corporal, designadamente através da definição dos pressupostos de ingerências corporais probatórias, do seu regime e do seu estatuto jurídico-probatório. Os problemas práticos que as matérias enunciadas podem suscitar justificam um questionamento mais aprofundado das mesmas, finalidade para que cremos ter contribuído.

«“The body does not lie”: identity, risk and trust in technoculture», Crime, Media, Culture, 2 (2), 2006, p. 150. 494

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CAPÍTULO 13 SOBRE A IMPOSSIBILIDADE DO SILÊNCIO NOS TEMPOS HIPERMODERNOS José Augusto Lopes Ribeiro495 Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo, Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje? Álvaro de Campos

INTRODUÇÃO A crença no progresso ilimitado conduziu a uma transformação do mundo e as condições naturais foram extintas. Passamos a viver artificialmente e perigosamente, já que a vida ritmada deu lugar à velocidade, ao movimento e ao ruído. O desenvolvimento tecnológico e a explosão das grandes cidades provocaram a aceleração da vida moderna e a vertigem pela mudança e pelo crescimento. Na perspetiva de Lipovetsky, a sociedade hipermoderna está entregue a uma espiral hiperbólica, vivemos sob o signo do excesso, fora dos limites: “a escalada paroxística do “sempre mais” imiscuiu-se em todas as esferas do conjunto coletivo” (2011: 58). A nossa época vive sob a lógica do efémero e generaliza a comunicação, o consumismo, o divertimento e o zapping. Somos, pois, confrontados com mudanças profundas no modo como vivemos e no nosso tecido social. Através das novas tecnologias mergulhamos numa variedade de relações e de contactos, movidos por uma lógica da gratificação e da reação instantâneas, sob ritmos frenéticos que nos conduzem a uma saturação social. O homem 495

Ver Lista de Colaboradores.

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contemporâneo procura desenfreadamente emoções fortes e está obcecado pela intensificação da sua existência. A ânsia comunicacional levou a que aquilo que era considerado segredo, e que não se podia partilhar com os outros, passasse agora a ocupar a esfera pública. Como explica Bauman, a sociedade contemporânea apagou as fronteiras que separavam o privado do público: “para converter a exposição pública do privado numa obrigação e virtude pública” (2012: 256). Por seu lado, a cultura hedonista promove novas necessidades e desenvolve técnicas de amplificação das nossas sensações e experiências, fomentando a excitação crescente e o “aumento do volume”. A comunicação profusa é encarada como remédio para todos os nossos problemas, pessoais e sociais, e o silêncio perde a sua força e sentido: vivemos a impossibilidade do silêncio. Como esclarece David Le Breton, existe uma contradição entre a natureza e a técnica: “o ruído está ligado à velocidade, à força, à energia, ao poder, o silêncio, inversamente, é uma cristalização da duração, um tempo parado ou infinitamente lento, aberto à sensibilidade do corpo humano, batendo ao ritmo tranquilo da marcha do homem” (1999: 172). A contemporaneidade preenche furiosamente o espaço e o tempo através de emissões sonoras ininterruptas, como se o silêncio fosse um lugar que deve ser ocupado e rentabilizado. Os indivíduos receiam o silêncio e vivem num frenesim comunicacional, absorvidos pelos media, pelas redes sociais e pelos telemóveis. Assim, é sacrificada a privacidade e a interioridade, deixamos de escutar a nossa voz silenciosa: o silêncio torna-se um inimigo. A vida intensa e a saturação da informação e da comunicação impedem o diálogo silencioso do indivíduo consigo mesmo. Estamos, pois, condenados a viver num mundo cada vez mais ruidoso, num ruído continuado que nos dificulta o acesso a nós mesmos.

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1. A vida silenciosa Quando pensamos sobre a vida silenciosa, o nosso imaginário transporta-nos para um local longínquo e não habitado: a ilha deserta. Imaginamos a situação de Robinson Crusoe após o naufrágio que o isolou do mundo e da sociedade. No seu relato, este herói, confessa que agora estava “prestes a entrar na melancolia de uma vida de silêncio, como, talvez, nunca tivesse sido ouvido no mundo inteiro” (Defoe, 2004: 71). À medida que o tempo passa, Crusoe vai adquirindo uma nova consciência, pondera a sua condição e as circunstâncias em que se encontra. Adquiriu um novo conhecimento, tinha uma perceção diferente das coisas e as suas emoções e desejos tinham-se alterado: “comecei a concluir que era possível ser mais feliz nestas circunstâncias de abandono e solidão do que alguma vez seria noutro sítio do mundo” (2004: 123). Condenado pelo destino a uma vida silenciosa, Crusoe reflete sobre a sua condição e, deste modo, mantém constantes diálogos consigo mesmo, discutindo o sentido da existência e o seu lugar no mundo. A propósito do silêncio, a nossa imaginação remete-nos ainda para um outro lugar: os bosques. Henry David Thoreau é um exemplo significativo da vida nos bosques, bem como da associação entre a contemplação da natureza, da sua complexidade e capacidade curativa e uma análise de cariz filosófico acerca da condição humana. Quando envereda pela vida solitária e silenciosa dos bosques, a finalidade deste pensador transcendentalista é, tal como afirma na sua obra Walden, procurar a simplicidade e viver de um modo desprendido, mas intenso: “fui para os bosques porque pretendia viver deliberadamente, defrontar-me apenas com os factos essenciais da vida, e ver se podia aprender o que ela tinha a ensinar-me, em vez de descobrir à hora da morte que não tinha vivido. (…) Queria viver em profundidade e sugar toda a medula da vida” (1999:108). Entregue à contemplação da natureza “em completa solidão e serenidade, enquanto os pássaros ao redor cantavam ou esvoaçavam silenciosos através da casa” (1999: 130), Thoreau entregava-se às suas meditações - 435 -


e falava como um homem em estado de alerta, criticando os homens adormecidos do senso comum: “a Inglaterra empenha-se em sanar o apodrecimento das batatas; não haverá ninguém empenhado em sanar o apodrecimento do cérebro, que alastra de modo mais amplo e fatal?” (1999: 353). Instalado no campo e vivendo o seu quotidiano nos bosques, Thoreau analisa os sons que o silêncio lhe revela e procura entender a linguagem do silêncio. Contudo, a sua época vive uma rutura brutal e a vida que decorria ao ritmo do passo do cavalo vai dar lugar à velocidade no transporte de pessoas e mercadorias, bem como à crescente produção e industrialização. O território irá sofrer profundas modificações devido à proliferação de indústrias e as cidades explodem desorganizadamente, congestionadas e barulhentas. A civilização mecânica desponta de forma furiosa e predadora, primeiro o vapor, depois a eletricidade e os motores. A modernidade coloca em marcha a utopia do progresso tecnológico e, consequentemente, provoca desequilíbrios na vida social e na relação entre o homem e a natureza. A massificação das máquinas transformou radicalmente a vida dos homens e provocou uma intensa agitação, destruindo hábitos ancestrais e impondo uma lógica de eficácia, competição e crescimento. O ritmo frenético das mudanças conduziu a uma drástica metamorfose da paisagem sonora e instalou a ditadura do ruído: agora temos ódio à vida silenciosa. 2. Modernidade e ruído Apesar do seu distanciamento da civilização, Thoreau evidencia as consequências negativas da Revolução Industrial e do advento da exploração intensiva da Natureza. No capítulo de Walden dedicado aos sons, descreve, entre outros, o canto dos pássaros, o cacarejar do galo ou o pio do mocho. Contudo, assinala o som da passagem do comboio e do turbulento mundo que este representa. Thoreau está ligado à civilização através de uma espécie de “corda acústica” e, ao contrário de Crusoe, já não escuta apenas os sons da - 436 -


Natureza, mas sofre a intrusão do silvo da locomotiva que invade os bosques: “quando ouço o cavalo de ferro fazer os morros ressoarem com relinchos de trovão, estremecendo a terra com as patas, despedindo das ventas fogo e fumo (não sei que espécie de cavalo alado inventarão para a nova mitologia), até parece que a Terra já arranjou uma raça digna de habitá-la” (1999: 136). Através do progresso técnico o mundo passa a ser habitado por uma panóplia infinita de objetos e de máquinas, dando lugar a um mundo artificial dominado pela técnica e pelo ruído. Daí que o pensador se interrogue sobre as implicações negativas deste domínio da natureza, criando um mundo cada vez mais desenvolvido. O homem deixou-se surpreender e maltratar, a vida tornou-se contranatural e deixou de existir lugar para o homem: “vive-se com muita pressa. Os homens julgam essencial que a Nação tenha comércio, exporte gelo, fale por meio do telégrafo, e ande a quarenta e oito quilómetros por hora, sem se perguntarem se tudo isso convém ou não; entretanto não se sabe ao certo se deveríamos viver como babuínos ou como homens” (1999: 109,110). Thoreau questiona o viver com tanta pressa e em que medida o homem esbanja a sua vida enquanto escravo dos instrumentos e incapaz de despertar para a contemplação da natureza. Agora são as máquinas que alcançam a primazia, subalternizando o homem e impondo o seu ritmo e a sua lógica. Como refere Le Breton, “ a sensação de ruído expandiu-se, sobretudo, com o nascimento da sociedade industrial e os tempos modernos alargaram-no desmesuradamente” (1999: 167). O progresso técnico conduziu ao aumento do ruído no nosso quotidiano, bem como à nossa impossibilidade para controlar o barulho produzido. Dentro das nossas casas surgiram novos ruídos, desde os eletrodomésticos até aos equipamentos de som, rádio, televisão, computadores ou telemóveis. Também na rua o barulho cresceu assustadoramente com o aumento do tráfego, as obras, as sirenes, a música alta, etc. Com o avanço vertiginoso do desenvolvimento tecnológico o silêncio recua e o ruído torna-se o nosso meio ambiente. O novo estilo - 437 -


de vida e a proliferação de dispositivos tecnológicos e de meios de comunicação mergulham os indivíduos em autênticas caixas de ruído: “o ruído organiza-se, está a tornar-se uma constante do nosso mundo” (Steiner, 2000: 143). Para George Steiner, o ruído domina a nossa vida e constitui um perigo para o ser humano: “a intrusão do ruído, a impossibilidade de encontrarmos espaços consagrados ao silêncio, tanto na nossa existência privada como na vida pública ou na educação reservada às crianças, parecem-me ser a poluição mais grave com que a cultura moderna se confronta (Jahanegloo, 2000: 142). O ruído das máquinas e dos homens impede a concentração intelectual e impossibilita a escuta do pulsar do universo e de nós mesmos. 3. O horror ao silêncio A propósito dos lugares privilegiados onde o silêncio manifesta a sua subtil omnipresença, Alain Corbin refere que aqui podemos operar a sua escuta: “o silêncio aparece como um som doce, ligeiro contínuo e anónimo” (2016: 13). Contudo, o mundo artificial da hipermodernidade torna o silêncio uma impossibilidade. Para David Le Breton, “a modernidade é a chegada do ruído. O mundo faz ressoar, constantemente, instrumentos técnicos cujo uso acompanha a vida pessoal ou coletiva” (1999: 14). Por outro lado, a profusa comunicação das redes sociais, dos media ou dos telemóveis instala-se como meio ambiente, constituindo uma interrupção permanente do silêncio. Como explica Sara Maitland, “ficamos aterrorizados com o silêncio e, portanto, banimo-lo das nossas vidas” (2008:181). Vivemos uma sobreexcitação auditiva, num ambiente extremamente ruidoso e, para escapar à cacofonia ambiente, usamos ainda mais som utilizando auriculares ruidosos. O ruído é contínuo e descontrolado e, como afirma Steiner, “hoje vende-se ruído, o ruído domina o mercado como objeto de consumo indispensável” (Jahanegloo, 2000: 142). A nova esfera sonora é total, estamos imersos numa cultura do decibel:

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Um vasto segmento da humanidade, entre catorze e, digamos, os vinte e cinco anos de idade, vive hoje constantemente mergulhado nesta vibração. O martelado do rock ou pop cria um espaço envolvente. As atividades como a leitura, a escrita, o diálogo particular, o estudo, outrora enquadradas pelo silêncio, tomam doravante lugar num campo de palpitações estridentes (Steiner, 1992: 119).

O homem contemporâneo receia o silêncio e foge da solidão e, como esclarece Bauman “ao fugir à solidão, perde-se a oportunidade de desfrutar do distanciamento, esse sublime estado em que é possível evocar pensamentos, sopesar, refletir, criar e, em definitivo, atribuir sentido e substância à comunicação” (2011: 17). A dependência do ruído ininterrupto compensa a falta de companhia. Por isso, nunca estamos sós, recebemos em permanência ruídos eletrónicos que preenchem o nosso mundo e nos conectam com os outros através das ligações online. A propósito da utilização do “Twitter”, Zigmunt Bauman analisa o significado da palavra inglesa que tem a ver com o som emitido pelos pássaros quando chilreiam, de modo a manterem o contacto com os outros e a definirem território: “o chilreio não transmite nenhuma outra mensagem, pelo que os seus conteúdos (se existissem, coisa que não ocorre) seriam irrelevantes; o que conta é que se emita som e (com um pouco de sorte) alguém o ouça” (2011: 26). A comunicação instantânea e a obsessão de estar sempre em contacto, principalmente através do uso desmesurado do telemóvel, impossibilitam o silêncio e transformam todo o ambiente em ruído. Como esclarece Maitland, “a sobreexcitação da sociedade moderna, em que o ruído é um facto importante, possui uma qualidade que causa dependência – quanto mais estimulação e novidade recebemos, mais pensamos que temos necessidade de ambos” (2008: 186). Para o homem contemporâneo que vive a utopia da comunicação, o silêncio é, na perspetiva de Le Breton, a falha da máquina, o silêncio da avaria: “é mais o cessar da tecnicidade do que o aparecimento de uma interioridade” (1999: 11). A paragem da - 439 -


máquina provoca um silêncio persistente que nos inquieta e provoca mal-estar: o silêncio torna-se uma doença fatal. Citando Max Picard, o autor refere: “parece que o último resquício existente de silêncio tem de ser arredado, que foi dada ordem de parar o silêncio em cada homem, em cada casa, de o tratar como inimigo e de o destruir” (1999: 171). Por isso, preferimos viver no meio da algazarra, temos medo do silêncio como a criança tem medo do escuro, o silêncio tornou-se sinistro e assustador. 4. Viver num mundo acústico Hannah Arendt explica, recorrendo a Hans Jonas, que a visão tem servido como metáfora orientadora e modelo da perceção em geral e do espírito que pensa. Possibilita uma distância entre sujeito e objeto e permite liberdade de escolha, pois ao ver ainda não estou comprometido com as coisas, posso contemplar. Contudo, a audição força a sua entrada num sujeito passivo: “ao ouvir, o percepiente está à mercê de alguma coisa ou de alguém” (1999: 124). Por outro lado, Marshall McLuhan, teórico da comunicação, destaca a dimensão acústica do homem moderno: no mundo elétrico, a simultaneidade da informação é acústica, no sentido de vir ao mesmo tempo de todas as direções. Ouve-se de todos os lados. A informação elétrica chega de todas as direções ao mesmo tempo e, quando isto acontece, está-se a viver num mundo acústico. Não interessa se se está a ouvir ou não, mas que se está a receber esse padrão acústico (McLhuan, 2009: 215,216).

Este mundo de comunicação simultânea constitui, na interpretação de McLhuan, o resultado de uma das grandes mutações dos nossos tempos. Estamos a assistir à passagem do olho para o ouvido. O mundo visual e o mundo acústico são muito diferentes, enquanto o primeiro é contínuo e homogéneo, o segundo não tem continuidade nem homogeneidade. No mundo visual as coisas - 440 -


permanecem fixas, mas no mundo acústico tudo está em mudança. Trata-se de uma grande transformação, daí que surjam dificuldades: “um dos problemas do homem visual ocidental é tentar traduzir tudo em termos visuais. É muito difícil para o homem ocidental aprender as coisas sem ser através de um modo visual, concatenado, racional” (2009: 212). O mundo do ouvido é hipersensível, enquanto o olho que observa é frio e distanciado. Daí que, para McLhuan, “o ouvido induz no homem um pânico universal, enquanto o olho, prolongado pela literacia e pelo tempo mecânico, deixa alguns espaços e ilhas livres da incessante e pressionante reverberação acústica” (2008: 165). Enquanto o olho é mais neutral, o ouvido é hiperestético. O ouvido é, ainda, intolerante, fechado e exclusivo, mas o olho é aberto, neutral e associativo. Na sua leitura de McLhuan, George Steiner considera que o autor anuncia uma nova era onde a pressão eletrónica da simultaneidade mergulha nas modalidades orais e auditivas, uma espécie de “formas de comunicação auricular de massa” (1988: 262). A permanência do ruído constitui-se como garantia da existência do próprio mundo, o ruído passa a ser a medida de todas as coisas: “o ruído é o sinal tangível de que os outros continuam à nossa volta. Tranquiliza, ao lembrar que para além de nós o mundo continua a existir. O silêncio é inquietante porque anula qualquer diversão e coloca o homem perante si mesmo” (Le Breton, 1999: 155). Através do domínio do ruído construímos um mundo de aparências acústicas à nossa medida, controlamos o nosso som ambiente e definimos o nosso modo de ser e a nossa identidade. Daí que na atualidade cada indivíduo se movimente munido do seu próprio som. Os auriculares, acopulados a dispositivos eletrónicos, acompanham o homem da hipermodernidade, deste modo ele sobrepõe-se à poluição sonora e configura o seu próprio universo. Através da sua própria atmosfera acústica cada um prolonga o seu corpo e afirma-se como individualidade.

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5. Subjugados pelo ruído Atualmente é, pois, uma trivialidade o facto de que estamos condenados a viver num mundo cada vez mais ruidoso: “uma das mais invasoras poluições” (Attali, 1999: 244). Na perspetiva de Gunther Anders, o ruído é um grande escândalo, mas também cumpre uma função: “o ruído representa um dos instrumentos principais do conformismo” (2011: 243). Estamos subjugados pelo ruído, temos obstruído o caminho que nos leva a nós mesmos. A dimensão do acústico constitui-se como dimensão da não-liberdade, pois enquanto escutamos passivamente não somos livres. Por outro lado, é mais difícil deixar de escutar do que deixar de ver: “diferentemente do mundo visível, o mundo auditivo pode introduzir-se em nós sem pedir, de maneira indiscreta, impertinente, sem necessidade do nosso expresso consentimento intencional” (2011: 244). A intromissão do ruído deixa-nos dependentes e atados, impedindo que sejamos nós mesmos. Estamos presos ao que nos rodeia através da “corda acústica” e entramos em pânico se deixamos de escutar o barulho, perdemos a sensação de segurança e somos possuídos pela irritação e pelo mal-estar. Trata-se de um fenómeno que é comum ao homem da hipermodernidade que evita a região do silêncio e manifesta, deste modo, o sintoma de servidão da própria época. Este conformismo agrava-se quanto fica anulada a diferença entre escutar e falar. Para Anders, o indivíduo assimila a opinião ministrada pelos meios de comunicação como se fosse a sua própria opinião e perde, deste modo, a capacidade de se expressar autonomamente. Daqui resulta um falar que obedece ao que escuta: “o homem torna-se agora um ser que fala só porque é um ser que escuta. Com efeito, para a maioria dos conformistas falar converteu-se já num mero co-falar o escutado sem pausa” (2011: 267). Como já não fala e nada tem a dizer, o homem que apenas escuta torna-se um subordinado. Identificado com o mundo hipermediatizado e sob a tirania das tecnologias da informação e da comunicação, o indivíduo torna-se o artesão do seu próprio conformismo, fugindo à solidão e ao - 442 -


silêncio. Como problematiza Hannah Arendt: “afinal, não sabemos todos como foi sempre relativamente fácil perder pelo menos o hábito, se não a faculdade, de pensar? Não é preciso mais do que viver em constante distração e nunca abandonar a companhia dos outros.” (2000: 89). A pensadora esclarece que “todo o pensar exige um parare-pensar” (1999: 91), mas o frenesim comunicacional é incompatível com o abrandamento do ritmo e não se compadece com intervalos ou paragens. A aceleração social exige de cada um de nós sempre mais e mais rápido, vivemos uma tirania da urgência. Contudo, Arendt recorda-nos que somos seres que pensam e que “as atividades do espírito (…), em especial o pensar – o diálogo silencioso do eu consigo mesmo – podem ser compreendidos como a atualização da dualidade original ou da cisão entre eu e eu mesmo que é inerente a toda a consciência (consciousness)”(1999: 87). Assim, não podemos ignorar a componente purificadora do pensar, o socrático dois-em-um do diálogo silencioso, pelo qual nos libertamos do mundo das aparências e acedemos a nós mesmos, através de um dizer sem som e interrompendo a ação no mundo. 6. O silêncio interior e a atividade de pensar Na análise de Jacques Attali, o silêncio é “uma das dimensões da solidão, da contemplação, da meditação, do regresso a si. Apanágio do indivíduo no seu diálogo com Deus, com o universo ou consigo próprio” (1999: 244). Daí que, mundo cada vez mais ruidoso, precisamos de reaprender o poder do silêncio. Na vertigem da vida intensa e acelerada precisamos de parar e calar. A propósito do elogio do silêncio, Marc de Smedt interpela-nos acerca do silêncio interior: “como é que poderemos, no tumulto dos pensamentos, dos fantasmas, das imagens que nos habitam, chegar a reencontrar o silêncio em si?” (2001: 10). O ruído é onipresente e a excessiva estimulação do nosso sistema auditivo provoca no indivíduo stress, irritabilidade e ansiedade, comprometendo o equilíbrio, a calma interior e a reflexão. Contudo, vivemos encantados pelo poder e pela ilusão dos sons, sob o - 443 -


poder mágico de Orfeu, incapazes de romper com a “corda acústica” que nos liga ao quotidiano, obcecados pela comunicação constante e absorvidos por um ritmo de vida frenético, hedonista e ruidoso. O homem contemporâneo vive sob uma enorme pressão acústica, num mundo artificial, deslumbrado pelas novas tecnologias, pelo consumismo e pela ação, mas alheado de si mesmo. Como explica Hannah Arendt “a principal caraterística do pensar é interromper toda a ação, toda a atividade normal, qualquer que ela seja” (1996: 39), ora nós não estamos disponíveis para parar e pensar, a velocidade a que vivemos não permite escapar ao ritmo acelerado e, portanto, alienado da nossa existência. Temos falta de tempo, não temos tempo a perder e parar é morrer. Vivemos numa lógica de aceleração social: “dominados e reprimidos por um regimetempo em grande parte invisível, despolitizado, indiscutido, subteorizado e inarticulado” (Rosa, 2012: 8). Quando penso retiro-me do mundo, abandono tudo aquilo que me ocupa e inicio um diálogo silencioso comigo mesmo, examinando e procurando a compreensão e o sentido. Arendt chama a atenção para o perigo inerente à própria atividade de pensar, afirmando que o próprio pensar é perigoso, na medida em que a crítica pressupõe um estádio de negação daquilo que foi aceite: “pensar significa que de cada vez que estamos confrontados com alguma dificuldade da vida temos de decidir a partir do zero” (1999: 195). Contudo, não pensar também tem os seus perigos: “protegendo as pessoas dos perigos de examinar, ensina-as a agarrarem-se firmemente a quaisquer regras prescritas de conduta que possam existir num determinado momento numa dada sociedade” (1999: 195). Deste modo, os indivíduos estão prontos para obedecer e facilmente renunciam ao código antigo para aceitarem acriticamente o novo. A pensadora esclarece ainda que pensar é uma tarefa solitária mas não desacompanhada, já que na solidão faço companhia a mim mesmo. Trata-se do dois-em-um descoberto por Sócrates, ou seja, a essência do pensamento que tem lugar no “diálogo sem som de mim

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comigo mesmo” (1999: 195). O pensar passa, pois, por este processo de perguntas e respostas, um dizer silencioso. Hannah Arendt mostra o valor e o poder deste diálogo silencioso que ocorre na atividade de pensar: “uma pessoa que não conhece essa conversação silenciosa (na qual examinamos o que dizemos e o que fazemos) não se importará com contradizer-se, e isto significa que nunca será capaz ou quererá explicar aquilo que diz ou faz, e também não se importará com cometer qualquer crime, dado que pode contar com ele ser esquecido no momento seguinte (1999: 209). Também Heidegger nos alerta para o perigo de sermos pobresem-pensamentos: “a ausência-de-pensamentos é um hóspede sinistro que, no mundo atual, entra e sai em toda a parte. Pois hoje toma-se conhecimento de tudo pelo caminho mais rápido e mais econômico e, no mesmo instante e com a mesma rapidez, tudo se esquece” (2000: 11). A fuga ao silêncio é também uma fuga do pensamento. Num mundo orientado para o progresso da técnica, esta acaba por determinar a relação do homem com aquilo que o rodeia e o único pensamento que conta é aquele que planifica e investiga, em detrimento do pensamento que medita e que reflete. Este modo de vida superficial ameaça desenraizar os indivíduos. Os meios de comunicação simulam a existência de um mundo que não é real. Os homens “ a cada hora e a cada dia estão presos à rádio e à televisão. O cinema transporta-os semanalmente para os domínios invulgares, frequentemente apenas vulgares, da representação que simula um mundo que não o é” (2000:16). O novo enraizamento exige que saibamos cultivar o silêncio, procurar a paz e adquirir uma serenidade em relação às coisas. Estes aspetos “prometem-nos um novo solo sobre o qual nos possamos manter e subsistir, e sem perigo, no seio do mundo técnico” (2000:25). Deste modo, temos a possibilidade de viver de uma maneira completamente diferente e a perspetiva de um novo enraizamento. Para manter desperta a reflexão, não podemos ficar deslumbrados e enfeitiçados pela revolução técnica, correndo o risco - 445 -


do pensamento único (aquele que calcula) e de viver num ruído organizado. Heidegger interroga-se sobre o futuro do homem, em busca de um caminho para o pensamento que medita: Então que grande perigo se aproxima? Então a máxima e mais eficaz sagacidade do planeamento e da invenção que calculam andaria a par da indiferença para com a reflexão, para com a ausência total de pensamentos. E então? Então o homem teria renegado e rejeitado aquilo que tem de mais próprio, o facto de ser um ser que reflete. Por isso o importante é salvar essa essência do homem. Por isso o importante é manter desperta a reflexão (2000:26).

Não estamos preparados para esta transformação do mundo que decorre do progresso tecnológico, que agride a vida e a natureza humana. Estamos indefesos e desamparados perante um mundo que se tornou mais acelerado e ruidoso, onde não há lugar para o homem. CONCLUSÃO A famosa experiência de John Cage (séc. XX) no quarto insonorizado de Harvard, mostrou-nos que o silêncio absoluto não existe. Encerrado na câmara anecoica, em busca do silêncio puro, não podia deixar de ouvir os sons produzidos pelo seu corpo: as batidas do coração e a circulação do sangue (som grave) e o seu sistema nervoso (som agudo). Mais tarde, a sua performance designada 4’33, onde um pianista permanece sentado ao piano sem tocar, permite-lhe questionar o silêncio e compreender que este é a verdadeira nota, o elemento que possibilita o aparecimento dos sons. O advento da modernidade conduziu a uma profunda metamorfose da paisagem sonora e a contemporaneidade instalou a saturação do espaço e do tempo pelas emissões contínuas de ruídos: passamos a odiar o silêncio. A linguagem silenciosa do imaginário pré-moderno dá lugar à brutalidade do espírito dos tempos hipermodernos. Na perspetiva de Michel Maffesoli, assistimos a um - 446 -


desencantamento do mundo que torna o silêncio residual: “dizer tudo, dizer demasiado, liberdade de expressão” (2016: 122). Hipermediatização, fluxo vertiginoso de palavras, nada pode ser escondido, mas a euforia comunicacional oculta, muitas das vezes, a falta de ideias e a incapacidade para pensar. Perdemos a faculdade de entender as ações simbólicas, vivemos distraidamente, incapazes de parar e de contemplar ativamente a dimensão oculta do não-dito. A sociedade está narcotizada pelo barulho, em vez de se colocar à escuta de si. O silêncio não é, pois, ausência de barulho, mas condição de escuta ativa e de recolhimento. Como refere Cristina Noacco, “o silêncio não é nunca a ausência de sons, é uma disposição do espírito para entender o murmúrio do mundo e os movimentos do meu mundo interior” (2017: 13). Precisamos de reaprender a disciplina do silêncio para encontrar o sentido e o acesso a nós mesmos. Como nos explica Alain Corbin, o silêncio implica aprendizagens e, citando o dramaturgo belga Maurice Maeterlinck, acrescenta: “os indivíduos não querem o silêncio, eles matam o silêncio à sua volta” (2016: 83), mas a aprendizagem do silêncio é fundamental já que é o elemento no qual se formam as grandes coisas. Como nos ensinou Platão, o pensamento só trabalha no silêncio, o pensar é diálogo silencioso consigo mesmo. Mas nós temos medo do silêncio e, como explica Maeterlinck, estamos constantemente à procura de lugares onde este não reina. Somos avaros do silêncio, daí a necessidade de reabilitar a sua linguagem e descobrir a palavra interior, de maneira a encontramos lugar para o recolhimento e para a reflexão. Estamos sempre demasiado ocupados para pensar, por isso fugimos do silêncio e de nós mesmos. Como mostrou Arendt, evitamos o diálogo solitário e sem som a que chamamos “pensar”: A incapacidade de pensar não é um defeito da maioria que tem falta de capacidade cerebral mas uma possibilidade sempre presente para todos – cientistas, eruditos, não excluindo outros especialistas em empreendimentos mentais. Toda a gente pode evitar

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essa conversação consigo mesmo cuja praticabilidade e importância Sócrates foi o primeiro a descobrir. (…) Os homens que não pensam são comparáveis a sonâmbulos (1999: 209 -210).

O domínio crescente das novas tecnologias, bem como a preponderância do mundo técnico sobre a humanidade, exigem que os indivíduos procurem uma transformação profunda da sua relação com a Natureza e com o mundo. Heidegger aconselha-nos a deixar repousar os objetos técnicos e a procurar a serenidade. Assim, adotamos um novo modo de estarmos no mundo, que nos possibilita manter e subsistir perante o deslumbramento pelas tecnologias da informação e da comunicação ou o ofuscar do progresso tecnológico que nos afasta de nós mesmos: “a serenidade em relação às coisas e a abertura ao mistério são inseparáveis” (2000:25). Temos de saber escutar o som interior e descobrir o alfabeto do silêncio que nos possibilita o acesso à compreensão e ao sentido. O mundo ruidoso leva-nos a um embaraço perante o silêncio, mas precisamos de economizar as palavras e descobrir a força do silêncio. O excesso de comunicação aniquila o silêncio, mas, por outro lado, a ausência de silêncio mata a própria comunicação. Temos necessidade do silêncio para nos aproximarmos dos mistérios, para acedermos ao que verdadeiramente importa à natureza humana. O nosso equilíbrio depende desta orientação da escuta para a nossa interioridade, valorizando a espiritualidade do silêncio: “atender ao silêncio interior significa tornar-se espetador de si próprio” (Noacco, 2017:73). Pelo silêncio interior podemos buscar a calma e a elevação, temos, pois, de deixar falar o silêncio em nós mesmos. O homem contemporâneo perdeu o gosto pelo mistério e vive desiludido, afastado do silêncio ativo que predispõe para a escuta do mundo e de si mesmo. Ignoramos a linguagem do silêncio, onde tudo começa e onde tudo termina, condição de toda a criação, da criatividade e da atividade de pensar. O silêncio é, pois, o elemento de compreensão do mistério do real, capaz de insuflar sentido à nossa existência e possibilitar o reencantamento do mundo. - 448 -


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CAPÍTULO 14 SILÊNCIO, QUIETUDE E ATENÇÃO: O OXIGÊNIO DAS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS: UMA ABORDAGEM SOCIOEMOCIONAL João Roberto de Araujo “Sofrimento não é uma condição objetiva do mundo exterior. É uma reação mental gerada por minha própria mente. Aprender isso é o primeiro passo para cessar a geração de mais sofrimento” Yuval Noah Harari

As frequentes informações tendenciosas e manipuladoras, repletas de interesses ideológicos, doutrinários, políticos e, inclusive, científicos, acrescidos pelo mau gosto da propaganda consumista, impactam-nos com tempestades destruidoras que açoitam ouvidos e almas. Vivemos inquietos, ansiosos, com medo e incomodados com o barulho existencial que não é só físico, mas, também, mental. A sociedade barulhenta impacta mais aqueles que não sabem se aquietar e que amplificam os ruídos externos a partir da batucada desafinada das emoções que habitam nossa mente. Precisamos de um maestro para construir arranjos sonoros mais suaves, nesta cultura de ostentação e exibição, porém, igualmente, faltam-nos maestros para nos ajudar a criar melodias mais harmoniosas na nossa interioridade emocional. Quando estamos desarranjados e desafinados por dentro, a poluição sonora de fora se amplifica e nos aborrece mais. Por essa razão, é oportuno ampliar o espectro e a compreensão sobre a aspereza dos ruídos psicológicos do mundo turbulento que nos envolve. Comecemos pela cacofonia nas redes sociais. A sociedade já viveu a utopia de estabelecer uma língua unificante dos povos, de entoar uma melodia global. O sonho da cooperação coletiva parecia estar próximo de se realizar com a chegada da internet, reduzindo as distâncias e horizontalizando as relações humanas, em um crescente - 452 -


processo de inclusão digital. Ela dá visibilidade a indivíduos que antes passavam despercebidos. O estudante, o proletário, o intelectual, o político, o artista, a funcionária doméstica podem estar lado a lado nas redes sociais. Mas essa voz que foi dada a todos, com ampla liberdade de expressão – muitas vezes de maneira perversa - discrimina o diferente, o negro, a mulher, o homossexual, dissemina e potencializa discursos de ódio e promove a tribalização. Na acepção do sociólogo norte-americano, Richard Sennett, tribalização é “o impulso natural, animalesco, de solidariedade com os parecidos e agressão aos diferentes”1. É nesse sentido que se apresenta a rivalidade entre as tribos virtuais, protegidas em suas bolhas e relacionandose apenas entre si. Elas têm o poder de aniquilar um indivíduo, o qual perde a consideração do outro em decorrência de uma opinião adversa publicada nas redes sociais. Além dos crimes de preconceito, xenofobia, misoginia, racismo, uma agravante se destaca: a veiculação nas redes sociais de notícias que não se comprometem com a verdade, configurando a pós-verdade, palavra que ganhou notabilidade a partir de seu registro no Dicionário Oxford. De acordo com esse glossário, a pós-verdade “denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”. Tal definição realça um aspecto fundamental do comportamento humano: a força das emoções. Elas dirigem o modo de agir dos indivíduos diante dos fatos. No tocante a tal poder que move indivíduos e magnetiza multidões, afirma Henri Wallon (1879-1962) - filósofo e psicólogo francês – “a coesão de reações, atitudes e sentimentos, que as emoções são capazes de realizar em um grupo, explica o papel que elas devem ter desempenhado nos primeiros tempos das sociedades humanas: ainda hoje são as emoções que criam um público, que animam uma multidão, por uma espécie de consentimento geral que escapa ao controle de cada um. Elas suscitam arrebatamentos coletivos capazes de escandalizar, por vezes, a razão individual."2 As “fake news”, por exemplo, influenciaram decisões políticas da atualidade, como sugerem algumas interpretações para a vitória de políticos em campanhas eleitorais. Essa liberdade de expressão, de comunicação, oferecida pela rede, deu ao homem a oportunidade de se reunir com pessoas distantes, reencontrar antigos amigos, de ter acesso ilimitado às notícias globais, em - 453 -


tempo real, e às múltiplas possibilidades de entretenimento. Ademais, uma série de serviços está disponível para os internautas como a videoconferência, a comunicação rápida realizada pelo e-mail, a compra de passagens online, o pagamento de contas, a chance de assistir a palestras; além disso, a oferta de produtos disponíveis para a compra é ampla e, com apenas um click, o indivíduo tem a satisfação atendida. Mas o que rege essa relação em rede são as ações de conectar-se e desconectar-se a ela. Essa dupla – conexão/ desconexão – interfere na constituição dos laços humanos, que estão se tornando muito frágeis. A qualquer obstáculo, o indivíduo pode excluir seu amigo que será substituído por outro, em pouco tempo. Após esse rápido exame do mundo digital, conclui-se que a internet tem um poder muito grande, tanto para a construção, quanto para a destruição, o que nos faz pensar que a lição do filósofo Heráclito - “o bem e o mal são uma coisa só”aplica-se a esse contexto. Igualmente, como já observou Pascal, no século XVII, o homem resume em si uma teia de contradições. Diante disto - do emaranhado de contradições presentes no atual momento histórico - destaca-se a necessidade e a importância de ampliar a compreensão humana, investir nas crianças e jovens, no sentido de oferecer-lhes uma educação integral que considere, ao lado da dimensão racional, da fria lógica intelectual, a importância da subjetividade humana, da cooperação e do cuidado com o outro e, dessa forma, contribuir para uma sociedade que respeite mais os espaços do outro, uma sociedade mais consciente e silenciosa. Para isso é preciso reduzir o barulho interno que nos insensibiliza. Outra dimensão do ruído psicológico e físico está no descompasso entre a revolução tecnológica e o bem-estar subjetivo. O encantamento com a ideia de progresso, que sustentou as revoluções industriais, a partir do século XVIII, trazia em seu bojo o desejo de proporcionar bem-estar para todos. A energia elétrica, as fábricas, os automóveis, os aviões, as ferrovias, o telefone, a televisão, as vacinas, os antibióticos, e tantas outras conquistas facilitaram a vida das pessoas, trouxeram o conforto para a dona de casa, para o empresário, a longevidade para os homens, a redução da morte infantil. Esses benefícios reduziram muitas dores humanas, mas não garantiram o bem-estar subjetivo, a felicidade das pessoas. Aliás, as revoluções industriais culminaram em uma sociedade de consumo marcada pela suposta leveza que acabou revelando um doloroso - 454 -


peso. Na perspectiva do filósofo francês, Gilles Lipovetsky, a sociedade, hoje, apresenta este paradoxo: “O automóvel, no início, era um instrumento ligeiro. Hoje, quando você anda de carro nas cidades, sofre com o barulho e precisa enfrentar os congestionamentos. Isso é pesado. Assim, você tem o peso das coisas que voltam. Desta vez, não como dizia Nietzsche, pelo peso da metafísica e dos deuses, mas o peso pela abundância e pela excrescência do consumismo.” 4 Outro símbolo de leveza são os smartphones, usados, cada vez mais, para atender às múltiplas finalidades mas que, também, fica pesado, escravizando-nos a uma conectividade permanente que nos estressa. Desse modo, a grande maioria das pessoas, conectada às redes de comunicação, segue com um peso cada vez maior, na ilusão de controlar mais o que o cerca ou na utopia de fugir do tédio. Outro aspecto que se destaca na vida atual é a velocidade dos acontecimentos. O inesperado nunca esteve tão presente em nossa vida e, despreparados, assustamo-nos produzindo e amplificando o barulho. Edgar Morin nos lembra que “quando o inesperado se manifesta, é preciso ser capaz de rever nossas teorias e ideias, em vez de deixar o fato novo entrar à força na teoria incapaz de recebê-lo”.5 É importante observar esse postulado que nos remete à necessidade, no atual momento, de investir na formação dos jovens, prepará-los para enfrentar a imprevisibilidade. Como aponta Nuccio Ordini, professor e filósofo italiano, em seu livro A utilidade do inútil, urge resgatar o mérito do conhecimento, em uma sociedade hiperconsumista como a atual, em que a inutilidade dos objetos descartáveis ganhou um valor de utilidade nunca visto antes. Diz ele: “O saber apresentase por si mesmo como um obstáculo ao delírio da onipotência do dinheiro e do utilitarismo. É bem verdade que tudo se pode comprar. De parlamentares a juízes, do poder ao sucesso, tudo tem seu preço. Mas não o conhecimento: o preço a ser pago para conhecer é de outra natureza.” 6 Talvez esteja aí o rumor interno mais significativo do homem contemporâneo: a incompetência para perceber as dimensões essenciais da vida e se perder na periferia do consumismo, na ilusão do poder material e status social. Além do estímulo à aquisição do saber, deve-se incentivar a sensibilidade nos jovens e crianças, oferecer a eles uma excelente educação formal, com atenção particular para todas as modalidades artísticas, para os esportes e, especialmente, brindá-los com educação para as emoções, para a subjetividade, que considera a importância da imaginação, da interioridade humana para compreender a vida. É chegado o momento de resgatar um - 455 -


aspecto que sempre foi esquecido na história da humanidade: o bem-estar subjetivo. Vivemos uma crise de bem-estar subjetivo. De acordo com as pesquisas da OMS (2015), há 322 milhões de depressivos no mundo, cuja doença é responsável pela incapacitação do indivíduo para enfrentar ações corriqueiras, como ir à rua, pagar contas, trabalhar, circular socialmente, relacionar-se bem com o outro. Tal enfermidade é uma das maiores causas de suicídio entre a população mundial. Por ano, mais de 800 mil pessoas tiram a própria vida e essa é considerada a segunda maior razão de morte dos jovens entre 15 e 29 anos. Lamentavelmente, dados atualizados estimam que, no mundo todo, meio milhão de pessoas morrem, a cada ano, vitimadas pela violência. No interior das famílias, atrás de portas fechadas, muitas crianças, mulheres e idosos sofrem maus-tratos, sendo que grande parte desse sofrimento não é catalogado pelas estatísticas. O uso do poder que submete as mulheres, também, explora sexualmente meninos e meninas que ficam psicologicamente mutilados pelo abuso. Nas ruas, seja encoberta pelas sombras da noite ou com o sol a pino, dissemina-se a delinquência juvenil. Alguns se reúnem em bandos e cometem pequenos delitos, mas outros estão ligados ao crime organizado; o embate entre o narcotráfico e a polícia também resulta em muitas mortes, medo e sofrimento. Em algumas cidades do mundo, armas engatilhadas e balas perdidas vitimam suspeitos e insuspeitos e promovem ruídos assustadores, físico e psicológico. Na linha da violência social, destacam-se os atentados terroristas que representam muita angústia para as populações de várias partes do mundo. Movido pelo fanatismo religioso ou radicalismos políticos e, principalmente, pelo analfabetismo emocional, o terrorismo expõe a intolerância do homem contra seus iguais, produzindo a barbárie por meio da morte, em massa, de inocentes. Esse rumor contínuo e intermitente toma o lugar do diálogo e da compreensão, rouba a serenidade de adultos e crianças. Outros ruídos estão no plano social e apresentam todo um capítulo de negativas: desemprego, fechamento de fronteiras, nacionalismos exacerbados, fortalecimento extremista e radical de direita e esquerda. A essa lista de negativas soma-se a incivilidade nos gestos, o desrespeito pelos direitos humanos. Ao analisar nosso tempo, Zygmunt Bauman – filósofo e sociólogo polonês – denominou as novas tendências da civilização como - 456 -


Retrotopia, título de sua obra póstuma. Conforme sua análise, a retrotopia configura uma atitude de desvalorização do presente e do futuro e idealização do passado. É o avesso da utopia, sonhada por Thomas Morus. Bauman diz: “o futuro (outrora a aposta segura para o investimento de esperanças) tem cada vez mais sabor de perigos indescritíveis (e recônditos!). Então, a esperança, enlutada, e desprovida de futuro, procura abrigo num passado outrora ridicularizado e condenado, morada de equívocos e superstições. Com as opções disponíveis entre ofertas de Tempo desacreditadas, cada qual carregando sua parte de horror, o fenômeno da “fadiga da imaginação”, a exaustão de opções, emerge.” 7 Em outras palavras, a ideia de imprevisibilidade dissemina o terror, acentua a desilusão entre os homens contemporâneos, e eles buscam soluções para os problemas atuais nas fórmulas usadas em um passado remoto, em vez de engendrar um projeto para o futuro. Há uma crise de otimismo e esperança. A memória de um tempo pretérito é movediça, difusa, carregada de subjetividades, mescla de lembranças e esquecimentos. Para a construção do amanhã é preciso resgatar a esperança; como já disse Heráclito (535 a.C. - 475 a.C) , filósofo pré-socrático, “sem a esperança, o homem não encontrará o inesperado”.8 Do mesmo modo, a formulação de M. Heidegger (1889-1976) nos projeta no futuro: “O começo não se encontra atrás de nós, mas se constrói diante de nós”. 9 O ruído do desespero, da desesperança avoluma-se em um grito social de medo, expresso fisicamente na cacofonia dos buzinaços, panelaços e festas sem limites que ignoram a necessidade de refúgio psicológico e a paz do outro. É uma agressividade destrutiva que se mistura ao grito dissonante de socorro. Também, ao analisar o mundo contemporâneo, Adorno, Theodor e Horkheimer expressam, na obra A dialética do esclarecimento: a sociedade “em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie”.10 Essa afirmação preocupante nos remete à possibilidade de um retrocesso antropológico associado ao progresso histórico. Jean-Jacques Rousseau, no século XVIII, já nos lembrava que pelo sabor das conquistas, o homem sufocou determinados valores como a bondade, a solidariedade, o altruísmo, o que dá lugar à barbárie. Todas essas realidades nos mostram a complexidade do ser humano e do desenvolvimento social e reafirmam que, ao lado dos ganhos, temos, também, as perdas.

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Ao averiguar as perdas fundamentais que ocorreram nos últimos tempos no campo da educação, Jiddu Krishnamurti (1895-1986) - filósofo e educador indiano – afirma: “a educação moderna redundou em completo malogro, por ter exagerado a importância da técnica. Encarecendo-a em demasia, destruímos o homem.” E adverte: “Desenvolvendo capacidades e eficiência, sem a compreensão da vida, sem uma percepção total dos movimentos da mente e do desejo, tornar-nos-emos cada vez mais cruéis, e isso significa fomentar guerras e pôr em perigo nossa segurança física.” 11 Verifica-se, com base nessas considerações, o quanto as revoluções científicas e tecnológicas beneficiaram a humanidade, mas as relações interpessoais ainda clamam por cuidados. Constata-se o incômodo do ruído que vem do sofrimento psicológico entre casais, entre pais e filhos no interior das famílias. Percebe-se, ao lado do desenvolvimento, mais desencanto com a vida, e não há som mais incômodo, estridente e doloroso do que o grito do suicida, que tem aumentado nas sociedades consideradas desenvolvidas. Outra abordagem socioemocional em torno do silêncio, remete-nos ao desequilíbrio entre o falar muito e o falar pouco, ou quase nada. Na perspectiva da educação socioemocional, já sabemos que expressar as emoções, dar voz aos sentimentos, dúvidas e pressões internas, é um caminho saudável para desenvolver consciência e regulação emocional. O silêncio emocional, presente em alguns grupos sociais - particularmente entre os homens - incentivado pela cultura machista na educação dos meninos, tem promovido muito sofrimento psicológico. As consequências desse silêncio se irradiam, dolorosamente, para as relações afetivas nos casais, para a qualidade de vida na família e na sociedade. “Menino não chora”, ensina o pai, não expressa suas dores psicológicas, aprende com os amigos no grupo social, não revela suas fragilidades, reproduz a própria mãe espelhada no poder do pai, enfim, o homem acaba sufocando suas emoções, ocultando-as sob o tapete. Tais valores equivocados estão na raiz da violência que se reproduz por gerações numa cultura que amordaça os sentimentos dos homens. Fica assim, principalmente entre os homens, um aparente silêncio que, na realidade, desvia-se do foco e explode em um grito surdo de violência contra a mulher, contra os filhos e, antes de tudo, contra si mesmo, em um perverso processo de autodestruição no plangente caminho das drogas. Dessa forma, a educação deve incentivar a comunicação

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dialógica, que amplia a compreensão de si mesmo e do outro, que melhora a convivência humana e reduz os sons confusos e trêmulos da alma. Inspirado na Mitologia Grega e considerando a complexidade da condição humana, o ser humano transita entre o grito espontâneo e desenfreado de Dioniso e o sussurro racional e controlado de Apolo. Ou seja, vivemos entre a exorbitância dionisíaca, a transgressão dos limites e a racionalidade das medidas apolíneas. Como seres de contradição, necessitamos do silêncio e do grito. O ruído dionisíaco nasce na pressão da conformidade apolínea que domina a cultura e a educação. O silêncio saudável e profundo, aquele da serenidade e do bem-estar subjetivo, virá com a aceitação consciente desses dois arquétipos fundamentais da condição humana. Momentos de ruídos e gritos ao lado de espaços de silêncio, de serenidade, de paz restauradora. Isso significa seguir o Caibalion 12 nos seus princípios de ritmo e de compensação.Sabemos que as emoções orientam nossos comportamentos e estamos tomando consciência da importância da educação emocional. As altas taxas de sofrimento psicológico, de depressão e ansiedade, estão mudando a pauta de prioridades da humanidade. Como sabemos, as transformações culturais ocorrem a partir da educação que, hoje, caminha para uma linha libertadora que acolhe a diversidade. Se olharmos ao redor do mundo, observaremos exemplos concretos dessa mudança. Há países que procuram resgatar as alegrias da infância, infância que é o pilar de toda a existência. Assim, já existem escolas onde não existe a pressa em ensinar letras e números aos pequenos. Nelas compreende-se a relevância de proporcionar à criança a oportunidade de brincar, de socializarse, de ser feliz, de silenciar-se para o autoconhecimento, usando como recursos pedagógicos muita música, jogos e várias atividades lúdicas. Outras escolas inovam suas estratégias educacionais com a troca da tradicional fragmentação dos conteúdos por temas multidisciplinares que, na perspectiva do paradigma da complexidade, desde cedo, promovem a necessária e fundamental transição do pensamento linear cartesiano, separador e disjuntor, para a compreensão de que tudo está interligado, dependente na relação entre as partes e do todo com as partes. Há escolas, ainda mais arrojadas, que alteram o espaço físico escolar. Em vez das costumeiras salas fechadas, com carteiras enfileiradas, os educandos se agrupam em espaços abertos, e as carteiras são substituídas por móveis mais confortáveis e arranjados de modo a sugerir mais aproximação, diálogo e cooperação entre eles. - 459 -


Em contraponto a esses modelos maravilhosos de educação, há outra realidade que prevalece no mundo, em que crianças e adolescentes vivem em situações de risco, desintegração familiar, abandono e negligência dos pais. A Educação Emocional e Social tem um papel importantíssimo, não só para as crianças acolhidas em escolas bem estruturadas e com propostas pedagógicas inovadoras, mas também e, principalmente, para a enorme quantidade de crianças e jovens maltratados pela família e pela sociedade. Mergulhados em circunstâncias tóxicas e ruidosas, muitos têm apenas a escola, que representa a única oportunidade de encaminhamento social e profissional. Há crianças, jovens e adultos que não conseguem se concentrar, nem nas aulas, nem no cotidiano da vida. Estão impregnados de emoções desconfortáveis como a raiva, o ciúme, o medo, a culpa, a ansiedade, a rejeição, enfim, todas essas emoções que precisam ser conscientizadas e reguladas para levar a comportamentos criativos e construtivos. Caso não haja essa orientação, as emoções desagradáveis e dolorosas poderão bloquear a aprendizagem, na escola e na vida, reforçando as altas taxas de analfabetismo emocional, de sofrimento físico e mental, de subdesenvolvimento e de violência na família e na sociedade. O analfabetismo emocional está na raiz das sociedades barulhentas. A constatação das dores psicológicas, das múltiplas formas de violência que intoxicam a vida dos indivíduos pede uma nova intervenção educativa. A consciência de que as emoções orientam todas as ações humanas, que por meio delas vamos à guerra ou construímos a paz, destacase o imperativo da Educação Emocional e Social. Ela poderá trazer o silêncio reparador e construtivo da paz e a harmonia aos indivíduos, a regeneração de valores fundamentais para uma convivência coesa e saudável entre as pessoas. Ela poderá aquietar e apaziguar nossas mentes aflitas e carentes de significados mais profundos do ato de viver. Os processos meditativos constituem o alicerce da educação emocional. Eles são essenciais na construção de seres humanos mais conscientes, com mais sensibilidade, mais serenos e, por isso, é a base de uma sociedade mais agradavelmente silenciosa. A pessoa que medita acolhe melhor o outro, observa mais, respeita mais o seu semelhante e expressa comportamento empaticamente silencioso. Por falta da quietude e plena atenção, há uma realidade de frustração geral pela falta de compreensão dos significados mais profundos e - 460 -


importantes da nossa existência. Não conhecemos o caminho do bem-estar subjetivo. Sem essa compreensão mais profunda, desviamo-nos de nossos objetivos, escondemo-nos e mergulhamos na mera erudição e na técnica. Desapontados, por vezes pessimistas e amargos, debatemo-nos na superfície dos fenômenos. As respostas fundamentais não estão somente nas discussões intelectuais, na mera erudição ou no tecnicismo dos especialistas. As nossas conversas, fonte de aprendizagem, não têm nos ajudado muito. Na conversação vigente, prevalece a superficialidade do automatismo “concordo-discordo” e o valor da introspecção silenciosa se torna uma habilidade menor, desprestigiada, de pouca importância na sociedade. Sentar-se em silêncio, fechar os olhos e observar a realidade do momento presente, do próprio corpo, das sensações, das emoções, da nossa dimensão mais básica da vida, a respiração, prática não acolhida regularmente na sociedade e, particularmente, na educação. Por isso tudo, precisamos destacar e valorizar os processos meditativos. Para a compreensão de si mesmo e do outro, devemos observar profundamente nossa própria mente. O desenvolvimento da ciência em todas as áreas do conhecimento, da Medicina voltada para o corpo à Astronomia, que observa com extrema curiosidade o espaço, só chegou onde está hoje, porque pesquisadores se debruçaram em profunda e disciplinada observação sobre os fenômenos envolvidos nessas realidades. Em relação à mente isso não vem acontecendo. Conhecemos pouco e temos muito pouco controle sobre nossa mente. Estamos diante do desafio de conhecer, por nós mesmos, a nossa realidade interna. Enxergá-la como ela é, sem os filtros das narrativas culturais e dos mitos, podemos reduzir muito nosso sofrimento cotidiano. O sofrimento não vem só de fora; ele é criado, em larga escala, pela nossa própria mente. A esses processos de introspecção chamamos de meditação. Eles já foram pesquisados e estudados pela lógica científica. A ciência acolhe a sua importância. Estamos ainda buscando compreender as fronteiras entre o cérebro e a mente, no entanto, já sabemos que eles apresentam complexidades distintas, e que a meditação é o caminho para compreender a mente. Saber observar a realidade das sensações no corpo e as reações mentais, por meio das emoções, é o alicerce para a construção do ser sensível e fundamento maior do desenvolvimento de competências socioemocionais. - 461 -


Na complexidade das sociedades contemporâneas, a meditação será tão importante quanto o oxigênio que respiramos. Ela será vital para reduzir erros e ilusões nas decisões políticas, profissionais e pessoais. Ela será a resposta para vivermos em uma sociedade mais atenta, a partir do silêncio edificante. O silêncio dos processos meditativos vai além do indispensável bemestar subjetivo. Há outra dimensão importantíssima, ao lado das maravilhas tecnológicas que nos encantam. Existe uma face oculta e perigosa que merece nossa atenção. Brevemente, os algoritmos e a inteligência artificial dominarão não só os processos de gestão dos negócios profissionais, mas também as próprias decisões de ordem pessoal. Se não investigarmos, por nós mesmos, a realidade dos fenômenos, particularmente os da mente, haverá o risco de, no futuro, perdermos o espaço de escolha, isto é, os algoritmos responderão por nós. E isso é muito grave. A introspecção, a quietude observadora, a plena atenção e o silêncio consciente e profundo podem nos salvar da automatização que avança como um rolo compressor. Ainda há tempo, mas não muito. A disciplina meditativa e o silêncio podem manter a consciência e a racionalidade abertas para decidirmos a direção dos nossos melhores interesses.

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MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 2. ed. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2000b. p. 30. ORDINE, Nuccio. A utilidade do inútil: um manifesto. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. Disponível em: <https://img.travessa.com.br/capitulo/ZAHAR/ UTILIDADE_DO_INUTIL_A-9788537815205.pdf>. Acesso em: 7 jul. 2019. BAUMAN, Zygmunt. Bauman: assim chegamos à Retrotopia. Outras Palavras. 5 maio 2017. Disponível em: <https://outraspalavras.net/posts/ bauman-assim-chegamos-aretrotopia>. Acesso em: 7 jul. 2019. MORIN, Edgar. Meus filósofos. Porto Alegre: Meridional, 2014. p. 32. MORIN, Edgar. Meus filósofos. Porto Alegre: Meridional, 2014. p. 91. ADORNO, Theodor; HORKHEIMER , Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p. 11. PENSADORES que nos inspiram. Inteligência Relacional. Disponível em: <https://www.inteligenciarelacional.com.br/quemsomos/pensadores>. Acesso em: 7 jul. 2018. Autores diversos. O Caibalion: Estudo da Filosofia Hermética do Antigo Egito e da Grécia. São Paulo: Editora Pensamento, 1978.

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LISTA DE COLABORADORES ALMEIDA, Rogério de. É professor associado da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP). Coordena o Lab_Arte (Laboratório Experimental de Arte-Educação & Cultura) e o GEIFEC (Grupo de Estudos sobre Itinerários de Formação em Educação e Cultura). É Editor Colaborador para a área de Educação da Revista Machado de Assis em Linha. Bacharel em Letras (1997), Doutor em Educação (2005) e LivreDocente em Cultura e Educação, todos os títulos pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutoramento na Universidade do Minho (2016). Trabalha com temas ligados a Cinema, Literatura, Filosofia Trágica e Imaginário. Site: www.rogerioa.com. Email: rogeriodealmeida@gmail.com: Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação, Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação, Av. da Universidade, 308, CEP 05508-040, São Paulo - SP - Brasil. Telefone: 0055. (11)3091-8300. ARAÚJO, Alberto Filipe obteve o seu Doutoramento em Educação, na área de especialização em Filosofia da Educação, no ano de 1994. É Professor Catedrático do Departamento de Teoria da Educação e Educação Artística e Física do Instituto de Educação da Universidade do Minho (Braga-Portugal). É membro integrado do Centro de Investigação em Educação (CIEd) do Instituto de Educação da Universidade do Minho. Este trabalho é financiado pelo CIEd – Centro de Investigação em Educação, projeto UID/CED/01661/2019, Instituto de Educação, Universidade do Minho, através de fundos nacionais da FCT/MCTES-PT. Os seus domínios privilegiados de investigação são os seguintes: Filosofia do Imaginário Educacional, Filosofia da Educação e História das Ideias Pedagógicas. E-mail: afaraujo@ie.uminho.pt: Universidade do Minho, Instituto de Educação, Departamento de Teoria da Educação e Educação Artística e

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Física (DTEEAF), Campus de Gualtar, 4710-057 Braga – Portugal. Telefone: 00351.253604260, Fax: 00351.253604250.

ARAÚJO, João Roberto. Mestre em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - USP. Professor visitante no Centro de Mudanças Educacionais da Universidade da Califórnia, Santa Bárbara – EUA em 1998. Estudioso da cultura grega antiga e ex-professor de mitologia na Faculdade de Psicologia da Universidade de Ribeirão Preto/SP. Orientador de programas de desenvolvimento de cultura de paz e não violência em vários municípios brasileiros. Autor do livro "Educação Emocional e Social - um diálogo sobre arte, violência e paz". Autor dos livros da “Metodologia Liga Pela Paz” de Educação Socioemocional para os alunos de todos os segmentos da educação brasileira. Fundador e organizador do “Programa Cultural Prometheus”. Empreendedor de eventos socioeducativos e culturais, destacando-se: Seminário Internacional “Reinventando o Governo” com Ted Glaeber em 1994; Música ritual e dança sagrada do Tibete em 1995; Encontro cultural na Grécia em Atenas, Micenas, Epidauro, Ieráklion e Delfos, em 1995. Conferência Nacional “Concessões e Parcerias” em 1995; Industrialização do Interior Paulista em 1996; “A juventude... agora e para o futuro” - Intercâmbio Brasil/Canadá em 1996; Psicoeducação - A experiência do Canadá em 1997; Seminário internacional “O fim dos empregos” com Jeremy Rifkin em 1997; Organização da visita e seminários de sua Santidade, o Dalai Lama, ao Brasil em 1999. Palestrante no Brasil e no exterior, destacando-se: o Genebra/Suíça – com o tema “Diálogo e Cooperação”, no “Encontro Internacional de Educação Para Paz — O Futuro de Nossas Crianças”, realizado na Universidade de Genebra, em parceria com a UNESCO e GLOBALNET, em setembro de 2000. Bangkok/Tailândia com o tema “Diálogo e Cooperação”, no Encontro Asiático de Cultura de Paz, realizado em parceria com a UNESCO e GLOBALNET, em fevereiro de 2003. Chennai/Índia, com o tema “Os Desafios para uma Cultura de Paz”, no Congresso Internacional “A Família Face a Globalização”, realizado pela Fundação Asiática para Pesquisa e Serviço sobre a Família e Cultura, em novembro de 2003. Washington/EUA, com o tema “Programa Cidades pela Paz”, Brasil no 12º Encontro Internacional de Negócios, com o tema “Os Negócios e o Compromisso de Governança”, realizado pelo Instituto Banco - 465 -


Mundial, em outubro de 2007. O Brasília/Brasil, MEC – CONAE 2010 com o tema “Estratégias de Superação à Violência no Ambiente Educacional”, em março de 2010. Brasília/Brasil, Câmara dos Deputados / Comissão de Educação e Cultura, com o tema “Violência nas Escolas Públicas”, abril de 2009. Brasília/Brasil, Câmara dos Deputados / Comissão Especial para Prevenção de Drogas, com o tema “Educação Para as Emoções: Prevenção Primária ao Uso de Drogas”, abril 2011. Brasília/Brasil 23ª videoconferência MEC / Programa Mais Educação: “Ensinar a paz – uma proposta para um currículo de educação integral. Atualmente residindo entre Brasil e França, sensibiliza escolas francesas para o desenvolvimento regular e sistemático dos conteúdos de Educação Socioemocional (SEL – Social Emotional Learning) e orienta programa em andamento em instituições escolares da Bretanha, França. Fundador da organização “50-50 Social Emotional Learning Solutions” (www.sel.com) com sede em Haia, na Holanda, e em Paris, na França, onde ocupa a posição de “Creator of Opportunities”. Em 2018, com encontros e palestras sensibilizou lideranças da Colômbia, Chile, Bolívia e Peru para implantação de programas de desenvolvimento socioemocional. Em agosto de 2019, realizou palestra no Congresso Internacional de Educação Socioemocional organizado pela Pontifícia Universidade Católica do Peru, em Lima. ARAÚJO, Joaquim Machado obteve o seu Doutoramento em Educação, na área de especialização em Filosofia da Educação, no ano de 2002. É professor auxiliar convidado da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa (Porto-Portugal). Os seus domínios privilegiados de investigação são políticas educativas, administração e organização escolar, formação de professores, utopias e imaginário educacional. E-mail: jmaraujo@porto.ucp.pt: Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Educação e Psicologia, , Campus Foz, Rua Diogo Botelho 1327, 4169-005 Porto – Portugal. Telefone: 226 196 200 AZEVEDO, Fernando é Professor Associado com Agregação do Instituto de Educação da Universidade do Minho, onde é o responsável pela regência de unidades curriculares de pós-graduação nas áreas da Literatura Infantil e Juvenil e Formação de Leitores. É Doutor em Ciências da Literatura e membro do Centro de Investigação em Estudos da Criança (CIEC), - 466 -


integrando igualmente o Observatório de Literatura Infanto-Juvenil (OBLIJ) e a Rede Internacional de Universidades Leitoras (RIUL). Pertence à Comissão de Especialistas do Plano Nacional de Leitura. Possui obras publicadas nos domínios da hermenêutica textual, literatura infantil e formação de leitores. Email: fraga@ie.uminho.pt: Universidade do Minho, Instituto de Educação, Departamento de Estudos Integrados de Literacia Didática e Supervisão (DEILDS), Campus de Gualtar, 4710-057 Braga, Portugal. Telefone: 0035.1253604260, Fax: (00351).253604250. BOECHAT, Walter é médico e analista junguiano. Fez sua formação no Instituto Carl Gustav Jung de Zurique, Suíça, tendo obtido seu diploma em julho de 1979. É membro fundador e ex-presidente da Associação Junguiana do Brasil (AJB). Ex-Membro do Executive Committee (Diretoria) da International Association for Analytical Psychology (IAAP) (2007-2013). Tem Doutorado em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social (IMS) da UERJ. Walter Boechat fez parte do projeto da edição brasileira de O Livro Vermelho de C. G. Jung, tendo sido revisor da tradução para o português. É ainda coordenador técnico da coleção “Reflexões Junguianas”, coleção de livros por autores junguianos pela Editora Vozes, Brasil. Tem publicado diversos trabalhos no Brasil e no exterior. É autor do livro: Mitopoese da Psique: Mito e Individuação, Editora Vozes, 2008, 2ª Ed. e O Livro Vermelho de C. G. Jung: Jornada para Profundidades Desconhecidas. Ed. Vozes, 2014, entre outras obras. Walter Boechat exerce no seu consultório particular no Rio de Janeiro (Brasil), onde atualmente reside. Email: walter.boechat@gmail.com. BRAVO, Jorge dos Reis. Magistrado do Ministério Público (Portugal). É licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Completou a componente curricular do Mestrado em Relações Internacionais do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa. Pós-graduado em Direito Penal Económico e Europeu pelo Instituto de Direito Penal Económico e Europeu da FDUC. Doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Os seus trabalhos têm versado temas de Direito Penal e Processual Penal, tendo publicado estudos, artigos e livros em coautoria e autoria singular, bom como capítulos de livros, nas temáticas da - 467 -


Responsabilidade Penal de Entes Coletivos, Fraude e Corrupção, Confisco e Prova Penal. Email: jorgebravo@netcabo.pt. CARMO SILVA, Carlos Henrique do. Foi Professor Associado da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa Lisboa, até 2012, encontrando-se já aposentado. Dedicou-se a áreas fundamentais ou clássicas da Filosofia (Ontologia, Gnosiologia do Simbólico e Imaginário, Filos. da Linguagem…, sobretudo a partir da Filos. Antiga), interessando-se em especial pela Filosofia da Consciência, da Mística e da Religião (Filosofia Oriental). Atualmente como pensador e investigador independente prossegue, mais retirado e de forma essencial, a meditação em algumas dessas temáticas. Email: carloshcsilva@gmail.com. CAVALCANTI, Carlos André é Doutor em História pela UFPE com a tese: O Imaginário da Inquisição: Desmitologização de Valores no Tribunal do Santo Ofício, no Direito Inquisitorial e nas Narrativas do Medo de Bruxa (Portugal e Brasil, 1536-1821). É líder e editor do Grupo Videlicet Religiões, de Estudos do Imaginário nas Religiões, Intolerância e Diversidade Religiosas (CNPq). É autor, dentre outros textos, de O que é o imaginário? Olhar biopsicossocial da obra transdisciplinar de Gilbert Durand (Editora Universitária da UFPB, João Pessoa: 2016) ao lado de Ana Paula Cavalcanti e de No Imaginário da Intolerância: da Pedagogia do Medo à Pedagogia do Desprezo (Fonte Editorial, São Paulo: 2016, 2ª edição). Cursa Pós-Doutorado em Ciências da Religião na PUC-GO. É Professor Doutor da UFPB desde 1991, onde atua no ensino e na pesquisa nos níveis de Graduação e Pós-Graduação nas áreas de Ciências e História das Religiões. É um dos fundadores da Área de Ciências das Religiões na UFPB (PPGCR e CGCR). Atua também na Pós-Graduação em História da UFPB. Leciona e publica em Ciências e História das Religiões, Teoria do Imaginário e História Moderna. E-mail: carlosandrecavalcanti@gmail.com, Universidade Federal da Paraíba, Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões, Cidade Universitária, s/n - Castelo Branco, João Pessoa - PB, 58051-900 - Brasil. Telefone: 0055. (83) 3216-7200.

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CARVALHO, Henrique Miguel. Nasceu em Lisboa, em 1970. Licenciouse em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa (1994). É Mestre (1999) e Doutor (2006) em Estudos Literários/Teoria da Literatura pela Universidade de Lisboa. É, desde 2009, membro do Centro de Estudos Clássicos da Universidade de Lisboa, onde conduziu investigação pósdoutoral. Foi Professor Convidado no Instituto Politécnico do Porto (2016/2017). Tem publicado diversos artigos sobre Filosofia e sobre o estudo da Literatura, com trabalho feito, também, na área editorial. Email: henrique_mm_carvalho@yahoo.com. GARCÍA del DUJO, Ángel. Doutor em Filosofía e Ciências da Educação. Catedrático da Universidade no Departamento de Teoria e História da Educação da Universidade de Salamanca. As suas linhas de investigação principais são as seguintes: valores e limites da educação, novas e velhas epistemologias, processos primários de formação, neurociência social da educação e processos de formação em espaços virtuais. Diretor do Grupo de Investigação Processos, espaços e práticas educativas e de Teoria da Educação. Diretor da Revista Interuniversitaria. Desempenhou distintos cargos na Universidade de Salamanca, sendo atualmente Decano [Presidente] da Faculdade de Educação. Email: agd@usal.es: Universidad de Salamanca, Facultad de la Educación, Paseo de Canalejas, 169, 37008 Salamanca, Espanha. GUIMARÃES, Armando Rui C. de Mesquita. Doutorado Em Educação (2000), na área de especialização de Filosofia da Educação, pela Universidade do Minho. Foi Professor Auxiliar no Instituto de Educação da Universidade do Minho encontrando-se aposentado. As suas áreas de investigação situam-se na Filosofia da Educação, na Ética e na Filosofia da Religião. Os últimos trabalhos têm sido realizados no entrecruzamento da Educação, Filosofia e Literatura, nomeadamente sobre Frankenstein (Mary Shelley) e Hard Times (C. Dickens), atualmente sobre Drácula (Bram Stocker) e proximamente sobre Fausto (de Marlowe). Email: arcmguimaraes@hotmail.com. JUNIOR, Fernando Altemeyer. Possui graduação em Filosofia - Faculdades Associadas do Ipiranga (1979), graduação em Teologia - Fac. de Teologia N. Sra. da Assunção (1983), mestrado em Teologia e Ciências da Religião - 469 -


Universidade Católica de Louvain-La-Neuve na Bélgica (1993) e doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006). Atualmente é assistente doutor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pertence ao Departamento de Ciência da Religião (Faculdade de Ciências Sociais). Tem experiência na área da Teologia e Ciências da Religião, com ênfase em Dogmática e Sistemática; Introdução ao Pensamento Teológico, Teologia fundamental, Ecumenismo; Diálogo interreligioso, Educação universitária, Compaixão e Bioética. Exerceu o cargo de Ouvidor Público da PUC-SP entre julho de 2005 a 26/07/2009. Escreve em revistas e periódicos sobre Teologia e Religião. Leciona nas turmas de graduação da PUC-SP. Desde 01 de agosto de 2017 exerce o cargo de Chefe do departamento de Ciência da Religião, na Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP para o biênio acadêmico 2017-2019. Email: fajr@pucsp.br LE BRETON, David é Professor de Sociologia e Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Strasbourg. As suas áreas de interesse são as seguintes: antropologia e sociologia do corpo, o interaccionismo, o silêncio, a adolescência e a sua cultura, entre outras. Email: david.le.breton@unistra.fr: Université de Strasbourg, Faculté des Sciences Sociales, Le Patio – Bâtiment V, 22 rue René Descartes, 67084 Strasbourg Cedex, France. MENEZES, Anderson de Alencar. Licenciado em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco, Bacharel em Teologia pelo Centro Unisal - Campus Pio XI (São Paulo), Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco e Doutor em Ciências da Educação pela Universidade do Porto/Portugal. Atualmente é Professor Adjunto da Universidade Federal de Alagoas, Membro do Conselho Editorial e Consultor da Revista REDUC (Revista Eletrônica de Educação de Alagoas). Professor e Pesquisador do Mestrado e Doutorado em Educação do PPGE/CEDU/UFAL; Membro do Conselho Editorial da Revista Eletrônica Cognitio da PUC São Paulo; Tem interesse pelas seguintes Linhas de Pesquisa: 1) Área da Filosofia: epistemologia, hermenêutica e teoria crítica. 2) Área da Educação: fundamentos filosóficos da educação; fundamentos socioantropológicos da educação; teoria crítica e educação; hermenêutica e educação, profissão docente.

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Email: anderufal@gmail.com: Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas. Pesquisador e Professor do Mestrado e Doutorado em Educação da referida Universidade. Campus A. C. Simões. Av. Lourival Melo Mota, S/N, Tabuleiro do Martins. MONTANI, Pietro Montani, Filosofo, Professore onorario di Estetica alla “Sapienza” Università di Roma. Atualmente ocupa-se da influência da nova tecnologia sobre a sensibilidade e seus processos cognivos e imaginativos. Dos seus últimos livros, podem-se citar os seguintes: L’estetica contemporanea (Carocci 2004); Bioestetica. Senso comune, tecnica e arte nell’età delle globalizzazione (Carocci 2007; trad francese Vrin, Paris 2013); Arte e verità dall’antichità alla filosofia contemporanea (Laterza 2008). Curatore scientifico delle Opere scelte di S. M. Ejzenštejn (Marsilio, 8 volumi) e di D. Vertov (L’occhio della rivoluzione, Mimesis 2011), dedicou ao cinema dois estudos: L’immaginazione narrativa (Guerini 2000) e L’immaginazione intermediale (Laterza 2010). O seu último livro intitula-se Tecnologie della sensibilità, Cortina 2014. Email: pietro.montani@uniroma1.it: Departamento de Filosofia, “Sapienza” Università di Roma, rua Carlo Fea, 2 – 00161 Roma (Itália). RIBEIRO, José Augusto Lopes Professor de Filosofia na Escola Secundária Sá de Miranda. É licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia de Braga da Universidade Católica Portuguesa (Braga – Portugal) e é Mestre em Ciências da Educação pelo Instituto de Educação da Universidade do Minho (Braga – Portugal). Estudioso da Pós-Modernidade, particularmente nas suas implicações com a educação e com as várias figuras do imaginário em geral e educacional. Os seus últimos trabalhos, de natureza interdisciplinar, debruçam-se sobre a Literatura, a Filosofia e a Educação. Email: jauribeiro@gmail.com. RODRIGUES, Francisco Cornelio Freire. Possui mestrado em Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Santo Tomás de Aquino - Angelicum (Roma, 2014); Bacharelado em Teologia pelo Ateneo Pontificio Regina Apostolorum (Roma, 2011),Licenciatura plena em Filosofia pelo Instituto Salesiano de Filosofia (Recife, 2006).É professor do curso de Teologia da Faculdade Diocesana de Mossoró - FDM, Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia Bíblica, atuando principalmente nos - 471 -


seguintes temas: Profetismo, Amós, Evangelhos Sinóticos, Cristianismo e Judaísmo, Sagrada Escritura, lectio divina e Paulo. É diretor geral e membro do conselho científico da revista acadêmica Logos (FDM) Email: fcocornelio.fr@hotmail.com: Angelicum - Pontificia Università San Tommaso d'Aquino (Pontifical St. Thomas Aquinas University) Largo Angelicum 1, 00184 Roma. VIEIRA, Maria Helena. É Professora Auxiliar da Área de Educação Musical no Departamento de Teoria da Educação, Educação Artística e Física do Instituto de Educação da Universidade do Minho. Fez a sua formação em Portugal e nos EUA, em Piano Performance, Educação Musical e Políticas do Ensino da Música. É Diretora do Mestrado em Ensino de Música, e membro do Conselho Científico e da Comissão Diretiva do Doutoramento em Estudos da Criança como Responsável pelo Itinerário de Estudos Artísticos. Pertence ao Centro de Investigação em Estudos da Criança (CIEC) e os seus interesses de pesquisa aliam a área da performance à da pedagogia, currículo e políticas educativas, tendo orientado já dezenas de alunos, nacionais e internacionais, de mestrado e doutoramento. Gosta de poesia e de silêncio. Email: m.helenavieira@ie.uminho.pt: Universidade do Minho, Instituto de Educação, Departamento de Teoria da Educação, Educação Artística e Física (DTEEAF), Campus de Gualtar, 4710-057 Braga, Portugal.

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