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DO GELNE GRUPO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS DO NORDESTE
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ISSN 1517-7874 versão impressa ISSN 2236-0883 versão online Revista do Grupo de Estudos Linguísticos do Nordeste
Vol. 14
Números 1/2
2012
Todos direitos reservados ao GELNE Revista do GELNE / Grupo de Estudos Linguísticos do Nordeste - Vol. 14 - Números 1/2 - Natal: UFRN, 2012 (publicado em 2013). Semestral ISSN 1517-7874 – versão impressa ISSN 2236-0883 – versão online 1. Língua - Linguística - Literatura - Periódicos I. Grupo de Estudos Linguísticos do Nordeste
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GELNE
GRUPO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS DO NORDESTE
CONSELHO EDITORIAL Antonia Dilamar Araújo (UECE) Ataliba Teixeira de Castilho (USP) Carmen Lúcia Barreto Matzenauer (UCPel) Célia Marques Telles (UFBA) Cláudia Roberta Tavares Silva (UFRPE) Dermeval da Hora (UFPB) Erotilde Goreti Pezatti (UNESP) Ingedore Vilaça Koch (UNICAMP) Iveuta de Abreu Lopes (UESPI\UFPI) Izete Lehmkuhl Coelho (UFSC) Janaina Weissheimer (UFRN) José S. Magalhães (UFU) Júlio César Rosa de Araújo (UFC) Jussara Abraçado (UFF)
Maria Aparecida Barbosa (USP) Maria do Socorro Simões (UFPA) Maria Lobo (Universidade Nova de Lisboa) Raquel Meister Ko. Freitag (UFS) Renato Basso (UFSCar) Roberval Teixeira e Silva (Universidade de Macau) Ruth Lopes (UNICAMP) Sônia Maria Van Dijck Lima (UFPB) Stella Maris Bortoni-Ricardo (UNB) Sueli Cristina Marquesi (PUC-SP) Valdemir Miotello (UFSCar) Valéria Monaretto (UFRGS) Vanda Elias (USP) Vanderci Aguilera (UEL)
COMITÊ EDITORIAL Editor Editora Adjunta Prof. Dr. Marco Antonio Martins Profa. Dra. Sulemi Fabiano Campos Universidade Federal do Rio Grande do Norte Universidade Federal do Rio Grande do Norte
REVISÃO E NORMATIZAÇÃO DE TEXTOS Prof. Dr. Marco Antonio Martins Maria Joyce Paiva Medeiros/bolsista do GELNE
DIAGRAMAÇÃO E PROJETO GRÁFICO Ismênio Souza
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – Av. Salgado Filho, nº 3000, sala 309 Campus Universitário/CCHLA - CEP: 59.078-970 Fone/Fax: (84) 3215-3579 www.gelne.org.br
SUMÁRIO COMPORTAMENTO VARIÁVEL DA AQUISIÇÃO DA CODA MEDIAL POR APRENDIZES DE INGLÊS COMO L2 Luana Anastácia Santos de Lima, Rubens Marques de Lucena
9 JOAQUIM MATTOSO CÂMARA JR.: UMA REFERÊNCIA PARA OS ESTUDOS FONÉTICO-FONOLÓGICOS DO PORTUGUÊS DO BRASIL (PB) Carla Maria Cunha, Aldir Santos de Paula
27 O ADVÉRBIO AGORA EM PROCESSO DE GRAMATICALIZAÇÃO: É PRECISO ENSINAR QUE/COMO/POR QUE A LÍNGUA MUDA Camilo Rosa Silva, Maria José de Oliveira
49 CARTOGRAFAÇÃO DE DADOS TOPONÍMICOS NO BRASIL: PERSPECTIVA HISTORIOGRÁFICA Márcia Zamariano
69 O QUE RASURAM OS ALUNOS QUANDO ESCREVEM A DOIS UM ÚNICO TEXTO? QUESTÕES EM TORNO DA RASURA E DA ESCRITURA COLABORATIVA Cristina Felipeto
91 O RESUMO ACADÊMICO: TEXTUALIDADE E ENSINO Clemilton Lopes Pinheiro, Jaqueline Andréa Medeiros Pereira
109 PUBLICIDADE E SOCIEDADE: UM DIÁLOGO EM DUAS ÉPOCAS Glaucia Muniz Proença Lara
123 SEQUÊNCIA DIDÁTICA PARA A LEITURA DE CORDEL EM SALA DE AULA Maria Aparecida Garcia Lopes-Rossi
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ALGUNS FUNDAMENTOS DA TEORIA ENUNCIATIVA DE A. CULIOLI Elizabeth Gonçalves Lima Rocha
165 ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO E MÍDIA: ESTUDO DAS ERRATAS EM REVISTAS DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA E SUA (NÃO) APLICABILIDADE EM SALA DE AULA Cleide Emília Faye Pedrosa, Paulo Sérgio da Silva Santos
187 MODALIDADE DEÔNTICA NA MÍDIA RADIOFÔNICA: UMA ANÁLISE BASEADA NA GRAMÁTICA DISCURSIVO-FUNCIONAL Nadja Paulino Pessoa-Prata
207 FERRAMENTAS POTENCIALIZADORAS DA AÇÃO DOCENTE: SEQUÊNCIAS DIDÁTICAS E MONITORAMENTO DE CAPACIDADES DE LINGUAGEM Adair Vieira Gonçalves, Juliana Sanches Niéri
233 METAS DE QUALIDADE E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE: ANÁLISE DA PRODUÇÃO DE SENTIDO EM UM DECRETO PRESIDENCIAL Bruno Deusdará
259 PÊ, KÃM, MÃ E OUTRAS POSPOSIÇÕES DA LÍNGUA PARKATÊJÊ Marília de Nazaré de Oliveira Ferreira
285 “TONS” DE JOBIM: O CANCIONEIRO Daniel de Oliveira Gomes
295 POEMA PROCESSO E COMPLEXIDADE Hilda Gomes Dutra Magalhães
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COMPORTAMENTO VARIÁVEL DA AQUISIÇÃO DA CODA MEDIAL POR APRENDIZES DE INGLÊS COMO L2 VARIATIONIST ANALYSIS OF THE ACQUISITION OF WORD MEDIAL CLUSTERS BY L2 LEARNERS OF ENGLISH Luana Anastácia Santos de Lima Universidade estadual da Paraíba Rubens Marques de Lucena Universidade Federal da Paraíba RESUMO O presente artigo busca investigar a ocorrência da epêntese vocálica medial na produção de inglês como L2 (object > ob[i]ject). Este fenômeno fonológico tem sido atestado em vários trabalhos que dão conta de explicar sua aplicação em L2 (CARDOSO, 2005; PEREYRON, 2008; SCHNEIDER, 2009; LUCENA & ALVES, 2009; 2010), cujos resultados originaram as hipóteses lançadas para cada variável controlada em nossa análise. Para tanto, utilizamos uma metodologia sociolinguisticamente orientada (LABOV, 1975; LABOV et al., 2006 [1968] e 2008 [1972]), a qual contou com a produção de 18 aprendizes da Paraíba que foram submetidos à leituras de frases e textos em inglês. Os dados de produção foram gravados e as ocorrências do fenômeno foram quantificadas, sendo, em seguida, codificadas para receber um tratamento estatístico pelo programa GoldVarb X (SANKOFF, TAGLIAMONTE & SMITH, 2005). Os resultados das análises estatísticas mostraram que, de forma geral, o fenômeno da epêntese vocálica exibiu baixos índices de aplicação do fenômeno. A partir dos resultados obtidos, constatamos que as variáveis selecionadas como relevantes para a ocorrência do fenômeno foram proficiência na língua, contexto fonológico seguinte e contexto fonológico precedente. Palavras-Chave: Epêntese vocálica medial; aquisição de L2; variação linguística.
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ABSTRACT This paper aims at investigating the occurrence of the epenthetic vowel in word medial clusters in the speech of English as L2 (as in object > ob[i]ject). This phonological phenomenon has been attested in several works that explain the phenomenon in L2 (CARDOSO, 2005; PEREYRON, 2008; SCHNEIDER, 2009; LUCENA & ALVES, 2009; 2010), whose results helped us to formulate the hypothesis in our research. For this, we used a variationist methodology (LABOV, 1975; LABOV et al., 2006 [1968] and 2008 [1972]), based on 18 informants, who were asked to read sentences and texts in English. The speech data were recorded and the phenomenon occurrence was quantified and coded in order to be statistically analyzed using GoldVarb X (SANKOFF, TAGLIAMONTE & SMITH, 2005). The analysis results revealed that the epenthetic vowel showed low frequency. Proficiency level, following phonological context and preceding phonological context were the variables selected by the program. Keywords: Epenthetic vowel; L2 aquisition; linguistic variation.
INTRODUÇÃO Ao longo dos anos de 1960 e 1970 verificou-se um significativo desenvolvimento de dois ramos da Linguística, sendo eles o estudo quantitativo da variação linguística e a investigação sistemática da aquisição de L2. Conforme afirma Bayley (2005), a motivação para a convergência dessas duas áreas de estudo encontra-se no objetivo comum entre ambas de entender o comportamento das variáveis linguísticas, bem como entender o sistema que é construído pelo aprendiz de uma L2. Os estudos de L2 que combinam, entre outros métodos, análises variacionistas podem fornecer um melhor entendimento a respeito de como os aprendizes adquirem recursos necessários para manipular efetivamente a estrutura da L2, destacando, sobretudo, o possível contato entre L1 e L2. Uma das observações mais constantes durante o processo de aquisição de uma língua estrangeira é esse contato entre as duas línguas, o qual ocorre sob a forma de transferência linguística e que parte da L1 em direção à L2. Esse processo geralmente é mediado por fenômenos fonológicos ocorridos em um dos sistemas linguísticos envolvidos. Em se tratando do português brasileiro, temos, entre outros fenômenos que ilustram esse processo de transferência, a epêntese vocálica, responsável por estabilizar a produção acústico-articulatória de
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encontros consonantais constituídos por codas complexas, os quais, para serem produzidos de acordo com a fonotática do português, precisam estar apoiados em uma vogal. Assim, os aprendizes tendem a repetir o que é aplicado na L1, evidenciando a influência que um sistema linguístico exerce sobre a produção do outro. Tendo em vista essa constatação, o presente artigo analisa o fenômeno da epêntese vocálica medial nas produções de aprendizes de inglês como L2. Pretende-se, nesta perspectiva, investigar em que medida esses aprendizes inserem vogais entre encontros consonantais no inglês como L2, de forma a produzir construções do tipo object > ob[i]ject. Diversos estudos tratam da investigação deste fenômeno (PEREYRON, 2008; SCHNEIDER, 2009; LUCENA & ALVES, 2009, 2010; CAGLIARI, 2010). No entanto, a maior parte destes trabalhos está concentrada no Sul do Brasil, com exceção da pesquisa realizada por Lucena & Alves (2009, 2010) que abrange corpora do Rio Grande do Sul e da Paraíba, o que despertou o interesse de desenvolver um estudo analítico do comportamento da epêntese vocálica medial no Nordeste brasileiro. De acordo com Roach (2002, p. 25), a epêntese é caracterizada como um fenômeno redundante, haja vista que nesse processo o falante tende a inserir um elemento fonológico desnecessário e que não acrescenta informação alguma aos outros sons. O referido autor ainda admite que tal fenômeno geralmente ocorre quando há a adaptação de vocábulos de uma língua para a outra, cujas regras fonotáticas não permitem uma determinada sequência de sons, ou mesmo quando um falante está lidando com outra língua fonotaticamente diferente da sua língua nativa. De acordo com Coutinho (1976.), esses tipos de construção remontam à estrutura do latim, perpassando, sobretudo, o português arcaico, até chegar ao português atual, como percebe-se em gruppa > garupa; bratta > barata; fevrairo > fevereiro, nos quais a epêntese desfaz o grupo de consoantes através da intercalação de uma vogal. Bisol (1999, p. 735) também advoga esta perspectiva, afirmando que a epêntese é um processo vivo que se estende do latim vulgar a nossos dias, tendo alguns exemplos nítidos da consagração desta vogal na escrita, tais como estrela e eslavo. Nesse contexto, percebia-se em alguns vocábulos uma grafia com encontros consonantais compostos de elementos de traços
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complexos, isto é, palavras que possuíam consoantes que geralmente não eram aceitas em posições de coda. Nesses casos, a única solução fonologicamente sugerida, aceita e mais bem sucedida é a intercalação da vogal, que, de acordo com a referida autora, não pode, de forma alguma, ser fonemicamente desprezada, haja vista que em alguns casos é quase que pronunciado conscientemente, passando a ser suprimida apenas no registro formal da língua culta. Bisol (1999, p. 729) entende a epêntese como parte do mecanismo desse processo de silabação, compondo os níveis lexicais e pós-lexicais, e que se faz responsável, motivada pelo princípio do licenciamento prosódico, pelo preenchimento dos nós vocálicos por meio do que a mesma determina como “default” ou assimilação, de forma a configurar a sílaba para não violar os princípios universais ou convenções de determinadas línguas. A literatura da área, portanto, tem mostrado que a epêntese vocálica é uma estratégia bastante usada no português brasileiro, a qual acaba, também, sendo adotada por aprendizes de inglês como L2 que realizam produções do tipo empty > emp/i/ty, object > ob/i/ject, advise > ad/i/vise, mesmo esse tipo de produção sendo evitado em língua inglesa, caracterizando-se como o processo de transferência, conforme algumas das teorias postuladas no presente artigo (ALVES, 2008; LAMPRECHT [et al.], 2009; LUCENA & ALVES, 2009, 2010). A epêntese, portanto, funciona justamente como um dos fenômenos fonológicos variáveis que bem representa este processo de transferência da L1 para L2, a qual evidencia-se na produção de falantes aprendizes sob forma de interlíngua. Vale salientar que esta interlíngua emerge, principalmente, nos anos iniciais de aquisição da L2, caracterizando-se como uma estratégia para adequar a estrutura silábica do português brasileiro à do inglês, haja vista que o molde silábico de ambas as línguas são diferentes. De acordo com as pesquisas realizadas por Schneider (2009, p. 38) “a realização da epêntese na interlíngua parece indicar, portanto, que o processo de aquisição do inglês como L2 faz uso das mesmas condições de boa-formação para sílaba presentes na L1 (PB)”, uma vez que a língua inglesa, em si, aceita determinados elementos que não são bem aceitos no PB em posição de coda. Todavia, à medida que o aprendiz segue aprimorando seu grau
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de maturidade linguística em relação à L2, este falante-aprendiz passa a desenvolver certa consciência de que fenômenos como esses distanciam, em algum ponto, sua produção de um falar nativo. Assim, essa consciência adquirida pelo aprendiz o fará construir, cognitivamente, meios de internalizar traços os mais semelhantes possíveis do nativo e processá-los não como o fariam na L1. Pelo fato de apresentar um caráter variável1, o fenômeno da epêntese viabiliza, através de estudos e pesquisas, a avaliação, por parte do sociolinguista, de quais fatores linguísticos e extralinguísticos influenciam na inserção de vogais epentéticas na produção dos falantes-aprendizes. 1. Metodologia Para realizar a coleta de dados que nos forneceu o material para analisar o comportamento da epêntese medial entre os falantes, contamos com a participação de 18 informantes. Os participantes da pesquisa eram alunos de instituições superiores públicas – UEPB/UFPB, sendo 12 do curso de Letras, 2 do curso de Administração, 1 do curso de Psicologia, 1 do curso de Biologia, 1 do curso de Direito e 1 do curso de Odontologia. No entanto, todos são (já foram) estudantes de inglês como L2. Todos os informantes foram submetidos ao Oxford Placement Test (ALLAN, 2004), que é validado em mais de 30 países, e o qual certificou o nível de proficiência dos informantes participantes da pesquisa. Após serem agrupados por níveis, cada um dos informantes participantes da pesquisa foi submetido à leitura de material em L2, que contemplava construções nas quais era possível ocorrer o fenômeno da epêntese. As palavras foram inseridas em frases-veículo em L2 (The Word is...) e apresentadas aos informantes através de slides exibidos no aplicativo PowerPoint. Estas palavras eram constituídas por codas com obstruintes labiais /p/, /b/, coronais /t/, /d/ e dorsais /k/, /g/. Para cada segmento, foram escolhidas 4 palavras, totalizando 24 vocábulos. Com o intuito de despistar os informantes quanto ao fenômeno analisado em nosso estudo, inserimos 6 palavras distratoras. Vale salientar que, na produção dos indivíduos em L2, a inserção vocálica não exibe um caráter variável da mesma forma que exibe no PB, haja vista que, neste contexto, esse processo se apresenta como um reflexo da variação do referido fenômeno na L1 desses indivíduos.
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Foram elaborados, também, pequenos textos envolvendo as palavras, para que pudéssemos investigar a influência de contextos maiores e menores na produção de epêntese, tanto em L1 quanto em L2. Desse modo, considerando as 24 palavras constituintes do corpus, fizemos a distribuição de 8 palavras em três textos, desconsiderando, nesse momento, as 6 palavras distratoras. No total, o corpus foi composto da leitura de 90 frases e 3 textos em L2, por falante. Nessa amostra, seguiu-se a técnica da seleção aleatória estratificada com base no sexo dos informantes (feminino e masculino) e no nível de proficiência na L2 dos mesmos (básico, intermediário e avançado). As leituras das frases e textos elaborados com ênfase no fenômeno linguístico analisado neste trabalho foram coletadas/gravadas com o auxílio do software Audacity 1.3 Beta (MAZZONI, 2011), recebendo, em seguida, tratamento estatístico pelo software GoldVarb X (SANKOFF, TAGLIAMONTE & SMITH, 2005). 2. Variáveis controladas No presente estudo, será considerada como variável dependente o fenômeno da epêntese vocálica medial que se caracteriza pela inserção de uma vogal entre elementos consonantais, implicando duas possibilidades de classificação: a aplicação da regra (ob/i/ject – inserção da vogal) ou a não aplicação da regra (object – não inserção da vogal). Para fins de melhor controle do fenômeno, dividimos as variáveis independentes em linguísticas e extralinguísticas. As variáveis linguísticas foram especificadas a partir de trabalhos realizados anteriormente – Pereyron (2008), Schneider (2009) e Lucena & Alves (2009, 2010), verificando se as mesmas se fazem relevantes para a manutenção ou inibição do fenômeno e em que medida isto se aplica, corroborando ou refutando os resultados dos trabalhos supracitados. As variáveis controladas foram: a) contexto fonológico precedente: refere-se ao segmento consonantal que se encontra em posição de coda travando a sílaba, antecedendo a vogal epentética, quando esta ocorre. Para tanto, dentre os contextos de codas, analisamos os contextos labiais /p/, /b/, coronais /t/, /d/ e dorsais /k/, /g/. Assim, utilizamos palavras como empty, compartment e victim. Trabalhos
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anteriores como os de Pereyron (2008) e Schneider (2009), por exemplo, mostram, de forma semelhante, que o contexto dorsal, especificamente a oclusiva dorsal /g/, é o que mais propicia a ocorrência de epêntese, apresentando altas taxas de produções de inserção vocálica diante deste contexto. b) contexto fonológico seguinte: refere-se ao segmento consonantal que se posiciona logo após a consoante perdida em coda, quando não ocorre o fenômeno da epêntese, ou após a vogal epentética, quando o fenômeno é aplicado. Assim, os segmentos analisados no contexto seguinte foram, igualmente ao contexto precedente, labiais /v/, /m/, coronais /t/, /d/, /s/, /ʒ/, /ʃ/, /n/ e dorsais /k/. Os estudos empreendidos nesta perspectiva – Pereyron (op. cit.) e Schneider (op. cit.) mostram que os contextos coronais, em ambos, lideraram os índices de inserção vocálica, como em [n], [s], [ʒ], [k], sendo seguidos das labiais [f], [v], [m]. c) tipo de instrumento: foram utilizados leitura de frases e leitura de textos a fim de coletar dados para análise. Na análise empreendida por Pereyron (2008), controlou-se a variável tipo de instrumento, embora a mesma não tenha sido selecionada em nenhuma rodada da análise perceptual. Sua hipótese para esta variável era a de que a aplicação da epêntese fosse menor em dados provenientes da lista de palavras, já que esta acarreta uma produção mais elaborada, na qual o falante-aprendiz encontra-se atento ao que está lendo (LABOV, 2008 [1972], p. 247). As variáveis extralinguísticas controladas foram: a) sexo: há uma série de trabalhos consistentes de caráter variacionista que associam a variável sexo a questões linguísticas (PAIVA, 2003; CAMARA JR., 2007; LABOV, 2008 [1972]) e que trabalham com essa variável na perspectiva de que as mulheres lideram o uso da forma padrão, mostrando-se sensíveis às formas de prestígio. Já os homens, por outro lado, mostram-se propensos a liderarem o uso de formas desprestigiadas. Labov (2008 [1972], p. 281) advoga, neste sentido, que “na fala monitorada, as mulheres usam menos formas estigmatizadas do que os homens e são mais sensíveis do que os homens ao padrão de prestígio”.
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b) nível de proficiência na língua: esta variável contempla três níveis de proficiência do informante, sendo eles, básico, intermediário e avançado, com o objetivo de verificar em quais desses níveis o aprendiz aplicará mais a regra da epêntese. Os dados de análise dos trabalhos de Lucena & Alves (2009; 2010) revelam que o nível de proficiência dos informantes foi selecionado como uma das variáveis relevantes nas rodadas realizadas. Seus resultados mostram que quanto mais básico o nível de proficiência do aprendiz, mais próximas as suas produções serão do sistema da L1. 3. Resultados O percentual geral do fenômeno da epêntese vocálica em inglês como L2 apresenta um total de 1610 ocorrências, entre as quais 237 são de aplicações do fenômeno, apresentando um índice percentual de 14, 7 %, e 1373 de não aplicação com um percentual de 85, 3 %. No geral, já esperávamos que esse percentual fosse atingido, uma vez que temos a maioria dos informantes do curso de Licenciatura Plena em Letras, o que pode resultar em um conhecimento mais detalhado a respeito da estrutura silábica da língua inglesa, noção essa advinda das aulas da disciplina Fonética e Fonologia de Língua Inglesa. Alves (2008, p. 123) corrobora esta perspectiva, afirmando que mesmo alguns informantes de sua pesquisa tendo sido apontados pelo teste como pertencentes a um nível elementar de proficiência na L2, tais aprendizes não poderiam ser completamente vistos como iniciantes em seus estudos de L2. De acordo com o referido autor, isso se deve ao fato de estes aprendizes serem/terem sido acadêmicos do curso de Letras – Habilitação Língua Inglesa e receberem, semanalmente, uma grande exposição à língua estrangeira, o que constitui, segundo Alves (op. cit.), uma possível explicação para os altos índices de produção semelhante ao falar nativo, em seus dados. Tomando como base outros trabalhos, como o de Schneider (2009) realizado no Sul do Brasil, encontramos valores próximos aos nossos. Em sua análise, o referido autor também constatou um pequeno índice de aplicação do fenômeno (15,5 %), sendo levemente maior que o nosso. Este resultado não nos surpreende, já que grande parte dos estudos desenvolvidos no Sul do país revela que falantes gaúchos sentem-se mais à vontade com a produção de codas, devido a um fenômeno conhecido
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como Afrouxamento da Condição de Coda (ACC), muito marcado no dialeto porto alegrense (LUCENA & ALVES, 2009; 2010). Abaixo, são discriminadas as variáveis independentes submetidas à análise e selecionadas: Quadro 1 – Grupos selecionados na rodada Grupos Analisados sexo proficiência na lingua tipo de instrumento contexto fonológico seguinte contexto fonológico precedente
Grupos Selecionados proficiência na língua contexto fonológico seguinte contexto fonológico precedente – –
Novamente, todas as variáveis foram controladas, dentre as quais apenas três foram selecionadas como relevante para os dados de L2 – proficiência na língua, contexto fonológico seguinte e contexto fonológico precedente, sendo essas o foco da discussão que levantamos a seguir. A variável proficiência na língua foi a primeira selecionada como estatisticamente relevante na rodada dos dados. Nossa hipótese inicial para esta variável era de que quanto mais avançado o nível de proficiência do aprendiz na língua, menor o índice de aplicação de inserção vocálica nas produções desses falantes. A tabela a seguir mostra os valores percentuais encontradas para os dados dessa variável: Tabela 1 – Proficiência na língua Fatores Básico Intermediário Avançado Total
Apl./Total 104/521 99/533 34/556 237/1610
% 20 18,6 6,1 14,7
Peso Relativo 0,62 0,60 0,29 –
Input: .11 Significância: .004 Os resultados expostos na tabela acima demonstram que há um índice de aplicação de 20 % e peso relativo de 0,62 para o nível básico, e um
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percentual de 18,6 % e peso relativo de 0,60 para o nível intermediário, ao passo que aprendizes de nível avançado exibem um valor acentuadamente menor no percentual de manutenção do fenômeno que é de 6,1 % e peso relativo de 0,29. A partir dos dados expostos, percebe-se que os índices de aplicação do fenômeno são mais recorrentes entre aprendizes de nível básico e intermediário, apresentando percentuais de 20 % e 18,6 % e pesos relativos de 0,62 e 0,60, respectivamente. Note-se que tais resultados são bem próximos, confirmando, portanto, que a ocorrência da epêntese vocálica está diretamente ligada ao nível de proficiência, conforme já esperávamos. Os resultados de outros trabalhos, tais como os de Alves (2009, p. 224), também confirmam o que presumimos a partir de nossos dados, dado o fato de que o referido autor evidencia que processos como a epêntese vocálica são características dos níveis mais elementares de aquisição de L2. Estes resultados ratificam a perspectiva de que em estágios iniciais os aprendizes ainda estão recebendo os inputs necessários para maturar cognitivamente as informações que estão recebendo sobre a L2. Assim, enquanto as informações não estiverem maturadas, a tendência natural é de que estes aprendizes se apoiem em construções advindas da L1, principalmente quando se encontram diante daquelas representadas por segmentos complexos de serem produzidos. Desta forma, temos que o fenômeno da epêntese vocálica ilustra adequadamente este processo a partir do qual, clusters passíveis de serem encontrados apenas no inventário silábico do inglês e não do português apresentam uma estrutura que viola sua fonotática e tornam-se, por isso, difíceis de serem produzidos. De acordo com Ré (2006, p. 102), essa é uma situação inevitável, sobretudo quando se consideram os primeiros momentos de aprendizagem de uma L2, em que a língua de origem tende a aparecer de forma clara nas produções dos aprendizes, deixando vestígios de sua estrutura. No entanto, em se tratando de níveis mais avançados, temos aprendizes proficientes que geralmente exibem um nível de competência mais elevado na L2 e refutam construções mais próximas à L1 em suas produções. Logo, presume-se que o tempo de contato destes aprendizes com a L2 pressupõe competência para lidar com estruturas mais elaboradas, evitando ao máximo a transferência
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de elementos de L1 para L2. Nossa discussão a respeito do comportamento desta variável vem, mais uma vez, a corroborar os dados de trabalhos como os de Cardoso (2005), Pereyron (2008), Schneider (2009), entre outros encontrados na literatura da área, confirmando o indício de que o nível de proficiência se mostra um importante fator estreitamente ligado à aplicação do fenômeno da epêntese vocálica nos dados de língua inglesa. O fator contexto fonológico seguinte foi o segundo selecionado pelo software GoldVarb X (SANKOFF, TAGLIAMONTE & SMITH, 2005) como relevante para a aplicação do fenômeno da epêntese vocálica. Com base nas pesquisas realizadas no Rio Grande do Sul por Pereyron (2008) e Schneider (2009), levantamos a hipótese de que os contextos coronais e/ou labiais favoreceriam a manutenção da vogal epentética, mostrando-se como os mais propícios para o fenômeno. Em seguida, serão expostos os resultados para cada variante considerada nesta variável: Tabela 2 – Contexto fonológico seguinte Fatores Labial Coronal Total
Apl./Total 115/419 122/1191 237/1610
% 27,4 10,2 14,7
Peso Relativo 0,70 0,42 –
Input: .11 Significância: .004 Desse modo, como é possível observar na tabela, temos, mais uma vez, que o contexto labial sobrepõe-se ao coronal, exibindo um percentual de 27, 4 % e um peso relativo de 0,70 de aplicação da epêntese vocálica, ao passo que o coronal exibe um percentual de 10,2 % e um peso relativo de 0, 42. O subfator dorsal foi excluído desta terceira rodada dos dados de L2 pela detecção de ocorrência de knockout, em que obtivemos 0 % de aplicação de epêntese vocálica em quatro ocorrências do contexto dorsal [k] e [g]. Assim, pareceu-nos mais sensato, neste caso, proceder à eliminação desse fator, trabalhando apenas com os fatores labiais e dorsais.
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Analisando os dados do quadro acima, procedemos à constatação imediata de que os fatores labiais são os mais influentes para manutenção da inserção vocálica. Como mencionamos nessas últimas rodadas, apesar de o contexto labial ter sido selecionado como o mais relevante, não se pode perder de vista que a maior parte dos contextos anteriores apresenta uma coronal em posição precedente, o que fortalece mais ainda a tese de que elementos que possuem traços [+ coronal] oferecem um ambiente favorável para a ocorrência do fenômeno da epêntese vocálica. Ecoando Bisol (1999, p. 733), partimos do pressuposto de que o fenômeno da epêntese vocálica caracteriza-se, em determinados contextos, pelo processo de expansão da coronalidade, no qual há o espraiamento do elemento da coda silábica, que preenche o núcleo vazio. Assim, o que ocorre é a incorporação de um novo elemento através da expansão da coronalidade, mecanismo esse que é o responsável pela criação da nova sílaba. De acordo com a referida autora, esse é o recurso preferido pelos usuários da língua portuguesa para desfazer os encontros consonantais complexos. Neste caso, a partir dos resultados que encontramos em nossos dados, podemos afirmar que os aprendizes utilizaram tal recurso para modificar os clusters encontrados na língua inglesa, a fim de facilitar a produção dos mesmos em L2. Estes pontos elencados por Bisol (op. cit.) retratam, em parte, os dados que obtivemos e a hipótese que levantamos, já que mesmo não sendo formalmente selecionado, o contexto coronal se fez presente nos dados do contexto labial, o qual foi estatisticamente selecionado. O fator contexto fonológico precedente foi a terceira e última variável estatisticamente selecionada pelo GoldVarb X (op. cit.) como relevante para a aplicação do fenômeno da epêntese vocálica em L2. Para procedermos a sua análise, conforme estabelecido anteriormente, trabalhamos com os mesmos fatores – labial, coronal e dorsal, analisados em posição de coda. Tendo em vista os resultados encontrados na literatura da área a partir da qual nos pautamos (PEREYRON, 2008; SCHNEIDER, 2009), formulamos nossa hipótese no sentido de que o fator dorsal seria o mais propício para a ocorrência da epêntese vocálica medial. A tabela a seguir apresenta os resultados encontrados para os fatores controlados a partir desta variante:
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Tabela 3 – Contexto fonológico precedente Fatores Labial Coronal Dorsal Total
Apl./Total 49/562 125/556 63/492 237/1610
% 8,7 22,5 12,8 14,7
Peso Relativo 0, 40 0, 53 0,56 –
Input: .11 Significância: .004 Ao observar a tabela 3, percebemos que os dados obtidos nesta variável corresponderam a nossa expectativa, visto que já esperávamos encontrar o fator dorsal como o mais favorável para a aplicação do processo de inserção vocálica, com um percentual de 12,8% de aplicação e peso relativo de 0,56. O fator labial, todavia, se mostrou menos propenso à ocorrência da epêntese, revelando um percentual de aplicação de 8,7 % e peso relativo de 0,40. O fator coronal, por sua vez, exibiu um percentual de 22,5 % e peso relativo de 0,53. Nossos resultados confirmam nossa hipótese de que o contexto dorsal mostra-se com um ambiente mais favorável à epêntese vocálica medial, corroborando as constatações das pesquisas realizadas no Rio Grande do Sul, também envolvendo a epêntese medial. Em Schneider (2009), as dorsais do tipo [g], na posição precedente em língua inglesa, mostram-se intimamente relacionadas à epêntese medial. No entanto, não se pode perder de vista que, mesmo não sendo selecionada como relevante, a coronal também se mostrou relativamente equiparada à dorsal em termos de aplicação do fenômeno, exibindo um peso relativo acima do ponto neutro, e ratificando a estreita relação que este fator estabelece com o fenômeno. Isso mostra que mesmo o fator dorsal parecendo ser bem mais aceito pelos aprendizes em suas interlínguas, a coronal também se manifesta da mesma forma, tendo esse fato ocorrido em todas as rodadas empreendidas. Assim, podemos afirmar que, em língua inglesa, as dorsais em posição de coda se mostram mais complexas de serem produzidas, passando a ser um dos últimos segmentos a serem adquiridos pelo aprendiz e o mais passível de ocasionar a ocorrência de vogal epentética. Huf & Alves (2010,
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p. 20) chegaram a resultados semelhantes aos nossos em sua pesquisa e afirmam que ocorrências de epêntese após dorsal parecem sugerir que a sequência /dorsal + coronal/ se mostra mais dificultosa para o aprendiz do que o encontro /labial + coronal/. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente artigo teve por objetivo descrever como ocorre o fenômeno da epêntese vocálica medial em L2 (língua inglesa) de forma a investigar as variáveis linguísticas e extralinguísticas que influenciam a ocorrência da epêntese na fala de aprendizes paraibanos de inglês como L2. Por se tratar de um trabalho sociolinguisticamente orientado (LABOV, 1975; LABOV et al., 2006 [1968] e 2008 [1972]), utilizamos uma metodologia de caráter quantitativo, a partir da qual coletamos dados de produção de 18 informantes. A partir dos resultados obtidos, pode-se perceber que o fenômeno da epêntese medial não se sobressaiu em nossos dados, levando-nos a crer que a produção dos nossos informantes se mostrou em um estágio de desenvolvimento avançado, dispensando o uso da epêntese para desfazer as codas complexas. De acordo com os dados obtidos, a variável nível de proficiência na língua foi a primeira selecionada. Este fato confirmou nossas hipóteses de que o nível de proficiência do aprendiz é um importante fator que influencia no comportamento do fenômeno da epêntese, visto que quanto mais avançado o nível de proficiência apresentado pelo aprendiz, menor a incidência de aplicação de inserção vocálica (PEREYRON, 2008; LUCENA & ALVES, 2009; 2010). Em relação à variável contexto fonológico seguinte, o fator labial se sobressaiu em relação aos demais. Nossa hipótese foi confirmada parcialmente, já que esperávamos os fatores coronais e labiais como os contextos que exerceriam maior influência na ocorrência da epêntese vocálica (PEREYRON, 2008; SCHNEIDER, 2009). Através dos resultados encontrados, percebemos que, na maioria dos vocábulos em que tínhamos uma labial no contexto seguinte, presenciamos uma coronal na posição de coda, levando-nos a concluir que os traços coronais revelam traços favoráveis à aplicação do fenômeno.
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Para a variável contexto fonológico precedente, os resultados encontrados refutaram a hipótese estabelecida, na qual esperava-se que o fator labial favorecesse a aplicação do fenômeno (PEREYRON, 2008; SCHNEIDER, 2009). No entanto, o fator coronal foi o que se manifestou favoravelmente em torno da aplicação do fenômeno. Este resultado ratificou o que encontramos na rodada anterior, salientando que o compartilhamento do traço coronal com os demais elementos vizinhos culmina na aplicação da epêntese vocálica. Fica evidente, portanto, que elementos formados por esses traços formam codas mais complexas e difíceis de serem produzidas pelos aprendizes. De forma geral, também observamos algumas divergências entre o comportamento de algumas variáveis selecionadas como menos favoráveis ao processo em relação aos trabalhos citados, sobretudo aos desenvolvidos no Rio Grande do Sul que concentram a maior gama de trabalhos nesta área (PEREYRON, 2008; SCHNEIDER, 2009; LUCENA & ALVES, 2009; 2010). A este fato, atribuímos explicações de ordem metodológica para dar conta dessas divergências. Esperamos, pois, que nosso estudo tenha somado aos outros já existentes, podendo, de alguma forma, contribuir para um mapeamento mais amplo não apenas do fenômeno da epêntese vocálica, mas do processo de transferência que ocorre durante o processo de aquisição de L2. REFERÊNCIAS ALLAN, Duff. Oxford Placement Test 1. Oxford: Oxford University Press, 2004. ALVES, Ubiratã Kickhöfel. A aquisição das sequências finais de obstruintes do inglês (L2) por falantes do Sul do Brasil: análise pela via teoria da otimidade. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2008. _______. Consciência dos aspectos fonéticos/fonológicos da L2. In: LAMPRECHT, Regina Ritter [et al.]. Consciência dos sons da língua: subsídios teóricos e práticos para alfabetizadores, fonoaudiólogos e professores de língua inglesa. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009.
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JOAQUIM MATTOSO CÂMARA JR.: UMA REFERÊNCIA PARA OS ESTUDOS FONÉTICO-FONOLÓGICOS DO PORTUGUÊS DO BRASIL (PB) JOAQUIM MATTOSO CAMARA JR.: A REFERENCE FOR THE PHONETIC – PHONOLOGICAL STUDY FROM PORTUGUESE LANGUAGE OF BRAZIL (PB) Carla Maria Cunha1 Universidade Federal do Rio Grande do Norte Aldir Santos de Paula2 Universidade Federal de Alagoas RESUMO Este artigo focaliza as interpretações de Mattoso Câmara Jr. relacionadas a fatos fonético-fonológicos do PB. Ao se fazer investigações na área de fonologia do Português, comumente os pesquisadores tomam por referência as análises desse autor, ainda que, posteriormente, suas próprias análises das dele se diferenciem. Os estudos de Mattoso Câmara Jr. são portos para quem quer espraiar suas investigações linguísticas na morfologia e na fonologia do PB. Este trabalho delimita sua discussão a alguns fatos fonético-fonológicos. Fatos que foram recortados a partir de discussão feita por autores diversos sobre o entendimento de Mattoso Câmara Jr. para, desse entendimento, apontar outras possibilidades de interpretação ou mesmo confirmar, em uma perspectiva teórica diversa, as descrições já feitas por ele. Mais especificamente, o recorte que fazemos traz discussões sobre processos fonético-fonológicos referentes à consoante nasal em coda do PB e ao estabelecimento das vogais nasais. Da representação fonológica da consoante nasal debucalizada em coda, desdobram-se outras possibilidades interpretativas, considerando formas variantes desse arquifonema. Este artigo retoma ainda as elaborações feitas por Mattoso Câmara Jr. sobre os ditongos orais e a repercussão dessas elaborações
DELET / CCHLA / Universidade Federal do Rio Grande do Norte NEI / PPGLL / FALE / Universidade Federal de Alagoas
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em outros autores. Por fim, retomamos os encaminhamentos feitos por esse autor para escolher o arquifonema das consoantes obstruintes [+contínuas] e [coronais]). Palavras-chave: Fonologia; Fonética; Fonologia Clássica; Geometria de Traços. ABSTRACT This article focuses on the interpretations by Mattoso Camara Jr. related to phonological-phonetic facts from PB. By doing research in the area in phonology of Portuguese, researchers commonly take for reference analyzes this author, though later your own analysis of him are distinct. Studies by Mattoso Camara Jr. are sources for those who want to spread their linguistic investigations in morphology and phonology from PB. This work defines its discussion to some phonetic- phonological facts which were cut from the discussion made by various authors on the understanding by Mattoso Camara Jr. to point to other possibilities of interpretation or even confirm from this understanding, in a different theoretical perspective, the descriptions already made by him. More specifically, this cutting has brought discussions of phonetic-phonological processes related to debuccalized nasal consonant in the syllable coda and the establishment of the nasal vowels. From phonological representation of the debuccalized nasal, other interpretive possibilities have unfolded, considering variants of this archiphoneme. This paper resumes further elaborations made by Mattoso Camara Jr. on oral diphthongs and the impact of these elaborations in other authors. Finally, we have returned the referrals made by this author to choose the archiphoneme of obstruent [+continuant] and [coronal] consonants. Keywords: Phonology; Phonetics; Classical Phonology; Geometry of Features.
ABERTURA DA VOX Pesquisas referentes ao nível fonético-fonológico do PB, fazendo já uma delimitação da abrangência dos estudos feitos por Mattoso Câmara, comumente principiam suas análises linguísticas tomando por referência as interpretações desse estudioso, quer compartilhem com ele as análises focalizadas quer delas se distanciem, formulando entendimentos diversos sobre o objeto de pesquisa. A pretensão desse artigo é homenagear um autor cujos livros podem ser adotados em várias disciplinas do curso de Letras. Livros constantes também nas referências bibliográficas de publicações recentes cujos
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conteúdos contemplam descrições do PB. Ainda que esse autor tenha falecido em 1970, suas descrições para o PB permanecem, senão válidas, valiosas. Com o intuito de demonstrar a influência das análises de Mattoso Câmara para os estudos fonético-fonológicos, como se isso fosse necessário, pontuaremos alguns trabalhos que claramente apresentam as abordagens de Mattoso Câmara e os outros caminhos que elas permitem trilhar. 1. As vogais nasais segundo Mattoso Câmara e a Geometria de Traços O capítulo 5 do livro Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro (BISOL, 2005), cuja autoria é de Elisa Battisti3 e de Maria José Blaskovski Vieira4, trata do sistema vocálico do português. As autoras iniciam tal discussão reportando-se à descrição vocálica feita por Mattoso Câmara. Esse conteúdo abarca as vogais nasais que são interpretadas como uma sequência de vogal seguida por consoante nasal na mesma sílaba (homossilábica). Ainda seguindo interpretação desse autor, a consoante nasal em declive silábico (coda) tem como representante fonológico um arquifonema que conserva, das consoantes nasais / m, n /, o traço nasal nelas em comum, mas, por outro lado, não apresenta ponto de articulação. O símbolo representativo desse arquifonema debucalizado é o /N/5. A nasal em coda promove, em regra, a emissão da vogal com traço nasal, no núcleo da mesma sílaba, enquanto a bucalização da nasal em coda não se mostra um processo tão produtivo quanto o outro. A nasal em coda tanto pode ser desencadeadora de espraiamento quanto ser alvo de espraiamento, neste caso, de ponto de articulação. Dentre esses processos, o mais produtivo é o da nasal como gatilho. Para sustentar a interpretação de que vogais nasais no PB decorrem da produção de uma vogal acompanhada pela emissão de uma consoante nasal no travamento silábico6, ele postula alguns argumentos: Universidade de Caxias do Sul (UCS) IMEC/Ritter dos Reis 5 Em nossa descrição sobre processos de assimilação de ponto de articulação envolvendo a nasal em coda, partiremos da nasal debucalizada, ou seja, seguiremos a interpretação de Mattoso Câmara. 6 Os processos no quais uma vogal é alvo do espraiamento do traço nasal de uma consoante nasal no PB tanto podem resultar na determinação de uma vogal nasal quanto na determinação de uma 3 4
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• A crase não tem efeito, se a vizinhança fonética promovida é entre vogal nasal e oral. • A oposição entre “ // brando” (vibrante) e “ // forte” (fricativo) não se estabelece, quando esses segmentos se encontram entre vogal nasal e uma oral. No entanto, entre vogais orais, há oposição entre essas consoantes. • O hiato entre vogal nasal e vogal oral não se firma ou porque a vogal deixa de ser nasal ou porque a consoante nasal do travamento silábico passa a integrar a sílaba seguinte7. Battisti e Vieira trazem à essa discussão outros pesquisadores, Lopes (1979)8 e Wetzels (19889, 199710) cujas análises, por sua vez, também partem do entendimento de Mattoso Câmara e assumem, igualmente, que no PB vogal nasal é vogal que participa de sílaba travada por consoante nasal. No dizer das autoras, a interpretação de Lopes diferencia-se da assumida por Mattoso Câmara no que diz respeito ao tipo de consoante nasal fonológica que se encontra na coda silábica. Para a autora, o representante nasal em foco apresenta ponto de articulação coronal11, considera, para tanto, a relação entre formas derivadas, a exemplo de lã- lanifício; bembenefício. Wetzels (1988, 1997) ainda segue Mattoso Câmara em relação ao representante fonológico da nasal em coda. Assume que essa nasal não tem articulação plenamente especificada e que as diferentes realizações fonéticas vogal nasalizada. A diferenciação entre essas formas é estabelecida a depender da posição de onset ou coda ocupada pela consoante nasal. 7 Nessa discussão sobre vogal nasal e nasalizada, Mattoso Câmara faz referência ao vocábulo uma (forma feminina em oposição à masculina um ) como um exemplar de travamento nasal que se desfaz (ou, nesse caso, de vogal nasal que passa a oral) com a passagem da consoante nasal de coda para o aclive da sílaba seguinte. Sincronicamente, pensamos que a forma uma não se aplica à essa interpretação, visto que a produção oral da primeira vogal desse vocábulo causaria, no mínimo, estranheza, firmando-se, então, como uma vogal nasal. 8 LOPES, B. S. The sound pattern of Brasilian Portuguese (cariocan dialect). Tese. Los Angeles:
University of California, 1979.
WETZELS, W. L. Constrastive and allophonic properties of Brazilian Portuguese
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Interpretação já assumida por MATEUS, M. H. M. Aspectos de fonologia do português. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1975.
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desse arquifonema decorrem ou do ponto de articulação da consoante que lhe sucede ou da articulação da vogal que lhe precede. Atentamos também que o processo de assimilação de ponto de articulação que pode ser regressivo ou progressivo parece desencadear formas segmentais distintas: desencadeado da direita para a esquerda – de consoante para consoante –, é articulada uma consoante nasal; desencadeado da esquerda para a direita – de vogal para consoante – é articulado, mais comumente, um segmento semivocálico. A nasal em coda pode ainda só repassar seu traço nasal para o segmento vocálico que lhe antecede: /pee/ => [pẽnti] ~ [pẽjti] ~ [pẽti] /oNda/ => [o)nda] ~ [o)wda] ~ [o)da] Os segmentos semivocálicos decorrentes do processo de assimilação progressiva, aqui reportado, não decorrem da vizinhança com vogal dorsal não arredondada, [a]. Quando essa vogal está envolvida nesse processo de assimilação, a articulação do segmento nasal em coda é dorsal; /aNZo/ => [a)Zu]12 ~ [a)Zu] /paNtuhia/ => [pa)Ntuhia] ~ [pa)tuhia] Parece assim que o arquifonema nasal partícipe da constituição da vogal nasal /aN/ tem uma possibilidade de representação fonética que se diferencia da constituição de outras vogais nasais como, por exemplo, / oN/ e /eN/, pois, em relação a /aN/, não ocorre o processo de assimilação progressiva que resulte em segmento semivocálico na coda homossilábica. No entanto, a aquisição de ponto de articulação da nasal em coda vindo das vogais médias coronais ou dorsais labiais pode manter uma produção de consoante nasal ou produzi-la como um segmento semivocálico. Contudo, se tal aquisição decorre da consoante que ocupa o onset da sílaba seguinte, a produção será de uma consoante nasal. É necessário trazer à tona casos em que o arquifonema nasal em / aN/ não apresenta em sua configuração fonética ponto de articulação, a exemplo de:
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Embora não seja uma produção típica de alguma região do Brasil, é uma produção realizável, por exemplo, quando se quer enfatizar que há , na mesma sílaba, uma consoante nasal depois da vogal [a].
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/vaN/´=> [ va)] /vilaN / => [vila)] /Ro maN/ => [ hu ma)] /RfaN/ => [hfa)]
ETIM lat. vãnus13 ETIM lat.vulg. *villanus ETIM lat. [mala] romãna ETIM lat. orphãnus
Dessas ocorrências podemos evidenciar: 1. a ocorrência de /aN/ sendo participante de sílaba final de palavra, ou seja, diante de silêncio; 2. a forma etimológica de cada palavra em que /aN/ se apresenta sendo demonstrativa da consoante nasal em coda como decorrente de processo de ressilabificação. Essas características que envolvem fato da língua em uso (1) e fato da língua como um sistema que passa e passou por alterações (2), somadas ao que dissemos anteriormente sobre a vogal nasal dorsal, /aN/, não promover o processo de assimilação que resulte, na coda silábica, a produção de um segmento semivocálico, poderiam permitir a conclusão de que o arquifonema nasal cuja sílaba que integra tem por núcleo a vogal dorsal não labial não apresentaria foneticamente ponto de articulação. Considerando o que ocorre com /eN/, ao recair em sílaba final de palavra, e ainda considerando a etimologia da palavra que integra, a exemplo de: /viNteN/ => [vĩtẽj] ETIM arc. vinteno /ameN/ => [amẽj] ETIM hebr. amén, pelo lat. amen ‘id.’ /omeN/ => [ õmẽj] ETIM lat. hŏmo,i&nis, a partir do ac. homi&ne parece que uma produção articulatória para /N/ em /eN/ não é impedida pelo fato da etimologia da palavra em que recai demonstrar que a nasal em coda decorreu de processo de ressilabificação. Conforme os dados observados, a nasal em coda foi alvo de processo de assimilação de ponto da vogal anterior média alta, quer a nasal em coda tenha sido decorrente de processo de ressilabificação (vinteno => vintém; homi&ne => homem), considerando as mudanças pelas quais a palavra passou com o tempo; quer tenha ocupado originalmente tal posição dentro da sílaba (amén => amen). Apesar da hipótese da ressilabificação de /N/ não se manter como um dos elementos inibidores do processo de bucalização, ainda é válida a 13
As informações etimológicas foram retiradas do Dicionário eletrônico Houaiss, 2009.
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hipótese de que a vogal dorsal não arredondada é um segmento que seguido por /N/, diante de silêncio, não espraia traço, diferentemente, das vogais médias coronal ou dorsal labial. Quanto à baixa produtividade das sequências fonéticas [ij] e [uw] decorrentes, respectivamente, da possível bucalização de /N/ em /iN/ e em /uN/, podemos aventar a hipótese da ativação do Princípio de Contorno Obrigatório (doravante, OCP), que rejeita certas sequências de segmentos idênticos (CLEMENTS e HUME, 1995). No caso em foco, a sequência a ser evitada envolve vogal alta + semivogal que compartilhe o mesmo ponto de articulação da vogal com a qual forma sílaba. Na tentativa de evitar a sequência vogal alta + semivogal cujas articulações sejam coronais ou dorsais labiais, conforme mencionamos, falantes do português brasileiro (PB), no ambiente descrito, nasalizam a vogal, deixando com isso resquício da consoante nasal em coda, e, em algumas produções fonéticas, alongam o tempo de produção da vogal. O último segmento de cada sequência observada ([ij] e [uw]) decorreria do processo de assimilação de ponto da vogal que lhe antecede. Vale ressaltar, no entanto, que evitação dessas sequências independe do processo de bucalização mencionado. /motiN/ => [ motĩ] ~ [ motĩ:] /atuN/ => [ atũ] ~ [ atũ:] /koopeRah/ => [ k:peRah] /aNti istRiko/ => [ a)tistriko]14 Dessa descrição sobre vogal nasal no PB, embasada na interpretação de Mattoso Câmara, podemos concluir que, dentre as vogais nasais, o segmento /aN/ se destaca das demais vogais nasais porque, ao partilhar seu ponto de articulação com a nasal debucalizada /N/, promove a produção da consoante nasal [N], diferentemente de cada uma das demais vogais nasais que, ao compartilhar com a nasal seu ponto, promove a produção de um segmento semivocálico. O /aN/ também mostrou particularidade ao ocorrer em sílaba seguida por silêncio, pois, nesses ambientes – antecedido por [a] e seguido de silêncio –, o /N/ não é bucalizado. E essa ausência de 14
Este dado mostra outro mecanismo fonético de ativação do OCP: o processo de assimilação completa entre segmentos vocálicos idênticos, produzidos em uma sequência promotora de desencadear ainda uma produção de semivogal no segundo elemento, ambos, vogal e semivogal, compartilhando o traço coronal.
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aquisição de ponto não é promovida pelo OCP, como pode ocorrer com / iN/ e /uN/. Ao falarmos sobre vogal nasal no PB, assumindo a análise de Mattoso Câmara, é possível discorrer sobre possibilidades de construção do que chamaremos ditongo consonantal nasal15, formação fonética de ditongo promovida pela presença fonológica da consoante nasal debucalizada /N/, representada foneticamente pelas semivogais [j] e [w]16. Acreditamos que esse assunto já foi de algum modo contemplado quando falávamos a respeito das realizações das semivogais decorrentes de processo de bucalização. Queremos levar em consideração agora produções de fala como [sa)jgi] e [tRa)jsphti]17, dados nos quais a posição de coda silábica é preenchida por segmento cuja articulação de ponto não vem nem da consoante que ocupa o onset da sílaba seguinte, nem da vogal com a qual forma sílaba. Nos dados [sa)jgi] e [tRa)jsphti], encontra-se a semivogal coronal [j], formando um ditongo nasal derivado das estruturas (CC)VCN(C). Ou seja, a gênese dos processos de bucalização de /N/ envolvidos na formação de ditongo consonantal é determinada pela constituição silábica. A presença de [j], nos dados [sa)jgi] e [tRa)jsphti], consideradas as respectivas formas fonológicas /saNge/ e / tRaNSpRte/, não decorre dos processos de assimilação esperados, pois nem /a/ nem /g/ nem /p/ apresentam, em suas geometrias de traços, articulação [coronal]. Consideramos, então, a possibilidade de /N/ ser alvo do espraiamento do traço [ coronal ] da vogal que ocupa o núcleo da sílaba seguinte − caso de /saNge/ => [sa)jgi] − ou ser alvo do espraiamento do ponto de articulação da consoante com a qual compartilha a posição de coda complexa − caso de /tRaNspRte/ => [tRa)jsphti]. Apesar de esses espraiamentos não serem os comumente comentados, apenas um deles poderia ser visto como infringente do “princípio de não cruzamento No livro Problemas de linguística descritiva, ao discorrer sobre as formações de ditongos nasais no PB, Mattoso Câmara já comentava sobre a produção fonética de [e)j] que, fonologicamente, não se sustentava por decorrer da vizinhança da vogal nasal (VN) diante de pausa. 16 Chamamos ditongo consonantal nasal com o intuito de diferenciá-lo da formação de ditongo que decorre da vizinhança entre segmentos vocálicos. 17 Ainda que para falantes de certas regiões do Brasil tais produções apresentem estranheza, no Recife, por exemplo, são bastante comuns produções do tipo ['sa)jgi] e ['ta)jki]. É necessário, contudo, sistematizar ainda esse tipo de variação envolvendo o/aN/, com base em um corpus mais amplo. 15
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de linhas de associação” (Prohibition on Crossing Association Lines), tal como apresentado por Clements e Hume (1995, p.266), considerando que o traço [coronal] de /s/ pôde passar para /N/ porque esses segmentos estão imediatamente adjacentes, ou seja, não houve o cruzamento do nó ponto de consoante. Por outro lado, ao considerarmos que [j] em [sãjgi] resulta do espraiamento do traço [coronal] de /e/ (ou [i]), o “princípio de não cruzamento de linhas de associação” também não estaria sendo violado, uma vez que o nó ponto de vogal (PV)18 da vogal /e/ (ou [i]) não cruzaria esse mesmo tipo de nó ponto de articulação de /g/, considerando que o PV está sob o nó Vocálico e o traço fonológico de articulação de uma consoante é ramificado diretamente de PC. A seguir apresentamos a representação de um cruzamento de linhas devido:
A partir dessas reflexões, sugerimos duas outras possibilidades de interpretação, tomando, como parâmetro para análise, as produções [sãjgi] e [kãjga]: 1. se o segmento interveniente entre o segmento alvo do espraiamento e o que espraia não apresentar o nó ponto de articulação ramificado de nó vocálico, o espraiamento de traço de ponto da vogal para o segmento consonantal não imediatamente adjacente passaria a não ferir o “princípio de não cruzamento O nó ponto de consoante (PC) na teoria Geometria de Traços aloca sob si os traços articulatórios correspondentes aos pontos de articulação dos segmentos consonantais e vocálicos. Se a configuração da geometria de traços for a de um segmento consonantal, os traços articulatórios estão ramificados diretamente do nó PC, enquanto na geometria de vogais esses mesmos traços estão alocados sob o nó ponto de vogal (PV).
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de linhas de associação”, ou seja, o segmento aparentemente interveniente seria transparente a essa regra; 2. se [j], em produção do tipo [sa)jgi], for forma default (uma realização mais generalizante) dentre as possibilidades de realizações fonéticas de /N/, a produção fonética como [ka)jga] (que pode variar com [ka)ga] ), correspondendo, respectivamente, à palavra fonológica /kaNga/, evidenciaria a realização de [j], independentemente do processo de assimilação, e confirmaria a relação paradigmática desse segmento com segmento consonantal que – fonética e/ou fonologicamente – participa da posição de coda silábica. Para a realização de [j] em [ka)jga] não há como estabelecer sua realização como decorrente de processo de assimilação de traço articulatório – conforme a primeira interpretação elencada. Talvez fosse pertinente, então, aplicar a mesma interpretação de [j] como um segmento de realização default ao caso da produção de [j] em [sa)jgi] – nesse caso, seguindo o estabelecido pela segunda interpretação dada –, ainda que, para essa ocorrência, se consiga depreender uma interpretação com respaldo fonético-fonológico. Mantida, então, essa última consideração, é possível postular a representação de um cruzamento de linhas devido, conforme já explicitamos Com isso, há duas interpretações propostas, uma motivada foneticamente pela assimilação de traço e outra que tem uma abrangência descritiva capaz de contemplar as duas ocorrências. 2. Collishonn e os ditongos orais de Mattoso Câmara Ainda observando o material exposto no livro organizado por Bisol (2005) e atentando para as retomadas que autores ali fazem a Mattoso Câmara, focalizaremos no capítulo 3, A sílaba em português, cuja autoria é de Gisela Collischonn19, o que diz respeito aos ditongos orais. No capítulo em foco, Mattoso Câmara começa a ser citado assim que a discussão sobre sílaba passa da teoria da sílaba para a análise da sílaba no PB. Collischonn mostra reflexos das interpretações de Mattoso Câmara nas interpretações 19
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que Lopes (1979) e Bisol (1989) teceram em suas descrições. Para discutir sobre ditongo no PB, via Mattoso Câmara, é necessário saber de que interpretação de ditongo se está partindo. No livro Problemas de linguística descritiva, Mattoso Câmara assume as semivogais como correspondências das vogais /i/ e /u/ participantes do declive silábico, sendo, portanto, assilábicas e se constituindo como /j/ e /w/, respectivamente. Como tais, podem integrar o declive silábico junto à vogal silábica, nesse caso, criando o ditongo decrescente. Já no livro Estrutura da língua portuguesa, sua interpretação sobre as semivogais muda e ele passa a vêlas como vogais participantes do mesmo núcleo com outra vogal (VV). Esta última análise exclui as semivogais do elenco dos fonemas consonantais do PB, considerando a análise anterior. Os argumentos utilizados por Mattoso Câmara para respaldar essa segunda análise – análise encontrada no livro Estrutura da língua portuguesa – foram os seguintes: 1. As produções fonéticas dos falantes mostram flutuação entre produções de formas ditongadas e monotongadas ou entre formas ditongadas e hiatos, esta última variação leva em consideração a sequência átona de qualquer vogal e vogal alta. Ainda para corroborar a interpretação de que semivogais são formas fonéticas de vogais, chama atenção para a possibilidade de flutuação entre [i] ~[j] ~[e] ou entre [u] ~ [w] ~[o]. 2. Não há perda de oposição entre /h/ e /R/ quando [h] e [R] são realizados entre um ditongo e uma vogal, a exemplo do que ocorre na palavra ’feira’, que tem a possível produção fonética [ˈfejRa] e que se tornaria agramatical se fosse produzida * [ˈfejha]. Em uma análise, portando, as formas /j/ e /w/, ainda que sejam relacionadas às vogais /i/ e /u/, dadas as proximidades articulatórias, delas se distinguem pelo fato de ocuparem a margem silábica. Pontuamos que, em Problemas de linguística descritiva (em edição de 1988, p.26-27)20, Mattoso Câmara menciona que todas as consoantes do português podem aparecer no aclive de uma sílaba – incluindo-se aí as semivogais, deflagra-se 20
A edição a que Collischonn faz referência é a de 1969.
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a possibilidade de formação do ditongo crescente. Se, nesse momento, ele interpretava as semivogais como consoantes, elas estão sendo contempladas, portanto, nessa possibilidade de ocorrência dentro da sílaba. Por outro lado, quando trata das sílabas travadas, menciona que essas formações são mais restritas na língua, e para anular, em certa medida, a limitação que tal posição silábica apresenta, ele aponta o preenchimento dessa posição podendo ser feito pelas semivogais. Discorrendo sobre as possibilidades de constituição de aclive complexo no PB e, mais precisamente, sobre que segmento pode preencher a segunda posição do aclive complexo, ele faz a seguinte descrição: “A vogal /u/ também nessa posição pode tornar-se assilábica, se depois de uma das consoantes /k/ e /g/, constituindo com a vogal seguinte um ditongo crescente, como em qual. Daí, a possibilidade de tritongo em português [...]”21 (CÂMARA JR., 1988, p.27). Em outra interpretação, a que se encontra em Estrutura da língua portuguesa, os segmentos [j] e [w] são assumidos como realizações fonéticas possíveis das vogais /i/ e /u/, respectivamente, quando essas vogais apresentam –se em ambiente átono e avizinham-se a outro segmento vocálico. Em se tratando dos ditongos orais, no que se reporta aos chamados ditongos crescentes e decrescentes, Collischonn afirma que Mattoso Câmara, de acordo com a descrição feita em Problemas de linguística descritiva, dá crédito a uma dessas duas possibilidades de formação de ditongo, a do ditongo decrescente. Ainda segundo escritura de Collischonn, o ditongo crescente é visto por Mattoso Câmara, e por Lopes e Bisol, tempos depois, – mais especificamente e de acordo com a menção feita, nos anos de 1979 e 198922 – como uma forma ditongada que varia livremente com a produção de um hiato ou, mais claramente, com uma vogal alta correspondente a cada semivogal. Ainda que essa possibilidade de variação tenha sido vista só correspondendo aos ditongos crescentes, vimos que o próprio Mattoso Câmara em Estrutura da língua portuguesa estabelece critérios (em edição de A interpretação, nesse aspecto, pode se tornar confusa porque, mesmo tratando, em Problemas de linguística descritiva,as semivogais como fonemas, a correspondência com as vogais altas permanece. 22 O ditongo na perspectiva da fonologia atual. DELTA, São Paulo, v.5, n.2, p.185-168, ago. 1989. 21
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1992, p.54) para demonstrar a correspondência flutuante entre as vogais /i/ e /u/ e as semivogais [j] e [w], tanto resultando tais variações em ditongos crescentes como decrescentes. Esse autor ainda acrescenta que, em comparação com o ditongo decrescente, o crescente flutua mais livremente com as vogais que participam de sílabas contíguas. Talvez a interpretação divulgada em Collischonn tenha sido promovida pelo fato de que, na produção de falantes do PB, a flutuação entre uma forma tida como ditongo crescente e um hiato seja livre, e seja apenas limitada a essas possibilidades de ocorrência, enquanto a relacionada ao ditongo decrescente envolva relação com hiato ou com monotongo ou ainda flutue com outras vogais, conforme já dissemos . Além disso, a variação entre uma forma ditongada decrescente e um hiato pode ser motivada pela necessidade de uma articulação dos segmentos que resulte numa melhor percepção para o ouvinte (fato extralinguístico)23, confirmando a presença de uma vogal no ambiente em que se apresenta a semivogal. Em contrapartida, a forma ditongada crescente decorre de uma produção articulatória mais frouxa (ou menos tensa) da primeira vogal da sequência VV, por esse viés, sua realização não ratifica a presença de um segmento vocálico, e sim, de um consonantal. De qualquer modo, a identificação de ditongos pode ser resgatada nessas realizações (crescentes ou decrescentes) que decorrem da vizinhança entre vogais VV. O fato é que uma das vogais, ao ser produzida como [j] ou [w], integrará uma forma ditongada crescente, se vier antes de vogal, e decrescente, se vier depois de vogal. Dados com ditongos decrescentes [paj] ~ [pai] [ bojada]24 ~ [ boiada] [kawza] ~ [kauza] 23
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Esse fato pode ser remetido, por exemplo, à situação em que os interactantes de uma conversa não estão face a face, mesmo ambiente, ou se o ambiente da conversação apresenta ruído; enfim, situações que obriguem os interactantes de uma conversação a realizar certas articulações de modo mais artificializado com o intuito de ter sua fala entendida. O [j] intervocálico pode ser interpretado como pertencente à posição de coda ou ao onset da sílaba seguinte, ou seja, nesse ambiente pode ser interpretado como participante de um ditongo decrescente ou de um crescente.
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[ puejra] ~ [ pueira] Dados com ditongos crescentes [ pueRa] ~ [ pweRa] [glRia] ~ [glRja] [apiEdah] ~ [apjEdah] [ ko)tiguo] ~ [ ko)tigwo] [kwazi] ~ *[kuazi]25 A flutuação entre os registros fonéticos acima, referentes aos ditongos decrescentes e parte dos crescentes, tem respaldo em uma análise fonéticofonológica que sustenta para essas ocorrências a sequência VV. A impossibilidade de correspondência entre [kwazi] ~ *[kuazi] talvez seja deflagrada pela natureza consonantal de [kw] como um segmento complexo, cujos pontos de articulação são o [dorsal] e o [labial]; a mesma descrição articulatória aplica-se a [gw]. Talvez, ainda, seja porque as vogais em sequência (o ditongo) estejam em sílaba tônica e, como sabemos, esse ambiente, se não impede, dificulta a variação entre segmentos vocálicos. Se considerarmos que a formação de ditongos no PB – de representação fonética – decorre da sequência fonológica VV, desde que apenas uma delas esteja em sílaba tônica ou ambas se encontrem em ambiente átono, é esperado que aí formas flutuantes possam se realizar. No caso dos ditongos decrescentes, essas possibilidades são bem reguladas. Essa regularidade, porém, não é tão delineada nos ditongos crescentes cuja integrante em onset de sílaba seja uma das consoantes dorsais [k] ou [ g]. Collischonn referindo-se ao ditongo crescente cuja consoante em onset da mesma sílaba é [k] ou [g], seguido na sílaba pelo [w], limita a aplicação de ditongo crescente que envolve os segmentos citados ao compartilhamento silábico com a vogal [a] ou a vogal [o]. A configuração do ditongo crescente, nesse prisma, é vista como diferenciada, pois, nesse ambiente não se apresenta variação entre forma ditongada e hiato, apenas a primeira fica estabelecida. Se, no entanto, ainda de acordo com a visão de Collischonn, a produção desse ditongo crescente não permanece, passa a ser produzido junto ao [k] apenas o segmento núcleo da sílaba. Entre 25
O ditongo crescente que se reporta a uma semivogal participante de um mesmo aclive com a consoante /k/ ou /g/, comumente, não apresenta variação com um hiato, ou porque a palavra continua preservada, mesmo sem a presença do segmento semivocálico que a constituía, ou porque a flutuação da semivogal com uma vogal correspondente torna a palavra agramatical.
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as duas vogais mencionadas o [a] é mais produtivo na constituição desse ditongo no PB. Diferentemente de Collischonn, Mattoso Câmara apresenta um grupo maior de vogais que compartilham da sequência gw ou kw para a constituição de ditongos crescentes. Além das já citadas, elenca [ Eei]. Análises fonético-fonológicas do PB, no que diz respeito às formas ditongadas e à inclusão de mais dois fonemas consonantais, /kW/ e /gW/, em certo momento, precisam estipular em que ponto esses fatos imbricamse e em que ponto cada um mantém a sua singularidade. Ainda que [kW] e [gW] tenham possibilidade de variar com [k] e [g], respectivamente, caso formem sílaba com vogais coronais, conforme demonstram os dados [likidu] ~ [likw idu] [ tRa)kwilu] ~ [ tRa)kilu] [ kwesta)w] ~ [ kesta)w] / [ kwEsta)w] ~ [ kEsta)w] é possível estipular também relação fonológica entre eles, considerando a impossibilidade de haver flutuação entre os segmentos correspondentes, a exemplo de [tREgwa] ~ * [tREga] ou do par mínimo [kwazi] e [kazi]. A impossibilidade de variar [tREgwa] ~ * [tREga] sinaliza que não é o ambiente de tonicidade silábica que barra a variação, visto que a forma ditongada encontra-se em ambiente átono. Seria o caso de levantarmos a hipótese de que ditongo crescente cuja vogal núcleo da sílaba seja [a] não promove a queda do segmento semivocálico. Fica assim determinada a flutuação evidenciada entre ditongo crescente e monotongo avizinhada da consoante [k] ou [g]: • É livre, desde que envolva vogais coronais. • É proibida, desde que envolva a vogal dorsal [a]. Desta forma, a análise que estabelece /kW/ e /gW/como fonemas não é bem produtiva, porque acrescenta mais duas consoantes à língua, tendo elas ainda uma limitação de ocorrência. O estabelecimento das formas ditongadas crescentes já acoberta essas realizações.
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Concluímos essa parte dizendo que não há como estabelecer relação de variação de um dado como [ 'gEha], por exemplo, com *[ 'gwEha], porque a presença de [W] ou [w] é pertinente quer seja apontado que a consoante [ gW] não integra tal palavra quer seja para dizer o mesmo da semivogal [w], depende da interpretação assumida. Para nós, melhor é continuar com a interpretação de que na sequência kw + V ou na sequência gw + V há a presença do chamado ditongo crescente, oriundo da sequência fonológica VV.
3. Mattoso Câmara, o processo de neutralização e a escolha do arquifonema O conceito de neutralização tem sua origem nos trabalhos de Troubetzkoy (1948), participante da Escola de Praga26. Iremos observar a aplicação que Mattoso Câmara fez de tal concepção a segmentos consonantais do PB. O processo de neutralização permite evidenciar correlação entre fatos fonético-fonológicos decorrentes da relação entre segmentos que o sistema linguístico do PB agrupa. A descrição a ser feita nessa perspectiva é, concomitantemente, fonética e fonológica porque permite estabelecer conexões entre resultados de análise diferentes, mas complementares, entre segmentos que, embora tenham status fonológico na língua, por um condicionamento de posição e/ou ambiente, passam a ser vistos como variantes – livre ou combinatória (em distribuição complementar). A anulação de uma oposição fonológica desemboca na variação e essa, por seu turno, solicita o fechamento do ciclo aberto, demandando a escolha do arquifonema. A escolha do arquifonema eclode das vinculações entre os próprios segmentos analisados, vinculações que vão sendo comparadas e distribuídas, ou de outras vinculações assinaladas pela ampliação das conexões dos segmentos em análise com outros. Vinculações essas, inclusive, envolvendo descobertas de outras relações estabelecidas que permitem também definir qual dos segmentos em análise permanece com seu caráter fonológico. 26
Escola também conhecida como Círculo Linguístico de Praga, iniciado em 1926. Deste Círculo, N. S. Troubetzkoy é o autor que tomamos como referência para as discussões fonológicas.
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Entre os segmentos do PB em que é possível aplicar o processo de neutralização, selecionamos o grupo das fricativas (segmentos obstruintes [+contínuos] e [coronais]). Esse grupo chama a atenção pelo fato de atrair para si as três possibilidades de relacionamentos que segmentos de uma língua podem estabelecer com outro(s) do mesmo sistema. Na análise dessas obstruintes, há como chegar ao estabelecimento da relação de fonemas entre elas; de variantes livres – considerando um certo subagrupamento –; e de variantes combinatórias – considerando outro subagrupamento. Os pares mínimos [ Za] e [Sa]; [ kasadu] e [ kazadu] [sow] e [Sow] [ sEla] e [ ZEla] [ ZEladu] e [ zEladu] [ kaSa] e [kaza] demonstram relação fonológica entre os segmentos obstruintes [+contínuos] e [coronais], quer o cotejo seja entre os vozeados entre si, quer seja entre desvozeados, quer seja entre vozeados e desvozeados; quer seja entre coronais [-distribuídas], quer seja entre coronais [+distribuídas], quer seja entre coronais [-distribuídas] e [+distribuídas]. Configuram-se desse modo fonemas no PB: /z/, /Z/, /s/ e /S/. Ainda que estabeleçam relação fonológica entre si, esses segmentos também são interpretados, em uma análise fonológica, como variantes livres. Nesse caso, faz-se necessário subagrupar essas consoantes. Os pares mínimos [ hEjzgwadu] ~ [ hEjZgwadu] [ azma] ~ [ aZma] [ izla)miku] ~ [ iZla)miku] permitem depreender a possibilidade de variação livre entre as coronais vozeadas [-distribuída] e [+distribuída], desde que o onset da sílaba seguinte seja preenchido por consoante vozeada.
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Os pares mínimos [ vjs] ~ [ vjS] [ kustEla] ~ [ kuStEla] [ hevEjs] ~ [ hevEjS] [ ishaEw] ~ [ iShaEw], por sua vez, permitem deduzir a variação livre entre as coronais desvozeadas [-distribuída] e [+distribuída], desde que o onset da sílaba seguinte seja preenchido por consoante desvozeada ou, então, que essas consoantes em coda estejam diante de silêncio. Considerando o arranjo interno de cada um desses grupos e a delimitação de ocorrência para cada um deles, é justificável a análise de que os segmentos de um grupo variem por combinação (ou por distribuição complementar) com os segmentos do outro grupo. Essas consoantes têm em comum, nessa relação estabelecida, o compartilhamento da posição de coda, seja simples ou complexa; seja ainda a sílaba átona ou tônica. A distribuição em comum também envolve o tipo de vogal com que formam sílaba. A particularidade das ocorrências está no fato das desvozeadas só ocorrerem sucedidas por um ambiente caracterizado pela ausência de voz – ausência de vozeamento –, enquanto as vozeadas só ocorrem em coda silábica sucedida por uma sílaba cujo onset seja preenchido por consoante vozeada, ou seja, por um ambiente caracterizado pela presença de voz – presença de vozeamento . Consideradas essas três possibilidades de relação entre os segmentos focalizados – de fonemas, de variação livre e de variação combinatória –, ou mesmo que só se estabelecessem duas delas – sendo uma, obrigatoriamente, de fonemas e a outra de um dos tipos de variação – é necessária a aplicação do processo de neutralização. Processo esse que permite aplicar a segmentos reputados como fonemas a análise de que são também variantes no sistema do qual fazem parte. Logo, o processo de neutralização envolve perda de oposição fonológica. Se esses segmentos foram vistos como fonemas e passaram a variantes, a análise fonológica precisa fechar o ciclo, determinado o representante
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fonológico do processo de neutralização – mesmo que a análise fonológica só depreendesse a relação de variação entre os segmentos comparados, seria preciso identificar o representante fonológico entre as formas variantes entre si. Mattoso Câmara em Problemas de linguística descritiva, discorrendo sobre as consoantes que podem ser decrescentes em português (podem ocupar coda silábica), estabelece como representante das sibilante ou das chiantes em coda o /z/. Faz então a seguinte descrição sobre o arquifonema /z/: ocorre como [z] ou [Z]27 [...] diante de consoante sonora [...], mas como [s] ou [S] [...] diante de consoante surda ou de pausa. A razão por que dissemos que se trata da consoante /z/, que se realiza ora como [z] ou [Z], ora como [s] ou [S], com o desaparecimento, ou “neutralização” das oposições distintivas [...], é que partimos de tal consoante quando ela fica diante de uma vogal, dentro de um grupo de força, e deixa de ser posvocálica [...]. Concluímos que, se aí sempre aparece [z] e não qualquer uma das outras 3 consoantes, é que /z/ é realmente o fonema28, que muda obrigatoriamente para um dos outros quando fica posvocálico. Ou, noutros termos, é o “arquifonema” sibilante. (1988, p.29) Entre as quatro realizações de consoantes obstruintes [+contínuas] e [coronais], fica estabelecida a possibilidade de variação em coda e a escolha do arquifonema é decorrente, segundo Mattoso Câmara, de processos fonético-fonológicos e/ou morfofonológicos que envolvem processos de ressilabificação. A exemplo das ocorrências [ tuaaS ahEdodadaS] => [ tuaazahEd)dadaS] [ viEs] [ viE zis] que permitem observar os segmentos [s] e[S] em coda e que, dada a 27 28
Fizemos adaptação dos símbolos fonéticos [Z] e [S]. Dizendo, mais precisamente, seria o arquifonema.
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vizinhança com segmento vocálico à direita, ressilabificam, passando da posição de coda ao onset da sílaba seguinte. Essas ressilabificações advieram ou da constituição do vocábulo fonético – produção fonética que unifica, em um só vocábulo, vocábulos formalmente distintos – ou da juntura de morfemas integrantes de um mesmo vocábulo. Independente de ser o processo de ressilabificação interno à constituição de uma mesma palavra – ressilabificação promovida pela entrada de um morfema flexional ou derivacional – ou da juntura de vocábulos distintos – produção decorrente da velocidade de fala –, o segmento fonético que preenche o onset da sílaba seguinte, nesses casos, é o coronal [-distribuído] e [+voz]. Respaldado pelo processo de ressilabificação e pela realização de [z] no onset da sílaba com o novo arranjo silábico, Mattoso Câmara seleciona o arquifonema /z/. Outra escolha de arquifonema para essas mesmas consonantes em posição de coda é assumida por ele no livro Estrutura da língua portuguesa. Podemos então falar numa neutralização entre as 4 consoantes em proveito de um único traço distintivo permanente: a fricção produzida pela língua. O resultado de uma neutralização é o que Trubetzkoy e seus companheiros do Círculo Linguístico de Praga popularizaram com o nome de “arquifonema” (“simbolizado pelo fonema nãomarcado” de uma oposição) (Vachek 1960, 18) A sua representação convencional em transcrição fonêmica é pela letra do fonema não-marcado em maiúscula; no nosso caso /S/. (1992, p.52) Comparando as duas descrições, a última traz como informação nova a escolha do arquifonema estipulada fonologicamente, ainda que norteada pelos processos já descritos. É uma escolha de caráter mais abstrato, considerando que na primeira descrição o arquifonema /z/ era representado pelo segmento correspondente na realização fonética, [z], decorrente do processo de ressilabificação. Já, nesta última, a escolha do arquifonema é mais teórica, visto o segmento escolhido ser não marcado com relação ao traço [voz]. Ou seja, a escolha considerou o segmento
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com uma distribuição mais ampla – menos marcada – que é a do tipo de segmento que pode tanto ocorrer em coda diante de silêncio como sendo sucedido por consoante desvozeada, enquanto o outro tipo só ocorre em coda seguida por uma consoante vozeada na sílaba seguinte. Ainda sob esse aspecto, podemos acrescentar que a presença de um traço, em oposição à sua ausência, relativo a um mesmo elemento linguístico – no que concerne à discussão em pauta, trata-se do traço[± voz] aplicado a um segmento consonantal – demarca uma forma marcada em relação a uma não marcada . Em todo caso permanece a escolha por uma consoante coronal [-distribuída]. A escolha do arquifonema resulta também em diferentes descrições fonético-fonológicas. Sendo o arquifonema o /z/ ou /S/, é necessário atentar para o que possibilita que, no nível da fala, ora seu representante fonético seja [z], ora[s], [Z] ou [S]. Se tomarmos como arquifonema o segmento vozeado, ele passará a ser realizado na produção de um falante do PB como desvozeado, – ou seja, apresentando perda do traço [+voz] – por assimilar do segmento vizinho o traço [-voz]. O traço [+voz] será desligado da configuração articulatória desse segmento também diante de silêncio. Contudo, se tomarmos como arquifonema o segmento desvozeado, ele será representado foneticamente como vozeado por ser alvo da assimilação do traço [+voz] do segmento em onset na sílaba seguinte. Quanto ao ponto de articulação, lembramos que [s] varia livremente com [S] e [z] com [Z]. Lembramos ainda que a presença desses segmentos em coda pode suscitar, em conjunto com a vogal núcleo da mesma sílaba, uma forma ditongada, com a realização da interveniente semivogal [j] – indicação de um ambiente favorecedor da produção de segmentos palatalizados, a exemplo de [S] e [Z]. FECHAMENTO MOMENTÂNEO A escritura deste texto foi uma possibilidade de paragem nas ideias de Mattoso Câmara. Possibilidade de pensar sobre seu dizer em relação a alguns fatos fonético-fonológicos do PB e o dizer de outros – e aí nos incluímos – sobre o dele.
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REFERÊNCIAS BISOL, L.(Org.) Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. CAMARA JR., J. M. Problemas de linguística descritiva. Petrópolis: Vozes, 1988. ______. Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1992. CLEMENTS, G. N.; HUME, Elizabeth V. The internal organization of speech sounds. In: GOLDSMITH, J. (Ed.). The handbook of phonological theory. Cambridge, MA: Blackwell, 1995 p.245-306. COLLISCHONN, G. A sílaba em português. BISOL, L.(Org.) In: Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. BATTISTI, E.; VIEIRA, M. J. B. O sistema vocálico do português. BISOL, L.(Org.) In: Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. TROUBETZKOY, N. S. Principes de phonologie. Tradução de J. Cantineau. Paris: Klincksieck, 1948.
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O ADVÉRBIO AGORA EM PROCESSO DE GRAMATICALIZAÇÃO: É PRECISO ENSINAR QUE/ COMO/POR QUE A LÍNGUA MUDA THE ADVERB AGORA IN THE PROCESS OF GRAMATICALIZATION: IT IS NECESSARY TO TEACH WHAT/HOW/WHY THE LANGUAGE CHANGES Camilo Rosa Silva Universidade Federal da Paraíba Maria José de Oliveira
Instituto Federal do Rio Grande do Norte RESUMO A gramática tradicional, por ser conservadora e visar à imposição de uma norma já estabelecida, não considera a natureza fluida dos padrões gramaticais. Neste trabalho, tomamos como elemento de análise a presença do elemento linguístico agora em amostras de língua oral (corpus D&G – Natal-RN – FURTADO DA CUNHA, 1998), para demonstrar como o item tem evoluído de uma função dêitica para outra conectiva. O objetivo básico é evidenciar o caráter emergente das funções gramaticais flagrado nesse dinamismo para suscitar, na perspectiva da linguística funcional (HOPPER; TRAUGOTT, 1993; GIVON, 1995), uma discussão sobre a viabilidade de um ensino de gramática que invista em análise de dados da oralidade para buscar uma prática pedagógica mais reflexiva no ensino-aprendizagem do português. Palavras-Chave: gramática; ensino; oralidade ABSTRACT The traditional grammar, as conservative and seeking to impose a standard already established, doesn’t consider the fluid nature of grammatical patterns. In this work, we take as an element of analysis the presence of the linguistic element “agora” in samples of oral language (corpus D&G - Natal-RN FURTADO DA CUNHA, 1998), to demonstrate how the item has evolved from a deitic function to another connective.
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The basic goal is to evidence the emerging character of grammatical functions caught at this dynamism to analysis to seek a more reflective education practice in the teaching-learning of portuguese. Keywords: Grammar; teaching; orality
INTRODUÇÃO Por sua natureza de inspiração conservadora, e por visar à fixação de comportamentos normativistas, o tratamento que os compêndios gramaticais destinam aos conectores - elementos que realizam as junturas nas sequências textuais - nem de longe representa a maioria dos usos interacionais da língua, a se considerar a riqueza de nuanças sintáticosemânticas determinantes de sua pragmatização. Nosso olhar, no presente trabalho, tenta enxergar algumas dessas manifestações em recortes de língua oral, tomando como contraponto as descrições, prescrições e normatizações apresentadas e defendidas pelas referidas gramáticas, voltadas para o ensino de língua portuguesa no nível básico. O ponto de partida são amostras do corpus Discurso e Gramática (D&G) da cidade de Natal-RN, organizado por Furtado da Cunha (1998). Os dados analisados se compõem de recortes de língua oral, nos quais aparece o item linguístico agora atuando em funções diversas. Essas ocorrências são indícios que apontam a multiface das combinações semânticas que, a partir dos contextos, intenções, estilos, ou mesmo das restrições impostas pelo repertório, se distinguem das classificações estanques, congeladas nas propostas classificatórias tradicionais. Nossa análise sedimenta-se na visão de que a gramática atua de forma emergente (HOPPER,1998), vislumbrando a importância da frequência no que concerne às perspectivas de regularidades que compõem o sistema linguístico. Lembramos, como já o fizemos em Silva (2007), que a abordagem funcionalista de análise dos usos linguísticos reconhece a influência que as necessidades comunicativas dos falantes exercem sobre o sistema. Existiria um poder de pressão ativador de elementos extralinguísticos, os quais tornam incompatível com o uso a estabilidade tradicionalmente requerida
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às gramáticas das línguas naturais. Desse modo, a situação interacional, ao mesmo tempo em que lança mão de estruturas fixas e restringidoras, também motiva, explica e reordena o contingente gramatical. Nossa proposta de análise considera a possibilidade de flutuação das categorias gramaticais, uma vez que os aspectos observados envolvem elementos típicos da condição pragmática que contorna os atos de fala, as interações, as realizações linguísticas, enfim. É sabido que, do ponto de vista da linguística funcional, todos os termos de uma língua em uso estão sujeitos aos processos de variação e mudança. Essa percepção revela, por si mesma, a natureza fluida dos padrões, uma vez que contempla mudanças ocorridas com os itens e construções ao longo da história das línguas. Assim, para uma melhor compreensão do comportamento das conjunções no português, é necessário entendermos o processo histórico evolutivo pelo qual elas passaram. Destarte, entendemos como essencial a valorização de critérios menos rígidos de classificação, optando pela perspectiva funcionalista que advoga a prototipicidade como uma característica inerente ao comportamento gramatical das expressões linguísticas, em decorrência da fluidez discursiva que perfaz a roupagem das línguas. Para atingir os objetivos aqui propostos organizamos este texto em três seções, a saber: resenha dos fundamentos conceituais inerentes ao processo de gramaticalização e à teoria da prototipicidade; apresentação de dados do corpus D&G nos quais se revelam usos não canonizados do item linguístico agora – elemento escolhido para ilustrar a discussão; e, concluindo, sugestões de uso de amostras de língua oral para realização de análises linguísticas em sala de aula. 1. Gramática(lização) e prototipicidade O tipo de mudança linguística denominado gramaticalização é, grosso modo, definido como o processo que leva itens lexicais ao desempenho de funções cada vez mais abstratas, partindo de sentidos autônomos para funcionalidades mais atuantes na organização linear dos enunciados. Geralmente, a concepção de gramaticalização está relacionada
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à idéia de que o processo se constitui num continuum1, que se estabelece entre unidades independentes, identificadas como itens autônomos menos ligados, e unidades dependentes, a exemplo dos clíticos, partículas, auxiliares, construções aglutinativas e flexões. A concepção de gramática desenvolvida pelo funcionalismo ressalta seu caráter dinâmico e emergente, como um sistema parcialmente autônomo e parcialmente motivado por pressões externas, adaptável às condições de uso e que, por isso mesmo, nunca se estabiliza por completo (DU BOIS, 1993). Essas condições adaptativas dão sustentação ao fenômeno da gramaticalização, entendida como a evolução de construções relativamente livres no discurso, motivadas por necessidades comunicativas, para construções relativamente fixas na gramática (DU BOIS, op. cit.). Isso quer dizer que construções originariamente motivadas pela situação comunicativa evoluem para formas que, pela frequência de uso, vão se padronizando, até se cristalizarem em estruturas gramaticais arbitrárias. A rotinização regulariza as formas, que se acomodam ao sistema, passando a atuarem como forças internas opostas às externas, ocasionando as “motivações em competição”. Estão dadas, então, as bases para a não aceitação tanto do reducionismo formal inerente ao “estruturalismo autônomo”, como o reducionismo comunicativo decorrente da concepção de “funcionalismo transparente”. A natureza sistemática do desenvolvimento da gramática é atribuída à natureza sistemática do desenvolvimento de processos mentais e comunicativos que condicionam o uso da língua. Nesse contexto, a gramaticalização se apresenta como uma das ferramentas mais válidas para investigar a interação falante/ouvinte no uso da língua, por um viés cognitivo-discursivo-estrutural, conforme entendem Bybee, Perkins e Pagliuca (1994). A formação de um conjunto de regularidades é desencadeada por dois tipos distintos de forças: as pressões cognitivas e as pressões de uso. A coexistência desses dois tipos de pressões alimenta a dinamicidade que caracteriza a gramática. Esse propalado dinamismo fomenta a constância 1
Heine, Claudi e Hünnemeyer (1991) sugerem a expressão cadeias de gramaticalização por entenderemna mais adequada à especificação do processo do que o termo continuum.
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das mudanças que afetam tanto a gramática como as línguas em geral. Heine, Claudi e Hünnemeyer (1991) advogam que os significados que se referem aos universais da experiência humana, que dizem respeito a aspectos concretos, básicos e gerais dos contextos humanos e que são capazes de evocar múltiplas associações, impõem-se como os principais candidatos à gramaticalização. Isso ocorre porque suas características dilatam as possibilidades de referências a conceitos menos objetivos, numa potencial subjetivização que pode facilitar seu adentramento no universo gramatical. Os autores suscitam uma discussão sobre o fato de que, ao incorporar sempre mais elementos gramaticais provindos de elementos lexicais, seria natural pensar que as línguas caminhariam para uma configuração que as tornaria cada vez mais e mais gramaticais. Na refutação a esse pensamento, pode-se argumentar que uma forma gramatical nova impulsiona, como consequência, o declínio de outra forma gramatical já existente. Donde é natural concluir-se que a evolução linguística apresenta caráter cíclico. (HOPPER e TRAUGOTT, 1993) Conforme anotado anteriormente, um dos princípios que conduzem os estudos funcionalistas se nutre da idéia de que existe um contínuo na trajetória da gramaticalização. Para Heine, Claudi e Hünnemeyer (1991), esse processo estabelece uma escala crescente de abstratização - do mais concreto para o menos concreto - sendo determinada por uma transferência do universo referencial para o gramatical. Nessa concepção, ocorre uma mudança semântica de caráter progressivo, indicando um deslocamento dos sentidos dos itens linguísticos que passam de conotações mais concretas para menos concretas. Assinalase, assim, no sistema, a coexistência de formas/funções inovadoras e formas/funções já existentes, sem que as antigas tenham que desaparecer. No que tange aos conectores, por exemplo, são recorrentes os casos em que elementos de origem adverbial – geralmente dêiticos espaciais que passam a indicadores de temporalidade – venham a assumir, na língua em uso, funções conectoras, para na sequência participarem na organização tópica ou funcionarem com fins mais propriamente interacionais. É o que provavelmente acontece com o item agora, o qual parece assumir, em alguns contextos, valor semelhante ao do conector mas, apontado como
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o prototípico da categoria, conforme teremos oportunidade de observar adiante. Tradicionalmente, processos de categorização têm levado em conta as propriedades distribucionais que os itens possuem, segmentando-os em blocos relativamente estáveis (DU BOIS et al., 1997). Essa articulação teórica remete à categorização clássica de Aristóteles, para quem as classes gramaticais são discretas e possuem propriedades inerentes, tal como se encontra na tradição gramatical. A essa classificação aristotélica se opõe a categorização natural de Wittgenstein, que reivindica limites imprecisos para as classes, cujos elementos se integram em diferentes graus. Além disso, a similitude entre os itens deve ser sempre considerada no processo de definição das categorias. (BARRETO, 1999; POGGIO, 2002) Os protótipos se impõem como os membros centrais das categorias de nível básico, o que significa que existem atributos mais centrais – ou prototípicos – que outros. O estudo das cores básicas realizado pela Psicologia Cognitiva se constituiu numa investigação basilar, que em muito contribuiu para a construção do conceito de prototipicidade. Os resultados apresentados lançam por terra a hipótese estruturalista da arbitrariedade das categorias linguísticas, vazada na concepção de uma organicidade que se impõe a partir da existência de traços essenciais. Não é incorreto afirmar que a Teoria dos Protótipos consiste, sob um determinado prisma, numa aplicação das conclusões tecidas sobre a categorização da cor. A partir da interpretação do referido estudo, passouse a aceitar a idéia de que os atributos são ordenados, no interior de uma categoria, revelando diferenças de graus que são reflexos de focos cognitivos. Quanto mais um membro se afasta do núcleo simbolizado pelo atributo mais prototípico, maior a possibilidade de pertencer a outras categorias. (DUQUE, 2003) Uma descrição categorial não deve descartar os maus exemplos nem os membros marginais cuja pertinência pareça, à primeira vista, nebulosa. Pelo contrário, todos os dados são relevantes para a construção de um mapa categorial, uma vez que sua formatação considera os atributos em ordem de representatividade. Inicialmente, foi a abordagem cognitivista que estabeleceu um
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confronto entre a teoria aristotélica e a proposta categorial de Wittgeinstein. Surge daí a Teoria dos Protótipos, postulando uma ausência de homogeneidade na estruturação das categorias. Desenvolve-se a concepção de que as categorias podem ser mais bem retratadas como organizações pautadas em estruturas prototípicas, reveladoras de bons e de maus exemplos para cada classe. O melhor exemplo se impõe como melhor representante de uma determinada categoria: seriam membros centrais - ou prototípicos – aqueles que os falantes evocam em primeiro lugar e em torno dos quais se estabelece a organização dos demais. A proposta de Givón (1995) para análise da prototipicidade também apresenta uma solução que hibridiza elementos das abordagens clássica e natural. Na elaboração de sua teoria dos protótipos, o autor defende que os itens de uma categoria compartilham em proporções não equitativas os traços ou propriedades de tal categoria2. Aceita-se uma gradação de prototipicidade, que considera a capacidade de manifestar, no uso, uma oscilante quantidade de traços categoriais. Assim, são prototípicos os itens que acumulam uma maior densidade numérica de traços. Partindo da teoria natural, que foge à discretude das classes requerida pela teoria clássica, é possível definir categorias, reconhecendo similaridades captadas pela intuição do usuário. Como não há uma demarcação precisa para as fronteiras classistas, projeta-se um continuum categorial. Baseada nos aportes da Teoria dos Protótipos, Barreto (1999, p. 66) defende que, em Português, os conectivos não apresentam uma separação nítida entre coordenativos e subordinativos; o que há é “um contínuo que vai da coordenação perfeita à subordinação por excelência, havendo, em cada grupo de conjunções, os protótipos, isto é, as que preenchem as características básicas de cada grupo”. Isto posto, torna-se instigante identificar traços categoriais que, em usos linguísticos aparentemente similares, tanto aproximam quanto distanciam comportamentos sintático-semânticos detonadores de implícitos 2
Segundo Givón (1995, p. 102), há dois tipos de categorias: as sintáticas, que definem os constituintes “segundo seu papel na frase”, e as gramaticais, definidoras das modificações “que podem sofrer os membros dessa categoria de segunda ordem, em função do gênero, número, pessoa, etc.” Para esse autor, “o termo categoria representa uma classe, cujos membros figuram nos mesmos ambientes sintáticos e mantêm entre si relações particulares”. As categorias léxicas são primárias, enquanto as gramaticais são secundárias.
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e pressupostos valiosos à intenção do falante e/ou à interpretação do ouvinte. Qual seria, enfim, no quadro dos conectores opositivos, aquele(s) que incorporaria(m) o maior número de traços realizadores dessa função? Que traços poderiam definir essa aludida prototipicidade? São questionamentos que devem recorrer a análises de dados empíricos para que possam apresentar resultados aceitáveis. E, em exercícios calcados nesse propósito, a presença do item aqui enfocado, o agora, certamente, é obrigatória. 2. A diversidade de usos do agora Nossas observações em relação ao uso do agora na fala do natalense informante do D&G3 oportuniza uma reflexão acerca de sua recorrência em contextos dêiticos e opositivos, mas revela, também, sua competência para funcionar discursivamente, em preenchimento de pausas ou mesmo como sinalizador de digressões ou retomadas. Vamos verificar alguns contextos semânticos de construções nas quais o agora funciona com esses valores para tentar formalizar algumas reflexões sobre sua multifuncionalidade. A língua, como bem sabemos, se compõe de forma e função, estando aquela a serviço desta segundo uma abordagem teórica de cunho funcionalista. Nessa perspectiva, o parâmetro estrutural é importante para se verificar a possibilidade que os itens têm de mobilidade na oração, observando-se a interferência que isso ocasiona no componente sintáticosemântico. Nos dados do corpus, funcionando com valor adversativo, o agora ocorre: a) em uma posição fixa entre os dois segmentos: (1) 3
[...] fica brincan::do ... aí a mãe ... aí a mãe ... aí quando eu passo mainha...compra Pippos ... mainha compra ... mainha compra
O D&G de Natal é constituído por vinte depoimentos de informantes de diversos graus de escolaridade. Cada um dos cinco entrevistados produziu cinco gêneros de textos distintos, nas modalidades escrita e falada, totalizando duzentos registros. Para esta análise, foram selecionados recortes de “relatos de opinião” e das “narrativas de experiência pessoal” na modalidade de língua falada.
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danone ... mainha compra ... mainha compra biscoito ... mainha compra ... agora adulto ... num compra ... aí ... é ruim de ser/ é ruim de ser adulto ... é melhor ser criança mesmo [...] (D&G, oral, p.184) no inicio de frases interrogativas: (2)
E: você gosta do futebol e tá dando sua opinião ... né ... você deu do time ... agora o que você acha da violência no ... lá dentro ...a violência dos jogadores e a violência lá na ... arquibancada? I: eu acho errado [...] (D&G, oral, p.170).
No exemplo (1), o agora demarca claramente o limite entre as informações que se contrapõem na linearidade da fala, projetando a informação contraposta que sucede a informação anteriormente posta no fluxo discursivo. Já em contextos como o de (2), o agora sinaliza a intenção do entrevistador de retomar o tópico do qual o informante parecia estar fugindo, ou de introduzir um novo tópico ainda não abordado. Analisando as funções em que o agora aparece nos dados cotejados, orientamo-nos por Martelotta (2004), para propor a seguinte classificação: 1. Dêitico: funcionando com valor de neste momento; nesse momento que passou; nesse momento que virá; a partir desse/deste momento; 2. Conector: funcionando com valor de contraste ou concessão; 3. Articulador discursivo: funcionando na organização tópica e sub-tópica dos enunciados. De fato, não há nenhuma idiossincrasia verificável nos usos do agora ao se inserir em contextos opositivos. Seu comportamento é semelhante ao de outros termos e construções que migram de um valor dêitico espacial para um temporal, assumindo função conectiva e passando, possivelmente, na sequência dessa trajetória, a realizar funções de caráter pragmáticodiscursivo. Dados do português brasileiro atual, na modalidade oral, como os aqui expostos, comprovam a ampliação semântica em relação à proximidade do fato evocado que se dilata para extensões diferenciadas, tanto em referências de temporalidade passada quanto futura, imediatas ou mais distanciadas do
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ponto dêitico. Observemos os dados: (3)
[...] se preocupar mais em jogar futebol do que em ganhar dinheiro né? como já aconteceu agora com ... com Careca eu acho que ele pediu dispensa né? pediu pra sair ... pediu pra sair e ... todo mundo sabe [...] (D&G, p.16)
(4)
[...] você passa a ser bom ... automaticamente ... eu acho que não é assim ... sabe Sheila? não é você chegar e dizer assim ... vou ficar bom agora ... e de repente ficar bom ... primeiro você tem que se descobrir ... esse lado bom que você tem [...] (D&G, p.27)
Em (3), o agora assinala a perda de traços cujos valores apresentam referência presente para se estabelecerem pontos que se aproximam a referência passada, ou seja: +referência presente > +referência passada (> +referência futura) Esse movimento vai se confirmar em (4), quando o elemento em destaque assume um valor temporal para referência futura. Nesse caso, o termo se apoia na construção perifrástica vou ficar, marca empírica de futuro, contribuindo semanticamente para que o agora indique uma noção de futuridade, embora parta do momento presente, sugerido pelas instâncias dêiticas do discurso. Desse modo, os dados ressaltam o caráter de mobilidade gramatical do agora, já nesta posição de advérbio temporal, embora se preserve o momento da fala, eixo central de onde partem todos os usos a ele vinculados, remetendo ao pensamento de Neves (1999), já assumido por Risso (1993), para quem o advérbio agora nunca exprime momento ou período fisicamente delimitado, mas apresenta variação de abrangência que pode reduzir-se a um mínimo (pontual) [...], mas pode abranger um período maior ou menor, não só do presente mas também do passado ou do futuro, desde que toque o presente ou se aproxime dele.
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Geralmente, para dar conta da necessidade de referir o momento presente, o agora se faz acompanhar por circuntanciadores como mesmo, já, neste momento, entre outros, o que pode ser indício de que a flutuação entre as referências temporais indicadas pelo item torna insuficiente sua função de precisar o ponto temporal a que se refere a informação, demandando a construção perífrástica. Da condição de temporalidade, as construções formadas com o agora realizam movimentos nos enunciados, evoluindo para uma posição relacional, potencialmente voltada para o plano textual. Nesse ponto, agora exerce valores de conector, cujo papel é servir de elo a segmentos ou orações. (OLIVEIRA, 2007) No Corpus em análise registram-se várias ocorrências do elemento nessa função. Vejamos um exemplo: (5) [...] isso pra criticar ... outras não têm o mínimo interesse mesmo ... não querem saber de Jesus ... quanto mais de religião ... então elas usam esses tipos de escândalos essas coisas que acontecem pra criticar ... né ... criticam bastante ... agora ... tem o outro lado que a gente vê assim nas pessoas não-crentes ...( D&G, oral, p.125) Nesse caso, o informante compartilha com o ouvinte idéias que, de certa forma, se opõem à declaração inicial. Como se pode perceber, o termo age num contexto e logo após se segue uma pausa para dar sequência ao fluxo discursivo, que se completa com uma informação de sentido oposto, revelando nuanças de um conector adversativo. Para atestar tal interpretação, é bastante verificar a possibilidade de o agora ser intercambiável com o conector mas. Desse modo, verificamos que há uma liberdade de estruturação entre as formas, numa demonstração de que seu processo de categorização deve ser maleável, uma vez que, no transcurso da fala, os elementos linguísticos estão sujeitos a assumir posições, sentidos e funções variáveis. Conforme demonstra Risso (1993, p 34-5), a diferenciação sintáticosemântica da forma agora em relação ao advérbio temporal reside em algumas propriedades que são aplicáveis ao advérbio e bloqueadas ao
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marcador discursivo no âmbito textual. Nas palavras da autora: Por exemplo: a) o marcador não é desencadeado por “Quando?” ou “desde quando”? Ou parafraseável por “atualmente” e “neste momento”. b) Não se enquadra como foco de orações clivadas, configurando-se a sua condição de “elemento pragmático-discursivo”. Essas são, realmente, estratégias produtivas para a análise do item, uma vez que tanto em relação às interrogações quanto à paráfrase, emergem como resposta construções que se enquadram como pertencentes à categoria semântica indicativa de temporalidade. Para argumentar que o articulador gera a impressão de estarmos diante de “um elemento descartável”, potencialmente dispensável na fala, Risso (1993, p.39) acrescenta que a eliminação do agora não traz prejuízos, se pensarmos a partir de uma perspectiva estritamente sintática. Prestemos atenção ao agora negritado na ocorrência a seguir: (6)
[...] isso é do mal ... agora as pessoa que é:: é do bem ... é:: faz qualquer coisa ... brinca com a pessoa ... se a pessoa pedir ... brinca com a pessoa ... agora ... é:: se por exemplo ... se eu pedir a pessoa pra nu/ pra brincar e a pessoa num quiser ... brincar ... aí é mesmo que ... é do mal [...] (Corpus D&G,oral, p.189)
Nesse enunciado, o agora funciona como elemento aparentemente destituído de valores sintáticos, acompanhado da pausa, deixando a impressão de que o informante quer ganhar tempo, evitando o silêncio, enquanto planeja a projeção da informação, tentando manter sob controle o fluxo da fala. Nesse contexto, observamos um nível maior de abstração no teor semântico do agora. O item, que na gênese era dêitico, parece ir perdendo suas marcas referenciais. Por isso, seu comportamento, na ocorrência em análise, indica o exercício de uma função mais discursiva, embora, também, não deixem de ser acionados traços semânticos característicos de oposição. Talvez seja esse o contexto que, pragmaticamente, mais simbolize a mudança em curso. Nossa percepção atribui a situações como essa os usos dos articuladores que acionam uma função especificamente discursiva, uma vez
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que parecem tentar manter a atenção do interlocutor sobre o que está sendo discorrido, de modo que não haja tomada de turno, nem ocorra uma pausa em que o silêncio possa sugerir dúvida ou hesitação em relação ao que está sendo dito ou, ainda, incompetência para articular com desenvoltura seu propósito comunicativo. A trajetória traçada pelo agora, conforme discutido até aqui, apresenta fortes indícios de que o item experimenta o processo de gramaticalização, considerando a origem adverbial, tanto locativa como temporal, a passagem pelas funções conectivas e o uso como articulador discursivo. Vale salientar que, nessa diversidade de funções, um uso não tem exclusividade em uma determinada sincronia em detrimento de outro, ou seja, eles podem conviver sincronicamente sem que se exclua qualquer das funções para as quais a forma é acionada. 3. Sugestões funcionalistas: contemplando o ensino Dificilmente se pode estudar ou ensinar qualquer conteúdo sem que se parta de uma base classificatória. E qualquer estudioso pode classificar ou categorizar os instrumentos linguísticos coerentemente, desde que se paute em critérios lógicos e teoricamente consistentes. Sabemos que classificar é ordenar a partir de um determinado ponto de vista. Como a escola tem ensinado a classificação dos itens conjuncionais? Simplesmente segue o que preconizam os compêndios gramaticais e suas ramificações em manuais didáticos, apresentando listas, e ilustrando com exemplos fabricados para atestar a situação, ou coletados em autores considerados bons pelos próprios gramáticos. Observando, por exemplo, o caso dos conectores adversativos, vamos encontrar, com raríssimas variações, uma lista mínima, da qual constam os itens: mas, porém, entretanto, no entanto. Com vistas à provocação ora ensaiada, consultamos em sete gramáticas pedagógicas de cunho normativo a lista dos conectores adversativos (CUNHA, 1980; MELO, 1987; PASCHOALIN; SPADOTO, 1989; TERRA, 1997; TUFANO, 2001; SACONNI, 2003; MESQUISTA; MARTOS, 2004). Em apenas uma delas (MELO, 1987) é citado o item agora e em todos os exemplos utilizados pelos diversos autores são apresentadas formulações em que aparecem o mas e o porém. De certa forma, isso é
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compreensível, uma vez que esses dois elementos são, de fato, numa escala de prototipicidade, os que apresentam o maior numero de traços de conectores adversativos, conforme podemos atestar em Silva (2005). No entanto, esse tipo de abordagem é reducionista porque leva o estudante a restringir seu repertório, não sendo convidado a refletir sobre a natureza variacionista da língua, nem instigado a perceber as diversas possibilidades de inovação que as construções linguísticas, observadas em seus usos reais, podem experimentar. Ao nos determos, especificamente, sobre o item agora, em amostras de fala do corpus do D&G da cidade de Natal-RN, podemos atestar flagrantes movimentos funcionais que se revelam nos dados observados. Não nos preocupamos, na presente discussão, em quantificá-los, mas sua frequência como elemento adversativo, ou como elemento cumpridor de uma função mais discursiva (com maior grau de abstração) é significativamente recorrente. Percebidos os fatos linguísticos desse modo, uma questão se impõe: que inovações podem ser tentadas no ensino de língua, em relação ao uso dos conectores, no sentido de desenvolver as competências linguísticas dos alunos, objetivando a produção de enunciados mais estrutural e conceptualmente bem formados? Arriscamo-nos, na sequência, a sugerir uma série de intervenções voltadas à consecução desse propósito: ►
►
Identificar e quantificar dados de língua oral (como também de escrita) é atividade recomendável porque se constitui em oportunidade para o aluno manipular informações linguísticas que lhes suscitem a reflexão sobre os padrões de uso e correção. Além disso, promove a salutar experiência de realizar atividades de pesquisa, nas quais se estimula uma participação mais ativa na construção do conhecimento sobre a língua, no que concerne às escolhas e seleções feitas pelos usuários nas mais diversas instâncias comunicativas. Examinar dados de língua oral e/ou escrita produzidos em situações reais de uso da língua é provocar nos alunos a capacidade analítica voltada à construção de um conhecimento que parta de uma postura reflexiva. Isso não invalida nem impede
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o estudo da norma considerada padrão, mas pode orientar o aluno a compreendê-la a partir de parâmetros críticos por ele mesmo constituídos. Essas análises devem ser fundamentadas na percepção de que a língua é discurso/gramática e que se (re) faz na fluidez dos usos, sendo passível de inovações, apesar de parecer repousar sobre uma regularidade absoluta.
4
►
Defender a teoria da prototipicidade, na perspectiva da linguística funcional, impõe-se como produtivo exercício de classificação de itens e construções pelos professores e alunos, uma vez que possibilita, inclusive, um embate entre a classificação normativo-prescritivista e aquela feita a partir da observação de dados concretos de uso da língua. Lembramos, entretanto, que a classificação será boa, se os critérios selecionados também o forem, como, aliás, já disse Gladstone Chaves de Melo, em sua tradicional Gramática Fundamental da Língua Portuguesa.
►
Comparar manifestações linguísticas de épocas distintas é estratégia didática positiva, já que, por seu intermédio, se pode constatar a variação e a mudança de comportamento sintático-semântico de que são passíveis os elementos mais diversos. Lembramos que os aspectos cognitivos relacionados ao sentido gramatical dos itens e construções linguísticas são mais bem compreendidos se considerados como passíveis de mudança, considerando-se a instabilidade e o dinamismo que caracterizam o universo comunicativo. Por isso, os estudos relacionados à gramaticalização envolvem a necessidade de comparação entre estágios linguísticos distintos, utilizando-se de abordagens tanto sincrônicas como diacrônicas, determinando a primazia de um tratamento pancrônico4 para a consecução de melhores resultados nas investigações envidadas nesta área do conhecimento.
►
Propor pesquisas nas quais os alunos observem (e até gravem, se possível) situações relativamente informais de fala em que alguns registros não acomodados no cânone gramatical podem ser recorrentes, observando se são restritos a falantes pouco
Cf. Furtado da Cunha, Oliveira e Votre (1999).
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escolarizados ou se são frequentes, também, na linguagem dos usuários com alto nível de escolaridade, quando se encontrem em contextos não monitorados, pode ser ferramenta relevante no combate ao preconceito linguístico. É uma estratégia para fomentar a reflexão sobre padrões de adequação/ inadequação, ou até mesmo, sobre acerto e erro em relação aos usos linguísticos. Certamente, essas são algumas estratégias, dentre muitas outras, das quais a prática de ensino de língua pode lançar mão, perseguindo a vivência de uma análise linguística conectada às necessidades interacionais dos alunos e voltada ao desenvolvimento de suas habilidades interacionais. A competência comunicativa, bem o sabemos, é diretamente influenciada pela capacidade criativa, a qual somente um ensino mais reflexivo pode estimular. Reflexões conclusivas O ensino de língua se distancia em muito dos usos linguísticos que emergem nas situações interacionais nas quais os falantes/alunos estão inseridos e, embora seja importante expandir o repertório linguístico e investir na ampliação do conhecimento sobre a língua, esse distanciamento, provavelmente, tem tornado impeditivo o desenvolvimento das habilidades expressivas dos discentes. O desprezo à constatação de que a língua é um fenômeno em permanente devir, complexo e eivado de múltiplas facetas, que nunca está finalizado, mas sim em contínua construção, constitui-se numa postura contraditória e incoerente quando se tem por objetivo aprimorar o conhecimento do aluno em relação ao domínio do linguagem. Neste trabalho, acomodados em pressupostos da linguística funcional, apresentamos a feição dinâmica do comportamento sintático-semântico do item linguístico agora, para tentar defender que uma abordagem privilegiadora dos usos linguísticos, especialmente, os da modalidade oral, pode tornar mais realista e, talvez, por isso mesmo, mais instigante a construção do conhecimento linguístico do aluno. Vale ressaltar que nosso propósito de inserir dados da língua oral em
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situações de aprendizagem não se coloca como excludente em relação ao uso padrão, tampouco intenciona desconsiderar a relevância que a chamada gramática tradicional pode ter nas aulas de língua. Apenas, questionamos o seu absolutismo e a insistência em uma pedagogia linguística que já não tem conseguido atingir seus propósitos mais elementares: levar o aluno da educação básica a ler e a escrever proficientemente em sua própria língua. Acreditamos, por fim, que um ensino que contemple a descrição das formas e a análise das funções, atuando num contínuo de usos que pode ir do extremamente informal ao plenamente formal, deve se afirmar enquanto prática pedagógica que valorize a língua oral, confirmando a natureza variável e flexível da realidade linguística.
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CARTOGRAFAÇÃO DE DADOS TOPONÍMICOS NO BRASIL: PERSPECTIVA HISTORIOGRÁFICA CARTOGRAPHY OF THE TOPONYMIC DATA IN BRAZIL: HISTORIOGRAPHICAL PERSPECTIVE Márcia Zamariano1 Universidade Estadual de Londrina
RESUMO O objetivo deste trabalho é apresentar um panorama da cartografação de dados toponímicos no Brasil. Como síntese da pesquisa, apresentamos cartas toponímicas que representam tentativas de cartografação dos topônimos de São Paulo, Paraná, Mato Grosso do Sul, Roraima, Bahia, Minas Gerais e Goiás. Palavras-Chave: Toponímia; Cartografação; Perspectiva historiográfica. ABSTRACT The objective of this paper is to present a cartography panorama of the toponymic data in Brazil. As a synthesis of this paper, we present toponomic letters that represent attempts to cartography of the toponomies of São Paulo, Paraná, Mato Grosso do Sul, Roraima, Bahia, Minas Gerais and Goiás. Keywords: Toponomy; Cartography; Historiographical perspective.
INTRODUÇÃO A língua exerce, em toda e qualquer sociedade, um papel preponderante, tendo em vista que é por meio dela que nos comunicamos, interagimos, forjamos os nossos juízos, exprimimos os nossos pensamentos, projetos, sentimentos e emoções. Antes disso, ela é o instrumento com que o homem inteligente significa para si o mundo ao seu redor, tomando conhecimento dele no processo vital da inteligência que é ato de pensar, verbalizar, raciocinar. Isso só e possível porque o homem se expressa por meio de palavras, frases e textos e com eles se comunica, abstrai e interpreta a realidade das coisas que existem, inventa outras e lhes atribui nomes. 1
Doutora em Estudos da Linguagem pela UEL. (mazamariano@gmail.com)
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Assim, pela ação de nomear, o ser humano expressa sua própria essência espiritual, e, quando no cotidiano designa as coisas, manifesta a sua essência linguística. Biderman (1998, p.81; 88; 90) considera a palavra “mágica, cabalista e sagrada”, constitutiva de uma realidade dotada de poder. A partir da palavra, as “entidades da realidade” podem ser nomeadas e identificadas, criando um universo significativo revelado pela linguagem. A autora pondera ainda que “o uso de palavras para designar os referentes extralinguísticos é específico da espécie humana”. Acrescenta, ainda, que “o léxico é conceptualizado como um conjunto de representações, de objetos mentais que se consubstanciam nas palavras que esse indivíduo domina e das quais ele se serve” para se comunicar. O léxico é o nível linguístico que melhor expressa a mobilidade das estruturas sociais, a maneira como a sociedade vê e representa o mundo, já que age como elemento propagador do complexo inventário de todas as ideias, interesses e ocupações que abarcam a atenção da comunidade (SAPIR, 1969, p.27). Considera-se que, para o real conhecimento da língua de um grupo humano, é preciso observar também a sua história, os seus costumes e o ambiente em que ele vive. As relações língua-cultura-sociedade estão refletidas na língua e, a partir de seu estudo, principalmente no nível lexical, podemos observar aspectos valorizados por determinado grupo e até as condições de vida impostas a ele pelo meio físico. Dessa forma, a análise do acervo lexical de um grupo reflete o seu modo de ver a realidade e a forma como seus membros organizam o mundo que os rodeia, por exemplo, quando nomeiam pessoas e lugares. A investigação do léxico toponímico constitui o objeto de estudo da Toponímia2, área que concebe o topônimo como uma expressão linguístico-social que reflete aspectos culturais de um núcleo humano existente ou preexistente. A Toponímia, que tem por objeto de estudo o exame da origem e do significado dos nomes dos lugares (topônimos), é um dos ramos da Onomástica ou Onomatologia – ciência dos nomes próprios – juntamente com a Antroponímia, que se ocupa do estudo dos nomes 2
Em geral, ao ser tomada como campo de conhecimento, a Toponímia é pensada de modo específico sobre sua natureza interdisciplinar, uma vez que essa disciplina se completa com a busca de informações nos campos temáticos de outras disciplinas como a História, a Geografia, a Linguística, a Antropologia, a Sociologia, a Filosofia e até mesmo na Psicanálise.
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próprios de pessoas. Os membros de qualquer comunidade nomeiam tudo, mas também aquilo, que de alguma maneira apresenta algum tipo de interesse para eles. O “batismo de lugares” é, pois, profundamente influenciado pela cultura do povo, da sociedade, por meio de eventos ocorridos em tempos passados. O topônimo é sempre um depósito da memória coletiva; não é algo estranho ou alheio ao contexto histórico-político da comunidade, pois guarda estreita ligação com o solo, com o clima, com a vegetação abundante ou pobre e com as próprias feições culturais de uma região em suas diversas manifestações de vida. Ele testemunha o passado no presente, razão pela qual permite recuperar sucessivas vivências humanas, sobretudo nos lugares onde povos de culturas e línguas diferentes se sobrepuseram. Os estudos toponímicos vêm se constituindo em um caminho possível para o conhecimento dos mais variados aspectos culturais das comunidades linguísticas que ocupam ou ocuparam uma determinada localidade. Não se busca nesses estudos apenas a origem do topônimo, mas também a motivação que subjaz à escolha do designativo. No Brasil, a Tese de Doutoramento da Profa. Maria Vicentina de Paula do Amaral Dick, defendida em 1980, além de apresentar fundamentos teóricos e metodológicos da Toponímia, representa um primeiro despertar para a necessidade de cartografação de dados toponímicos no Brasil3. De acordo com Aguilera (2006, p.134), a década de oitenta é “uma referência para a expansão dos estudos toponímicos no Brasil”, mas é na de 90 que “pesquisadores de outras instituições começam a desenvolver projetos voltados para esse ramo do conhecimento linguístico”. Assessorados e aplicando a teoria e princípios metodológicos construídos por Dick, surgem outras variantes regionais do Projeto ATB – Atlas Toponímico do Brasil, dentre elas, os projetos ATEPAR – Atlas Toponímico do Estado do Paraná; ATEMS – Atlas Toponímico do Estado de Mato Grosso do Sul; ATEMIG – Atlas Toponímico do Estado de Minas Gerais; ATITO – Atlas Toponímico Indígena do Tocantins, além de recortes em outras unidades da federação, estudados como trabalho acadêmico em 3
A teoria e os princípios metodológicos construídos por Dick a partir da toponímia brasileira foram aplicados e aprofundados em dados da toponímia de São Paulo, no Projeto ATESP – Atlas Toponímico do Estado de São Paulo, variante regional do ATB – Atlas Toponímico do Brasil.
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nível de pós-graduação, conforme será demonstrado neste trabalho que tem como propósito focar a historiografia das variantes regionais de projetos de atlas toponímicos, bem como trabalhos acadêmicos vinculados ou não a esses projetos que apresentaram propostas de cartografação toponímica. 1. Os Atlas Toponímicos A elaboração de um atlas toponímico foi pensada basicamente para a leitura da cartografia oficial, diferindo, nesse ponto, “dos Atlas Linguísticos concebidos como levantamentos das realizações fonológicas do grupo e suas decorrências, em pontos escolhidos como adequados”. Com relação à metodologia proposta para a interpretação do sistema toponímico do Brasil, “não difere, assim, em sua base, do estabelecido por Dauzat para a apreensão da nomenclatura geográfica da França”. E acrescenta que discorrer sobre a elaboração de um Atlas Toponímico é trazer, simultaneamente, à discussão, uma série de “questões ligadas a princípios teóricos que se encontram definidos em outras sequências de conteúdo, sob outros títulos, mas que se interligam nas tipologias dos topônimos”. O reconhecimento destes é, o “objetivo de base da organização de um Atlas” (DICK,1998,p.189). 1.1 São Paulo Em se tratando do primeiro modelo regional do ATB, o projeto ATESP, Dick esclarece que, dentro da metodologia adotada, a elaboração dos atlas toponímicos estaduais, de que o de São Paulo é o protótipo, operacionaliza-se, segundo as seguintes etapas: 1 - pelo remapeamento da divisão municipal, de acordo com as camadas dialetais presentes na língua padrão (a estratigrafia toponímica, em São Paulo, acusa nomes portugueses, tupis, guaranis, kaingangues, africanos e de natureza híbrida); 2 - pela distribuição toponímica em categorias taxionômicas, que representam os principais padrões motivadores dos topônimos no Brasil (DICK, 1998, p.191). Segundo Dick (1996, p. 29; 40), estudar “a codificação onomástica, cartograficamente, é penetrar nos meandros do sistema da linguagem, de que é extensão particularizadora ou referencial”. Assim, para a cartografação da toponímia do Estado de São Paulo, a pesquisadora propõe dois tipos de
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cartas, para fins de registro da nomenclatura municipal: cartas gerais e cartas parciais, ambas configurando-se como mapas temáticos, do ponto de vista da cartografia moderna. Segundo esse modelo, as cartas gerais têm como objetivo mapear o conjunto dos estratos etnodialetológicos do sistema toponímico paulista (português, africano e indígena), identificando-os por cores contrastantes, destacando, na estrutura territorial, a ocorrência dos vocábulos pertencentes às diferentes línguas. Já as cartas individuais, uma subdivisão das cartas gerais, objetivam mapear as camadas dialetais e buscam a visualização da quantificação numérica de cada uma dessas camadas, segundo a área, a interpenetração vocabular, os pontos de concentração e de distanciamento dos focos de irradiação e a inexistência de traços linguísticos de determinada origem em determinadas regiões (DICK, 1996, p. 40). As cartas parciais, por sua vez, “incidem também em cada um dos estratos linguísticos revelados, e levam em conta as categorias taxionômicas classificatórias e o índice de sua incidência no corpus toponímico”. Depois de interpretados e analisados, os topônimos devem ser inscritos em cartas taxionômicas corocromáticas qualitativas ou temáticas, cujo número deve ser proporcional ao dos acidentes classificados (DICK, 1996, p.40). Em outra oportunidade, a pesquisadora retoma a discussão sobre a elaboração de um atlas toponímico e apresenta o modelo de carta geral do Estado de São Paulo. A seguir, apresentamos a reprodução de uma carta toponímica do ATESP publicada por Dick (2006, p.222):
AFRICANO HÍBRIDA INDÍGENA PORTUGUESA
Figura 1: Carta Geral do Estado de São Paulo
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A partir da década de 90, do século XX, surgiram variantes do Projeto ATB que, além da coleta de dados, ensaiaram tentativas cartográficas em vários Estados como Paraná, Mato Grosso do Sul, Roraima, Bahia, Minas Gerais e Goiás. 1.2 Paraná O Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina, sob a coordenação da Profa. Dra. Maria Antonieta Carbonari de Almeida, desenvolveu, no período de 1996-1999, o projeto “Pelos caminhos do Paraná: esboço de um Atlas Toponímico – ATEPAR”4 que, nessa etapa, fez o levantamento e a classificação dos topônimos de 323 municípios cadastrados pelo IBGE, até 1991. Já na sua segunda etapa, o projeto “A Toponímia Paranaense - ATEPAR 2”5, desenvolvido entre 2000 e 2003, envolveu os novos municípios emancipados a partir de 92, perfazendo o total de 399 municípios.A partir dessas iniciativas constituiuse o banco de dados do ATEPAR (cerca de 20.000 topônimos cadastrados com análise etnolinguística, taxionômica e etimológica), com dados obtidos mediante cartas enviadas às Prefeituras Municipais. Como produto relacionado ao Projeto ATEPAR, Aguilera (2006, p.134) destaca o desenvolvimento de trabalhos sob forma de monografias de conclusão de cursos de pós-graduação lato sensu (cerca de 20 trabalhos) ou como dissertações de Mestrado (04), além de cerca de 50 estudos, apresentados como comunicação em Congressos e similares e publicados sob a forma de artigos em periódicos e anais de eventos6. Dados os objetivos e dimensão deste estudo, apresentamos, na sequência, informações pontuais sobre os quatro trabalhos produzidos como dissertações de Mestrado, defendidas no Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade Estadual de Londrina (UEL). A dissertação O nome e o lugar: uma proposta de estudos toponímicos da microrregião de Paranavaí (1998), de Ignez de Abreu Francisquini, catalogou 4
O ATEPAR teve como objetivo inventariar e classificar todos os topônimos paranaenses, segundo as taxionomias propostas por Dick (1990b, p.31-34). 5 O encerramento do projeto ATEPAR-2 se deu em 30 de setembro de 2003, com o relatório final apresentado em 07 de outubro de 2003. 6 Dados gerais acerca do percurso do Projeto ATEPAR, em especial os produtos gerados por esse projeto de pesquisa foram apresentados por Zamariano (2006) e por Moreira (2006).
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e analisou 730 topônimos de 29 municípios da microrregião de Paranavaí, apresentando também como produto final um glossário desses topônimos, contendo a etimologia, a estrutura morfológica e a motivação toponímica de cada topônimo. Já a pesquisa intitulada A relação da hidronímia com a História Social do Paraná: uma descrição diacrônico-contrastiva (2004) de Lídia Albino, estudou os topônimos relativos aos afluentes e subafluentes do rio Iguaçu, em dados recolhidos de mapas de três períodos: 1876, 1896 e de 107 mapas atuais (a partir de 1980), ressaltando os principais fatores que contribuíram para sua estruturação, seja do ponto de vista da filiação linguística ou da motivação originária e, assim, relacionou-os com dados da História Social do Paraná. Outra dissertação, Toponímia Paranaense do período histórico de 1648 a 1853 (2006), de Márcia Zamariano, priorizou a catalogação, a classificação taxionômica, a descrição e a análise dos nomes dos acidentes físicogeográficos de 36 municípios paranaenses, fundados entre 1648 e 1853 e discutiu a inter-relação homem/ambiente/língua/cultura com base nos topônimos registrados nos municípios estudados. Por fim, a dissertação A Toponímia paranaense na rota dos tropeiros: caminho das Missões e Estrada de Palmas, de Hélio Costa Moreira (2006), priorizou a catalogação, a classificação taxionômica, a descrição e a análise dos nomes de acidentes físico-geográficos dos municípios paranaenses localizados no Caminho das Missões e na Estrada de Palmas, delineados no mapa elaborado por Brasil Pinheiro Machado (1963), com o objetivo de verificar em que proporção o Ciclo do Tropeirismo deixou marcas na toponímia pesquisada. Apesar de o material coletado pelo Projeto ATEPAR não ter gerado o mapeamento dos dados por meio de um atlas toponímico, houve tentativas de cartografação desses dados. A primeira delas integra o trabalho monográfico de Oliveira (2000), que apresentou uma proposta de cartografação da mesorregião Norte Pioneiro. Parte dos resultados desse estudo foi publicada por Milani e Oliveira (2002). A seguir reproduzimos um modelo de carta extraído desse trabalho:
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Figura 2: Modelo de Carta Toponímica Ainda com relação a modelos de cartas apresentadas para a cartografação dos dados do ATEPAR, no encerramento do Projeto, o Prof. João Antonio Leite Ramos, membro da equipe de pesquisa, elaborou um modelo de carta, organizado a partir das informações disponíveis no banco de dados do Projeto ATEPAR/UEL, a seguir reproduzido7:
Figura 3: Carta Toponímica – Fitotopônimos – Microrregião de Jaguariaíva 1.3 Mato Grosso do Sul O Projeto Atlas Toponímico do Estado de Mato Grosso do Sul, em desenvolvimento na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), sob a coordenação da Profa. Dra. Aparecida Negri Isquerdo, na sua primeira etapa (2002-2006), segundo Isquerdo (2008, p.58), recolheu e analisou 7
Produto de caráter inédito – integra o Relatório Final do Projeto ATEPAR (2003). Não constam no Relatório os critérios que orientaram a elaboração dessa carta.
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os dados dos municípios sul-mato-grossenses, por meio da produção de 06 dissertações de Mestrado, produzidas e defendidas no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Letras, do Campus de Três Lagoas/UFMS (SCHNEIDER 2002; DARGEL, 2003; TAVARES, 2004; GONSALVES, 2004; TAVARES, 2005 e SOUZA, 2006). Vale registrar que essas pesquisas seguiram os mesmos procedimentos teórico-metodológicos, no que diz respeito à fonte primária dos dados (folhas cartográficas do IBGE e/ou do Exército Brasileiro, na escala 1:250.000) e ao modelo de classificação taxionômica dos designativos de lugares (DICK, 1992). Dentre esses trabalhos acadêmicos, 02 apresentaram propostas de cartografação de dados (DARGEL, 2003; TAVARES, 2005), cujos resultados serão a seguir retomados. A Dissertação de Mestrado – Entre buritis e veredas: o desvendar da toponímia do bolsão sul-mato-grossense, de Dargel (2003), por exemplo, contém a primeira proposta de cartografação da toponímia sul-matogrossense, pautando-se na teoria de Dick (1996). Dargel (2003, p.170-171) apresentou como parte de sua dissertação, um esboço de atlas contendo 54 cartas toponímicas relativas aos 11 municípios que integram a região do Bolsão sul-mato-grossense. Segundo a autora, a sua proposta de carta toponímica assemelha-se ao modelo de Dick (1996), apresentando “uma carta toponímica para cada taxe sugerida e a separação dos municípios por cores”, diferenciando-se quanto à base cartográfica – Dargel (2003) identifica o acidente por meio de coordenadas geográficas. A proposta de Dargel (2003, p.183-224) inclui ainda uma carta para o total de topônimos em cada um dos municípios estudados (Carta X); uma carta que representa os fitotopônimos no conjunto geral dos dados (Carta XXVI); uma carta para a língua de origem dos topônimos (Carta XLIV), com a estrutura morfológica dos topônimos (Carta LII). A seguir, reproduzimos a carta XXVI:
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Figura 4: fitotopônimos – Bolsão sul-mato-grossense Parte das cartas propostas por Dargel (2003) segue o modelo de Dick (1996a), à medida que apresenta uma carta toponímica para cada taxe sugerida pela toponimista, identificando os municípios por cores. Outras se diferenciam do modelo citado quanto à base cartográfica, pois as sugeridas por Dargel “representam uma tentativa de facilitar a identificação dos acidentes por meio de coordenadas geográficas, que podem ser colhidas por GPS ou por intermédio de carta oficial do IBGE ou do Exército Brasileiro” (DARGEL, 2003, p. 170-171). Outro recurso utilizado nas cartas apresentadas por essa autora, a partir da teoria de Dick (1996, p.33-41), é a não marcação cromática do município que apresentou ocorrência zero do dado mapeado, facilitando, assim, a leitura da não ocorrência de topônimos da taxionomia toponímica em questão ou de algum topônimo representado na carta. Cada município foi codificado com uma cor distinta. Além das cartas que seguiram a orientação teórica de Dick (1996a), Dargel apresentou outros modelos que surgiram da necessidade de mapear particularidades do universo pesquisado como, por exemplo, a Carta Toponímica II, que contém os caminhos dos sertanistas pelas águas, mais especificamente, o roteiro que os bandeirantes percorriam, no Bolsão, através dos rios, entre outras. Outra proposta de cartografação para a toponímia sul-matogrossense, vinculada ao Projeto ATEMS, foi a apresentada por Tavares (2005), na Dissertação de Mestrado – Estudo toponímico da região Centro-norte
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do Mato Grosso do Sul: o desvendar de uma história, também defendida na UFMS. A autora utiliza como parâmetro as orientações teóricas de Dick (1996) e ratifica, em alguns aspectos, a proposta de Dargel (2003). Tavares (2005, p. 190) argumenta que as suas cartas assemelham-se às de Dargel em dois aspectos: foi deixado em branco, nas cartas, o município cujos topônimos ainda não foram classificados em termos taxionômicos e codificamos a identificação de cada município com uma cor; apresentamos a quantificação dos topônimos tanto em valores numéricos como em percentuais, com a diferença de organizarmos em ordem decrescente os dados da legenda. A diferença entre as cartas de Dargel e as de Tavares está no fato de esta última pesquisadora não ter detalhado as coordenadas geográficas das cartas. A seguir, reproduzimos a carta II de Tavares (2005):
Figura 5: Quantificação dos topônimos dos acidentes físicos e humanos por município da mesorregião Centro-Norte de Mato Grosso do Sul
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A segunda etapa do Projeto ATEMS configura-se, a partir de 2008, como um Projeto interinstitucional, sediado na UFMS, que congrega pesquisadores de outras Instituições de Ensino Superior (UFGD – Universidade Federal da Grande Dourados, UEMS – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul e UNIDERP – Universidade Anhanguera), desenvolvido com apoio financeiro da FUNDECT – Fundação de Apoio ao Desenvolvimento de Ensino, Ciência e Tecnologia do Mato Grosso do Sul. Nessa fase, o Projeto ATEMS, além de ampliar a base de dados com três produtos finais: a organização de uma base de dados informatizada sobre a toponímia sul-mato-grossense, contendo informações detalhadas acerca de cada topônimo estudado (etimologia, estrutura morfológica, classificação taxionômica, histórico do topônimo, informações enciclopédicas sobre o nome, dentre outros); ii) a construção do Atlas toponímico que visualizará dados relativos aos topônimos que nomeiam acidentes humanos (municípios, vilas, distritos, povoados, bairros rurais...) e físicos (rios, lagoas, corixos, serras...), localizados nos diferentes municípios do Estado; e, iii) construção do dicionário de topônimos do estado de Mato Grosso do Sul (ISQUERDO, 2008, p.58). Embora o Projeto ATEMS ainda esteja em execução (na fase de revisão e discussão sobre a cartografação dos dados), alguns dados iniciais do Projeto, relativos à macrotoponímia já vêm sendo mapeados, como os apresentados, a seguir:
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Figura 6: Nomes dos municípios sul-mato-grossenses: estratos indígenas
Figura 7: Ano de fundação: municípios de Mato Grosso do Sul
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1.4 Roraima Outra proposta para a cartografação de dados toponímicos foi apresentada por Carneiro (2007), em sua Dissertação de Mestrado A morada dos Wapixana: Atlas Toponímico da região indígena da Serra da Lua – RR. Segundo Carneiro (2007), a morada dos Wapixana (Arawak) são os campos do nordeste de Roraima e, em sua porção sudeste, se encontra a região indígena da Serra da Lua, composta de 17 malocas indígenas com 5.000 Wapixana. O autor apresentou como resultado de sua pesquisa mapas dialetológicos e taxionômicos, como os representados a seguir:
Figura 8: Mapa Taxionômico-toponímico das malocas – Serra da Lua – Roraima 1.5 Bahia Ramos (2008) também incluiu como parte da sua Tese de Doutoramento, Toponímia dos municípios baianos: descrição, história e mudanças, o Atlas Toponímico-Histórico dos Municípios Baianos (ATHMB), apresentado como volume 2 da Tese. Esse atlas contém 35 cartas, assim distribuídas: 8 cartas introdutórias; 23 cartas toponímicas e 4 cartas complementares. A pesquisa estudou os topônimos de todos os municípios do Estado da Bahia, analisados em
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05 diferentes sincronias (1827, 1890, 1940, 1970 e 2000) e também numa perspectiva diacrônica. Selecionamos para representar o modelo sugerido por Ramos a carta pertencente à sincronia de 2000 (Carta 28): Carta 28: Categorias Toponímicas Gerais no Estado da Bahia em 2000
categorias de natureza física
categorias de natureza antropocultural
Figura 09: Categorias toponímicas gerais – 2000 – Bahia 1.6 Minas Gerais Em Minas Gerais, a Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob a coordenação da Profa. Dra. Maria Cândida Trindade Costa de Seabra, desenvolve, desde 2005, o Projeto Atlas Toponímico do Estado de Minas – ATEMIG. Esse Projeto caracterizase como um estudo dos nomes de lugares que abrange todo o território mineiro, tendo como objetivos básicos: i) reconhecer remanescentes lexicais na rede toponímica mineira cuja origem remonta a nomes portugueses, africanos, indígenas, dentre outros; ii) estudar o padrão motivador dos nomes, resultante das diversas tendências étnicas registradas (línguas indígenas, africanas e de imigração) e iii) buscar a influência das línguas
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em contato no território. Como variante regional, o projeto adota a mesma metodologia do Projeto ATB: i) o “método das áreas” utilizado por Dauzat (1926) que propõe o remapeamento da divisão municipal, de acordo com as camadas dialetais presentes na língua padrão e ii) a distribuição toponímica em categorias taxionômicas que representam os principais padrões motivadores dos topônimos no Brasil, sugerida por Dick (1990). O projeto está realizando o detalhamento da realidade toponímica mineira, com vistas a identificar as características denominativas dos acidentes geográficos de todos os municípios do estado de Minas Gerais. Para tanto, está levantando todos os nomes de povoados, rios e acidentes geográficos documentados em mapas municipais – fontes do IBGE, com escalas que variam de 1:50.000 a 1:100.000. Os topônimos coletados são registrados em fichas, conforme modelo sugerido por Dick (2004), para posterior análise e classificação. Essas fichas constituem uma análise detalhada do topônimo, com informações que o integram à sociedade e à cultura (SEABRA, 2008, p.229-236). No Projeto ATEMIG já foram apresentados alguns esboços de cartas para 03 regiões do estado de Minas Gerais, dentre as 10 que compõem a divisão de macrorregiões. As cartas foram elaboradas a partir da metodologia sugerida pela coordenação do ATB: o “método das áreas” utilizado por DAUZAT (1926) e a distribuição toponímica em categorias taxionômicas que representam os principais padrões motivadores dos topônimos no Brasil, sugerida por DICK (1990). Escolhemos para representar o modelo sugerido por Seabra (2008, p.229-236) a carta da região do Triângulo Mineiro:
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Figura 10: Carta toponímica – região do Triângulo Mineiro – Minas Gerais 1.7 Goiás A cartografação de dados toponímicos também foi objeto da pesquisa de Pereira (2009), em sua Dissertação de Mestrado A Toponímia de Goiás: em busca da descrição de nomes de lugares de municípios do sul goiano. A pesquisa analisou os nomes dos acidentes físicos da microrregião de Quirinópolis – Goiás, além de ter realizado um estudo comparativo entre os topônimos dessa microrregião, os da região do Bolsão Sul-mato-grossense (DARGEL, 2003) e os de 11 municípios do Triângulo Mineiro (Projeto ATEMIG). O estudo comparativo da toponímia da região de fronteira entre Goiás, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais buscou identificar possíveis isoglossas toponímicas nessas áreas de fronteira. A proposta de cartografação se compõe de 11 cartas toponímicas, das quais selecionamos a Carta IX, apresentada na sequência:
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Figura11: Carta toponímica – distribuição quantitativa de topônimos de base indígena na fronteira de Goiás com os Estados de Mato Grosso do Sul e Minas Gerais 2. Atlas toponímico das mesorregiões Metropolitana de Curitiba, Centro-oriental e Norte Pioneiro, do Paraná: uma proposta8 2.1 Princípios orientadores Em uma pesquisa sobre a toponímia de uma determinada região, os dados toponímicos tabulados podem ser exibidos tanto em forma de mapas e cartas quanto em forma de gráficos. A diversidade de temas trabalhados num atlas, seja em visão estática, de caráter dinâmico, seja em raciocínio analítico, pode recorrer aos métodos de representação oferecidos pela Cartografia temática. Apresentamos a seguir uma proposta de cartografação de dados toponímicos das 03 mesorregiões do Estado do Paraná. O elenco dos topônimos pesquisados em mapas oficiais dos municípios das 03 mesorregiões foi distribuído em 02 grupos de cartas de acordo com a natureza do acidente nomeado: no 1º as cartas apresentam a macrotoponímia com a nomenclatura ou denominação dos municípios e, posteriormente, a 8
Para maiores esclarecimentos ver: ZAMARIANO, Márcia. Disponível em: http://www. bibliotecadigital.uel.br/document/?code=vtls000161006.
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microtoponímia com a denominação dos acidentes geográficos físicos dos municípios estudados9. No modelo de atlas proposto, para a macrotoponímia (nomes dos municípios) foram concebidas cartas que possuem como base as 03 mesorregiões, visualizando-se a totalidade dos dados e com a mesma base de cartas qualitativas. Já na microtoponímia (denominação dos acidentes), foram considerados 04 níveis de análise – cartas quantitativas, qualitativas, a união das duas e, finalmente, carta com o município, cujos dados foram cartografados. Como síntese da pesquisa, apresentamos a carta toponímica que representa a cartografação dos topônimos das mesorregiões do Estado do Paraná – Metropolitana de Curitiba, do Centro-Oriental e do Norte Pioneiro, elaboradas com base na literatura existente sobre o assunto.
Figura 12: Carta Toponímica IV – Classificação taxionômica dos nomes de municípios 9
Essa divisão para fins de cartografação foi necessária em virtude do grande número de dados catalogados nos mapas dos 97 municípios estudados.
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Considerações finais Os trabalhos a que tivemos acesso com propostas de cartografação, apresentados nesta pesquisa, reforçam a necessidade de parâmetros específicos que orientem a cartografação de dados toponímicos, em termos de microtoponímia, sobretudo, para aqueles municípios que concentram quantidades expressivas de topônimos. Espera-se que as propostas aqui apresentadas para toponímia paranaense possam somar às já existentes e, depois de lapidadas em aspectos que se fizerem necessários, possam servir de parâmetro para cartografação de outros dados toponímicos. REFERÊNCIAS AGUILERA, Vanderci de Andrade. Dialetologia e Toponímia. In: MOTA, Jacyra Andrade; CARDOSO, Suzana Alice Marcelino (Orgs). Documentos 2: Projeto Atlas Linguístico do Brasil. Salvador: Quarteto, 2006, p.129 - 146. BIDERMAN, Maria Tereza. Dimensões da Palavra. In: Revista Filologia e Linguística Portuguesa. São Paulo. Universidade de São Paulo, 1998. p. 81 - 118. CARNEIRO, João Paulo J. Andrade. A morada dos wapixana: atlas toponímico da região indígena da Serra da Lua - RR. 2007. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Universidade de São Paulo, São Paulo. DARGEL, Ana Paula Tribesse Patrício. Entre buritis e veredas: o desvendar da toponímia do Bolsão sul-mato-grossense. 2003. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Três Lagoas. DICK, Maria Vicentina de Paula do Amaral. Atlas toponímico: um estudo de caso. In: Acta Semiotica et Lingvistica. SBPL. São Paulo: Plêiade, v. 6, 1996, p. 27 - 44. ____________. Atlas toponímico: um estudo dialetológico (Projeto ATESP). In: XXIIe Congrès International de Linguistique et de Philologie Romanes. Ed. Tubingen: Niemeyer, v. IV, Bruxelles, 1998. p.189 - 197.
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O QUE RASURAM OS ALUNOS QUANDO ESCREVEM A DOIS UM ÚNICO TEXTO? QUESTÕES EM TORNO DA RASURA E DA ESCRITURA COLABORATIVA WHAT DO THE STUDENTS ERASE WHEN WRITING A COMMON TEXT? ISSUES AROUND THE ERASURE AND COLLABORATIVE WRITING Cristina Felipeto1 Universidade Federal de Alagoas RESUMO Este trabalho, inserido do campo dos estudos sobre processos de criação textual na escola (a partir da Genética Textual) e processos enunciativos (a partir da Linguística da Enunciação) tem por objetivo analisar a incidência das rasuras quando duas alunas recém alfabetizadas combinam e escrevem colaborativamente um único texto. Foram analisadas seis histórias inventadas escritas por uma dupla de alunas durante o período de dois anos, sendo que o intervalo entre uma e outra história foi de aproximadamente três meses. As análises indicam que a porcentagem das rasuras incidentes sobre aspectos de ordem semântica é muito superior àquelas que se observa em outros níveis, como o gráfico e o ortográfico por exemplo, apesar de estes aspectos serem frequentemente visados pelos alunos neste período escolar (1º e 2º anos do ensino fundamental). O que parece justificar, então, uma maior incidência das rasuras de ordem semântica é o fato de estas alunas estarem em situação de escritura colaborativa. Palavras-Chave: rasuras; escritura colaborativa; interação. ABSTRACT This work, which is part of the field of studies on text creation (based on Textual Genetics) and enunciative processes in school (based on Enunciation Linguistics), aims to analyze the incidence of erasures when two newly literate students conceive and collaboratively write a single story. Six stories made up and written by a pair of students over a two-year period were analyzed; the interval between stories was about three months. 1
Pesquisadora filiada ao grupo ET&C – Ensino, Texto e Criação e vinculada ao L’ÂME – Laboratório do Manuscrito Escolar. E-mail: crisfelipeto@gmail.com.
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The analyses indicate that the percentage of erasures involving semantic aspects is much higher than that observed at other levels, such as writing and spelling, for example, although students in this period (1st and 2nd years of elementary school) often focus on the latter aspects. Thus, what seems to explain the more frequent occurrence of erasures of a semantic nature is the fact that these students are involved in a situation of collaborative writing. Keywords: erasures; collaborative writing; interaction.
INTRODUÇÃO Filiado ao campo dos estudos sobre processos de criação textual na escola (Genética Textual) e processos enunciativos (Linguística da Enunciação), o presente estudo2 tem por objetivo analisar sobre o que incidem as rasuras quando duas alunas recém alfabetizadas (6 anos de idade) combinam e escrevem juntas um mesmo texto. Para tanto, analisamos seis histórias inventadas escritas por esta dupla de alunas durante o período de dois anos (1º e 2º anos do ensino fundamental). O corpus3 aqui analisado funda-se sobre a filmagem e posterior transcrição da conversação, procedimento que nos permite captar o que os alunos dizem e escrevem na medida em que a história é criada. Através deste procedimento metodológico foi solicitado que as alunas combinassem previamente o que iriam escrever, de modo que uma era responsável por escrever e a outra por “ditar” o que haviam combinado. Assim, alternadamente, as histórias foram escritas da seguinte forma: Histórias Título
Responsável por escrever:
H1 H2 A Asermã madrasta e as duas irmãos I N
H3 Os treis todinhos e a dona sabor
H4 Em uma casa na floresta
H5 A mãe má
H6 A família F atrapalhada
I
N
I
N
1º ano de coleta – 1º ano do ensino fundamental
2º ano de coleta – 2º ano do ensino fundamental
Tabela 1: Dados analisados 2
Este presente estudo foi financiado pela FMSH – Fondation Maison des Sciences Humaines - durante a realização de um estágio pós-doutoral no ITEM – Institut des textes et manuscrits modernes, Paris, França entre 2009-2010. 3 Este corpus faz parte do banco de dados “Práticas de textualização na escola”, organizado por Calil desde 1996 e conta com mais de 2.500 manuscritos pertencentes a diversos gêneros discursivos, escritos por alunos de 1ª a 9ª séries do ensino fundamental das redes públicas e particulares de Maceió-AL, Rio Largo-AL e São Paulo-SP.
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O intervalo entre uma e outra história foi de aproximadamente três meses e a questão que nos norteou foi: quando alunos escrevem colaborativamente, o quê eles rasuram? Esta questão, levando-se em conta que são duas alunas que escrevem um único texto, levou-nos a um maior delineamento da noção de rasura. Outra questão decorrente da metodologia e à qual procuramos responder foi: qual estatuto acordar à interação? Essas questões serão abordadas ao longo da exposição do trabalho. 1. A especificidade da metodologia e o recorte do objeto A transcrição do registro em vídeo faz parte da metodologia. Ela permite que o processo de escritura4 seja apreendido no tempo. Esta precisão cronológica com que as idas e vindas inerentes à produção de um texto são anotadas enriquece, sem dúvida, o material de análise. Além do mais, ela torna compreensíveis aqueles manuscritos (ou trechos de manuscritos), sobretudo de alunos em alfabetização, cuja opacidade – calvário dos professores de alfabetização! – impediria uma análise lingüística mais precisa. É possível seguir passo a passo os processos de constituição de um texto. Por exemplo, como compreender a presença da palavra “má” escrita de forma bem pequena logo abaixo da palavra “castigo” (2ª linha)? Este fato poderia ser interpretado como um “esquecimento” da aluna que, logo após escrever “pai” volta-se sobre o texto e acrescenta “má” no espaço que resta.
Imagem 1: Texto “A mãe má”, escrito por I e N 4
Compreendemos como escritura, a “sede material onde se condensam os fatos de cultura e da sociedade” (Catach 2008, p. 16). Ainda, de acordo com Grésillon, o termo “escritura” pode ser entendido em três outros sentidos, sendo que “todos implicam uma atividade: em primeiro lugar, o sentido material, pelo qual designamos um traçado, uma anotação, uma inscrição, nível que supõe o suporte, a ferramenta e, sobretudo, a mão que traça; em segundo lugar, apesar de não podermos sempre abstraí-lo do primeiro, um sentido cognitivo, pelo qual designamos a implantação, pelo ato de escrever, de formas de linguagem dotadas de significação e, em terceiro lugar, o sentido artístico, pelo qual designamos a emergência, na própria escritura, de complexos de linguagem reconhecidos como literários” (2007, p. 33).
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No entanto, a transcrição5 nos permite observar que, incomodadas com a excessiva presença da palavra “má” na história, I resolve escrevêla “bem pequenininha”. O diálogo que segue diz respeito exatamente ao momento da escrita de “má”: N: “- má má... só escreve má...” I: “- ...uma mãe... Ah!... todo mundo tem uma mãe, né Narinha?” N: “- ...que tinha uma mãe má.” I: “- não vou escrever má de novo.” N: “- má. Mãe má. Má má má...” I: “- Vou escrever bem pequenininho má [má]” I E N: “- (fazendo vozes grossas e finas.) ...fim pai... fim mãe... fim filho... fim pai... fim mãe... fim filho...” O acesso aos registros orais e escritos de uma gênese, não significa, todavia, acesso à sua “emergência mental”. Opondo-se às pesquisas cognitivas que pretendem apreender cientificamente as representações mentais em produções textuais, Grésillon afirma que A transmissão mais completa [dos dossiês genéticos] é apenas a parte visível [e audível, poderíamos acrescentar] de um processo cognitivo mil vezes mais complexo e que a origem enquanto tal, o nascimento de um projeto mental, é inatingível” (2007, p. 41, comentários entre colchetes nossos). A questão do registro completo6 de uma gênese colocou-nos diante, já em trabalhos anteriores, de apagamentos que ocorrem na oralidade. Entretanto, por se tratarem de apagamentos que ocorrem visando a escrita de um texto temos procurado diferenciá-los do que se convencionou chamar 5
Observações sobre a transcrição: o nome da criança que está escrevendo aparece sublinhado; entre [colchetes] é colocado o que a criança escreveu e entre (parênteses) os comentários do transcritor. 6 Certamente que “completo” aqui não deve ser entendido como “exaustivo”, mas como o que é “possível” de ser registrado e o que é “impossível” não se registrar, devido à presença da câmera: gestos, olhares, momentos em que um outro colega interage, interrompe, momentos em que o professor interfere (ou não), devaneios, presença de outros materiais escritos, como gibis, livros, etc.
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de “reformulação”. Esta, ligada à oralidade, é entendida classicamente como dizer a mensagem precedente de uma outra forma, a parafraseando, seja o próprio enunciador ou o seu interlocutor7. Já a rasura oral é definida por Calil como “fenômeno enunciativo de base dialogal, estabelecido no fluxo da interação presencial (aqui e agora, in praesentia) entre dois ou mais locutores, que materializa a fronteira entre o escrever e o dizer, durante o processo em que escrevem juntos um mesmo texto” (2003). 2. A Crítica Genética A Crítica Genética ou Genética Textual, como preferimos8, é uma disciplina que surgiu no começo dos anos 1970, na França, a partir do estudo e da análise dos conjuntos de documentos relacionados ao processo de criação de uma obra literária. O acesso à gênese de uma obra, ao colocar em evidência as hesitações do autor, as instabilidades do texto, suas idas e voltas bascula, a partir de então, as bases da Crítica Literária e coloca em causa o escritor como centro de uma escritura linear e, por que não, idealizada. 7
Para Passot, “a reformulação consiste, portanto, em dizer a mesma coisa de outra forma, em corrigir um dizer julgado inadequado com relação ao pretendido inicialmente” (2008, p. 84). Já Roulet (1987) distingue a reformulação parafrástica da reformulação não-parafrástica, segundo haja ou não uma identidade semântica entre dois enunciados. Assim, a reformulação não-parafrástica é definida como uma nova formulação em que ocorre uma mudança de perspectiva enunciativa. Todavia, tanto a definição de Passot como a de Roulet não deixam de ter problemas. Um paradoxo interessante é o apontado por Noailly (2008): para o lingüista que sabe que nenhuma palavra vale por outra, redizer dizendo de outra forma é necessariamente dizer outra coisa. Ao contrário, retomar sem mudar os termos já utilizados, não seria também dizer uma outra coisa? Se a frase é a mesma, o contexto em que as mesmas palavras aparecem já é outro... 8 Cabe esclarecer porque daremos preferência ao termo “Genética Textual” (o qual será utilizado daqui em diante) em lugar de “Crítica Genética”. Apesar de este último ter se imposto pouco a pouco após a obra de Grésillon “Eléments de critique génétique: lire les manuscrits modernes” (1994), aquele, como afirma Doquet-Lacoste (2003, p. 58) tem uma acepção mais larga: “A palavra ‘crítica’ evoca exclusivamente o literário, ao passo que ‘textual’ refere-se a todo texto, estendendo assim a aplicação dos métodos genéticos à escritura ordinária. É por isso que reservarei o termo ‘crítica genética’ aos trabalhos sobre literatura, ao passo que ‘genética textual’, por ser mais abrangente, remete igualmente ao objeto da presente pesquisa”. A autora chega mesmo a afirmar que o alargamento da teoria da Genética do Texto ao conjunto de toda produção escrita permite falar na emergência de uma verdadeira “TEORIA DA ESCRITURA” (2003, p. 81). Essa afirmação vai par a par com Grésillon, quando esta afirma que “a complexidade dos materiais genéticos literários e os métodos desenvolvidos para sua análise podem, com efeito, beneficiar a análise de todo corpus de produção escrita” e “se ousei evocar anteriormente os ‘universais’ da produção escrita, é com efeito em direção a isso que tende essa jovem ciência” (2007, p. 286 e 287, respectivamente).
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O que torna seu trabalho viável É o manuscrito de trabalho, aquele que porta os traços de um ato, de uma enunciação em marcha, de uma criação que está sendo feita, com seus avanços e seus bloqueios, seus acréscimos e seus riscos, seus impulsos frenéticos e suas retomadas, seus recomeços e suas hesitações, seus excessos e suas faltas, seus gastos e suas perdas (Grésillon, 2007, p. 19). Pesquisadores da Genética Textual, buscando decifrar o emaranhado de reformulações, rasuras, manchas ou rabiscos que são próprios ao processo escritural encontram nos manuscritos literários marcas para compreender, ao menos em parte, os mistérios que envolvem os caminhos trilhados pelo autor. Neste sentido, a relação com a Genética Textual torna a investigação sobre o processo de escrever suscetível de evoluir tão logo se insista no aspecto sempre ativo e freqüentemente imprevisível que acompanha a escritura. Além de nossa afinidade aos pressupostos da Genética Textual, o presente estudo insere-se em um conjunto de reflexões que entende o manuscrito escolar e a relação do aluno com seu próprio escrito como lugar material de emergência da sua singularidade, apesar da demanda de homogeneização inerente à prática escolar. Muito embora pesquisadores da Genética Textual trabalhem sobre processos de escritura, recolhendo documentos de todo tipo designados como “dossiê genético”, isto é, Notas de leitura, carnês, cadernos, planos, esboços e cenários, rascunhos de redação, provas corrigidas, etc. […], na maior parte dos casos, trata-se até o presente de manuscritos autógrafos, portanto, escritos pela mão do autor [...] é através das rasuras e reescrituras que o geneticista reconstrói as etapas sucessivas da elaboração textual (GRÉSILLON, 2006, p. 78). O processo não é, portanto, acessível diretamente, mas resulta de uma reconstrução que se torna possível pelos índices contidos no espaço
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gráfico do manuscrito. Esse diferencial com relação à Genética Textual deve ser levada em conta, pois a metodologia aqui empregada levou Calil (2003) a forjar o conceito de “manuscrito oral” visando dar conta de um processo que envolve tanto a escrita quanto os enunciados proferidos enquanto um texto está em vias de ser escrito. Para este autor, “o manuscrito escolar é o produto de um processo escritural que tem a instituição escola como pano de fundo, como referência, como um cenário que contextualiza e situa o ato de escrever” (CALIL, 2003, p.32). O manuscrito escolar constitui, desse modo, um traço visível do processo de escritura. Como manuscrito entende-se, portanto, os suportes que suportam todas as marcas – traços, rabiscos, rasuras ali deixadas, sucessivas versões de um mesmo texto e, ainda, levando-se em conta a metodologia específica do tipo de investigação que empreendemos, as glosas, os comentários e as reformulações que podem ser depreendidas através da filmagem de uma escrita a dois. Dessa forma, a análise aqui empreendida recai sobre os manuscritos orais produzidos por I e N, alunas de uma escola particular do estado de São Paulo e pertencentes a um meio privilegiado. Nos “retornos sobre” o texto que elas produziram, buscamos diferenciar: a) Rasura oral: que ocorre sem que seja feita qualquer alteração sobre a escrita; b) Rasura oral e escrita: em que o apagamento incide sobre o oral e sobre o escrito, como decorrência do que se rasurou oralmente; e c) Rasura escrita: aquela que ocorre sem que haja qualquer apagamento oral. 3. Sobre a interação: escrever a dois ou a três? Como vimos anteriormente, o registro oral só é acessível pelo fato de haver dois alunos escrevendo um único texto, o que traz certas particularidades ao processo: a dimensão da diferença atravessando os seus dizeres instaura um jogo interlocutivo (necessário) que potencializa o aparecimento de reformulações, já que intervém, na interação, uma opacificação que se manifesta na própria materialidade das palavras, sendo ela uma problemática a ser colocada em causa pelos enunciadores. Isto quer dizer que a presença do outro suscita, alimenta o debate. Pouder (1992) analisou narrativas escritas a dois no computador e observou que oposições de pontos de vista intra e inter-participantes
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ocupam uma grande parte do diálogo entre os alunos. Sobretudo, porque problemas como ambigüidade sintática, faltas ortográficas, grafias fora do padrão, etc., que poderiam ser completamente ignorados em um processo de escritura solitária, podem ser problematizados pelo outro-parceiro quando um texto é escrito a dois. Apotheloz (2001), ao analisar formulações colaborativas em redações conversacionais observou não ser raro que o parceiro se engaje em atividades que não tenham laço direto com a atividade do escritor, havendo uma suspensão relativa do laço interacional. “Relativa” porque, segundo Dufour (2000, p. 52-56), o uso da linguagem pelo sujeito falante desencadeia a articulação de uma trindade espontânea, eu, tu e ele, “a partir do momento em que [se] abre a boca. [...] Este dado, ao mesmo tempo trivial e fundamental, determina a condição do homem na língua, em que um eu fala para um tu a respeito d´ele”. E, continua o autor, “A trindade representa, em suma, a essência do laço social já que, sem ela, não haveria relação de interlocução, não haveria cultura humana. Se a interação não é fato de um indivíduo isolado, trata-se, então, de dois sujeitos regulando a orientação de sua atenção a um terceiro, a princípio com o objetivo de fazer coincidir esta orientação. Neste sentido, as trocas enunciativas permitem construir pouco a pouco o texto de maneira cooperativa, apropriando-se das formulações propostas pelo parceiro de modo a construir um discurso monológico na forma dialogal. Se a rasura é o reflexo de um retorno sobre um ponto de tensão do manuscrito em curso, os retornos dos coenunciadores sobre estes pontos podem ser considerados como uma forma de rasura, como uma forma de “rasura oral”. Abaixo descreveremos a incidências das rasuras a partir deste trabalho dialogal estabelecido por esta díade. 4. Sobre o que incidem as rasuras? O retorno dos alunos sobre o texto que estão escrevendo visando reformulá-lo, reescrevê-lo, supõe problemas de diferentes níveis: sintáticos, semânticos, ortográficos, gráficos, textuais, etc. Mostraremos os modos de inscrição da rasura oral e/ou escrita em cada um deste níveis (ou categorias) através de exemplos. Começaremos por uma breve explanação de como a classificação foi feita tomando por base cada nível. O conjunto de rasuras
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que observamos nos manuscritos escritos por I e N incide sobre: a) Questões ortográficas e gráficas: Segundo Gak, A ortografia estuda as regras que determinam o emprego das grafias segundo as circunstâncias [...]. Só é questão de ortografia onde há a possibilidade de escolha entre duas grafias diferentes. A ortografia propriamente dita só aparece em casos de assimetria gráfica, onde uma escolha se impõe (1976, p. 23). Já a grafemática estuda os meios que possui uma língua para exprimir os sons, isto é, as correspondências abstratas entre os sons e os signos. Os exemplos abaixo ilustram, respectivamente, momentos em que a rasura recai sobre os sistemas gráfico e ortográfico da língua: I: “- ...vai ter que andar... duas [2]... duas horas [H]... (Escrevendo ‘h’ em letra de forma) N: “- ...é com H.” I: “- ...ai... eu ia fazer em letra de forma... (Rasurando o ‘h’ e escrevendo “horas” em letra cursiva) “ (H5 - A mãe má) N: “- ...chorou...” I: “- ...N...com ‘uu’”?..” N: “- ...chorouu...” I: “- ... chorou... chorouuu... é ‘ele’”. (H2 - Asermã) Assim, no primeiro dado, podemos observar uma rasura que leva em conta o estranhamento de uma forma como uma palavra foi escrita (letra “de forma” ou bastão ao invés de letra cursiva), o que mostra toda a dimensão gráfica de uma escrita, ao passo que no segundo dado, o
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questionamento recai sobre a escrita de chorou com “u” que, apesar de correta, é considerada como incorreta por I. O “u” e o “l” em concorrência – colocando a possibilidade de escolha entre duas grafias diferentes, segundo Gak, evidencia um problema ortográfico. b) Questões de ordem textual-discursiva: N: (Escrevendo) “- ...a... Taís...” I: “- ...Taís...(pequena pausa) Daí... não! Não, não, não escreve “daí”! É “então”...” N: (Escrevendo.) “- ...en...en... tão então... tão... tão... tão... (H2 - Asermã) Para compreender o que chamamos de textual-discursivo é preciso recorrer a teorias “clássicas” da Lingüística, surgidas a partir de 1960 para tentar dar conta daquilo que excede o limite da palavra e da frase: a Linguística textual e a(s) Teoria(s) do Discurso, notadamente através da Análise do Discurso. Segundo Travaglia (1991), na Linguística Textual, “o texto será entendido como uma unidade lingüística concreta [...] que é tomada pelos usuários da língua em uma situação de interação comunicativa específica” (p. 23). Já a Teoria do discurso é definida como “a teoria da determinação histórica dos processos de significação (p. 24)”. Há, entre eles, uma relação necessária, já que o discurso se realiza em textos e não há textos sem discurso. Assim, as formulações lingüísticas (construções, sequências, etc.) podem ter valores diferentes de acordo com o funcionamento discursivo. Desta forma, no caso acima apresentado (e o mesmo vale para outros classificados como rasuras de ordem “textualdiscursiva), o uso possível de uma forma ao invés de outra não pode ser separada do quadro escolar que N e I vivem neste momento: se se escreve com maiúscula ou não, se “daí” é mais ligado à oralidade do que à escrita, se “então” é mais adequado a um texto escrito... c) Questões de ordem semântica e sintática: O aspecto semântico envolve a discussão sobre o valor que um termo ganha em um contexto específico. No primeiro exemplo apresentado
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abaixo, a discussão é sobre o termo “solitária” que parece não se enquadrar no sentido que vem sendo construído pelas alunas. Já no segundo, em que I, relendo, observa que em “e ela muito má” falta “alguma coisa”, envolve a relação de um termo da oração com os demais, portanto, um questionamento de ordem sintática. I: (Escrevendo) “- ...a mãe... a mãe... (flexionando a voz) tava tãão solitária...” N: “- Solitária??” I: “- Não. Tava... tava... solitária quer dizer sozinha, então não tem nada a ver. (Escrevendo) tava... tava... tão triste que os filhos dela só falavam...” (H3 - Os treis todinhos e a dona sabor) I: “- Vamos ler tudo prá... prá gente vê o quê que tá acontecendo na história? Eu vou ler prá você. (Lendo) Era uma vez uma mãe muito má. E ela muito má... ééé... e ela era não fica melhor?.. Ela era muito má com sua filha?” (H5 - A mãe má) d) Questões sobre a morfologia: As rasuras envolvendo questões de morfologia - nível da estrutura da língua em que se situam as menores unidades portadoras de significado aparecem em exemplos como o que segue: I: “- Mas fala... daí... pediu para mãe má...” N: “- ...que levá ela prá escola...” I: “- ...que leve...” N: “- ...escola que eu tô atrasada.” I: “- ...que... que levasse né?” N: “- Ééé... tem que perguntá tudo se é levasse né?... acho que é levasse.” (H5 - A mãe má) e) Questões sobre a pontuação e o léxico:
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Como se verá, nestes dados analisados, encontramos apenas um caso de rasura consagrando-se à questão da pontuação. Por pontuação, entendemos, seguindo Catach, um Conjunto de signos visuais de organização e de apresentação acompanhando o texto escrito, interiores ao texto e comuns ao manuscrito e ao impresso. A pontuação compreende várias classes de signos gráficos discretos e formando sistema, completando ou suplementando a informação alfabética (1980, p. 21). Trata-se do segmento abaixo: I: “- ...era uma vez uma mãe muito má. Muito... ponto! (COLOCANDO UM PONTO FINAL.)” N: “- ...de interro... de interrogação...” I: “- ...não!.. Ponto de interrogação é pergunta.” N: “- Tá.” (H5 - a mãe má) No conjunto dos dados analisados, também encontramos uma única ocorrência de rasura visando o léxico, aqui entendido como conjunto das unidades significativas de uma dada língua, num determinado momento da sua história. À medida que os nomes próprios também fazem parte do repertório lexical de cada cultura, optamos por classificar esta rasura como sendo de ordem lexical: I: “- Chamava...Adri...não Alice. Tá? Quer?.. Alice?..” (N escreve e assente com a cabeça) N: (ESCREVENDO.) “- Sim” (H2 - Asermã) O quadro abaixo mostra que, de um total de 130 rasuras, 119 são orais e 11 são apenas escritas, sem que tenha havido qualquer “apagamento” oral. Ou seja, em 92% das rasuras, nesta forma de escrita a dois, houve
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apagamento na oralidade, quer esse apagamento tenha deixado marcas na escrita ou não.
Gráfico 1: Quadro geral de rasuras Apesar de o processo ser a dois, em alguns momentos, ainda que poucos, uma das alunas voltava-se sobre o já escrito e o rasurava, sem qualquer comentário e também sem qualquer interferência da outraparceira. Note-se que do total de rasuras orais (119), 77 ocorreram sem deixar marca escrita e em 42 vezes o escrito foi rasurado. Poderíamos assinalar aí a riqueza deste tipo de prática pedagógica? Sem possibilidades de generalizações, este estudo nos permite afirmar que esta díade produz uma interação efetiva cujo alto número de rasuras orais seria a prova disso. O quadro abaixo mostra que a porcentagem das rasuras incidentes sobre aspectos de ordem semântica é muito superior àquelas que se observa nos outros níveis. Assim, elas totabilizam 54% contra 22% voltadas à grafia e 13% voltadas à ortografia, por exemplo. É certo que a grafia e a ortografia são frequentemente visadas pelos alunos neste período escolar (1º e 2º anos do ensino fundamental) cujo questionamento vai diminuindo ao longo do processo de escolarização. O que parece justificar, então, uma maior incidência das rasuras de ordem semântica é o fato de estas alunas estarem escrevendo conjuntamente. A presença física do outro parece “ativar” um processo de reflexão sobre a linguagem de forma ainda mais intensa quando o outro é apenas um leitor “virtual”. Isto porque o sujeito é levado
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a escrever sob os questionamentos próprios e também sob os do parceiro.
Gráfico 2: Incidência das rasuras orais Fabre, ao analisar as rasuras nos textos escritos por alunos do Curso Elementar 1 e 2 (respectivamente, 1º e 2º anos do ensino fundamental brasileiro), observou que “a porcentagem das modificações incidentes no grafema é sempre superior àquele que se observa nos outros níveis” (1992, p. 46). Entretanto, vale lembrar que Fabre não tem acesso ao registro oral, já que os alunos escrevem sozinhos. 5. O que podemos concluir? Todo lingüista sabe ou já experimentou a dificuldade de se fazer uma classificação. Assim, rasuras consideradas de ordem gráfica, como a forma de se escrever a palavra “fim”, podem ser, em última análise, também semânticas. É o caso do exemplo abaixo. Neste diálogo, I e N retomam algo que já haviam feito na história “Capitão feio contra ataca” (não analisada neste trabalho), em que N desenha um boneco em torno da letra “i” de “fim” e diz que este será o papai. Na seqüência, faz mais duas vezes a palavra “fim”, uma para ser a mãe e outra para ser o filho, sempre desenhando algo em torno do “i”. No diálogo abaixo, I relembra o que haviam feito nesta história, produzida um mês e meio antes de “Em uma casa na floresta”: I: “- Lembra do fim pai fim mãe fim... (Riem) faz assim... fim pai... fim mãe... fim filho... vamô fazê isso? Escreve fim bem
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pequininho... bem pequinininho...” N: “- Não. Primeiro grandão [fim].” I: “- Tá. Faz um grandão. Escreve agora pai. Fim pai. Fim mãe. Daí você fim filho.” (N escreve “fim pai” e passa a folha para I escrever “fim mãe”. Em seguida, N escreve “fim filho” com letra pequena). I: “- (Lendo) fim pai fim mãe fim filho.” N: “- ...e fim médio.” I: “- Fim médio é a mãe né?” (H4 - Em uma casa na floresta) A imagem abaixo é o resultado do diálogo acima:
Imagem 2: Texto “Em uma casa na floresta”, escrito por I e N. O mesmo vale para questionamentos de ordem sintática. O exemplo que segue, ilustrado mais acima, mostra que um problema de ordem sintática, sobre o qual as alunas se debruçam, pode culminar em um problema de ordem semântica. Afinal de contas, se “ela muito má” pode ser recuperado pelo contexto, também pode causar um estranhamento à primeira leitura: I: “- Vamos ler tudo prá... prá gente vê o quê que tá acontecendo na história? Eu vou ler prá você. (Lendo) Era uma vez uma mãe muito má. E ela muito má... ééé... e ela era não fica melhor?.. Ela era muito má com sua filha?” (H5 - A mãe má) À parte esses problemas permanentes de classificação, gostaríamos de comentar sobre a interação, a qual pode ser pensada de dois pontos de vista: o ponto de vista pedagógico e o do pesquisador. Pode-se argumentar que, do ponto de vista pedagógico, o trabalho em duplas traz algumas vantagens. Com relação à escrita em duplas, Leal e Luz (2001) defendem a idéia de que “o trabalho em pares pode favorecer a
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tomada de consciência acerca das decisões a tomar, pois idéias conflitantes desautomatizam a tarefa da escrita” (p. 27). O objetivo do trabalho é investigar as formas como as crianças se organizam em tal tipo de atividade e se existem alguns tipos de pareamento mais vantajosos que outros no processo de construção da competência textual. Isto é, se a escrita entre pares (criança-criança) do mesmo nível é, também, estruturante na construção do conhecimento como já foi observado na interação entre criança-adulto ou entre crianças com graus de desenvolvimento diferentes. Esta abordagem toma como base, evidentemente, a Zona de Desenvolvimento Proximal proposta por Vygotsky. As autoras perguntam-se, então, sobre o papel da interação simétrica e concluem que tanto as interações criança-criança (simétricas), como as interações adulto-criança (assimétricas) são importantes para que ocorram progressos expressivos na construção cognitiva. Por outro lado, há, certamente, entre algumas díades9, uma tensão permanente no trabalho de escrita a dois. Geralmente, nestas díades, observam-se poucos retornos sobre o já escrito, o processo de escritura aparece aí como quase linear e, apesar da presença do parceiro, a escrita aproxima-se de uma escritura solitária. Já do ponto de vista do pesquisador, o trabalho com díades proporciona, como já comentamos anteriormente, um acesso diferenciado ao dado. Entretanto, devemos considerar que um tema retido da conversa de outros colegas na classe, um desenho entrevisto na mesa do vizinho, uma observação de um adulto, todos estes elementos devem ser incluídos na análise do texto. Como observou Pouder (1992), há fenômenos de porosidade entre as discussões adjacentes às díades e as discussões internas; neste sentido não se pode reduzir tudo a fenômenos de continuidade 9
Para avançarmos nesta discussão precisaríamos fazer um estudo comparativo entre díades pertencentes a escolas privadas e meios letrados e díades pertencentes a escolas públicas com ausência de situações de letramento. Dados de díades pertencentes a escolas públicas da cidade de Maceió-AL e analisados em outros trabalhos apontam para duas direções: há tanto interações positivas, muito semelhantes às que acontecem entre N e I, ricas em reformulações, quanto interações “negativas”, isto é, em que ocorrem até mesmo insultos, manifestações de vontade de escrever sozinho por alguma das partes, textos escritos “de um só golpe”, com total ausência de reformulações. Neste sentido, são tantas as variáveis que chegamos mesmo a colocar em dúvida se um trabalho como esse seria frutífero. Dentre elas, destacamos: grau de envolvimento com um parceiro determinado, díades formadas por menino-menina versus menina-menina ou meninomenino, a forma como o professor significa (ou não) a produção do texto em sala de aula, etc.
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dialógica, há uma parte ativa tomada pelos contextos lingüísticos e extralingüísticos. REFERÊNCIAS APOTHELOZ, Denis. Les formulations collaboratives du texte dans une rédaction conversationnelle. In : Le processus rédactionnel – écrire à plusieurs voix. Paris : Harmattan, 2001. CALIL, Eduardo ; FELIPETO, Cristina. Quand la rature (se) trompe: une analyse de l´activité métalinguistique. In : Langage et Société, Paris, v. 117, p. 63-88, 2006. CALIL, Eduardo. Processus de création et ratures : analyse d´un processus d´écriture dans un texte rédigé par deux écolières. In : Langage & Société n. 103, p. 31-56. Paris : Maison des Sciences de L´homme, 2003. CATACH, Nina. La pontuaction. In : Langue française, v. 45, Numéro 1, p. 16 – 27, 1980. CATACH, Nina. L´orthographe. Paris : Presses Universitaires de France, 2008. DOQUET-LACOSTE, Claire. Etude génétique de l’écriture sur traitement de texte d’éleves de Cours Moyen, anée 1995-96. Thèse de Doctorat de l’Université de Paris III (Sorbonne Nouvelle) en Sciences du Langage, 633 p., 2003. DUFOUR, Dany-Robert. Os mistérios da Trindade. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000. FABRE, Claudine. Pour délier l´écriture : lire les ratures « pas à pas ». In : Texte en main 10/11– Lis tes ratures. Grenoble : Centre National des Lettres, Ville de Grenoble, 1992. FELIPETO, Cristina. Rasura e equívoco no processo de escritura em sala de aula. Londrina : EDUEL, 2008. FELIPETO, Cristina. Sobre os mecanismos linguísticos subjacentes ao gesto de rasurar. In: Cadernos de Estudos Lingüísticos (UNICAMP), v. 50, p. 91-101, 2008.
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O RESUMO ACADÊMICO: TEXTUALIDADE E ENSINO ACADEMIC SUMMARY: TEXTUALITY AND TEACHING Clemilton Lopes Pinheiro1 Universidade Federal do Rio Grande do Norte Jaqueline Andréa Medeiros Pereira2 Universidade Federal do Rio Grande do Norte RESUMO O objetivo deste trabalho é propor um critério de análise da textualidade de resumo acadêmico e, a partir dessa análise, sugerir atividades para o ensino sistemático desse gênero. Entendemos que a topicalidade é um princípio organizador do texto e, como tal, pode ser tomada como critério para a análise da textualidade. Analisamos resumos produzidos por estudantes universitários e observamos algumas regularidades na sua organização tópica que podem ser reveladoras de que esse pode ser um critério que guia a redução do texto-fonte. A partir disso, sugerimos uma sequência didática para o ensino sistemático do resumo centrado no tópico discursivo. Palavras-Chave: Resumo acadêmico; Sequência didática; Tópico discursivo ABSTRACT The objective of this study is to propose a analisy of textuality of academic summary, and, from this analysis, to suggest activities for the systematic teaching of this genre. We understand that topicality is an organizing principle of the text and, as such, can be taken as a criterion for the analysis of textuality. We analyzed summaries produced by university students and we found some regularities in their topical organization which may be indicative that this can be a criterion to guide the reduction of the text. From this, we suggest an instructional sequence for teaching systematic of academic summary focused on the topic of discourse. Keywords: Academic summary; Instructional sequence; Topic of discourse
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Doutor em Letras (Filologia e Linguística Portuguesa), professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), clemiltonpinheiro@hotmail.com 2 Graduanda em Letras, Bolsista de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), jaqueamp@yahoo.com.br
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INTRODUÇÃO O resumo é comumente concebido como a apresentação concisa dos conteúdos de outro texto (texto-fonte: artigo, livro, etc.), cuja organização reproduz a organização desse texto original, com o objetivo de informar o leitor sobre os conteúdos e cujo enunciador é outro que não o autor (MACHADO, 2002). Além disso, o resumo não pode conter nenhum dado adicional nem avaliação explícita em relação ao texto a ser resumido. No contexto universitário, os estudantes convivem constantemente com textos pertencentes a esse gênero, seja para apenas sistematizar uma leitura acadêmica seja para ser avaliado na compreensão dessa leitura. Desde a década de 70 do século XX, muitos pesquisadores vêm estudando o resumo, focalizando a perspectiva dos processos envolvidos em sua produção. Atualmente, muitos outros pesquisadores têm se interessado pelo resumo sob a perspectiva dos estudos de gênero. Este trabalho se insere no contexto dos estudos que olham para o resumo acadêmico como um gênero. Nosso propósito é propor um critério de análise da textualidade e, a partir dessa análise, sugerir atividades para o ensino sistemático desse gênero. Entendemos que a topicalidade é um princípio organizador do texto que pode ser tomado como critério para a análise da textualidade. A análise da organização tópica do texto leva em consideração a identificação e delimitação de segmentos tópicos e dos procedimentos pelos quais esses segmentos se distribuem na linearidade do texto (organização linear) e se recobrem hierarquicamente conforme o grau de abrangência dos assuntos (organização hierárquica). Realizamos uma análise de resumos produzidos por estudantes no contexto acadêmico e verificamos como a organização tópica do textofonte é retomada. Observamos algumas regularidades na organização tópica dos resumos que podem ser reveladoras de que esse pode ser um critério que guia a redução do texto-fonte. Considerando essa constatação, propomos uma sequência didática para o ensino sistemático desse gênero centrado no tópico discursivo. O trabalho está divido em três partes. Na primeira, fazemos um breve apanhado de alguns estudos sobre resumo para depreendermos as perspectivas sob as quais ele vem sendo estudado. Na segunda parte, apresentamos, sumariamente, o modelo de análise da organização tópica do
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texto e expomos os resultados da análise realizada em resumos produzidos por estudantes universitários a partir desse modelo. Na terceira parte, descrevemos as etapas da sequência didática. 1. Alguns estudos anteriores sobre resumo O resumo, no ambiente escolar/acadêmico, há algum tempo, vem sendo estudado sob diferentes perspectivas3. O trabalho de Van Dijk (1978) inspirou uma série de outros trabalhos sobre resumo na perspectiva dos processos envolvidos em sua produção. O autor foi um dos primeiros a propor que o processo de redução do texto-fonte, que caracteriza o resumo, ocorre através da aplicação de macrorregras, interiorizadas pelo leitor ao longo dos anos. Tais regras seriam de dois tipos básicos: apagamento e substituição. As regras de apagamento são seletivas, pois selecionam o que é relevante para o texto, suprimindo o irrelevante. Ao contrário, as regras de substituição não suprimem informações, mas exigem que o leitor construa novas proposições, integrando as informações expressas no texto-fonte ou seus pressupostos. Nesse sentido, elas podem ser consideradas como regras construtivas. A aplicação dessas regras está condicionada não somente ao conjunto de conhecimentos linguísticos, textuais, crenças e valores que o leitor traz para o texto, mas também ao objetivo da leitura, intenção do autor, tipo de contexto social em que se dá a leitura, dando origem a textos bastante variáveis, caracterizados não como reproduções do texto-fonte, mas como novos textos. Sousa e Silva (1985) também caracteriza o resumo, não simplesmente como uma réplica do texto-fonte, mas como um novo texto, que satisfaz as condições de uma nova situação de comunicação, como coloca Van Dijk. Segundo a autora, em sua elaboração, o resumo envolve a solução de problemas semelhantes aos encontrados numa tarefa de produção. 3
Neste trabalho, estamos entendendo resumo conforme Ribeiro (2006, p. 76): “Um texto que explicita de forma clara uma compreensão global do texto lido, produzido por um aluno-leitor que tem a função demonstrar ao professor-avaliador que leu e compreendeu o texto pedido, apropriando-se globalmente do saber institucionalmente valorizado nele contido e das normas às quais o gênero está sujeito. Nessa esfera de circulação, a função do resumo acadêmico é ser um texto autônomo, que recupera de forma concisa o conteúdo do texto lido numa espécie de equivalência informativa que conserva ou não a organização do texto original.”
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Nesse sentido, segue a opinião de Perelman de Solarz (1994), que aborda a construção do resumo numa concepção psicogenética da aprendizagem, assumindo a postura interativa entre leitura e escrita. Segundo a autora, o resumo é uma re-escrita que envolve, logicamente, a leitura do textofonte. Isso significa que o sujeito produz seu texto a partir da construção do significado de outro texto. Nesse processo interativo intervêm tanto as propriedades do texto-fonte como as possibilidades conceituais do sujeito. Na esteira desses trabalhos, Pinheiro (2001) realiza um estudo sobre a produção de resumos de textos acadêmicos por estudantes universitários. O autor conclui que, para resumir, os estudantes condensam ou reformulam o significado do texto-fonte, alguns em nível global, outros em nível local. No entanto, essas estratégias de redução semântica não garantem a construção de um resumo coerente, o que leva a crer que ou as macrorregras de sumarização não promovem a compreensão ou a dificuldade dos alunos não está na identificação da macro-estrutura do texto-fonte, mas na reestruturação, já que esse processo exige um maior grau de abstração. Os trabalhos mais recentes levam em consideração o resumo na perspectiva dos estudos de gênero, embora alguns não tenham abandonado a perspectiva de compreender os processos envolvidos na sua produção. Silva (2009) reforça a tese de que, apesar de o resumo ser um gênero muito usado e conhecido pelos alunos, na prática, em sala de aula, muitos alunos têm dificuldades na produção de textos pertencentes a esse gênero. A pesquisadora aplicou um questionário a vinte e oito estudantes de Engenharia mecânica e elétrica da Universidade Federal de Viçosa sobre o que é resumo, qual sua função e quais os passos para a sua elaboração. A maioria dos alunos respondeu que o resumo é um texto autônomo, ou seja, é um novo texto produzido com as próprias palavras do aluno com base nas ideias do autor do texto-fonte. Eles afirmaram que o resumo é um conjunto de ideias principais de um texto original, e, para que seja elaborado, é preciso leitura, seleção e escrita. Ou seja, os estudantes têm noção do que é o resumo e de como fazê-lo. Os alunos conhecem o gênero resumo como instrumento para se verificar a compreensão do texto e que a leitura é fundamental para sua elaboração. No entanto, a pesquisa ressalta que os alunos se preocupam mais com a influência da leitura e da compreensão do que com a produção textual na elaboração de resumos.
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Perspectivando o resumo como um gênero, Azevedo e Nicolau (2011) analisaram resumos de alunos do curso de Redação e Produção Textual realizado na UFPB-Campus IV com o objetivo de observar como eles retextualizam e reconduzem o resumo a partir do uso das metarregras de formação textual propostas por Charolles (1988). As autoras concluíram que os alunos demonstram dificuldades na produção do resumo principalmente no que diz respeito às estratégias de redução das informações e no emprego das metarregras de coerência. 2. Oorganização tópica de resumos acadêmicos 2.1. A organização tópica do texto De acordo com Jubran et al. (1992), o tópico é uma categoria abstrata, primitiva, que se manifesta “na conversação, mediante enunciados formulados pelos interlocutores a respeito de um conjunto de referentes explícitos ou inferíveis, concernentes entre si e em relevância num determinado ponto da mensagem” (1992, p. 361). O tópico, nessa perspectiva, abrange duas propriedades que o particularizam: a centração e a organicidade. A centração abrange os seguintes traços a) concernência: relação de interdependência semântica entre os enunciados – implicativa, associativa, exemplificativa ou de outra ordem – pela qual se dá sua integração no referido conjunto de referentes explícitos ou inferíveis; b) relevância: proeminência desse conjunto, decorrente da posição focal assumida pelos seus elementos; c) pontualização: localização desse conjunto, tido como focal, em determinado momento da mensagem. (JUBRAN et al., 1992, p. 360) Considerando que, em um único evento de fala/escrita, os interlocutores podem desenvolver vários temas, e, portanto, vários tópicos, é possível abstrair-se desse evento uma dada organicidade, expressa na distribuição dos assuntos em quadros tópicos. Para Jubran et al. (1992), a organização tópica pode ser observada em dois níveis: no plano hierárquico e no plano sequencial. No plano hierárquico, as sequências
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textuais se desdobram em supertópicos e subtópicos, dando origem a quadros tópicos, caracterizados, obrigatoriamente, pela centração num tópico mais abrangente e pela divisão interna em tópicos co-constituintes; e, possivelmente, por subdivisões sucessivas no interior de cada tópico coconstituinte, “de forma que um tópico pode vir a ser ao mesmo tempo supertópico ou subtópico, se mediar uma relação de dependência entre dois níveis não imediatos” (1992, p. 364). Sobre o plano sequencial, dois processos básicos caracterizam a distribuição de tópicos na linearidade discursiva: a continuidade e a descontinuidade. A continuidade se caracteriza por uma relação de adjacência entre dois tópicos, com abertura de um tópico subsequente somente quando o anterior é esgotado. A descontinuidade se caracteriza por uma perturbação da sequencialidade linear, causada ou por uma suspensão definitiva de um tópico, ou pela cisão do tópico, que passa a se apresentar em partes descontínuas. Operando com a categoria de tópico discursivo, Jubran et al. (1992, p. 363) chegam à identificação e delimitação de segmentos tópicos, “isto é, unidades discursivas que atualizam as propriedades do tópico”. Dessa forma, enquanto o tópico discursivo é uma categoria analítica abstrata, o segmento tópico é a sequência textual que preenche as propriedades dessa categoria. O segmento tópico é, portanto, a unidade que, em termos de centração, revela concernência e relevância no conjunto de seus elementos e se localiza num determinado ponto do evento comunicativo (pontualização), submetida à organização tópica negociada pelos falantes/escritores. O segmento tópico, em outras palavras, constitui cada conjunto de enunciados tematicamente centrados. Como unidade de composição textual, o segmento tópico reúne as mesmas características formulativo-interacionais do texto, ou seja, se constitui como uma unidade estrategicamente organizada veiculadora de sentido. Através da observação do segmento tópico é possível isolar convenientemente as informações do texto e acompanhar os seus diferentes estágios de desenvolvimento, o que permite verificar processos globais de organização do texto.
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2.2. Análise de resumos Tomando como base o modelo de organização tópica, como exposto anteriormente, analisamos vinte resumos, dez produzidos por alunos dos cursos Publicidade & Propaganda e dez, por alunos do curso de Química, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a que chamaremos de Grupo 01 e Grupo 02, respectivamente. Os alunos receberam do professor um texto com tema relacionado à sua área de atuação profissional. E foi solicitado que fizessem o resumo, a partir de seus conhecimentos sobre resumo, sem nenhum tipo de auxílio do professor. A atividade foi realizada em sala de aula, durante o horário normal de aula. O texto-fonte resumido pelo grupo 01 se organiza em torno de um tópico central, “Autonomia financeira do cinema brasileiro”, subdividido em seis subtópicos: “A falta de financiamento”, “Condições históricas”, “Apoio da nova legislação”, “Acordos multilaterais”, “Contrapontos” e “Medidas contra os oligopólios”. Do ponto de vista da organização sequencial, o texto apresenta continuidade dos segmentos tópicos, ou seja, cada novo tópico só começa quando o anterior é esgotado. Cada um dos seis segmentos recobre um tópico. O gráfico 01 a seguir ilustra essa organização. Gráfico 01: organização tópica hierárquica do texto-fonte do grupo 01.
O texto-fonte do grupo 02 apresenta a seguinte organização. O supertópico “Regulamentação no setor de tintas” apresenta um primeiro nível de desdobramento em dois subtópicos: “A auto-regulamentação na indústria” e “O tema dos VOCs – compostos orgânicos voláteis”. O segundo tópico apresenta um segundo nível de desdobramento em quatro subtópicos: “Atuação”, “Limites para o uso”, “Definição de VOCS” e
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“Comparação com padrão internacional”. Da mesma forma que o textofonte do grupo 01, a organização sequencial se caracteriza pela continuidade. Cada um dos cinco segmentos recobre um tópico. O gráfico 02 ilustra essa organização. Gráfico 02: Organização tópica hierárquica do texto-fonte do grupo 02
Tomando como parâmetro a organização tópica dos textos-fonte, verificamos como os alunos retomam essa organização nos seus resumos. Seis dos dez alunos do grupo 01 retomaram todos os subtópicos. Os demais retomaram apenas alguns. O tópico “Contrapontos” (segmento 5) foi o mais suprimido – quatro alunos não mencionaram – seguido pelo tópico “Condições históricas” (segmento 2) – dois alunos não retomaram. O primeiro e o último foram retomados por todos os estudantes, bem como os subtópicos centrais: “Apoio da nova legislação” (segmento 3) e “Acordos multilaterais” (segmento 4). A seguir, reproduzimos, para ilustrar, o segmento 1 do texto-fonte do grupo 01, que recobre o tópico “A falta de financiamento” e o resumo desse segmento, produzido por um dos alunos. No texto-fonte, esse tópico é explicitamente marcado no início do segmento 1: “O grande problema do setor cinematográfico na América Latina e no Brasil é o financiamento”. A partir daí, se instaura a centração por meio de diferentes processos de referenciação (expressões referenciais grifadas no texto)4. A partir do segmento 2, se instaura uma nova centração, visivelmente marcada pela expressão referencial “condições históricas da indústria do cinema no Brasil”. No resumo, o aluno retoma o tópico do segmento através das cadeias referencias 4
Acerca dos processos referenciais na organização tópica do texto ver Pinheiro (2005).
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“a falta de incentivo” e “autonomia do setor”. [1O grande problema do setor cinematográfico na América Latina e no Brasil é o financiamento. Embora com característica industrial, o cinema sofre pela imprevisibilidade do retorno. A incerteza do resultado da demanda pela produção colocada no mercado dificulta o estabelecimento do custo para a obra cinematográfica e evidencia o risco de se investir na área. O filme, único no “uso” em que o consumidor faz dele, possui de fato apenas valor de troca. Isso deixa a cadeia produtiva da cultura submetida a uma regra distinta das outras áreas de mercado. Esta dificuldade torna o setor cinematográfico mais sensível que outras áreas industriais para obtenção de financiamentos e é justamente esta vulnerabilidade que justifica a permanência de políticas públicas diferenciadas, de leis de incentivo que fomentem o seu desenvolvimento. A falta de incentivo desestimula a produção da indústria cinematográfica, que precisa de políticas específicas para criar uma saída estratégica para sua consolidação, o que permite fazer os cineastas sonharem com uma possível autonomia do setor em relação ao Estado.] [2Para se ter uma idéia das condições históricas da indústria do cinema no Brasil, podemos destacar que, em 70 anos de produção – de 1930 a 2000 – o filme nacional correspondeu a 25% da produção da América Latina, enquanto o México respondeu por 45% do total de 12.500 filmes produzidos no período.(...) (Segmento 1, texto-fonte do grupo 01) [Ao procurar saídas estratégicas, através de políticas específicas, para a produção cinematográfica, cineastas almejam a autonomia do setor em relação ao Estado já que a falta de incentivo é desestimulante. Essa autonomia em curto prazo ainda não é possível, mas medidas estão sendo tomadas para tornar esse desejo em realidade.] (Resumo do Segmento 1, texto-fonte do grupo 01) No grupo 02, apenas três alunos retomaram todos os tópicos do texto-fonte. Nesse caso, é importante frisar que nenhum dos alunos deixou de retomar o primeiro subtópico “A auto-regulamentação na indústria” (segmento 1). O subtópico “Limites para o uso” (segmento 3) foi o mais suprimido (05 alunos não retomaram). Quanto ao tópico que sofre outro nível de desdobramento, os subtópicos “Atuação” (segmento 2) e “Comparação com padrão internacional” (segmento 5) foram retomados
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por oito alunos. Os subtópicos mais centrais, “Limites para uso” (segmento 3) e “Definição de VOCs” (segmento 4), foram retomados cinco e seis vezes, respectivamente. Embora não tenha sido dada nenhuma instrução acerca da organização tópica dos textos como parâmetro para a produção dos resumos, é possível depreender algumas regularidades na organização tópica dos resumos que podem ser reveladoras de que esse pode ser um critério que guia a redução do texto-fonte. Todos os alunos retomaram, nos resumos, os subtópicos das extremidades, os segmentos 1 e 6, no grupo 01, e 1 e 5, no grupo 2. Isso sugere que os alunos percebem a organização textual baseada na ideia de início, meio e fim, e consideram essas partes mais importantes na composição de seus resumos, suprimindo os tópicos intermediários. Nesse sentido é interessante frisar que, no Grupo 02, cuja organização tópica do texto-fonte é um pouco diferente, os alunos retomam os dois subtópicos do primeiro nível hierárquico, e dentro do desdobramento do segundo subtópico, eles retomam também os subtópicos mais extremos, ou seja, o primeiro e o último. Devemos também destacar que, como a organização tópica do textofonte do grupo 02 é mais complexa, o número de tópicos retomados nos resumos foi menor, o que revela maior dificuldade dos alunos em transferir essa organização para os seus resumos. Já o texto-fonte do grupo 01 apresenta organização tópica mais simples, o que se traduz em um maior número de tópicos retomados nos resumos. 3. Sequência didática para ensino de resumo Conforme demonstramos anteriormente, a análise dos resumos produzidos pelos alunos revelou que a organização tópica parece ser um critério utilizado no processo de redução das informações do texto-fonte. Mesmo sem terem sido instruídos acerca da questão, eles reduziram o texto-fonte, tentando manter a sua organização tópica. Assim, defendemos que o resumo pode ser ensinado, enquanto gênero, de forma sistemática. A organização tópica do texto pode ser tomada como um critério para esse ensino sistemático. Pinheiro (2008) já propõe que a atividade de segmentação tópica do texto pode ser uma eficiente estratégia de ensino da leitura de textos.
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O procedimento de identificar as sequências discursivas que configuram um tópico discursivo envolve a habilidade de reunir em macroproposições semânticas um conjunto pontual de informações, que já constitui também um processo de sumarização. Por sua vez, o procedimento de identificar a organização hierárquica dessas sequências discursivas possibilita o entendimento da estrutura do texto e a forma como as informações estão inter-relacionadas, o que, no final, possibilita a construção do sentido global do texto. Nesse sentido, propomos uma sequência didática para o ensino do resumo acadêmico. Segundo Dolz e Schneuwly (2004), sequência didática é um conjunto de módulos de ensino, organizados para melhorar uma determinada prática de linguagem. As sequências didáticas instauram uma primeira relação entre um projeto de apropriação de uma prática de linguagem e os instrumentos que facilitam essa apropriação. A sequência didática possibilita aos alunos colocar em prática os aspectos da linguagem já internalizados, e aqueles que eles ainda não têm domínio. A nossa proposta de sequência didática utilizada para o ensino do resumo apresenta o esquema proposto por Dolz e Schneuwly (2004): apresentação da situação, produção inicial, módulos (1, 2, 3, n), produção final. A apresentação da situação consiste na exposição do gênero, na sua compreensão geral e do seu contexto de produção. O trabalho a ser desenvolvido, nessa etapa, pode ser o sugerido por Machado, Lousada e Abreu-Tardelli (2005, p. 96). Identificar as características gerais do gênero resumo, procurando diferenciar o resumo escolar/ acadêmico do resumo na mídia. Para isso, fez-se necessária uma análise de vários tipos diferentes de resumos, bem como do contexto de produção em que foram construídos. Nesse sentido, um trabalho importante é o de identificar outros textos, pertencentes a outros gêneros, que contenham resumos, tais como resenhas, contracapas, reportagens (em boxes), etc., procurando identificar as diferenças do contexto de produção desses gêneros.
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Após o trabalho de compreensão geral do gênero, a sequência prevê uma produção inicial de um resumo, para avaliar, precisamente, quais são as principais dificuldades dos alunos e perceber qual o nível de conhecimento que eles têm sobre o gênero. Nos módulos, são desenvolvidas as atividades de sumarização do texto-fonte a partir da sua organização tópica. No módulo 01, ocorre a leitura do texto-fonte e a identificação da sua organização tópica, ou seja, os alunos devem identificar, a partir do critério da centração os tópicos do texto-fonte e depreender sua organização hierárquica, ou seja, sua particularização hierarquizada, e consequente distribuição sequencial na linha discursiva. No módulo 2, os alunos devem fazer exercícios de retenção de ideias essenciais através de duas estratégias básicas: a) apagamento das informações desnecessárias à compreensão de outras proposições ou de informações redundantes; e b) substituição, que envolve dois outros procedimentos, o de generalização (substituição de uma série de nomes de seres, de propriedades e de ações por um nome de ser, propriedade ou ação mais geral) e o de construção (substituição de uma sequência de proposições, expressas ou pressupostas, por uma proposição que é normalmente inferida delas, por meio da associação de seus significados). No módulo 3, com o conhecimento das regras de apagamento e substituição, os alunos devem reduzir os segmentos tópicos do texto-fonte, identificados no módulo 1 e proceder a uma primeira versão do resumo integral do texto-fonte a partir da redução dos seus segmentos tópicos. Por último, os alunos procedem à revisão formal do resumo e produzem a versão final, que deve ser comparada com a versão inicial. Nessa etapa, os procedimentos de produção do resumo, trabalhados nos módulos, devem ser revistos, de forma que os próprios alunos possam verificar se eles foram seguidos e se os resultados foram satisfatórios. CONCLUSÃO Neste trabalho, objetivamos realizar uma análise da textualidade de resumos acadêmicos a partir de uma perspectiva que concebe a topicalidade como um princípio organizador do texto, e, a partir disso, propor uma sequência didática para o ensino sistemático desse gênero centrado na
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categoria analítica tópico discursivo. Analisamos vinte resumos produzidos por alunos dos cursos Publicidade & Propaganda e Química, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e observamos como a organização tópica dos textos-fonte é, de alguma forma, retomada nesses resumos. Uma das conclusões principais da análise foi a de que os alunos retomam, nos resumos, a organização tópica do texto-fonte, de diferentes maneiras: uns retomam todos os tópicos, outros retomam apenas alguns. Todos os tópicos retomados foram os instaurados nos segmentos extremos do texto. Isso sugere que os alunos percebem a organização textual baseada na ideia de início, meio e fim, e consideram as partes iniciais e finais mais importantes na composição de seus resumos, suprimindo os tópicos intermediários. Com base nessa conclusão, propomos uma sequência didática para o ensino do resumo acadêmico, seguindo o esquema proposto por Dolz e Schneuwly (2004). Esse procedimento aborda uma característica fundamental do resumo que pode ser ensinada e aprendida, ao se tomar esse gênero como objeto de ensino. Esperamos que a proposta de sequência didática possa ser experimentada pelos professores e os resultados sejam temas de novos trabalhos sobre a questão. REFERÊNCIAS AZEVEDO, Hellane Cristina Gomes de e NICOLAU, Roseane Batista Feitosa. Estudo do resumo acadêmico numa visão sócio-interacionista da linguagem. Anais. VI Simpósio Internacional de estudos de Gêneros textuais, 2011, p. 1-9. (disponível em http://www.cchla.ufrn.br/visiget/) CHAROLLES, Michel. Introdução aos problemas da coerência dos textos. In: GALVES, Charlote, ORLANDI, Eni P. e OTONI, Paulo. (orgs.) O texto: leitura e escrita. Campinas, SP: Pontes, 1988. DOLZ, Joaquim e SCHNEUWLY, Bernard. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2004. JUBRAN, Clélia C. A. Spinardi. et al. Organização tópica da conversação. In: ILARI, Rodolfo (Org). Gramática do português falado, v. II. Campinas/SP: UNICAMP; São Paulo: FAPESP, 1992.
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PUBLICIDADE E SOCIEDADE: UM DIÁLOGO EM DUAS ÉPOCAS1 PUBLICITY AND SOCIETY: A DIALOGUE IN TWO PERIODS Glaucia Muniz Proença Lara Universidade Federal de Minas Gerais RESUMO Considerando o estreito diálogo que se instaura entre a sociedade e a publicidade, nosso objetivo, no presente trabalho, é analisar, à luz de algumas categorias da Semiótica Francesa dita standard, anúncios de produtos (alimentos e eletrodomésticos) veiculados atualmente e na década de 1960, de modo a apreender os aspectos linguístico-discursivos que marcam os textos de uma época e de outra – separadas por um lapso de meio século – e o que eles nos contam da ideologia vigente em cada uma delas. Pretendemos ainda, no que diz respeito aos textos atuais, examinar fenômenos como a transgressão de gêneros e a paródia, que, a nosso ver, constituem recursos mais recentes do domínio publicitário para chamar a atenção de um consumidor cada vez mais exigente e globalizado. Para tanto, utilizaremos as noções de rotina e acontecimento, oriundas da Semiótica Tensiva, fazendo-as dialogar com as concepções de M. Bakhtin. Palavras-Chave: publicidade; ideologia; transgressão de gêneros; paródia. ABSTRACT Considering the close dialogue established between society and publicity, our aim, in this paper, is to analyse, in the light of some categories borrowed from French Semiotics in its standard version, advertisements of products (food and electronics) published nowadays and in the years 1960 so as to point out the linguistic and discursive devices that characterize such texts – separated by a lapse of half a century – as well as the ideology of each period revealed by these “marks”. As far as it concerns recent texts, we also intend to examine phenomena such as gender transgression and parody, which, in our opinion, are modern resources in the publicity area so as to
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Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada na sessão temática “A semiótica no Brasil: múltiplas vozes”, durante o IX Congresso Latino-Americano de Estudos do Discurso – ALED, realizado de 1 a 4 de novembro de 2011, na Faculdade de Letras/UFMG, tendo sido publicada nos anais do evento.
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call the attention of a more demanding and “globalized” consumer. In this way, we will use the notions of routine and event from Tensive Semiotics and we willl make them dialogue with some conceptions proposed by M. Bakhtin. Keywords: publicity; ideology; genre transgression; parody.
INTRODUÇÃO A publicidade é uma instância onipresente em nossas vidas e, como tal, mantém estreito diálogo com a sociedade. Nessa perspectiva, os anúncios publicitários, objetivando vender determinados produtos (serviços, ideias), reproduzem valores sociais; paralelamente, a sociedade absorve o ideário vendido pela publicidade para incorporá-lo ao seu cotidiano. A publicidade ultrapassa, assim, o plano econômico para se tornar um bem simbólico, inserido na realidade social: os textos falam da sociedade e para a sociedade, revelando, mais do que um panorama de técnicas publicitárias, os anseios, expectativas e (pre)conceitos sobre os quais se esteia toda uma geração de indivíduos. Segundo Costa (2008, p. 263), por publicidade deve-se entender uma “mensagem que procura transmitir ao público, por meio de recursos técnicos, multissemióticos, e através dos veículos de comunicação, as qualidades e os eventuais benefícios de determinada marca, produto, serviço ou instituição”. Por sua vez, Resende (2004, p. 263), concebendo a publicidade como “um suporte de representações de identidade”, chama a atenção para o fato de que a instância receptora é “desdobrada”, ora como consumidora de produtos (agente econômico), ora como consumidora das ideias implíticitas nos anúncios (ser social). Nesse caso, ao mesmo tempo em que se objetiva vender determinado produto, incute-se na mente dos leitores (possíveis consumidores) desejos de pertencer ao mundo fictício da publicidade, isto é, de ser transferido para outras esferas, em que estão embutidos, via de regra, valores positivos como beleza, poder, status. A publicidade, portanto, “utiliza manipulação disfarçada: para convencer e seduzir o receptor, não deixa transparecer suas verdadeiras intenções, ideias e sentimentos...” (CARVALHO, 2002, p. 10). Essa mensagem subliminar inerente aos textos publicitários, constrói para nós, consumidores, um “mundo ideal”. Por meio dele, o produto representa
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não só um bem material, mas a chance de pertencer a um determinado grupo. Diante desse quadro, pretendemos, neste trabalho, analisar anúncios publicitários impressos da época atual e da década de 19602, com o objetivo não apenas de apreender os mecanismos linguístico-discursivos de que eles se valem para influenciar o consumidor, mas também de focalizar, a partir do diálogo sociedade/publicidade, os (pre)conceitos, ideias e valores vigentes em dois diferentes momentos da nossa história, separados por um lapso de meio século. Lembramos que os anos sessenta (que, para alguns começam em 1958 e terminam em 1972) foram marcados por acontecimentos relevantes no Brasil e no mundo que, de certa forma, representaram “reviravoltas” (políticas, econômicas, sociais, culturais) na sociedade de então. Foi a década em que o homem pisou na Lua, em que ocorreram guerras reais (a Guerra do Vietnam) e virtuais (a Guerra Fria), foi a “era dos Beatles”, de Woodstock, da minissaia. No Brasil, foi a época da Bossa Nova, dos grandes festivais de música, de duas conquistas na Copa do Mundo de Futebol (1962/1970), mas, paralelamente, também a década da ditadura militar. O que perguntamos, nesse caso, é: o que mudou na publicidade de então em relação à publicidade de agora – era das grandes conquistas tecnológicas? Que aspectos linguístico-discursivos “marcam” os anúncios publicitários de uma época e de outra e o que eles nos contam da ideologia vigente em cada uma delas? Para responder, ao menos parcialmente, a esses questionamentos, examinaremos dois conjuntos de anúncios de produtos (um da área de alimentos; o outro da área de eletrodomésticos) de marcas conhecidas, recorrendo a algumas categorias propostas pela semiótica francesa (GREIMAS & COURTÉS, 2008), que serão apresentadas na próxima seção. Além disso, conforme constatamos em pesquisa anterior (vide LARA, 2010), a publicidade vem buscando novos e mais atraentes recursos para persuadir um leitor/consumidor cada vez mais exigente e globalizado. Como afirma Chaves (2010), diante do novo paradigma, instaurado no 2
Tais anúncios integram o corpus do projeto maior Cinquenta anos de publicidade: uma análise semiótica de anúncios atuais e da década de 1960, que iniciamos, na Faculdade de Letras/UFMG, em março de 2010, com a duração prevista de três anos.
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final do século XX com a pós-modernidade – que surge no contexto das sociedades pós-industriais, nas quais se consome mais do que se produz – a publicidade se vê obrigada a [...] (re)(i)inovar suas táticas, esforçando-se, ao máximo para conciliar pelo menos duas tarefas: distrair e surpreender o consumidor. Distrair para tentar dissimular tanto quanto possível a origem comercial da mensagem publicitária [...] Surpreender para lograr atrair a atenção do consumidor, para trazer de volta o sabor da novidade e do desejo, perdidos em meio ao bombardeamento diário de imagens, sons e palavras. (CHAVES, 2010, p. 120-121; grifos do original) A nosso ver, esse contexto cria condições extremamente favoráveis para a emergência de um fenômeno que vimos observando, de forma recorrente, em publicidades atuais: a transgressão de gêneros (ou o “dialogismo intergenérico”, na perspectiva assumida por CHAVES, 2010), entendida, grosso modo, como a co-presença de dois (ou mais gêneros) num mesmo espaço textual. Com isso, criam-se diferentes efeitos de sentido: de humor, de surpresa, de estranhamento etc, cuja finalidade maior é a de retirar um dado produto do seu enquadre normal para enquadrá-lo em um novo enfoque e, desse modo, destacá-lo no mar de ofertas que cerca o consumidor no dia a dia. Não se pode dizer, evidentemente, que a transgressão de gêneros surge na época atual. Pelo menos no que diz respeito à literatura, já na virada do século XX, a distinção entre gêneros começa a se diluir. Segundo Compagnon (2001), na modernidade privilegia-se a transgressão das fronteiras genéricas, uma tendência que, no seu entender, contagiaria as artes como um todo3. Entretanto, como foi dito, no que tange à publicidade, parece tratar-se de um recurso que vem sendo mais recentemente utilizado, o que vai ao encontro da posição de Carrascoza (2004, p. 72-73), para quem os primeiros textos publicitários de mídia impressa eram textos curtos, Segundo o autor, na literatura, essa tendência à desestabilização se refletiu na negação
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da classificação dos discursos, concomitantemente à dificuldade de integração de novos gêneros ao sistema tradicional (cf. COMPAGNON, 2001).
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informativos, sem ilustrações, bastante próximos dos atuais classificados, já que ofereciam vários tipos de serviços, tais como: aulas de idioma, ofertas de serviços, cobranças de débitos, imóveis à venda ou para alugar etc. Um outro fenômeno que vem chamando nossa atenção mais recentemente no domínio publicitário é a paródia, tomada não como uma “deformação” ou uma “imitação burlesca”, mas como “uma estratégia discursiva marcada pela insubordinação diante do convencional” ou como “um trabalho de reelaboração de um dizer tradicional que produz um outro dizer” (LYSARDO-DIAS, 2008, p. 159). Também não se pode apostar na “novidade” da paródia; muito pelo contrário: sua origem como arte remonta a Hegemon de Tarso (século V a. C.), como afirma Aristóteles na Poética (cf. FÁVERO, 1994, p. 49). Parece tratar-se, no entanto, de um recurso mais recente, na esfera midiática, possivelmente facilitado pelo advento da internet. Transgressão de gêneros e paródia são, como veremos, dois fenômenos que se aproximam tanto pelo(s) deslocamento(s) que produzem no âmbito do convencional, daquilo que está previamente instituído ou legitimado, quanto pela heterogeneidade enunciativa, pelo entrecruzar de vozes que propicia sua emergência. No entanto, como temos observado, a transgressão é, via de regra, feita pelo próprio enunciador/anunciante, enquanto a paródia habita preferencialmente sites da internet (como, por exemplo, o www.baboseira.com.br, o www.kibeloco.com.br e o www. isblobow.kit.net)4 e, embora também chame a atenção do leitor sobre um dado produto, o faz indiretamente, parecendo apostar mais no humor pelo humor. Lembremos, aliás, que o humor é um dos elementos-chave da paródia. Nesse caso, a partir de dois exemplos – selecionados entre os muitos examinados ao longo da pesquisa maior (vide nota 2) – acreditamos poder mostrar como esses dois fenômenos se ligam ao regime de sentido do acontecimento (ZILBERBERG, 2007), de modo a subverter o contrato – a rotina do gênero publicidade – com o enunciatário. Isso porque, ao invadir seu campo de presença de maneira inesperada e romper, assim, suas 4
Paródias feitas pelo próprio enunciador/anunciante, como é o caso, por exemplo, da campanha da Bombril com o ator Carlos Moreno, são mais raras. No caso, os sites citados parecem ter sido concebidos com o fim único de parodiar anúncios convencionais.
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expectativas, tanto a transgressão quanto a paródia cumpririam a função de “surpreender” e “distrair” o exigente leitor/consumidor pós-moderno. Assumimos, pois, que os anúncios atuais, sejam eles transgredidos ou parodiados, permitirão, da mesma forma que os anúncios ditos “convencionais”, apreender os valores e a ideologia em que estão assentados, fornecendo parâmetros suficientes e adequados para o cotejo com os anúncios dos anos 1960, como pretendemos mostrar no item 3, dedicado às análises. 1. As categorias semióticas de análise Como sabemos, a Semiótica Francesa, tomando o texto, prioritariamente, como um objeto de significação, examina, num primeiro momento, seu plano de conteúdo por meio do percurso gerativo de sentido, “modelo” que simula a produção e a interpretação dos textos e que vai do mais simples e abstrato – o nível fundamental – ao mais complexo e concreto – o nível discursivo –, passando por um nível intermediário – o narrativo. Para a análise das publicidades deste trabalho, selecionamos, no âmbito dos diferentes níveis do percurso gerativo, algumas categorias que nos pareceram mais produtivas, em se tratanto desse objeto de estudo5. Em primeiro lugar, assumimos que o produto anunciado apresentase como um objeto no qual se inscrevem valores relevantes para o sujeito, o que faz dele um objeto de valor (Ov). Pressupondo-se que tais valores sejam positivos (eufóricos), o sujeito será levado a querer (e/ou a dever) entrar em conjunção com esse Ov6. Cumpre, pois, determinar esses valores e, além disso, examinar a modalização (pelo ser) que incide sobre a relação sujeito/ objeto, mostrando-a como desejável (querer-ser), proveitosa/necessária (dever-ser), possível (poder-ser) etc. Avançando um pouco mais, pretendemos verificar o contrato que se estabelece entre o enunciador (autor implícito do anúncio) e o enunciatário (leitor/consumidor implícito). De acordo com Barros (1988, p. 92 Como afirma Fiorin (1995), um texto pode trabalhar melhor um nível, um componente
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do que outro(s). Por isso, é sobre esse(s) aspecto(s) mais explorado(s) que a análise deve centrar-se.
Pode também acontecer o contrário: o sujeito quer entrar em disjunção com um dado objeto, caso os valores que nele se inscrevam sejam negativos. Por exemplo: ao usar um sabão em pó da marca X, o sujeito se livrará (entrará em disjunção com) o Ov sujeira.
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93), o enunciador coloca-se como destinador-manipulador, responsável pelos valores veiculados no discurso e capaz de levar o enunciatário, seu destinatário, a crer e a fazer. Há, pois, um fazer persuasivo do manipulador, realizado no e pelo discurso, ao qual corresponde um fazer interpretativo por parte do enunciatário. A autora lembra ainda que a manipulação prevê um primeiro contrato fiduciário que, no nível das estruturas discursivas, colocase como um contrato de veridicção, que determina o estatuto veridictório do discurso7. Pretendemos, portanto, verificar quais são os procedimentos (linguístico-discursivos) de que o enunciador lança mão, no seu fazerpersuasivo, para que o enunciatário, ao realizar o fazer-interpretativo que lhe cabe, creia na “verdade” do discurso, do enunciador e dos próprios valores que lhe são apresentados, o que o levará a aceitar o contrato proposto e, consequentemente, a comprar o produto anunciado. No caso da publicidade, o enunciador conta com uma série de mecanismos linguístico-discursivos para o seu fazer-persuasivo: o uso de estereótipos e fórmulas consagradas, a utilização de figuras de linguagem, a presença de slogan, o apelo à autoridade, o recurso à repetição etc. Todos esses elementos atestam a qualidade do produto que está sendo anunciado – sua superioridade em relação a outros da mesma espécie – e contribuem na/para a sua venda, destacando-o, portanto, no mar de ofertas que cercam o consumidor cotidianamente. Outro aspecto relevante a ser trabalhado são os temas e figuras que, articulados, garantem a coerência (isotopia) do discurso. Figuras são elementos que remetem ao mundo natural (ou construído como tal); temas, elementos que servem para organizar, justificar e categorizar esse mundo. Assim, a figura de um atleta que diz usar a vitamina X remete a temas como saúde e disposição; a moça bonita que aplica no corpo o creme Y materializa temas como beleza e maciez (da pele). Para Fiorin (1988, p. 26-34), é no âmbito dos temas e figuras que o texto mostra, plenamente, a ideologia que o sustenta. Semiotizando as noções de formação ideológica (FI) e formação discursiva (FD), tão caras à chamada “Escola francesa de Análise do Discurso”, o autor entende FI como “a 7
Lembramos que a semiótica não se interessa pela verdade (ontológica), mas pelo parecerverdadeiro (verossimilhança), o que a aproxima da retórica. Substitui, assim, o conceito de verdade pelo de veridicção ou de “dizer verdadeiro”, mostrando que verdade, mentira, falsidade ou segredo são construções discursivas.
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visão de mundo de uma determinada classe social” ou, em outras palavras, “um conjunto de representações, de ideias que revelam a compreensão que uma dada classe tem do mundo”. Nesse sentido, embora haja numa formação social tantas FIs quantas forem as classes que a compõem, a FI dominante é a da classe dominante. As FIs, por sua vez, materializam-se, através da linguagem, nas FDs. Uma FD deve, pois, ser entendida como “um conjunto de temas e figuras que materializa uma dada visão de mundo” (FIORIN, 1988, p. 32). Essas noções, aplicadas aos anúncios selecionados, nos permitirão chegar a alguns temas e figuras relevantes em cada época (FDs) e, consequentemente, à(s) FI(s) que sustenta(m) a publicidade em diferentes momentos da história (década de 1960 e atualidade), desvelando o diálogo profícuo que se instaura entre essa instância e a sociedade. 2. Um diálogo com Bakhtin e com a semiótica tensiva Abordar a transgressão de gêneros, um dos tipos de subversão de texto que examinaremos na próxima seção, implica, num primeiro momento, falar de Bakhtin, cujo mérito foi o de retomar a discussão em torno dos gêneros do discurso, que desde Platão e Aristóteles vem suscitando o interesse dos estudiosos, e ampliá-la para além dos limites da retórica e da poética. Por gênero do discurso, Bakthin (1992, p. 279-287) entende um “repertório de tipos relativamente estáveis de enunciados”, ligado à utilização da língua numa determinada esfera da atividade humana. Tal definição atesta, sem dúvida alguma, uma certa estabilidade (ou normatividade) nas produções verbais dos falantes. No entanto, ao caracterizar os gêneros como tipos relativamente estáveis de enunciados, Bakhtin mostra que eles não são rígidos, nem estanques, o que nos permite postular uma “margem de manobra” entre as coerções (de um gênero) e as variações possíveis, questão que passa, naturalmente, pela existência de gêneros mais/menos padronizados. É essa maleabilidade de certos gêneros que propicia a ocorrência de fenômenos como a transgressão, um tipo de hibridização no qual um gênero assume a função de outro, emprestando-lhe, ao mesmo tempo, sua forma. No caso da publicidade, nosso objeto de estudo, o texto (o anúncio), embora mantendo sua função primeira de vender um dado produto (serviço, ideia), assume a forma de um outro gênero (do mesmo domínio – o midiático – ou de outro domínio). Nesse caso, assumimos que
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o gênero transgredido seria a publicidade, que se deixa camuflar por um outro gênero: o transgressor. Nossa proposta de transgressão aproxima-se do “dialogismo intergenérico” de Chaves (2010, p. 113), definido como o diálogo entre pelo menos dois gêneros – enunciante e enunciado – na espacialidade do texto. Trata-se, no entender da autora, de “um tipo particular de dialogismo, em que diferentes vozes, nesse caso gêneros e não propriamente unidades linguísticas isoladas [...] dividem o mesmo contexto enunciativo...” (grifos do original). Nesse caso, “a convocação de gêneros discursivos [...] não se coloca em termos de intertextualidade, e sim de interdiscursividade” (CHAVES, 2010, p. 167). Em outras palavras, o diálogo se instaura entre os gêneros discursivos e não somente entre enunciados de textos efetivamente produzidos e localizáveis. É, pois, um conceito mais amplo que, a nosso ver, abarca a “intertextualidade intergêneros” proposta por Marcuschi (2002), na esteira de Ursula Fix, cujas relações vão de texto a texto8. À questão da transgressão (ou do dialogismo intergenérico), somaremos a da paródia, o segundo tipo de subversão textual que examinaremos, dada a proximidade que essas duas noções mantêm, como já afirmamos. Aliás, para falar de paródia, não podemos prescindir, novamente, da contribuição de Bakhtin, “nome obrigatório num estudo que trabalhe o uso não-sério da linguagem” como aponta Fávero (1994, p. 49), embora reconhecendo que a noção de paródia como “palco de luta entre vozes contrárias” já havia sido elaborada anteriormente por Tinianov. Lembra a autora que a própria etimologia da palavra, que vem de para = ao lado de e ode = canto, significando, portanto, um “canto paralelo”, incorpora a ideia “de uma canção cantada ao lado de outra, como uma espécie de contracanto”. A paródia remete aos gêneros carnavalizados abordados por Bakhtin (mais especificamente, à sátira menipéia) implicando, dessa forma, a fuga ao cotidiano, ao oficial. Segundo Fávero (1994, p. 51), o discurso carnavalesco instaura “um estado de mundo dinâmico porque ambivalente e contraditório”; é o próprio “mundo às avessas”. Assim como ocorre na transgressão, em que se fazem ouvir duas vozes – a do gênero transgressor e a do gênero transgredido – revelando todo o dialogismo que está na Lembramos que, para a teoria semiótica, o texto constitui a união de um plano de conteúdo (o do discurso) com um plano de expressão (verbal, não verbal ou sincrético). O texto constitui, portanto, a materialização do discurso através da linguagem.
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base mesma da construção desse conceito, na paródia temos um discurso ambivalente, no qual uma voz (um texto) absorve outro para depois repelila(o), subvertê-la(o) recriando-a(o) num modelo próprio. Se nos aproximamos de Fávero (1994), quando considera a paródia como um “cruzamento” – não uma fusão – de vozes, pois é isso que permite distinguir o texto primeiro do texto segundo (parodiado), distanciamo-nos, no entanto, da autora quando ela restringe esse diálogo ao âmbito intertextual. Isso porque entendemos que o “diálogo parodístico” pode também estabelecer-se entre discursos, sem remeter, portanto, a textos específicos, exatamente como acontece com a transgressão. Nessa perspectiva, tomaremos a paródia também de forma mais ampla, entendendo-a como uma prática discursiva que se configura como um caso de heterogeneidade enunciativa, uma vez que se instaura um diálogo entre discursos de diferentes ordens: o “dito conhecido” e o “dito novo”, como propõe Machado (1999), quer esse “dito” se configure como texto, quer, de forma mais ampla, como discurso. Para examinar as noções de transgressão e de paródia, tal como foram descritas acima, utilizaremos, além dos autores citados, algumas categorias propostas pela Semiótica Tensiva, um dos desdobramentos mais recentes da Semiótica do Discurso (na sua formulação standard)9. No âmbito dessa vertente, Zilberberg (2007) propõe dois regimes de sentido: o acontecimento e a rotina (que o autor prefere chamar de exercício10). No acontecimento, ocorre uma entrada abrupta, inesperada do objeto no campo de presença do sujeito, que é, então, tomado, apreendido por essa situação. Já na rotina, o sujeito se antecipa, se esforça por observar um dado objeto, passível de receber valor, significado. Ligados a esses dois regimes de sentido, encontram-se o modo de existência, o modo de eficiência e o modo de junção. O modo de existência refere-se à relação entre sujeito e objeto e pode ser de dois tipos: o foco, quando o sujeito que sente, que percebe, volta-se para o objeto a fim de compreendê9
Diferentemente da Semiótica dita standard, que se preocupa prioritariamente com um sujeito que age no e sobre o mundo, a Semiótica Tensiva volta-se para o sujeito que sente, que sofre, que percebe o mundo à sua volta. Essas duas vertentes, longe de se oporem uma à outra, complementam-se e, juntas, permitem compreender, de forma mais ampla, o processo de geração do sentido. 10 De nossa parte, manteremos o termo rotina em consonância com a maioria dos semioticistas brasileiros.
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lo; e a apreensão, quando o sujeito é tomado, é apreendido pela entrada brusca do objeto no seu campo de presença. O modo de eficiência diz respeito à maneira como o objeto chega ao campo de presença do sujeito: no atingir, que guarda relação com o foco, o objeto penetra no campo de presença de forma relativamente lenta, já que envolve uma antecipação ou uma previsão do sujeito que busca atingir um dado fim; no sobrevir, articulado à apreensão, o campo de presença é invadido pelo objeto de maneira não prevista pelo sujeito; este é, então, apreendido pelo inesperado, pelo abrupto. Finalmente, o modo de junção pode ser implicativo, isto é, relacionado a uma sequência lógica, esperada e previsível (regime da rotina), ou concessivo, caracterizado pelo inusitado, pela quebra de expectativas (regime do acontecimento). Conjugando-se os três modos de produção do sentido, temos o seguinte quadro, adaptado de Zilberberg (2007, p. 25): Quadro 1 Rotina
Acontecimento
Modo de existência
Foco
Apreensão
Modo de eficiência
Atingir
Sobrevir
Modo de junção
Implicação
Concessão
Ainda que a publicidade seja um gênero bastante dinâmico e flexível – e, portanto, pouco afeito à padronização –, podemos supor que há casos de publicidades que se limitam a cumprir seu contrato genérico (ligando-se, pois, ao regime de sentido da rotina) e outros que, ligados ao acontecimento, irrompem de forma abrupta, inesperada no campo de presença do sujeito, apreendendo-o, como é o caso da transgressão e da paródia, fenômenos que implicam, como foi dito, uma subversão daquilo que é previsto, esperado pelo sujeito. A ideia é, pois, verificar os “desvios” que se observam em cada caso, bem como os efeitos de sentido que deles decorrem. As categorias descritas brevemente neste item e no anterior são, em suma, aquelas como que trabalharemos (vide seção 3) na análise dos conjuntos de textos selecionados, de modo a apreender como se dá o diálogo entre a publicidade e a sociedade em diferentes épocas – década de 1960 e momento atual. Pretendemos, desse modo, chegar ao simulacro do
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consumidor que se instaura em cada um desses momentos da nossa história e, com isso, desvelar a ideologia que se materializa, através da linguagem, no discurso de cada período. Isso nos permitirá também observar como o gênero publicidade evoluiu nos últimos cinquenta anos. Lembramos, finalmente, que os anúncios publicitários são textos sincréticos, isto é, textos que mobilizam diferentes linguagens. Nesse caso, não nos preocuparemos em distinguir o que está no plano de expressão verbal e o que está no plano de expressão não verbal/visual, abordando o anúncio como uma unidade construída por meio de uma estratégia enunciativa integradora, como propõe Teixeira (2008, p. 173). 3. Analisando anúncios de ontem e de hoje Vejamos, inicialmente, um anúncio publicitário de Maizena, veiculado na década de 196011:
Nesse anúncio, o produto (amido de milho) Maizena apresenta-se como um objeto no qual se inscrevem valores positivos (eufóricos), como nutrição e sustentabilidade. Trata-se, portanto, de um Ov que, na sua relação Disponível em: http://economia.ig.com.br/conheca+algumas+marcas+eternas+da+in dustria/n1300148505348.html#10. Acesso em: 27 set. 2011. 11
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com o sujeito, revela-se, mais do que desejável (querer-ser), necessário e proveitoso (dever-ser), já que “alimenta” e, ao fazer isso, garante a vida/o crescimento. A criança roliça e corada que leva a mamadeira à boca e que mantém uma proximidade conveniente com o produto anunciado (que, assim, passa a integrar naturalmente o ambiente) figurativiza o tema da saúde. Esse “conjunto” temático-figurativo – reforçado pelo enunciado “Maizena alimenta a criança brasileira!”, que funciona como uma espécie de slogan, de fácil memorização –, constitui, na perspectiva assumida por Fiorin (1988), a FD dominante, que, por sua vez, remete à ideologia, segundo a qual viver bem é alimentar-se bem – não necessariamente com qualidade. Não podemos perder de vista que, na década de 1960, questões como a necessidade de uma alimentação balanceada e de exercícios para manter o equilíbrio físico (e, por extensão, psicológico) não faziam parte das preocupações da grande maioria das pessoas. Por meio desse texto verbo-visual, o enunciador (o anunciante de Maizena) propõe, assim, ao enunciatário (no caso, a mãe, destinatária, por excelência, da mensagem) um contrato de “consumo de Maizena” – afinal, quem não quer ter um bebê “fofinho” como o que é retratado no anúncio? Assim, a enunciatária-mãe, ao realizar o fazer-interpretativo que lhe cabe, crê no enunciador, no seu discurso, nos valores que ele representa, tomando-os como verdadeiros e aceitando, pois, o contrato proposto, o que desencadeará a compra do produto. Há, desse modo, uma adesão fiduciária que envolve, sobretudo, o crer e que revela o caráter ideológico da interpretação como reconhecimento da verdade no/do discurso.
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Vejamos agora um texto atual (parodiado) sobre o mesmo produto12:
No texto em questão, Maizena desloca-se da esfera familiar (mãe/ criança), na qual é um produto alimentício cujo consumo garante uma vida saudável, para o âmbito do sincretismo religioso brasileiro, no qual se transforma numa oferenda (um pó) de despacho. Afinal, Maizena é um produto genuinamente nacional, já que alimenta a criança “brasileira” e não qualquer criança, como vimos no anúncio anteriormente apresentado. Segundo o Dicionário Houaiss (2009, p. 663), por “despacho” devese entender “na umbanda, no catimbó ou em alguns candomblés de caboclo, a ação de depositar em um lugar determinado (frequentemente, encruzilhada, cachoeira, mata) uma oferenda a Exu [...] para que este faça mal a alguém”. Lembremos que Exu é o orixá que, nessas religiões afrobrasileiras, corresponde ao demônio da Igreja Católica. Os valores inscritos nesse Ov passam, pois, a ser negativos (disfóricos), uma vez que se ligam ao mal, colocando-se, assim, no mesmo patamar dos demais objetos citados: Disponível em: http://piadashowdebola.blogspot.com/2008/10/mae-zena-po-para-despacho- macumba.html. Acesso em: 27 set. 2011. 12
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a galinha preta e o prato de comida, o que distingue esse texto do anterior, em que o produto Maizena estava ligado ao bem (a valores como nutrição e sustentabilidade, ao tema da saúde, à figura da criança bem-alimentada). Assim, Maizena transforma-se em “MãeZena”, num interessante jogo sonoro/visual, que, explorando as possibilidades cômicas dessa associação, remete à figura da mãe de santo, responsável pela orientação espiritual e pela administração dos terreiros onde se dá o culto aos orixás (temática religiosa). Observa-se, dessa forma, o palco de luta entre duas vozes, que é próprio da paródia: a voz “séria”, tradicional, da Maizena como alimento, e a “voz” que incorpora esse primeiro modelo para contestá-lo e recriá-lo como oferenda de despacho. No entanto, essas “vozes” não se fundem, permitindo que o modelo que serviu de base para a paródia seja reconhecido pelo outro (leitor). Em outras palavras: a visão convencional do/sobre o produto é alterada, sem ser, de todo, apagada, pois, conforme vimos, a caixa amarela, com dizeres em negro, que caracteriza, de forma incontestável, o amido de milho da marca Maizena, mantém-se na versão parodiada. Com isso, ao mesmo tempo em que se questiona a autoridade, a legitimidade do produto, contribui-se para fortalecê-lo, já que a versão segunda (a paródia) deixa implícita a versão primeira (a do texto “sério”). Com esse “movimento dialógico”, instaura-se um novo contrato com o enunciatário: o do humor. O perfil do consumidor deixa de ser o da mãe preocupada com o bemestar e com a saúde do seu bebê para se transformar no perfil de um leitor imbuído da ideologia do prazer pelo prazer. A intencionalidade lúdica desse texto, ao subverter o fixo, o convencional, é, pois, inegável, mostrando que, longe de verdades absolutas, o que temos são verdades circunstanciais, discursivamente construídas. Do ponto de vista da semiótica tensiva, vemos que esse pretenso anúncio publicitário, diferentemente do texto anterior, desestabiliza o previsível inscrito na rotina do produto Maizena e, entrando de forma inesperada, abrupta, no campo de presença do leitor, “toma-o de assalto”. É o domínio do sobrevir, da apreensão, da concessão, que, juntos, constituem a instância do acontecimento. Não podemos perder de vista que a rotina é, essencialmente, nossa forma de compreender o mundo. Assim, algo que nos escapa, que desestabiliza nossos cálculos e certezas, torna-se
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um acontecimento, já que instaura um “choque de sentido”, capaz de causar prazer. É isso que ocorre com o texto da “MãeZena”. Vamos ao outro conjunto de textos de produtos similares (eletrodomésticos) da mesma marca (Brastemp)13: ☻Abra o congelador horizontal de tamanho ideal. ☻Experimente o contorno e a luz. ☻Observe o rebaixo para garrafas grandes. ☻Atente bem para a gaveta de carne. ☻Examine as prateleiras de alumínio. ☻Veja o recipiente inteiriço para legumes. ☻Maravilhe-se com as prateleiras moldadas na própria porta. ☻ALÉM DISSO: Seu acabamento integral,
interno
e
externo,
é
verdadeiramente luxuoso. Convençase, pessoalmente, de que escolhendo o BRASTEMP-CONQUISTADOR terá vantagem absoluta na compra do seu refrigerador.
Nesse texto da década de 1960, o produto anunciado – o refrigerador Brastemp – também se mostra como um Ov desejável (querer-ser) e proveitoso (dever-ser), pois nele se inscrevem valores positivos como espaço, utilidade, luxo, conservação (de alimentos). As figuras do refrigerador e das mulheres (que aqui não mais assumem o papel temático de mães, mas o de donas de casa, possivelmente patroa e empregada) remetem aos temas da praticidade e da eficiência, caros à ideologia dos tempos modernos. O enunciador/anunciante constrói seu fazer-persuasivodiscursivo “dissecando” o objeto, cuidadosamente, em partes e chamando a atenção para as vantagens de cada uma delas (índices de avaliação como Disponível em: http://publicidadeando.blogspot.com/2009_12_01_archive.html. Acesso em: 28 set. 2011.
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“maravilhar-se”, “verdadeiramente luxuoso” etc cumprem essa função). Com isso, pretende que a enunciatária/consumidora (a dona de casa), no seu fazer interpretativo, creia na veracidade do produto, do enunciador e dos valores que representa (adesão fiduciária), o que a levará, em última análise, a aceitar o contrato proposto: o de aquisição do produto anunciado. O texto cumpre a rotina genérica da publicidade: apresenta o produto, descreve suas partes e seus pontos positivos, de modo a destacá-lo no competitivo mercado de geladeiras: “a vantagem absoluta na compra do Brastemp Conquistador comprovada ponto a ponto”, o que, no âmbito linguístico, se dá por meio da enumeração e do uso do operador argumentativo de conjunção “além disso”, que soma argumentos em favor de uma mesma conclusão. O emprego recorrente do imperativo (“abra”, “experimente”, “observe” etc) – recurso típico do texto publicitário para simular um diálogo entre um eu e um tu–, estabelece quase uma obrigatoriedade para a destinatária da mensagem: a de ter aquele produto, que representa não só um bem material, mas a chance de pertencer a um determinado grupo: o das donas de casa modernas. Em suma: tanto o primeiro texto de Maizena quanto o do refrigerador Brastemp não se afastam dos estereótipos presentes naquele momento histórico (década de 1960): o da mulher que se volta prioritariamente para tarefas domésticas: seja cuidar dos filhos (do seu crescimento, da sua saúde), seja cuidar do lar (zelar pela conservação dos alimentos que serão consumidos pela família), remetendo a uma FI patriarcal dominante, que reserva ao homem o papel temático de chefe de família e à mulher, os de mãe e esposa. Revela-se, assim, o diálogo profícuo que se instaura entre a sociedade e a publicidade. Apresentamos, a seguir, um anúncio atual de um outro eletrodoméstico da marca Brastemp – um fogão, que se apresenta sob a forma de uma confissão, já declarada no título (Confissões do fogão Special Line Brastemp da Dona Maria). No entanto, não se trata do “reconhecimento, por uma pessoa, da culpa ou da acusação que lhe é imputada”, mas da “revelação do que se sabe, sente ou pensa” (Dicionário Houaiss, 2009, p. 519), o que remete, portanto, ao (sub)gênero confissão de amor. Senão, vejamos:
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No texto acima14, ocorre uma transgressão de gêneros (ou dialogismo intergenérico), em que a confissão de amor assume a função do anúncio publicitário (a de vender um produto, no caso o fogão Special Line), emprestando-lhe, ao mesmo tempo, sua forma: trata-se, em linhas gerais, de um texto que adota um “tom” subjetivo (haja vista o uso da 1ª. pessoa do singular e as numerosas interrogações e exclamações que permeiam o texto) e uma linguagem coloquial (inclusive com “erros” de português, para simular uma certa espontaneidade) e que, além disso, explora o campo semântico dos sentimentos. Diferentemente do refrigerador do anúncio anterior que se coloca como um verdadeiro objeto de consumo, aqui o fogão assume o papel temático de companheiro (confidente, amante) da mulher; ele é, então, personificado. É, portanto, um Ov que, na sua relação com o sujeito, mostra-se, acima de tudo, desejável (modalizado pelo quererser). Não se cumpre, pois, a rotina genérica de um anúncio convencional, que se limitaria a apresentar o produto e suas vantagens em relação aos concorrentes (como foi feito com o refrigerador Brastemp). A exemplo da versão parodiada da Maizena (texto 2), também aqui duas vozes (dois 14
Disponível em: http://prihlima.wordpress.com/2008/06/18/brastemp/. Acesso em: 28 set. 2011.
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gêneros) co-habitam o texto, revelando o caráter polifônico, dialógico da transgressão. O texto não verbal, com as figuras/imagens da mulher e das panelas que simulam vasos de flores – lembremos que flores sugerem romantismo –, integra-se ao texto verbal, com as numerosas figuras (“acochego”, “mãos que passam sobre o corpo”, “ascender o fogo”, “fazer gostoso”, “compartilhar sorrisos”, “abraços”, “amigo” etc) que remetem aos temas do amor, do companheirismo e do erotismo, exatamente aqueles que permeiam o universo (a ideologia) da mulher atual: alguém que, não se contentando em exercer os papéis temáticos de mãe e esposa que lhe foram reservados pela década de 1960, como mostram os anúncios publicitários desse período, quer exercer seu pleno direito a uma vida sexual e afetiva. É claro que se pode objetar aqui que, na publicidade em foco, a mulher não se afasta nem da sua função doméstica – afinal, ao que parece, caberá a ela “pilotar” o fogão e as panelas – nem da sua posição de objeto sexual. No entanto, é preciso reconhecer que, longe de servir apenas às necessidades sexuais do homem como antes, ela agora toma iniciativas (“Como é bom ser seu. Sabe por que? Porque você faz bem, faz gostoso”), tornando-se parceira na relação a dois (“Ah...quantas loucuras já fizemos juntos. Quantas confissões suas eu já ouvi, quantos sorrisos e alegrias compartilhei com você”), ainda que essa “nova” postura feminina se materialize na inusitada confissão de um fogão, um objeto utilitário, cuja função no texto parece ser a de relembrar/retomar as tarefas domésticas das quais a mulher, ainda hoje, não conseguiu se desvencilhar. Mas é exatamente nisso que reside a singularidade desse anúncio. Nele, o objeto (anúncio publicitário) entra de forma abrupta, inesperada no campo de presença do sujeito (sobrevir), que é, então, apreendido, tomado pela situação, o que remete à fórmula concessiva: (embora a, entretanto não b): “embora simule ser uma confissão amorosa, trata-se, em última análise, de uma publicidade de fogão”. Assim, o leitor/consumidor tem seus cálculos e certezas momentaneamente desestabilizados, sendo “tomado de assalto” pelo acontecimento oriundo da transgressão genérica. Com isso, dissimula-se o apelo comercial do produto, investindo-se mais na dimensão sensível das relações entre enunciador e enunciatária, o que resulta numa produtiva renovação de sentidos – ainda que alguns estereótipos ligados ao
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universo feminino sejam (re)convocados. 4. CONCLUSÃO A discussão teórica apresentada e as análises dos anúncios publicitários que nela se pautaram contribuíram para desvelar alguns dos valores, ideias e (pre)conceitos que configuram a ideologia presente na sociedade brasileira da década de 1960 e da atualidade. Vimos, especificamente em relação à figura da mulher, que seus papéis temáticos se transformaram ao longo desse meio século que separa um período do outro: de mãe, dona de casa e esposa, pronta para saciar o apetite sexual do homem, ela passou a ser parceira, amante, alguém com deveres – afinal, apesar dos avanços dos últimos tempos, entre os quais a presença feminina, cada vez maior, no mercado de trabalho, ela não perdeu as funções de mãe, dona de casa e esposa –, mas também com direitos, entre eles o de amar e ser amada e de ter uma vida sexual prazerosa, direito antes reservado ao homem. Buscando agradar, distrair e mesmo divertir um leitor/consumidor cada vez mais exigente, a publicidade vem renovando suas técnicas, seja pela transgressão de gêneros, seja ainda, indiretamente, pela presença da paródia em sites da internet. Embora não se possa afirmar que esses dois fenômenos são, de fato, aquisições mais recentes nesse domínio, sem que se faça uma investigação mais ampla e profunda, parece-nos que os anúncios aqui examinados (além dos muitos que analisamos na pesquisa maior) apontam nessa direção. Assim, investir no acontecimento publicitário, subvertendo a visão de mundo estabilizada do enunciatário para produzir outros (novos) sentidos (de humor, de surpresa etc) pode captar-lhe a atenção e motivarlhe a leitura, desencadeando, enfim, de maneira mais rápida e eficaz, o consumo, que é, afinal, o objetivo maior de toda publicidade. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BARROS, Diana L. P. de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Atual, 1988.
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SEQUÊNCIA DIDÁTICA PARA A LEITURA DE CORDEL EM SALA DE AULA EDUCATIONAL SEQUENCE FOR THE READING OF STORIES ON STRINGS “CORDEL” IN THE CLASSROOM Maria Aparecida Garcia Lopes-Rossi 1 Universidade de Taubaté RESUMO Este artigo tem o objetivo de propor uma sequência didática para leitura do gênero discursivo cordel em sala de aula. Fundamenta-se em pressupostos teóricos sobre o conceito bakhtiniano de gênero discursivo, nos procedimentos para estudo de gêneros, nas principais características do gênero cordel e, ainda, na concepção sociocognitiva de leitura. A partir da articulação desses pressupostos, propõe uma sequência didática para a leitura do cordel contemplando conhecimentos e habilidades de leitura exigidos pela Matriz de Referência de Língua Portuguesa da Prova Brasil e do Saeb (BRASIL, 2008). Contribui, assim, para o trabalho docente e para a proficiência leitora dos alunos com uma sequência didática teoricamente bem fundamentada, exequível em sala de aula e passível de ser utilizada com diferentes exemplos de cordel que o professor selecionar. Palavras-Chave: Leitura; Gêneros Discursivos; Cordel; Sequência Didática. ABSTRACT The aim of this article is to propose an educational sequence for the reading of the discursive genre stories on strings, “Cordel”. It is based on the bakthinian concept of discursive genre, the procedures for studying genres, its main characteristics and also the sociocognitive concept of reading. By articulating these theorical concepts, we propose an educational sequence for the “Cordel” reading contemplating the reading knowledge and skills required by Prova Brazil’s and Saeb’s reference matrix (Brazil, 2008). It consequently contributes to both staff development and student reading proficiency by applying a well established theoretical educational sequence,
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Doutora em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestre em Linguística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora da Universidade de Taubaté (UNITAU). (lopesrossi@uol.com.br).
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feasible in the classroom, and easy to be utilized with the different examples of “Cordel” that the teacher may select. Keywords: Reading; Discursive Genres; Stories on Strings; Educational Sequence.
INTRODUÇÃO O desenvolvimento de habilidades de leitura de alunos do Ensino Fundamental é um importante objetivo do ensino de Língua Portuguesa, previsto pelos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN – (BRASIL, 1998). Avaliações externas de proficiência leitora como Prova Brasil (BRASIL, 2008) e Pisa (PISA, 2001; 2011) têm revelado baixo desempenho dos alunos brasileiros, o que evidencia a necessidade de um trabalho didático voltado não apenas para preparar os alunos para essas provas, mas também – e principalmente – para habilitá-los a atuar socialmente como cidadãos críticos, capazes de ler, compreender e ter uma atitude responsiva ativa aos textos com os quais terão contato nas diversas esferas de sua vida. Aos pesquisadores da Linguística Aplicada, impõe-se a necessidade de contribuir com esse trabalho por meio de propostas de transposição didática da teoria para a prática de sala de aula.2 O trabalho do professor de Língua Portuguesa visando à autonomia do aluno como leitor deve ser contínuo e revela-se bem sucedido à medida que os alunos passam a conhecer uma quantidade cada vez maior de gêneros discursivos diferentes. Isso porque, para participar ativamente das interações sociais, é preciso conhecer e compreender as diferentes manifestações discursivas que a sociedade produz. Dentre os muitos gêneros discursivos propostos pelos PCN, encontra-se o cordel, uma manifestação cultural brasileira tipicamente nordestina, mas com influência e difusão em músicas, no cinema, na televisão. O professor de Língua Portuguesa que conhece esse gênero pode elaborar atividades de leitura prazerosas e eficientes se explorar adequadamente as características do cordel e se contemplar 2
Este artigo apresenta resultados de pesquisas do Projeto Observatório da Educação/UNITAU 2011 – 2014 “Competências e habilidades de leitura: da reflexão teórica ao desenvolvimento e aplicação de propostas didático-pedagógicas”, nº 23038010000201076, financiado por CAPES/ INEP, do qual participam os professores da rede pública municipal Ana Paula Alves Pereira, Ana Paula de Oliveira Candelária, Daniella de Almeida, Lucimara Charleaux, Márcia Maria de Moraes, Marlene de Fátima Cursino, Renato Dutra Gomes.
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descritores de competência em leitura da Matriz de Referência de Língua Portuguesa da Prova Brasil (BRASIL, 2008) e do Pisa (PISA, 2001; 2011). As características e exigências dessas provas são comentadas por LopesRossi et al (2011) e Paula et al (2011). Segundo os autores, de modo geral, essas avaliações exigem leitura inferencial dos textos em vários níveis de dificuldade, envolvendo aspectos diversos (sociocomunicativos, textuais, lingüísticos, estilísticos). Esta pesquisa tem o objetivo de propor uma sequência didática para leitura do gênero discursivo cordel em sala de aula. Para tanto, fundamenta-se em pesquisa bibliográfica e em análise qualitativa dos pressupostos teóricos levantados. Inicialmente apresenta fundamentação teórica sobre o conceito bakhtiniano de gênero discursivo, sobre procedimentos para estudo de gêneros e sobre o gênero cordel visando à seleção de suas principais características para um trabalho didático de leitura. Em seguida, explicita e fundamenta os procedimentos de leitura de cordel que constituem a sequência didática proposta e relaciona-os a conhecimentos e habilidades de leitura, contemplando, quando possível, a Matriz de Referência de Língua Portuguesa da Prova Brasil (BRASIL, 2008). A sequência didática de leitura proposta articula, além desses fundamentos teóricos citados, outros referentes à concepção sociocognitiva de leitura. Espera-se, dessa maneira, contribuir para o trabalho docente e para a proficiência leitora dos alunos com uma sequência didática teoricamente bem fundamentada, exequível em sala de aula e passível de ser utilizada num projeto de leitura, com diferentes exemplos de cordel que o professor selecionar. 1. Fundamentação teórica Na concepção enunciativo-discursiva, a linguagem é concebida como um fenômeno sócio-histórico (BAKHTIN, 1992). Os atos de linguagem orais ou escritos são denominados gêneros discursivos e não podem ser dissociados de seus falantes, das situações de interação, das esferas sociais, dos valores ideológicos. Caracterizam-se e constituem-se por aspectos sociocomunicativos (condições de produção e de circulação, propósito comunicativo, temática), pelo estilo e por elementos composicionais verbais e não-verbais. Como explica Marcuschi (2006, p. 19), muito mais
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do que uma organização lingüístico-textual, os gêneros discursivos, “São formações interativas, multimodalizadas e flexíveis de organização social e de produção de sentidos.”. O cordel é, nessa perspectiva teórica, um gênero discursivo escrito e, como tal, além de constituir-se pelos aspectos citados, também compartilha com todos os outros gêneros discursivos a propriedade dialógica da linguagem humana. O dialogismo, uma das características mais marcantes da linguagem humana, de acordo com Bakhtin (1992), manifesta-se no fato de todo enunciado ser sempre uma réplica (não necessariamente imediata) a outro enunciado. Isso porque a palavra é sempre perpassada pela palavra do outro; um enunciado é uma reação-resposta a outros enunciados, revela sua posição em relação àqueles outros enunciados a que se contrapõe, não é neutro – traz consigo visões de mundo, emoções, juízo de valor –, mantém com outros enunciados uma interação viva e tensa, permite resposta, como comentam Faraco (2003), Fiorin (2006), Marcuschi (2006), Rodrigues (2005). Para apreender o sentido de um enunciado, explica Fiorin (2006, p. 23), “[...] é preciso perceber as relações dialógicas que ele mantém com outros enunciados”. Por causa dessa característica da linguagem, Fiorin (2009) afirma que a compreensão de um texto não pode se constituir senão nas relações dialógicas. A vinculação dos enunciados ao contexto sócio-históricoideológico, por meio da relação dialógica que cada produção de linguagem (enunciado, exemplar de um gênero discursivo) estabelece com outras produções, e as propriedades verbais e não verbais de cada enunciado são, portanto, fundamentais para orientar as práticas de leitura de gêneros discursivos. Em consonância com esses pressupostos teóricos, Lopes-Rossi (2006) argumenta que o estudo de um gênero discursivo deve obedecer às seguintes etapas para que todas as propriedades do gênero sejam contempladas: 1) seleção de textos do gênero a ser estudado; 2) estudo de suas condições de produção e de circulação, do seu propósito comunicativo, das temáticas possíveis de serem abordadas, ou seja, de suas propriedades sociocomunicativas; 3) estudo das características do suporte típico do gênero e das possibilidades ou regularidades de ocorrência e posicionamento dos elementos composicionais verbais e não verbais; 4) análise das possibilidades
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de organização dos elementos verbais e não verbais, especialmente da forma de desenvolvimento textual; 5) identificação das características lingüísticas e de estilo, bem como de marcas enunciativas típicas do gênero. Para o estudo do cordel e desenvolvimento de um projeto de leitura desse gênero discursivo, além desses pressupostos teóricos sobre gênero discursivo apresentados, é preciso articular a esses pressupostos sobre leitura e sobre o gênero cordel. Nesta pesquisa, fundamentamo-nos na abordagem sociocognitiva de leitura, desenvolvida a partir de pressupostos cognitivos que, nos anos 80 do século XX, já sustentavam que a compreensão de um texto não se restringe apenas à decodificação. Como explicaram Kato (1985), Kleiman (1989), Solé (1996), entre outros autores que difundiram a perspectiva cognitiva de leitura no Brasil, o leitor constrói sentidos para o texto pela interação de seu conhecimento prévio (num processamento top-down) e das informações do texto (num processamento bottom-up). As associações de conhecimentos nunca serão idênticas para todos os leitores porque a percepção dos elementos do texto e o conhecimento prévio dos leitores nunca é igual. Objetivos de leitura e habilidades do leitor, manifestadas por meio de estratégias de leitura, também contribuem para a construção dos sentidos. A partir dos anos 90, como explica Koch (2005), as ciências cognitivas passaram a considerar os componentes social e interacional na construção do conhecimento e, atualmente, numa abordagem sociocognitiva, entendese que aspectos sociais, culturais e interacionais estão associados aos processos cognitivos, que “acontecem na sociedade e não exclusivamente nos indivíduos” (KOCH, 2005, p.98). Assim, os conhecimentos prévios dos leitores não são individuais, de origem subjetiva, mas são construídos nas interações sociais e devem incluir, além dos conhecimentos lingüísticos, textuais e enciclopédicos, os conhecimentos de normas (institucionais, culturais, sociais) e das formas de interação pela linguagem.
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Kock e Elias (2006, p. 10) assumem que: [...] na concepção interacional (dialógica) da língua, os sujeitos são vistos como atores/construtores sociais, sujeitos ativos que – dialogicamente – se constroem e são construídos no texto, considerado o próprio lugar da interação e da constituição dos interlocutores. Desse modo, há lugar, no texto, para toda uma gama de implícitos, dos mais variados tipos, somente detectáveis quando se tem, como pano de fundo, o contexto sociocognitivo dos participantes da interação. O texto não explicita todos os sentidos possíveis; o leitor faz inferências, algumas nem mesmo previstas pelo autor do texto. Esse processo inferencial é essencial nessa concepção de leitura, como explica Marcuschi (1999). As inferências, fundadas nas informações fornecidas pelo texto e nas experiências e conhecimentos do leitor, permitem compreensões de muitas informações não explicitadas no texto. O processo inferencial é tido como determinante da compreensão e toda a gama de habilidades de um leitor, exceto a habilidade de decodificação, envolve algum tipo de inferência. Marcuschi (1999, p. 103) comenta que nem todas as inferências são da mesma natureza. Há inferências mais comuns, por vezes óbvias, baseadas sobretudo nas relações lógicas e submetidas aos valores-verdade na relação entre as proposições, denominadas pelo autor de “inferências lógicas”. Há as inferências baseadas no input textual, ou seja, no conhecimento de itens lexicais e nas relações semânticas estabelecidas entre eles, denominadas “inferências analógico-semânticas”. Há inferências baseadas nos conhecimentos, experiências, crenças, ideologias e axiologias individuais, denominadas “inferências pragmático-culturais”. Estas últimas são mais complexas e muito importantes para a compreensão porque o texto está sempre contextualizado numa determinada situação, cultura, momento histórico, campo ideológico, crença, como também explica Marcuschi (1999). Esse último tipo de inferência decorre de um novo entendimento sobre o que é língua, o que é enunciado, o que está envolvido na produção
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e na compreensão de enunciados (da linguagem), pois o fenômeno da linguagem passou a ser considerado nas últimas décadas também em seus aspectos sociais, históricos, culturais, ideológicos e interacionais. As idéias do filósofo russo Bakhtin tiveram grande influência nessa “virada discursiva”, embora não tenha sido esse o único autor a contribuir para o acontecimento. A propósito do conceito de língua, Marcuschi (1999, p.71-72) afirma: A rigor, a língua não é sequer uma estrutura; ela é estruturada simultaneamente em vários planos, seja o fonológico, sintático, semântico e cognitivo no processo de enunciação. A língua é um fenômeno cultural, histórico, social e cognitivo que varia ao longo do tempo e de acordo com os falantes; ela se manifesta no uso e é sensível ao uso. [...] a língua é uma atividade constitutiva com a qual podemos construir sentidos; é uma forma cognitiva com a qual podemos expressar nossos sentimentos, idéias, ações e representar o mundo; é uma forma de ação com a qual podemos interagir com nossos semelhantes. Assumindo os pressupostos teóricos sobre linguagem, gêneros e leitura apresentados, e considerando que qualquer texto a ser lido – no caso desta pesquisa, um cordel – é um exemplar de um gênero discursivo, também devem fazer parte dos conhecimentos prévios dos leitores os conhecimentos sobre as características sociocomunicativas dos gêneros discursivos. Isso se justifica porque, como afirmam Kock e Elias (2006), além dos elementos lingüísticos e da organização do texto, também um vasto conjunto de conhecimentos sobre o evento comunicativo que aquele texto representa é mobilizado para sua compreensão. Assumimos a proposta de Lopes-Rossi (2003) de procedimentos gerais de leitura que articulam esses conceitos e permitem considerar as especificidades do gênero discursivo a ser lido. Assim, a sequência didática de leitura deve iniciar-se com a ativação do conhecimento prévio do leitor sobre as características sociocomunicativas do gênero e sobre o tema do texto, a partir de uma de leitura rápida dos elementos mais destacados. Para
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a leitura do texto completo, propõem-se objetivos de leitura inerentes ao gênero discursivo e decorrentes da curiosidade provocada pela leitura rápida inicial. Com a realização dessa etapa de leitura, espera-se que o leitor tenha compreendido as proposições básicas do texto. Um nível inferencial mais profundo, no entanto, dependerá de novos objetivos de leitura propostos pelo professor, enfocando peculiaridades do gênero e especificidades do tema tratado no texto. Esses objetivos permitam o exercício de habilidades cognitivas de nível superior e inferências, como: comparar informações, sintetizar, distinguir fato de opinião, prever conseqüências, interpretar dados de elementos não verbais, inferir o sentido de palavras desconhecidas, entre outras habilidades previstas na Matriz de Referência de Língua Portuguesa da Prova Brasil. Finalmente, espera-se do leitor um posicionamento crítico a respeito do texto lido, com base em critérios de análise pertinentes ao gênero e em relações dialógicas que ele estabelece com outros discursos. Para a realização desses procedimentos num projeto de leitura de cordel, é necessário destacar as principais características desse gênero. É sobre o que passamos a seguir. 2. O gênero discursivo cordel De acordo com o Presidente da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, Gonçalo Ferreira da Silva, em depoimento disponível no site dessa Academia, o verbete “Cordel” apareceu pela primeira vez em 1881, no Dicionário Caldas Aulete, editado em Portugal, como: “Cordão, guita, barbante, [...] literatura de cordel, conjunto de publicações de pouco ou nenhum valor.”. Desde seu surgimento, era uma literatura em versos populares. Um estudo sobre as condições de produção do cordel nos remete à origem portuguesa desse gênero e às variações de terminologia – cordel, folheto, literatura de cordel, literatura de folheto, como explica Abreu (1999). A literatura de folhetos do Nordeste brasileiro tem como base a portuguesa, que era também chamada de “folhas volantes’, devido à precariedade da impressão das folhas de versos vendidas em feiras livres, romarias, praças ou ruas. Os temas eram os mais variados. A literatura de cordel portuguesa não era produzida, até o século XVIII, apenas para as classes mais populares, mas também para as classes de maior prestígio social naquela época. Abreu (1999) observa que a literatura “dita” de cordel
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tornou-se popular devido à materialidade dos folhetos, que tornava seu preço acessível a diversas classes sociais e culturais. O termo cordel vem do fato de os livretos serem pendurados em varais para serem vendidos. Esses textos acabaram vindo para o Brasil e abordavam famosas histórias como a de Carlos Magno, D. Pedro, D. Inês de Castro; retratavam heróis dotados de coragem, justiça, honra, lealdade, fidelidade, piedade; vilões mentirosos, desleais, vingativos, infiéis, invejosos e dissimulados; lutas entre o bem e o mal; histórias entre os nobres e sem insatisfação de classes inferiores, pois os pobres e os súditos, nessas histórias, viviam em harmonia com seus senhores. Por essas características, Abreu (1999) conclui que “os cordéis lusitanos enviados ao Brasil dizem a seus leitores que não há por que se preocupar com questões políticas, econômicas ou sociais, já que a preocupação central deve ser a busca do Bem”. O cordel luso foi alterado e adaptado pelos poetas populares nordestinos e hoje a literatura de folhetos publicada no Nordeste brasileiro apresentam características próprias. Abreu (1999) informa que os escritores nordestinos usam o termo “literatura de folhetos”, apesar de a partir da década de 1970 alguns estudiosos passarem a usar o termo “literatura de cordel nordestina”. Muito antes que a impressão dos folhetos fosse possível, os cordéis eram apresentados oralmente, em cantorias e desafios, e a conservação das produções se dava por meio da memorização pelo público. O início dessa tradição é atribuída a Agostinho Nunes da Costa, que viveu na Paraíba, de 1779 a 1858. Provavelmente não foi o primeiro cantador, mas seu nome é o que primeiro desponta, seguido de muitos outros importantes poetas, como Nicandro e Ugulino (filhos de Agostinho) e Silvino Pirauá de Lima, que ficou famoso por ser o introdutor das sextilhas. O poeta paraibano Leandro Gomes de Barros, nascido em 1865, é considerado o pai do cordel no Brasil, por ter sido o primeiro a imprimir e vender folhetos com histórias lidas até hoje, como “O cachorro dos mortos”, como informa reportagem especial sobre o cordel exibida no programa Globo Rural, da Rede Globo, em 02/01/2011 (GLOBO RURAL, 2011). Dois folhetos desse poeta, “O testamento do cachorro” e “O cavalo que defecava dinheiro”, inspiraram o escritor Ariano Suassuna na sua obra “O Auto da Compadecida”. Outro folheto inspirador dessa obra foi “O castigo da Soberba”, de Silvino Pirauá, como conta o próprio Suassuna,
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em entrevista ao programa Globo Rural. Abreu (1999) também destaca a importância de Leandro Gomes de Barros na divulgação impressa dos folhetos e comenta que, inicialmente, muitos poetas rejeitavam que seus versos fossem publicados, achando melhor conservá-los apenas para as apresentações orais. O editor João Martins de Athayde introduziu alterações significativas na impressão dos folhetos, como a criação poética vinculada ao número de páginas, sempre em múltiplos de quatro, e uma única história por folheto. Evaristo (2000) explica que a literatura de cordel apresenta-se em forma de: romance (24, 32, 48 ou 64 páginas); folheto (16, 8 ou 4 páginas); folha volante (avulsa). Silva (2008) comenta que o romance e o folheto apresentam capa ilustrada com xilogravura ou, mais recentemente, com desenhos feitos no computador. Outra característica típica é o tamanho do folheto: 11 cm por 16 cm (folha A4 dobrada em quatro). Conforme Abreu (1999), o cordel brasileiro consolidou-se como literatura de folhetos no final do século XIX, obtendo as próprias características e se distanciando do cordel português como uma literatura voltada a camadas populares, valorizando a tradição oral e tematizando o cotidiano nordestino, de modo a denunciar ou lamentar a realidade difícil das classes baixas. Os folhetos de cordel são uma mídia muito popular, e os poetas cordelistas são, na denominação do programa Globo Rural já citado, “os repórteres do sertão”. Muitos acontecimentos chegam ao conhecimento dos sertanejos ou ganham credibilidade a partir de quando viram cordel. Evaristo (2000) afirma que a temática do cordel brasileiro (nordestino) caracteriza-se por: pelejas; romances históricos e de aventuras; histórias de amor; narrativas de acontecimentos sensacionais, atuais, da época; elemento mágico para a solução do problema do herói; religiosidade com propagação de uma moral cristã e um tanto conservadora, dualidade entre Deus/Diabo, céu/inferno. Silva (2008) acrescenta à lista de temáticas do cordel nordestino os heróis populares, como os cangaceiros Lampião e Antonio Silvino e o padre Cícero Romão Batista (Padim Ciço). Ressalta-se no cordel o traço marcante da interdiscursividade, como explica Evaristo (2000). É muito comum nesse gênero a referência a outros textos e a discursos passados e presentes, por meio de marcas explícitas ou não.
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Qualquer tema pode virar cordel, desde que escrito em versos com silabas métricas (ou poéticas). Esse é outro elemento que define a Literatura de Cordel e contribui para a caracterização do gênero. Citando as explicações do poeta popular Rodolfo Coelho Cavalcante, Abreu (1999) afirma que o tipo de rima e de estrofe do cordel coincidem com o das apresentações orais: sextilhas com rima ABCBDB e sete sílabas poéticas (versos heptassílabos); setilhas (ou septilhas) em ABCBDDB e sete sílabas poéticas; e décimas em ABBAACCDDC, com sete sílabas poéticas (décima de sete pés) ou dez sílabas poéticas (martelo agalopado). Essa pode ser considerada a estrutura oficial da Literatura de Cordel. Evaristo (2000) também registra a possibilidade de cordeis em quadras. A trova, ou quadra, compõe-se por quatro versos, cada um com sete sílabas poéticas (versos heptassílabos), com rimas ABAB. A quadra pode ter rimas em ABCB. Alguns exemplos desses padrões de versos, rimas e sílabas métricas são apresentados a seguir. O exemplo (1) é do programa Globo Rural, mostrando um cordel recente sobre a notícia do resgate dos mineiros chilenos que ficaram soterrados. (1)
Eram trinta e três mineiros Presos na mina chilena Foram todos resgatados Com sua saúde plena.
E/ram/ trin/ta e/ três/ mi/nei/ros Pre/sos/ na/ mi/na/ chi/le/na Fo/ram/ to/dos/ res/ga/ta/dos Com/ su/a/ sa/ú/de/ ple/na.
O exemplo (2) é do cordel O Pavão Misterioso, de José Carmelo, composto em sextilha com rima ABCBDB e sete sílabas poéticas (versos heptassílabos): (2) Eu/ vou/ com/tar/ a/ his/tó/ria Dum/ pa/vão/ mis/te/ri/o/so, Que levantou vôo da Grécia, Com um rapaz corajoso, Raptando uma condessa, Filha de um conde orgulhoso.
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O exemplo (3) é do cordel Michael Jackson Disse Adeus, de Antonio Carlos de Oliveira Barreto, cordelista residente em Salvador – BA. É formado por setilhas (ou septilhas) em ABCBDDB e sete sílabas poéticas. Ilustra bem uma afirmação do programa Globo Rural: “Tudo pode virar cordel. Aconteceu, virou poesia.”. (3) A/com/pa/nha/do/ dos/ an/jos Bus/can/do/ trans/for/ma/ção/ Michael Jackson disse adeus Para esse mundo-cão E agora é só festança Com seu canto e sua dança Numa outra dimensão. A métrica, a rima e a oração garantem a beleza e compreensão dos folhetos. A oração é tratada como uma unidade narrativa, ou seja, um único tema, para que não haja a possibilidade de desvio de atenção do mesmo. A história se desenvolve de forma desembaraçada, com vocabulário simples, obedecendo ao padrão já consagrado pelo gênero. Pode haver uma sinopse no ínicio das histórias. Por fim, é importante enfatizar que, apesar de toda a preocupação e o rigor com a manutenção desse formato escrito, é a oralidade a referência para essas composições, uma vez que os poetas escrevem como se estivessem cantando e os folhetos são lidos em voz alta para serem ouvidos. 3. O cordel na sala de aula A partir da fundamentação teórica apresentada, sugerimos que as atividades de leitura de cordel em sala de aula sejam desenvolvidas no âmbito de um projeto de leitura em que os alunos tenham oportunidade de ler vários livretos de cordel, a partir de procedimentos que os ajudem a se apropriar das principais características do gênero e desenvolver habilidades de leitura. Esse é um trabalho voltado à formação do leitor e não apenas à verificação da compreensão de um texto e é por isso que não se constitui de um texto e algumas perguntas para serem respondidas após a leitura. Espera-se proporcionar ao aluno a aquisição de novos conhecimentos sobre o gênero e o desenvolvimento de habilidades que contribuam para
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seu êxito pessoal e escolar, inclusive em avaliações externas. Um projeto de leitura de cordel em sala de aula de Ensino para Jovens e Adultos (EJA), seguindo uma sequência didática com algumas das características da proposta nesta pesquisa, foi desenvolvido por Silva (2008). Mostrou-se um trabalho promissor para a sala de aula e seus resultados justificam o aprimoramento da sequência didática usada por essa autora, tal qual sugerimos a seguir, com a articulação de pressupostos teóricos sobre gêneros discursivos, leitura e cordel. Os quadros a seguir apresentam os quatro procedimentos que compõem uma sequência didática para a leitura de cordel, o que se pretende com cada um deles e os descritores da Matriz de Referência da Prova Brasil associados a cada caso (indicados por D + número do descritor e seu conteúdo). SEQUÊNCIA DIDÁTICA PARA LEITURA DE CORDEL 1. Primeiro procedimento: leitura rápida (global ou pré-leitura) ATIVIDADES PROPOSTAS
- O QUE SE PRETENDE - DESCRITOR (D) DA MATRIZ DE REFERÊNCIA DA PROVA BRASIL ASSOCIADO À ATIVIDADE No início de um projeto de leitura de cordel, Ativação e ampliação do conhecimento construir na lousa um esquema de palavras- prévio do aluno sobre o gênero discursivo chave a partir de perguntas e informações cordel sobre o gênero, à vista de folhetos de cordel Enfoque nas características levados para a sala de aula: sociocomunicativas do cordel: condições Já ouviram falar em cordel? O que é um de produção, circulação, temáticas, cordel? propósito comunicativo/finalidade/ • Quem produz esse gênero? objetivo • Para que serve (finalidade/objetivo/ • D9: identificação da finalidade propósito)? do texto (O gênero cordel se presta a informar Referências breves à estrutura textual: sobre acontecimentos recentes, contar estrofes, versos, rimas. uma história, trazer ensinamento, fazer Percepção de que o cordel há muito crítica social com humor ou lamento, já extrapolou o universo do sertão fazer o perfil de uma pessoa ilustre) nordestino.
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158 • Que assuntos podem ser abordados num cordel? • O cordel tem alguma característica típica? • A literatura de cordel já influenciou outras manifestações artísticas (música, cinema, novela)? Se possível, sugere-se que o professor e os alunos assistam ao Programa Globo Rural, de 29/12/2010, sobre cordel disponível em http://www.youtube.com/watch?v=7Do sjK6GSUQ&feature=related • Se houver tempo, sugere-se visitar o site da ACADEMIA BRASILEIRA DE LITERATURA DE CORDEL h t t p : / / w w w. y o u t u b e . c o m / watch?v=6MfX_ZkVbUs
Ativação do conhecimento prévio e da curiosidade sobre o tema do livreto de cordel a ser lido • D1: localização de informações explícitas • D5: interpretação com auxílio de material gráfico
Entregar um folheto de cordel para cada aluno (de preferência o mesmo cordel para todos) e explorar a curiosidade dos leitores: • Que pistas o título ou as ilustrações nos dão sobre este cordel? • Será uma história? Será um ensinamento, uma crítica social? Nível de compreensão esperado: compreensão mínima, reconhecimento do gênero discursivo cordel ou aquisição de conhecimento novo sobre o gênero, levantamento de algumas hipóteses e curiosidades sobre o tema.
2. Segundo procedimento: Estabelecimento de objetivos para leitura completa do cordel - O QUE SE PRETENDE - DESCRITOR (D) DA MATRIZ DE RERERÊNCIA DA PROVA BRASIL ASSOCIADO Á ATIVIDADE
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Solicitar a leitura do folheto e respostas às perguntas: • Esse cordel conta uma história? Se a resposta for “Sim”, responda: • Quem são os personagens? • O que aconteceu com eles? • Houve conflito? O conflito se resolveu? • Qual é o tema (idéia central) da história? *Se a resposta for “Não”, responda: • Não sendo uma história, o que é esse cordel? • Qual é o tema (idéia central) do cordel? • O que você achou mais curioso, interessante, engraçado ou inusitado nesse cordel?
Leitura focada na compreensão das proposições básicas do cordel a ser lido. Se o cordel contar uma história, os objetivos de leitura encaminham para a compreensão dos elementos estruturantes da narrativa. • D1: localização de informações explícitas • D7: Identificação do conflito gerador do enredo e dos elementos que constroem a narrativa • D6: Identificação do tema do texto Se o cordel não for uma história, os objetivos encaminham para a compreensão de sua natureza: peleja, versos de crítica social, ensinamentos ou perfil. Oportunidade de os alunos manifestarem suas primeiras impressões e primeiro destaque de algumas partes do cordel, o que será aprofundado no procedimento a seguir.
Nível de compreensão esperado: compreensão básica do tema do cordel e do seu desenvolvimento
Numa situação de leitura não mediada pelo professor, o leitor poderia parar nesse nível de compreensão por considerar que já teria lido e compreendido a história. Já teria se divertido ou se emocionado com ela, portanto, a leitura já estaria concluída. Na perspectiva do trabalho com gêneros discursivos em sala de aula por meio de sequências didáticas, como propõem Schneuwly e Dolz (2004), no entanto, podemos ir além desse nível de compreensão. Dimensões ensináveis do gênero alvo da leitura podem ser exploradas de forma que o aluno se aproprie de um conhecimento novo. É o que se propõe nos dois procedimentos de leitura a seguir, que encerram a sequência didática para a leitura de cordel. A partir desse novo conhecimento, o leitor poderá estabelecer uma postura mais dialógica e crítica com cada folheto de cordel que tiver oportunidade de ler.
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3. Terceiro procedimento: Estabelecimento de objetivos para uma leitura detalhada de certas partes do cordel ATIVIDADES PROPOSTAS
Solicitar a leitura detalhada de partes do folheto e respostas às perguntas: • Qual é o número de páginas desse cordel? • Como são as estrofes desse cordel? (Por quantos versos são formadas?) • Qual é o esquema rítmico (esquema de rimas)? • Quantas sílabas poéticas tem cada verso? (Qual é o esquema métrico de cada verso?) • Há interdiscursividade nesse cordel (referências a outras histórias ou a outros textos ou a assuntos atuais)? • Identifique, nesse cordel, alguma marca da linguagem popular falada. *Se houver palavras difíceis que mereçam ser exploradas, podese perguntar: No texto, o que significa a palavra ...? • Há acróstico na última estrofe com o nome do autor?
- O QUE SE PRETENDE - DESCRITOR (D) DA MATRIZ DE RERERÊNCIA DA PROVA BRASIL ASSOCIADO Á ATIVIDADE Conhecimento mais aprofundado sobre o suporte do cordel (o folheto, que tem números específicos de páginas) e sobre características textuais constitutivas do gênero: tamanhos de estrofes, esquemas de rimas e quantidade de sílabas poéticas mais comuns (versos • D4: Inferências de informação implícita Percepção do diálogo que o cordel estabelece com o cotidiano das pessoas, com os costumes, com os fatos mais comentados Observação de características lingüísticas típicas do cordel • D3: Inferência de sentido de palavra ou expressão Observação de outro elemento típico, mas não obrigatório, da estrutura do cordel.
Nível de compreensão esperado: Compreensão minimamente crítica do cordel; percepção dos elementos linguístico-textuais característicos do cordel
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4. Quarto procedimento: Apreciação crítica do cordel a partir das características do gênero ATIVIDADES PROPOSTAS
Se o folheto lido foi um cordel de crítica, denúncia, ensinamento, perguntar: • Qual a crítica, ou denúncia, ou ensinamento que esse cordel traz? • Você gostou do cordel? Por quê? • Você gostaria de ler outros cordéis? • Você gostaria de escrever um cordel? • Você gostaria de assistir a algum filme ou ouvir alguma música baseado(a) em cordel?
- O QUE SE PRETENDE - DESCRITOR (D) DA MATRIZ DE RERERÊNCIA DA PROVA BRASIL ASSOCIADO Á ATIVIDADE Reflexão sobre a qualidade do cordel. Incentivo a outras leituras, pesquisas e explorações sobre o gênero. OBS.: Não há descritores da Prova Brasil referentes a esse nível de inferência.
Nível de compreensão esperado: Compreensão crítica do cordel
CONCLUSÃO A reflexão teórica disponível pode fundamentar ações mais efetivas do professor na formação de um leitor apto a intervir e interagir na sociedade em que vive. Atividades de leitura informadas teoricamente e organizadas em sequências didáticas constituem significativa contribuição ao trabalho do professor, pois permitem a transposição didática de um conjunto de pressupostos considerados pelos estudos linguísticos atuais como indispensáveis ao estudo das práticas sociais de linguagem, realizadas por meio de gêneros discursivos. A partir do proposto neste artigo, pode-se desenvolver um projeto de leitura de diferentes exemplares de folhetos do gênero cordel, em salas do ensino fundamental e médio, com benefícios à proficiência leitora dos alunos. Suas competências e habilidades para a realização de provas externas de leitura também serão ampliadas.
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ALGUNS FUNDAMENTOS DA TEORIA ENUNCIATIVA DE A. CULIOLI
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SOME FUNDAMENTALS OF ENUNCIATIVE THEORY OF A. CULIOLI Elizabeth Gonçalves Lima Rocha1 Universidade Federal do Piauí RESUMO Este trabalho trata-se de uma introdução ao modelo de estudo proposto por Antoine Culioli. Apresentamos, pois, alguns pressupostos teóricos da Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas (T.O.P.E.). De natureza semântica, a T.O.P.E., busca evidenciar a significação nos enunciados tomando como ponto de partida a construção e reconstrução desses enunciados enunciativamente. Para ilustrar alguns dos conceitos apresentados, utilizamos enunciados que contêm os marcadores ainda e já. Palavras- Chave: Culioli, T.O.P.E., significação, enunciado. ABSTRACT Abstract: This paper it is an introduction to the study model proposed by Antoine Culioli. We show, therefore, some theoretical assumptions of the Theory of Operations Predicative and Enunciative (TOPE). Semantic nature of the TOPE, seeks to show the meaning set out in taking as a starting point for the construction and reconstruction of these statements enunciativamente. To illustrate some of the concepts presented, we use statements that contain markers still and already. Keywords: Culioli, TOPE, meaning, enunciation.
INTRODUÇÃO A teoria de Antoine Culioli, denominada Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas (T.O.P.E.), visa a descrever e explicar a linguagem apreendida através da diversidade de línguas. Nesta perspectiva teórica, a linguagem é entendida como atividade dupla de construção e reconstrução de significação. Configura-se, assim, o envolvimento de duas 1
Mestra em Letras, área Estudos de Linguagem, pela Universidade Federal do Piauí.
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entidades enunciativas: o enunciador, que produz uma forma linguística com significação e o coenunciador, que reconhece a forma linguística reconstruindo sua significação. É através da observação das formas lingüísticas, denominadas de marcadores, que se pode descrever e explicar a atividade de linguagem. Neste trabalho, utilizamos as unidades lingüísticas ainda e já para ilustrar os conceitos culiolianos apresentados. As unidades ainda são descritas pelos estudos tradicionais como modificadores temporais do verbo. Nessa ótica, as unidades são estáticas devido a uma predeterminação estrutural onde os valores semânticos e a ordem das unidades nos enunciados são definidos a priori. A proposta teórica de Culioli trabalha em outra perspectiva. Nessa teoria, trabalha-se num nível anterior à construção dos enunciados com o objetivo de se investigar o funcionamento das unidades lingüísticas na atividade da linguagem, que é sempre operativa, no sentido de ter como fim a constituição de significados. Nessa abordagem, não há espaço para a utilização de categorias linguísticas como etiquetas classificatórias (conforme a visão gramatical tradicional), das quais as unidades seriam um exemplar entre outros. Os marcadores não são vistos como elementos pré-determinados do sistema lingüístico, eles são resultantes de uma série de operações realizadas pelos enunciadores a fim de obter uma certa significação. Em termos metodológicos, a proposta de Culioli parte dos dados (enunciados) até chegar a um espaço anterior à materialização deste enunciado onde são postos “problemas”, ou seja, uma classe de fenômenos aceitáveis/inaceitáveis, para os quais se tratará de propor soluções razoáveis. Tais soluções objetivam a descrição das operações de construção de valores referenciais das quais as formas linguísticas são justamente os traços. Essa teoria propõe novas concepções e métodos linguísticos, à medida que entende os valores semânticos como representados por operações de produção de significado, operações estas regradas pelas coerções impostas pela língua. 1. Bases epistemológicas da T.O.P.E. A T.O.P.E. se insere num quadro teórico da enunciação que reformula o objeto de estudo da Linguística. Essa reformulação é assim expressa por
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Culioli (1990, p.14): “Direi que a linguística tem por objeto a atividade da linguagem apreendida através da diversidade das línguas naturais (e através da diversidade de textos sejam orais ou escritos)”. Na definição de Culioli (1990), a linguagem é uma atividade de produção de significados; ela é, pois, da ordem do formulável e do operativo. Essa operacionalidade da atividade linguística pertence ao domínio do epilinguístico, domínio que diz respeito à reflexão voltada para o uso dos recursos expressivos realizada pelos interlocutores. Pelo fato deste domínio ser da ordem do inconsciente somente é apreensível através dos traços materialmente presentes nos textos. Nesta perspectiva, o objeto de estudo do linguista é o enunciado. Como afirmam Franckel e Paillard, a Teoria das Operações Enunciativas de Culioli concebe o enunciado da seguinte forma: O enunciado não é considerado como o resultado de um ato de linguagem individual, ancorado em um hic et nunc qualquer por um enunciador qualquer. Ele deve ser entendido como um agenciamento de formas, a partir das quais os mecanismos enunciativos que os constituem como tal podem ser analisados, no quadro de um sistema de representação formalizável, como um encadeamento de operações do qual ele é traço (FRANCKEL; PAILLARD, 1998, p. 52) [tradução nossa]. Nesta teoria, o enunciado não só representa o dado, o empírico, como também é o produto de uma atividade significante, ou seja, é o resultado das operações realizadas pelos enunciadores (enunciador e coenunciador) na busca da construção e reconstrução da significação de um enunciado. É, pois, pela observação das formas linguísticas, ou seja, dos marcadores cuja produção resulta em enunciados, que se buscam as operações que resultaram na construção de um enunciado. Cabe ao linguista debruçarse sobre as formas empíricas, ou seja, sobre os enunciados buscando as marcas das operações utilizadas para a construção desses enunciados. A proposta elaborada por Culioli é uma teoria enunciativa uma vez que tem como objeto de estudo o enunciado visto como um agenciamento
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de formas a partir do qual os mecanismos enunciativos que o constituem podem ser analisados no quadro de um sistema de representações formalizáveis. Nessa abordagem não se pode conceber a língua independente de seus usuários e das condições de utilização da língua. Sendo assim, Fuchs (1984, p.77), explica que a teoria culioliana é mais versátil que as abordagens instrumentais da linguagem “[...] que procura trabalhar precisamente no ponto de articulação entre a língua e o discurso, no “fazer-se discurso”, quer dizer, no executar-se das operações construtoras da significação dos enunciados”. É a partir da análise do que é imediatamente observável - o enunciado - que se buscam as operações que resultaram na construção daquele enunciado. Nesta investigação, parte-se do empírico em busca do formal, como se pode ler no título do texto de Culioli “La linguistique: de l’empirique au formel”, publicado em 1990. Neste texto, Culioli propõe uma “teoria dos observáveis” que tem como objetivo mostrar, como pela manipulação de sequências textuais orais e escritos, pode-se “extrair julgamentos de aceitabilidade estáveis para um dado grupo” (CULIOLI, 1990, p.17). Trata-se, portanto, segundo o autor, de desenvolver [...] uma teoria que nos dê os meios de construir, sob a coerção do empírico abundante, do qual é preciso revelar as regularidades eventuais, um sistema de representação explícito e estável (CULIOLI, 1990, p.16) [tradução nossa]. Para que isso seja possível o linguista deve trabalhar com formas (sequências textuais), e essas formas, ele não vai tomá-las tais quais são (não haveria nesse caso senão regularidades sequenciais), mas ele vai tratá-las e submetê-las a uma forma de evidência que é o princípio de aceitabilidade. Tomamos, neste trabalho, como parâmetro uma situação de interação verbal hipotética em que um interlocutor pergunta ao outro: Você fez o dever de casa? Podemos manipular alguns enunciados que poderiam ser construídos como respostas: (a) Eu ainda farei o dever de casa – aceitável. (b) Eu já farei o dever de casa – aceitável (c) Eu ainda farei o dever de casa, amanhã – aceitável.
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(d) Eu já farei o dever de casa, amanhã – inaceitável (e) Eu ainda farei o dever de casa, hoje à noite – aceitável. (f) Eu já farei o dever de casa, hoje à noite - inaceitável. (g) Eu ainda farei o dever de casa, imediatamente – inaceitável (h) Eu já farei o dever de casa, imediatamente – aceitável. A observação do fenômeno de aceitabilidade é muito importante na teoria de Culioli, pois é por ela que se tem a qualidade do dado empírico, já que um enunciado aceitável ou inaceitável reenvia à boa ou má formação do enunciado. A observação da possibilidade e da impossibilidade de formas (sempre lembrando que um enunciado mal formado pode ser ajustado) mostra a coerção da língua sobre a atividade constitutiva da linguagem. Essas regras de aceitabilidade e de compatibilidade determinadas por uma língua, apontam para princípios fundadores que tem a ver com um nível mais profundo, nocional e operativo. Tomando os exemplos acima, a aceitabilidade do já diz respeito à complementação ou não, para usar a terminologia topológica de Culioli, de um domínio nocional aspecto temporal aberto pela pergunta “Você já fez o dever de casa?”. As respostas acima com o já e o ainda, mostram que o já pode ser atraído para o interior do domínio das coisas enquanto estão sendo feitas “eu já estou fazendo o dever de casa” e para seu exterior, o das coisas terminadas, por exemplo, diz-se “eu já fiz o dever de casa”, como resposta à pergunta acima, mas não simplesmente “eu ainda fiz o dever de casa” – que, neste caso específico, é mal formada. Mas com respeito ao domínio nocional temporal de um estado de coisas a ser estabilizado, o marcador já somente é compatível com uma posteridade próxima (ver exemplo “h” e mesmo o enunciado “Eu já farei o dever de casa, daqui a pouco”. Porém, há um exterior desse domínio que lhe é interdito, o da posteridade distante (ver exemplos “c” e “f ”). Seria preciso definir a fronteira entre a domínio nocional da posteridade próxima e da distante que o já não atravessa. Por outro lado, em relação ao ainda, é-lhe interdito como resposta à pergunta acima, o domínio nocional das coisas já feitas. “Eu ainda fiz o dever de casa” não é bem formado como resposta à pergunta acima, porque abre bifurcações que remetem a outros estados de coisas estranhos aos que estão em questão “Eu já fiz o dever de casa, mesmo tendo que trabalhar
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também”. No entanto, é atraído para o domínio das coisas sendo feitas, como, por exemplo, “Eu ainda estou fazendo o dever de casa”, ou mesmo “Eu ainda faço o dever de casa”. Mas o interessante é que se a posteridade próxima lhe é um exterior interdito (ver exemplo “g”), no entanto, ainda é uma unidade atraída para o domínio da posteridade distante “Eu ainda farei o dever de casa, amanhã’. Este exemplo mostra que as formas devem ser tomadas menos como determinadas aprioristicamente do que como determinantes da significação. As marcas já e ainda influenciam o enunciado e são influenciada por outras marcas presentes nele. Como dissemos, nesta proposta teórica, as formas linguísticas constituem o material a ser analisado pelo pesquisador. Através dessas formas materializadas nos enunciados, sejam orais ou escritos, é que se busca descrever e explicar a atividade da linguagem. É por meio dos textos, denominados por Culioli (1990) de observáveis, que se podem formular hipóteses teóricas sobre o funcionamento da atividade de linguagem. Segundo Culioli, para que seja possível apreender a linguagem através da diversidade das línguas é preciso: “[...] construir, a partir de observações sistemáticas e minuciosas, um sistema metalinguístico de representações que permite pôr problemas e propor soluções razoáveis para tais problemas” (CULIOLI, 1990, p.155). Nesta perspectiva de estudo, a linguagem não pode ser vista como um espelho da realidade, como um processo mecânico em que há transmissão de informação termo a termo entre os enunciadores envolvidos na comunicação, não se exigindo deles qualquer tipo de esforço ou ajustamento. Culioli (1990) explica que é uma ilusão achar que as palavras são unidades lexicais que permitem reenviar a um sentido. A relação entre palavra e significação, explica o teórico francês, não é de pointage, quer dizer, uma operação de apontamento, de verificação que se faz pondo uma marca, um ponto em uma lista. Diferentemente, as unidades contribuem de modo específico, por regulação ou coerção imposta, para construir o sentido de certo texto. Compete aos enunciadores irem ajustando o processo comunicativo a fim de que sejam compreendidos. Assim, nesta teoria, a significação de um enunciado é o produto de um conjunto de operações que são colocadas em jogo pelos sujeitos. As marcas
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ainda e já, por exemplo, não respondem sozinhas pelo valor referencial de tempo-aspecto, a combinação destas com outras marcas linguísticas é que construirão certo valor referencial. Enfim, para o estabelecimento da articulação entre linguagem e línguas, parte-se do nível linguístico a fim de se buscar as operações que antecederam a materialização dos enunciados, desmonta-se a interpretação dos enunciados criados através de paráfrase, reconstruindo tais operações. Com este procedimento fica claro que esta teoria preocupa-se menos com os resultados e mais com o caminho “linguagístico” pelo qual o enunciador passou, gerando significados aceitáveis ou inaceitáveis. Efetua-se dessa forma, a análise operatória. Trata-se de uma teoria operativa, porque se parte da hipótese de que o valor referencial não é um dado, mas um constructo. Franckel e Paillard explicam as implicações desse modelo operativo: Isso significa que as formas agenciadas que materializam [o enunciado] reenviam menos a valores que a operações de constituição do valor referencial. Estudar a enunciação é então estudar a modalidade de constituição desse valor (FRANCKEL; PAILLARD, 1998, p.52) [tradução nossa]. Construir um enunciado significa estabelecer um sistema de relações que se dá a vários níveis. A enunciação, para esta abordagem constitui-se como a construção de um espaço e o estabelecimento de um quadro de valores referenciais, isto é, um sistema de localização (repérage) (c.f. LIMA, 1995). Se a enunciação é um ato de construção, a realidade não se encontra pré-fabricada, mas é construída através da língua, encontrando-se nesta, ou em suas formas, as marcas das operações constitutivas de significação e contexto. Essas formas desempenham um papel fundamental nesse processo constitutivo à medida que têm funções determinantes e coercitivas. Visando à construção e reconstrução de significação, a linguagem é compreendida como uma atividade resultante de operações indissociáveis de representação mental, referenciação linguística e regulação intersubjetiva. Como dissemos no item anterior, atividade esta acessível somente por meio de textos considerados arranjos de marcadores que contém traços das operações da linguagem.
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1.1 Operações de linguagem: representação, referenciação e regulação Culioli (1990) explica que subjacente a toda atividade de linguagem há três operações que são indissociáveis: atividade operativa de representação mental, atividade operativa de referenciação linguística e atividade operativa de regulação intersubjetiva. As operações de representação agem sobre três níveis. O primeiro nível corresponde às representações mentais relacionadas à nossa atividade cognitiva e afetiva. Culioli explica que: Nesse nível são efetuadas operações que organizam experiências que elaboramos desde nossa mais jovem infância, que construímos a partir de nossas relações com o mundo, os objetos, os outros, de nossa pertença a uma cultura, do interdiscurso no qual nos banhamos (CULIOLI, 1990, p.21) [tradução nossa]. O teórico explica que as propriedades físico-culturais vão ser organizadas em noções que são representações cognitivas que elaboramos do mundo de acordo com o contato que vamos tendo direta ou indiretamente com ele. São operações inacessíveis enquanto tais, mas que nós apreendemos por meio dos traços materiais que são os textos. Os traços textuais nos fornecem o segundo nível, o das representações linguísticas, dos arranjos de marcadores. Arranjo, porque eles não acontecem aleatoriamente, mas por meio de formas que envolvem regras de boa formação e marcadores porque remetem à indicação perceptível de operações mentais. Os traços textuais, segundo Culioli, ainda que sejam constituídos por traços de representações do nível 1, não correspondem a uma relação biunívoca entre os níveis 1 e 2, o que problematiza a conceito de código: Se nós tivéssemos uma relação termo a termo, nós teríamos uma nomenclatura no caso mais grosseiro, e, de maneira mais geral, uma codificação. Ora, não se tem um marcador – um valor. Podemos ter: um marcador – vários valores; vários marcadores – um valor (CULIOLI, 1990, p. 22) [tradução nossa].
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O terceiro nível é aquele que nos fornece as representações metalinguísticas dos marcadores do nível 2. Este nível apreende não só a atividade metalinguística explícita, mas também a implícita (epilinguística). Culioli explica que este nível guarda toda a sua importância para o linguista, pois é em seu âmbito que cabem os sistemas de representação que possibilitam uma teorização ou generalização dos fenômenos linguísticos com o objetivo de “obter o caráter explícito, estável, exterior, coerente que se dá a uma metalinguagem” (CULIOLI, 1990, p.22). Este corresponde ao nível de intervenção do linguista, a seu debruçar-se sobre as formas empíricas do nível 2 em busca dos rastros das operações do nível 1. No nível de construção metalinguística, Culioli explica que a função do linguista é: [...] produzir observações, trabalhar com avaliações (é a mesma coisa; é diferente; é a mesma coisa com tal modulação; é aceitável; é inaceitável): teorizar para poder representar; retornar às observações, no vai-e-vem indispensável entre observação e teorização (CULIOLI, 1990, p.23) [tradução nossa]. Sobre a relação entre estes três níveis, é importante destacar que o primeiro é de ordem puramente psicológica e não é de interesse do campo de consideração dos linguistas. Se o nível 2 contém os traços de representação do nível 1, isso não significa que pelo segundo se tenha acesso diretamente ao primeiro, mas que determinando as relações entre os níveis 2 e 3, podese construir de maneira simulada as operações do nível 1. Esses níveis são comuns a todas as línguas, variam apenas os valores referenciais ligados à cultura nas quais as línguas estão inseridas. A operação de referenciação diz respeito à construção do espaço de referência, na qual vão ser localizadas as representações de um estado de coisas a fim de que estejam munidos de valores referenciais. As referências são construídas mediante um acordo intersubjetivo entre enunciador e co-enunciador que constroem e reconstroem respectivamente os objetos discursivos. Para Culioli, esta é uma operação complexa, pois se trata de um sistema construído por um sujeito que deve construir o sistema em relação
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a outro sujeito, a quem ele quer fazer partilhar sua representação. Há, assim, a necessidade de se construir um sistema de referência estável e ajustável que permita ao interlocutor reconstruí-lo a partir dos enunciados. É a possibilidade de se reconstruir o sistema de referência e consequentemente a operação de referenciação, que garante a produção e o reconhecimento dos textos. Valentim (1998) explica que na origem da significação estão as representações cognitivas dos sujeitos envolvidos numa situação de interação verbal e, por isso mesmo, nem sempre a significação reconstruída coincidirá inteiramente com a significação construída. Por isso faz-se necessário ocorrerem os ajustamentos entre os sujeitos da enunciação, tanto no nível da representação como da referenciação. Chegamos à operação de regulação. Segundo Culioli (1990), a operação de regulação implica, ao mesmo tempo, em estabilidade e em deformabilidade dos objetos. Sem estabilidade não seria possível a comunicação. Porém, não se pode confundir estabilidade com imutabilidade. Os fenômenos linguísticos formam sistemas dinâmicos regulares, mas com uma margem de variação devido a fatores de grande diversidade. No processo de estruturação o enunciador vai regulando suas representações por meio das representações que julga serem as do coenunciador. Os textos não têm sentido fora da atividade significante dos enunciadores. Na teoria culioliana, a significação de um enunciado provém dessa acomodação intersubjetiva. Na atividade de linguagem, segundo Culioli, há operações que se apresentam de forma ordenada e dispostas em série num complexo de diferentes níveis. Este complexo se baseia numa operação elementar e primitiva: operação de “repérage”. É uma operação de busca, de localização de um termo por meio de pontos de referência. Esta operação sempre coloca um termo em “relação a”. Dessa forma, estabelece-se uma relação. Esta operação parte de uma propriedade fundamental da língua, pois perpassa todas as etapas da constituição do enunciado. Nas palavras de Fraenkel e Paillard:
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Todo termo (no sentido mais largo: sequência, frase, unidade lexical, etc.) se encontra em relação com outro termo, previamente dado e que tem por consequência, nessa relação sempre assimétrica, o estatuto de “repère” (FRANCKEL; PAILLARD, 1998, p.55) [tradução nossa]. Todo termo encontra-se colocado em uma relação a outro termo, previamente dado, e que tem por consequência nessa relação sempre assimétrica o estatuto de delimitador. Não existe termo isolado. Um termo só adquire valor referencial determinado quando se encontra enquadrado num sistema de localização, isto é, se for localizado em relação a outro termo. 2. Etapas de construção de um enunciado Na T.O.P.E., o enunciado é o resultado de uma série de operações efetuadas pelos enunciadores. Estas operações são anexadas ao longo de três momentos básicos: na relação entre lexis, na relação predicativa e na relação enunciativa. Tendo em vista o estudo da complexidade da atividade da linguagem na sua constituição e funcionamento, Culioli, em seu aparato teórico, propõe um sistema de representação metalinguística que descreve o percurso pelas diferentes etapas da construção de significação de um enunciado. Para Culioli, explica Danon-Boileau (1987), falar envolve as seguintes relações: estabelecimento de um conteúdo de pensamento indeterminado (formador de uma lexis de três argumentos), hierarquização do conteúdo de pensamento indicando o elemento ao redor do qual vai se organizar o enunciado (estado da relação predicativa) e a localização do conteúdo de pensamento em relação à situação de enunciação (relação enunciativa). Na construção dos enunciados, os enunciadores realizam uma série de operações de determinação progressivas, pelas quais os enunciados são produzidos e reconhecidos. A construção de significação, na teoria culioliana, inicia-se pelo estabelecimento de um conteúdo de pensamento, ainda indeterminado situado ao nível da noção que se situa no âmbito do não linguístico e, portanto, extrapola o campo da lingüística. Eis sua definição:
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São sistemas de representação complexos de propriedades psico-culturais, quer dizer, propriedades de objeto saídas de manipulações necessariamente feitas no interior de culturas e, desse ponto de vistas, falar de noção é falar de problemas que são do domínio de outras disciplinas que não podem ser reduzidas unicamente à linguística (CULIOLI, 1990, p.50) [tradução nossa]. Este é um conceito básico da construção e reconstrução da significação do enunciado produzido-reconhecido. As noções são dadas em intensão22, ou seja, qualitativamente. Elas ainda serão predicadas, são, portanto, anteriores a qualquer categorização. As noções podem ser de naturezas diferentes: lexical, gramatical ou mais complexa, como as resultantes da instanciação de um esquema de lexis (constituída por um conjunto de três noções lexicais inter-relacionadas). Culioli denominou de lexis o esquema primitivo subjacente a todo ato de linguagem. Ela é a forma organizadora, geradora das relações predicativas: “resulta da instanciação de um esquema por termos, eles mesmos construídos a partir da noção” (CULIOLI, 1982 APUD VALENTIM, 1998, p.37). Segundo Danon-Boileau (1987, p.17), a lexis “é a conjunção de uma forma e de um conteúdo”. É um conteúdo de pensamento que está por ser validado. A lexis é um esquema primitivo e abstrato que permite a passagem do mundo para a língua, ou seja, do extralinguístico para o linguístico. A partir da relação primitiva e do esquema de lexis, constroem-se o predicado e os argumentos. Mais uma vez reiteramos que as noções são dadas em intensão, ou seja, qualitativamente. Elas não estão fragmentadas, são tomadas em bloco compacto e indivisível, ficando à espera de uma instância enunciativa que provoque a construção de uma circunstância. A partir daí é que elas são apreendidas e estabilizadas. Decorrente do conceito de noção há o de domínio nocional. O domínio nocional, que não é um campo semântico, é, por sua vez, todo um conjunto de virtualidades. Culioli explica que: As propriedades que regem o domínio são tiradas de diversas categorias: ‘Enumeremos de maneira não exaustiva 2
Entenda-se intensão por aquilo que vai ser atribuído a um objeto ou a um estado de coisas. Uma noção P é definida pela expressão “ter a propriedade P“ (VALETIM, 1998).
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alguns dos domínios que constituem as categorias nocionais. Sendo dada uma categoria nocional P, distingue-se uma propriedade “p” segundo o domínio: - semântico: /ser cão/, /ser livro/, /ler//. - noção gramatical: aspectualidade, modalidade. - noção quantitativa/qualitativa: avaliação do grau de intensidade e de extensidade (acabamento) (CULIOLI, 1990, p.52) [tradução nossa]. A estruturação da noção passa pela construção de ocorrências33. Estas permitem a constituição de domínios nocionais, representação sem materialidade acessível que apresenta algumas propriedades que serão comentadas a seguir. Todo domínio nocional é munido de uma classe de ocorrências abstratas que permite tornar a noção potencialmente quantificável. É através desta classe de ocorrências intensionais que a noção, enquanto representação de natureza mental torna-se acessível. A estruturação de uma noção passa necessariamente pela construção de ocorrências que equivalem a uma espécie de exemplares da noção. Um domínio nocional resulta da fragmentação de uma noção, obtendo-se um agregado de ocorrências possíveis, indiscerníveis. A passagem da noção a um domínio nocional de ocorrências abstratas prende-se a uma operação intermediária de fragmentação “através da qual se passa do qualitativo estrito ao qualitativo quantificável” (CULIOLI, 1992 apud VALENTIM 1998, p. 39). A classe de ocorrências abstratas necessariamente não terá uma relação estabilizada com a noção da qual ela constitui uma realização particular. Sua determinação passa por um centro organizador ou centro atrator. Culioli (1990), explica que não existe representação alguma sem que esta se coloque relativamente a um polo de referência. Leva-se o desconhecido ao conhecido, construindo-se um centro organizador. Esse polo de referência é a própria condição de regulação intersubjetiva. O linguista estabelece para esse polo de referência - o centro organizador - dois modos de organização: a) o tipo que permite identificar uma ocorrência como um exemplar da noção (ocorrência tipo), correspondendo a uma ocorrência representativa, constituindo-se como a 3
Segundo Flores et. al. (2009), ocorrências são encarnações de noções sob a forma de linguagem, é a passagem a uma materialidade e, ao mesmo tempo, a um sistema de referenciação.
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condição enunciativa de ajustamento e de regulação e b) o atrator que difere radicalmente do tipo. Trata-se da construção de uma origem que não tem outra referência possível senão o predicado em si, ou seja, ela é localizada em relação a ela mesma. Remete, portanto, a uma representação abstrata e absoluta. O polo de referência ao qual se coloca uma representação da noção é localizado em relação a uma ocorrência tipo, ora tendo propriedades essenciais deste (sendo-lhe identificável), ora não tendo qualquer característica do centro organizador (sendo diferente deste). Identificação e diferenciação permitem que se estruture a classe das ocorrências num domínio nocional dividido, de um ponto de vista qualitativo, em quatro zonas: um interior (I), um exterior (E), uma fronteira (F) e uma zona que não é nem interior nem exterior (IE). O interior com o respectivo centro atrator é composto por ocorrências qualitativamente identificáveis com o centro organizador, ocorrências estas individuáveis e identificáveis umas com as outras, uma vez que possuem todas as mesmas propriedades. O exterior é composto por ocorrências qualitativamente diferentes do centro organizador. Conforme o caso, o exterior nos fornece o vazio, a ausência. O mesmo é dizer que o exterior é vazio da propriedade constitutiva da noção, seja por inexistência, seja por alteridade radical. A fronteira compreende os valores que não pertencem nem ao interior nem ao exterior, mas que conforme a ação dos enunciadores durante a troca enunciativa pode ser ligada seja ao interior seja ao exterior. À medida que se afastam do centro organizador, as ocorrências apresentam, gradualmente e do ponto de vista qualitativo, cada vez menos propriedades próprias ao mesmo centro organizador. O domínio nocional está munido de um gradiente que é uma escala abstrata que permite situar a ocorrência relativamente ao centro organizador, numa escala decrescente de identificação, conforme se afastam deste. Assim sendo, o domínio de ocorrências abstratas de uma noção é o domínio das ocorrências possíveis ordenadas em relação ao gradiente da atração. A passagem às ocorrências possíveis resulta de um princípio de organização categorial onde os conceitos diretores são o atrator e o gradiente.
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O exterior e a fronteira representam o complementar linguístico do interior. O complementar linguístico de uma noção “P” define-se diretamente em relação ao centro organizador como “não P” ou “outro que P”. Assim o domínio nocional corresponde a um “domínio de validação”: toda a ocorrência de uma noção é obrigatoriamente situada numa das zonas pelo sujeito enunciador, isto é, o sujeito enunciador terá de escolher um caminho e eliminar os outros ou construir o caminho que, partindo de uma posição desligada, conduz a uma zona do domínio nocional entre as possíveis. Através de uma figura (ver abaixo), elaborado por Clara Nunes Correia (2009), podemos visualizar uma configuração do domínio nocional a partir de enunciados que contêm as marcas ainda e já. Figura 1: Domínio nocional
Fonte: Correia (2009) Conforme comentamos, toda ocorrência, nesta perspectiva teórica, é localizada em relação a uma ocorrência tipo, ora tendo possuindo propriedades essenciais desta (sendo-lhe identificável), ora não apresentando qualquer característica do centro organizador (sendo-lhe diferente desta). A identificação ou não com a ocorrência tipo vai permitir que determinada ocorrência pertença a um dos três domínios nocionais: interior, exterior ou
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fronteira. Considerando, pois, o espaço topológico do domínio nocional - Interior, Fronteira e Exterior -, localizaremos os seguintes enunciados em relação a este, comentando a seguir o papel das marcas ainda e já no processo de construção e de reconhecimento destes enunciados. 1- Maria já é uma mulher. 2- Maria ainda é uma mulher. 3- Maria ainda não é propriamente uma mulher. 4- Maria já não é mais uma mulher. Os quatro enunciados são construídos a partir da relação predicativa: <Maria ser mulher>. Em que, o primeiro e o segundo enunciados Maria já é uma verdadeira mulher e Maria ainda é uma mulher são ocorrências qualitativamente identificáveis com o centro organizador Maria é uma mulher. Se pensarmos, porém, em termos de aproximação ao centro organizador, a ocorrência: Maria é uma mulher, há claramente uma proximidade maior do primeiro enunciado em relação ao segundo. Em Maria já é uma mulher, o já indica uma operação de transição, uma travessia de uma fronteira em que havia um estado que não existia e que passou a existir não ser mulher x ser mulher. Esta ocorrência está situada no interior do domínio nocional, em que o já descreve um começo de estado, resultante de uma mudança. Em Maria ainda é uma mulher o ainda marca uma operação de indicação de persistência temporal de um estado “ser mulher”, ao mesmo tempo, que sugere uma mudança por se consumar. O estado positivo p (ser mulher) é acompanhado da possibilidade de que em um intervalo de tempo não determinado ocorrerá uma mudança para um estado negativo não-p (não ser mais mulher). Considerando-se a topologia do domínio nocional, esta ocorrência situa-se em um ponto mais distante do centro organizador, aproximando-se assim da fronteira, portanto mais próxima do exterior. Já em Maria ainda não é propriamente uma mulher, o ainda não é um marcador de operações que descreve um estado que antecede a fronteira inicial da mudança de um estado. Esta ocorrência está na passagem de um domínio ao outro, ou seja, Maria possui a propriedade de “mulher” e ao mesmo tempo esta propriedade está alterada, o que faz com que ela
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não seja considerada totalmente “mulher”. Como dissemos, esta marca sugere uma mudança de estado por vir. Em relação ao posicionamento deste enunciado no diagrama acima o ainda não em concomitância com o advérbio propriamente se situa na fronteira, indicando, porém, uma provável entrada para o interior do domínio nocional. Em Maria já não é uma mulher, a ocorrência está localizada no exterior do domínio nocional, o já não é um marcador de operações que descreve um estado subsequente a uma fronteira final de uma mudança de estado. Em relação ao esquema acima esta ocorrência é resultado de uma transição de um interior para um exterior, ou seja, foi ultrapassada a fronteira de ser mulher para não ser mulher. Não podemos analisar os marcadores apenas em função dos verbos, pois a significação resulta de um conjunto de operações, a análise de qualquer enunciado envolve considerar as operações que concomitantemente atuam para a geração de determinada significação. Por isso não se pode, por exemplo, na análise dos enunciados dissociar as categorias gramaticais aspecto, tempo e modalidade, uma vez que são categorias interligadas, ou seja, elas estão em sintonia. 2.2 Construção de significação II e III: relação predicativa e enunciativa Do estabelecimento de um conteúdo de pensamento passa-se teoricamente para a hierarquização desse mesmo conteúdo, indicando o elemento ao redor do qual vai se organizar o enunciado. Este é o estado da relação predicativa. A relação predicativa define o termo em torno do qual o enunciado vai ser organizado pelo enunciador; é o remanejamento da lexis que permite definir dois conjuntos: de um lado o termo inicial chamado de tematizado e do outro lado, os dois termos restantes. A relação predicativa só constituirá um enunciado quando lhe forem associados os valores referenciais que resultam das operações de localização que sobre ela incidam, isto é, quando esta for caracterizada por valores das noções gramaticais. Dessa forma, essa relação comporta uma ampla variedade de enunciados possíveis, como ressalta Valentim (1998, p.45) “[...] uma relação predicativa não é um enunciado, pois ainda não está localizada
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em relação a um sistema de coordenadas enunciativas”. As operações enunciativas são aquelas que ancoram a relação predicativa em relação à situação de enunciação. Nessa etapa, determinase por meio de um ato discursivo o que foi aberto e indeterminado pelas relações primitivas e predicativas. É nessa etapa que são organizados os domínios nocionais e são oferecidos os valores referenciais, passando-se do pré-enunciado ao enunciado por meio das operações de determinação e da aplicação das categorias de tempo, aspecto e das modalidades. Construir uma relação enunciativa é, portanto, localizar no tempo e no espaço a relação orientada pela relação predicativa em relação a uma origem, consolidando-se assim a passagem de um pré-enunciado a um enunciado. 2.3 Aplicação das categorias de modalidade, aspecto e tempo A consolidação de um enunciado implica ainda em uma modalização44. Quando se observa um enunciado modalizado pelo sujeito é porque se trata de uma operação para fazer validar a referenciação produzida pelo locutor. Culioli (1990) concebe quatro grupos de operações modais: asserções afirmativas e negativas, interrogativas e injuntivas; modalidade do possível, certeza, necessário e provável; modalidade apreciativa; e modalidade pragmática (natureza intersubjetiva). Abaixo, relacionaremos essas operações modais às marcas ainda e já: a) Asserções afirmativas e negativas, interrogativas e injuntivas; O já, muitas vezes, assume o valor de sim. Imaginemos uma situação interativa em que um interlocutor pergunte ao outro: Você fez o dever de casa? E este responda: Já. Este poderia ter dito Sim ou Já sim, mas não pode dizer Já não. O co-enunciador poderia responder Ainda não, mas não se pode responder Ainda sim. O já é marcador de uma operação de construção assertiva afirmativa, enquanto o ainda não marca uma operação de construção negativa.
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De acordo com Neves (2006), modalização é uma operação que caracteriza o ponto de vista do sujeito enunciador sobre aquilo que enuncia, assumindo o conhecimento construído ou dele se distanciando.
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b) Modalidade do possível, certeza, necessário e provável; Numa situação de interação em que um enunciador pergunte ao outro: Você já leu a bíblia? Neste enunciado a marca já constrói uma fronteira entre a validação (Sim) ou não validação do evento (Não), assim como abre a possibilidade do evento ainda poder ser validado (Ainda não). Em certos contextos, as marcas ainda e já combinadas com os verbos que denotam a idéia de culminância55 e de atividade66, no presente do indicativo, referem-se à capacidade do co-enunciador, no sentido de se conseguir realizar determinado processo: Você já caminha? Você já escreve? Você ainda caminha? Você ainda escreve? Não se pode, neste caso, pois, afirmar que estas marcas se reportam ao tempo/aspecto, o que se questiona é sobre a capacidade do interlocutor de realizar um ato. Neste caso, temos a modalidade do possível. Quando se diz: O Pedro já vai acordar, o sujeito modaliza seu enunciado com a certeza de que algo vai acontecer em breve. E pode-se dizer, de fato, que “o Pedro já vai acordar, porque ainda não acordou”, mas não se pode dizer que “ele ainda vai acordar, porque já acordou”. Em relação a esse subgrupo das modalidades o já implica o possível e a certeza, o ainda implica apenas o possível, como, por exemplo, em Eu ainda vou fazer a tarefa de casa. c) Modalidade apreciativa Em contextos em que um enunciador diz: Agora sim, ele já é um homem, temos a manifestação da opinião do enunciador. O já, neste caso, em consonância com outras marcas indica a apreciação deste enunciador. d) Modalidade pragmática (natureza intersubjetiva) Esta modalidade determina uma relação direta entre enunciador e coenunciador. Quanto a esta modalidade, o já e o ainda têm sua função. Em uma situação em que queiramos provocar um efeito no interlocutor, por exemplo, para começar uma brincadeira, para que o sujeito jogue a bola, 5
Segundo Vendler (1967), culminância representa um desenvolvimento gradual da situação que resulta em um estado novo. 6 A atividade, conforme Vendler (1967), denota a manutenção da mudança gradual de uma situação.
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diz-se: Já! Porém dizemos: Ainda não! se queremos retardar a ação desse sujeito. As operações aspectuais, por sua vez, indicam como o estado de coisas expresso no enunciado se desenrola no tempo podendo privilegiar ou não um ponto de referência temporal em relação ao momento da enunciação. Observemos os enunciados: a) Eu estudo francês. b) Eu ainda estudo francês. No enunciado (a), podemos ter duas interpretações. Na primeira, o sujeito enunciador pode estar localizando o evento em relação ao momento da enunciação. Isto é, se (a), responde, por exemplo, ao enunciado O que você faz neste momento? Temos aí o aspecto cursivo. A segunda interpretação seria o de que o evento - estudar francês - não esteja necessariamente ocorrendo naquele momento, o presente indicaria que o evento permeia o momento enunciativo. Em (b), o ainda marca a manutenção de uma ação em curso, portanto, reforça o aspecto cursivo. As operações aspectuais constituem operações de determinação de um predicado (verbo) que se manifestam no processo enunciativo. São operações responsáveis por organizar os acontecimentos numa situação enunciativa, frente a referências espaço-temporais. Segundo Costa (1997) e Campos (1997), o enunciador pode utilizar-se de diferentes marcadores para representar um aspecto acabado, inacabado ou pontual: adjetivos, substantivos, advérbios, auxiliares, entre outros. Como vimos a teoria culioliana concebe os enunciados como um agenciamento de formas, a partir dos quais os mecanismos enunciativos que o constituem possam ser analisados como um encadeamento de operações. Nessa perspectiva, as unidades da língua são indeterminadas, não possuem um sentido pré-definido. Há um sujeito que agencia essas unidades, que se apropria delas, que as manipula, colocando-as em ação para atingir determinado efeito significante. O sujeito é, então, a origem de um sistema de referência e de uma localização colocada em jogo pelo processo enunciativo. Esta abordagem possibilita investigar o funcionamento das unidades
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linguísticas e sua contribuição para a significação do enunciado. Culioli explica que são deixadas marcas nos enunciados durante o trabalho de significação. São por meio destas que se podem investigar os processos que determinam a produção e o reconhecimento dos enunciados. Para isso é preciso se situar num estágio anterior à materialização do enunciado a fim de identificar as operações realizadas pelos sujeitos nessa construção/ desconstrução dos enunciados. O processo de construção do enunciado envolve, segundo Culioli, três momentos agenciados pelo sujeito enunciador/co-enunciador: a constituição de uma lexis (relação primitiva), a relação predicativa e a relação enunciativa através das operações de determinação: quantificação, modalização e temporalidade/aspectualidade. Algumas considerações Propondo um novo objeto de estudo para a Linguística, a teoria de Culioli visa observar como a atividade de linguagem, capacidade humana de construir significação, se manifesta na diversidade de línguas, sistema de signos com suas regras específicas. Para mostrar como se dá a articulação linguagem/línguas, o teórico toma como objeto de estudo o enunciado definido como agenciamento de formas visto como traços da operação de linguagem. A teoria culioliana permite observar a língua de forma mais construtiva. Segundo o teórico francês, a significação é gerada em uma relação dinâmica entre interlocutores e mundos e é representada por arranjos léxicosgramaticais responsáveis pela significação produzida. Nessa perspectiva, não é possível se estudar, por exemplo, a categoria Tempo, dissociada do Aspecto e da Modalidade, afinal o enunciado é construído em uma situação de enunciação. Visou-se tecer aqui algumas reflexões sobre o modelo teórico proposto por Culioli, utilizando como ilustração para alguns de seus conceitos os marcadores já e ainda. A T.O.P.E. demonstra como a variação de sentido é regida por uma organização na própria língua, dessa forma as marcas ainda e já, por exemplo, influenciam o enunciado e são influenciadas por outras marcas presentes nele. Os seus respectivos papéis em cada ocorrência dependem do contexto em que o sujeito-enunciador as inserem.
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REFERÊNCIAS CAMPOS, M. H. C. Tempo, Aspecto e Modalidade: Estudos de Lingüística Portuguesa. Porto: Porto Editora, 1997. CORREIA, C. N. Estabilidade e deformabilidade das formas lingüísticas. Revista Veredas, v.12, Juiz de Fora, Universidade Federal de Juiz de Fora, 2009. COSTA, S. B. B. O aspecto em português. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1997. (Repensando a Língua Portuguesa). CULIOLI, A. Pour une linguistique de l’ énonciation: Opérations e représentacions. Paris: Ophrys, 1990, v.1. DANON-BOILEAU, L. Énonciation et référence. Paris: Ophrys, 1987. FLORES et. al. Dicionário de lingüística da enunciação. –São Paulo: Contexto, 2009. FRANCKEL, J. J.; PAILLARD, D. Aspects de la théorie d’ Antoine Culioli. Langages. Paris. v.129.1998. p.52-63. FUCHS, C. O sujeito na teoria enunciativa de A. Culioli: algumas referências. Trad. De Letícia M. Rezende. Cadernos de Estudos Linguísticos. Campinas, n.7. 1984. p.77-85. LIMA, M. A. F. Operações Enunciativas de Antoine Culioli: alguns aspectos teóricos. Expressão. Revista do Departamento de Letras/ UFPI. v.4, n.1. Teresina: UFPI, 1995. NEVES, J. S. B. Estudo semântico-enunciativo da modalidade em artigos de opinião. Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica (PUC). Departamento de Letras. Rio de Janeiro, 2006. VALENTIM, H. T. Predicação de Existência e Operações Enunciativas. Lisboa: Colibri, 1998. p.32-46. VENDLER, Z. Linguistics in Philosophy. Ithaca, N. Y.: Cornell University Press, 1967.
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ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO E MÍDIA: ESTUDO DAS ERRATAS EM REVISTAS DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA E SUA (NÃO) APLICABILIDADE EM SALA DE AULA1 CRITICAL ANALYSIS OF DISCOURSE AND MEDIA: A STUDY OF ERRATA IN SCIENTIFIC DISSEMINATION MAGAZINES AND ITS (NO) APPLICABILITY IN THE CLASSROOM Cleide Emília Faye Pedrosa Universidade Federal do Rio Grande do Norte Paulo Sérgio da Silva Santos Universidade Federal do Rio Grande do Norte
RESUMO O estudo crítico das erratas oferece grande contribuição social para a prática de consumir textos de divulgação cientifica nas escolas. Desde a década de 80, a mídia vem sendo utilizada largamente na escola, sendo mesmo elevada “à categoria de instrumento didático” (PFEIFFER, 2001). Este uso da mídia em sala de aula tem funcionado como o elemento fomentador de discussão de temas polêmicos e como fornecedora de exemplos de aplicação prática daquilo que está sendo estudado em teoria nas diversas disciplinas. Contudo ainda não identificamos uma discussão reflexiva sobre esta prática quando consideradas, especificamente, a identificação e as análises social e discursiva dos erros publicados nas matérias. Assim este artigo tem como objetivo geral refletir sobre a responsabilidade da mídia ao transmutar o discurso científico para o discurso de divulgação cientifica, verificando as possíveis consequências discursivas e sociais advindas dos erros cometidos no contexto de divulgação da ciência na escola.
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Parte deste trabalho (principalmente a análise) foi apresentada no V Encontro das Ciências da Linguagem Aplicadas ao Ensino (ECLAE) – de 11 a 15 de outubro de 2011, UFRN, Natal/RN.
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Na Metodologia, seguimos a orientação qualitativo-interpretativista. Coletamos o corpus a partir da seção ‘superEquívoco’ da revista SuperInteressante, e não nos restringimos a ano de coleta. A reflexão crítica tomará por base a Análise Crítica do Discurso. Os resultados demonstram que a revista de divulgação científica, em questão, apresenta uma frequência de erros que não se coaduna com o papel de “instrumento pedagógico” a ela outorgado. Ficou comprovado que os interesses da revista passam ao largo dos interesses educacionais que devem orientar o trabalho pedagógico nas escolas brasileiras. Dessa forma, pensamos que o presente artigo traz uma contribuição importante ao debate acerca do uso dos instrumentos pedagógicos, e ainda, sobre a relação da mídia com o processo educacional. Palavras-Chave: Análise Crítica do Discurso; Divulgação Científica; Escola. ABSTRACT: Critical study of the erratum offers a great social contribution to the text consuming of scientific text at school. Since the 1980s, media has widely been used at school and has also been included in the “category of didactic instrument” (PFEIFFER, 2001). The use of media in classroom has been considered a promoter for discussing controversial themes and a practical application supplier of the issues theoretically studied in many school subjects. Nevertheless we have not found a reflective discussion about this practice yet, especially when the identification and social and discursive analysis of the published mistakes are taken into account. So, this article aims at reflecting about the media responsibility of transferring scientific discourse into scientific divulgation discourse, verifying possible discursive and social consequences arising from mistakes of the scientific divulgation at school. Our methodology of analysis is qualitative-interpretive. Our corpus has been selected from ‘superEquívoco’ section of ‘SuperInteressante’ Brazilian magazine, but we have not taken into account the year of publication. Critical thought will be based upon Critical Discourse analysis. Results demonstrate SuperInteressante scientific divulgation magazine has a frequency of mistakes that is not consistent with the role of ‘pedagogical instrument’ given to it. It has been proved that the magazine interests are far from the educational interests that are supposed to drive the pedagogical work in Brazilian schools. So, we believe this article brings a contribution to the debate about the use of pedagogical instruments and also to the relation of media with the educational process. Keywords: Critical Discourse analysis, Scientific Divulgation Discourse, School.
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INTRODUÇÃO Este artigo traz um recorte do projeto “Estudo discursivo das erratas na mídia impressa: interface entre Análise Crítica do Discurso e Pragmática” (REUNI|UFRN, PIC4143-2010\2011 e 2011\2012)2 e objetiva refletir sobre a responsabilidade da mídia ao transmutar o discurso científico para o discurso de divulgação cientifica, verificando as possíveis consequências discursivas e sociais advindas dos erros cometidos no contexto de divulgação da ciência na escola. O suporte teórico e analítico para essa investigação busca uma interface entre os campos da Divulgação Científica e da Análise Crítica do Discurso (ACD). A divulgação da ciência é uma prática social que passa por um crescimento sem precedentes. Nas últimas décadas, a divulgação científica (DC) se consolidou no mundo inteiro não só como ramo de atuação profissional, mas principalmente como campo de estudos. A literatura que trata do assunto é vasta e a demanda social é crescente. A ciência tem sido caracterizada, em geral, como projeto de crescimento social e estratégia de soberania nacional e a sua divulgação não deve ser entendida de forma diferente. Exemplo disso são os números que demonstram que a pesquisa no Brasil tem avançado a passos largos acompanhando o progresso econômico e social pelo qual passa o país. E fazer uso deste material como discurso de acesso tem permeado as práticas pedagógicas. Dentro desta mesma questão, considerar o discurso como parte indiscutível das práticas sociais é uma perspectiva assumida pela Análise Crítica do Discurso (ACD), por essa razão ela investiga não só o papel que a linguagem ocupa na reprodução dessas práticas sociais como também sua rede de relações com outros momentos das práticas sociais. Para desenvolver este artigo, discutiremos posicionamento da Análise Crítica do Discurso com a ‘alfabetização cientifica’ que se pretende através do uso de revistas de DC no contexto escolar; apontaremos e analisaremos alguns erros cometidos por estes suportes e por fim, refletiremos sobre as prováveis consequências advindas do uso deste material nas práticas da escola. 2
Embora o primeiro projeto na UFRN date de 2010, desde 2009, que começamos a pesquisar DC em um curso de especialização na UFS.
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1. Análise Crítica: discurso, mídia e escola Já estamos vivenciando a 3ª década do início internacional3 da Análise Crítica do Discurso (ACD). Ela se apresenta como um campo tanto de pesquisa quanto de ensino e utilizada amplamente pelas ciências sociais e humanas. Tem também fundamentado o ensino crítico da linguagem em níveis os mais variados, principalmente no ensino superior. Nossa contribuição, no caso, será direcionada para o ensino fundamental. A ACD se anuncia como teoria e como método4 (CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH, 1999; FAIRCLOUGH, 2006). Justifica-se ser um método por se preocupar em analisar as práticas sociais, considerando todos os seus momentos, e especificamente, o momento discursivo justamente no ponto de encontro das preocupações práticas e teóricas. A vida social é composta de práticas (hábitos nos quais as pessoas aplicam recursos materiais e simbólicos como forma de atuar no mundo) que se instauram em domínios especializados, culturais e da vida diária (MOUZELIS apud CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH, 1999). Para Chouliaraki e Fairclough, concentrar-se nas práticas sociais apresenta vantagem, pois elas funcionam como elo entre estruturas abstratas, seus mecanismos e eventos concretos, isto é, entre ‘sociedade’ e as pessoas no seu dia a dia. Uma das relações entre sociedade e domínios especializados a qual podemos nos referir é a escola. Sendo assim, o presente artigo pretende discutir o “lugar” que as revistas de Divulgação Científica (DC) estão ocupando no processo educacional brasileiro. Consideraremos esta uma prática particular que reúne alguns tipos específicos de atividades e uso peculiar da língua. A isto chamamos ‘momentos’ da prática social. Fundamentamos, com base em Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 22), que “a dimensão institucional da prática é importante para a ciência social crítica porque as instituições têm lógicas internas que não podem ser reduzidas 3
Magalhães (2004) afirma, em nota de rodapé, que introduziu esta área de estudos no Brasil na década de 1980. Então o início internacional e nacional é concomitante. 4 Reconhecemos divergências quanto a este aspecto, contudo ele não será ponto de discussão neste artigo. Por exemplo, Van Dijk (2008) diz tacitamente que os Estudos Críticos do Discurso (utiliza este termo em substituição a ACD) não são um método, reafirma que não existe tal método.
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nem a estruturas abstratas, nem a grupos de eventos5”. Segundo os mesmos autores, as práticas apresentam três características principais: 1º - são formas de produção da vida social, nos campos da produção econômica, e dos domínios cultural e político; 2º - cada prática apresenta uma rede de relações com outras práticas, e estas relações ‘externas’ são esenciais para determinar a constituição ‘interna’ da prática em questão. 3º - “as práticas têm sempre uma dimensão reflexiva [pois] as pessoas sempre geram representações do que fazem, como parte do que eles fazem” (CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH, 1999, p. 22)6. É ponto pacífico que nos dias de hoje há uma crescente demanda por informações de cunho científico, as pessoas estão sendo chamadas a se posicionar acerca de questões importantes o tempo inteiro: energia nuclear, alimentos geneticamente modificados, reposição hormonal etc. As revistas de Divulgação Científica estão ocupando esse lugar de “alfabetização científica”, e atingem milhões de leitores todos os meses, dentre esses leitores está uma parcela importante da população: os estudantes de ensino fundamental. Assim, atrelando as três características enumeradas acima, podemos afirmar que a ‘alfabetização cientifica’ no ensino fundamental é uma prática que se insere no domínio cultural (1ª característica); está ligada a outras práticas, por exemplo, a do domínio jornalístico (2º característica) e necessita uma dimensão critica e reflexiva diante do uso indiscriminado de revistas de divulgação cientifica na escola, principalmente, quando identificamos frequentemente erros nas matérias publicadas nestas (3ª característica). 2. Metodologia A metodologia seguirá as orientações da Análise Crítica do Discurso, aporte que sustentará, em primeira instância, essa investigação. Este modelo teórico-metodológico se situa na interface entre a Linguística e a Ciência “The institutional dimension of practice is important in critical social science because institutions have internal logics that can be reduced neither to abstract structures nor to clusters of events” (CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH, 1999, p. 22). 6 “the practices always have a reflexive dimension people always generate representations of what they do as part of what they do” (CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH, 1999, p. 22). 5
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Social Crítica e constitui-se um campo aberto a pesquisas de diversas práticas da vida social que se movimentam entre o linguístico e o social, apresentando, por isso, um cunho qualitativo-interpretativista. Meyer (2003) orienta que a seleção de dados não se encerra quando do início da análise, ao contrário, o analista, diante de um fato novo, buscará, em sua fonte de dados, exemplos que possam confirmar o que foi encontrado. O autor apresenta uma diferença entre os métodos de extração e de avaliação, isto é, entre as formas de obtenção dos dados (em laboratório ou em campo) e os procedimentos para a avaliação dos dados coletados: “Os procedimentos metodológicos para a seleção de dados organizam a observação, enquanto os métodos de avaliação regulam a transformação dos dados em informação e sua ulterior restrição das ocasiões abertas à inferência e à interpretação” (MEYER, 2003, p. 41, tradução nossa). Deste modo, torna-se imprescindível que tenhamos em mente que, como nos esclarece Meyer (2003), a seleção de dados não se encerra quando do início da análise, ao contrário, o analista, diante de um fato novo, buscará, em sua fonte de dados, exemplos que possam confirmar o que foi encontrado. E é assim que procederemos. Tomando por referências algumas obras de Fairclough (2001, 2003, 2006, passim) e Chouliaraki e Fairclough (1999), há três itens principais que dariam conta de um trabalho em ACD: os dados, a análise e os resultados. Os dados podem ser abordados com base nos tópicos: definição de um projeto, o corpus, ampliação do corpus e codificação e seleção de amostras no corpus. A análise abrangeria, sem priorização, o evento social, a prática social e a estrutura social. Os resultados, embora nem sempre possam ser controlados pelo analista, pois, dificilmente, ele poderá ter um controle de como eles serão utilizados depois que caírem no domínio público, devem ser divulgados e atender a uma demanda social. Resumidamente, o marco analítico da Análise Crítica do Discurso, representado esquematicamente, envolve os seguintes passos (FAIRCLOUGH, 2003, p. 184): a. Centralizar-se em um problema social. b. Identificar os elementos que lhe põem obstáculos com o fim de abordá-los, mediante a análise:
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• da rede das práticas em que estão localizados, • da relação de semiose que mantém com outros elementos da prática particular de que se trata, • do discurso: • análise estrutural – a ordem do discurso, • análise interacional, • análise interdiscursiva, • análise linguística e semiótica. c. “Considerar se a ordem social (a rede de práticas) ‘reclama’ em certo sentido o problema ou não” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 184, tradução nossa, destaque do autor). d. Identificar as possíveis maneiras de superar os obstáculos. e. Refletir criticamente sobre a análise. Pretendemos desenvolver esta pesquisa a partir das orientações metodológicas que orientam as investigações em ACD. E, especificamente, atingir os objetivos - analisar os erros referentes ao conteúdo programático da disciplina de Ciências Naturais para o ensino fundamental, bem como classificar (subjetivamente) a gravidade desses erros para o programa curricular da disciplina – assim, nos centraremos no problema gerado pelos erros que ocorrem na divulgação científica. 3. Discussão e Resultados Pfeiffer (2001, p.41) atesta que, desde a década de 80, a mídia vem sendo utilizada amplamente na escola, sendo mesmo elevada “à categoria de instrumento didático”. Os livros, as coleções e enciclopédias têm cedido lugar à mídia. O discurso de que era necessário quebrar a linguagem “razinza” e pouco atrativa dos materiais didáticos tradicionais provocou um aumento considerável e constante na busca por suportes midiáticos, principalmente os impressos, como as revistas. O uso da mídia em sala de aula tem funcionado como o elemento fomentador de discussão de temas polêmicos e como fornecedora de exemplos de aplicação prática daquilo que está sendo estudado em teoria nas diversas disciplinas. Para Pfeiffer, as universidades e escolas técnicas têm tomado a mídia
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como base das formulações de suas questões nos exames de admissão. Nesse caso a mídia é tida mais evidentemente como reflexo daquilo que acontece no mundo em termos das informações (dos “fatos”), das opiniões, dos exemplos, e, no caso específico da língua portuguesa, do modo como se deve e não se deve escrever a nossa língua nacional. A mídia é tomada, então, como espaço em que se encontram exemplos de o que e o modo que é correto e incorreto dizer (PFEIFFER, 2001, p.42). Assim, a mídia tem substituído os textos literários e a gramática como instrumento didático. A justificativa para isso, como vimos, é que para atrair a atenção dos alunos é necessário o uso de textos que não sejam “chatos” e “entediantes” como o são, em suposição, os textos da literatura clássica. É nesse contexto que pretendemos desenvolver a discussão a respeito do uso das revistas de divulgação científica nas aulas de Ciências Naturais. Esse tipo de publicação tem sido utilizada como instrumento capaz de atrair os alunos e quebrar a monotonia encontrada na linguagem dos livros tradicionais. No entanto, precisamos olhar com mais atenção esse “simples” e “prático” uso do texto das revistas de divulgação científica, afinal de contas ele não foi “pensado” para uso em sala de aula, trata-se de um texto que está em suporte midiático e limitado por todas as questões que envolvem a mídia. As revistas de divulgação têm acompanhado o crescimento vertiginoso apresentado pela mídia especializada em divulgação científica. A partir da década de 1980 surgiram várias revistas, como exemplo, podemos citar: em 1982 a revista Ciência Hoje da SBPC; em 1987 é a vez da SuperInteressante da Editora Abril; em 1991 a Editora Globo lança a Globo Ciência (que mais tarde passaria a se chamar Galileu). O discurso dessas revistas de divulgação é resultado de um processo que mescla diversas semioses com o intuito de despertar o interesse no leitor. O resultado desse trabalho é um texto que, antes de qualquer coisa, não é científico e é produzido por um jornalista que tem, a nosso ver (e pelos erros que já identificamos em nosso projeto), pouco domínio
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dos procedimentos científicos e consequentemente dos conhecimentos produzidos. Por isso, estamos preocupados com o uso das revistas de divulgação científica em sala de aula. Para nós os erros contidos nessas revistas ao invés de contribuir para o processo de aprendizagem pode gerar o efeito contrário além de produzir imagens equivocadas sobre a ciência. 4. Caracterização do Corpus A revista SuperInteressante está classificada no rol das revistas de divulgação científica, utilizamos para referendar o quadro teórico proposto por Gomes (2001). Dessa forma, para nós as revistas de divulgação científica são as publicações nas quais se reproduz o conhecimento apenas com o propósito de informar, tem como alvo um público não-especializado e publica textos produzidos exclusivamente por autores jornalistas. A opção de tomar as erratas da revista SuperInteressante (Super) como objeto deste estudo recaiu no fato de ser ela o maior veículo do gênero “revista mensal de informação científica” do mercado nacional, com 432.211 mil exemplares de tiragem e 2.803.000,00 milhões de leitores. A Super possui, hoje, no mercado brasileiro uma marca respeitada e estabelecida. A publicação tem ditado o padrão da divulgação científica de massa no país. Contudo, o prestígio da Super não é o mesmo quando nos referimos a um público mais seleto, ou seja, os especialistas. As características da revista não agradam àqueles que dominam os procedimentos científicos, sobre os motivos dessa aparente desconfiança, Gomes afirma que “talvez seja devido ao caráter comercial e à superficialidade dos textos, que SuperInteressante e Galileu sejam vistas com algum descrédito pela comunidade científica brasileira, que exige maior profundidade e precisão nas informações” (GOMES, 2001, p.105). A escrita no jornalismo científico necessita de pesquisa e de cuidados, justamente porque, do nosso ponto de vista, as consequências de erros podem ser desastrosas. A esse respeito, Ferreira e Targino (2008, p.21) afirmam que o divulgador científico deve ter curiosidade e humildade intelectual para esclarecer as dúvidas surgidas ao longo do processo de escrita. Esse profissional deve, caso seja necessário, procurar ajuda especializada, evitando dessa forma, veicular textos contendo informações
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que não refletem uma determinada realidade científica. Não obstante, não tem sido essa a prática entre os divulgadores, pelo menos entre aqueles que escrevem para a revista Super. A nossa afirmação está embasada nos resultados encontrados a partir da análise das edições da publicação em questão. Assim, são muitos os estudos que tomam como objeto de pesquisa o discurso da divulgação científica, e alguns, assim como o nosso, as revistas de DC. No entanto, a nossa pesquisa aponta um aspecto inédito, que a diferencia no quadro dos estudos em divulgação científica: as erratas (da revista SuperInteressante) como objeto de estudo. 5. Análise dos exemplos Passaremos à análise dos exemplos. A partir dessa análise, desenvolveremos a discussão a respeito da gravidade do erro apresentado bem como da (não) responsabilidade do editor com as informações. Optamos por não elencar esses erros por assunto, uma vez que os Parâmetros Curriculares Nacionais também não o fazem. O conteúdo de Ciências Naturais para as séries do Ensino Fundamental estão divididos por tema: ambiente, ser humano e saúde e recursos tecnológicos. Assim sendo, foram alguns desses temas que nos guiaram na pesquisa do material que será apresentado. a) Cartas de leitores e os erros dos editores\jornalistas Julgamos que o editor ao publicar cartas de leitores onde estes apontam erros nas matérias publicadas, utiliza uma forma indireta de reconhecer o erro. Vejamos o primeiro exemplo: Exemplo 1: (Super Ano 2, nº 06, junho de 1988) Seção: “Falhas Nossas”7 Gostaria de fazer uma pequena correção na nota “segredos de um sobrevivente” (SI nº 2, ano 2): o Nautilus Macromphallus não é o último “fóssil” vivo. Na reserva Ecológica de Trípuí, em Ouro Preto, MG, existe o Peripatus Acacioi, semelhante a fósseis Cronologicamente a seção recebeu várias nomenclaturas: ‘Falha Nossa’; ‘SuperEquívoco’; ‘Foi Mal’.
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de mais de 500 milhões de anos, contra os 400, milhões do Nautilus. (Neuza Barbosa Lopes – Vespasiano, MG) No exemplo acima, vemos uma das formas discursivas usadas pelos editores para “pedir desculpas”, ou seja, uma carta de um leitor que aponta o erro, não há nesse caso a intervenção do editor. Outro modo usado é o próprio editor\jornalista indicar nas erratas os erros cometidos nas edições anteriores. A manutenção do prestígio social está ligada a uma questão de sobrevivência mercadológica na qual todos os veículos do gênero estão necessariamente vinculados. A proposta teórico-metodológica da Análise Crítica do Discurso apresenta a prática discursiva, a produção, distribuição e o consumo de textos como uma faceta dessa luta mercadológica travada pelas revistas “especializadas”. Por isso, o não reconhecimento do erro cometido entra como componente importante de nossa análise. Não se trata de, apenas, atribuir a autoria da correção, mas antes de autoproteção, uma vez que a carta da leitora não inviabiliza o pedido de desculpa do editor, ocasião em que deveria assumir o erro. Se considerarmos o uso deste texto nas aulas do ensino fundamental (ou mesmo médio), teríamos a veiculação de informações que não são corroboradas pela ciência, ademais não é de nosso conhecimento que alunos e professores (nem qualquer outro leitor) recorram às erratas para verificação de informações. b) Erratas: como (não) fazer ciência Ao verificar o grande número de erratas em todas as edições da SuperInteressante (desde 1987)8, discutimos, e mesmo pomos em dúvida, a validade do uso deste material em sala de aula. Vejamos: Exemplo 2: (Super, fevereiro, 1989, ed. 017) Seção: “Falhas Nossas” 8
Para a pesquisa de mestrado de Paulo Sérgio da Silva Santos (Núcleo de Pós-Graduação em Letras da UFS), ele armazenou todas as edições da revista SuperInteressante, obviamente, nem todas as erratas comporão o corpus do projeto. Além da SuperInteressante, a revista Galileu foi objeto do plano de trabalho de um bolsista de IC da UFRN em 2010. E como revista de informação geral, estamos atualmente (2011) trabalhando com a revista ‘Veja’ como objeto do plano de trabalho de outro bolsista de IC também da UFRN.
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No artigo “a estratégia das aranhas” está escrito que o piolho não é um inseto, mas um aracnídeo. Na verdade, piolho é inseto. Aracnídeo além da aranha e do escorpião é o carrapato. Exemplo 3: (Super, abril, 2002, ed. 175) Seção: “SuperEquívoco” Aranhas são aracnídeos e não inseto. Exemplo 4: (Super, ed. 284, novembro de 2010) Seção: “Foi Mal” Ao contrário do que o texto “Aracnofilia” (Super 282, pág. 95) possa ter dado a entender, a aranha não é um inseto, e sim um aracnídeo. Exemplo 5: (Super, ano 4, nº 7, julho de 1990) Seção: “Falhas nossas” O ácaro é um aracnídeo e não um inseto, como está escrito na matéria “Anatomia de um grão de poeira” (SI, nº 4, ano 4). (Anselmo Mauryama – São Paulo / Marcelo H. Pereira – Ipatinga, MG / Marcelo Saísse, Octávio A. F. Presgrave – Rio de Janeiro, RJ / Rogério F. de Souza – Londrina, PR / João B. Pereira, Alessandra de Carvalho e mais trinta alunos da sétima série do colégio Dona Sinhá Junqueira – Ribeirão Preto, SP). Verifica-se que o mesmo erro foi repetido por quatro vezes (embora o último exemplo não esteja indicado pelo editor na errata, mas pelo leitor em sua carta, entendemos que era importante trazê-lo pelo conteúdo a que se refere). Os erros que se repetiram (ou o erro que se repetiu) são exemplo do pouco critério com que são tratadas as informações científicas. Fica claro que não há um estudo mais minucioso por trás das matérias, ficando ao acaso o risco de se repetirem erros como esse. As revistas de divulgação deveriam lançar mão do mesmo rigor que foi usado na descoberta científica no momento de se apropriar desse discurso que não lhe pertence, sob pena de desinformar e deseducar em vez do contrário. O que fica claro nesse exemplo é que o que rege as informações contidas nas matérias é, na verdade, o senso comum. Por isso, reiteramos como problemático o uso “indiscriminado” das revistas de divulgação como instrumento pedagógico.
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É devido a erros grosseiros como o que vimos acima que as críticas aos veículos de divulgação (elas se atribuem a tarefa de alfabetizar cientificamente os seus leitores) ganham força. Não bastasse errar sobre algo primário, o veículo repete o mesmo erro repetidas vezes, tornando a situação ainda mais grave. Chamamos de erro “primário” (ou elementar) justamente porque mesmo consultando um dicionário que não é especializado na área científica, encontramos a informação correta. Ou seja, a informação está acessível a não-técnicos, basta procurá-la. Pode-se, com facilidade, encontrar a classificação correta no dicionário Houaiss da língua portuguesa9. As palavras geralmente apresentam significado cultural, variável e mutável. Sendo assim, não é incomum que o termo “aracnídeo” seja tomado com o sentido de inseto. Os jornalistas, muitas vezes, empregam o termo científico com sentido influenciado pelo cotidiano (senso comum), e isso provoca muitos erros, já que dificilmente os sentidos dessas duas culturas se equivalem. Como anunciamos neste artigo, é necessário termos atitude reflexiva, crítica sobre nossas práticas sociais. c) A divulgação científica e as erratas: consequências pedagógicas. A divulgação da ciência é hoje instrumento necessário para consolidar a democracia e evitar que o conhecimento seja sinônimo de poder e dominação (CANDOTTI, 2001, p. 5). Por isso, ela precisa estar comprometida com a verdade dos fatos científicos, do contrário gera desinformação. Mas isso não é tarefa fácil, pois não bastasse à falta de entendimento entre cientistas e jornalistas, o próprio público frequentemente reclama porque a informação científica disponível nos meios de comunicação de massa é contraditória ou incompreensível. A exemplo disso, temos: Exemplo 06: (Super, fevereiro, 2010, ed. 275). 9
Segundo o Houaiss, aracnídeo “é uma classe de artrópodes quelicerados, cosmopolita, que reúne 50.000 spp. distribuídas em 11 ordens, vulgarmente conhecidos por aranhas, ácaros e escorpiões; caracterizam-se pela presença de quatro pares de patas e um par de palpos, pelo corpo dividido em cefalotórax e abdome e pela ausência de antenas; arácnidos. Por sua vez, os insetos se caracterizam por uma classe de artrópodes que possuem três pares de patas e que tipicamente dispõem de dois pares de asas, um par de antenas e um par de olhos compostos; as mais de 750.000 spp. descritas são geralmente terrestres; insectos”.
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Seção: “Foi mal” Diferentemente do que foi publicado, o paracetamol pode ser usado para casos de dengue clássica, devendo ser evitado em casos de dengue hemorrágica. Segundo Epstein (2002), “a ignorância do público sobre fatos elementares de ciência, mesmo em países do primeiro mundo, é surpreendente”. Este dado torna erros desta natureza ainda mais graves, porque se trata de saúde pública e nesse campo qualquer informação truncada pode levar a situações críticas. É interessante ler a chamada da matéria: Qual a diferença entre Aspirina, Novalgina e Tylenol? Apesar de eles serem os campeões de venda (3 em cada 10 itens comprados nas farmácias) e furtos (9 entre os 20 remédios mais roubados), pouca gente sabe diferenciar os efeitos dos principais analgésicos. Não, não é tudo a mesma coisa. Apesar de servirem ao propósito geral de diminuir dores, eles podem ter efeitos colaterais perigosos dependendo do paciente, como você vê nas fichas abaixo. É importante aprender essas diferenças agora que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) mandou-os para trás do balcão da farmácia. A idéia é fazer com que os clientes sejam orientados pelo farmacêutico, evitando a automedicação. Conhecendo-os ou não, o negócio é usá-los só quando necessário, para que a medicação não se transforme em uma dor de cabeça. (Super, dezembro, 2009, ed. 273). Vemos que a “intenção” da matéria é orientar para os riscos da automedicação e chamar a atenção dos leitores para o uso adequado dos medicamentos indicados, mostrando que eles não são todos iguais. Porém, se a intenção era orientar e sobre tema tão importante, o resultado não foi alcançado, pois há um erro grave na matéria. Pesquisa recente da National Science Foundation mostrou que menos do que a metade dos americanos adultos compreende que a terra gira anualmente em torno do sol, que apenas 21% podem definir o DNA
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e que só 9% sabem o que é uma molécula (EPSTEIN, 2002, p. 82). Os dados da pesquisa só reforçam o fato de que as publicações científicas e de divulgação científica devem ter uma crescente responsabilidade com o que mostram em suas páginas, pois estão veiculando informações importantes para um público que não tem o domínio necessário para discernir o tipo de informação que está consumindo. Para esse público, a realidade da ciência é essa apresentada pelas revistas “especializadas”. O trecho da matéria que contém o erro apresenta-se assim: PARACETAMOL Marcas conhecidas: Sonridor, Tylenol. Indicação: efeito analgésico semelhante ao da aspirina. Mas é o único que não tem ação anti-inflamatória. Contraindicação: não pode ser usado em caso de dengue, pois a doença faz com que o fígado pare de fabricar uma enzima que metaboliza o paracetamol e a substância fica acumulada no organismo, o que pode levar o paciente à morte. Em excesso, ele pode causar danos no fígado, então deve ser evitado por quem já agride o órgão regularmente, como doentes de hepatite e quem bebe em excesso. Ou seja, tomar um tylenol para aliviar ressaca é uma péssima idéia. (Super, dezembro, 2009, ed. 273). Por causa de erros como esse que a ideia que apresentamos aqui de tratar a errata com maior cuidado ganha força. Porque se uma informação como essa não é corrigida adequadamente pode trazer danos reais, para além dos pedagógicos, à vida de alguém desavisado. As pessoas costumam receber as informações das revistas com bastante boa vontade, logo, erros graves como este que apontamos podem trazer consequências danosas á população. Podemos levantar a seguinte questão a partir dos exemplos apresentados: quantas pessoas entre as que leram a matéria viram a sua errata? Podemos deduzir que poucas, pois não é uma prática de leitura comum, checar erratas para verificar se leu alguma informação errada em artigos divulgados em números anteriores.
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Enquanto as matérias são construídas para chamar a atenção e despertar a curiosidade, as erratas são minúsculas e aparecem em espaços pouco procurados das revistas. Um leitor que já sabe, através da própria experiência, que não se deve usar o paracetamol em um dos casos de dengue pode, evidentemente, ficar confuso em qual caso se deve e em qual não se deve usar o medicamento. E para aquele leitor que não sabe esta informação, os resultados podem ser piores. 6. CONCLUSÃO Coadunando a discussão exposta nesta investigação à luz da modernidade reflexiva (GIDDENS, BECK & LASH, 1997), podemos assumir a necessidade de termos uma atitude de autoconfrontação diante da prática social (pedagógica) de se utilizar revistas de divulgação científica em contextos de sala de aula. O aumento do conhecimento e da cientificação exigem esta postura. Julgamos que a autoconfrontação esteja na zona fronteiriça entre avaliar os benefícios da utilização desses textos de divulgação cientifica (não podemos negar a grande facilidade que estes textos oferecem a leitores não especializados) como um texto de fácil acesso à ciência e sua utilização sem a devida averiguação dos conteúdos, já que esta pesquisa comprovou a presença frequente de erros em muitas matérias divulgadas nas revistas que se propõe a divulgar ciências. Chouliaraki e Fairclough (1999, p. 66) atestam esta postura reflexiva ao afirmar que “A pesquisa social crítica deve ser reflexiva”, assumindo que “qualquer análise [que] deve ser uma reflexão sobre a posição a partir da qual ela é realizada”. E também que “parte da reflexividade é baseada no comentário crítico dos outros sobre a própria prática teórica” (p. 67)10.
Fizemos, nesse artigo, uma análise das erratas veiculadas na revista SuperInteressante. Nossa hipótese era de que os erros cometidos pelo divulgador (que não domina o discurso científico) no desempenho de sua função causam prejuízos conceituais ao processo de aprendizagem uma vez que a plateia é jejuna em ciência. “Critical social research should be reflexive, so part of any analysis should be a reflexion on
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the position from which it is carried out” “Part of reflexivity is taking in the critical commentary of others on one’s theoretical practice” (CHOULIARAKI & FAIRCLOUGH 1999, p. 66 - 67).
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O nosso corpus foi composto por edições da revista Superinteressante da editora Abril. O objetivo geral foi refletir sobre a responsabilidade da mídia ao transmutar o discurso científico para o discurso de divulgação cientifica, verificando as possíveis consequências discursivas e sociais advindas dos erros cometidos no contexto de divulgação da ciência na escola. Os resultados de nossa análise demonstraram que as revistas de divulgação científica em questão apresentam uma frequência de erros que não condiz com o papel de “instrumento pedagógico” a elas outorgado. Esses erros longe de ser algo inofensivo ou absolutamente sem importância demonstram que a mídia não deve ser incorporada à vida escolar sem passar por uma avaliação dos fatores que a subjazem: sobrevivência mercadológica, sensacionalismo visando ao aumento do público leitor e pouco domínio do discurso científico por parte dos jornalistas científicos. Ficou claro que os interesses das revistas em questão passam ao largo dos interesses educacionais que devem orientar o trabalho pedagógico nas escolas brasileiras. Dessa forma, pensamos que o presente artigo traz uma contribuição importante ao debate acerca do uso dos instrumentos pedagógicos, e ainda, sobre a relação da mídia com o processo educacional. Também ficou demonstrado que a informação científica ao migrar de gênero, mudar de suporte, destinatário e principalmente, mudar de perspectiva humana (jornalista) sofre uma transformação que, muitas vezes gera, na informação, problemas que incidem em um público que ainda não tem ferramentas para filtrar aquilo que consome. Entendemos que a alfabetização cientifica tem papel muito importante no sentido de desenvolver e efetivar o espírito da cidadania, principalmente dos mais jovens, para que estes possam desenvolver um espírito crítico baseado em sua própria cultura cientifica e não ser apenas caudatário de correntes de opinião, muitas vezes alimentadas menos pelo interesse público do que por lobbies e interesses de grupos e facções interessadas. No entanto a alfabetização científica pressupõe um processo que não é simples, além disso, esse processo não ocorre livre de problemas. Um desses problemas reside no fato de que o jornalista apesar de circular por todos os tipos de discurso possíveis ele não domina, geralmente, o discurso muito especializado da ciência. Assim, a função de alfabetizar
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cientificamente um público jejuno em ciência ganha contornos dramáticos e dignos de preocupação. Assim, se confirma o que Fairclough (2006) defende como tarefa da ACD ou dos analistas críticos do discurso, abordar a linguagem como uma faceta da vida social que está dialeticamente interconectada com outras facetas da vida. REFERÊNCIAS CHOULIARAKI, Lilie & FAIRCLOUGH, Norman. Discourse in late modernity: rethinking critical discourse analysis. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999. EPSTEIN, Isaac. Divulgação Científica: 96 verbetes. Campinas, SP: Pontes, 2002. FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília: Editora UnB, 2001. _____. Analysing Discourse: textual analysis for social research. Londres: Routledge, 2003. _____. Language and globalization. London and new York: Routledge, 2006. FERREIRA, Sueli Mara Soares Pinto & TARGINO, Maria das Graças (organizadoras). Mais sobre revistas científicas: em foco a gestão. São Paulo: Editora Senac São Paulo/Cengage Learning, 2008. GIDDENS, A. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: BECK, U.; GIDDENS, A.; LASH, S (Edits). Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: UNESP, 1997. GOMES, Isaltina Maria de Azevedo Mello. Revistas de Divulgação Científica: Um panorama brasileiro. In: Ciência & Ambiente/Universidade Federal de Santa Maria. Divulgação Científica. UFSM. Vol. 1, n. 1, Santa Maria: 2001. MAGALHÃES, Izabel. Teoria Crítica do Discurso e Texto In: Linguagem em (Dis)curso - LemD, Tubarão, v. 4, n.esp, p. 113-131, 2004.
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MEYER, Michel. Entre la teoria, el método y la política: la ubicación de los enfoques relacionados com el ACD In: Métodos de análisis crítico del discurso.Org. Ruth Wodak y Michael Meyer. Barcelona: Gedisa Editorial, 2003. Capítulos 1 e 4. PFEIFFER, Cláudia. Escola e Divulgação Científica. In: Produção e Circulação do Conhecimento: Estado, Mídia, Sociedade. Organizado por Eduardo Guimarães. Campinas, SP: Pontes Editores, 2001. VAN DIJK, Teun A. Discurso e Poder. São Paulo: Contexto, 2008.
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MODALIDADE DEÔNTICA NA MÍDIA RADIOFÔNICA: UMA ANÁLISE BASEADA NA GRAMÁTICA DISCURSIVOFUNCIONAL DEONTIC MODALITY IN THE RADIO MEDIA: AN ANALYSIS BASED ON FUNCTIONAL DISCOURSE GRAMMAR Nadja Paulino Pessoa-Prata1 Universidade Federal do Ceará RESUMO Este trabalho objetiva analisar a modalidade deôntica na mídia radiofônica, sob o enfoque funcionalista, buscando integrar, na análise, os componentes sintáticos, semânticos e pragmáticos, o que pressupõe o estudo da língua em uso efetivo. Para isso, utilizamos o corpus REDIP, que foi desenvolvido pelo Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), situado em Portugal. A análise dos dados obtidos em relação à mídia radiofônica revelounos que a instauração dos valores deônticos se deu, com maior frequência, associados ao tema “opinião”, elemento do componente contextual. Dentre os valores deônticos, percebemos o predomínio da obrigação, considerado como o prototípico dessa categoria. Em relação à fonte e ao alvo deôntico, percebemos uma tendência de uso da fonte do tipo “enunciador” e de um alvo “terceiro-ausente”. Finalmente, verificamos que os auxiliares modais foram as formas de expressão mais frequentes no corpus. Palavras-Chave: Gramática Discursivo-Funcional; modalidade deôntica; português europeu; mídia radiofônica.
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Doutora em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Linguística (PPGL/UFC). Professora Adjunta da Universidade Federal do Ceará – Departamento de Letras Estrangeiras – Unidade de Espanhol (DLE/UFC). Contato: nadjapp@yahoo.com.br
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ABSTRACT This paper aims at analyzing the deontic modality in the radio media under the functionalist approach, seeking to integrate the syntactic, semantic and pragmatic components in the analysis, which implies the study of language in its effective usage. For so, we utilized the corpus REDIP which was developed by the Theoretical and Computational Linguistics Institute (ILTEC), situated in Portugal. The analysis of the data obtained in relation to the radio media revealed that the establishment of the deontic values occurred more frequently, usually associated to the theme “opinion”, element of the contextual component. Among the deontic values, we observed the majority of obligation, as the prototype of this category. In relation to the source and to the deontic target, we noticed a tendency in the usage of the source from the enunciating type and also of a “third-absent” target. Finally, we verified that the auxiliary modals were the most frequent expressions in the corpus. Keywords: Discourse Functional Grammar; deontic modality; european portuguese; radio media.
INTRODUÇÃO Numa perspectiva funcionalista dos estudos linguística, o que interessa é a competência comunicativa, ou seja, a capacidade de os usuários da língua adequarem o discurso às mais diferentes situações, já que a linguagem constitui uma atividade cooperativa regida por normas, regras linguísticas e pragmáticas, o que pressupõe que as estruturas linguísticas sejam “configurações de funções, sendo cada uma das funções vista como um diferente modo de significação na oração” (NEVES, 2001, p. 2). Apesar de existirem diferentes enfoques funcionalistas no que se refere à análise da língua em uso, optamos pela perspectiva holandesa: a da Gramática Discursivo-Funcional (GDF). Nessa perspectiva, a geração de estruturas profundas, bem como a interface entre os vários níveis pode ser descrita em termos de decisões que o falante faz ao construir seu enunciado, o que significa dizer que o modelo é top-down, como nos esclarece Hengeveld (2004). Desse ponto de vista, as decisões de análises das camadas mais altas determinam e restringem as possibilidades de análises das camadas inferiores, o que significa que o processo de produção do discurso parte da intenção para a articulação. Assim, o falante primeiro decide qual o seu propósito comunicativo, seleciona a informação mais conveniente e então
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codifica gramatical e fonologicamente esta informação e a articula. Na GDF, elaborada por Hengeveld e Mackenzie (2008), há o estabelecimento de quatro componentes: (i) o Componente Conceitual, relacionado ao desenvolvimento de uma intenção comunicativa relevante para o evento de fala e às conceitualizações associadas a eventos extralinguísticos relevantes; (ii) o Componente Contextual, relacionado ao contexto comunicativo em que se desenvolve a intenção comunicativa do falante, o que significa levar em consideração também aspectos socioculturais da interação verbal; (iii) o Componente Gramatical, organizado em quatro níveis (interpessoal, representacional, morfossintático e fonológico), tendo em vista o processo de formulação, relacionado à especificação de configurações pragmáticas e semânticas que são codificadas nas línguas, e de codificação, relacionado às formas morfossintática e fonológica que as configurações pragmáticas e semânticas possuem nas línguas; e (iv) o Componente de Expressão, relacionado à codificação linguística. Vale salientar que os dois primeiros componentes interagem com o Componente Gramatical, condicionando, por fim, o Componente de Saída/Expressão, no qual a expressão linguística é efetivamente realizada. 1. A modalidade deôntica: um dos domínios de avaliação modal A origem do termo deôntico remonta à palavra grega deon, significando “o que é obrigatório”, e se refere à lógica da obrigação e da permissão (LYONS, 1977). Desse modo, a modalidade deôntica se relaciona à necessidade ou à possibilidade dos atos realizados por agentes moralmente responsáveis, o que implica alguma espécie de controle humano intrínsecos dos eventos (NEVES, 1996). No que diz respeito às características desse tipo de modalidade, Lyons (1977) aponta as seguintes: (i) a sentença não descreve um ato em si mesmo, mas um EC que será obtido, caso o ato seja realizado, em algum tempo (ou mundo) futuro; (ii) a relação intrínseca com a noção de futuridade, pois, ao impor algo a alguém, a execução do ato será futura, seja próxima ou não, já que não podemos impor que alguém realize um ato no passado;
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(iii) o (re)conhecimento de uma fonte que a instaura ou cria uma necessidade ou possibilidade que recai sobre o alvo deôntico, pessoa ou instituição à qual está dirigido o valor deôntico instaurado. Em relação à fonte e ao alvo modais, Verstraete (2005) faz uma distinção importante: a de fonte modal, autoridade que concede uma permissão ou impõe uma obrigação, e a de agente modal, pessoa da qual se espera a condução da ação. Essa distinção é importante quando se leva em consideração a modalidade epistêmica, pois esta não tem agente modal. Essa distinção também é importante quando se analisam os valores de permissão e obrigação, uma vez que a diferença entre esses valores está na disposição do agente modal. Para o autor, a permissão codifica uma baixa atitude da fonte modal, bem como pressupõe disposição do agente para conduzir a ação; enquanto que a obrigação codifica uma forte atitude da fonte modal, bem como pressupõe não-disposição do agente. Para Palmer (1986), a modalidade deôntica é caracterizada como “contendo um elemento de desejo”, estando, pois, relacionada às ações realizadas pelo próprio falante ou por outros. Essa característica também é pontuada por Heine (1995, p. 29), ao tentar estabelecer as propriedades conceptuais que distinguem a modalidade epistêmica da modalidade deôntica. São elas: a) A existência de uma força, que é caracterizada como um “elemento de desejo”; b) O evento é realizado por algum agente controlador; c) O evento é dinâmico; d) O evento ainda não tem uma referência temporal; e) O evento é não-factual, embora haja alguma escala de probabilidade de que ele ocorra. Bastos et al. (2007) consideram que a modalidade deôntica é um dos domínios de avaliação modal, ou seja, a perspectiva a partir da qual a avaliação é executada. Assim, a modalidade deôntica concerne ao que é permitido legalmente, socialmente e moralmente.
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2. Metodologia da investigação: delimitação do corpus e procedimentos de análise A opção por uma orientação funcionalista de análise nos leva a trabalhar com um corpus de ocorrências reais da língua, de modo a podermos descrever e explicar, empiricamente, o uso de modais deônticos na construção discursiva midiática. Assim, recorremos ao corpus “Rede de Difusão Internacional do Português: rádio, televisão e imprensa” – REDIP, que está composto por amostras de português europeu (P.E.). Tais amostras foram divididas nos temas “economia, atualidade, opinião, ciência, desporto e cultura”, perfazendo 324.000 palavras, segundo esclarecem Ramilo e Freitas (2002). Considerando apenas a mídia radiofônica e excluindo o tema “ciência”, analisamos um volume textual de 36.000 palavras, como mostra o quadro a seguir: Quadro 1: Quantidade de palavras na mídia radiofônica TEMAS
QUANTIDADE DE PALAVRAS
Cultura
9.000
Desporto
9.000
Economia
9.000
Opinião
9.000
Total
36.000
A fim de que possamos empreender uma análise quantitativamente adequada, optamos pelo uso do programa estatístico SPSS, já que é acessível e possibilita a confecção automática de gráficos ou tabelas a partir dos dados quantitativos. Assim, é possível utilizar tal programa no que se refere à verificação de frequência e ao cruzamento das “variáveis” que estabelecemos como pertinentes à interpretação da expressão da obrigação no discurso midiático: Aspecto contextual: (i) tema dos programas (economia, desporto, cultura e opinião). Aspectos do nível interpessoal: (i) posição do enunciado em relação ao valor deôntico (inclusão, não inclusão); (ii) tipo de ilocução (declarativa,
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interrogativa, imperativa, proibitiva, comissiva e exortativa). Aspectos do nível representacional (aspectos semânticos): (i) macrovalor deôntico (obrigação, permissão e proibição); (ii) manifestação do valor deôntico e polaridade (Obrigação, Negação da obrigação @ permissão, Obrigação de não atuar @ proibição, Permissão, Negação de permissão @ proibição, Proibição, Negação de proibição @ permissão); (iii) Tipo de força (interna, externa); (iv) nuances da permissão (sugestão, conselho e autorização); (v) fonte deôntica (Enunciador (falante), Terceiro (Instituição2, Indivíduo, Não-especificada), Inexistente); (vi) Alvo deôntico (Enunciador, Domínio comum, Coenunciador (Ouvinte – 2ª. pessoa), Terceira pessoa (instituição, indivíduo), Não-especificado/ terceiro-ausente). Aspecto morfossintático: (i) formas de expressão (auxiliar modal, adjetivo, verbo, substantivo, advérbio e construções modalizadoras3). Assim, as análises das 235 ocorrências estão agrupadas segundo os três grandes grupos de parâmetros: os pragmático-discursivos (aspectos contextuais e aspectos interpessoais), os semânticos e os morfossintáticos, na mesma ordenação top down, conforme a teoria da Gramática DiscursivoFuncional. 3. Resultados: análise e discussão 3.1. Análise dos aspectos pragmático-discursivos na mídia radiofônica 3.1.1. O aspecto contextual: tema dos programas Em relação ao tema abordado no meio de difusão “rádio”, constatamos que, do total de ocorrências, o tema “opinião” alcançou a maior frequência dos modalizadores deônticos. Esse tema contabilizou 35,7% das 235 ocorrências. No outro extremo, aparece o tema “desporto”, com 19,1% das ocorrências. Vejamos algumas ocorrências retiradas do nosso corpus: 2
Consideramos como “Terceiro”, a fonte que é reportada. A fonte “instituição” pode constituir os seguintes: Igreja, Família, Política, Escola, Sistemas de informação, etc. 3 Segundo Pessoa (2007, p. 97), este rótulo inclui construções como “ser para+ infinitivo” e SNs com valores axiológicos como “o importante é”, “o necessário é”, “o que importa é”, etc.
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(1) para lembrar que nem tudo, eh, o que é ético está no código, portanto, a reflexão ética do médico e a sua... e a sua ponderação ética tem de ir para além do código deontológico. o código é a formalização de algumas regras mais importantes (Nós e os Outros - Opinião) L2: devia ter era suspenso as suas funções quando entrou em campanha. L1: ma... mas não foi... L2: isto é uma questão completamente diferente. aí é que nós tínhamos verdadeiras... condições de igualdade. (Livre e Direto – Desporto) Nessas duas ocorrências, temos a instauração de uma obrigação de caráter interno, pois fazem referência a valores cultuados na sociedade, como ética, em (1), e igualdade para disputar campanhas da Federação de Futebol, em (2). O tema “opinião”, por servir mais claramente ao embate de opiniões sobre assuntos polêmicos, parece favorecer instaurações de valores deônticos. Com relação aos temas “cultura” e “economia” na mídia radiofônica, eles apresentaram uma porcentagem aproximada, respectivamente, com 23,4%, e 21,7%, como observamos em (3) e (4): (3) L4: o turismo, eh, eu estava a falar aqui do vale, tenho que respeitar também outras zonas, porque arruda, embora um concelho... bastante pequeno, oitenta mil quilómetros, mais ou menos mas, eh, tem outras características, outras zonas também (Feira Franca – Cultura) (4) e portugal tem aí um espaço de afectividade, um espaço de convergência cultural, dentro de... dentro da diversidade que existe e que é... que deve ser cultivada e (...) eh, não é possível mais... ter uma economia fechada, estarmos isolados do mundo (Especial Entrevista – Economia) Nesses dois temas, o valor de obrigação foi instaurado por auxiliares modais. No primeiro caso, a força que motiva essa instauração é interna, pois trata de uma noção basilar em sociedade: o respeito, que se aplica inclusive a zonas geográficas, ainda mais por tratar de turismo. No segundo
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caso, recorre-se a noções como “afetividade” e “convergência cultural” para explicar as necessidades de relações econômicas com “os povos da Península Ibérica e a América Latina”. Concluindo, a partir dos resultados encontrados, estabelecemos uma escala de favorecimento de ocorrências de modalizadores deônticos, tendo em vista o tema da mídia radiofônica, como podemos ver na Figura 1: Figura 1 - Escala de condicionamento do tema ao uso dos deônticos na mídia radiofônica
Os modalizadores deônticos podem apresentar uma tendência de frequência seguindo a escala, da esquerda para a direita, em que “opinião” seria o extremo mais saliente. 3.1.2. Análise dos aspectos do nível interpessoal 3.1.2.1. Posição do enunciador em relação ao valor deôntico Após a análise dos dados referentes ao meio “rádio”, constatamos que, em 71,9% do total, o falante optou pela não-inclusão, o que corresponde a 169 ocorrências. Em (5), vemos um exemplo de como se dá o posicionamento “nãoinclusivo” na mídia radiofônica: (5) para que haja uma revolução, uma alteração de um... de um comportamento, de uma mudança acho... acho... acho... que... que se deve privilegiar, não uma alteração gradual porque não há alterações graduais (Fórum TSF – Opinião) A construção do verbo auxiliar “dever” com “se” nos faz reconhecer um alvo do tipo “não-especificado”, no qual o enunciador não se inclui, já que a alteração no código de trânsito não é de responsabilidade dele. Em se tratando de um posicionamento “inclusivo”, vemos que apenas 66 ocorrências apresentaram essa variável, o que representa 28,1%, como ilustramos a seguir:
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(6) L2: eu percebo que a pergunta se faça, devo... devo dizê-lo com clareza, não estou nada preocupado com isso porque aqui é um objectivo diferente. (Especial Entrevista – Economia) A obrigação recai sobre a fonte deôntica que é o enunciador (falante) e diz respeito a uma motivação interna, pois se baseia na ideia de se falar com clareza, de modo a atender um princípio de cooperação na interação verbal. Em relação ao cruzamento da “posição do enunciador” com o “tema”4 mostra que há relação entre eles, ou seja, a posição de inclusão ou não- inclusão parece estar também relacionada ao tema dos programas. O posicionamento não-inclusivo prevalece em todos os temas, em mais de 60% dos casos, mas se manifesta com maior saliência em “opinião”. Por outro lado, o posicionamento inclusivo se relaciona mais com “economia”. Procedemos ainda ao cruzamento da “posição do enunciador” com “tipo de ilocução”5 e obtivemos que o posicionamento não-inclusivo ocorre atrelado aos tipos “declarativa”, “imperativa” e “interrogativa”. Destas, a ilocução do tipo “interrogativa” se deu em 100% dos casos, pois o alvo do valor deôntico instaurado pelo falante não está direcionado a ele, mas ao coenunciador, ao domínio comum ou a um indivíduo, por exemplo. Por outro lado, o posicionamento inclusivo se dá em ilocuções “exortativas”, em 96% dos casos, e “proibitivas”, em 100% dos casos. O posicionamento inclusivo ocorre mais quando o enunciador é, ao mesmo tempo, fonte e o alvo (ou parte do alvo) dos valores deônticos instaurados, o que ocorre em 32 casos dos 62; enquanto que o posicionamento não-inclusivo ocorre com mais frequência quando a fonte é o enunciador e o alvo é o terceiro-ausente, o que ocorre em 44 casos dos 105, comportamento semelhante ao da mídia televisiva, o que corrobora o fato de que a inclusão ou não-inclusão do enunciador na incidência do valor deôntico pode revelar o grau de (des)comprometimento dele com a obrigatoriedade de agir. Isso nos permite dizer que, de fato, há uma interação dos níveis mais altos com os níveis mais baixos do Componente Gramatical, em uma língua natural, como é o caso do português. 4 5
O teste qui-quadrado foi de 0,034. O teste qui-quadrado foi de 0,000.
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Na próxima seção, versaremos sobre os tipos de ilocução e os possíveis condicionamentos sobre as demais categorias de análise. 3.1.2.2. Tipo de ilocução Na tentativa de mapear as intenções comunicativas dos falantes, participantes dos programas radiofônicos, consideramos inicialmente seis tipos de ‘sentenças-tipo’, como na proposta tipológica da GDF. Como a do tipo ‘comissiva’ não ocorreu no nosso corpus, a análise foi feita com os cinco tipos. Na maioria dos casos, isto é, em 69,8% dos casos, identificamos as sentenças do tipo ‘declarativa’, como em (30). Em geral, tal ilocução se associa mais frequentemente ao macrovalor de obrigação. O tipo ‘exortativo’ foi o segundo mais usado, representando 21,3% dos casos, como em (7), em que ocorre com o valor de obrigação: (7) L9: eu... eu... vamos... vamos ver, eu acho que em primeiro lugar nós não nos podemos esquecer de duas coisas é que somos portugueses e latinos, e os portugueses e os latinos são, eh, socialmente... sociologicamente, se quisermos, eh, bastante adversos ou contrários à... à palavra proibir. enfim temos que6 analisar isto numa perspectiva não de... daquilo que deveria ser mas na realidade, nós não somos... não podemos ?componemos? contornar a realidade. (Fórum TSF Opinião) Nesse caso, há inclusão do coenunciador (ouvinte-entrevistador) no valor de obrigação, do enunciador (falante) e do povo em geral. O falante, ao usar o auxiliar “ter que”, exorta, ou seja, encoraja a si mesmo e ao ouvinte para juntos realizarem a ação: analisar a realidade. Ele ainda faz menção ao modo de ser do português, de um ponto de vista sociológico: adversos ou contrários à palavra “proibir”, o que poderia explicar a baixa frequência de uso desse valor, como se verá na próxima seção. Os tipos de sentenças “imperativa”, “interrogativa” e “proibitiva” se fizeram bem menos frequentes, totalizando, juntas, apenas 9% do total. 6
Segundo Hengeveld e Mackenzie (2008), é possível estabelecer várias combinações com os traços [±Falante] e [± Ouvinte] para o sistema pronominal. Assim, teríamos: (a) primeira pessoa do plural exclusiva [+F, -O] e primeira pessoa do plural inclusiva [+F, +O].
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As ocorrências a seguir ilustram, respectivamente, estes três tipos de ilocuções: (8) L3: permita uma pergunta sobre... (Especial Entrevista – Economia) (9) a página da associação de criadores de puros-sangue lusitano e em qualquer motor de busca se perguntar por lusitano, cavalo lusitano ou golegã, a minha página é a única que aparece e também, eh, vai-me permitir, se me permite que... que lhe diga com (Tardes de Telefonia – Cultura) (10) L9: eu... eu... vamos... vamos ver, eu acho que em primeiro lugar nós não nos podemos esquecer de duas coisas é que somos portugueses e latinos, e os portugueses e os latinos são, eh, socialmente... sociologicamente, se quisermos, eh, bastante adversos ou contrários à... à palavra proibir. (Fórum TSF - Opinião) Em (8), o falante, por meio de um verbo pleno, dirige-se ao ouvinte para que este execute uma ação de permitir a realização de uma pergunta. Em (9), o mesmo verbo é usado em outro tipo de ilocução em que, apesar de não haver uma pergunta direta, percebe-se que essa é a intenção ao relacioná-lo a uma estrutura de oração condicional como estratégia de polidez (HIRATA-VALE; OLIVEIRA, s/d). Em português (europeu) difundido em rádio, tendo em vista o REDIP, os modalizadores deônticos na ilocução “interrogativa” ocorreram somente com o valor de permissão. A ocorrência (10) marca que o falante proíbe o ouvinte e a si mesmo também de executar a ação, o que marca o tipo de ilocução proibitiva. 3.2. Análise dos aspectos semânticos 3.2.1. Macrovalores deônticos Em relação aos macrovalores, constatamos que a obrigação é o valor deôntico mais usado, com 56,2% das 235 ocorrências, o que totaliza 132 casos. O valor de permissão, com 26%, é o segundo mais instaurado, e o de proibição, com 17,8%, aparece como a última preferência na instauração da modalidade deôntica.
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Os três valores estão ilustrados, respectivamente, nas ocorrências que se seguem: (11) L7: sim, ele tem de ser feito por medida, portanto, as pessoas têm de se disponibilizar pelo menos três vezes para o vestido (...) todos os ajustes, porque o traje, eh, segundo a palavra tem que ser bem... bem, eh, tem que ter uma boa expressão. (Tardes de Telefonia – Cultura) (12) L3: assuntos como este poderão ser tratados nesta cimeira, eh... (Especial Entrevista – Economia) (13) o médico era paternalista, dava ordens aos doentes, “faça assim, faça assado”, agora já sabemos que não pode fazer isso. (Nós e os Outros – Opinião) Nesses três exemplos, vemos que os auxiliares “ter que/de” e “poder” serviram como meios de expressão da categoria em questão. No último caso, a associação desse modal com a polaridade negativa confere o valor de proibição ao enunciado. 3.2.2. Manifestação do valor deôntico e polaridade na mídia radiofônica Levando em consideração os sete tipos de valores estabelecidos tendo em vista a polaridade (positiva ou negativa), percebemos que, na mídia radiofônica, a obrigação se estabelece em 56,2% dos casos, o que responde sozinha por mais da metade das ocorrências. O valor relativo à negação da proibição não ocorreu em nenhum caso. Parece que, ao corresponder a um valor de permissão, é mais viável instaurá-lo diretamente do que indiretamente, uma vez que este envolve uma negação, o que, do ponto de vista cognitivo, é mais difícil de processar. O macrovalor “permissão” foi instaurado majoritariamente de modo direto em 23,4% dos casos, como em (12), e de modo indireto, por meio de uma “negação da obrigação”, em apenas 2,6%, como ilustrada a seguir: (14) é aquele princípio que nós já tínhamos sempre defendido, a arbitragem deve estar... com os homens, eh, da arbitragem, os peritos
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da arbitragem, não tem que ser necessariamente a idade, mas... até no simples estatuto já o são, e... césar correia também (Rádio – Bola Branca – Desporto) A negação de um modal como “ter que”, que é o mais forte dos auxiliares modais de obrigação, permite ao ouvinte vislumbrar a possibilidade de outra possibilidade acional ou de parte da predicação. Quanto ao macrovalor “proibição”, ele foi instaurado majoritariamente de modo indireto, seja por meio da “negação da permissão”, em 14% dos casos, como em (13); seja por meio da “obrigação de não”, em 2,1% do total. Em apenas 1,7%, por meio direto, ou seja, por modalizadores que explicitam esse valor, como os verbos plenos. 3.2.3. Subtipos dos valores deônticos instaurados Em se tratando dos valores deônticos, é possível estabelecer uma divisão, bipartida, de difícil análise, pois, em alguns casos, parece haver uma zona fronteiriça entre os dois tipos de força, uma vez que questões de ordem interna podem influenciar o estabelecimento de condutas regidas por normas externas e vice-versa. Ao analisarmos o corpus da mídia radiofônica, independente do tema, constatamos que o tipo de força “interna” foi um pouco mais frequente, o que representa 52,3% das 235 ocorrências. Apesar de a força “interna” ser mais frequente, o tipo de força “externa” não dista muito daquela, o que mostra certo equilíbrio entre as forças. Vejamos as ocorrências (15) e (16), que ilustram cada tipo: (15) sabia que o doente tem direito a uma segunda opinião sobre o seu estado de saúde, e sabia também que o último direito do doente é o de morrer com dignidade? há que estudar estes problemas éticos e tentar encontrar soluções. (Nós e os Outros – Opinião) (16) L3: esquecem-se que a gente que em cima... que estamos a ver melhor a estrada do que eles em baixo, e então há que acelerar a cento e tal à hora e depois dizem que os camiões que vão em coluna, porquê? (Fórum TSF – Opinião)
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Nesses dois exemplos, vemos que uma mesma forma de expressão, “haver que + infinitivo”, com sentido de obrigação, pode servir aos dois subtipos de valores. A ação de “estudar” predicada em (15) toma como base valores como dignidade e verdade, valorizados na sociedade; enquanto que a ação de “acelerar”, predicada em (16), baseia-se em motivações externas. Essa forma de expressão não se mostrou muito frequente no meio rádio, pois somente foi usado em seis ocorrências. No que tange à relação com o macrovalor deôntico7, percebemos que não é possível estabelecer, a princípio, uma relação direta entre essas categorias. Ou melhor, podemos dizer que há uma leve associação entre elas, pois o valor obtido significa que existe cerca de 10% de chances de que a hipótese nula seja não-refutada, o que ainda é pouco. Percebemos que tanto o macrovalor “obrigação” quanto o de “proibição” tendem ao tipo de força ‘interna’, enquanto que a ‘permissão’ tende ao tipo ‘externa’. No que se refere ao subtipo do valor de permissão, ou seja, às nuances autorização, concessão e sugestão, a análise foi feita com base nas manifestações da ‘permissão’ direta e na ‘negação da obrigação’, que equivale a uma permissão indiretamente, contabilizando assim 61 ocorrências, isto é, 26 % das 235 nessa mídia. Na maioria dos casos, ocorreu a nuance do tipo ‘sugestão’, atenuando o valor instaurado, em 39% dos casos, seguindo-se, de modo aproximado, da nuance de concessão. A autorização é, novamente, o subtipo de permissão menos instaurado. Em relação ao tema, a nuance “sugestão” se relaciona, majoritariamente, com todos os temas, exceto com o tema “desporto”. Entretanto, a nuance “sugestão” tende a aparecer mais em “economia”. Por sua vez, a nuance “concessão” se mostra mais relevante quando associada ao tema “desporto”, enquanto que a diferença entre os temas “opinião” e “economia” não é tão marcada. Por último, a nuance “autorização”, apesar de apresentar índices praticamente iguais para os temas “cultura” e “economia”, tende a se relacionar mais com o tema “desporto”. Vale mencionar que as nuances “concessão” e “autorização” não apresentam diferença quando associados ao tema “opinião”. 7
Neste caso, o teste estatístico qui-quadrado foi de 0,116, índice superior a 0,05, o que aponta que há uma tendência a não haver relação, ou melhor, que há uma leve associação.
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3.2.4. Fonte deôntica Das fontes que estabelecemos como parâmetros de análise, constatamos que a fonte “enunciador” ocorre na maioria dos casos, totalizando sozinho mais de 70% enquanto as fontes “instituição” (17,9%), em (17), “indivíduo” (3,4%), em (18), e “não-especificado” (5,5%), em (19), contabilizam 26,8% das ocorrências nessa mídia, como ilustradas a seguir: (17) então a associação diz assim, “para esta doença, deverão existir estas condições”, correcto, os médicos todos têm obrigação de aceitar isso. (Nós e os Outros – Opinião) (18) e o senhor (...) olhou para eles todos... do uruguai e disse, “eu acho que a gente tem de pôr ponto final nesta conversa, porque hoje o uruguai é uma democracia e também se deveu aos militares a transição”. (Especial Entrevista – Economia) (19) eu dou alguns exemplos, falou-se há muitos anos da necessidade de... de... de... de instituir uma disciplina de trânsito, ou de código, ou fosse o que fosse nas escolas desde tenra idade, isso tem a ver... isso (Fórum TSF – Opinião) Esses três tipos têm em comum o fato de que o falante não é a fonte. Ele remete a fontes distintas dele para ilustrar um ponto de vista. Isso aparece bem marcado pelo uso do verbo dicendi nos dois primeiros casos. Em (19), há uma fonte deôntica, mas não é possível determiná-la, ao contrário do que ocorre com a fonte “inexistente”. A fonte “inexistente” ocorre em apenas 2,1% do total. Vejamos: (20) L4: a reclamação com certeza que as fazem muitas vezes. é de alguns centros de hemodiálise estarem em edificíos com escadas onde é enor... extremamente difícil os doentes chegarem lá em cima, que não têm condições, isto é uma reclamação de associação perfeitamente típica! L1: mas no... L4: ou então são obrigados a esperar cá fora e a apanhar chuva ou a apanhar frio. (Nós e os Outros - Opinião)
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Em (20), a construção adjetiva expressa uma obrigação, que não parte do falante, nem de nenhum outro tipo de fonte, pois são as condições do edifício, como a ausência de escada, que obrigam o doente a não entrar no prédio e a esperar do lado de fora. Em outras palavras, a obrigação não tem como origem uma fonte deôntica que instaura o valor. Pode-se encontrar um agente responsável (causa) por tal obrigação. Mas, nesse caso, trata-se de uma necessidade imposta pelas condições do prédio e as condições físicas do doente em casos mais graves. A conclusão em relação a essa imposição de ordem externa aparece marcada na fala de L4 por “então”. Outro ponto da análise da modalidade deôntica e da construção discursiva, nesse meio, refere-se à relação entre a fonte deôntica e os valores instaurados. O cruzamento dessas variáveis8 nos mostra que a fonte ‘enunciador’, usada em 71% do total de ocorrências, instaura majoritariamente todos os valores, mas preferencialmente o valor de ‘obrigação’, em 59,3% das 167 ocorrências, como vemos a seguir: (21) L3: eh, não, porque por dever de ofício tenho que acompanhar... (Especial Economia – Economia) Nesse caso, a fonte “enunciador” (falante – L3) faz uso de “ter que”, conjugado da primeira pessoa do singular ([+F, - O]), para instaurar uma obrigação sobre ele mesmo, que é o alvo deôntico. Em relação ao tipo “não-especificado”, percentualmente, é a fonte que instaura menos o valor de proibição. Essa fonte tende a instaurar mais o macrovalor de permissão (69,2%). Quando a fonte é o “indivíduo”, houve mais a instauração de proibições (50%), de permissões (37,5%) e de obrigações (12,5%). A fonte do tipo “instituição” instaura, em 59,5% dos 42 casos em que ocorre, o valor de obrigação, seguido pelo valor de proibição e de permissão. Tal resultado pode ser explicado pelo fato de que, legalmente, são as instituições que estipulam, por meio de normas e leis, o comportamento em sociedade. Por último, quando a fonte é ‘inexistente’, há a instauração de obrigação, em 80%, e da permissão, em 20%.
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3.2.5. Alvo deôntico O alvo deôntico constitui uma variável importante na construção discursiva, no condicionamento da instauração de valores deônticos e na forma de expressão da modalidade deôntica. Assim, constatamos que todos os tipos de alvo são usados na mídia radiofônica. Entretanto, a frequência de uso revela que o alvo “coenunciador” é mais marcado, pois, em relação aos demais, ele ocorre muito pouco, ou seja, em 4,7% dos casos. O alvo mais saliente é o “terceiro-ausente” (25,5%), como em (22), em que se usa um adjetivo em posição predicativa: L1: bom dia. é urgente criar uma consciência bioética. é tão urgente quanto o avassalador progresso da tecnologia na medicina. (Nós e os Outros – Opinião) Em (23), temos o alvo “instituição”, sobre o qual recaem 20,9% dos valores: (23) isso é um dos assuntos que o turismo tem que aproveitar, tem que se lançar n... e porque está... fica ao pé de lisboa quando a... a desejada a-dez vi... vier aqui, está a ver são minutos para chegar a lisboa (Feira Franca – Cultura) Nesse caso, o sintagma “o turismo” representa um setor de responsabilidade do Governo, por isso o consideramos como uma instituição. Podemos perceber inclusive o traço [+ controle], já que a obrigação recai sobre um verbo como “aproveitar”. Há ainda os alvos “indivíduo” (17,4%), como em (24), e o “domínio comum” (16,6%), como em (25): (24) L3: o... o doente, eh, no... no... no caso dos doentes renais, eh, por exemplo, eh, gosta de saber como é que estão, eh, os... como é que vai o seu tratamento, a sua hemodiálise, as suas análises e muitas das vezes o médico diz “está tudo bem, não há problema” e, eh, passado um dia ou dois isso não é verdade porque ele tem que recorrer à urgência, com problemas, muitas das vezes gra... graves, e a... que lhe poderá trazer muitas das vezes, eh, consequências, eh, que talvez já não sejam de maneira, eh, que se possam resolver. (Rádio – Nós e os Outros – Opinião)
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(25) L5: era o que... se usava que o... a gente temos que ir buscar uma tradição, não vamos buscar agora... fazer uma coisa em miniatura, a imitar os antigos e vamos pôr uma coisa moderna. (Feira Franca – Cultura) Em (24), o alvo é identificado pelo pronome “ele” que retoma anaforicamente “doente renal”; em (25), o verbo na primeira pessoa do plural inclusivo ([+F, +O]), já que o sujeito desse verbo é “a gente”, o que nos permite uma interpretação de domínio comum. Em 14,9% dos casos, houve o uso do alvo “enunciador”, como pudemos ver em (21). Ao cruzarmos as variáveis “tipo de alvo” e os “macrovalores deônticos”9, constatamos que há uma relação entre elas, como observamos na Tabela 1. Tabela 1 - Cruzamento “Alvo deôntico” e “Macrovalor” na mídia radiofônica
Assim, no meio radiofônico, o valor de obrigação recai, majoritariamente, sobre todos os alvos, exceto quando o alvo é o “coenunciador”, sobre o qual recai mais o valor de permissão. A obrigação é ainda mais representativa quando o alvo é um “terceiro-ausente”. De todos os alvos deônticos, o “domínio comum” se mostra como o mais favorável para instauração de proibições. 9
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Ao observarmos os valores e os tipos de alvos, podemos perceber três “comportamentos”: (i) Sobre os alvos “enunciador”, “domínio comum”, “instituição” e “indivíduo” recaem, preferencialmente, nessa ordem, os valores de obrigação, permissão e proibição; (i) Sobre o alvo “coenunciador”, recaem, preferencialmente, nessa ordem, os valores de permissão e, de modo igualitário, a obrigação e a proibição; (i) Sobre o alvo “terceiro-ausente”, ou seja, “não-especificado” recaem, preferencialmente, nessa ordem, os valores de obrigação, proibição e permissão. Essa tendência, outra vez, mostra-nos que a instauração de valores deônticos depende em parte do tipo de alvo. Em sendo assim, parece-nos possível dizer que o falante “opta” por um dado alvo tendo em vista o valor que ele deseja instaurar, o que auxilia na construção do discurso difundido no meio radiofônico. Também é possível dizer que o caráter impositivo dos valores deônticos de obrigação e de proibição condicionam o uso dos modalizadores com alvo distanciado dos participantes da interação (“terceiro-ausente”, “não- especificado”), e o caráter impositivo mitigado, o que é próprio do valor deôntico de permissão, condiciona o uso entre enunciador e coenunciador, como estratégia de cortesia para preservação de faces. 3.3 Análise do aspecto morfossintático 3.3.1. Formas de expressão da categoria Tendo em vista que a expressão da modalidade deôntica pode ocorrer por meio de: (i) substantivo; (ii) adjetivo; (iii) verbo pleno; (iv) construções modalizadoras; (v) auxiliar modal; (vi) advérbio, verificamos que a forma “auxiliar modal” é também a mais frequente na mídia em análise, representando 72,8% das ocorrências. Na mídia radiofônica, houve o uso de advérbio para a expressão da modalidade deôntica, ainda que isso represente apenas 0,9% dos casos, como em (26):
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(26) é aquele princípio que nós já tínhamos sempre defendido, a arbitragem deve estar... com os homens, eh, da arbitragem, os peritos da arbitragem, não tem que ser necessariamente a idade, mas... até no simples estatuto já o são, e... césar correia também (Rádio – Bola Branca – Desporto) Em (26), o advérbio necessariamente, denominado modalizador deôntico, parece ter como escopo de sua qualificação, não o estado-decoisas ou a proposição, mas o termo “idade”. A obrigação instaurada parece, pois, relacionar-se a um ponto de discórdia sobre a arbitragem: a idade dos homens que arbitram. Castilho (2010), ao tratar de advérbios modalizadores (advérbios predicativos), explica que: a avaliação sobre o conteúdo e a forma da proposição se expressa de dois modos: (1) O falante apresenta o conteúdo da proposição numa forma assertiva (afirmativa ou negativa), interrogativa (polar ou não polar) e jussiva (imperativa ou optativa). (2) o falante avalia o teor de verdade de proposição, ou expressa um julgamento sobre a forma escolhida para a verbalização desse conteúdo. (p. 553) As ocorrências (27), (22) retomada aqui, (28), (29) e (30) ilustram, respectivamente em ordem ascendente, a expressão da modalidade deôntica para o valor de obrigação, excetuando-se a forma “advérbio”, nesse meio de difusão: (27) isso é quase dar a volta a lisboa para ir para o porto, quem vem de vilar formoso, não é, seria bom que a gente apanhasse o barco, por exemplo em hamburgo, e descêssemos directamente em ando… em aveiro, que nem sequer a… vínhamos a incomodar ninguém. (Fórum TSF – Opinião) (22) L1: bom dia. é urgente criar uma consciência bioética. é tão urgente quanto o avassalador progresso da tecnologia na medicina. (Nós e os Outros – Opinião)
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(28) simplesmente convém não esquecer - eu não me lembrava disto, foi ele que me lembrou - que o novo congresso brasileiro só toma posse em fevereiro, portanto as medidas imediatas são ainda para o congresso antigo (Especial Entrevista – Economia) (29) e esse serviço tem de me ser prestado nos termos do código, nos termos da lei, segundo as leis da arte, quer dizer, segundo a melhor, o melhor conhecimento médico, essa é a obrigação jurídica do médico, para mim. (Nós e os Outros – Opinião) (30) para além dessa escolha do júri temos, eh, uma retrospectiva do... da áustria, a preocupação que nós temos de incluir neste, eh, retrospectivas um país, eh, que faça parte da comunidade europeia, este ano cabe a vez da áustria. (Tardes de Telefonia - Cultura) A expressão “ser bom” foi considerada como um elemento modalizador deôntico, pois, mais do que uma qualificação apreciativa, o adjetivo traduz a desejabilidade em relação a uma ação. Em alguns contextos, esse tipo de expressão tem, claramente, um conteúdo axiológico que diz respeito à conduta. Ele aparece associado ao futuro do pretérito, indicando uma hipótese e atenuando o valor deôntico, pois não se quer incomodar ninguém. Substantivos, como “obrigação”, em (29), também se prestam à expressão da modalidade deôntica, em 9,4% do total. Além desses, a categoria pode ser expressa por verbos plenos, o que totaliza também 9,4% das ocorrências. É o que acontece com “convir”, em (28). Em relação aos adjetivos modalizadores, como em (22), eles correspondem a 7,2% dos casos. Segundo Castilho (2010), eles predicam o sentido de um substantivo numa forma subjetiva, visto que eles verbalizam uma avaliação pessoal do falante sobre o conteúdo desse substantivo, resultando em um realce da intervenção do locutor, razão por que parece adequado caracterizá-los como adjetivos orientados para o falante. Vale salientar que a alta frequência de uso dos auxiliares modais, como em (30), para a expressão da modalidade está relacionada ao processo de gramaticalização de um item, pois, segundo Bybee (2003), o aumento do uso de uma forma leva ao enfraquecimento da força semântica pela habitualidade. Daí que itens como estes perdem gradativamente seu valor deôntico e passam também a funcionar como epistêmicos, o que torna a
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análise mais complexa. Dentre os auxiliares modais usados em português europeu, encontramos o seguinte: O verbo “poder” é o mais frequente, em 72 ocorrências, das quais 58,3% se prestam à instauração da permissão e 41,7%, à proibição (negação da permissão). O verbo “ter que/de” é usado em 61 casos, dos quais 93,4% instauram obrigações e 6,6% representam permissões (negação da obrigação). O verbo “dever”, das 32 ocorrências, associa-se, em 84,4% dos casos, ao valor de obrigação. Entretanto, presta-se também à instauração de proibição (obrigação de não). O verbo “haver” ocorre somente em 6 casos e está relacionado, exclusivamente, à instauração de obrigação. CONSIDERAÇÕES FINAIS Com os parâmetros estabelecidos para a análise dos modalizadores na mídia radiofônica, procedemos à obtenção dos resultados quantitativos à luz da teoria da Gramática Discursivo-Funcional. A análise, em separado, permite-nos visualizar o uso de cada componente, bem como o faz a análise da integração entre eles. Ao longo da análise, constatamos que: a) Em relação aos aspectos pragmático-discursivos, vimos que o tema ‘opinião’ é também aquele em que os modalizadores deônticos ocorrem com maior frequência, o que nos fez estabelecer uma escala de favorecimento de uso. Pudemos verificar ainda que houve associação das variáveis “posicionamento” e “tema”. b) Em relação aos aspectos semânticos, percebemos, na mídia radiofônica, o alvo que predominou foi o “terceiro-ausente”. c) Em relação aos aspectos morfossintáticos, verificamos que os auxiliares modais são os mais frequentes e que os advérbios ocorreram com baixíssima frequência. O presente do indicativo foi o tempo-modo verbal mais recorrente.
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Por fim, cabe salientar que a perspectiva do modelo da GDF possibilita identificar as inter-relações entre os diversos níveis do componente gramatical, bem como as inter-relações dos níveis desse componente com os demais componentes, como o contextual. REFERÊNCIAS BASTOS, S. D. G.; GALVÃO, V. C. C; GONÇALVES, S. C. L; HATTNHER, M. M. D.; HENGEVELD, K.; SOUSA, G. C; VENDRAME, V. The expressibility of modality in representational complement clause in Brazilian Portuguese. Alfa, São Paulo, v.51, n.2, p.189-212, 2007. BYBEE, J. Mechanisms of change in grammaticalization: the role of frequency. In: JANDA, R.; BRIAN, J. (eds.). Handbook of historical linguistics. Oxford: Blackwell, 2003. HEINE, B. Agent-oriented vs. Epistemic modality. Some observations on German modals. In: BYBEE, J.; FLEISCHMAN, S. (Org.). Modality in grammar and discourse. Amsterdam/ Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 1995. p. 17-53. HENGEVELD, K. The Architecture of a Functional Discourse Grammar. In: MACKENZIE, J.L.; GOMEZ-GONZÁLEZ, M.A. (Eds.). A new architecture for functional grammar. Berlin: Mouton de Gruynter, 2004, p. 243272. _____. ; MACKENZIE, J. L. Functional Discourse Grammar: a typologicallybased theory of language structure. Oxford: Oxford University Press, 2008. HIRATA-VALE, F. B. M; OLIVEIRA, T. P. As orações condicionais como estratégia de polidez no português do Brasil. Disponível em: <http: www. gel.org.br/estudoslinguisticos/volumes/32/htm/comunica/ci099.htm>. Acesso em: 20 de jan. 2011. LYONS, J. Semantics. Vol. 2. Cambridge: Cambridge University Press, 1977.
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Anexo Convenções de transcrição do REDIP
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F E R R A M E N TA S P O T E N C I A L I Z A D O R A S D A A Ç Ã O D O C E N T E : S E Q U Ê N C I A S D I D ÁT I C A S E M O N I T O R A M E N T O D E C A PA C I D A D E S D E L I N G UA G E M POTENTIATING TOOLS OF TEACHING ACTION: DIDACTIC SEQUENCES (DS) AND LANGUAGE CAPACITIES MONITORING Adair Vieira Gonçalves1 Universidade Federal da Grande Dourados Juliana Sanches Niéri2 Universidade Federal da Grande Dourados RESUMO O presente artigo apresenta resultados de uma intervenção didática numa instituição pública de ensino localizada no município de Douradina - MS. Tratase da aplicação de uma Sequência Didática (SD) do gênero Artigo de Opinião. O objetivo principal dessa pesquisa foi o de validar/ratificar o procedimento teórico-metodológico SD, num contexto específico, aliada à correção textualinterativa e às listas de controle, já que estas constituem ferramentas didáticas potencializadoras/catalisadoras do ensino da produção textual (SIGNORINI, 2006), os quais, juntamente com a mediação do docente-pesquisador, favoreceu o ensino dos gêneros textuais em ambiente escolar. Como aporte teórico, a pesquisa apoiou-se na concepção dialógica da linguagem proposta por Bakhtin (2003 [1979] e 1997 [1929]), assim como na base epistemológica interacionista sociodiscursiva de Bronckart (2003). Constituem o corpus uma SD do gênero Artigo de Opinião e textos do mesmo gênero produzidos por alunos do 3º ano do Ensino Médio, além do modelo didático construído, antes da construção da SD. Como procedimento analítico, utilizamos grades de monitoramento para a análise do professor-pesquisador com o intuito de investigar as capacidades de
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Docente da Universidade Federal da Grande Dourados. Agradecemos ao CNPq pelos financiamentos de projetos de pesquisa, processo 405797/2012-5 da Chamada MCTI/CNPq/MEC/CAPES nº 18/2012 – Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas; processo 471052/2011-6 do Edital Universal 14/2011. Mestre em Linguística Aplicada pela UFGD. Docente do Colégio Lumière em Dourados.
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ação, discursivas e linguístico-discursivas de produções escritas. A intervenção permitiu concluir que o ensino por meio de SD aliado às ferramentas contribui para proficiência dos alunos na produção dos gêneros textuais em ambiente escolar. Palavras-Chave: Sequência didática; Correção Textual- interativa, Lista de controle; Monitoramento do professor. ABSTRACT This paper presents the results of a didactic intervention in a Public Educational Institution located in the city of Douradina - MS. It consists in the application of a Didactic Sequence (DS) of the textual genre ‘Opinion Article’. The main objective of this research was to validate / confirm the theoreticalmethodological procedures within the DS, in a specific context, combined with textual-interactive correction and control lists as optimazer didactic teaching tools of textual production (SIGNORINI , 2006) which, along with the mediation of the teacher-researcher, favored the teaching of textual genres in the school environment. As the theoretical construct, this research is based on the dialogical conception of language proposed by Bakhtin (2003 [1979] and 1997 [1929] as well as epistemological basis of sociodiscursive interactionism Bronckart (2003). The corpus is made of DS of the textual genre ‘Opinion Article’ and also the same textual genre whose texts were produced by the students of the third year of high school, beyond the didactic model built before the construction of the DS. As analytical procedure, we used control lists for analysis of the teacher-researcher in order to investigate the capabilities of action, discursive and linguistic-discursive of written productions. The intervention led to the conclusion that teaching through DS allied to this tools contributes to students’ proficiency in the production of textual genres in the school environment. Keywords: Didactic Sequence; Textual-interactive correction; Control lists; Teacher Monitoring.
INTRODUÇÃO Não é de hoje que pesquisadores de todo o Brasil têm se dedicado a pesquisas sobre a produção textual dos estudantes em instituições escolares. De uma maneira geral, tais estudos apontam para as dificuldades dos estudantes, ainda no Ensino Fundamental, de utilizarem a modalidade escrita da língua proficientemente (Cf. BRITO, 1983; COSTA VAL, 1991; PÉCORA, 1992, entre outros). Com a concepção de linguagem alicerçada na concepção interacionista,
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como nos apontam Geraldi (1984), Koch (2002), Bronckart (2003), Buin (2006), entre outros, é tarefa da escola e, consequentemente, do professor de Língua Portuguesa, favorecer práticas pedagógicas dialógicas, já que, na visão bakhtiniana, a realidade fundamental da língua é a interação verbal. Ao conceber a linguagem como forma de interação, estamos constituindo-a “como ação interindividual orientada para uma finalidade específica, um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes, nos diferentes grupos sociais, nos distintos momentos de sua história” (BRASIL, 1998, p. 20). Em pesquisas anteriormente realizadas, tais como a de Serafini (2001) e a de Ruiz (2001), por exemplo, pôde-se constatar que, de uma forma geral, os professores, em geral, no momento da correção, ficam circunscritos a problemas estruturais e/ou pontuais no texto dos alunos. Contrariando uma tendência de correção convencional, neste trabalho, propomo-nos a averiguar em que medida a aplicação de uma Sequência Didática (SD) e uma metodologia de correção interativa via bilhetes interativos e lista de controle pode propiciar o desenvolvimento de capacidades de linguagem (a partir das atividades presentes na SD3). Em nosso trabalho, priorizamos a interatividade entre professor-aluno, aluno-aluno e aluno consigo mesmo, tanto na efetivação da SD, nos momentos de utilização da correção textualinterativa, quanto nos momentos de uso da lista de controle, procurando tornar o estudante sujeito social e histórico, responsável pelo seu discurso. Optamos por dividir este texto em três partes, a saber: na primeira, discorremos a respeito das ferramentas de ensino que podem potencializar o ensino dos gêneros textuais/discursivos no ambiente escolar, tais como a SD e o modelo didático de um gênero específico, além da correção textual-interativa e da lista de controle utilizada pelo estudante. Na segunda, apresentamos a metodologia adotada para a consecução deste trabalho. Na terceira seção, trouxemos a análise do corpus. É importante destacar que as grades de monitoramento servem de elemento catalisador da ação docente (SIGNORINI, 2006). Optamos por fazê-la da seguinte forma: primeiramente, trouxemos a produção inicial, o segundo texto elaborado e a 3
O bilhete orientador da escrita foi produzido pelo professor-pesquisador; a lista de controle foi utilizada pelo estudante em diferentes formas de interação, à medida que estes demonstravam compreender os itens da lista. (Cf. ver nota sete).
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produção final de um aluno; a seguir, apresentamos os quadros referentes ao monitoramento das capacidades de ação, discursivas e linguístico-discursivas do gênero, aqui incluídos o monitoramento de vozes e de modalizações. Para finalizar, apresentamos dados do monitoramento das capacidades de gerenciamento enunciativo e das modalizações demonstradas na produção inicial e final. 1. Ferramentas para o ensino Nesta seção, discorremos a respeito das ferramentas teóricometodológicas que podem auxiliar o docente na tarefa de ensinar os alunos a ler/compreender e produzir textos de natureza diversa. Aprender a ler e a produzir textos demanda a aprendizagem de capacidades de linguagem: de ação, discursivas e linguístico-discursivas. Para desenvolver tais capacidades, defendemos, junto com Schneuwly & Dolz (2004), uma ferramenta semiótica intitulada Sequência Didática. Contudo, para elaborar uma SD, é preciso, previamente, construir o Modelo Didático4 do gênero a ser trabalhado. Neste caso específico, o gênero foi o gênero Artigo de Opinião. Abordaremos, ainda, uma metodologia de correção textual conhecida como textual-interativa, além da mediação por listas de controle5 para a averiguação do desenvolvimento de capacidades de linguagem. 1.1. A Sequência Didática O termo Sequência Didática, termo amplamente conhecido no Brasil, (daqui em diante apenas SD) refere-se a “um conjunto de atividades planejadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito” (SCHNEUWLY & DOLZ, 2004, p.97). Sua finalidade, segundo os autores, é a de “ajudar o aluno a dominar melhor um gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de uma maneira mais adequada numa dada situação de comunicação” (p.97). Na SD, o gênero torna-se objeto concreto de ensino-aprendizagem 4
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O Modelo didático será abordado, ainda que sucintamente, na seção seguinte. Para mais aprofundamento, remetemos o leitor a Schneuwly & Dolz, 2004. Em síntese, trata-se de um conjunto de itens que sumarizam as atividades desenvolvidas numa sequência didática. A lista deve compreender capacidades de linguagem: de ação, discursivas e linguístico-discursivas.
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por estar relacionada a uma situação “autêntica” de comunicação e/ou prática linguageira; neste caso específico, o artigo de opinião. Na verdade, trata-se de uma ferramenta para a intervenção em sala de aula que visa alcançar proficiência em determinado gênero. Para isso, é tarefa da escola trabalhar com os gêneros que os alunos ainda não dominam ou não o conhecem e/ou produzem de forma eficiente. Schneuwly & Dolz (2004, p. 98) defendem que a SD deve ser assim constituída:
Apresentação da situação
PRODUÇÃO INICIAL
Módulo 1
Módulo 2
Módulo “n”
PRODUÇÃO FINAL
Quadro 1: Esquema da Sequência Didática (SCHNEUWLY & DOLZ, 2004, p.98). Como podemos observar com o esquema anterior, a SD é composta por quatro fases distintas. No quadro6 a seguir, sintetizamos tais fases. Convém esclarecer que, além das quatro fases propostas por Schneuwly & Dolz (2004), trouxemos, de maneira detalhada, uma etapa complementar que auxilia o professor na tarefa de avaliar as capacidades adquiridas pelos alunos: a lista de controle. Signorini (2006), por exemplo, defende o bilhete, e nós inserimos aí a lista de controle, como sendo um gênero catalisador, ou seja, um gênero que “favorece o desencadeamento e a potencialização de ações e atitudes consideradas mais produtivas para o processo, tanto do professor como de seus aprendizes” (p. 08). Tal como a autora, acreditamos que o bilhete orientador produzido pelo professor-pesquisador e a utilização da lista de controle pelo estudante, mediada pelo docente, podem ser alternativas catalisadoras do desenvolvimento da escrita do aluno.
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Trata-se de um quadro proposto por Gonçalves (2007).
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AS FASES DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA
Apresentação da situação
É o momento em que os alunos são comunicados sobre a situação de comunicação a ser empreendida. Nessa apresentação, os alunos precisam estar conscientes de qual gênero será lido/produzido, qual seu destinatário, onde circula, se as atividades serão realizadas individualmente ou em grupo, ou seja, a apresentação prepara os alunos para a produção inicial. Nessa apresentação, é importante que o aluno compreenda bem a tarefa que lhe está sendo proposta.
Produção inicial
Após a apresentação da situação, os alunos elaboram um texto inicial, oral ou escrito, que corresponde ao gênero trabalhado. Essa fase é primordial para o professor poder diagnosticar as capacidades que os alunos já dispõem e preparar os módulos para potencializar seus conhecimentos a respeito do gênero.
Módulos ou oficinas de ensino
São as atividades entre a produção inicial e a produção final que servem para resolver ou minorar, progressivamente, as dificuldades dos alunos. Para trabalhar com um gênero textual, é necessário conhecer e/ou montar um projeto de classe, visando estabelecer uma relação entre as capacidades de linguagem dos alunos, as práticas de referência e a complexidade textual. A construção dos módulos deve dar-se de tal forma que eles deem conta dos problemas encontrados na produção inicial dos alunos. O movimento vai, portanto, do complexo (produção inicial) para o simples (produção final).
Produção Final
É o momento em que os alunos e professores constatam o domínio e/ou melhoria do texto. É com a produção final que o professor faz um balanço das capacidades de linguagem adquiridas pelos alunos no decorrer dos módulos.
É uma ferramenta que sintetiza de forma explícita os resultados das atividades e exercícios elaborados durante a Sequência Didática. Lista de controle Com a lista de controle, os próprios alunos investigam sua aprendizagem: O que aprendi? O que resta a fazer?
Quadro 2: As fases da SD Antes da elaboração da SD, é preciso construir o modelo didático do gênero a ser trabalhado7. Trata-se da construção de um conjunto de elementos que descrevem o gênero em seus aspectos sócio-históricos, contextuais, organização interna (que compreende a infraestrutura textual com os tipos de discurso/ de sequência, os mecanismos de textualização 7
Para essa pesquisa, estamos utilizando, como referencial teórico, o MD do gênero artigo de opinião desenvolvido por Gonçalves (2007).
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(conexão, a coesão nominal e verbal), e, por fim, os mecanismos enunciativos e de modalização). O objetivo do modelo didático é favorecer o conhecimento do funcionamento dos gêneros que serão postos em prática em sala de aula. É só a partir do modelo didático do gênero que as atividades da SD devem ser elaboradas, atentando para as dificuldades dos alunos no que se refere ao domínio do gênero. Schneuwly & Dolz (2004, p. 89) aludem ao fato de que “quanto mais precisa a definição das dimensões ensináveis de um gênero, mais ela facilitará a apropriação deste como instrumento e possibilitará o desenvolvimento de capacidades de linguagem diversas que a ele estão associadas”. Tanto as atividades da SD quanto as do modelo didático do gênero devem contemplar as três capacidades de linguagem: • Capacidades de ação: permitem a adaptação da produção às características do contexto (situação de comunicação), implicando a mobilização de três tipos de representações: sobre o meio físico, o tipo de interação (estatuto social dos participantes, instituição social em que o texto é produzido e os objetivos) e os conhecimentos de mundo mobilizados na produção de um texto como seus conteúdos específicos. • Capacidades discursivas: dizem respeito às operações de gerenciamento da infraestrutura global do texto, isto é, à escolha de um plano de texto, de uma variante discursiva (ou de várias), de forma(s) de organização sequencial. • Capacidades linguístico-discursivas: envolvem as operações de uso de recursos linguísticos que permitem, de um lado, explicitar as grandes articulações hierárquicas, lógicas e/ou temporais do texto, tendo em vista o destinatário, e, de outro, esclarecer as responsabilidades enunciativas e as avaliações que o enunciador efetua sobre os conteúdos. Dentre elas, teríamos as operações de textualização, isto é, de conexão e de segmentação das partes do texto e do estabelecimento de coesão nominal e verbal; as operações de posicionamento enunciativo, que envolvem o gerenciamento das diferentes vozes presentes no texto e a
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expressão de modalizações; as de construção dos períodos e de escolha de itens lexicais (MACHADO, 2002). Ainda discorrendo a respeito das ferramentas didáticas para o ensino dos gêneros, passaremos a abordar, no próximo subitem, informações sobre a correção textual-interativa e as listas de controle. 1.2. Dois tipos de intervenção: a textual-interativa e as listas de controle Defendemos neste trabalho a correção textual-interativa como uma ferramenta semiótica imprescindível para o desenvolvimento de capacidades de linguagem. Segundo Serafini (2001, p.97) “[...] correção é o conjunto das intervenções que o professor faz na redação pondo em evidência os defeitos e os erros, com a finalidade de ajudar o aluno a identificar os seus pontos fracos e melhorar”. O termo correção tem sido comumente referido como sinônimo de avaliação. Convém esclarecer, entretanto, que são formas distintas de metodologias adotadas pelos docentes frente às produções textuais de seus alunos. A avaliação é o julgamento que o professor dá ao texto, através de uma nota ou de um comentário verbal, com o objetivo de quantificar seu resultado em relação ao dos demais alunos e aos resultados anteriores do próprio aluno (GARCEZ, 1998). Desse modo, nosso foco é a correção e não a avaliação. Acreditamos que a avaliação deve vir sempre após a correção e não como única forma de “intervenção” no texto do aluno. Somente a atribuição de uma nota não possibilitará ao aluno rever seus “erros”, a fim de melhorar seu texto. Neste contexto, destacamos a importância do professor como corretor do texto do aluno. É ele o mediador dos conhecimentos que o aluno precisa adquirir para se tornar proficiente. A esse respeito, nos pautamos nos estudos de Vygotsky (1984), que propôs a Zona de Desenvolvimento Real (ZDR - margem de resolução de uma tarefa que uma criança ou pessoa pode alcançar atuando sozinha) e a Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP - margem de atuação que pode alcançar com a ajuda de um colega mais competente ou experiente para a tarefa). Assim, o aluno tem mais chances de melhorar seu texto e se tornar
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proficiente quando o professor — por ser um par mais desenvolvido — lhe assegura uma correção adequada e eficiente. Garcez (1998, p.54) ressalta que “a interação, constitutiva dos processos de passagem do social para o individual e vice-versa, exige participação mútua dos atores no desenvolvimento do sujeito”. Com as palavras da autora, reafirmamos a importância do papel do professor no processo de produção textual e, consequentemente, do aluno. Desse modo, ambos os interlocutores participam de forma intensa — nenhum dos dois é passivo — e contribuem para a interação. Adotamos, para a consecução dessa pesquisa, uma metodologia de correção textual conhecida como interativa. Trata-se de comentários, também conhecidos como bilhetes orientadores, mais longos do que os que se fazem na margem da folha de redação do estudante, talvez seja essa uma das razões de ser feita após o texto versando sobre as peculiaridades de determinado gênero (RUIZ, 2001). “Esses “bilhetes” interativos têm, em geral, duas funções básicas: ―falar acerca da tarefa de revisão pelo aluno (ou mais especificamente, sobre os problemas do texto), ou falar, metadiscursivamente, acerca da própria tarefa de correção pelo professor” (RUIZ, 2001, p. 63). A correção textual- interativa se materializa em bilhetes orientadores escritos pelo docente no pós-texto, ou seja, na sequência do texto do aluno e versa mais sobre aspectos relacionados à tarefa de reescrita, tendo como preocupação principal o sentido do texto como um todo (macroestrutura textual) e não sobre problemas estruturais e/ou referentes à gramática normativa da língua (problemas microestruturais), como podemos observar com o exemplo que segue:
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Exemplo 1: reescrita textual-interativa [...], Agora que já estudamos sobre o gênero artigo de opinião reflita se o seu texto pode ser considerado um exemplar desse gênero. Nele você demonstra sua opinião com base em argumentos convincentes? Releia seu 1º parágrafo e reflita: os problemas com pessoas negras têm a ver com o fato de elas se sentirem menos valorizadas ou por não terem as mesmas oportunidades que os brancos? No início do seu texto o leitor entende que você defende as cotas, mas ao afirmar que “com elas o governo dá a impressão de estar preocupado com o ensino no país” você demonstra ter tomado outra posição. Afinal, o que você tentou argumentar? Contra ou a favor às cotas para negros? Boa reescrita! (Bilhete interativo escrito na produção inicial de A9)
Ao corrigir os textos por meio de “conversas” a respeito do que foi escrito pelo aluno, a professora assume o papel de um interlocutor efetivo, neste caso ainda assume o papel de pesquisadora, apontando aos alunos possíveis melhorias, principalmente com relação a sua tomada de posição e argumentação. Ruiz (2001, p. 102) afirma que ― “a atuação dialógica do professor é imprescindível para que o aluno perceba a natureza imanentemente inconclusa do objeto texto” [...]. De tal modo, a correção interativa possibilita ao aluno perceber que o texto nunca se dá por acabado. Na verdade, escrever é manter um diálogo com o leitor do texto e, dessa forma, é preciso escrever sempre pensado em ser inteligível para o leitor. Outra ferramenta que auxilia o docente na tarefa de fazer intervenções nos textos é a lista de controle. Trata-se de uma série de itens que caracterizam o gênero em análise e funciona como elemento suplementar à correção textual-interativa. O termo Lista de Controle refere-se às categorias que serão utilizadas após a aplicação da SD que ajuda o estudante a antecipar e compreender melhor os critérios pelos quais o texto do estudante será avaliado8. 8
O estudante monitorou suas produções a partir da seguinte lista de controle: 1) Você está no papel social de enunciador durante a interação. Por isso, conseguiu passar a ideia de alguém que leu e compreendeu a coletânea de textos apresentada na SD?; 2) Seu texto pode ser considerado um exemplar do gênero Artigo de Opinião?; 3) Está adequado ao professor e, posteriormente, ao veículo a ser publicado, isto é, a destinatários múltiplos?; 4) Você conseguiu passar a ideia para seu leitor de
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Schneuwly (apud GONÇALVES, 2007) salienta que a lista de controle é uma ferramenta que sintetiza de forma explícita os resultados das atividades e exercícios elaborados durante a SD. A lista de controle é, portanto, uma forma de regulação do processo de aprendizagem9. Para Schneuwly (apud GONÇALVES, 2007), ela pode ser ilustrada por trechos dos textos dos estudantes, pode ser formulada pelos próprios estudantes, pode ser uma grande lista de controle efetuada pela classe como um todo, ou, em outro caso, pode ser elaborada pelo professor. Em nosso caso, os itens da lista de controle foram construídos pelo professor-pesquisador depois da aplicação da SD e decorrem de atividades desenvolvidas nos módulos. Sobretudo, as listas propiciam aos alunos a retomada de suas próprias produções, inclusive durante a aplicação da SD, comparando a produção inicial com a produção final. Para Dolz & Schneuwly (2001), a lista de controle facilita a atividade complexa que é a reescrita. Os autores alertam ainda que, de maneira geral, reescrever é o produto interiorizado de uma atividade social. Para os autores, reescrever por meio de SD e listas de controle procura/tenta organizar sistematicamente as condições dessa interiorização. Além do bilhete orientador, as listas de controle favorecem o trabalho interativo entre autor/leitor, professor/aluno, visto que não precisa ser o professor o único a apontar os “problemas” do seu texto, já que outro aluno também pode fazê-lo. Encerramos a seção pontuando a importância do trabalho docente com as ferramentas didáticas– SD, alguém que defende suas próprias ideias e as defende por meio de argumentos fundamentados?”; 5). Você consegue antecipar e refutar teses opostas, isto é, elaborar contra-argumentos?; 6) Os argumentos utilizados são coerentes com o tema? Eles são convincentes e suficientes para conseguir a adesão do leitor? Estão organizados hierarquicamente, isto é, do mais importante para o menos importante ou vice-versa, a depender do efeito de sentido pretendido? De outro modo, como eles foram hierarquizados?; 7) A progressão temática é obtida a partir de um raciocínio lógico/ encadeamento de ideias. Seu artigo de opinião apresenta progressão temática, isto é, você se preocupou em apresentar a cada parágrafo uma nova informação relacionada ao tema?; 8) Seu texto apresenta os organizadores lógicos (conjunções, por exemplo) que guiam o leitor organizando o discurso e estabelecendo relações entre as frases e entre os parágrafos? Ou seja, há elementos identificando relações sintático-semânticas de causa, consequência, conclusão, concessão, etc.? Ou a sua ausência favorece o mesmo tipo de relações lógico-argumentativas?; 9) Você conseguiu evitar repetições desnecessárias usando elementos de coesão nominal (anáforas nominais e pronominais, referenciação dêitica por meio de este, esse, etc.)?; e, por fim, 10) Não existem desvios gramaticais tais como de pontuação, frases truncadas/incompletas, erros ortográficos, etc.?. 9
É importante destacar que a lista de controle pode ser utilizada sem a intervenção textual-interativa, como a realizada aqui.
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correção textual-interativa e lista de controle – por potencializarem o ensino da produção textual, auxiliando os professores no trabalho com os gêneros textuais/discursivos. 2. Metodologia A escolha da realização da pesquisa no município de Douradina devese ao fato de a pesquisadora residir nesta pequena cidade. Por ter trabalhado como professora na escola onde a pesquisa foi realizada pôde perceber a dificuldade dos alunos em relação à produção escrita. Nossa opção pelos alunos do 3º ano do Ensino Médio advém do fato de necessitarem, talvez com mais urgência, de auxílio na produção textual, principalmente em decorrência dos exames a que eles se submetem ao final do ano letivo. O trabalho aqui apresentado adotou a pesquisa qualitativa conhecida como pesquisa-ação, de natureza social-empírica, associada à resolução de um problema coletivo em que o pesquisador participa de forma cooperativa (THIOLLENT, 1995; MORIN, 2004). A característica peculiar da pesquisaação reside no fato de ter como finalidade a mudança, a transformação da realidade. A pesquisa por nós desenvolvida realizou-se em situações reais de ensino, com o professor-pesquisador intervindo e atuando na prática pedagógica (THIOLLENT, 1995; MORIN, 2004). Deste modo, para sua realização, foram gerados textos do gênero Artigo de Opinião, por ser um gênero muito frequente nos exames vestibulares da Universidade Federal da Grande Dourados, universidade próxima à localidade onde foi efetivada a pesquisa. A metodologia da pesquisa aqui delineada ocorreu da seguinte forma: geramos, por meio de uma produção inicial, uma produção escrita pelos discentes a partir da temática- As cotas para negros nas universidades públicas. Como o objetivo de nosso primeiro encontro foi o de fazer uma apresentação da situação10 e ter a produção inicial para diagnosticar as reais dificuldades dos alunos na escrita de artigos de opinião, a proposta sobre cotas foi por nós sugerida, já que, por ser polêmica, poderia suscitar opiniões controversas. 10
O estudante deveria produzir um Artigo Opinativo acerca da temática para ser lido pelos colegas de classe, pelo professor e, posteriormente, à intervenção do professor-pesquisador, ser publicado num blog da escola.
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Os demais temas trabalhados na SD foram sugeridos pelos alunos (como, por exemplo, o tema Preservação Ambiental, escolhido em votação). Após a produção inicial, aplicamos a SD do gênero artigo de opinião, produzida a partir do mapeamento das dificuldades demonstradas pelos estudantes. Embora o detalhamento das dificuldades dos alunos tenha sido cuidadosamente observado, foi somente com o decorrer da aplicação da SD que pudemos ter uma melhor posição diante das reais dificuldades dos alunos. Na próxima seção, faremos a análise de parte do corpus11, já que as produções do Modelo Didático e da SD não serão objeto analítico. Convém esclarecer que, em virtude da impossibilidade de trazer a análise de todas as produções, trouxemos apenas a produção inicial, a segunda e a produção final de um aluno e os quadros de monitoramento das capacidades de linguagem e das capacidades de gerenciamento enunciativo e de modalizações. 3. Análise e interpretação de produção escrita representativa do corpus 3.1. Início do monitoramento: diagnóstico das produções O critério para a escolha dos itens analisados refere-se à necessidade de desenvolvimento de capacidades de linguagem desenvolvidas durante a aplicação dos módulos da SD e, depois de mapeadas as dimensões ensináveis do gênero: capacidades acionais, discursivas e linguístico-discursivas do gênero Artigo de Opinião, tal como defendem Schneuwly & Dolz (2004). Fizemos o monitoramento das capacidades em quadros que servem como catalisadores (SIGNORINI, 2006) das ações docentes futuras. Seguem a 1ª, 2ª e última versão12 do texto do aluno A613, para suas respectivas análises. 11
Para os interessados em fazer a leitura completa do trabalho, encaminhamos o link de acesso à pesquisa: http://www.ufgd.edu.br/facale/mestrado-letras/dissertacoes-defendidas 12 Ainda que todas as versões desta produção tenham sido apresentadas, para este trabalho, por questões de espaço, faremos a análise apenas da versão inicial e da final. 13 A escolha por esse aluno, neste artigo, se deu de forma aleatória. Ao total, participaram da pesquisa 16 alunos. Para a análise do corpus, geramos em torno de 30 (trinta) produções textuais que correspondem à produção inicial, segunda versão e produção final dos alunos.
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Produção inicial de A6 As cotas As cotas são uma polêmica, há aqueles que concordam e os que discordam. Mas as cotas para negros não é corrretas pois dizem que somos todos iguais perante a lei. Então para que essas cotas? Será que não é eles mesmo que estão mostrando racismo, discriminação? Eles estão mostrando que os negros não tem capacidade de passar sem essas cotas. Derepende há uma pessoa que vez mais ponto que um negro, mas ele perde sua chance de estudar porque tem as cotas. Eles tem a mesma chance de estudo que um branco pobre. Então eles de deveriam se esforça para consegui a sua vaga e crescer na vida. Mais não, na maioria das vezes eles passam sem esforço nenhum. E nós que lutamos a vida toda, estudando em escola públicas perdemos nossa chance de ser alguém na vida. Na minha opinião deve existir tantos porcentos para aqueles que estudou em escola publica e tantos por centos para aquele que estudou em escola particular. Sem cotas para negros. 2ª produção- A6 Cotas para negros e sua polêmica As cotas para negros em universidades públicas no Brasil vem sendo uma grande polêmica. Há muitas pessoas que aprovam, mas há também aqueles que não aprovam. Será que essa cota para negro é mesmo certa? Será que não é uma injustiça para com os outros?
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Como poder ser correta se na constituição dizem que somos todos iguais perante a lei, e na bíblia somo iguais perante a lei de Deus, que não distingue raça, cor ou religião. Como pode ser correta se há alunos brancos que estudam em escola públicas assim como os negros. Muitas das vezes há pessoas que não é negra de cor, mas fala que é e entra na universidade através das cotas, pois fala que seu avó era negro e não tem como se provar ao contrário. Será que não foi o governo brasileiro que se mostrou racista com essas cotas? Enfim, será que essas cotas não é uma verdadeira injustiça? Seria o certo termos cotas para alunos de rede públicas. E não cotas para separa a cor de pele um dos outros.
versão e produção final dos alunos. Produção final de A6 Cotas para negros e sua polêmica As cotas para negros em universidades públicas no Brasil são uma polêmica. Há muitas pessoas que aprovam esse sistema, pois elas dizem que os negros têm menos chance de emprego e de estudo, mas há também aqueles que desaprovam, pois dizem que somos todos iguais e eles têm a mesma chance que qualquer outro. Será que essa cota para negro é mesmo certa? Será que não é uma injustiça para com os outros? Como esse sistema pode ser correto se na constituição diz que somos todos iguais perante a lei, e na bíblia somos iguais perante a lei de Deus, que não distingue raça, cor ou religião? Como pode ser correta se há alunos branos que estudam em escolas públicas assim como os negros? Muitas das vezes pessoas dizem que tem o sangue de negro, mas sua cor é branca e assim conseguem entrar nas universidades por meio das cotas. Desse modo, o governo brasileiro vem se mostrando racista por adotar esse sistema.
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Enfim, deveríamos ter cotas para alunos da rede pública sem distinguir raça, cor ou religião, pois assim teríamos justiça com as outras pessoas que não são negras.
De forma geral, o texto da versão inicial não obedece à estabilidade relativa do gênero artigo de opinião, principalmente por não haver argumentos em sua “tomada de posição” – contra as cotas para negros nas universidades públicas. Além disso, não está inserido no contexto de produção– o aluno não estava atento aos destinatários e ao objetivo ao escrevê-lo. Pudemos elencar sérios problemas encontrados na primeira e na segunda versão presentes na modalidade escrita; c) problemas de regência e concordância; d) vocabulário escasso, impreciso e inadequado; e) baixo grau de informatividade; f) existência de informações não válidas para a defesa de sua posição; g) distorções semânticas;); h) uso inadequado das normas da língua escrita para a situação de comunicação. Da produção inicial para a final, podemos observar diversas melhorias no que diz respeito às capacidades desenvolvidas durantes a aplicação da SD do gênero trabalhado, como poderemos observar nos quadros de monitoramento. A seguir, faremos o monitoramento das capacidades de ação, discursivas, linguístico-discursivas, incluídos nessas o quadro de gerenciamento enunciativo e de modalizações. O quadro14 a seguir refere-seao monitoramento das capacidades de ação.
14
Os quadros utilizados na pesquisa foram baseados em Gonçalves & Nascimento (2010).
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Capacidades de Ação Aspectos Analisados
Produção Inicial
Produção Final
O produtor (aluno) se posiciona como sujeito da ação de linguagem ou apenas repete estereótipos para responder às expectativas da instituição escolar? O texto constitui “redação escolar”?
O estudante responde à expectativa escolar; texto constitui redação escolar15.
O estudante continua respondendo à expectativa escolar; texto é redação escolar.
O gênero está adaptado a um destinatário, a um conteúdo e a um objetivo específicos?
Não exerce papel social de agente-produtor. Seu papel é o de aluno que escreve redação escolar.
Prevalece o papel do aluno que escreve para a instituição escolar.
Quadro 3: Monitoramento das capacidades de ação do gênero No tocante às capacidades de ação, os quadros de monitoramento nos permitem concluir que não houve avanços significativos. O aluno continua respondendo à expectativa escolar (o texto apresentado assemelha-se à dissertação), ou seja, seu texto foi escrito para a instituição escola e o aluno não exerce eficazmente o papel social de sujeito-produtor. Nesse sentido, estamos avaliando se o aluno produziu um texto do gênero artigo de opinião que esteja destinado a um leitor múltiplo. Como o objetivo específico dos alunos na tarefa de redigir esse gênero é o de convencer um leitor diante de uma tomada de posição sobre uma problemática social, a professora-pesquisadora avaliou a pertinência desse texto diante de tal objetivo16. Podemos associar o não desenvolvimento das capacidades de ação às poucas atividades da SD que efetivamente contemplaram a habilidade em 15
Geraldi (1996) define a redação escolar como um momento de artificialidade da língua. Trata-se de textos produzidos para a escola, ou seja, atendendo à expectativa escolar (escrever para ganhar nota, ou simplesmente porque consta no currículo escolar). Ao produzir textos para a escola, o aluno produz algo que não é decorrente de uma real necessidade, mas uma imposição daquele contexto. 16 É importante ressaltar, entretanto, que não foi somente a professora quem lia e avaliava os textos escritos pelos alunos. Houve a troca dos textos para que um aluno avaliasse o texto do colega e vice-versa. Além disso, os textos, ao encerramento do “projeto” foram divulgados para os demais alunos na escola, assim como para a coordenação e a direção.
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tal capacidade. Das 76 atividades propostas nos seis módulos da SD por nós trabalhada, apenas 9 se referem às capacidades de ação. A capacidade discursiva foi a mais trabalhada nos módulos: 37 atividades. Referindo-nos às capacidades linguístico-discursivas, 29 atividades contemplaram essa capacidade. Além disso, associamos, também, ao curto período de tempo para desenvolvermos esse “projeto” e ao enraizamento das questões relativas à produção textual na escola: o aluno, em geral, escreve para a escola, para o professor muitas vezes único leitor do texto do aluno; não há uma função específica para a atividade de produção. Com o número limitado de aulas propostas para o desenvolvimento desse trabalho, verificamos que não pudemos mudar substancialmente essa realidade. Entretanto, não deixamos de conjecturar a possível deficiência da SD, em termos quantitativos por capacidades de linguagem. Passemos, agora, ao quadro de monitoramento das capacidades discursivas. Capacidades discursivas Aspectos analisados: presença de elementos do gênero artigo de opinião
Produção Inicial
Produção Final
1-Explicita tomada de posição sobre a questão controversa no início do texto do tipo “a favor” ou “contra”. 2-Quantidade de argumentos para justificativa do ponto de vista.
Há tomada de posição no final do texto: “Sem cotas para negros”.
Prevalece a tomada de posição da produção inicial.
Há apenas um argumento (mal desenvolvido): “somos todos iguais perante a lei”.
3-Leva em consideração o ponto de vista dos opositores, apresentando contra-argumentos.
Não há contraargumentos.
Há três argumentos (pouco desenvolvidos): a Constituição e a Bíblia; a distribuição das cotas para alunos de escolas públicas e a questão cor da pele vs. raça. Há indício de contraargumento: “Há muitas pessoas que aprovam esse sistema, pois elas dizem que os negros têm menos chance de emprego e de estudo”.
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251 4-Quantidade de contraargumentos efetivamente refutados. Há refutação e negociação? 5-Estratégias complexas de convencimento por inserir: a) apelo à voz de autoridade; b) explicação ou comentário sobre o discurso citado; c) apresentação de informações e dados da realidade pertinentes ao tema; d) o autor demonstra preocupação em apresentar hierarquicamente os argumentos. 6-O texto expõe e explica uma realidade muito mais que defende ponto de vista sobre ela. 7-Há argumento solto, desconectado. 8-Apresenta conclusão que reforça o ponto de vista apresentado.
Texto sem refutação e negociação.
Há negociação embrionária: “deveríamos ter cotas para alunos da rede pública sem distinguir raça, cor ou religião”.
a) Não há.
a) Há a voz da Constituição e do livro sagrado; b) Há um pequeno comentário (como as cotas podem ser corretas se a bíblia e a constituição dizem que somos todos iguais?). c) Há: a dificuldade para definir um negro e disponibilizar as cotas para os menos favorecidos. d) Sim.
b) Não há. c) Não há.
d) Só há um argumento.
O aluno não consegue mostrar a realidade de forma eficaz ao autor.
Há “embrião” de ponto de vista.
Não, porque o texto apresenta um único argumento. Texto sem conclusão.
Não. Há conclusão.
Quadro 4: Monitoramento das capacidades discursivas
Quanto às capacidades discursivas houve, de forma geral, avanços significativos. O aluno mantém a tomada de posição da versão inicial e, em defesa de seu ponto de vista, elabora três argumentos de forma hierárquica17 (na versão inicial há dois argumentos pouco desenvolvidos). No que se refere às estratégias complexas de convencimento, observamos que a versão final apresenta apelo à voz de autoridade, comentário sobre o discurso citado, 17
Acreditamos que uma boa hierarquização consiste na apresentação de argumentos que seguem um raciocínio lógico e direciona o leitor para a crença de sua “verdade”, favorecendo a adesão do leitor a respeito de sua tomada de posição. A hierarquização se caracteriza pela progressão temática(um argumento se encadeia em outro, permitindo que estejam conectados um ao outro; o texto vai, aos poucos, acrescentando novas informações ao leitor).
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além de informações e dados da realidade pertinentes ao tema. Na versão final, o aluno expõe e explica a realidade em vez de defender um ponto e vista; na versão final, há um ponto de vista, ainda que embrionário. O texto também passa a ter conclusão somente na versão final. Passemos ao quadro de monitoramento das capacidades linguísticodiscursivas. Capacidades linguístico-discursivas Aspectos analisados: mecanismos linguísticos
Produção Inicial
Produção Final
1- Presença de expressões que introduzem argumentos e evidencia tomada de posição.
Há: “mas” e “será” no 2º parágrafo.
Prevalece o uso do “será”; o aluno introduz o “como”, no 3º parágrafo e o “desse modo”, no 6º, evidenciando sua tomada de posição.
2-Retomadas anafóricas por referente inadequado.
Há: “eles mesmo”, no 2º parágrafo.
Não há.
3-Pontuação inadequada ou insuficiente.
Pontuação insuficiente em várias partes do texto.
Pontuação satisfatória.
4-Paragrafação inadequada.
Paragrafação insatisfatória: períodos curtos e mal desenvolvidos
Paragrafação satisfatória: apresentação de tese, argumentos e conclusão.
Quadro 5: Monitoramento das capacidades linguístico-discursivas (A6) Em se tratando das capacidades linguístico-discursivas, houve melhor desempenho do aluno na produção final. As retomadas anafóricas remetem ao referente adequado; além disso, na versão final, o aluno soube pontuar de modo adequado, além de utilizar expressões que evidenciam sua respectiva tomada de posição. 3.2. Monitoramento das capacidades de gerenciamento enunciativo e de modalizações O quadro a seguir apresenta dados do monitoramento das capacidades de gerenciamento enunciativo18 e de modalizações demonstradas na 18
Os mecanismos enunciativos contribuem para a manutenção da coerência pragmática do texto,
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produção inicial e final. Aspectos analisados: vozes e modalizações
Produção inicial
Produção final
Há polifonia das vozes sociais valorizadas na instituição escolar.
Apenas polifonia valorizada pelo discurso escolar19.
Retiradas das vozes escolares.
Há polifonia das vozes sociais valorizadas fora da escola?
Não há.
Sim (a Constituição)
Há modalizações marcando a presença do enunciador?
Há: “dizem”; “e nós que lutamos a vida toda [...]” e “na minha opinião”.
Há: “se somos todos iguais”; “o governo brasileiro vem se mostrando racista”; deveríamos ter cotas para [...]”.
Quadro 6: Capacidades de gerenciamento de vozes e de modalizações Embora seja o autor quem assuma ou se posicione em relação ao que é enunciado, há diferentes vozes expressas em um texto. Segundo Bronckart (2003, p. 326), “as vozes podem ser definidas como as entidades que assumem (ou às quais são atribuídas) a responsabilidade do que é enunciado”. Apesar da evidente melhoria na versão final, não há, nas versões analisadas, vozes sociais implícitas no texto; apenas aquelas valorizadas pela instituição escolar. O aluno utilizou vozes da coletânea de textos da SD (a Constituição Federal, por exemplo), entretanto não utilizou outras vozes valorizadas fora da escola (como por exemplo, a voz de autoridades, instituições e especialistas que falam sobre o assunto). A ausência dessas vozes pode estar associada à falta de leitura e/ou acesso a outras fontes de informações– adequadas e confiáveis– que enriqueceriam suas produções. Quanto às modalizações, os alunos as mantêm nas duas versões dos assim como para o esclarecimento dos pronunciamentos enunciativos e traduzem as diversas avaliações sobre alguns aspectos do conteúdo temático (BRONCKART, 2003) 19 Estamos considerando como traços da polifonia valorizada pela escola, o fato de o estudante trazer apenas o Governo, a Escola para culpabilizá-los.
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textos, possibilitando ao leitor perceber a presença do enunciador, que se posiciona e avalia comentários e avaliações do conteúdo temático. Trata-se de modalizações lógicas, que como afirma Bronckart (2003, p.330). [...] consistem em uma avaliação de alguns elementos do conteúdo temático, apoiada em critérios (ou conhecimentos) elaborados e organizados no quadro das coordenadas formais que definem o mundo objetivo, e apresentam os elementos de seu conteúdo do ponto de vista de suas condições de verdade, como fatos atestados (ou certos), possíveis, prováveis, necessários etc. [...].
É a partir delas que percebemos o quanto os alunos se posicionam diante da polêmica discutida nos textos. Como pontua Bronckart (2003), a frequência e/ou a ausência das modalizações parece estar relacionada ao gênero a que pertence o texto e não aos tipos de discurso. No caso do gênero artigo de opinião, as modalizações são mais frequentes por tratar-se de um gênero cujo conteúdo temático é, quase sempre, objeto de debate, de discussão, de polêmica e, portanto, de avaliações. 4. PALAVRAS FINAIS Nosso trabalho procurou validar que o ensino por meio de SD, aliado à correção textual-interativa e às listas de controle, favorece o ensino dos gêneros textuais no ambiente escolar. Acreditamos que o trabalho com os gêneros textuais/discursivos deve ser feito de forma sistemática, aliado a ferramentas semióticas (SD, correção textual-interativa, listas de controle) que favoreçam a proficiência dos alunos na produção/leitura dos gêneros. Nesse sentido, a SD constitui, para os professores, uma ferramenta de ensino que permite mapear as dificuldades dos alunos e trabalhar as capacidades de linguagem de acordo com suas necessidades. Ao trabalharmos com a SD do gênero artigo de opinião, pudemos constatar a melhoria da escrita dos alunos, principalmente, no que diz respeito às capacidades discursivas. As SDs aliadas à metodologia de correção textual-interativa e às listas de controle, poderão servir de exemplo para os professores de LP e
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constituir excelentes ferramentas para o ensino dos gêneros textuais. Tal como Dolz, Gagnon & Decândio (2010, p. 100), acreditamos que , para escrever o futuro e ensinar a escrevê-lo, é preciso construir ferramentas. As que foram aqui apresentadas são exemplos de que é possível pensar em novas estratégias de ensino que favoreçam o ensino dos gêneros no ambiente escolar20. Nascimento & Cristóvão (2006, p. 47) ressaltam que [...] o domínio dos gêneros se constitui como instrumento que possibilita aos agentes produtores e leitores uma melhor relação com os textos, pois, ao compreender como utilizar um texto pertencente a um determinado gênero, pressupõese que esses agentes poderão agir com a linguagem de forma mais eficaz, mesmo diante de textos pertencentes a gêneros até então desconhecidos.
Para que a produção textual deixe de ser um problema para professores e alunos, dentre alternativas, é necessário que a escola ofereça ao aluno o contato com um universo textual amplo e diversificado, criando condições para que a aprendizagem dos gêneros se dê desde os primeiros anos de escolaridade. Além disso, é indispensável que a escola entenda a escrita como processo. A tarefa de produção textual deve ter como objetivo formar produtores de textos que planejem, escrevam, revisem e reescrevam. O texto do aluno deve ser o ponto de partida: seus erros nortearão sua aprendizagem; é por meio deles que os professores reconhecerão suas dificuldades e procurarão saná-las. Acreditamos, ainda, que, apoiados em tais ferramentas teóricometodológicas, os professores podem repetir o percurso deste trabalho – produção inicial, intervenção por meio de SD, produção final, correção textual-interativa aliada às listas de controle– a fim de obterem resultados positivos com relação às capacidades de linguagem desenvolvidas pelos alunos. Diante disso, esperamos que esse trabalho, além de poder servir de referência para outros trabalhos que priorizem as ferramentas didáticas para 20
Muitas outras pesquisas sobre ferramentas didáticas e ensino têm sido divulgadas, como por exemplo, Schneuwly & Dolz (2004), Nascimento & Cristóvão (2006), Gonçalves (2007), etc.
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o ensino dos gêneros textuais/discursivos, impulsione os professores de LP a fazer uso dessas ferramentas de ensino no ambiente escolar, visando sempre à melhoria da qualidade do ensino de Língua Portuguesa. REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Trad. por M. E. Galvão Gomes. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [1929]. ___________ (VOLOCHÍNOV, V.N.). Marxismo e Filosofia da linguagem. Trad. de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1997 [1929]. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental – Língua Portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998. BRITO, P. L. Em terra de surdos-mudos – um estudo sobre as condições de produção de textos escolares. Trabalhos em Linguística Aplicada. Nº 2, UNICAMP, 1983.COSTA VAL, M. G. Redação e Textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 1991. BRONCKART, J. P. Atividades de linguagem, textos e discursos. Por um interacionismo sociodiscursivo. São Paulo: Educ, 2003. BUIN, E. O impacto do bilhete do professor na construção do sentido do texto do aluno. In: SIGNORINI, I.(Org.) Gêneros Catalisadores: letramento & formação do professor. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. COSTA VAL, M.G. Redação e Textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 1991. DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B. La réécriture dans le séquences didactiques pour l`expression écrite. Résonances, 2001. ______.; GAGNON, R.; DECÂNDIO, F. Produção escrita e dificuldades de aprendizagem. Trad. de Fabrício Decândio e Anna Rachel Machado. Campinas: Mercado de Letras, 2010. GARCEZ, L. H. C. A escrita e o outro: os modos de participação do texto. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.
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METAS DE QUALIDADE E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE: ANÁLISE DA PRODUÇÃO DE SENTIDO EM UM DECRETO PRESIDENCIAL QUALITY TARGETS AND DETERIORATION OF TEACHER’S WORK: ANALYSE OF MEANING PRODUCTION IN A PRESIDENTIAL DECREE Bruno Deusdará Universidade do Estado do Rio de Janeiro RESUMO Considerando as críticas e as queixas ao distanciamento das políticas públicas e o cotidiano escolar, problematizo a produção / circulação de expectativas sobre o trabalho do professor. O foco recai sobre as metas do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE). A esse respeito, pergunto: que imagem discursiva é possível depreender das tarefas atribuídas ao professor nas metas e as estratégias de poder instauradas pelo PDE? Como quadro teórico, recorremos à noção de prática discursiva (MAINGUENEAU, 1997), segundo a qual a produção de textos é simultânea à produção de uma comunidade de sustentação desses textos. Palavras-Chave: análise do discurso; prática discursiva; trabalho docente; Plano de Desenvolvimento da Educação - PDE. ABSTRACT Considering the criticisms and complaints about the gap between public policy and formal educational, we discuss the production / circulation of expectations about teacher’s work. We focus on the goals of the Plan for Educational Development (PED). We ask ourselves: which discursive image can be inferred from the tasks assigned to the teacher in the goals and strategies of power introduced by the PED? The theoretical perspective is based on the concept of discursive practice (MAINGUENEAU, 1997), which implies texts generation simultaneously with the production of a discursive community. Keywords: Discourse analysis; discursive practice; teacher´s work; Plan for Educational Development.
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INTRODUÇÃO Dado o considerável impacto midiático ao Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), bem como às diversas referências à mobilização por “qualidade”, protagonizadas por diferentes atores sociais, tem-se a produção de um aparente consenso em torno dos sentidos atribuídos à qualidade no campo da Educação. Neste artigo, problematizo a produção de sentido sobre o trabalho docente por meio da análise discursiva do decreto no 6.094, de 27 de abril de 2007 que dá corpo (juntamente com outros quatro decretos – todos editados no mesmo dia), ao PDE. O aparente consenso construído em torno do PDE não deixa de impulsionar questionamentos acerca do quadro atual de lutas na educação: embora tratando de aspectos distintos e chegando a propor soluções contraditórias, estariam todos esses textos tematizando um único e mesmo “assunto”? Que vínculos haveria entre os eventos que ganham estatuto de “assunto” e os textos nos quais são abordados? Viriam esses textos apenas contar o que acontece fora deles e independente de sua circulação? Com efeito, a análise pretendida aqui põe o foco sobre o trabalho do professor a partir das práticas de linguagem que viriam instituir uma intensa produção / circulação de textos em torno das lutas pela qualidade na educação, qual seja o decreto presidencial que estabelece metas do PDE. A esse respeito, é preciso ainda acrescentar que os questionamentos anteriormente apresentados indicam o tipo de abordagem a ser adotado, a saber, perspectiva discursiva segundo a qual a relação entre os eventos e os enunciados que pretendem tematizá-los se caracteriza por uma dinâmica de engendramentos mútuos. O que se interroga aqui são as premissas, já há muito objeto de polêmicas no pensamento ocidental, que pretendem sustentar o caráter fortemente representacional das práticas de linguagem frente aos eventos tomados como seus referentes. Antes de distinguir existência prévia dos eventos e sua posterior abordagem em textos, situome entre os que ressaltam no vínculo entre textos e instituições que os geram uma dinâmica de engendramentos simultâneos. Assim sendo, ao lado das análises acerca da produção de sentido sobre o trabalho docente, meu projeto, neste texto, reside ainda em evidenciar que o trabalho de análise com noções como as de prática discursiva (MAINGUENEAU, 1997) e de gêneros do discurso (BAKHTIN, 2000) podem
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se constituir como contribuições importantes no sentido de afirmar uma dinâmica de coprodução entre o plano linguístico e o social. 1. Contextualização do Plano de Desenvolvimento da Educação: recuperando polêmicas em torno da precarização da escola pública A opção pelo referido decreto se justifica por argumentos que remetem tanto ao contexto sócio-histórico de sua emergência, quanto a aspectos linguístico-discursivos. No que tange à contextualização sócio-histórica, cabe destacar que o PDE se refere ao conjunto de programas em execução pelo Ministério da Educação (MEC). Enumeramos a seguir os decretos e suas temáticas correspondentes: 1) Decreto no 6.093, de 27 de abril de 2007: propõe “a reorganização do Programa Brasil Alfabetizado, visando a universalização da alfabetização de jovens e adultos de quinze anos ou mais, e dá outras providências”; 2) Decreto no 6.094, de 27 de abril de 2007: Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação; 3) Decreto no 6.095, de 27 de abril de 2007: “estabelece diretrizes para o processo de integração de instituições federais de educação tecnológica, para fins de constituição dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia – IFET, no âmbito da Rede Federal de Educação Tecnológica”; 4) Decreto no 6.096, de 27 de abril de 2007: “institui o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – REUNI”. Dessa forma, o decreto no 6.094, de 27 de abril de 2007 é apenas um dos quatro que compõem o PDE. Ressalto ainda a ampla divulgação favorável ao anúncio do PDE na grande imprensa e por meio de pronunciamentos diversos de concordância por parte de certas organizações dos movimentos sociais. A diversidade considerável de textos produzidos em torno do PDE acaba por configurar certo modo de difusão dos textos, propondo as leis, decretos e demais documentos oficiais como fonte e os textos de
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mídia e pronunciamentos dos diversos atores sociais como comentadores dos anteriores. Esse modo de difusão dos textos torna-se então mais um elemento a ser levado em conta na opção pela análise discursiva do decreto. Ou seja, o decreto emerge como “fonte” dos sentidos que serão divulgados e circularão em outros espaços, a exemplo da mídia e do cotidiano escolar. Outro aspecto de ordem histórica, que justificaria a opção pelo decreto em questão, reside em o estabelecimento do PDE não fazer qualquer referência ao Plano Nacional de Educação em vigência, sancionado no final do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Com isso, frustraram-se as expectativas de revisão do PNE e derrubada dos vetos do então presidente. A aposta do movimento social organizado na derrubada dos vetos e, com eles, na revisão do papel do Estado frente à Educação nacional não se confirmou no primeiro mandato do governo Lula, tal como constava em seu programa de governo intitulado “Uma escola do tamanho do Brasil”. Os contornos desse programa de governo se desenham a partir de linhas que compõem os discursos de esquerda, com caráter reivindicatório, fazendo ver ainda elementos da retórica neoliberal, tal como a ênfase na “avaliação de desempenho” e valorização do “mérito” dos profissionais: A avaliação do desempenho profissional deve estar ligada às políticas nacionais de formação, de aperfeiçoamento, de atualização pedagógica e curricular. Deve estar voltada para a melhoria contínua do sistema, valorização profissional e retomada da auto-estima do corpo docente, sobretudo nas condições atuais do sistema público de ensino fundamental e médio (PALOCCI et al, 2002, p. 12) Anuncia-se a avaliação de desempenho, dispositivo afeito à lógica neoliberalizante de estimulação e controle, como mecanismo atuando em favor da valorização profissional. Fala-se, em consonância com tal perspectiva, em “autoestima”. A respeito do financiamento das instituições públicas de ensino superior, o referido programa de governo afirma em referência explícita aos vetos de FHC:
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As propostas de ação do governo Lula para superar a grave situação educacional atual devem estarem (sic) em consonância com as reivindicações da sociedade civil organizada nos avanços políticas feitos no âmbito do Congresso Nacional quando da aprovação ao Plano Nacional de Educação (PNE) Uma das ações prioritárias do governo Lula nessa direção será reexaminar os vetos do presidente Fernando Henrique ao PNE, criando as condições para que através do esforço conjunto da União, Estados, Distrito Federal e municípios, o percentual de gastos públicos em educação em relação ao PIB sejam elevados para o mínimo de 7% no período de dez anos (PALOCCI et al, 2002, p. 29). Como o próprio programa de governo de Lula indicava, há polêmicas explícitas em torno do veto de FHC ao PNE. Tais polêmicas foram tratadas como manifestando duas visões distintas em relação ao papel do governo na promoção de políticas públicas para a Educação. A derrubada dos vetos tornou-se bandeira das lutas estratégicas contrárias à vitória implacável do neoliberalismo. Considerando a produção / circulação de um conjunto bastante diversificado de textos em torno desse debate, é possível ver na emergência do PDE como política prioritária um silenciamento frente aos vetos. O papel do analista do discurso residiria exatamente em procurar restabelecer as polêmicas, evidenciando os contextos de aparecimento e circulação de tais textos. 2. A noção de prática discursiva em questão: “coengendramento” entre linguagem e mundo Até aqui, propus uma contextualização do decreto que institui o “Plano de Metas Compromisso ‘Todos pela Educação”, procurando destacar não apenas contornos de um horizonte sócio-histórico mais geral, mas também investindo em pistas que permitam recuperar pontos polêmicos presentes no próprio ato de enunciação do referido decreto, bem como o agenciamento que tal texto estabelece com outros textos.
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Neste item, interessa-me sustentar que não apenas forças “exteriores” contribuem para a emergência de certos textos, como os próprios textos, em seu aparecimento e circulação, também colaboram com a produção de mundos. O problema a ser desenvolvido é o do “coengendramento” entre linguagem e mundo, considerando a análise dos efeitos de sentido discutidos a partir do decreto em questão. Tal problema remete à obra de D. Maingueneau, segundo o qual a noção de prática discursiva indica que “(...) a instituição discursiva possui, de alguma forma, duas faces, uma que diz respeito ao social e a outra, à linguagem” (MAINGUENEAU, 1997, p. 55). A respeito do debate que ora proponho, há iniciativas como as que tenho visto em certa abordagem da Psicologia Social que me servem de inspiração. Sem dúvida, a observação que segue me parece desafiadora: Numa postura indiferente às novidades trazidas pelo pragmatismo contemporâneo, a linguagem é tratada nas pesquisas como conjunto de regras gerais ou como evento com pequena expressão empírica, e, assim, descaracterizada como fato, não pode se apresentar em relação de continuidade com o mundo dos fatos, lugar das transformações. A separação entre linguagem e vida elimina dos signos tanto a função de agente de mudanças quanto sua historicidade interna (TEDESCO, 2008, p. 43). É bastante tentador considerar que a ênfase excessiva na organização das sentenças possa nos levar a uma dicotomia entre linguagem e vida. Ou seja, o destaque absoluto das expressões frente a seus contextos de uso nos conduz ao risco de apaziguar um potencial transformador dos atos de linguagem. Antes de apenas “reapresentar” o mundo através de suas estruturas, a linguagem parece inevitavelmente colaborar com a produção dos eventos que tematiza. Se é verdade que a indicação de certa Psicologia Social, para me ater à citação de apenas um exemplo desse tipo de interesse aqui, soa como desafiadora, parece lícito apontar que, mesmo nos marcos da linguística, há abordagens viabilizando um trabalho de análise capaz de rever fronteiras
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bem marcadas entre o linguístico e seu entorno. Com efeito, tais contribuições podem ser atribuídas, entre outras, a uma Análise do Discurso de base enunciativa. Considera-se, dessa forma, que conceitos como o de prática discursiva (MAINGUENEAU, 1997) podem abrir caminhos semelhantes. Tal conceito emerge na obra de Dominique Maingueneau como tentativa de rever o modo como até então vinham sendo articuladas as noções de formação discursiva e comunidade discursiva. Eis um comentário imprescindível concernente ao aparecimento e consolidação da noção de prática discursiva na obra do referido autor: A partir de então, o que se revela efetivamente insuficiente é o conceito de formação discursiva, pelo fato de não conseguir dar conta das duas vertentes implícitas na atividade discursiva. Assim, a noção de formação discursiva estará referida tão-somente à face textual do discurso, sendo a outra face – sua face social – designada através do conceito de comunidade discursiva. Da formação discursiva à prática discursiva, portanto, um salto qualitativo na formulação teórica do autor: a inclusão da dimensão institucional, cuja produção se encontraria submetida às mesmas coerções que regulam os enunciados (ROCHA, 1997, p. 52). Tal avanço identificado na obra de Maingueneau se justificaria, uma vez que “o conceito de prática discursiva se apresenta como indicativo de uma certa propriedade do discurso, que consistiria em remeter simultaneamente a essa dupla produção [de textos e de um complexo institucional]” (ROCHA, 1997, p. 51). Esse conceito servirá como eixo teórico do trabalho de análise que passo a apresentar nos itens que seguem. 3. Caracterização do decreto como gênero do discurso Na caracterização da enunciação do decreto a seguir, ao lado dos traços já destacados anteriormente acerca dos discursos, utilizo-me da noção de gêneros do discurso, tal qual se apresenta formulada por Bakhtin (2000) e desdobrada por Maingueneau (2001). Trata-se de considerá-la como noção operatória para o tipo de análise indicado no item anterior.
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Como “tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2000, p. 334), os gêneros do discurso oferecem os contornos a partir dos quais é possível enunciar sem que se tenha sempre que reinventar essas formas. Ao mesmo tempo, sua estabilidade é relativa, acentuando, de um lado, a circunscrição sócio-histórica dessas formas e, de outro, a provisoriedade a cada vez que tal gênero é atualizado, numa identidade em constante processo de refeitura. Se pensarmos nos critérios propostos por Maingueneau (2001), seria preciso indicar os parceiros da interação verbal, sua finalidade reconhecida, sua ancoragem espaçotemporal, sua organização textual e seu suporte material. Um decreto, em seu ritual jurídico previsto, possui um único enunciador autorizado – o Presidente da República –, que necessariamente se encontra em relação de superioridade hierárquica frente aos possíveis leitores do texto. No entanto, não é suficiente que seja assinado pelo Presidente. Ele não poderia assinar o texto e guardá-lo na gaveta, simplesmente mostrálo a outras pessoas, apresentá-lo em forma manuscrita a uma coletiva de imprensa, ou ainda publicá-lo, com ampla divulgação, em seu blog pessoal. É preciso que o referido texto seja encaminhado para publicação no Diário Oficial da União (DOU). Dessa maneira, além de um enunciador autorizado, é parte do ritual de expedição de um decreto um contexto específico de circulação: o DOU. Enunciador definido e contexto privilegiado de circulação, no entanto, não são as únicas duas condições para a existência jurídica de um decreto. O Presidente não pode dizer o que desejar através de um decreto. Há restrições de temas e assuntos a serem tratados, segundo a constituição federal. O que atravessa essas diferentes dimensões que o texto vai assumindo é sua estabilidade conforme as prescrições para textos de lei. Um enunciador definido, um modo de circulação indispensável, certa restrição de temas. No que tange à organização textual, destaca-se sua rigidez, evidenciando estar em consonância com os ritos e as prescrições da ordem constitucional vigente, fortalecendo traços como a “certeza” de realização daquilo que se promete através dele, desde que suas restrições sejam
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cumpridas por todos e cada um. Do ponto de vista textual, a presença do selo da República, o cabeçalho com referência aos seguintes órgãos “Presidência da República”, “Casa Civil”, “Subchefia para Assuntos Jurídicos” demonstram o cumprimento do ritual e enquadramento na ordem jurídica estabelecida, o número e a data de publicação do decreto. Abaixo desses elementos, há a ementa do texto que antecipa seu conteúdo: Dispõe sobre a implementação do Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, pela União Federal, em regime de colaboração com Municípios, Distrito Federal e Estados, e a participação das famílias e da comunidade, mediante programas e ações de assistência técnica e financeira, visando a mobilização social pela melhoria da qualidade da educação básica (BRASIL, 2007). Na sequência da ementa, o enunciador do texto assume a terceira pessoa, apresentando-se através do sintagma “O Presidente da República”, seguido da referência aos Artigos da Constituição Federal que asseguram sua autoridade legal para a expedição de decretos, além de artigos da mesma Constituição e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, relacionados com a matéria tratada nesse texto. Em destaque, o verbo “decreta” anuncia que o que segue é o conteúdo do decreto. O texto divide-se em quatro capítulos: “Do Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação”, “Do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica”, “Da Adesão ao Compromisso”, “Da Assistência Técnica e Financeira da União”. Apenas o quarto capítulo subdivide-se em duas seções: “Das Disposições Gerais” e “Do Plano de Ações Articuladas”. O primeiro capítulo, “Do Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação”, não obstante seja o mais extenso, comporta apenas dois artigos. No primeiro deles, define-se o Plano de Metas como a “conjugação dos esforços da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, atuando em regime de colaboração, das famílias e da comunidade, em proveito da melhoria da qualidade da educação básica” (BRASIL, 2007). No segundo artigo, apresentam-se vinte e oito “diretrizes” para a “participação da
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União no Compromisso” através de “realização direta” ou de “incentivo” e “apoio à implementação” por Municípios, Distrito Federal e Estados e “seus respectivos sistemas de ensino”. Conforme argumentarei a seguir, o modo de apresentação dessas “diretrizes” me faz considerar insinuarem-se duas cenas que se instituem em concorrência, quais sejam a de um decreto e a de um acordo assumido entre as partes de maneira voluntária. O segundo capítulo, “Do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica”, anuncia a aferição da qualidade da educação básica através do índice, apontando como instrumentos para essa verificação “dados sobre rendimento escolar” e de “desempenho dos alunos” extraídos do censo escolar, do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e do Prova Brasil. Além de pretender aferir dados que objetivam a qualidade da educação, o IDEB apresenta-se também como forma de controle a partir da qual se poderia verificar “o cumprimento de metas fixadas no termo de adesão ao compromisso” (BRASIL, 2007). O termo de adesão mencionado no parágrafo único do Artigo 3º será desdobrado nos quatro artigos que compõem o terceiro capítulo, “Da Adesão ao Compromisso”. Ao longo desses quatro artigos, apresenta-se a forma de participação no Plano de Metas: através do termo de adesão voluntária. O termo assumido por Municípios, Estados ou o Distrito Federal “implica a assunção da responsabilidade de promover a melhoria da qualidade da educação básica em sua esfera de competência” (BRASIL, 2007). Esses artigos tratam ainda da instituição do Comitê Nacional do Compromisso Todos pela Educação, ao qual cabe “colaborar com a formulação de estratégias de mobilização social pela melhoria da qualidade da educação básica, que subsidiarão a atuação dos agentes públicos e privados” (BRASIL, 2007). Está ainda no terceiro capítulo o controvertido artigo 7º que aponta a possibilidade de participação, dentre outros atores, de setores empresariais. O quarto capítulo, “Da Assistência Técnica e Financeira da União”, subdivide-se em duas seções. Na primeira delas, “Das Disposições Gerais”, trata do apoio “suplementar” e “voluntário” da União, orientado pela adesão ou não dos entes federativos ao compromisso e levado a cabo através de “assistência técnica ou financeira”. Na segunda seção, define-se o “Plano de Ações Articuladas” como “conjunto articulado de ações, apoiado técnica
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ou financeiramente pelo Ministério da Educação, que visa o cumprimento das metas do Compromisso e a observância das suas diretrizes” (BRASIL, 2007). De modo mais sintético, direi que, para expedir um decreto, é necessário que aquele que o faz tenha autoridade para tal, estabelecendo assim relação hierárquica com o destinatário. Um exercício assimétrico de relações de poder é o que pressupõe o decreto. Um decreto prevê “tomada de consciência”, “cumprimento dos preceitos legais”. No entanto, estamos diante de um decreto cujo objetivo é a “mobilização social”. Nele, fixam-se metas a serem cumpridas a partir de parceria entre o governo federal e os entes federativos. Dessa forma, ao lado da cena de um decreto, na qual a alguém é conferida a prerrogativa legal de sua enunciação e aos demais se espera o cumprimento do que vem estabelecido, parece anunciar-se um compromisso. No que concerne a um compromisso, não se prevê o mesmo grau de assimetria, isto é, a superioridade hierárquica de uma parte sobre a outra não é condição para o estabelecimento de um “pacto”. Mesmo que realizado entre interlocutores pertencentes a posição hierárquica distinta, em um “pacto”, ou em um “acordo” o que está em evidência é a vontade de participar dele. Considerando as tensões que emergem dessa descrição do decreto como gênero do discurso, passarei, no próximo item, à análise de seu artigo 2º, no qual as metas do “Compromisso Todos pela Educação” são apresentadas. 4. O Decreto 6.094 como Plano de Metas: a produção de imagens discursivas do trabalho docente em análise Neste item, privilegio a análise do artigo 2º do referido Decreto presidencial, considerando a importância das metas para o conjunto das propostas. Ressalto ainda que a análise das metas pode contribuir com a questão teórica que se pretende desenvolver no presente artigo: ao apresentar as metas para a educação pública, é inevitável que tal enunciação construa sentido a respeito daquilo de que trata, simultaneamente à configuração de certo lugar a partir do qual é possível enunciar sobre tal tema. Nas análises que seguem, parto de uma divisão das metas constantes
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no referido artigo, com o intuito de fazer ver que qualidade de ações seriam concebidas como de “realização direta” do poder público e que outras seriam apenas “incentivadas” pelo mesmo, cuja efetividade dependeria da participação de diferentes atores sociais, entre eles os profissionais. Tal proposta se deve ao fato de, no Artigo 2º, ao anunciar as “diretrizes” do Plano de Metas, falar-se em “realização direta”, “incentivo” e “apoio” a sua implementação. Minha suspeita é a de que a implementação de um Plano de Metas acaba por colaborar com uma espécie de “desobrigação” por parte dos governos em assegurar o exercício do direito à educação de qualidade. Fundamentalmente, tal desobrigação se daria a ver a partir deste decreto na tensão entre a cena da “imposição” e a da “adesão voluntária”. Teríamos assim a concorrência entre aspectos da ordem republicana com contornos de uma política de esquerda, na tradição de uma democracia participativa. Espera-se a participação de todos de acordo com os parâmetros definidos pelo Estado de regulação dos diferentes interesses. Ao proceder à divisão das metas tal como apresentado acima, observei que se faz referência a diversas atividades atribuídas aos professores, anunciadas como dadas, cujo foco se dirige não às condições de realização do trabalho, mas aos comportamentos de cada um dos profissionais, colaborando com leituras individualizantes da qualidade na Educação. Um levantamento inicial das metas me levou a propor sua divisão em três grupos, considerando os termos propostos pelo próprio decreto: no primeiro grupo, constam as metas de “realização direta” do poder público. No segundo, estão as metas que podem pressupor não só uma ação de governos, mas também, tal como são apresentadas, dirigir-se aos profissionais e demais atores sociais, seriam assim metas de “realização direta” ou fruto de “incentivo e apoio” apenas. No terceiro grupo, listam-se as metas somente incentivadas pelos governos, já que seriam parte de uma ação atribuída apenas dos profissionais da educação. A partir dessa caracterização dos grupos, as vinte e oito diretrizes do documento ficaram distribuídas da seguinte forma: no primeiro grupo, foram listadas onze metas, no segundo, constam dezesseis metas e, no terceiro, apenas uma. Como critério de distribuição das metas entre os grupos, destaco a
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ação verbal – associada ao complemento verbal, quando necessário – que abre cada uma das metas e procedo a uma atribuição de possíveis agentes para essas ações. A título de ilustração, apresentam-se algumas das metas de cada um dos grupos. Comecemos pelo primeiro grupo: XI - manter programa de alfabetização de jovens e adultos XIII - implantar plano de carreira, cargos e salários para os profissionais da educação, privilegiando o mérito, a formação e a avaliação do desempenho (BRASIL, 2007) Não é difícil reconhecer ações como “manter programa de alfabetização de jovens e adultos” e “implantar plano de carreira, cargos e salários” como tipicamente de iniciativa governamental. Já “matricular o aluno na escola mais próxima de sua residência” e “valorizar o mérito do trabalhador da educação” são ações que, à primeira vista, poderiam ter mais de um agente. Considero, no entanto, que tal qualidade de ações poderia ser assegurada apenas por intervenção governamental. Ou seja, para matricular um aluno é preciso que haja certo procedimento, autorização de vagas, entre outros aspectos que necessitam de iniciativa governamental. Alguém poderia também afirmar que “valorizar o mérito do trabalhador da educação” indica ação levada a cabo não apenas por instâncias governamentais. Seria preciso considerar, para isso, “valorizar” como remetendo a “reconhecer”. Entretanto, nos termos do documento, “valorizar” aqui é mais próximo de “instituir programa de valorização” tal qual tem sido a tônica de governos estaduais e municipais. Considerações dessa ordem me levaram a agrupar essa meta entre as do primeiro grupo: VI – matricular o aluno na escola mais próxima da sua residência XIV - valorizar o mérito do trabalhador da educação, representado pelo desempenho eficiente no trabalho, dedicação, assiduidade, pontualidade, responsabilidade, realização de projetos e trabalhos especializados, cursos de atualização e desenvolvimento profissional (BRASIL, 2007)
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Abaixo segue o quadro que organiza as onze metas cuja realização se pode atribuir restritamente aos entes federativos participantes do Compromisso: Tabela 1 – Lista de metas atribuídas apenas aos entes federativos VI – matricular o aluno na escola mais próxima da sua residência; IX - garantir o acesso e permanência das pessoas com necessidades educacionais especiais nas classes comuns do ensino regular, fortalecendo a inclusão educacional nas escolas públicas; XI - manter programa de alfabetização de jovens e adultos; XII - instituir programa próprio ou em regime de colaboração para formação inicial e continuada de profissionais da educação; XIII - implantar plano de carreira, cargos e salários para os profissionais da educação, privilegiando o mérito, a formação e a avaliação do desempenho; XIV - valorizar o mérito do trabalhador da educação, representado pelo desempenho eficiente no trabalho, dedicação, assiduidade, pontualidade, responsabilidade, realização de projetos e trabalhos especializados, cursos de atualização e desenvolvimento profissional; XV - dar consequência ao período probatório, tornando o professor efetivo estável após avaliação, de preferência externa ao sistema educacional local; XVIII - fixar regras claras, considerados mérito e desempenho, para nomeação e exoneração de diretor de escola; XXI - zelar pela transparência da gestão pública na área da educação, garantindo o funcionamento efetivo, autônomo e articulado dos conselhos de controle social; XXIII - elaborar plano de educação e instalar Conselho de Educação, quando inexistentes; XXVIII - organizar um comitê local do Compromisso, com representantes das associações de empresários, trabalhadores, sociedade civil, Ministério Público, Conselho Tutelar e dirigentes do sistema educacional público, encarregado da mobilização da sociedade e do acompanhamento das metas de evolução do IDEB.
Quanto ao segundo grupo de metas, que apresenta as “diretrizes” cuja realização poderia ser atribuída diretamente aos entes federativos ou contar com a participação de demais atores sociais, reúnem-se ações designadas de tal modo que fazem ver uma atuação que não seja restrita a iniciativas governamentais. A esse respeito, pode-se afirmar que esse grupo abrange desde metas que remetem a ações ditas “gerais”, que poderiam exigir apenas uma predisposição para sua realização, até ações mais “pontuais” ou “específicas”, que parecem vir acompanhadas de certos procedimentos previstos para sua realização.
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Entre as metas mais “gerais”, estão as seguintes: “estabelecer como foco a aprendizagem”, “valorizar a formação ética, artística e a educação física”, “promover a educação infantil”, “promover a gestão participativa”. Não há indicações específicas sobre as estratégias de realização de cada uma das metas. Como “promover a gestão participativa”? Como assegurar que membros da comunidade escolar estejam presentes? Quanto à participação dos profissionais, trata-se de horas de trabalho ou se espera uma participação “espontânea”, sem que haja a devida remuneração? No que tange às ações “pontuais” ou “específicas”, seguem algumas delas: “acompanhar cada aluno da rede individualmente, mediante registro da sua frequência e do seu desempenho em avaliações, que devem ser realizadas periodicamente”, “combater a repetência, dadas as especificidades de cada rede, pela adoção de práticas como aulas de reforço no contraturno, estudos de recuperação e progressão parcial”. Em contraposição ao que vimos anteriormente, nesse outro conjunto de ações, fixam-se os procedimentos previstos para a realização das referidas ações. O “acompanhamento individual dos alunos” não pode ser feito apenas através de conversas, observações, é preciso haver o registro da frequência e do “desempenho” em avaliações, cobrando-se ainda periodicidade. Afirma-se também que o “combate à repetência” deve-se dar através de certas “práticas”, silenciando outras tantas estratégias possíveis. Segue o quadro com as dezesseis ações em cuja consecução estariam implicados tanto os governos como demais atores sociais, entre eles os profissionais de educação:
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Tabela 2 – Lista de metas atribuídas a mais de um agente I estabelecer como foco a aprendizagem, apontando resultados concretos a atingir; III acompanhar cada aluno da rede individualmente, mediante registro da sua frequência e do seu desempenho em avaliações, que devem ser realizadas periodicamente; IV combater a repetência, dadas as especificidades de cada rede, pela adoção de práticas como aulas de reforço no contra turno, estudos de recuperação e progressão parcial; V combater a evasão pelo acompanhamento individual das razões da não frequência do educando e sua superação; VII ampliar as possibilidades de permanência do educando sob responsabilidade da escola para além da jornada regular; VIII valorizar a formação ética, artística e a educação física; X promover a educação infantil; XVI envolver todos os professores na discussão e elaboração do projeto político pedagógico, respeitadas as especificidades de cada escola; XVII incorporar ao núcleo gestor da escola coordenadores pedagógicos que acompanhem as dificuldades enfrentadas pelo professor; XIX divulgar na escola e na comunidade os dados relativos à área da educação, com ênfase no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica IDEB, referido no art. 3o; XX acompanhar e avaliar, com participação da comunidade e do Conselho de Educação, as políticas públicas na área de educação e garantir condições, sobretudo institucionais, de continuidade das ações efetivas, preservando a memória daquelas realizadas; XXII promover a gestão participativa na rede de ensino; XXIV integrar os programas da área da educação com os de outras áreas como saúde, esporte, assistência social, cultura, dentre outras, com vista ao fortalecimento da identidade do educando com sua escola; XXV fomentar e apoiar os conselhos escolares, envolvendo as famílias dos educandos, com as atribuições, dentre outras, de zelar pela manutenção da escola e pelo monitoramento das ações e consecução das metas do compromisso; XXVI transformar a escola num espaço comunitário e manter ou recuperar aqueles espaços e equipamentos públicos da cidade que possam ser utilizados pela comunidade escolar; XXVII firmar parcerias externas à comunidade escolar, visando a melhoria da infra estrutura da escola ou a promoção de projetos socioculturais e ações educativas
No levantamento feito, deparei com a apresentação de uma meta que não parece ser possível enquadrar em nenhum dos dois grupos: “alfabetizar as crianças até, no máximo, os oito anos de idade, aferindo os resultados por exame periódico específico”. Tal impossibilidade se deve ao fato de, a meu ver, não caber atribuir a ação de “alfabetizar” a um agente governamental.
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A ele se pode atribuir sim a garantia das condições para “alfabetizar”. A opção por abrir uma nova categoria para incluir uma única meta poderia ser questionada, sustentando ter havido equívoco de redação simplesmente. Tal argumento não pareceria suficiente, já que o item em questão é apenas mais uma pista de uma cena dupla em que o decreto investe: imposição x convocação. Tabela 3 – Lista de metas de apoio/incentivo atribuídas apenas aos entes federativos II - alfabetizar as crianças até, no máximo, os oito anos de idade, aferindo os resultados por exame periódico específico
Com o objetivo de permitir uma contraposição das metas agrupadas anteriormente, segue um quadro-síntese: Tabela 4 – Quadro-síntese das ações e respectivos agentes Governos
Governos e demais atores
Professores apenas
“matricular” “garantir o acesso e permanência” “manter programa de alfabetização de jovens e adultos” “instituir programa para formação” “implantar plano de carreira, cargos e salários” “valorizar o mérito” “dar consequência ao período probatório” “fixar regras claras” “zelar pela transparência” “elaborar plano de educação” “instalar Conselho de Educação”
“estabelecer como foco a aprendizagem” “acompanhar cada aluno” “combater a repetência” “combater a evasão” “ampliar as possibilidades” “valorizar a formação ética, artística e a educação física” “promover a educação infantil” “envolver todos” “incorporar ao núcleo gestor” “divulgar dados” “acompanhar” “avaliar as políticas públicas na área de educação” “garantir condições, sobretudo institucionais, de continuidade das ações efetivas”
“alfabetizar as crianças até, no máximo, os oito anos de idade”
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a
gestão
participativa” “integrar os programas da área da educação com os de outras áreas” “fomentar e apoiar
os
conselhos escolares” “transformar a escola num espaço comunitário” “manter ou recuperar” “firmar parcerias externas”
Diante da sistematização acima, parece ser possível tecer observações bastante importantes para a análise do decreto em questão. A presença de metas é elemento conhecido de certos textos. É comum que os Planos Nacionais de Educação mais recentes ofereçam metas para a atuação governamental. No entanto, tais metas vêm acompanhadas de estratégias para a sua consecução. Dessa forma, parece interessante que uma primeira observação acerca do decreto em questão se dirija exatamente a esse aparente silenciamento acerca das estratégias a serem adotadas para o seu cumprimento. O que se espera de cada um? Sobre que atividades recaem os dispositivos de regulação e controle? Ao lado dessas discussões suscitadas pelo decreto, tomando-o como um dispositivo comunicacional cuja emergência se dá ativando um deslocamento entre duas cenas, divido com o leitor uma inquietação: esse agrupamento das metas me permitiu interrogar certas atividades que aparecem como dadas. Retomemos uma das metas já discutidas anteriormente: III acompanhar cada aluno da rede individualmente, mediante registro da sua frequência e do seu desempenho em avaliações, que devem ser realizadas periodicamente (BRASIL, 2007).
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Perceba o leitor que “acompanhar cada aluno individualmente” é a ação indicada pela meta. Entretanto, só é possível proceder ao acompanhamento proposto se houver um “registro da sua [de cada aluno da rede] frequência” e “do seu [de cada aluno da rede] desempenho em avaliações”. Dessa forma, o referido acompanhamento implica certa segmentação do trabalho de formação que se configuraria da seguinte forma: cabe ao professor registrar a frequência do aluno, avaliar seu desempenho; cabe ao aluno frequentar e apresentar desempenho em avaliações. Sigo com a inquietação: IV combater a repetência, dadas as especificidades de cada rede, pela adoção de práticas como aulas de reforço no contra-turno, estudos de recuperação e progressão parcial (BRASIL, 2007). Na meta IV, dá-se visibilidade ao aluno que repete e ao combate à retenção dos alunos através de se adotarem práticas como aula de reforço no contraturno. Já na meta V, além do combate à evasão, colocam-se em evidência as seguintes ações: o educando evade, o profissional acompanha individualmente, os educandos não frequentam e têm suas razões para tal: V combater a evasão pelo acompanhamento individual das razões da não frequência do educando e sua superação (BRASIL, 2007). Ao propor a ampliação de possibilidades, a meta VII relaciona tal ampliação com as seguintes atitudes: os educandos permanecerem mais tempo na escola e as unidades se responsabilizarem por eles nesse período, que ultrapassa a jornada regular: VII ampliar as possibilidades de permanência do educando sob responsabilidade da escola para além da jornada regular (BRASIL, 2007). As metas XII, XIII, XIV e XV tratam de questões profissionais relativas aos educadores. Vejamos o que diz uma dessas metas:
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XIV valorizar o mérito do trabalhador da educação, representado pelo desempenho eficiente no trabalho, dedicação, assiduidade, pontualidade, responsabilidade, realização de projetos e trabalhos especializados, cursos de atualização e desenvolvimento profissional (BRASIL, 2007). Nela, uma política de valorização implica certo conjunto de expectativas sobre a atividade do professor: cabe ao professor desempenhar-se com eficiência, ser dedicado, assíduo, pontual, responsável, realizar projetos e trabalhos especializados, realizar cursos de atualização, desenvolver-se profissionalmente. Tabela 5 – Relação de atividades de trabalho atribuídas a cada um dos atores Atores
Professor
Ações atribuídas Registrar frequência dos alunos Avaliar o desempenho dos alunos Adotar práticas como aulas de reforço no contraturno, estudos de recuperação e progressão parcial Acompanhar individualmente as razões da não frequência do educando Obter desempenho em avaliação Obter desempenho eficiente no trabalho Dedicar-se Ser assíduo Ser pontual Ser responsável Realizar projetos e trabalhos especializados Realizar cursos de atualização Desenvolver-se profissionalmente Discutir e elaborar projeto político-pedagógico Enfrentar dificuldades
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Aluno
Repetir Evadir Não frequentar Permanecer na escola além da jornada regular [Pessoa com necessidades educacionais especiais] ter acesso às classes comuns no ensino regular [Pessoa com necessidades educacionais especiais] permanecer nas classes comuns no ensino regular
Diretor/ Núcleo gestor
Obter desempenho Acompanhar as dificuldades enfrentadas pelo professor
Secretaria de Educação
Adotar práticas como aulas de reforço no contraturno, estudos de recuperação e progressão parcial Avaliar o desempenho dos profissionais Garantir condições de continuidade efetiva de ações realizadas Garantir o funcionamento efetivo, autônomo e articulado dos conselhos de controle social
Comunidade
Zelar pela manutenção da escola Monitorar as ações e consecução das metas do compromisso Participar da avaliação de políticas públicas na área da Educação
O quadro acima dá acesso a uma questão frequente nos debates acerca do trabalho docente: há um conjunto bastante diversificado de atividades que recaem sobre o professor, exigindo de cada um “boa vontade” e “iniciativa” para se cumprirem as metas fixadas. Que aspectos do trabalho do professor ganham destaque nesse conjunto de atividades? Considerando a heterogeneidade das atividades atribuídas ao professor, vou propor, para melhor visualizar os resultados encontrados, um agrupamento dessas tarefas em três tipos distintos: 1) atividades de controle dos fluxos de alunos e de conhecimento; 2) atividades sobre sua própria conduta / práticas de si; 3) atividades de investimento na ampliação de fluxos e de qualidades. No primeiro grupo de atividades, estariam as seguintes: “registrar frequência dos alunos”; “avaliar o desempenho dos alunos”; “adotar práticas como aulas de reforço no contra-turno, estudos de recuperação e progressão parcial”; “acompanhar individualmente as razões da não frequência do educando”.
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Já no segundo grupo, constariam: “obter desempenho em avaliação”; “obter desempenho eficiente no trabalho”; “dedicar-se”; “ser assíduo”; “ser pontual”; “ser responsável”; “realizar projetos e trabalhos especializados”; “realizar cursos de atualização”; “desenvolver-se profissionalmente”; “enfrentar dificuldades”. No terceiro grupo, estariam incluídas as seguintes ações: “realizar projetos e trabalhos especializados”, “realizar cursos de atualização”, “desenvolver-se profissionalmente”, “discutir e elaborar projeto políticopedagógico”, “enfrentar dificuldades”. As atividades acima agrupadas indicam ações comuns ao trabalho de formação, sobre as quais incidem as metas. Age-se sobre o professor tendo como alvo prioritário seu “comportamento”. Alguns traços que se destacam remetem a “dedicação”, “empenho”, “envolvimento”. CONSIDERAÇÕES FINAIS Chego ao final deste artigo com uma dupla missão: de um lado, sistematizar as discussões acerca do trabalho do professor e, de outro, recuperar a discussão teórica proposta em torno do vínculo entre a produção / difusão de textos e a configuração de mundos e relacioná-la aos resultados alcançados. No que tange à sistematização acerca das metas, um primeiro aspecto analisado refere-se à sua distribuição, apontando certo modo de conceber as ações de mobilização que parecem equilibrar a “realização direta” com o “incentivo e o apoio”. Genericamente apresentadas, sem definição de estratégias de implementação e investimento por parte dos governos das três esferas, as ações atribuídas como de realização direta ainda são designadas através de verbos com traços semânticos que apontam para “iniciativa” em que se ressaltam aspectos burocráticos – “garantir”, “manter”, “instituir”, “implantar”, “elaborar” – e para “regulação” – “matricular”, “fixar”, “instalar”, “zelar”, “organizar” – pretendendo definir referenciais para os fluxos de pessoas, saberes, documentos. Já nas ações de colaboração, prevalecem traços como os presentes em “acompanhamento” e “integração”. No segundo momento de análise, evidenciou-se que as ações esperadas do professor tratam de um trabalho minucioso tal como
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“registrar frequência”. Falam de um envolvimento profissional e pessoal, para o qual não há muitos detalhes. Cada um pode fazer a seu modo, desenvolver suas próprias estratégias para atingir as metas. Atribui-se a cada um o que é comum. Quais práticas adotar para “estudos de recuperação”? Como apontar o que é necessário para cada turma? Em que momento tais estratégias serão planejadas? Posso dizer que as metas põem o foco no resultado. Elas esquadrinham o cotidiano, delimitam as atividades dos professores, transformam os resultados em dados e esses dados passam a subsidiar o financiamento da escola e premiações aos professores. Entretanto, ao pôr o foco nas ações sobre as quais incidem as metas, vemos que tais considerações não seriam suficientes. É preciso dizer mais. É necessário mostrar como as metas contribuem com certo traçado de perfil do professor. Como foram feitos os levantamentos sobre os “problemas” em torno dos quais as metas agiriam? São especialistas internacionais falando do trabalho de formação? De que instrumentos dispõem para identificar e propor estratégias? A que interesse respondem? Tais observações mostrariam que o Plano de Metas se propõe a regular, a normalizar e, sobretudo, estimular condutas. O que não se enquadra nas normativas, nas previsões deve ser destacado, exige ações de recuperação, envolvimento do professor, novas tarefas, outros horários. Desse modo, a proposta de metas para a “qualidade” da educação brasileira não se institui sem delinear certos traços do que se pressupõe necessário mudar. Constrói-se, através do decreto em análise, uma “mobilização social” para qualidade na educação, cujo principal ator é o professor. As políticas salariais fundadas na meritocracia, os programas de recuperação, as provas de avaliação do rendimento dos alunos são alguns dos dispositivos de controle que fazem “ver” o engajamento individual. As redes de ensino compõem-se de unidades escolares. O rendimento de cada uma delas é verificado, divulgado, novas metas se estabelecem, mais engajamento é solicitado. O cumprimento do esperado é recompensado com bônus, tais como o 14º salário. O que surge aqui é um certo modo de fazer operar nas políticas públicas que se apropriam do dispositivo do “exame”:
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O exame combina as técnicas da hierarquia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados (FOUCAULT, 2005). Um plano de metas instaura-se por estimulação. Diz-se aos professores “cumpram as metas e lhes daremos recompensas”. Dirigese a uma categoria cujas faixas salariais estão há muito congeladas, uma categoria que tem parte de sua rotina de trabalho desqualificada como tal, e se oferecem alterações em seus salários, em troca do cumprimento de um plano de metas. O tratamento conferido às análises, que vimos realizando nestas conclusões, pretende exatamente evidenciar a impossibilidade de sustentar fronteiras nítidas entre os eventos e as práticas de linguagem. O aparecimento de um plano de metas propõe uma reconfiguração do vínculo entre governo e os trabalhadores. O documento não apenas tematiza algo que se pressupõe prévio a ele, mas, ao fazê-lo, insere-se em um conjunto de iniciativas, recortando a paisagem institucional escolar, conferindo lugares diversificados a cada um dos atores sociais. A emergência de um decreto em que constam apenas metas, sem qualquer tipo de estratégia de implementação, funciona como silenciamento do processo de construção da demanda. Retira-se do profissional a condição de tomada da palavra sobre seu trabalho, sem que sejam emitidos enunciados de interdição. Oferece-se a consultoria de especialistas. O que possa surgir no cotidiano como impasse tem de ser mensurável, quantificável, contabilizado para constar como resultados atingidos. Toda essa produção de uma paisagem escolar que se vai configurando não mais como fábrica, mas como empresa se constitui também através dos textos. Não só o decreto que os institui, mas também as provas a partir das quais índices serão extraídos são textos. São textos as notícias de jornal que divulgam os resultados, as conversas na sala de professores entre os que vão aplicar essas provas e os que optam pelo boicote, de tal forma que as práticas de linguagem vão colaborando com a produção de certa qualidade de relações institucionais, configurando modos de agir, ser e pensar no mundo.
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REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Trad. de Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BRASIL. Decreto No 6.094, de 24 de abril de 2007. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/ D6094.htm>. Acesso em: 31 jul. 2009. MAINGUENEAU, D. Doze conceitos em Análise do Discurso. Org. de Sírio Possenti e Cecília Souza-e-Silva. São Paulo: Parábola, 2010. _____. Análise de textos de comunicação. Trad. de Cecília P. de Souza-e-Silva, Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2001. _____. Novas Tendências em Análise do Discurso. Trad. de Freda Indursky. Campinas: Pontes; Ed. Unicamp, 1997. PALLOCCI, A. et al. Caderno temático do programa de governo: uma escola do tamanho do Brasil. São Paulo, 2002. Disponível em http://www.fpabramo.org. br/uploads/umaescoladotamanhodobrasil.pdf . Acesso em: 20/01/2011. ROCHA, D. “Representação e intervenção: produção de subjetividade na linguagem”. Gragoatá (UFF), v. 21, 2006a, p. 355-372. _____ . Produção de subjetividade: para uma cartografia dos discursos das publicações sobre videojogos. 1997. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Ensino de Línguas). Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada e Ensino de Línguas. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1997. SAVIANI, D. PDE – Plano de Desenvolvimento da Educação: análise crítica da política do MEC. Campinas: Autores Associados, 2009. TEDESCO, S. “Mapeando o domínio de Estudos da Psicologia da Linguagem: por uma abordagem pragmática das palavras” In: KASTRUP, V.; TEDESCO, S.; PASSOS, E. (org). Políticas da cognição. Porto Alegre: Sulina, 2008, p.21-45.
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VALENTE, I.; ROMANO, R. “PNE: Plano Nacional de Educação ou carta de intenção?”. Educação e Sociedade. Campinas, v. 23, n. 80, p. 96-107, set. 2002.
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PÊ, KÃM, MÃ E OUTRAS POSPOSIÇÕES DA LÍNGUA PARKATÊJÊ PÊ, KÃM, MÃ AND OTHERS PARKATÊJÊ LANGUAGE’S POSTPOSITIONS Marília de Nazaré de Oliveira Ferreira1 Universidade Federal do Pará RESUMO Este artigo examina e descreve as posposições da língua Parkatêjê a partir de uma perspectiva funcionalista. As posposições são uma classe de palavra cuja função é indicar relações gramaticais e noções semânticas espaço-temporais locais e não-locais nessa língua. Papéis sintáticos como o sujeito ergativo e o objeto indireto são marcados por posposições. Na interação conversacional, as posposições podem indicar os turnos de fala entre um e outro interlocutor. Palavras-Chave: Parkatêjê; posposições; função ABSTRACT This paper examines and describes postpositions of Parkatêjê language through a functionalist perspective. Postpositions are a word class whose function is to indicate grammar relations and semantic notions tense-space local and nonlocal in that language. Sintactic roles as ergative subject and indirect object are marked by postpositions. In conversational interaction, postpositions can indicate speech turns between one and other speakers. Keywords: Parkatêjê; postpositions; functions
1. A língua e o povo Parkatêjê Marcados por uma história de lutas internas e doenças, os parkatêjê quase foram extintos antes do contato propriamente dito, isso trouxe sérias consequências para a situação sociolinguística dessa comunidade. Segundo Ferreira (2003), os índios hoje conhecidos como Parkatêjê são remanescentes de diferentes grupos timbira que habitaram a região do Tocantins, dentre 1
Professora Associada do Instituto de Letras e Comunicação da Universidade Federal do Pará vinculada à Faculdade de Letras. É tutora do PET/Letras-Língua Portuguesa e trabalha com a descrição de línguas indígenas no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPA. Email: marilia@ufpa.br
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os quais temos: os Rõhôkatêjê (‘turma’ do Cocal); os Kyjkatêjê (‘turma’ do Maranhão) e os Akrãtikatêjê (‘turma’ da Montanha). Os componentes do Rõhôkatêjê tiveram como única possibilidade de sobrevivência a aproximação com os não-índios. O grupo Akrãtikatêjê, também bastante reduzido, fixou-se em Tucuruí. Os Kyjkatêjê refugiaram-se às proximidades de Imperatriz do Maranhão. Os remanescentes dos três povos, por razões políticas, uniram-se e passaram a viver em uma única aldeia. Em 1974, ano em que a professora Leopoldina Araújo iniciou sua pesquisa sobre a língua, de acordo com Ferreira (2003), os grupos já se distinguiam da perspectiva linguística. Segundo Araújo (1977, p.7), os Kyjkatêjê ainda eram monolíngues, enquanto os Parkatêjê já falavam fluentemente a língua portuguesa, devido às diferentes circunstâncias históricas que vivenciaram. Com a morte do último chefe tradicional dos Kyjkatêjê, esse grupo incorporou-se aos Parkatêjê, os quais passaram a ser reconhecidos como “Comunidade Indígena Parkatêjê”. Mesmo tendo vivido por trinta anos em uma mesma comunidade, as diferenças entre os Parkatêjê e os Kyjkatêjê nunca deixaram de existir. Os Kyjkatêjê sempre reivindicaram uma terra para si (cf. Ferreira, 2003), o que acabou culminando na separação dos dois grupos. De acordo com Ferreira (2003), a língua Parkatêjê é falada, atualmente, em duas aldeias, em Bom Jesus do Tocantins, sudeste do estado do Pará. Uma delas está localizada no Km 30 (Parkatêjê), a outra no Km 25 (Kyjkatêjê), ambas na Br-222. Tradicionalmente reconhece-se que esta é uma língua do “Complexo dialetal Timbira”, pertencente ao tronco Macro-Jê, família Jê. Apenas 10% desta população, mais ou menos 400 pessoas, distribuídas nas duas aldeias, falam a língua parkatêjê, devido à situação de atrito linguístico em que se encontra a língua, face ao português como língua majoritária. (cf. Ferreira, 2005) 2. Descrevendo posposições Para descrever as posposições em Parkatêjê, partindo de uma visão funcionalista, devemos dizer que elas constituem uma classe fechada de elementos, que, embora, em algumas ocasiões lembrem o comportamento de sufixos, apresentam diferenças sintáticas em relação a tais elementos. Não são tampouco formas livres, uma vez que apresentam dependência
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morfossintática em relação a tais elementos. Posposições ocorrem, de um modo geral, precedidas por seu um sintagma (elemento pronominal ou um nome) que como complemento ou como um argumento. Como característica geral, pode-se dizer que as posposições em Parkatêjê são monossilábicas. De maneira paralela aos nomes inalienavelmente possuídos e aos verbos não-ativos, as posposições ocorrem com os pronominais dependentes, nunca com os pronomes livres. Como até o presente somente temos exemplos de posposições iniciadas por consoantes, é possível postular que esses elementos pertençam à classe lexical B, isto é, tenham um Ø como prefixo relacional. A função primordial das posposições é relacionar seu argumento ao verbo ou a outro elemento da construção sintática, marcando noções semânticas espaço-temporais, locais e não-locais. Em geral, elas aparecem marcando uma locução nominal adjunto, isto é, os argumento E. No caso de as posposições ocorrerem com nomes marcando-lhes funções espaço-temporais, comumente encontram-se exemplos como: itakãm ‘hoje’ que literalmente parece ser ‘Dem Loc’, isto é, algo como ‘em este’. Ou ainda nõkãm ‘ontem’, os quais já apresentam indícios de estarem cristalizados. Apresentam-se a seguir as posposições do Parkatêjê em suas funções gramaticais, semânticas e locativas, as quais são as seguintes: Caso Sintático
Posposição
Caso Semântico
Posposição
Comitativo
Kôt
‘com’
Ablativo
Pê
‘em’
D a t i v o / Benefactivo
Mã
‘para’
Direcional
Nã
‘para onde’
Ergativo
Te
‘erg’
Locativo
Rĩ
‘onde’
Instrumental
To
‘com’
Essivo
Pĩ
‘de onde’
Malefactivo
Pê ‘em detrimento de’
Direcional
Wỳr a’
‘em direção
Genitivo
Õ
Locativo
Mã
‘em’
‘de’
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Mẽ
Locativo
‘com’
Kãm em’
‘dentro/
Passemos, então, à descrição das posposições arroladas para o presente estudo. 1. O comitativo kôt: esta posposição caracteriza o caso por meio do qual se expressa companhia. 1)
i-te aipĩptir 1-Erg sonhar i-mã mil reai 1-Dat mil reais
dijer kôt mã Daniel-te dinheiro Com DS N.Pr Erg hõr dar
‘eu sonhei com dinheiro e o Daniel me dava mil reais’ 2) nõ hõr nã inxê kôt amti deitar dormir SS mamãe Com sonhar ‘deita, dorme e sonha com a mamãe’ 3)
pia kãm: jê, Dub Loc Voc Com kukrẽ comer
wa eu
kuku Oc-comer
wa eu
amji kôt Refl
‘(dizem que ) ela disse: eu vou comer! Eu vou comer comigo mesmo!’ 2. O dativo mã: esta posposição caracteriza o benefactivo (objeto indireto), que pode ocorrer como locativo ou alativo (cf. dados 4 e 5). Como posposição, tal elemento marca um sintagma nominal, mas também ocorre em construções subordinativas, como índice de code-switching, a exemplo do que Popjes e Popjes (1986) para o Canela-Krahô. a) objeto indireto, com verbos como kuhõ ‘dar’ 4)
inxũm-te inxê-mã pai de ego-Erg mãe de ego-Dat ‘meu pai deu roupa para minha mãe’
kaxàt roupa
hõr dar
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b)
benefactivo
5) jê i-mã twymti kwỳ Voc 1-Dat gordo Quant ‘Jê, me dá um pedaço gordo!’ c) direcional ou locacional 6) pia kõkõnore amnẽ apar mã Dub cabaça vir baixo Loc ‘a cabaça vinha rio abaixo’ lit. ‘a cabaça vinha para baixo (do rio)’ 7)
a-j-õ krĩ awry mã 2-Rel-coisa aldeia longe Loc ‘a tua aldeia fica longe?’
Há, em Parkatêjê, um tipo sentencial em que o sujeito é marcado não-prototipicamente, isto é, o sujeito é marcado pelo caso dativo. Semanticamente este tipo de sujeito é um experienciador. Alguns exemplos deste tipo de ocorrência são sentenças como i-mã prãm ‘eu estou com fome’ ou ‘eu tenho fome’; i-mã kry ‘eu estou com frio’ ou ‘eu tenho frio’, por exemplo. 3. O ergativo te: esta posposição marca o caso ergativo, que ocorre nos sintagmas nominais A, em orações de tempo passado perfectivo. 8) mpo kapia a-te to koran coisa Int 2-Erg fazer matar ‘O que tu mataste?’ 9)
kra. wa i-te to koran paca eu 1-Erg fazer matar ‘eu matei paca’
4. O instrumental to: esta posposição marca o instrumento ou o meio pelo qual se efetua o processo expresso pelo sintagma verbal. 10) poti to te to kukryt japôk taquara Instr Erg fazer anta Rel furar ‘ele furou anta com taquara’
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11) inxê te kra juahi mãe Erg filho Rel-segurar to kaxêr Instr furar
mã DS
krohokre N.Pr.
te wahire Erg agulha
‘a mãe segurou o filho e a Krohokre aplicou a injeção’ lit. ‘a mãe segurou o filho e a Krôhôkre furou com a agulha’ 5. O locativo pê: esta posposição também marca um locativo pontual ‘em’, cuja distinção semântica dos outros ainda não está clara. 16) apiri aikati pê apiri h-ĩn pupũn Iter dia Loc Iter Rel-fezes Rel-ver ‘no outro dia, ela viu novamente as fezes’ 17) wa ka pyka pê nõ hõr eu Fut terra Posp deitar dormir ‘eu vou dormir no chão’ 18) jomprar te kamtere pupũn aikre N.Pr. Erg filho Rel-ver+Pas casa
katut atrás
pê Loc
‘Jõmprara viu o filho dela atrás da casa’ 19) i-te jomprar 1-Erg N.Pr.
pupũn Rel-ver+Pas
aikre jarkwa pê casa boca Loc
‘eu vi a Jõmprara na frente da casa’ 6. O genitivo õ: de acordo com Oliveira (2005), o marcador de posse alienável õ tem sido analisado em muitas línguas Jê como o nome para “coisa”. Para aquela pesquisadora, em Apinajé, o morfema õ não pode ser confundindo com o artigo definido õ, que é limitado em distribuição a construções genitivas: ele não ocorre como um item lexical independente. Em Parkatêjê, não há esse artigo definido mencionado. Diferentemente de outras posposições, o genitivo ocorre em sintagmas nominais para indicar a relação de posse, envolvendo nomes alienáveis.
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20) iñõ-kruwa ‘minha flecha’ 1GenS-flecha 21) Piare-ñõ-kruwa NPr-GenS-flecha
‘flecha do Piare’
7. O associativo mẽ: esta posposição ocorre em enumerações com nomes e com algumas formas pronominais como o dual. 22) Piare mẽ Krowati mũ Marabá wỳr Piare Ass Krowati Dir Marabá Dir
mõ ir
‘Piare e Krowati vão à Marabá’ 8. O locativo kãm: esta posposição marca um locativo pontual que se opõe ao direcional, por indicar um lugar de ocorrência do processo do verbo. 12) pêpia kapranĩ katiti kô kãm xà jabuti grande água Loc estar.em.pé ‘Dizem que jabuti grande estava no rio’ 13) belem kãm wa pê i-kato Belém Loc eu Cop 1-nascer ‘eu nasci em Belém’ 14) wa ka ariaxà kãm nõ hõr eu Fut rede Loc deitar dormir ‘eu vou dormir na rede’ 15) pê maguari PD Maguari kẽkẽn quebrar-Pl
kãm hõpryti Loc N.Pr
te Erg
rotihô babaçu.folha
‘No Maguari, Hõpryti quebrou muitas folhas de babaçu’
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9. O locativo wỳr: esta posposição é um direcional que envolve movimento, no sentido de ‘deslocar-se de um ponto x em direção a um ponto y’. 20) pêpia aiku PD Dub
apte kakro-ti mrare nã mũ Frustr quente -Enf chorar SS Dir
kô água
wỳr xà pêpia kô mã pyp Dir estar.em.pé PD água Loc cair ‘(por causa) quentura, ela (a Lua) chorou e foi para a água. (diz que caiu) na água’ 21) wa Eu
mũ Mov
Marabá wỳr mõ Marabá Dir ir
‘Eu vou a Marabá’ O quadro abaixo sumariza as ocorrências das posposições listadas com as classes de palavras com as quais elas ocorrem, a saber, nomes e prefixos pessoais. É necessário dizer que somente posposições como mã (marca do benefactivo) e pê (marca do malefactivo) ocorrem com os prefixos pessoais, nos dados de que dispomos. Casos
Nomes
Posposições Dativo
Prefixos Pessoais
Reflexivo Recíproco
√
√
√
√
√
?
√
√
√
√
?
?
√
√
?
mã Ergativo te Comitativo kôt Instrumental to Direcional wỳr
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293 Locativo pontual
√
?
?
√
?
?
√
*
?
√
?
?
kãm Locativo temporal pê Locativo temporal nã Malefactivo pê
Nos textos narrativos, sejam eles míticos ou de outro tipo, posposições como mã e kãm marcam as tomadas de turno em que entram as falas diretas de cada participante no texto. A tomada de turno de cada participante é marcada por uma dessas posposições. Pode-se hipotetizar que tais elementos marcam a distância do falante e a proximidade em relação ao ouvinte. CONCLUSÃO A proposta do presente artigo é apresentar a descrição das posposições em Parkatêjê, a partir de uma visão funcionalista. A classe de posposições em Parkatêjê é fechada e é constituída por palavras monossilábicas que ocorrem marcando complementos e adjuntos, em distintas funções semânticas. Em outras palavras, as posposições são palavras funcionais. As posposições que marcam complementos ocorrem pospostas ao seu sintagma nominal objeto, que pode ser manifesto por meio de um nome, ou por meio de um prefixo pessoal. Essas posposições são índices importantes de marcação de funções espaço-temporais. Ao que tudo indica, algumas delas já se encontram cristalizadas em palavras que têm alguma relação com tempo e lugar, como é o caso de itakãm ‘hoje’ que literalmente parece ser ‘Dem Loc’, isto é, algo como ‘em este’, ou ainda nõkãm ‘ontem’. É necessário ainda um estudo mais detalhado sobre a ocorrência de posposições na tessitura discursiva dos textos, em que indicam mudanças de turnos de fala.
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REFERÊNCIAS ARAÚJO, Leopoldina Maria Souza de. Semântica gerativa da língua gavião-jê. Dissertação de mestrado. 1977. ______. Aspectos da língua Gavião-Jê. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1989. FERREIRA, Marília de Nazaré de Oliveira. Estudo Morfossintático da Língua Parkatêjê. Tese de doutorado.Campinas: UNICAMP, 2003. ______. Descrição de aspectos da variante étnica usada pelos Parkatêjê. DELTA 21 (1): 1-21, 2005. GIVÓN, T. Syntax. A functional-typological introduction Volume 1. John Benjamins Publishing Company: Amsterdam/Philadelphia. 1984. OLIVEIRA, C. C. The Language of the Apinajé People of Central Brazil. Tese de Doutorado. University of Oregon. 2005. http://etnolinguistica.wdfiles. com/local--files/tese:oliveira-2005/oliveira_2005.pdf Acessado em 20 de janeiro de 2013.
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“TONS” DE JOBIM: O CANCIONEIRO “TONES” BY JOBIM: THE SONGBOOK Daniel de Oliveira Gomes Universidade Estadual do Centro Oeste RESUMO O presente ensaio avança a respeito das teorias da Tradução e teorias do Nome Próprio: um estudo a partir de cinco álbuns intitulados “Cancioneiro Jobim”, as complete works, projeto de arranjos para piano de Tom Jobim. A partir de então, irá analisar a questão da tradução em Tom Jobim em várias possibilidades de desdobramento de sua assinatura, dentro de distintos acontecimentos enunciativos. Analisa, igualmente, a relação de algumas músicas de Tom Jobim com as imagens desde a escritura das partituras. Palavras-Chave: Tom Jobim; assinatura; escritura; imagens. ABSTRACT The present essay moves towards the theories of the Translation and theories of the Proper Name: a study from five albums entitled “Cancioneiro Jobim”, the complete works, arrangements project for piano by Tom Jobim. Thus, it will analyze the question of translation in Tom Jobim in various possibilities of his signature unfolding, within different enunciative events. It will also examine, equally, the relationship of some songs by Tom Jobim with images since the writing of the score. Keywords: Tom Jobim; signature; writing; images.
INTRODUÇÃO Muito já se estudou, sobre Tom Jobim, desde o campo da Literatura: as singelas letras das peças do maestro; suas interessantes entrevistas; ou a relação histórica e estilística da Bossa Nova com o discurso naturalista de Tom Jobim, sua limpidez poética, suas águas rasas ou fundas, ou, sua tendência poética à limpidez, como ele mesmo falou uma vez: o “puro osso” 1 (JOBIM, 2002, p.16). Este pacto de transparência na poética de Tom Jobim lembra-me, por vezes, algumas leituras de Michel Foucault, 1
Ver o Volume 4.
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filósofo que explora a questão da proliferação das várias línguas, num veio filológico, por uma teoria da interpretação sobre a linguagem no pacto de semelhança com o que ela enuncia, em suas origens.2 Em uma passagem, o maestro afirma bem a sua peculiar dificuldade criativa em lidar com as palavras comparativamente à sua habilidade em lidar com música. A busca de limpidez, clareza, explicaria a dificuldade em transparecer à própria música sua tradução em signo mais perfeita. A música é, assim, para o maestro, a priori intraduzível. Enquanto o reino das palavras dá-se como uma complexidade a mais, cuja necessidade pela absoluta clareza torna-se um imperativo perigoso. A linguagem musical basta. As letras são outra coisa. À parte. A briga toda que tenho é para chegar na palavra mais clara, a imagem transparente, (...) na hora de mexer com as palavras a gente tem de ser absolutamente claro. Veja bem: notas musicais, sete. Letras do alfabeto, 23. Já dificulta tudo, não é mesmo? As palavras não dizem as coisas. Cuidado com elas. (JOBIM, 2002, p.16) Para Jobim poeta, dar nomes às coisas dificulta o acesso a elas. Mas haveria um outro acesso às coisas, senão pela tradução sígnica? Não seria a música uma outra modalidade ou apenas uma variante de tradução sígnica? Tradução do quê, propriamente? Gostaria de remeter à ironia do título “As Palavras e as Coisas”, de Michel Foucault (livro publicado no mesmo ano de 1966 em que surgia, no Rio de Janeiro, o “Festival Internacional da Canção”, concurso este que em sua terceira edição premiará - sob uma chuva de protestos que alegavam a falta de transparência e a incoerência de uma abstrata tradução do Brasil - a música “Sabiá”, de Tom, letrada por Chico Buarque). Pois bem, este livro de Foucault está a assinalar justamente que “as palavras não dizem, propriamente, as coisas”, toda representação sígnica é dotada de um determinado defeito, ou efeito, que proporia às coisas uma nova dimensão, a única a qual podemos tocar pela linguagem. Tom Jobim, utópico, quem 2
Após o desastre de Babel, não mais importaria a função simbólica e radical da linguagem em relação direta com o espaço das coisas. A busca da transparência da linguagem é utopia.
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sabe acreditaria portanto nesta transparência possível, entre as palavras e as coisas, através da bossa. Teriamos que analisar várias de suas entrevistas, ainda, mas acredito que seria, todo modo, ineficaz mapear os vários sentidos de transparência em Tom Jobim. O que aqui ponderaremos vem a ser algumas de suas partituras, manuscritos, anotações e/ou traduções, buscando, antes, o que justamente não está transparecendo imediatamente. 1. O poeta Jobim e o vôo límpido do signo O sentido de perenidade e a busca desenfreada por sentídos claros e naturais, levava um Jobim fascinado pela natureza, a desafiar imagens geralmente menosprezadas, abrindo-se em metáforas lítero-musicais devaneantes, como no caso do LP “Urubu”, disco lançado no clube Caiçaras, contando com presença de Drummond. Como disse Jobim, em uma de suas falas poéticas de teor ecologista, seria uma homenagem ao bicho mais menosprezado pelo homem, considerado bicho de azar, mas que, ao contrário, é um bicho que só faz limpar nossos lixos, ave que é lixeira, “quem dá azar somos nós mesmos” (Jobim, v.4, p.19). Em trecho de uma carta para Paulo Jobim, o maestro mostra todo um hermetismo lírico que, geralmente, nas letras de músicas de sua primeira fase não estão visíveis, ou ofuscadas por aquele rigor bossanovista de imperativo naif. Ali, podemos dizer que, empolgado pela poesia, desponta muito pouco límpido, abusando de imagens estáticas que tão-somente descrevem (traduzem) o urubu como movimento-pássaro e, com ele, o paradoxo da clareza e da escuridão: Dia velho, asas esquecidas, o jereba mergulha na piscina. Pé de serra, fim de baixada onde começa a ladeira e os contrafortes azulam na distância. O jereba sobe na chaminé do dia. Urubupeba. As rêmiges das asas expandidas cavalgam as bolhas de ar quente emergentes da ravina. Todo papagaio, tola pipa boiando no ar, não-querente, não-desejo navegante, à deriva, à bubuia – pois sim! – preguiçoso atento dormindo na perna do vento. Esse sabe o que há de vir. Aquário do céu. Teu canto imita o vento, Hissss... As asas agora curtas,
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sobraçando trilhas de ar, pacote negro compacto, bico cravado no vento, velocidade feita letal, muro de azul aço abstrato – e adeus viola que o mundo é meu. Nas lentes dos olhos, a água oculta y entrabas e salias por las cordilleras sin passaporte. Urubu-procurador. Urubuachador. Que sabe de alto o que se esconde no chão da mata virgem e dos muitos perfumes que sobem do mundo. Eterno vigia de um tempo imperecível. Guardião de dois absurdos. A vida era por um momento. Não era dada. Era emprestada. Tudo é testamento. (JOBIM, 2002, p.18) O próprio Jobim aqui, tomado como poeta à deriva, caçador de imagens, “não-desejo navegante” tal qual “urubupeba” - em tupí, “urubucaçador”. A conclusão finalmente caçada de que “tudo é testamento” indica a morte que busca o pássaro, mas também o intraduzível, a impotência das palavras, que assim como a vida nos são apenas “emprestadas” e não “dadas”. A brevidade da linguagem diante da grandeza natural que cerca o homem. Tal paradoxo da clareza e da escuridão, do “urubu-procurador” e do “urubu-achador” - do aquário do céu, limpidez, por um lado, e dos vetustos paredões de pedra onde dorme o perfil de um urubu, por outro eis o reino jobiniano dos “dois absurdos”. O esforço magnífico de tentar sobrevoar, pelas palavras, o sentido musical das coisas, dos pássaros, do mistério e beleza da ave tropical. Notemos, então, que a transparência, em Jobim, nem sempre está oposta ao hermetismo poético, lírico, que por vezes circunscreve seu estilo. Veja-se que, no momento de descrever a oscilação do vôo do urubu pelas cordilheiras, Tom Jobim chega a mudar repentinamente de língua, passando do português ao espanhol, aferindo, assim, o sentido de território linguístico, que, ao urubu, por las cordilleras sin passaporte, pouco importa, pouco faz e satisfaz. Na crença utópica da superioridade da poesia expontânea, Jobim mescla-se ao urubu. Entretanto, ele já não pode ser tão expontâneo, como em algumas de suas composições com Vinícius de Moraes, pois caça as palavras. Diria que ele menos usa das palavras, muito bem trabalhadas, para cercar e representar as coisas, a vida, do que postula,
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com o urubupeba, que a vida não está nas palavras, talvez esteja na caça das coisas que as cercam. No fundo, as coisas cercam as palavras de imagens e não o contrário. A natureza cerca a música, o pensamento. Por isto, a escrita sobre o urubu advem em pura observação do urubu. Observação utópica que, por assim ser, recai em uma sequêncialização estática de nomes próprios: “Peba. Urubupeba. Urubu-caçador. Achador. Urubu-procurador. Urubu-de-cobra. Urubu-de-queimada. Camiranga. Urubu-ministro. Decabeça-vermelha. Urubu-gameleira. Urubu-peru. Perutinga. Urubumestre.” (JOBIM, 2002, p.18). Não é possível traduzir em palavras. Jobim poeta é, assim, “urubu-mestre”. Foucault enfatizará que, até o século XVII, a disposição da questão da linguagem estava centralizada na busca de reconhecer um signo legítimo, um nome, na designação com o que significava. Sobrevivia uma utopia genesíaca. A partir daí, da era clássica (lembre-se a organização dual do signo na gramática de Port-Royal), a questão passou a ser a de um distanciamento entre as palavras e as coisas, o significante como composição alheia ao significado. Entretanto, um antropólogo cultural como Ernest Cassirer afirmará ainda sobre a esperança, justamente no espaço-tempo filosófico e místico do século XVII, de reproblematizar o sonho de uma língua mais pura, uma língua Adamica, que sustentasse vínculo com os níveis transparentes da representação primeira. Se loucamente entendêssemos, deste modo, o nome próprio do maestro Jobim como suposta assinatura de, digamos, um antropólogo cultural, por exemplo, estaria o maestro mais próximo a Cassirer do que Foucault? Uma nova questão sem resposta imediata. Pode ser, mas esta seria apenas um dos níveis de sua assinatura, um dos topos de seu nome próprio. 2. Traduzindo notações de “Tons” A hipótese mais concreta do enunciado “Tom Jobim” como um quadro de assinaturas plurais, a serem estudadas neste ensaio, surge no contato com seus arranjos para piano, de suas complete works: “Cancioneiro Tom Jobim”3. Tal livro, que nos serve de suporte-material, vem a ser uma série de cinco volumes com partituras, letras e comentários de toda a obra 3
JOBIM, Paulo et al.(coord.). Cancioneiro Jobim: arranjos para piano. Vol. 1 ao 5. Rio de Janeiro: Jobim Music/ Casa da Palavra, 2000.
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gravada de Antônio Carlos Jobim, em ordem cronológica, e coordenado por seu filho: Paulo Jobim. É um material híbrido, valioso para estudo, posto que é uma concepção do próprio Tom Jobim e há ali, igualmente, fotos de manuscritos originais de suas principais canções, rascunhos a lápis, onde se pode ponderar as letras, ainda em estágio especial de composição, como assinaturas (autografias). Tais volumes possuem uma série de dados instigantes, e as páginas iniciais dão-se como um mosaico de informações, entre fotos, manuscritos e breves trechos de entrevistas. Tom Jobim disse que “dar nome às coisas dificulta a compreensão”. Mas esse pacto de Jobim entre os nomes e a eterna transparência, buscando a fuga do hermetismo, também foi visto, desde os campos da musicologia e da hermenêutica de criação, onde muito se estudou a límpida escritura musical do maestro, em termos de complexidade harmônica e, simultaneamente, simplicidade melódica e poética, bem como várias outras inumeráveis e luminosas relações, na esfera da teoria da composição.4 No resgate do nome próprio Tom Jobim, como assinatura de maestro-compositor, acredito que haveria uma sintonia invisível - nem puramente lingüística, nem musical - mas que estaria no espaço visual do papel. Um mote referencial entre o desenho, o figurativo, das notas, e o nome próprio, o título, das suas peças. Há, ali - em especial na fase de Jobim a partir dos anos 70, em que se influenciou mais por Villa-Lobos uma dada relação instrumental, uma conexão oculta, a ver com a escolha dos nomes das canções e peças enquanto ainda imagens na partitura, mas talvez não essencialmente nas letras. Na música “Milagres e Palhaços”, por exemplo, as imagens das notas sobre a partitura apelam, nitidamente, para a oscilação de pólos, entre certos tons de surpresa, sublimação (do milagre) e certa regularidade divertida (dos palhaços).
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Seria, certamente, uma implicação nova desdobrar reflexões sobre o seguinte problema: a assinatura Tom Jobim e sua relação com diversas outras formas silenciosas de escrituras ou culturas. Dentre as quais: a Poética; a Correspondência; a Entrevista; o Manuscrito; e mesmo a sugestiva disposição imagética da própria escritura musical, entre as claves de Sol e Fá. Sobre a escritura musical, seria de se destacar o nome próprio das suas peças, a escolha dos títulos, nomes femininos, etc, no tocante à configuração plástica de como as notas se mostram dispostas na partitura de piano.
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Fig.1 .Trecho da partitura da peça “Milagre e palhaços”, Tom Jobim, 1973. Seria possível afirmar que, no entanto, pelo excesso de notações de bemóis, imagina-se, a princípio, uma música tocada, incomumente, quase que totalmente pelas notas pretas do piano, neste sentido oferecendo “milagre” – do verbo latino mirare: maravilhar-se; tornar fora do comum; mirada que evita o comum - dificuldade e mistério ao colorido imediato e velocidade divertida dos palhaços? E o que traduzir, por exemplo, do enredamento arquitetônico da peça “Arquitetura de morar”? Uma música cuja complexidade gráfica é puro abrigo. Em certo momento inicial da peça, visualizando (sem, claro, uma leitura propriamente musical) a marcação dos compassos, as colcheias dentre os acordes de ré (Dm7 e Dmaj7), na clave de sol, notaremos que Jobim nos sugere o desenho gráfico de “telhadinhos” nas linhas suplementares, abrigando, por sua vez, nas linhas inferiores da clave de fá, as notas protegidas nos valores semibreves.
Fig.2. Trecho da partitura da peça “Arquitetura de Morar”, Tom Jobim, 1976. Já em “Jardim Abandonado”, cujo arranjo é do filho de Tom, Paulo Jobim, o que visualizo, nos primeiros vinte e cinco compassos da partitura, nas claves “solares”, é uma prolongada seqüência regular de acordes rápidos, em três notas, com poucos bemóis e sustenidos. Até que ponto tais acordes simples, em tríades, reenviam à imagem subterrânea de esquecidos ramalhetes de flores, na mão direita do pianista?
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Fig.3. Trecho da partitura da peça “Jardim Abandonado”, Tom Jobim, 1973. São composições não muito populares de Tom Jobim, entretanto, “Jardim Abandonado” não deixa de ali estar, como significante e significado, como nome próprio, escritura e imagem, antes da música, mesmo para quem não toca piano. Antes do som, do “tom”. Aliás, quando falamos em “Tom”, ao invés de Antonio Carlos Jobim, este nome faz alusão à oscilação de dois sentidos, dois “Tons”: o “Tom” musical e o “Tom” como tonalidade, pintura, matiz, nuança, tom de cores distintas, o claro e o escuro também (como supracitamos na análise do Urubu). E, não raro, suas músicas apresentam cores nos nomes próprios. Quem sabe, “Nuvens Douradas” não é uma peça que instigaria uma imagem fechada da Nuvem, unindo, ambivalencialmente, outra imagem anterior, solar, dos raios que ali mesclam dos dois sentidos da assinatura “Tom”. “Dinheiro em Penca” é outra de tantas músicas sugestivas, neste distinto viés de explanação - em especial do início das peças (a introdução) - a partir da simbologia icônica das suas partituras dos anos 70. Veja os acordes iniciais como possíveis “pencas”, a serem executadas na clave de sol:
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Fig.4. Trecho da partitura da peça “Dinheiro em Penca”, Tom Jobim, 1979. A questão correlativa ao campo moderno e interdisciplinar (músicaliteratura) da Tradução seria esta: haverá ou não um sentido composicional a ser traduzido, não apenas em Tom Jobim, mas como possibilidade grafológica em toda e qualquer partitura? Podemos estar fugindo tanto do campo especificamente musical quanto do campo da teoria literária mais estrutural, uma vez que - neste caso, a partir de tal achado em certas notações do maestro Tom Jobim - estou afrontando um objeto de estudo miscigenado de valores jovens, ou melhor, escavando um modo de refletir e traduzir um desejo composicional outrem que escapa de um topos definido, beirando o que poderia entender como entre-lugar ficcional. Entretanto, não se trata de restituir a verdade da composição jobiniana, de tentar remeter ao Jobim carne-e-osso a transparência de seus métodos, e sim, mais amplamente, abrir espaços investigativos e enunciativos que coloquem as próprias questões como as da tradução, do nome-próprio, do arranjo, da composição, da notação e relação palavra-música, por exemplo, em xeque com suas tradições de análise. Estou visando alcançar um lugar opaco, propositalmente indefinido, porém que percebo muito frutífero. A partitura jobiniana em um novo contexto exploratório, traduzida como texto e não como mero roteiro de execução. 3. Tom e a infiel tradução de Jobim E, enfim, onde estaria, por exemplo, a assinatura Tom Jobim, como tradutor? Sim, o tradutor por exemplo de “Águas de Março”, onde estará, na convenção clássica da tradução, quando a sua própria, por valer-se de uma posição prévia de autoria, é propositadamente tradução infiel ao texto original? O próprio topos onde se traduziu a música foi, por assim dizer, longe de tudo, infiel ao pan sublime de sua poética: ao traduzir “Waters of March”,
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Jobim via-se sozinho no Adams Hotel, em Nova York, em meio a uma floresta de dicionários de inglês, e não mais, como no momento de criação da canção, entre os inspiradores arvoredos brasileiros, nativos, no sítio acolhedor de sua mãe. Aí, eis a marca frívola do nome próprio do tradutor Tom Jobim. Ele não mais se encontra no meio do mato, vislumbrando aquele livre fio d’água a correr no regato, ele está, sim, no tapete do hotel, sob a violência regrada de outra gramática normativa, de outra língua, outra pressão, o inglês. Lembremos de uma fala sua, na apresentação de seus arranjos para piano: Na letra em inglês de Águas de Março eu mudei um pouco. As Águas de Março de lá são as águas do degelo. É quando a neve derrete e os rios começam a andar novamente. É um outro março mais fresco que esse nosso... Por isso, não se pode usar em relação a Águas de Março o argumento de que aquilo é universal. Mas fiz uma letra em Inglês muito boa. Evitei o latim e fiz a letra toda com palavras anglosaxônicas. (JOBIM, 2002, p.15) Por sua vez, o nome próprio do tradutor reenvia, ali, ao nome de um escriba do degelo, infiel, frio, atópico, que reinventa o original para o inglês, partindo de pressupostos aprazíveis da mudança geográfica da imagem de março, as estações de lá e daqui. E tais diferenças de tons nacionais surgem, às vezes, de reflexões comparativas muito sutis, próprias do maestro. Tom Jobim chega a meditar, ainda, pontualmente acerca de alguns versos: Um dia eu estava meditando em cima do verso ‘é um espinho na mão, é um corte no pé’ e percebi tudo. Como é que um americano iria cortar o pé se ele nunca anda descalço? Pensei em inverter ‘um espinho no pé, um corte na mão’. Também não dava pé para americano. Eles usam aqueles tênis enormes com um quilo de borracha na sola. E febre terçã?.(JOBIM, 2002, p.15) Tom Jobim, compositor, é o olhar febril, específico do brasileiro;
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pode ele se chamar João ou José, que, em sua marcha estradeira, vê esperto e humorado uma correnteza de detalhes. Mas, também, visão dura da peroba do campo, visão microfísica da clínica popular, do sapo, da rã, do resto de asfalto, da garrafa de cana... Já o tradutor, em seus passos, generaliza e ao mesmo tempo é frio, pois “todos os americanos usam aqueles tênis enormes...”. Tom Jobim é então capturado como assinatura de tradutor infiel à poesia literal daquela canção, precisamente, para reforçar a fidelidade maior ao seu pensamento de Águas de Março como uma música pura e representativa do Brasil. Mas, assim, Jobim é também duplamente brasileiro, caloroso, e duplamente infiel, e frio, com relação ao seu próprio topos de tradução, posto que traduziu a música no Adams Hotel, longe do “outro” Jobim. 4. Antonio Carlos Brasileiro: nome duplo Todas as questões do duplo e da transparência que estamos isolando em Jobim devem ser entendidas como um movimento de interpretação crítica que lançamos sobre o autor e não como verdades puras que já lá nos aguardam para serem analisadas. Há toda uma pluralidade a ser considerada. Penso que as questões do duplo em Jobim são um tema bastante inexplorado, em certa medida, e dão-se como tópicos dentre outros, ou seja, temos várias possibilidades a serem pinçadas, como “um espinho na mão”, no âmbito do nome de autor deste músico. O nome próprio Tom Jobim, como tradutor, por exemplo, vem a ser assinatura que ex-trai o Jobim mateiro, estanca o seu “corte no pé”. Nome que vislumbra ante tudo um pacto estético-nacional, após reflexões comparativas entre as paisagens distintas, onde, por momentos, beiram ou perdem-se entre uma elegante anedota e uma concepção romântica de um Brasil bem floresta, sertão, cheio de peixes, “passarins”, flores do mato, pedras e paus no caminho. Brasil “forever green”... Durante anos, Tom foi acusado de ‘americanizado’. A pecha lhe doía porque, em sua cabeça, como podiam ser tão surdos? Logo ele, tão francês, tão amante de Chopin e Debussy. É verdade que morou nos Estados Unidos – era obrigado a isso, pelos editores e pelas gravadoras. Mas,
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quando vinha ao Rio, o que era sempre, e lhe perguntavam quando pretendia voltar de vez, dizia: ‘Como voltar se eu nunca saí daqui?’.Nova York era o escritório, onde dava expediente, o Rio era a sua casa. (CASTRO, 2001, p.30) Outra duplicidade está nestes espaços que, por mais que Jobim os diferenciasse, tinham pontos de cruzamento, ou seja, o espaço do trabalho versus o espaço da casa, quando não se está em seu país propõe outro tipo de relação subjetiva. Como é possível afirmar, por exemplo, que o escritório (Nova York) do músico era distinto da casa (Rio de Janeiro)? A música, a composição, a “inspiração poética”, é nitidamente um lugar de encontro entre a esfera do trabalho e a do lar, a região pública e a íntima, o fator profissional e o fator pessoal. Imaginamos, deste modo, que não podia ser assim tão fácil e protocolar separar a composição musical de sua intimidade, de sua visão pessoal de mundo. Ao dizer “Como voltar se nunca caí daqui?”, Tom está afirmando mais do que a diferença entre o lugar que trabalhou e o outro que sentia saudades, está falando de um sacrifício duplo. O transtorno que sentia ao tentar transportar sua música, em nome de seu país, para a indústria fonográfica estrangeira, ou melhor, ele quer mostrar o quanto se sentia estrangeiro no exterior, ao passo que, duplamente, era quase um cidadão americano, que morou nos Estados Unidos. Pautando-se, como queria, em um de seus escritores prediletos, Guimarães Rosa, o maestro traduziu a dificuldade da língua portuguesa como a própria geografia da opulência, como uma riqueza natural um tanto desconfortável, porém genuína, oposta, enfim, ao inglês, confortável e privado como cultura e língua. O nome próprio Tom Jobim, duplo e neutro, a atestar menos o tradutor que o compositor mesmo da primeira versão, botando a tradução como uma incontestável segunda variante, reinvenção obrigatória, como uma falsa mimese da primeira riqueza composicional. Porém, o nome próprio da canção não é duplo, é, literalmente, ainda, Waters of March, a tradução perfeita. Esses e outros dados, quiçá paradoxais, que extraem os nomes próprios de uma dimensão tópica, seriam abordados com maior profundidade em um estudo maior da pluralidade da assinatura Tom Jobim. Pontos que atravessam vários topos, pretensamente inéditos. Pontos que eu poderia chamar de “fenômenos transtópicos de sua assinatura.” Assim
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chamaria por serem pontos de deslocamento, atravessamentos por vários pontos, vários topos, vários tópicos... Certa vez, Jobim, que circulava perfeitamente entre dois idiomas, o inglês e o português, confessou que sobremodo não acreditava na tradução das músicas para o inglês5. Principalmente, com relação à língua portuguesa, posto que ele a considerasse mais complexa que outros idiomas. Ele dizia que uma pessoa escrevendo em russo seria certamente melhor traduzida para o inglês que alguém que escrevesse em português. Uma outra duplicidade aqui: se Jobim é utópico por um lado, confiante de que a poesia brasileira é mais nativa, em termos mesmo de funcionamento linguístico, por outro é também atópico, ao desconfiar da legitimidade da tradução, o que implicaria numa desvantagem para nossa língua. Porque não se sabe que tem Carlos Drummond de Andrade. Se você traduz aquela poesia, não funciona. Não pode ser traduzido aquilo. Tá falando português, quer dizer, aí já começa o primeiro impasse. Você pega um compositor brasileiro então ele sai do Brasil. O impasse da língua já é um golpe mortal na canção. Essas coisas aos poucos vão se modificar... Mas eu vi Guimarães Rosa traduzido em inglês, o Drummond traduzido em inglês... não funciona. Quer dizer, eu quero falar aqui o seguinte: quando um homem escreve em português ele está em grande desvantagem, não é verdade isso? (JOBIM apud DIAS, 2010, p.39) Se, por um lado, notamos que ele estima a sublimidade do Brasil e, ao mesmo tempo, vê a “desvantagem” da língua portuguêsa (brasileira), por outro lado, no próprio plano composicional, vemos um Jobim que compõe sofisticadamente propondo duplicidades. Estas duplicidades são como existências melódicas subterrâneas, prato cheio para exames de fenômeno melódico-harmônico. Em recente e breve artigo, o músico doutorando 5
“O quadro não seria diferente com as músicas brasileiras que ganhavam traduções, situação agravada por falta de tato dos editores, que nem sempre escolhiam os tradutores mais capazes, estando interessados apenas no possível retorno comercial da música. Jobim queixa-se de que em alguns casos o autor da letra original nem chega a conhecer o seu tradutor. Essa situação não se repetiria no Brasil, pois “quando um editor brasileiro recebe uma música internacional, ‘a tradução é feita com amor, com carinho, com alguém que se identificou e que quis”. (DIAS, 2010, p. 39.)
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Carlos de Lemos Almada, da UNIRIO, ao analisar a peça “Chovendo na Roseira”, pela técnica de abordagem chamada “schenkeriana”, inicia seu texto explicando que: A harmonia da bossa nova, em comparação com a de outros gêneros da música popular brasileira (em especial, o samba), é freqüentemente qualificada como “sofisticada”, o que é em geral atribuído a dois tipos de preferências construtivas: pelo acréscimo de tensões nos acordes (nonas, décimas primeiras e décimas terceiras, por vezes também alteradas) e pela escolha de relações remotas entre estes e o centro tonal de referência (em especial, os acordes pertencentes à classe dos chamados empréstimos modais). Inúmeras canções de Antônio Carlos Jobim, reconhecidamente o principal compositor do gênero, formam um perfeito exemplo desse tipo de tratamento harmônico, algo que não traz por si só qualquer novidade. O que mais impressiona em algumas dessas peças, entretanto, é a existência de relações melódico-harmônicas “subterrâneas”, ancoradas em camadas estruturais mais profundas, o que recebe ainda pouca atenção no âmbito acadêmico. (ALMADA, 2010, p. 99) Lê-lo como tradutor de si mesmo, por exemplo, daria pano para manga a muito mais que o presente artigo. Mas, para aqui finalizá-lo, posso afirmar que se notamos paradoxos em várias dimensões da questão da tradução desde o músico Tom Jobim, isto também se dá, obviamente, antes por uma tendência de complexidade jazzistica próprias das peças bossanovistas, do que por alguma contradição ou incoerência. Enfim, concordamos cabalmente que, assim como há muita transparência, muito há de “subterrâneo” em Jobim a ser ainda manifestado, por ser ainda concebido (traduzido).
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POEMA PROCESSO E COMPLEXIDADE PROCESS POEM AND COMPLEXITY Hilda Gomes Dutra Magalhães1 Universidade Federal do Tocantins RESUMO Propomo-nos neste artigo a analisar como o Poema Processo se sustenta numa nova racionalidade, dialogando com a concepção de complexidade, de Edgar Morin. Ao longo do texto, foi possível observar que o Poema Processo se sustenta numa lógica relacional que incorpora um grande número de elementos, alguns até então jamais operacionalizados pela arte literária, como a fisicalidade do suporte, que se transforma também em signo. Percebemos, assim, que a literatura dialoga com a teoria da complexidade, no sentido de que representa ou metaforiza alguns dos seus pressupostos básicos, como, por exemplo, a diversidade, a interação, a incerteza e a subjetividade. No caso do Poema Processo, este diálogo se concretiza como um programa que o leitor deve colocar em ação, no ato da leitura, concretizando o texto literário como objeto complexo. Palavras-Chave: Literatura; Poema Processo; Complexidade. ABSTRACT We propose in this paper to analyze how the poem is based on a new process rationality, dialoguing with the design complexity, Edgar Morin. Throughout the text, we observed that the process is based on a poem relational logic that incorporates a number of elements, some never previously operated by literary art, like the physicality of the medium, which also turns into a sign. We realize, therefore, that the literature speaks to complexity theory, in that it represents a metaphor or some of its basic assumptions, eg, diversity, interaction, uncertainty and subjectivity. In the case of Poem process, this dialogue is realized as a program that the reader must put into action, the act of reading, embodying the literary text as a complex object. Keywords: Literature; Process Poem; Complexity.
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Doutora em Teoria da Literatura pela UFRJ, com pós-doutorado na Universidade de Paris III e na EHESS/França. Professora do Curso de Mestrado em Ensino de Língua e Literatura e do Curso de Letras da Universidade Federal do Tocantins. Email: hildadutra@uft.edu.br.
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INTRODUÇÃO Conforme as descobertas da Física Quântica, a realidade é relacional e nada existe por si mesmo, senão como resultado de padrões relacionais de natureza ampla e complexa, em que tudo se define em relação tanto a um macro contexto quanto a um micro contexto, até a última realidade, que seria a subatômica. Do mesmo modo, a Biologia nos ensina que a composição dos seres vivos apresenta uma natureza também relacional, mostrando-nos os organismos vivos como um sistema aberto, isto é, que vivem em permanente relação com o meio em que vivem, trocando materiais, informações e energia. Os estudos da Ecologia também reforçam a idéia de que tudo está em permanente inter-relação, ao apresentar o conceito de ecossistema, caracterizado por uma grande variedade de seres em equilíbrio. Esse equilíbrio não é de natureza estática, mas, sim, dinâmica, o que significa que a realidade ecossistêmica se afirma como uma rede em que tudo está interligado, de modo que qualquer modificação em um de seus elementos acarreta transformações nos demais componentes do sistema. Morin (1995), a partir dessas teorias, nos apresenta a realidade como sendo produto de um processo relacional que nunca tem fim, o que abrange todas as possibilidades de ser e de existir, incluindo os produtos culturais. Como nos explica Martinazzo (2004:35), “O pensamento complexo começa a estabelecer um canal de diálogo entre os diferentes paradigmas: entre o homem e as idéias que ele produz; entre o ser humano e suas racionalizações”. Dentre as características da complexidade está o número de elementos que compõem determinado objeto ou evento, sendo que quanto maior esse número, maior o nível de complexidade apresentado. Além disso, a complexidade se define não como uma soma, mas como uma interação entre todos estes elementos. Em outras palavras, o que somos, vemos, sentimos ou criamos só existe transitoriamente, ou seja, como resultados de relações diversas. Tais resultados, transitórios, existem inicialmente como um amplo leque de possibilidades. Citando Moraes (2004:190), “a complexidade não se restringe a quantidades de unidades e interações, mas também incertezas, indeterminações e fenômenos aleatórios”, que determinam a emergência
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do novo, que é a realidade complexa. Entretanto esta realidade jamais é absoluta, encontrando-se em permanente processo de transformação. Todas as reflexões apontadas no parágrafo anterior se aplicam perfeitamente ao fenômeno literário. Aliás, não restam dúvidas de que a complexidade da obra literária sempre foi um dos motivadores do surgimento de todas as correntes teórico-críticas ao longo do processo civilizacional do Ocidente, sendo que nenhuma delas conseguiu dar conta da realidade total da obra, justamente pelo fato de a litertura ser um objeto complexo. Desde o conceito de mimese, apresentado por Aristóteles, até os conceitos que as teorias imanentistas do Século XX conseguiram formar a respeito do fenômeno literário, a verdade é que este sempre nos escapa, na medida em que encontra novas formas de se manifestar. Fazendo um rápido inventário da contribuição dessas teorias críticas, graças a elas pudemos perceber como a obra literária se relaciona com um grande número de elementos intra e extraliterários. As teorias críticas de natureza neoplatônica nos mostraram as suas relações, dentre outras, com a filosofia, a pedagogia, a psicologia, a biografia, a política, a econômica, o meio, a raça e o momento. As teorias de natureza neoaristotélicas nos mostraram as relações da obra literária com seus elementos constitutivos, ora do ponto de vista do estilo, da estrutura, da forma, etc e, a cada novo fenômeno da literatura, descobre-se mais uma das manifestações da complexidade da arte literária a exigir um novo arcabouço teórico-metodológico que venha compreender o ser da literatura. Em relação à realidade sistêmica da literatura, esta é reconhecida desde os estruturalistas, que, no início do Século XX, perceberam que a obra literária só encontra sentido a partir de uma lógica relacional cujo contexto é formado pelo conjunto dos elementos que a compõem. Esta descoberta foi de extrema importância porque chamou a atenção dos estudiosos da literatura para a sua realidade intrínseca, na medida em que, a partir de então, a “verdade” da obra, o seu sentido, depende das relações que os vários níveis e estratos estruturais podem estabelecer entre si no processo de leitura. Num momento em que todas as ciências se prestam a observar seu objeto de estudo sob a perspectiva da complexidade, cabe ao teórico
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da literatura se perguntar se haveria algo mais a se acrescentar no que diz respeito à realidade sistêmica da obra literária, a partir da teoria da complexidade. Em outras palavras, precisamos nos perguntar se esta teoria pode nos ajudar a compreender o fenômeno literário e, em caso positivo, em que medida. Dentro deste contexto, nosso objetivo consiste em analisar como o Poema Processo se sustenta numa nova racionalidade, uma racionalidade que dialoga com o conceito de complexidade apresentado por Edgar Morin (1995). Não se trata, aqui, de se aplicar diretamente a Teoria da Complexidade à arte literária, mas de se refletir em como o Poema Processo representa ou metaforiza alguns de seus pressupostos, mais especificamente a diversidade, a interação, a incerteza e a subjetividade. 1. O poema processo na vanguarda concretista Para compreendermos o grau de inovação do Poema Processo, torna-se necessário, antes, situá-lo no contexto das vanguardas poéticas brasileiras, o que significa compreender em que medida ele se afirma como radicalização das tendências estéticas de 50 e de 60. É necessário ressaltar que a poesia brasileira aglutina, na segunda metade deste século, o esforço dos concretistas num projeto audacioso, tendo como representantes máximos Décio Pignatari, Haroldo de Campos e Augusto de Campos, no concretismo; Ferreira Gullar, na poesia neoconcreta com o seu projeto simbólico - metafísico; Mário Chamie na Poesia Práxis e Wlademir Dias Pino, no Poema Processo. O grupo Noigandres, fundador do Concretismo, se preocupou em atomizar a palavra numa forma que fale por si mesma, em erigir um discurso verbivocovisual, radicalizando as experiências estéticas do Modernismo de 22, apoiados na lógica, na atomização sígnica e no ludismo. E assim é que, tendo como base a tensão/rigidez estrutural, o Concretismo explora a atomização da palavra e da frase, eliminando a verborragia e o sentimentalismo e prioriza o isomorfismo conteúdo/matéria de poesia (CAMPOS, PIGNATARI e CAMPOS, 1965: 24-7). A poética de Ferreira Gullar, por sua vez, resgata uma visão simbolista do mundo, trazendo para a poesia tanto o elemento emocional quanto o engajamento político / social, sem, entretanto, abandonar a
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tradição vanguardista da poética modernista e a proposta experimental dos concretistas do grupo Noigandres. O resultado é uma poesia que faz com que o neoconcreto seja mais acessível ao apelo popular, voltando-se às questões sociais, abordagem rara nos textos dos primeiros concretistas dos anos 50. Já os representantes da Poesia Práxis produzem uma poética sustentada na exploração de um campo semântico pré-determinado e na erotização sígnica, com vistas a explorar as possibilidades semântico-lexicais da palavra. Como se percebe, nas três estéticas, mas principalmente no Concretismo e na Poesia Práxis, supervaloriza-se o lúdico, a construção verbivocovisual, sendo que há uma abertura no caso da poesia neo-concreta e Práxis, para o social. Já na proposta do poema concreto, radicaliza-se a experiência concretista, supervalorizando-se o físico e o visual e importantizando-se, mais do que o conteúdo, o processo produtivo, que valoriza elementos até então estranhos à semiotização literária. 2. Poema Processo: uma nova racionalidade Para compreendermos o teor de inovação do Poema Processo, precisamos, antes, diferenciar poema/livro, livro/poema e não-livro, categorias importantes para a compreensão da natureza e dos limites das experiências estéticas de vanguarda do Século XX. A arte literária, na sua forma escrita, sempre esteve circunscrita ao espaço plano do suporte gráfico, fosse ele um papiro, uma tábua de argila, uma pedra ou uma folha de papel. Tanto no processo de produção quanto na leitura, não importava se o texto fosse escrito numa folha, num muro ou numa página digital. O suporte físico se restringia à categoria de suporte, jamais deixando de ser visto como tal para incorporar, em igualdade de condições de semiotização, o status de signo, juntamente com a palavra. Esta realidade, entretanto, muda com o surgimento do Poema Processo, que, ao incorporar a fisicalidade do suporte como elemento semiótico do texto, revoluciona o conceito de livro e de literatura de uma forma radical. A este respeito, Cirne (apud SÁ, 1973:29-47), ao analisar o poema A ave, de autoria de Wlademir Dias Pino (1954), criador do Poema Processo, ao texto se refere como “um livro que, pela primeira vez no Brasil, assume radicalmente a sua condição estrutural de livro-fabricado-
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como-um-objeto/poema, e não como um mero suporte ou invólucro de poemas e textos literários”. É preciso destacar que, com a invenção de Gutemberg, conforme nos explica Magalhães (2001), “o livro entrou numa nova etapa, que culminou nos livros ‘inteligentes’ da indústria cultural, no livro ‘espetáculo’, pleno de apelos visuais sofisticadíssimos”. O Poema Processo, por sua vez, aproveitando todas as tecnologias disponíveis, dá um passo adiante, redimensionando a estética da segunda metade do Século XX. Em A ave, o autor lança mão tanto de recursos manuscritos quanto tipográficos, assim como também operacionaliza a fisicalidade do suporte, que deixa de ser suporte para compor a criação. Neste contexto, as fronteiras do literário sofrem uma dilatação a fim de absorver não apenas a substantivação do espaço em branco, já ressignificado no plano artístico desde Marllarmè, mas também a textura do papel, o espaço-tempo criado pelos recursos perfuração/corte e outros caracteres antes invisíveis no processo de leitura, relegados ao domínio do extra-literário. O Poema Processo, ao conceder status de literariedade ao que, antes, se afirmava como mero suporte, radicaliza a exploração das possibilidades sígnicas do espaço, mudando o próprio sentido do fazer poético. A partir de então, o suporte passa a interessar em sua fisicalidade, ou seja, conforme a cor da folha, conforme a sua textura, conforme a sua configuração física, o significado do poema poderá se modificar, porque tais elementos passam a participar do processo de construção de sentidos do texto. Como afirma Magalhães (2001:203-204), o livro importantiza e substantiva a fisicalidade do livro, considerando as folhas soltas, perfurações, cortes, codificações em séries, textura, cores, etc., como parte da semiótica do texto. Temos aí, portanto, a primeira grande diferença entre esse tipo de poema e os que o antecedem: enquanto nos poemas comuns o caráter físico do texto só serve como suporte para espaços em negritos e brancos (estes em decorrência daqueles), no poema Processo a fisicalidade faz parte do processo de significação. Isto equivale a afirmar que, para se entender um poema processo, é preciso
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entender e atribuir sentidos à cor, textura, dobraduras e outros caracteres físicos do papel, pois eles direcionam ou condicionam a leitura do mesmo. A complexidade reside, num primeiro momento, portanto, na opção do poeta em romper com os limites do espaço em branco, já substantivado por Mallarmè, aceitando-se como produto que não se restringe aos limites da palavra, mas que incorpora a contribuição de códigos extra-lingüísticos de naturezas diversas. A abertura para as demais formas de expressão, o diálogo que consegue tabular com essas formas, a possibilidade de ser lido de várias maneiras diferentes torna o poema processo uma obra complexa não apenas no que respeita à natureza plurissignificativa que é inerente ao literário, mas também, em relação a alguns pressupostos da complexidade apontados por Morin (1995), como a diversidade, a incerteza, a subjetividade, a interação (interconectividade). A diversidade se caracteriza pela grande quantidade de elementos de naturezas diversas que entram no processo de construção dos sentidos do texto. A incerteza, ligada ao caráter plurissignificativo da obra, é potencializada pela flexibilidade na forma de ler o texto, que pode ser de trás para a frente, do meio para o fim, do meio para o começo, etc. A subjetividade se acha presente na autonomia do leitor ao construir seu próprio percurso de leitura e suas próprias interpretações. A interação, por sua vez, não se reduz aos elementos intrínsecos do texto, até porque, na complexidade, tal imanência não existe isoladamente, não havendo corte entre o dentro e o fora, entre o interno e o externo, portanto, entre o leitor e o texto, entre as experiências de leitura do leitor e os diversos níveis de construção textual. Podemos, portanto, afirmar que a complexidade, no caso do Poema Processo, acha-se diretamente ligada à diversidade e à quantidade de elementos que o compõem. Esta quantidade, por seu turno, acarreta outros níveis de complexidade estabelecidos pelas funcionalidades que os elementos assumem no decorrer da leitura.
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3. Pluralidade e interação: o poema-programa Para Morin (apud MARTINAZZO, 2004: 62), a complexidade, além de se sustentar num número significativo de elementos de naturezas diversas, apresenta uma infinidade de interações de naturezas também diversas. Reportando-nos às suas palavras, “O complexo é aquilo que é tecido simultaneamente, aí subentendidos ordem/desordem, um/múltiplo, todo/partes, objeto/meio ambiente, objeto/sujeito, claro/escuro” (Morin (apud MARTINAZZO, 2004: 62), Idem). A realidade complexa não se revela, portanto, em situação de inércia, mas em/no movimento. Evidentemente a natureza relacional da obra literária não é desconhecida pela teoria crítica. A Estilística, o Estruturalismo, a Literatura Comparada, a Semiótica, dentre outras correntes teórico-críticas, se debruçaram, cada uma à sua maneira, sobre o tema da plurissignificação do texto literário, entretanto as especulações dessas correntes se esgotavam nas possibilidades verbivocovisuais no nível da página, jamais chegando à fisicalidade do poema, até o surgimento do Poema Processo. A proposta Wlademiriana, ao criar o Poema Processo, força a ciência da literatura a reconhecer uma arte em que o espaço gráfico, como o concebíamos até o Concretismo, é secundário, até mesmo porque a realidade semântica do poema não é imposta unicamente pela ocupação da página pelas palavras. É neste sentido que podemos afirmar que o Poema Processo contabiliza (e radicaliza) o patrimônio estético/literário do Modernismo e da geração Noigandres, somando a ele emblemas de uma indústria tecnológica emergente. Nesta nova proposta, nos deparamos, mais do que um espaço gráfico, com um espaço semiológico dotado de funcionalidades que devem ser comandadas pelo leitor. O poema, mais do que um objeto a ser significado, é um programa gerador de possibilidades textuais e sígnicas. Às palavras, cada vez mais raras e atomizadas, acrescentam-se os pontos, espaços, volumes, ranhuras, dobraduras, etc, na formatação do poemaprograma ou do programa-poema. A complexidade se afirma, portanto, não como soma de materiais, mas como interação, numa rede de significação em que o jogo da diversidade se realiza não apenas na variedade do suporte/signo, mas no movimento da mente decodificadora/criadora que efetivará os processos de cruzamento e inter-relação entre transparência e opacidade, palavras, texturas e imagens,
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cores, gráficos e imagens. Fazendo uma avaliação do poema poesia processo, afirma Álvaro de Sá (1973:101) que, antes do computador “o importante era resolver problemas, demonstração de virtuosismo”, agora o importante é formular problemas. Elaborar um poema, dentro da ótica proposta pelo Poema Processo, é criar um programa de leitura. Esse programa se sustenta numa linguagem cifrada e disponível a reelaborações diversas, a que Feres, Mingote e Nova (2006: 140) dão o nome de versão, ou seja, “a possibilidade de que o consumidor do objeto artístico recrie o processo de criação do autor, apropriando-se dessa lógica, reconfigurando-a, à sua maneira. Assim, se o primeiro nível do Poema Processo se caracteriza pela pluralidade e diversidade de elementos que o compõem, no segundo, animado pela leitura, essa soma de elementos se torna, mais do que uma soma, um todo inter-relacional, que emerge numa espécie de ecologia de sentidos. 4. Complexidade e singularidade Uma terceira característica da complexidade diz respeito à singularidade do complexo. A complexidade se caracteriza pela instabilidade, pela incerteza e pela unicidade, no sentido de que uma realidade complexa está sempre em movimento, sempre se modificando, sem chegar jamais a uma situação final de equilíbrio e sempre entabulando o diálogo entre o múltiplo e o uno, o objeto e o sujeito. O sujeito, na Teoria da Complexidade, é o observador. Segundo Schinitiman (1996:15), a complexidade se afirma como um princípio organizador do conhecimento, o que só pode ser efetivado pela ação de um observador, responsável por outorgar força tanto “à articulação e à integração como à distinção e à oposição”. Para Martinazzo (2004:42-43), A complexidade admite que em toda a objetividade há a presença de subjetividade, uma vez que o conhecimento é resultado da visão de mundo do sujeito por intermédio de representações, conceitos ou sistemas de idéias. O conhecimento não pode prescindir da presença do observador-conceituador em toda e qualquer observação
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e experimentação, pois o homem é sujeito no e não do universo. Reportando-nos às palavras de Moraes (2004:189-190), o foco, no pensamento complexo, não estaria apenas no objeto, mas nas suas relações, nas conexões ocorrentes, todavia sem esquecer o objeto ou o sujeito. Este estaria contextualizado, focalizado em suas relações com o objeto, com a realidade. Focalizar as inter-relações sujeito/objeto é reintegrar o objeto em seu contexto, reintegrando também o sujeito que havia sido esquecido pela epistemologia tradicional. Na realidade complexa, portanto, existe sempre um sujeito observador que é capaz de dar significação ao todo complexo. Esta subjetividade criadora é também um dos fundamentos do ser da literatura. O leitor, já reconhecido pela ciência da literatura como co-autor, é responsável pela significação, pela atribuição de sentidos ao texto literário. E, assim como a realidade complexa, também a realidade poética jamais se repete, posto que nenhuma leitura é exatamente igual a outra. Isso ocorre basicamente por dois motivos básicos: em primeiro lugar, porque a natureza polissêmica do ser literário possibilita várias possibilidades de leitura, o que se deve ao caráter conotativo da linguagem literária. Em segundo lugar, porque o ato de ler exige o investimento da subjetividade do leitor, que contribui com a sua experiência de mundo, com os saberes por ele acumulados e com a sua sensibilidade, de modo que, de fato, uma leitura jamais será igual a outra. Mesmo se considerarmos que a leitura seja feita por um mesmo indivíduo, ainda assim jamais duas leituras serão exatamente iguais. No Poema Processo, a subjetividade do leitor se torna mais significativa, no sentido de que o leitor passa, ele próprio, a fazer parte do poema. O leitor não é apenas um sujeito que, mesmo investindo sua subjetividade, permanece fora do literário. Analisando o efeito estético da dobradura em Sólida (1955), de Wlademir Dias Pino, afirmam Feres, Mingote e Nova (2006:142) que
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não apenas o objeto é dobrado, mas o próprio fruidor torna-se uma dobra possível do objeto, e vice-versa. Cada um se faz, fazendo-se, ao mesmo tempo, leitor e leitura, por meio do outro. Não há mais como discerni-los, transformados agora nessa outra estrutura móvel, o fruidorobjeto. Somente a partir dos deslocamentos de ambos é que as significações são possíveis. A partir da inclusão do leitor como elemento semiótico do Poema Processo, no fenômeno literário não existe mais hierarquia entre texto e leitor, assim como também a distinção dentro/fora, o que tem conseqüências não apenas para a compreensão do processo de significação do texto poético, mas na própria concepção do literário em si. O que temos é uma realidade complexa em que nenhum dos elementos envolvidos se afirma mais importante do que outro, ambos habitando um não espaço, o domínio das possibilidades. Ao incluir o leitor como elemento semiótico do poema, o Poema Processo multiplica a complexidade do texto, tanto no que diz respeito ao número de variáveis quanto em relação ao número de possibilidades de relações, posto que o leitor contribui com uma diversidade de valores, saberes e sensações que colocam o poema em inter-relação com todos os níveis de realidade existentes, tidos como “extra-literários” mas que formam o ambiente ou a ecologia em que a literariedade se define. Como se pode observar, o fenômeno literário dialoga com a teoria da complexidade, no sentido de que representa ou metaforiza alguns dos seus pressupostos básicos, como, por exemplo, a diversidade, a interação e a subjetividade. No caso, entretanto, do Poema Processo, pudemos observar que esse diálogo se intensifica na medida em que a fisicalidade do poema é inserida como elemento sígnico no poema, aumentando efetivamente o número de elementos estruturais do texto, o que acarreta conseqüências também no nível de complexidade do mesmo.
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