Revista camponesa dezembro de 2010

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C A MPONESA Camponesa - Dezembro de 2010

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C - AAC Re vi s N R ta da A mpo d o a C s so ciaçã o d o d s e e Apo io à s Co muni dad

/RN

Ano 2 - Número 03 - Dezem bro de 2 010

Min. Guilherme Cassel

O caminho para as famílias

Jean Raboud O caminho para as famílias rurais

Terezinha Maria Relação solidária é o que garante sustentabilidade

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ISSN 2178-8561

Esta publicação foi realizada com apoio da Fundação Konrad Adenauer Fortaleza. O seu conteúdo não expressa necessariamente a opinião da Fundação Konrad Adenauer.

Conselho editorial: Antonia Geane Costa Bezerra Bethânia Lima Silva Emerson Inácio Cenzi Ivi Aliana Carlos Dantas Joaquim Apolinar Nóbrega Diniz

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Editorial

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Textos: Bethânia Lima Silva Ivi Aliana Carlos Dantas Fotografia: Rodrigo Sena Bethânia Lima Silva Revisão: Bethânia Lima Silva Ivi Aliana Carlos Dantas Projeto gráfico e Diagramação: Robson Nunes Impressão: Offset Gráfica Tiragem: 3000 exemplares Associação de Apoio às Comunidades do Campo do RN - AACC/RN Rua Doutor Múcio Galvão, 449, Lagoa Seca Natal - RN - Cep: 59022-530 Telefone: 84.3211.6131/6415 E-mail: aaccrn@aaccrn.org.br

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“Gostaria de parabenizar a AACC/RN pela edição da Revista Camponesa. É uma revista importante para os movimentos sociais e para sociedade, uma vez que não há o debate de temas como a soberania alimentar, nos nossos veículos de comunicação. Fiquei feliz em saber que há um veículo que pauta esses assuntos, pois se não visibilizados o debate se perde.” Marcelle Honorato – Comunicadora da Diaconia/RN

“Agradeço o envio do exemplar n. 02 da Revista Camponesa, com entrevistas que demonstram a riqueza e pluralidade de opiniões, no que concerne ao pleno exercício da cidadania, com enfoque especial para as eleições 2010 e o futuro do Brasil.” César José de Oliveira – Diretor de Desenvolvimento de Projetos de Assentamento/Incra-DF

“Agradecemos o envio da edição da Revista Camponesa contendo a entrevista com a professora Tania Bacelar, presidente do Conselho deliberativo do Centro Celso Furtado, e outras entrevistas de grande interesse.” Pedro de Souza - Superintendente Executivo do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento Fotos capa: Rodrigo Sena


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NESTA EDIÇÃO Entrevistas 04

Emma Siliprandi

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Jean Raboud

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Anja Czymmeck

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Terezinha Maria de Oliveira

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Fernando Bastos

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Francisco Edilson

É necessária uma mudança de paradigmas

O caminho para as famílias rurais

Formação política é a promoção da democracia

Relação solidária é o que garante sustentabilidade

O grande desafio das ações para o rural é a democratização

Nossa missão é fortalecer a agricultura

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Viviane Siqueira Quando a política é boa

Reportagem 26

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Seções 02 30 31

Fale Conosco Para Aprofundar Notas 3


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Entrevista: Emma Siliprandi

É necessária uma mudança de paradigmas

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Todos tendo acesso aos mesmos direitos, inclusive, ao direito de viver em um planeta saudável

m entrevista à Revista Camponesa, a engenheira agrônoma Emma Siliprandi fala a respeito das contribuições e questões pautadas pelas mulheres para o desenvolvimento sustentável, os olhares diferentes para a sustentabilidade, a importância do fortalecimento da agricultura familiar para uma melhor qualidade alimentar na vida das pessoas e as perspectivas na política agrícola brasileira. Emma Siliprandi é formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Sociologia Rural pela Universidade Federal da Paraíba (Campina Grande) e Doutora em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília. Emma sempre se envolveu com a causa das mulheres rurais, desde quando assessorava o movimento sindical na Paraíba, na década de 1980. Em 1996, quando trabalhava na ONG Capina, no Rio de Janeiro, em conjunto com a Sempreviva Organização Feminista (SOF) e vários movimentos sociais rurais, participou da organização da uma primeira Oficina Nacional sobre Gênero e Agricultura Familiar, que marcou as discussões sobre a invisibilidade do trabalho das mulheres na agricultura no país. Atualmente é pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação (NEPA) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), e continua assessorando movimentos de mulheres rurais e participa de redes feministas no país e no exterior. Ela é membro da diretoria da Sociedad Científica Latinoamericana de Agroecología (SOCLA).

Revista Camponesa: O seu artigo “Mulheres e Ambiente em Eventos Internacionais” apresenta que as mulheres passam a ocupar o cenário no debate mundial sobre ambiente, a partir da Rio-92. Nesse contexto, quais as contribuições e questões pautadas pelas mulheres para o desenvolvimento sustentável a partir deste momento? Emma Siliprandi: Até então as políticas internacionais viam as mulheres, no máximo, como um setor que precisava ser incluído no desenvolvimento, sem se questionar se o tipo de desenvolvimento que estava sendo proposto (baseado na industrialização, no crescimento econômico a qualquer custo, e na urbanização acelerada) era do interesse do conjunto das mulheres. Na Rio-92 graças à atuação dos movimentos feministas, pode se fazer esse duplo questionamento, sobre a participação das mulheres nas grandes decisões mundiais (que até então era completamente marginal) e

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também sobre o tipo de desenvolvimento que se queria construir. Muitas vezes há um estranhamento quando as mulheres vêm a público manifestar-se sobre as questões gerais que envolvem o destino da humanidade; é como se elas não tivessem esse direito. Os movimentos de mulheres, naquele período, já vinham questionando o modelo civilizatório baseado nas guerras e nas políticas de destruição – expresso no consumismo desenfreado, no desmatamento, na degradação ambiental, na utilização irresponsável de energia nuclear e dos combustíveis fósseis. Todas essas características estavam deixando

“Às vezes se dá importância demasiada às nossas diferenças e não às nossas semelhanças quanto ao nosso destino no Planeta Terra”

as mulheres mais pobres, e mais marginalizadas do suposto “progresso”. As mulheres camponesas, por exemplo, estavam perdendo as áreas tradicionalmente utilizadas para o plantio de alimentos em função das grandes monoculturas, e com isso perdiam também o acesso à água, aos bosques, etc. As condições de vida das mulheres urbanas também estavam piorando, por conta da poluição atmosférica, da contaminação dos alimentos, dos agravos à saúde. Então, que progresso era esse? As reivindicações das mulheres não eram apenas de serem beneficiárias daquele modelo (uma vez que, realmente, a maioria delas estava excluída dos seus benefícios); mas passaram a exigir que propostas alternativas fossem consideradas. É importante lembrar que os movimentos de mulheres não são homogêneos; há mulheres de diferentes classes, etnias, religiões, posições políticas... brancas, negras, indígenas, urbanas ou rurais. Mas o


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“É necessária uma mudança radical em nossos paradigmas produtivos, para que se pense na humanidade como parte da natureza, e não como ‘dona’ dela” que as unificava, naquele momento, era a convicção de que havia uma opressão de gênero que perpassava a todas indistintamente, expressa na sua exclusão das grandes discussões, e a convicção de que as mulheres eram capazes de pensar um outro modelo de desenvolvimento com base nas suas experiências concretas de cuidar da vida humana. Não porque o ser “mulher” seja intrinsecamente distinto do ser “homem” – às vezes se dá importância demasiada às nossas diferenças e não às nossas semelhanças quanto ao nosso destino no Planeta Terra. As mulheres questionavam, ao mesmo tempo, o modelo capitalista e à sua expressão patriarcal. A Rio-92 foi também um momento importante para a expressão organizada das mulheres agricultoras, indígenas, quilombolas, extrativistas, que estavam à margem das organizações sindicais tradicionais no meio rural. Revista Camponesa: Desenvolvimento sustentável tem sido uma “expressão” usada por diversos setores: indústria, comércio, e também pela agricultura, seja o modelo do agronegócio, seja a agricultura familiar camponesa. Existem olhares diferentes para essa expressão, o quanto que é prática, o quanto que é “marketing ambiental”? Emma Siliprandi: Há pelo menos duas vertentes claras no campo do ambientalismo, que interpretam a questão da sustentabilidade de diferentes maneiras. Uma parte acredita que é possível “esverdear” o capitalismo, melhorando os processos produtivos de forma a criar menos lixo, colocando filtros nas indústrias, criando as commodities “verdes” (como o mercado de carbono), apostando em mercadorias diferenciadas (como os produtos ecológicos, não poluentes, etc.). Mas tudo isso mantendo a estrutura de produção e de consumo que existe hoje, ou seja, quem quiser produtos limpos terá que pagar por eles. O mercado

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passa a ser, mais uma vez, o grande árbitro de quem vai viver bem (em um ambiente protegido, comendo alimentos limpos, andando em carros modernos que deixam menos resíduos, etc.) e de quem vai ficar com a pior parte da história, como o lixo, a degradação, as doenças. Essa corrente é chamada de “eco-tecnocrática” ou “eco-capitalista”. Outros setores do ambientalismo, apesar de concordarem com a necessidade de novos processos produtivos e de redução das contaminações, acham que isso é insuficiente. Que é necessária uma mudança radical em nossos paradigmas produtivos, para que se pense na humanidade como parte da natureza, e não como “dona” dela. Que o ambiente não é formado apenas por “recursos naturais” à disposição da humanidade, que devem ser preservados somente para serem melhor explorados. Para essa vertente alternativa, chamada “ecossocial”, o ponto de partida é a visão de “justiça ambiental” em que todos tenham os mesmos direitos a um planeta saudável, ao ar, à água, à terra, aos alimentos, às paisagens, todos tenham condições de se realizar pessoal e socialmente, sem que, para isso, se tenha que destruir o que nos rodeia. Na agricultura, os modos de produzir do campesinato e da grande produção são exemplarmente opostos nesse sentido. Para uns, se trata de preservar o meio que lhes fornece a subsistência no dia a dia. Para os demais, o ambiente é apenas o substrato físico onde desenvolvem suas atividades econômicas. Não há compromisso com a população local, ou com o território onde se construiu uma cultura, uma ligação com a terra. Tudo é negócio, mesmo que eventualmente “sustentável”. É bem diferente o desenvolvimento produzido por um modelo e pelo outro, onde serão investidos os recursos, quais os critérios

“A sustentabilidade não pode ser vista apenas no ponto de vista ‘tecnológico’ : deve incorporar aspectos éticos, sociais, culturais, políticos e econômicos, e ter em conta também a equidade de gênero”

para se julgar o sucesso de determinada atividade, quem se beneficia ou se prejudica com as atividades econômicas. A sustentabilidade não pode ser vista apenas do ponto de vista “tecnológico”: deve incorporar aspectos éticos, sociais, culturais, políticos e econômicos, e ter em conta também a equidade de gênero. Revista Camponesa: Quando se fala em meio ambiente, nota-se ênfase e priorização em mudança da matriz energética, ficando como secundária a necessidade de mudanças de consumo, em especial a alimentar. O fortalecimento da agricultura familiar contribui para uma melhor qualidade alimentar na vida das pessoas e para o meio ambiente? Emma Siliprandi: Sim, fortalecer a agricultura familiar é fundamental para que se obtenham alimentos de qualidade. A agricultura familiar apresenta padrões de ocupação dos solos muito mais vantajosos do ponto de vista ambiental, é capaz de conservar a biodiversidade, os mananciais hídricos, de produzir de forma mais ecológica, democratizar a posse das riquezas, gerar empregos, enfim, apresenta uma série de vantagens. Mas do ponto de vista apontado pela pergunta (modelo de consumo) é preciso que se avance muito mais em outros aspectos, para além da produção. O padrão de alimentação nas grandes cidades, por exemplo, (e hoje o Brasil é um país essencialmente urbano), não é uma livre escolha das pessoas, é dado pelas condições estruturais de acesso aos alimentos. Redes de distribuição, acesso à renda, possibilidade de comprar produtos com trabalho incorporado (por exemplo, legumes e verduras pré-lavados e cortados) são exemplos de questões fundamentais que definem as condições necessárias para que as pessoas se alimentem bem. Além disso, a alimentação continua sendo uma tarefa feminina – uma das marcas da opressão de gênero que conhecemos tão bem – e enquanto não houver uma melhor divisão do trabalho doméstico e apoio público às tarefas ligadas à alimentação, as mulheres continuarão sobrecarregadas, e procurarão formas de aliviar essa carga. Sejam ricas, de classe média ou pobres, hoje as mulheres procuram, de todas as formas,

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“Não existiria a agricultura familiar se não houvesse o trabalho das mulheres, e o seu envolvimento com a produção de alimentos é essencial para a continuidade da produção familiar no meio rural” diminuir o seu trabalho com a preparação da alimentação da família. Conforme as suas condições de classe, serão mais ou menos bem sucedidas nessas tarefas. As pobres ficarão, evidentemente, com a pior parte, tendo que consumir alimentos de má qualidade, pobres em nutrientes, com cardápios monótonos, muitas vezes contaminados. Então a grande questão é como estimular que as pessoas se alimentem de forma mais saudável (com verduras e legumes frescos e sem contaminações, por exemplo, e com alimentos mais balanceados) se, por um lado, muitas pessoas não têm recursos para comprá-los, e, por outro, não se pode mais contar com a exploração infinita da mão de obra das donas de casa para prepará-los? É preciso investir em equipamentos públicos que socializem parte das tarefas relacionadas com a alimentação, que hoje estão sobre os ombros das mulheres, para que todos possam se alimentar melhor e sem prejuízo de ninguém. Além de questionar a divisão sexual do trabalho, o que vem sendo feito pelas feministas há décadas. Revista Camponesa: Qual a força da agricultura familiar no Brasil para a produção de alimentos, e qual a participação das mulheres nesse cenário? Emma Siliprandi: Os últimos dados do Censo Agropecuário divulgados pelo IBGE (dados de 2006) mostram um crescimento fenomenal da agricultura familiar na produção de alimentos no Brasil, fruto de muitas políticas públicas de apoio a esse segmento produtivo, executadas nos últimos 10 anos. A agricultura familiar brasileira é constituída por 4,3 milhões de estabelecimentos rurais (84,4% do total nacional), que ocupam 24,3% da área, são responsáveis por 38% do valor bruto da produção agropecuária, por

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74,4% do total das ocupações rurais, e respondem pela maior parte da produção dos principais alimentos consumidos no país (feijão, milho, hortaliças, frutas, frangos, ovos, leite e muitos outros produtos). As mulheres participam de todas as etapas dessa produção, embora em muitos lugares se considere que apenas “ajudem” os maridos. Elas trabalham no preparo do solo, das mudas, no plantio, nos tratos culturais, na colheita, na preparação dos produtos para a comercialização (embalagem, secagem, encaixotamento). Além disso, são responsáveis pela transformação dos produtos nas propriedades (fabricação de doces, pães, queijos, etc.). Muitas vezes elas também são as responsáveis pelas atividades extrativas (por exemplo, no coco babaçu, nas frutas tropicais) além de se ocuparem com muitas atividades de pesca e de mariscagem, que também são atividades da agricultura familiar. Além de serem responsáveis, como todas as mulheres, pelo preparo da alimentação da família. Não existiria a agricultura familiar se não houvesse o trabalho das mulheres, e o seu envolvimento com a produção de alimentos é essencial para a continuidade da produção familiar no meio rural. É preciso que as instituições que trabalham com agricultura no Brasil dêem valor a essa participação e vejam as mulheres como verdadeiros sujeitos da agricultura familiar. Revista Camponesa: A agroecologia se apresenta como uma estratégia para a agricultura, especialmente para a agricultura familiar, por se estruturar no tripé social, econômico e ambiental respectivamente justo, viável e sustentável que são os aspectos tratados pelo desenvolvimento sustentável. Como a agroecologia vem sendo desenvolvida pela agricultura familiar? Emma Siliprandi: Nos últimos trinta anos as experiências agroecológicas cresceram muito no Brasil, e também em todo o mundo. A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) tem feito vários levantamentos que mostram esse crescimento, que vem sendo reconhecido também pela EMBRAPA1, pelo sistema de assistência técnica oficial, pelos Ministérios do Desenvolvimento Agrário e também da Agricultura. Mesmo assim, ainda não são hegemônicas como

“As mulheres rurais não estão preocupadas somente com as suas próprias reivindicações, há muitos anos têm se preocupado com questões gerais que dizem respeito a toda a sociedade brasileira” modo de produção agrícola, mesmo na agricultura familiar, que ainda está estruturada com base no sistema convencional, baseado em monocultivos, com uso intensivo de adubos sintéticos e venenos, e cujo objetivo maior é a venda no mercado. Nas experiências agroecológicas também se busca obter renda para os produtores e produtoras, mas não a qualquer custo. Se aposta em mercados solidários, em aproximações com os consumidores, em diversificar a produção para aproveitar todo o potencial dos agroecossistemas, preservando ao máximo e até melhorando as condições naturais locais. Mas não é fácil enfrentar décadas de Revolução Verde, que impuseram uma estrutura produtiva totalmente distorcida, em que os produtos têm que apresentar determinadas características em aparência (e não em qualidade nutricional), em que os intermediários dão as regras para os agricultores e agricultoras, em que a infraestrutura pública não é capaz de apoiar efetivamente a pequena produção. Como reverter décadas de assistência técnica viciada, mal preparada, acostumada a ver na agricultura familiar um setor atrasado, avesso à modernização (na verdade, avesso àquela modernização imposta!)? pecuária.

1 EMBRAPA - Empresa Brasileira de Pesquisa Agro-

Revista Camponesa: Qual o papel da agricultura familiar na política agrícola brasileira? E qual são as perspectivas para os próximos anos? Emma Siliprandi: Nos últimos anos vimos mudanças significativas nas políticas agrícolas no sentido de favorecer a produção familiar, com os créditos do PRONAF2, programas de comercialização como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), políticas para as mul-


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heres, para os indígenas, pescadores, quilombolas, assentados. Assistimos às tentativas de reestruturação da assistência técnica, as políticas territoriais. Mas ainda há necessidade de muitos investimentos públicos, como por exemplo, em pesquisa agrícola, que deve ser feita em conjunto com os agricultores e agricultoras, principais interessados nos seus resultados e que precisam ser reconhecidos também como geradores de conhecimento, obtidos em suas trajetórias de vida de anos e anos dedicados à agricultura. 2 PRONAF - Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar.

Revista Camponesa: A chegada de Dilma Rousseff, como a primeira mulher a assumir a presidência do Brasil, trará mudanças à vida das mulheres

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brasileiras, especialmente as mulheres rurais? Em quais aspectos? Emma Siliprandi: Essa é a expectativa geral. Tudo vai depender da capacidade dos movimentos sociais rurais de mostrar sua presença na cena política nacional exigindo a continuidade e o aprofundamento das políticas anteriores. Em agosto de 2011 teremos uma nova Marcha das Margaridas, organizada pela Comissão Nacional de Mulheres da CONTAG3 em conjunto com vários movimentos de mulheres, e a expectativa é de que sejam mobilizadas mais de 100 mil mulheres. As mulheres da Via Campesina também estão preparando grandes manifestações no próximo 8 de março. Todas essas mobilizações são importantes para mostrar que as mulheres agricultoras estão presentes na política brasileira e que têm propostas concre-

tas para melhorar as condições de vida no campo brasileiro. As mulheres rurais não estão preocupadas somente com as suas próprias reivindicações, há muitos anos têm se preocupado com questões gerais que dizem respeito a toda a sociedade brasileira, e tudo indica que não será diferente no Governo Dilma. Em seu discurso como presidenta eleita ela afirmou que mostrará que uma mulher no poder pode fazer a diferença. Trata-se de concretizar agora essas afirmações com ações políticas efetivas. 3 CONTAG - Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura.

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Entrevista: Jean Raboud

O caminho para as famílias rurais A prática dos valores de solidariedade e justiça no seio das comunidades é o desafio

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ean Raboud é um suíço com alma e coração brasileiros. Um homem que entrelaça raízes bucólicas e cosmopolitas, e semeia cidadania por onde anda. Ao chegar ao Brasil, no ano de 1974, primeiramente no estado de São Paulo, Jean passou pela experiência de trabalhar em uma financeira. Ao chegar ao Rio Grande do Norte, trabalhou com essências e após sete anos no ramo das essências, passou a acompanhar e desenvolver seu trabalho em Serra de Mel. Em 1985, Jean Raboud foi o responsável pela fundação da Associação de Apoio às Comunidades do Campo do RN - AACC/RN, e por muito tempo acompanhou as ações institucionais desenvolvidas. Atualmente, morando na Suíça, Jean concedeu uma entrevista a Revista Camponesa e resgatou um pouco da história vivida em Serra do Mel, o processo de criação da AACC/RN e a importância do cooperativismo para a agricultura familiar.

Revista Camponesa: Em recente visita a Serra do Mel, foi nítida a forma como o senhor é especialmente lembrado pela dedicação e trabalho desenvolvido por lá, que se iniciou mesmo antes da fundação da AACC/RN. O que motivou a sua ação em um dos maiores, e mais antigos projetos de reforma agrária? Jean Raboud: Conheci a Serra do Mel no início dos anos 80, era castigada pela seca que assolou o Nordeste entre 1979 e 1983. Abandonado desde 1975, após o desmoronamento do “milagre econômico” brasileiro (crise do petróleo de 1973/74), o projeto não tinha mais condição de ser tocado, no espírito paternalista em que foi lançado nos primeiros anos da década de 70, como sendo de “colonização rural” (sob a ditadura militar, a reforma agrária era uma palavra proibida, “comunista”!). Numa situação de carestia, sem produção, os colonos esperavam tudo do governo, não tinham organização própria. O sistema de abastecimento de água potável era em colapso. A passividade de dentro e de fora, de um lado, o sofrimento da população (taxa alta de mortandade infantil, etc.) de outro lado, me empurraram a tomar a decisão de empreender algo. Para isso, deixei a empresa agroindustrial, em que trabalhava. Tentei mostrar para as famílias

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“Tentei mostrar para as famílias da Serra que o início das soluções passava por elas” da Serra que o início das soluções passava por elas. Com a ajuda do ex-governador Cortez Pereira, o idealizador do projeto, eu consegui a adesão do governo estadual a uma reorientação dos trabalhos sob minha coordenação, se eu tinha feito o primeiro passo, era também muito consciente de que precisava de colaboradores e de garantia de continuidade a longo prazo. Assim surgiu a AACC/RN e um programa de orientação socioeconômico, com a criação de associações em cada vila: básico era a participação das pessoas da Serra, homens, mulheres e jovens. Foi necessário encontrar fundos no exterior, para viabilizar as primeiras medidas a serem tomadas pelos colonos e despertar o interesse do governo. Revista Camponesa: Surgiram quase na mesma época, a Serra do Mel projeto de reforma agrária e a MAISA – latifúndio para o agronegócio. Passados mais de 25 anos, a Serra do Mel cresceu, passou a ser município, produz e exporta castanha, além de contar com uma agricultura diversificada. A MAISA faliu, deixando desemprego e degradação ambiental. Como

o senhor avalia estas duas situações? Jean Raboud: Visitei a MAISA, em 1978. Era óbvia sua inviabilidade, a não ser um funcionamento artificial, graças a subvenções e isenções injustas, sem falar da degradação ambiental. Era impossível a viabilidade econômica de áreas tão extensas, se tivesse que mobilizar o pessoal necessário, nas diversas fases de produção, pagando o salário mínimo e os encargos. A produção em unidades familiares tem como evitar esses problemas, desde que haja uma organização satisfatória entre elas, na produção, no beneficiamento e na comercialização. Daí a importância de uma assistência técnicosocial competente e duradoura. Revista Camponesa: A AACC/RN em 2010 completa 25 anos. Ao fundá-la em setembro de 1985 iniciou o trabalho na Serra do Mel em continuidade às ações já desenvolvidas pelo senhor. Ao longo dos anos suas ações foram se expandindo a outras regiões do estado. Neste sentido, passados 25 anos, qual o papel da AACC/RN na história da agricultura familiar no estado do Rio Grande do Norte? Jean Raboud: A AACC/RN foi uma alavanca para tornar acessível às famílias rurais, com quem atua, organização e conhecimentos. Isto as leva se tornarem menos dependentes dos atravessadores


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e do mercado tradicional. Por outro, o desafio permanece constante no que diz respeito à prática dos valores de solidariedade e justiça no seio das comunidades assim fortalecidas e da própria AACC: a força do exemplo! Revista Camponesa: Um dos maiores legados que o senhor deixou para o RN foi à colaboração na constituição da COOPERCAJU, na Serra do Mel, que hoje exporta para Europa e tem um mercado crescente no Brasil. Qual o poder do cooperativismo para a agricultura familiar? Jean Raboud: O cooperativismo (ou outra forma de associativismo, dependendo das circunstâncias) é a fórmula adequada, para que os pequenos produtores possam ter uma influência à altura de seu papel fundamental na alimentação do povo brasileiro. Se não for submetida a interesses políticos ou de grupos, no seio dela, a cooperativa tem como ganhar força no mercado nacional e internacional, e desenvolver suas competências. O problema da gestão permanecerá, por bastante tempo, um de seus principais desafios. Revista Camponesa: Desenvolvimento sustentável é um dos temas mais falados do momento no mundo todo, por diversos setores. Até que ponto é modismo e até que ponto está sendo

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“A AACC/RN foi uma alavanca para tornar acessível às famílias rurais, com quem atua, organização e conhecimentos” desenvolvidas ações práticas que realmente se estruturam no tripé economicamente viável, socialmente justo e ambientalmente sustentável? Jean Raboud: Se foi modismo, não podia assim permanecer por muito tempo. Hoje é o caminho obrigatório da nossa sobrevivência. O convencimento me parece bastante generalizado, mas não a vontade política de aceitar, com a firmeza que a situação requer, as consequências imediatas das mudanças exigidas. Revista Camponesa: O senhor recebeu o título de Cidadão Natalense pouco antes de retornar à Suíça por suas ações desenvolvidas ao longo dos anos em que esteve no Brasil. Qual o significado desse reconhecimento? O senhor percebe avanços no Brasil e na agricultura desde a sua chegada? Jean Raboud: Os progressos são inegáveis. Na exigência de mais rapidez nas reformas, pessoas esquecem o enorme atraso acumulado no passado, o legado colonial ainda presente no funciona-

mento de certas instituições, apesar do quadro formal democrático (o Congresso Nacional!). A formação cívica nas escolas deveria provocar um amadurecimento do povo na sua maneira de exercer o voto. Na agricultura, houve muitos tropeços na evolução da pequena produção, para chegar hoje a um nível melhor, e com um trend positivo na sua evolução. A agricultura industrial me parece mais consciente de suas obrigações de justiça como empregador e de respeito ao meio ambiente como produtor. O estado tem que se mostrar mais enérgico na coibição de muitas práticas ainda contrárias a essas exigências. Revista Camponesa: Quais os maiores desafios para a agricultura familiar, na construção de uma sociedade sustentável? Jean Raboud: Melhorar permanentemente sua organização associativista, sair do exemplo dos esquemas políticos em que evolui, praticar uma verdadeira solidariedade entre seus integrantes, buscar a interação com os outros grupos de produção e comércio, procurar aumentar e manter atualizados seus conhecimentos profissionais, em relação com a evolução dos mercados.

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Entrevista: Anja Czymmeck

Formação política é a promoção da democracia

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Anja Czymmeck fala a respeito do fortalecimento da sociedade civil e da participação política como pontos importantes para o desenvolvimento sustentável

rabalhar em prol dos direitos humanos, da democracia representativa, do Estado de Direito, da economia social de mercado, da justiça social e do desenvolvimento sustentável; com esse objetivo a Fundação alemã Konrad Adenauer Stiftung - Kas, tem atuado no plano internacional mundial. No Brasil, a Fundação Kas realiza seu programa de cooperação por meio de um Centro de Estudos no Rio de Janeiro e de um escritório em Fortaleza, sempre em conjunto com parceiros locais. A Revista Camponesa conversou com a representante da Fundação para as Regiões Nordeste e Norte do Brasil, Anja Czymmeck. Mestra em inglês, italiano e geografia, Anja trabalhou como assessora política na Alemanha e no Parlamento Europeu, em Bruxelas. No ano de 1998, iniciou seu trabalho na Fundação Kas como colaboradora científica no departamento da cooperação europeia e international. Entre 2001 e 2003 trabalhou como representante da Kas na Venezuela. Desde 2007, Anja acompanha o trabalho nas Regiões Norte e Nordeste e relata um pouco as ações desenvolvidas e fortalecidas pela Fundação junto as suas parcerias, destacando ainda vários outros assuntos de importância nacional e internacional. Revista Camponesa: A Fundação Konrad Adenauer, desenvolve ações no Brasil há mais de 40 anos e seu programa está orientado no desenvolvimento sustentável. Como o processo de formação política para o desenvolvimento sustentável vem sendo desenvolvido pela KAS? Anja Czymmeck: O engajamento no âmbito do trabalho de formação política e de promoção de democracia, com ênfase especial no fortalecimento da sociedade civil e da participação política, sobretudo dos setores menos favorecidos, é um objetivo do escritório regional da Fundação Konrad Adenauer, em Fortaleza. Ao longo dos anos a Fundação Konrad Adenauer desenvolveu processos de formação política com diferentes parceiros, tanto na promoção de debates sobre temas relacionados à sustentabilidade do desenvolvimento, como também em cursos destinados às lideranças políticas e comunitárias, jovens, mulheres e ultimamente também oferecemos cursos para a formação de vereadores e gestores. Procuramos incentivar e fortalecer a cidadania de forma que as pessoas sejam informadas e possam participar ativamente dentro das estruturas do sistema democrático do Brasil, e que possam

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assumir uma função de controle social, ao mesmo tempo em que se fortalece a cooperação entre sociedade civil, entidades governamentais e gestores municipais. Revista Camponesa: A convivência com o semiárido é uma ação de enfrentamento ao “combate à seca” muito difundida por uma política assistencialista desenvolvida por muitos anos no Nordeste. Qual a importância de uma formação política para a convivência com o semiárido? Anja Czymmeck: Nos vinte anos de existência do escritório regional em Fortaleza, essa importância pode ser mais bem auferida por meio das atividades e do trabalho de formação política da Fundação e de seus parceiros. Destaco aqui a parceria institucional com a As-

“Procuramos incentivar e fortalecer a cidadania de forma que as pessoas sejam informadas e possam participar ativamente dentro das estruturas do sistema democrático do Brasil”

sociação de Apoio às Comunidades do Campo do RN (AACC/RN), no Estado do Rio Grande do Norte, iniciada em 1991. A contribuição da AACC/RN tem priorizado programas de apoio aos movimentos sociais e ao fortalecimento de redes das comunidades desfavorecidas no âmbito rural. O tema da água tem sido recorrente, em virtude de seu significado existencial para a sobrevivência no semiárido nordestino. O apoio da Fundação à rede brasileira Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA), por meio de ações de capacitação voltadas para a organização de um processo democrático de formação de vontade política nos municípios e comunidades em que são construídas as cisternas, reforça a importância para a convivência no semiárido, a partir da atenção ao tema da cidadania ativa e da participação cidadã no processo de gestão das políticas públicas. Revista Camponesa: Quais os desafios para o desenvolvimento de uma política ambiental pautada na construção de uma sociedade sustentável? Anja Czymmeck: O maior desafio certamente é colocar a legislação ambiental em prática, sendo esta uma das legislações mais avançadas em nível mundial.


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“Infelizmente vemos ainda muitos crimes ambientais no dia a dia, que não são punidos e falta um policiamento mais rigoroso, mas também precisa maiores investimentos na educação ambiental e conscientização” Nesse processo é importante também a formação política, informando sobre as leis existentes e capacitando as pessoas para que elas possam reivindicar os seus direitos em relação aos recursos naturais. A Fundação Konrad Adenauer também tem promovido cursos de gestão ambiental, aprofundando este debate e formando gestores, que possam colocar esta legislação em prática nos seus municípios ou mesmo no estado. Infelizmente vemos ainda muitos crimes ambientais no dia a dia, que não são punidos e falta um policiamento mais rigoroso, mas também precisa maiores investimentos na educação ambiental e conscientização, que é tarefa da escola e dos governos. Revista Camponesa: O termo desenvolvimento sustentável tem sido muito utilizado em diversos contextos, como fazer para que essa necessidade eminente da sociedade não se banalize? Anja Czymmeck: Na verdade o conceito da sustentabilidade já é bastante usado de uma forma, que justifica modelos de um desenvolvimento, que não pode ser sustentável em médio e longo prazo. Dessa maneira, precisa-se de um debate mais aprofundado sobre as tendências desse desenvolvimento, que ameaça às futuras gerações especialmente pelas mudanças climáticas, a previsível falta de água e de outros recursos necessários. Houve avanços durante os últimos anos, quando o termo desenvolvimento sustentável foi lançado como meta para o novo milênio, mas faltaram metas e indicadores mais concretos, que se tentam hoje definir nas Conferências sobre as Mudanças Climáticas e outras conferências internacionais sobre temas específicos, a exemplo da biodiversidade. Revista Camponesa: Como a senhora observa a nova conjuntura política

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para as questões ambientais no Brasil? Anja Czymmeck: Os votos na candidata à Presidência Marina Silva deram um sinal “verde” para os demais candidatos, que se forçaram a colocar o tema no segundo turno das eleições. Certamente nenhum governo pode hoje em dia passar por cima das questões ambientais. O Brasil ainda teria tempo para dar um sinal ao mundo, tomando com mais seriedade, a preservação dos seus recursos naturais – especialmente também da Amazônia – e freando o avanço da fronteira agrícola para preservar ecossistemas como a Caatinga e o Cerrado. Estes ecossistemas podem gerar maiores riquezas com um manejo sustentável, mas infelizmente os interesses em curto prazo ainda prevalecem em muitos casos. Por isso, a conjuntura política pode ser favorável, mas precisamos ver agora, como esta será colocada em prática pelo novo governo. Revista Camponesa: A AACC/RN em 2010 completa 25 anos, destes, mais da metade contou com a sólida parceria da Fundação Konrad Adenauer. Qual o reflexo dessa longa parceria na construção das ações afirmativas de formação política para o Nordeste do Brasil e mais especificamente para o Rio Grande do Norte? Anja Czymmeck: Acreditamos que a parceria deu muitos frutos ao longo dos anos, inclusive com a formação política dos próprios técnicos da AACC/RN, dos quais alguns estão hoje inseridos no Governo Federal. No Rio Grande do Norte surgiram algumas organizações não governamentais nos territórios, incentivadas pelas atividades da AACC/ RN junto à Fundação Konrad Adenauer, que hoje formam a Rede Pardal e conseguiram apoio pela União Europeia. Outro resultado foi a formação da Rede Xique Xique, que trabalha a comercial-

“Houve amplo processo de formação política de mulheres e jovens nas comunidades, que hoje estão contribuindo de diferentes formas na construção do sistema democrático”

“Existe também uma grande demanda por produtos saudáveis, sem agrotóxicos, o que é uma grande oportunidade para a agricultura familiar” ização no Estado. Houve amplo processo de formação política de mulheres e jovens nas comunidades, que hoje estão contribuindo de diferentes formas na construção do sistema democrático e na melhoria de vida nas comunidades rurais. Foi um longo processo de aprendizagem também para a Fundação Konrad Adenauer, que ampliou muitas dessas experiências para outros estados junto aos seus diferentes parceiros. Foi uma parceria frutífera pela qual estamos muito agradecidos. Revista Camponesa: A produção de alimentos consiste num dos pontos de maior debate na pauta ambiental. Neste contexto, a agricultura familiar se processa com maior eficiência energética, menor demanda de insumos externos e maior empregabilidade. Como a senhora avalia a importância socioeconômica e ambiental da agricultura familiar para a construção de um modelo de desenvolvimento sustentável? Anja Czymmeck: Segundo os dados do IBGE, a agricultura familiar tem uma participação de cerca de 80% na produção dos alimentos básicos, portanto tem uma grande importância econômica e social. Existe também uma grande demanda por produtos saudáveis, sem agrotóxicos, o que é uma grande oportunidade para a agricultura familiar, já que os agricultores estão se conscientizando cada vez mais sobre as vantagens de produzir de forma orgânica, também para melhorar a saúde das suas famílias. A importância da agricultura familiar foi reconhecida pela Fundação Konrad Adenauer e incentivou o Projeto Agricultura Familiar, Agroecologia e Mercado, realizado com apoio da União Europeia durante cinco anos de 2006 a 2010. Nesse âmbito procuramos corresponder aos Objetivos do Milênio e incentivamos a transição agroecológica e a organização dos(das) agricultores(as) para acessar melhor os mercados.

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Entrevista: Terezinha Maria de Oliveira

Relação solidária é o que garante sustentabilidade

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O que mantém a cooperativa viva é a certeza que são as forças somadas que dá o resultado

ma história sustentável do cooperativismo no Rio Grande do Norte, e mais do que isso, uma base da agricultura familiar que se mantém como símbolo da autonomia dos agricultores e agricultoras que constituem o município de Serra do Mel. A expansão de um trabalho realizado pela Coopercaju há quase 20 anos, reforça a importância das parcerias e o crescimento de um mercado interno, que segundo Terezinha Maria de Oliveira, Engenheira Agrônoma, presidente da Coopercaju, só tem se ampliado. Em entrevista concedida à Revista Camponesa, Terezinha fala sobre cooperativismo, comércio solidário, gestão, a importância da participação nas redes e os riscos ambientais atuais para os(as) agricultores(as) familiares. Revista Camponesa: Como foi sua chegada a Serra do Mel? Terezinha Maria: Cheguei em 1983, e vim como parte do Movimento dos Agrônomos Desempregados, nós éramos 36. Concluímos a universidade e era um período terrível, muito difícil e não tinha trabalho na região. Os poucos que conseguiam trabalhar tinham que ir embora para região Norte, tinham que ir para Amazônia aí começamos a nos reunir em Mossoró e constituímos um movimento, que era o Movimento dos Agrônomos Desempregados. Nós nos reuníamos toda semana para buscar alternativas de trabalho na nossa região, por meio de mobilização, audiência com governador, para dizer que queríamos trabalhar, não queríamos ir para a região Norte, queríamos trabalhar aqui no Nordeste. Determinado dia o governador disse de brincadeira “ah o que eu tenho a oferecer para vocês é um lote na Serra do Mel”, achava que a gente não ia levar a sério, não ia querer, aí na hora a comissão que tinha ido falar com ele disse “queremos”. Nós topamos, eles achavam que era brincadeira, nós começamos a juntar e organizar um ônibus para vir para Serra e conhecer, e nos animamos. Para falar a verdade, tinham três vilas

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“Tem poucas mulheres associadas, agora tem esse lado bom, muitas mulheres é que fazem o negócio porque participam”

que estavam desocupadas, que ainda não tinham sido colonizadas, tinha um documento com um levantamento de solos feito pela ESAM e Universidade de Minas Gerais e a gente viu que das três, a do melhor solo era a Vila Amazonas e por felicidade e coincidência, era a mais próxima da praia também. Assumimos essa experiência, foi muito interessante e foi dessa forma que eu vim parar na Serra do Mel, por meio do Movimento dos Agrônomos Desempregados. Alguns de nós ficamos aqui, e ao invés de irmos dar assistência técnica, nós fomos cultivar a terra, e todos nós nos envolvemos em atividades aqui. A maioria de nós foi para a educação e ainda hoje boa parte de nós trabalhamos na educação, porque tinha um vazio de professores e fomos nos fixando, então foi assim que eu vim parar na Serra do Mel.

1 Esam - Escola Superior de Agronomia de Mossoró.

Revista Camponesa: Como foi o surgimento da Coopercaju?

Terezinha Maria: Antes de a Coopercaju surgir, se passaram muitas histórias, assim, quando nós chegamos aqui não tinha associação nas comunidades; aí, é onde está a ligação da Serra com a AACC/ RN. Na época, o fundador da AACC, Senhor Jean Raboud, tinha um trabalho aqui na Serra, um trabalho de animação das comunidades e as primeiras associações que nasceram na Serra do Mel, foram frutos desse trabalho. Primeiro vieram as associações, foi quando as comunidades perceberam a importância de ter uma associação para organizar a vida da comunidade; a Coopercaju nasceu um pouquinho depois. O trabalho de Jean aqui é bem antigo, quando cheguei na Serra em 83, ele já estava aqui, e a Cooperativa veio nascer em 1991. Então, com essa experiência das associações que organizavam os trabalhos comunitários, a Coopercaju nasceu de uma forma bem interessante; primeiro os produtores daqui vendiam a castanha in natura por um preço bem barato para indústria, a gente era meio que escravo das grandes indústrias, porque elas compravam do preço que queriam do jeito que queriam, e a gente não tinha resultado. Nós trabalhávamos, a terra era nossa, o produto era nosso, mas quem dava o preço eram elas. No 1º momento nós fizemos um movi-


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“Uma coisa que para nós é muito caro, no sentido de precioso, é a nossa participação nas redes” mento para tentar subir o preço, foi o primeiro movimento que a gente fez com castanha, ainda ninguém falava nem em Coopercaju. Porque nós seguramos quase um mês, sem vender a castanha para o atravessador, e dessa forma vimos que era possível, já que o preço subiu a gente foi se animando. No ano seguinte, elas se juntaram e colocaram um comprador de castanha in natura em cada comunidade, aí perdemos a força do movimento, a gente se deu bem em um ano, no outro eles acharam uma estratégia para voltar ao que era antes. Então ficava triste porque perdia o dinheiro, vendia muito barato e os empresários desrespeitavam muito a gente, porque diziam que éramos os apanhadores de castanha deles. Começou essa vontade, e pensar, como é que a gente vai fazer? Começamos a experimentar o beneficiamento da castanha em casa, no começo parecia uma coisa de doido, porque só se beneficiava em grande indústria com toda a estrutura, esse processo se iniciou com o apoio de dois técnicos, que trabalhavam a serviço da AACC/RN, mesmo sendo um da EMATER e outro da AACC/ RN mesmo. Então, a AACC/RN começou oferecendo assistência técnica para esses produtores que experimentaram e foram desenvolvendo esse sistema de beneficiamento artesanal. Se você pega os registros de todos os livros, o começo de tudo foi a assistência técnica iniciada pela AACC/RN. Depois com vários projetos, a AACC/RN ajudou a montar unidades experimentais de beneficiamento, com apoios que vieram da Suíça, e as primeiras unidades foram montadas pela instituição. Até aí, não se falava em Coopercaju (88, 89), as pessoas estavam experimentando e conseguindo ter uma amêndoa de excelente qualidade. Com essa qualidade, é que Jean faz uma viagem a Suíça e leva uma amostra, nesse momento, a castanha que era produzida aqui na Serra não conseguia mais vender nas praias daqui; as primeiras pessoas iam vender na praia, como a quantidade

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foi aumentando, já não conseguiam vender tudo na praia. Jean levou essa amostra para a Suíça e o pessoal viu que a qualidade era boa, ele não levou para qualquer lugar, ele levou para uma organização que praticava e pratica Comércio Justo na Europa, essa foi a diferença para a gente. Na época que ele levou, a cooperativa acabava de nascer, ele levou em 1992 e a cooperativa foi fundada em 1991, de 1988 até 1991, foi o período de tentar tecnologias, jeito de fazer, para consolidar, em 25 de julho de 1991 se criou a cooperativa, que nasceu literalmente na sombra de uma cajueiro, que até hoje está de pé para contar a história. Com a criação da Coopercaju em 1991, Jean foi para Suíça em 1992, e em 93 foi a 1ª exportação de 3.500Kg de castanha de boa qualidade e essa história, vem dando continuidade e aumentando até hoje. Em 2006 mandamos 60 mil Kg para o mesmo cliente, que mudou de nome, mas é o mesmo grupo, na época chamava-se OF3 – Organização Social para o 3º Mundo e hoje é a Claro Fair Trade, uma organização da Suíça, que funciona como distribuidora. Ainda hoje, a gente chama o Senhor Jean, mesmo que ele não seja mais da direção da AACC/RN, ele ainda é aquela figura que começou tudo, e é meio embaixador da Serra do Mel na Suíça. Revista Camponesa: Quanto sócios e

“Isso aqui corre o risco de se transformar numa fazenda de vento, em vez de ser uma área de produção de alimentos” sócias a Coopercaju tem hoje, e como ela se organiza em sua gestão? Terezinha Maria: Ela nasceu com 30 sócios, 29 homens e uma mulher, isso em 1991. E hoje nós temos um quadro social com 176 sócios, mas ele vai ser enxugado e depois ampliado, porque nesse meio, recentemente tem algumas pessoas que faleceram, e tem várias pessoas que saíram da atividade. Então, hoje trabalhando com a cooperativa nós temos 106 associados, só que desses 106, tem várias famílias, que tem o pai e mais dois filhos que já constituíram a família deles e já tem a própria unidade, e que a castanha entra como se fosse do pai. Então desses 176 vai reduzir, só que tem outros para entrar, então talvez até aumente. Continua com um maior número de homens, agora vem mais mulheres para reunião, do que o número de associadas porque muitos homens ficam em casa e as mulheres vêm para reunião. Mas assim, hoje nós temos 19 associadas mulheres. Inicialmente o costume era assim, associava o homem, e a mulher só ia ser sócia quando o homem morria,

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mulher com marido sendo sócia, só tem eu e a primeira sócia fundadora também tinha marido. Porque as outras ou ficaram viúvas ou eram as próprias chefes de família, então tem poucas mulheres associadas, agora tem esse lado bom, muitas mulheres é que fazem o negócio porque participam. A cada quatro anos temos eleição, o último presidente tirou 12 anos de mandato, porque era um vice que assumiu um mandato, e ainda foi eleito duas vezes. Agora sou a primeira mulher presidente da cooperativa, com uma eleição onde 87 sócios votaram em mim. O trabalho que a gente faz é esse, a gente vem lutando para construir uma gestão democrática, nos últimos 4 anos a gente já trabalhou muito isso, com o exercício das pessoas decidirem, diminuindo aquele hábito de “presidencialismo”, presidente decide, presidente fala. A gente tem trabalhado no sentido de ter uma gestão participativa. Revista Camponesa: Hoje qual o mercado da Coopercaju, com quem a cooperativa se relaciona? Terezinha Maria: Nós trabalhamos na Europa com a Suíça, com essa distribuidora que está desde o começo, que só mudou de nome, que é a Claro Fair Trade. Ela não é só uma compradora, é uma parceira que nós temos a tempo, são 17 anos de história e ela compra da Coopercaju, ficando uma parte nas lojas dela de Comércio Justo na Europa, e outra parte é repassada para Áustria e para Itália CTM. Há 3 anos nós conquistamos outra parceria de comércio justo, que é a Cooperativa Chico Mendes na Itália, que nasceu inspirada no trabalho de Chico Mendes, é uma cooperativa Italiana, que faz o trabalho de vender os produtos do Brasil, principalmente da Amazônia, dos seringueiros do Acre e da Bolívia, e a filha de Chico Mendes e uma das sócias. A Coopercaju se integrou à Chico Mendes, porque conhecemos um dos diretores da APEBE que é uma cooperativa do Acre que trabalha com castanha do Brasil, nos conhecemos numa feira no Rio de Janeiro e quando a Chico Mendes falou em expandir seus produtos para a castanha de caju, como produto da floresta da caatinga eles avisaram que conheciam a gente e nos encontraram

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“O consumo de castanha de caju aumentou muito nos últimos quatro a cinco anos no mercado nacional e acredito que se deve ao aumento de renda das pessoas, hoje os supermercados e as lojas estão vendendo muito” na Internet, e assim hoje nós fazemos parte, nós vendemos a nossa castanha na marca Amazônia, mas como uma parceria por sermos uma floresta tropical que é a caatinga. É uma parceria nova de três anos, começou comprando pouquinho, mas ano passado já vendemos uma quantidade razoável que foi 15.000 Kg, e todos os anos eles vem nos visitar. Revista Camponesa: Além dos países da Europa, existe um outro mercado? Terezinha Maria: O mercado interno a gente busca cada vez mais, porque precisamos trabalhar o ano todo, e tem um período que não dá para trabalhar com exportação, e tem outro tipo de castanha que ela não vai para exportação, ela fica no mercado interno, então estamos aumentando. Na safra anterior, acho que tinha sido só 10% para o mercado interno e na última safra acho que 30% para o mercado interno e a gente está aumentando, estamos localizando bons parceiros comerciais aqui no Brasil porque se não tiver esse cuidado, infelizmente no Brasil hoje tem muita gente que não honra com os compromissos de pagar direitinho, então agora nós temos uma política no mercado interno onde só vendemos adiantado. Porque nós não temos capital de giro, então essa é uma ação necessária. Revista Camponesa: A castanha quando chega a Europa é comercializada com a marca Coopercaju? Terezinha Maria: Não. Ela é comercializada com a marca deles, mas com o nome, a referência e a história da Coopercaju. Revista Camponesa: Mesmo existindo a Cooperativa, constituída de sócios, ainda assim a pressão do mercado faz com que muitas vezes os próprios só-

cios deixem de fazer o negócio com a cooperativa e faça com os atravessadores? Terezinha Maria: Acontece, nós temos uma parte dos sócios (as) que são fiéis, são os que mantêm a cooperativa funcionando, quando a gente faz um contrato assumem, mas existem aqueles que num momento especial, como esse em que o preço da castanha no Brasil disparou, caem na tentação, mas uma boa parte, mantém o compromisso com a cooperativa. O consumo de castanha de caju aumentou muito nos últimos quatro a cinco anos no mercado nacional e acredito que se deve ao aumento de renda das pessoas, hoje os supermercados e as lojas estão vendendo muito, e acredito que as pessoas devem estar ganhando mais dinheiro, porque tem muita gente consumindo. Revista Camponesa: Mesmo a Coopercaju se relacionando com o mercado europeu, e tendo essa capacidade de se articular de forma muito maior, ela está presente nas articulações de base, em nível estadual? Terezinha Maria: Nós não podemos pensar que exportar e estar nesses espaços garante sustentabilidade. O que vai garantir a sustentabilidade da Cooperativa são as relações solidárias que se travam. Se a gente pensar que porque exportamos estamos ricos, a gente fecha as portas, temos que ser sempre presentes. A certeza de que somos da agricultura familiar, beneficiamento artesanal e cultivamos os laços de solidariedade, sabendo que precisamos dos outros, nenhum de nós consegue fazer negócio sozinho, nós precisamos uns dos outros para fecharmos um contêiner. O que mantém a cooperativa viva é a certeza que são as forças somadas que dá o resultado, e uma coisa a gente tem procurado muito, é assim manter parcerias com outros, ensinar o que a gente aprendeu. Hoje nós temos o maior orgulho de dizer que na Bahia tem uma cooperativa que aprendeu tudo com a gente, a maior felicidade de dizer e de mostrar a castanha Mãos Crioulas lá de Ingazeira (PE). Assim, aqui no RN, quando precisa também estamos sempre à disposição, até na África, em Guiné Bissau, já foi gente nossa ensinar o nosso jeito de beneficiar.


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Temos esse compromisso porque temos a certeza de que somos da agricultura familiar, camponeses mesmo, e não adianta a gente achar que é rico porque um dia a gente está bem, no outro vem uma seca, como veio agora, e a gente fica segurando, você não imagina o sacrifício e a fragilidade que temos para mantermos as portas abertas, num período desses. Uma coisa que para nós é muito caro, no sentido de precioso, é a nossa participação nas redes, nós fazemos parte aqui no estado da Rede Xique Xique, sediamos um Núcleo da Rede Xique Xique, em Serra do Mel. O fortalecimento dos grupos de mulheres para nós é fundamental porque faz a diferença, então fazer parte da Rede Xique Xique é fundamental. Nós fazemos parte de outra rede nacional, que é a Rede Ecojus que é das organizações do comércio justo aqui no Brasil, desde 2004 quando nasceu essa história, e estamos embarcando em uma nova que é uma Associação Internacional de Agricultores Orgânicos da Agricultura Familiar.

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pessoas estão desmatando para plantar cajueiro, em área que não era para desmatar, e agora tem uma preocupação nova, que é boa para o Brasil, é legal e bacana, que é a geração de energia eólica. É tida como maravilhosa, agora para nós e para a agricultura familiar na Serra do Mel é complicado, porque o que tem de empresas internacionais fazendo arrendamento de terra de comunidades inteiras para implantar parque eólico não é brincadeira, e parque eólico costuma ser feito em áreas de dunas, em área não agrícola. Na comunidade onde tenho minha terra, acho que fui eu e mais uns 5 que não aceitaram assinar um documento de arrendamento por 30 anos

para uma empresa francesa, a maioria assinou, empresas internacionais contratam advogados, eles vêem fazem uma conversa com os agricultores e prometem royalties de 1.500 a 3.000 reais por mês. Os agricultores estão caindo na conversa, e isso tem me preocupado muito porque isso aqui corre o risco de se transformar numa fazenda de vento em vez de ser uma área de produção de alimentos. Isso é preocupante, tenho até medo de ter resistido a isso porque na minha comunidade acho que só ficaram umas 10 pessoas dos 59 proprietários, sem assinar esse documento e sabemos que vai vir muita pressão porque são empresas poderosas, nacionais e internacionais que estão loteando a Serra

Revista Camponesa: Tem se falado muito e está sempre na mídia, todo dia com informações diferentes com relação às alterações climáticas e as mudanças no nosso ambiente, na nossa caatinga. O que essas mudanças podem representar para a Serra do Mel ou mesmo para a produção de castanha, e para a vida das pessoas que vivem da agricultura aqui na nossa região? Terezinha Maria: Essa é uma preocupação muito grande nossa porque esse é um ambiente muito frágil, a nossa caatinga é muito frágil. Então tem as mudanças climáticas que nos preocupam, antes a gente sabia se o ano ia ser normal de inverno, então já sabíamos os meses; hoje não sabemos mais isso, porque hoje chove em períodos diferentes. Hoje eu já vejo uma mudança climática muito forte. Aliado a essa mudança climática que está acontecendo, a preservação dos recursos naturais hoje é uma coisa muito importante, aqui tem uma área próxima às dunas, essa é uma região única no mundo onde a caatinga encosta no mar, e se os agricultores desmatarem uma faixa de terra vizinha ao mar, as dunas se deslocam em direção a área agricultável das nossas terras. Outra coisa é que as

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Camponesa - Dezembro de 2010 novamente com essa história de energia eólica, onde instala aqueles aerogeradores, ali não dá para produzir alimento, quando as pessoas “caírem em si” vai ser muito tarde, porque tem pessoas que permitiram instalar aero geradores de teste. Revista Camponesa: Qual é o diferencial da castanha beneficiada artesanalmente da Coopercaju? Terezinha Maria: A castanha beneficiada artesanalmente, que nasceu da Coopercaju e hoje está se espalhando, a gente tem muita vontade que venha a ser a castanha beneficiada pela agricultura familiar inicialmente na Serra do Mel, e se espalhe no RN e Nordeste, te-

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www.aaccrn.org.br mos muita vontade que essa qualidade não seja uma qualidade só da Coopercaju, hoje é uma “qualidade Serra do Mel”. O grande diferencial da castanha comercializada pela agricultura familiar é que há tratamento uma por uma, ela é beneficiada em todas as etapas, manualmente e cuidadosamente, e isso gera o quê? Uma qualidade superior, primeiramente, um maior percentual de castanhas inteiras, branquinhas, com qualidade, sem rasuras, quebra menos e como não passa por um corte mecânico, com todo aquele tratamento mecânico que passa na grande indústria, ela tem um sabor diferente, todo mundo acha que é uma castanha especial pela forma como ela é feita.

E outro fator especial é que ao ser beneficiamento manual significa mão de obra familiar e conseqüentemente geração de renda. Já a beneficiada na indústria, quando ela vem empregar uma quantidade pequena de mulheres pagando um salário baixo que é o salário mínimo. A qualidade especial garante um preço superior, hoje nós temos o melhor preço de castanha do mundo, hoje ninguém vende com um preço melhor que o nosso. Então se você visita a Serra e visita outros municípios do RN, você vê a diferença na qualidade de vida das pessoas, não só com relação aos bens, as casas são melhores, mas também ao esforço que os pais fazem para os filhos estudarem.


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Entrevista: Fernando Bastos

O grande desafio das ações para o rural é a democratização

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O acesso às políticas públicas, para que o agricultor possa inovar suas práticas na unidade familiar é uma grande questão

ernando Bastos é formado em Economia pela Universidade Federal de Alagoas, tem mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Federal de Alagoas e doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2005), com área de concentração em desenvolvimento regional. Atualmente é professor adjunto do Departamento Interdisciplinar de Políticas Públicas; do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPGSC) e do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA), ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Fernando ainda é membro da Base de estudo Estado e Políticas Públicas e tem experiência nas áreas rural e em turismo, atuando principalmente nos temas: desenvolvimento sustentável, políticas públicas para o meio rural, desenvolvimento regional e desenvolvimento rural sustentável. O livro Ambiente institucional no financiamento da agricultura familiar, foi lançado em 2006, pela Editora Polis; e em 2008, foi um dos organizadores do livro Financiamento Rural: dos Objetivos às Escolhas Efetivas, lançado pela Editora Sulina. Em entrevista à Revista Camponesa, Fernando Bastos aborda a relação dos movimentos sociais com a agricultura familiar, a relevância das políticas públicas para o meio rural e a influência das mudanças climáticas na agricultura.

Revista Camponesa: Qual o peso da mobilização social na construção da reforma agrária e fortalecimento da agricultura familiar? Fernando Bastos: Creio ser público que o jogo de forças que orienta as agendas no Brasil não permite mudanças mais significativas nas condições de desigualdade que imperam no campo e fora dele. O que tem sido feito é fruto da mobilização social e particularmente na reforma agrária, onde as atitudes do poder público são mais um reflexo dessas ações por parte dos movimentos sociais. O fortalecimento da agricultura familiar tem sido também uma consequência da ação desses movimentos e de entidades representativas dos agricultores familiares, desde a pressão para concepção do PRONAF – seu aperfeiçoamento burocrático e novas modalidades, o que tem proporcionado certo rearranjo institucional e facilitado o acesso a crédito para muitas famílias, mesmo que ainda limitadas por suas condições estruturais. Idem para o PAA, que apesar de representar ainda muito pouco esforço de inversão pública, tem sido considerado pelos beneficiários e mediadores fun-

damental para seus beneficiados. Este programa vem sendo objeto de mobilização por parte dos agricultores familiares para que se transforme em política de Estado e não se constitua apenas de um programa de governo, submetido às injunções de toda ordem quando da aplicação de recursos. Revista Camponesa: O que caracteriza a agricultura familiar no Brasil hoje? Por que historicamente diferentes terminologias foram empregadas para referir-se a agricultura de base familiar? Fernando Bastos: O que chamamos hoje de agricultura familiar é uma expressão mais genérica para um sujeito

“A agricultura familiar é a forma mais significativa de expressão dos trabalhadores no campo, principalmente por sua incorporação no ‘discurso’ do estado para dar significado às suas intervenções”

político que outrora teve várias denominações, às vezes apropriando-se de outra denominação, tal qual a de campesinato, e outras vezes assumindo a própria expressão de sua luta, como são os barrageiros, os agricultores de vazantes, os seringueiros, etc. Em algum momento a própria academia se apropria dessas expressões como uma categoria de análise nas suas investigações. Nesse sentido, o campesinato, pela sua história no contexto da Europa, principalmente, é sem dúvida a mais representativa. No Brasil, atualmente, a agricultura familiar é a forma mais significativa de expressão dos trabalhadores no campo, principalmente por sua incorporação no ‘discurso’ do estado para dar significado às suas intervenções. Revista Camponesa: O IBGE tem apresentado a agricultura familiar como responsável por cerca de 75% da produção dos alimentos que compõe a cesta básica brasileira. As políticas públicas para o meio rural desenvolvidas nos últimos anos foram significativas para esse novo cenário? Fernando Bastos: Claro que as políticas

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“Temos um grupo maior de agricultores familiares, localizados em sua maioria no Nordeste, que detêm um controle precário ou nenhum sobre os meios de produção, portanto, com inserção sempre limitada às políticas públicas” públicas foram importantes, mas devemos investigar que grupo de agricultores familiares foi responsável por essa produção. Isso leva a outra questão para reflexão: quando estamos falando de agricultores familiares de quem estamos falando? Isso para que não se conclua que agora está tudo maravilhoso, hajam vistas as políticas atuais. Não se deve olvidar que existe um grupo significativo de agricultores familiares que controla adequadamente os meios de produção e isso os torna “privilegiado” no uso das políticas de crédito, de comercialização, etc. O problema é que temos um grupo maior de agricultores familiares, localizados em sua maioria no Nordeste, que detêm um controle precário ou nenhum sobre os meios de produção, portanto, com inserção sempre limitada às políticas públicas que induzam sua autonomia. Assim, são os minifundiários, os que só conseguem cultivar a terra sob condição, e até mesmo àqueles que sobrevivem plantando a margem das estradas. Situação que se agrava quando estão submetidos às injunções da natureza. Claro que os dados do IBGE demonstram a importância da agricultura familiar, no entanto pode mascarar essa realidade de exclusão se não for convenientemente analisado. Revista Camponesa: Quais os desafios atuais das políticas públicas para o meio rural? Fernando Bastos: No meu entender o grande desafio das ações para o rural é democratizar o acesso a essas políticas públicas, para que o agricultor possa inovar suas práticas dentro e fora da unidade familiar. Para isso, o acesso a terra, em condições apropriadas, surge como

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uma condição sine qua non1, sem dispensar naturalmente as ações que facilitem a compra/beneficiamento da produção e as relativas à segurança alimentar e nutricional, que aproximem os produtos dos consumidores, dentro e fora do rural.

1 Sine qua non - indispensável , sem o qual não pode ser.

Revista Camponesa: A produção de biocombustíveis vem sendo colocada como caminho para a substituição de fontes poluentes de energia, e implementada como uma política pública. Que impactos socio econômicos e ambientais a mudança dessa matriz energética a partir da agricultura familiar pode gerar? Fernando Bastos: O mundo passa por um dilema: com a extrema dificuldade de promover mudanças significativas nos hábitos de vida e de consumo, que impõem irreversíveis limites para o uso dos recursos naturais, e na indecisão quanto à adoção de energias limpas para substituir os de origem fósseis, vem assumindo mais relevância a necessidade de recorrer à produção de biocombustíveis. Aí, como sempre estamos frente às escolhas: se por um lado, no nível micro, isso possa representar uma alternativa de sobrevivência para muitas famílias, dependendo da alternativa de cultivo, por outro, um risco, considerando os custos de substituição para o agricultor frente à sua tradicional policultura. Se a opção da sociedade é para manter um padrão de vida com base no uso de veículos individuais, deve pagar por isso! Dessa forma, a produção de alimentos teria que ser tratada de fato tal qual uma falha de mercado e o incentivo à sua produção, com preços compensadores, teria que ser pago naturalmente pelos usuários desse tipo de transporte, maiores demandantes de biocombustíveis. Em resumo, a decisão entre deixar de fazer policultura ou produzir biocombustíveis não deve ser regulada somente pelo mercado, penalizando por consequência os que permaneçam produzindo alimentos. Revista Camponesa: Como as mudanças climáticas podem afetar a agricultura de base familiar? Fernando Bastos: Sem dúvida que, quanto mais pobre seja o agricultor familiar e por consequência dependa do

“Aí está a raiz do problema, expressado na apropriação inadequada e oportunista da expressão sustentabilidade, no discurso politicamente correto e muito distante da trajetória que percorrem seus locutores” que plantar diretamente para sobreviver, mais está à mercê dessa redução de fornecimento dos serviços de ecossistema no seu cotidiano de sobrevida. Como vêm denunciando os cientistas no mundo inteiro, a produção de alimentos tem um vínculo imediato com os demais serviços de ecossistemas responsáveis pela estabilização do clima, de cadeias alimentares, do ciclo hidrológico, produção de solos, controle natural de crescimento desordenado das várias espécies vivas etc. Os períodos prolongados de secas e as chuvas intensas, precipitadas em curto espaço de tempo, comprovam esse risco crescente. Revista Camponesa: Que caminhos para o desenvolvimento sustentável o Brasil está tomando? Estamos vivendo experiências práticas, ou ainda estamos no campo do discurso e pouca ação? Fernando Bastos: Enquanto um encaminhamento mais geral de ações públicas e privadas, a sustentabilidade ainda é uma miragem, por mais que o sonho de certo equilíbrio mecanicista na relação sociedade/natureza permaneça nas mentes das pessoas em geral e de alguns estudiosos em particular. Nessa discussão, temos um problema central que é o tratamento dado à dimensão político-institucional. Sim, aí está a raiz do problema, expressado na apropriação inadequada e oportunista da expressão sustentabilidade, no discurso politicamente correto e muito distante da trajetória que percorrem seus locutores; na visão imediatista dos diversos atores, alguns justificáveis, outros não; e no próprio significado da relevância dessa prática para a maioria de atores que possam ser mais ou menos relevantes para influir em decisões dessa ordem.


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Entrevista: Francisco Edilson

Nossa missão é fortalecer a agricultura

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Cada liderança sindical precisa falar, mas também precisa fazer

experiência sindical e a realidade dos(as) trabalhadores(as) da agricultura familiar no município de Apodi, relatada pela ótica de Francisco Edilson Neto, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Edilson é agricultor natural da Comunidade Água Fria, mas reside em Santa Rosa II, em Apodi. Há 12 anos como presidente do sindicato, Edilson fala dos trabalhos de organização e participação e ainda as conquistas para os(as) agricultores(as), o resgate e a importância das sementes também é ressaltado por ele, que diz ter como um sonho a criação da Rede de Sementes do estado. Revista Camponesa: O que motivou o seu envolvimento nos trabalhos de organização dos agricultores no município de Apodi? Francisco Edilson: Minha história é um pouco longa, mais ou menos em 1982 e 1983 morava na Comunidade de Água Fria e lá aconteciam as frentes de emergência, e o que o exército fazia era um absurdo, eles chegavam 12 horas do dia, mandavam o povo ficar de joelhos, se deitar. E nós percebemos que era necessário ter alguém que pudesse se contrapor a aquele modelo, que era necessário ter alguma “luz” para o campo, porque não tinha mais cabimento acontecer aquelas coisas absurdas com gente, porque a gente era gente, mas estávamos sendo tratados pior do que animais. Nesse momento, começamos a reunir as comunidades e vimos que era importante lutar por algo, e uma das maiores necessidades naquele momento era a água, na nossa comunidade tinha uma caixa d´água que era limitada, e cada família só podia pegar um galão d`água por dia, e iniciamos uma luta por água, para as comunidades principalmente terem água para beber. Procuramos apoio, da Diocese de Mossoró que implantou pequenos projetos alternativos comunitários e começamos a montar 5 bombas manuais em 5 comunidades, começou por Água Fria, Lagoa Rasa, Santa Rosa, Sorroroca e Queimada, com isso

resolvemos parte do problema d´água e as pessoas não precisavam mais ficar sujeitas só a água do exército que era distribuída através de carro pipa. Depois percebemos que havia outro problema, que era a necessidade de semente para plantar, foi nessa época que constituímos a primeira associação na comunidade de Água Fria e nesse processo de organização não tínhamos somente a necessidade de semente, mas também de terra, pois éramos 100 associados e somente 35 tinham terra, o restante trabalhava de “meia”. Vimos que só ter sementes, e se as pessoas não adquirissem terra, estava sendo escravo, porque plantava, mas a “meia”1 era do patrão. E com o apoio da Comissão Pastoral da Terra - CPT e da Paróquia de Apodi, iniciamos um trabalho de base nas outras comunidades e vimos que era necessário que tivéssemos um sindicato pelo menos para ter um apoio moral. Iniciamos os primeiros encontros, e com o apoio da AACC/ RN e da KAS os primeiros seminários de formação começaram a acontecer.

“Uma das maiores necessidades naquele momento era a água, na nossa comunidade tinha uma caixa d´água que era limitada, e cada família só podia pegar um galão d`água por dia”

1 Relação que ocorre quando um agricultor trabalha em terras que pertencem a outra pessoa. Em geral o meeiro (agricultor que trabalha nessa condição) ocupa-se de todo o trabalho, e reparte com o dono da terra o resultado da produção.

Revista Camponesa: Como se deu a sua participação à frente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Apodi? Francisco Edilson: Depois desses processos de mobilização e organização iniciados, as pessoas foram acreditando cada vez mais, e percebemos que um passo importante era o sindicato, ter um sindicato a serviço da causa. A partir daí participamos de quatro eleições, e somente na quinta tentativa que conseguimos assumir. Na primeira gestão como vice, eu assumi o sindicato, após a morte do presidente. Estou no terceiro mandato com uma sequência de 12 anos à frente do sindicato, e demos um salto de qualidade, juntamente com a CPT, com o apoio da AACC/RN, e quero sempre ressaltar que mesmo sendo um apoio limite, mas para aquele momento foi importante, e com outras entidades que foram se incorporando, nós conseguimos chegar onde a gente está hoje. Revista Camponesa: Percebe-se que ao longo dos últimos anos, o sindicato de Apodi cresceu estruturalmente, em organização e participação política, sendo referência para outros municípios. Então como se dá esse trabalho de garantir o crescimento do sindicato sem deixar as discussões políticas

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“Meu sonho é a construção da Rede de Sementes do Rio Grande do Norte” que realmente são importantes para a agricultura familiar de Apodi? Francisco Edilson: Foi uma luta cheia de altos e baixos, nós temos o sindicato do tamanho que temos, mas também temos problemas e conflitos, e se tem, é porque entendemos que é nos conflitos que a gente cresce e aprende muito com isso. Acho que avançamos na estrutura, porque percebemos que era importante ter uma estrutura mínima para que os trabalhadores pudessem chegar aqui e se sentir a vontade. E na base era também interessante que a gente conseguisse estar lá, acompanhando as associações e construindo nossas lutas. Quando assumimos, o sindicato tinha 100 pessoas em dia, hoje nós temos 3000. Mas tem 3000 por quê? Porque o povo entendeu que o dinheiro do sindicato não é meu e nem é da diretoria, é da luta. Hoje temos muitas divergências, mas o que a gente construiu são coisas importantes, criamos a COOAFAP - Cooperativa da Agricultura Familiar de Apodi - aqui dentro, iniciamos a Cooperativa de Crédito sendo a 1ª aqui no estado e iniciamos muitas outras lutas. Revista Camponesa: O senhor falou que está chegando o momento de diminuir as atividades pelo sindicato, retomar uma vida mais sua, mas mesmo estando no sindicato suas atividades como agricultor nunca foram deixadas/abandonadas? Francisco Edilson: Gosto muito de trabalhar com horta, gosto muito de viver no

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sítio e de trabalhar, acordo 4 da manhã, caminho até 4h 30min, depois tiro o leite de duas vacas, coloco a alimentação delas, vou pra casa e de 8 horas saio para o sindicato. Quando termino minhas atividades no sindicato volto para casa, e estou pensando em reestruturar minha horta agora reestruturar de uma maneira diferente, cuidar só dela. Mas também não vou fugir, não vou deixar, abandonar tudo, mas vou tentar ir deixando porque tudo tem seu tempo. O campo hoje é a saída, eu não tenho dúvida que posso tirar três salários, sem precisar morrer de trabalhar e ter uma vida digna no campo. Agora preciso me organizar, preciso ter um pedacinho de terra, preciso saber quantos pés de alface vou plantar por semana, quantos molhos de coentro, quanto de cebolinha, pimentão, ter um planejamento e é isso. Agora tem gente que pensa que o sindicato é só o sindicato e que vai viver disso, você não vive, principalmente porque o seu tempo passa. Então cada liderança sindical, cada companheiro que está a frente, é preciso falar, mas você também precisa fazer. Só falar não basta, você precisa mostrar que dá. Só o arroz esse ano, em uma parceria com meu companheiro vamos colher 200 alqueires. Para mim não tenho nem dúvida hoje, conhecendo meus filhos que criei todos da agricultura, Edjarles, que hoje produz hortaliças e João Paulo e Edinho que vendem, todos se dedicaram mais a essa história de trabalhar mesmo, e esse é o caminho, é a saída. Porque o que me dói mais é ver filho de agricultor, mendigando em porta de prefeitura para ganhar um salário mínimo, e além de virar puxa-saco. Então acho que cada um de nós tem a sua missão, e a nossa missão é essa de fortalecer a agricultura

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www.kas.de/brasil

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“Ou temos isso como meta nossa, ou morremos politicamente, não podemos viver na escravidão das sementes transgênicas” e o movimento sindical. Revista Camponesa: Uma ação muito forte que tem sido desenvolvida em Apodi é o resgate das sementes crioulas. Por que o despertar para essa ação e como tem sido? Francisco Edilson: É um trabalho muito difícil, para mim é o trabalho mais importante que temos hoje, mesmo sendo ainda uma ação pequena, porque é nas sementes que está a nossa origem. Lá no roçado estamos testando novas sementes, por entender a necessidade de resgatar essa questão da semente. Meu sonho é a construção da Rede de Sementes do RN, mas infelizmente é pouca a disposição de muita gente, hoje nós encontramos muitas pessoas no campo mesmo, aqui nas comunidades, que diz: Edilson a gente vai plantar aquele milho, mas só dá se for adubado. Então, esse é um trabalho que vai se concretizar está se concretizando, mas não é um trabalho fácil. Só que ou temos isso como meta nossa, ou morremos politicamente, não podemos viver na escravidão das sementes transgênicas. Temos um grupo de 50 pessoas que vem se reunindo, plantamos em uma área coletiva, com um planejamento de plantar dez tarefas2 esse ano em cada comunidade. 2 Unidade de medida de área muito utilizada por agricultores, principalmente no NE. Onde 3,6 tarefas correspondem a 1 hectare.


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Agricultura Familiar e Desenvolvimento Sustentável Xxxxxxxxxxxx xxxxxxxx xxxxxxxx xxx xxxxxxx xxxxxxxxx xxxxxxxxxxxx xxxxxx xxxxxxxx xxxxxx xxxxxxxxxxxxxxx xxxxx xxxxxxx xxxxxxxxx Por Bethânia Lima

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ormação, participação e equilíbrio. Uma tríade mínima para pensarmos e discutirmos o desenvolvimento sustentável. Parece simples, mas não é; ainda que se pense nesse tripé, é necessário pensar que o ser humano está envolvido e vivendo considerando muitos aspectos – sociais, culturais, ambientais, econômicos e tantos outros. Não adianta relacionar desenvolvimento ao crescimento econômico, não basta, é pensar de forma muito reducionista. Para considerar que a sociedade está inserida em um processo de desenvolvimento há que se considerar a soma de vários “pilares”, não é somente

Hildemar Peixoto - Assessor Fetraf/RN

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o poder econômico que garante qualidade de vida para as pessoas, independente do meio onde se está inserido. Desconsiderar também o poder de atuação e interação de cada pessoa junto ao meio, ainda é limitante. Se as pessoas não participam e não se reconhecem enquanto responsáveis pelo desenvolvimento local, é muito mais complicado. Não basta somente a vontade para agir, é preciso interagir com as forças locais. “Um elemento fundamental para o desenvolvimento é preparar as pessoas, torná-las aptas para gerir esse desenvolvimento nos seus municípios”,

defende Hildemar Peixoto, Engenheiro de Produção, e assessor da Fetraf/RN. É preciso pensar na formação e na ação, para “alimentar” nas pessoas, o poder de diagnosticar, questionar, conceber e interceder pelo que se quer para o desenvolvimento sustentável da sua comunidade. “A comunidade tem que ser pensada como ‘global’ e é preciso fomentar gestores locais pensando o que quer para a sociedade, não é só o técnico que tem que pensar isso”, afirma Hildemar. Espaços participativos que buscam fortalecer a democracia e a autonomia da sociedade civil existem, e através deles as conquistas chegam e nutrem as pessoas de esclarecimentos para que várias causas sejam debatidas. Os fóruns populares de políticas públicas funcionam em vários municípios do Rio Grande do Norte, e possibilitam que mudanças aconteçam. Paula Francisca do Nascimento, de Taipu, município a 49 km da capital, destaca que o fórum existe na cidade desde 2006 e tem o lema A serviço da verdade e da justiça. “O nosso fórum é muito atuante e luta por uma melhor qualidade de vida do povo, mostrando os direitos e deveres da população e intervindo nas políticas públicas”, afirma Paula. Em Pureza, município distante 68 km de Natal, desde 2005 também existe um fórum de políticas públicas funcionando e a cada reunião mensal, cerca de 60 pessoas participam. “O povo discute no fórum a merenda escolar, falta d’água, falta de compromisso do poder público e é aberto a toda a população do município”, conta Maria José, uma das representantes do fórum. O Fórum de Participação Popular nas Políticas Públicas (Fopp) de São Miguel do Gostoso, tem 10 anos de atuação, sendo um dos mais antigos do território Mato Grande no Rio Grande do Norte, e ainda apresenta fragilidades para o seu funcionamento, porém a união das parcerias (associações, sindicatos e Ong´s) faz com que o Fopp se mantenha atuante , e amenize as dificuldades. Projetos relacionados à agricultura familiar, educação, recursos hídricos e outras áreas já foram executados pelo Fopp. A experiência ao longo dos anos mostra que o amadurecimento da


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sociedade civil ao discutir melhorias de condições de vida, reforça a importância de trabalhar por um modelo de desenvolvimento voltado para as necessidades humanas. “Os espaços populares são interessantes, e viabilizam o surgimento das lideranças, mas não cabe ser liderança só no discurso é preciso mais”, afirma Hildemar.

Para desenvolver: mulheres e jovens precisam aparecer Ao estimular e pensar o desenvolvimento é preciso estar atento às relações humanas de forma igualitária, e reconhecer que o sistema patriarcal e machista vigora na sociedade é necessário. Para conter essa limitação, nada mais coerente do que estimular e trabalhar numa perspectiva de igualdade de gênero entre homens e mulheres, estando cientes também que a juventude é um grande grupo que precisa estar inserido nesse processo. As mulheres e a juventude tendem, devido às condições desiguais em relação aos homens, estarem em situações desfavoráveis na sociedade; algo que podemos observar através da pequena participação das mulheres e jovens nos espaços de decisões e no acesso aos recursos, de forma que tenham renda. Reconhecer essa desigual relação humana e de poder, e buscar mudanças é o ideal para o alcance de relações sustentáveis. “Em 200, eu tinha 17 anos, e tive a oportunidade de ingressar em um projeto que incentivava a juventude rural a ser protagonista em várias ações locais. Participei de cursos, capacitações, eventos e pude repassar para a comunidade o que aprendi”, diz Francimário Gomes, da comunidade de Angico de Fora, em São Miguel do Gostoso. Garantir que a juventude e as mulheres possam estar juntos, para que recebam e participem de reuniões e capacitações é importante para se sentirem preparados a ocuparem os espaços de decisões. “Considero que as etapas enfrentadas de participação e formação provocaram um nível de politização nas pessoas muito importante, esse foi um compromisso sério para a juventude do município. Atualmente, percebe-se na cidade a quantidade de jovens que es-

Francimário Horácio

tão inseridos nos espaços de decisões buscando as melhorias locais”, comenta Francimário.

“Nós” que fazem a diferença

articulação política”, comenta Bayle. Desenvolvendo projetos com parcerias em mais de um estado do Nordeste, a AVSF no Rio Grande do Norte já executou um projeto junto com a Rede Pardal, e atualmente, está envolvida no Balaio da Economia Solidária, projeto que busca fortalecer a agricultura familiar e as ações de economia solidária. As parcerias agora estão ampliadas entre Rede Pardal, Rede Xique Xique e Centro Feminista 8 de março. “Temos princípios em comum, e o nosso papel é pensar em soluções sustentáveis econômicas e sociais para a agricultura familiar”, salienta Bayle.

Sustentabilidade no campo “Se o que buscamos é um desenvolvimento que atenda, sobretudo, as questões relativas à preservação dos recursos naturais, a promoção da igualdade social, a produção de alimentos saudáveis, e a autonomia de agricultores(as) familiares, então estamos falando de um desenvolvimento que busca a sustentabilidade”, defende a Engenheira Agrônoma, Ana Paula

“Somos interdependentes, é importante se articular e estabelecer os ‘nós’”, defende Hildemar. Para ele, a ideia do trabalho em rede, e com parcerias é o que reforça a possibilidade de melhorias para a sociedade. Para Emmanuel Bayle, representante da Ong francesa Agrônomos e Veterinários Sem Fronteiras – AVSF, a busca da sinergia entre instituições parceiras é o que há de pertinente para a execução de ações que buscam a construção de “mudanças”. Atuando em 20 países (África, Ásia, América do Sul e Caribe), a AVSF busca apoiar os(as) agricultores(as) familiares através da garantia da alimentação e da geração de renda. “Segurança alimentar, geração de renda e a gestão dos recursos naturais são alguns dos nossos eixos trabalhados no campo, valorizando ainda a Emmanuel Bayle - AVSF

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Cavalheiro, Professora do Curso Técnico em Agroecologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná (IFPR). Tendo um papel fundamental na sociedade, as famílias rurais da agricultura familiar assumem o papel de vital importância para a segurança alimentar, e conseguem construir relações viáveis e de respeito com o meio ambiente. “É importante compreender que o desenvolvimento com sustentabilidade, só pode ser construído a partir de uma agricultura de base ecológica, e isto só é possível de ser alcançado através de uma agricultura familiar que tenha na terra a sua fonte de vida e (re)produção”, diz Ana Paula. Para garantir a integração ao meio ambiente, e a responsabilidade em todos os níveis de desempenho, é cada vez maior a “adesão” ao modelo agroecológico de agricultura. Pensado e discutido enquanto um resgate das práticas sustentáveis entre as pessoas e o meio ambiente, e de forma mais ética; a agroecologia consegue repassar e nutrir o que há de mais rico e sustentável para as pessoas. Reforçar e acreditar na agroecologia é apostar e garantir a segurança alimentar das famílias rurais e urbanas, possibilitar uma maior riqueza dos recursos naturais, reforçando ainda a construção de laços mais humanos para as pessoas. “Não há agricultura familiar sustentável sem relação com o poder local, é preciso ter equilíbrio”, defende Hildemar Peixoto, Engenheiro de produção, e assessor da Fetraf/RN. Ana Paula Cavalheiro - Engenheira Agrônoma

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Artigo

A participação das mulheres no desenvolvimento sustentável e no fortalecimento da agricultura familiar Por Marialda Moura

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té 1996, a AACC/RN realizou atividades envolvendo mulheres, de forma bastante pontual, em alguns momentos contando com a assessoria do Centro Feminista 08 de Março, através de oficinas sobre temas específicos como saúde, violência contra a mulher e formas de organização. As atividades realizadas pela AACC/RN no campo da gestão e organização dos assentamentos, era basicamente composta por homens, visto que as mulheres assumiam a responsabilidade com as refeições e cuidado com o ambiente, a maioria das vezes, ficavam assistindo a reunião no portão dos galpões. A AACC/RN inclui nos seus eixos programáticos e de forma sistemática o trabalho com mulheres, a partir de 1997 com o apoio e fortalecimento à organização de grupos de mulheres com vistas a sua auto-organização. Inclui nessa agenda uma série de atividades de formação voltadas para o protagonismo das mulheres, especialmente relacionadas ao desenvolvimento sustentável e fortalecimento da agricultura familiar, prolongando-se até os dias atuais. Para isso, foram iniciados projetos articulados com a linha da sustentabilidade ambiental (agroecologia, agricultura orgânica, gestão de recursos hídricos), economia solidária (consumo ético, comercialização, apoio a grupos coletivos) e democratização do poder (políticas públicas, gênero, juventude, gestão de organizações associativas) como eixos programáticos institucionais. Desse processo surge o projeto institucional “Mulheres Transformadoras” contribuindo para a ampliação da participação das mulheres nos espaços coletivos (STTR, Fóruns municipais, associações, movimento feminista, Rede Xique Xique).

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A assessoria técnica em atividades e projetos produtivos com mulheres tem orientado para a realização de experiências agroecológicas, autogestionadas tendo como perspectiva a autodeterminação das mulheres. À medida que as experiências vão sendo desenvolvidas, é possível se observar mudanças significativas na vida das mulheres, principalmente no acesso às políticas públicas, situação econômica, na tomada de decisões, no diálogo com a família e nos espaços coletivos de participação

política. Nesse sentido, a participação das mulheres na construção da gestão e da organização da Rede Xique Xique através dos núcleos de economia solidária, a participação e construção da Marcha Mundial das Mulheres através da formação política e nas ações de mobilização tem impactado sobre a vida das mulheres, a relação estabelecida com a família e nos espaços coletivos. No entanto, podemos observar várias questões no tocante a vida das


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mulheres rurais. A primeira está no cerne, no conjunto das relações socialmente construídas e de como as mulheres e homens se posicionam nessa sociedade e que tem a ver com a naturalização dos papéis sociais ditos, femininos e masculinos que estruturam e reproduzem a divisão sexual do trabalho e as desigualdades de gênero. A perspectiva apontada pode ser encontrada em vários estudos sobre a construção social das relações de gênero em que pese, a definição sobre os papéis sociais que determinam o que é ser feminino e masculino na sociedade ocidental. No que tange essa análise na realidade do meio rural, a casa e o quintal se constituem como o espaço das mulheres ou que caracterizam atividades ditas femininas e o trabalho do homem, caracterizado pelas atividades ditas masculinas. Nesse contexto, o trabalho doméstico e do cuidado recai sob a responsabilidade das mulheres, impedindo muitas vezes a mulher agricultora de participar dos espaços coletivos e de tomada de decisão, efetivamente, dificultando a busca pela sua autonomia. Outra questão a ser considerada nesse processo diz respeito a situação de violência sexista, vivenciada pelas mulheres no meio rural. O fortalecimento da luta das mulheres contra a violência sexista e uma ação que busca a construção de valores que tem como princípios básicos, o respeito às mulheres, a valorização do trabalho e a igualdade entre mulheres e homens se constitui um alicerce da práxis-feminista em que a intervenção tem sido desenvolvida. A política de organização dos grupos de mulheres tem sido uma alternativa para o enfrentamento à violência contra as mulheres. Ao que tudo indica, os grupos de mulheres parecem se construir como possibilidades históricas e estratégias de busca pela superação das desigualdades, espaços de socialização e de solidariedade entre as mulheres rurais, bem como da busca pela autonomia. Nessa perspectiva, há de se considerar a política de auto-organização dos grupos de mulheres, que em dado momento da história do feminismo, foram considerados como espaço de luta pela autonomia das mulheres quando surgem os grupos específicos como

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mola propulsora para a autoconsciência das mulheres em face da dominação masculina. Acredito que ainda hoje se constrói como possibilidades históricas e estratégias de busca pela superação das desigualdades sendo também os grupos de mulheres, espaços de socialização e de solidariedade entre as mulheres rurais. A formação das mulheres em agroecologia, economia solidária e feminismo, através da realização de oficinas, cursos e seminários, tem sido uma contribuição interessante para a realização das experiências em agroecologia. À medida que as experiências vão sendo desenvolvidas tem garantido a soberania alimentar das famílias. Ao participar de experiências agroecológicas, as mulheres assumem diretamente uma responsabilidade e o compromisso com a proposta de desenvolvimento de uma agricultura familiar sustentável e que pode garantir a soberania alimentar, cujo significado está na garantia do próprio sustento, na produção de alimentos saudáveis através do cultivo de hortas agroecológicas, criação de pequenos animais (cabras, galinhas, abelhas), quando guardam e preservam as sementes ou reutilizam e armazenam a água de chuva em cisternas. São perceptíveis os efeitos e mudanças na realidade das mulheres, dentre estas a participação das mulheres em cargos e instâncias de decisão das associações, fóruns locais e grupos; a presença das mulheres rurais nas ações de articulação e mobilização tanto no Estado como no Brasil, tem se destacado. Por uma lado, há maior compreensão das famílias em relação a importância da participação das mulheres nos espaços, o que se configura uma conquista para as agricultoras. No âmbito da assessoria à autoorganização das mulheres, temos nos apoiado através de uma metodologia de formação que tem fundamento no método construtivista e nos princípios da pesquisa-ação, na reflexão problematizadora da realidade, levantando problemas e elaborando estratégias e alternativas de superação. Marialda Moura militante da Marcha Mundial das Mulheres, e coordenadora do Projeto Brasil Local NE 1 executado pela AACC/RN.

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TEM POESIA NA TERRA Tem poesia guardada Na tapera sem ninguém Nos trilhos velhos do trem Na estação já fechada. Na caraubeira florada Coberta de amarelo Tem poesia no velho Juazeiro frondeado Na manga velha do gado No galope e no martelo. Tem poesia no tempero Da cozinha sertaneja Também nas grandes pelejas Das duplas de violeiros. Na flor alva do pereiro Perfumando o meu sertão Tem poesia no fogão Na fumaça do bueiro No aboio do vaqueiro Trazendo a rês pro mourão.

Tem poesia na lama Do aguaceiro de inverno Tem poesia no berro Da temida gaspiana Na flor branca da chanana No fruto do canapú No gosto acre do umbu No cantar da seriema No espinho da jurema E no voar do nambu. Tem poesia em tudo Que o meu sertão pronuncia No sol quente, na água fria, E até num dia sisudo. No domingo de entrudo No forró de pé-de-serra No cabrito, quando berra, Perto da casa da gente E quando nasce a semente Que a gente planta na terra.

“Tem poesia na terra” é de autoria de Francisco Morais, nascido em Parelhas/RN, o poeta viveu até os 21 anos no sítio Olho d´Água, no município. Licenciado em Letras, é mestre em Estudos da Linguagem e professor de Língua Portuguesa, na rede pública estadual de Ensino.

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