Marés Calmas

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A vida de tr ê altera e qus pessoas, cujo percu r e acabam p or se cruzaso se As suas dúv r. idas, o seu quotidiano encontro in esperado… , o seu Os persona gens s poderiam são fictícios, mas er reais. …


Marés Calmas 1.1 A mudança Naquela madrugada tudo estava mais calmo do que o habitual. Na rua não parecia existir o movimento caótico de viaturas, ruído de motores, buzinas e de vendedores a apregoar os seus produtos. Durante alguns instantes, ainda aturdido pelo sono de uma noite mal dormida, distendeu-se na cama, aconchegou-se e pensou em voltar a dormir, alheando-se totalmente de tudo o que pudesse perturbar o seu descanso Um cão começou a ladrar. Um cão, pensou… Estaria a sonhar… O sono esvaiu-se perante o latir do animal. O despertar revelou a realidade não consciente. O local parecia-lhe desconhecido, paredes esfumadas, estaladas, esburacadas, em que cada canto pedia a mão de um pintor profissional que se esmerasse numa renovação de estrutura e cor. O colchão era tão espartano que dormir em cima da velha alcatifa teria tido um efeito muito mais relaxante. A cama não era a sua, concluíu. Um singular raio de sol conseguiu entrar no espaço, irradiando uma luz agradável mas parca. Estava na ilha, pois já estava na ilha, recordou-se. A luz clareou a sua mente que durante segundos ainda teimava em perseguir um adormecer. Levantou-se de um pulo. Não conseguia ter noção das horas, não havia relógio no quarto, não sabia do seu relógio de pulso. Olhou em redor, vasculhando todo o espaço numa observação minuciosa e esforçada. O relógio não estava ali. A procura imóvel do objecto levou-o a sentir fome. E que fome! Melhor sair dali e tomar pequeno-almoço, pensou. De certeza que os proprietários teriam alguma comida na cozinha, considerou já mais animado.

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Marés Calmas 1.2 Pequeno-almoço A casa era grande com corredores compridos e pouco iluminados. Em tempos a decoração rústica deveria ter marcado o auge do lugar, mas com o decorrer dos anos estava baça. Sentiu prazer em descer os degraus em semicírculo que levavam ao piso inferior. Não conseguiu encontrar o quarto de banho. Depois do hall, à esquerda via-se a sala de jantar e à direita um pequeno corredor conduzia a uma área de serviço interno. Tomou essa direcção e chegou a uma cozinha enorme, com uma mesa central. Viam-se produtos hortícolas dispostos desordenadamente em cima da mesa rectangular de tábua corrida: couves, alfaces… • Bom dia João Miguel. Posso tratá-lo assim, não? Claro que sim! Bom dia! Queria lembrar-se do nome dela. Sabia que tinha nome de flor… Hortense? Não. Margarida? Talvez. Ainda se sentia aturdido. Deve ter fome. Tem pão fresco naquela bancada e manteiga no frigorífico. Sumo, leite o que preferir. Obrigado. Vou servir-me. O almoço é à 1h30. Óptimo. E o Sr. Pedro? Está nos trabalhos faz horas. Aqui começamos cedo… – não quis continuar para não ser rude. Não o conhecia, pensou. Vou já tentar encontrá-lo. Coma descansado. Nada como a primeira refeição do dia… Também, acabou de chegar – retorquiu num tom afável. João Miguel sorriu. Por cima do frigorífico havia um grande relógio de parede, em madeira encerada. Marcava 10h59. Finalmente tinha conseguido saber as horas. Era tarde. Serviu-se de uma fatia de pão com manteiga e um pouco de sumo de laranja, o primeiro jarro na prateleira do frigorífico. Não viu leite, também não o procurou. O pão era grande, caseiro. Recordou-o da sua infância e da casa da sua avó Celeste. Há anos que não comia pão caseiro, cortado à fatia.

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Marés Calmas 1.2 Pequeno-almoço Sentado, melancólico e alheio à senhora com nome de flor, que se atarefava junto ao lava-loiça lavando a hortaliça. Lembrou enquanto mastigava o seu pão, do seu donut de chocolate e da meia de leite tomados à pressa na pastelaria de esquina. Sempre um donut… Saboroso, interrompido com ‘sms’, chamadas e cumprimentos de outros clientes da Pastelaria Central que entravam no local e cuja presença em horário habitual transformava todos em amigos de rotina. Tomou o pequeno-almoço em silêncio. Do outro lado, a sua companhia começava a pensar na tristeza do rosto do João Miguel. Ora, há-de passar-lhe – concluiu, para se concentrar no seus afazeres. O almoço estava atrasado.

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Marés Calmas 1.3 Encontro com Pedro Bacéu João Miguel saiu pela porta traseira directamente para a horta. Banhou-o um forte aroma a flores e um cheiro a madeira numa mistura pouco familiar. Apressou o seu passo e tentou encontrar Pedro Bacéu, amigo de há longa data de Carlos Maria, seu amigo de infância. Encontrou-o perto do estábulo, a limpar o chão. Bom dia, Sr. Pedro. Viva! Como se sente? Trate-me por Pedro, é o meu nome. Bem! Por onde posso começar? – respondeu de rompante. Não era verdade. O corpo doía-lhe e a cabeça não parecia a sua, estava oca. Calma, homem. À tarde vamos dar uma volta para se ambientar com as áreas do terreno. Ainda são uns quantos hectares… Agora tenho de acabar a limpeza aqui. Vemo-nos ao almoço. Até lá, aproveite para arrumações ou para tomar um banho. Tem um ar exausto. Obrigado. De facto um banho é uma boa ideia! Bom, até já. E prosseguiu com o trabalho. Esperemos que este convite de amigo tenha sido uma boa ideia, pensou.

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Marés Calmas 1.4 Num outro local Bem longe dali, Francesca apressava o passo numa avenida apinhada de transeuntes. Alheada das montras das lojas elegantes da Via Venetto tentava esgueirar-se por entre as pessoas que caminhavam devagar, conversavam, paravam, constatavam preços… À distância ainda ouviu : Que belo decote naquele vestido. Alguém respondeu: Magnífico. E a cor da seda… Entramos, para ver melhor? Francesca Caprezzi não se deteve, nem olhou para trás, continuando a caminhar no seu passo leve, apressado. Ainda faltavam cerca de 200 metros até chegar ao seu destino e estava atrasada. Marcar a reunião para este horário não foi uma boa ideia – pensou. Contornou, saíu um pouco do passeio para evitar embater numa velhota que se apoiava numa sombrinha da sua idade e entrou num edifício. Agora bastava subir dois lances de degraus até ao primeiro andar direito. O edifício de cinco andares estava construído há 62 anos. Á entrada, do lado direito da porta principal, uma placa em latão indicava o ano da construção, o nome do arquitecto responsável pelo projecto e o ano da renovação total do prédio, sem mais detalhes. O seu hall era amplo, as paredes revestidas de um material alvo e as quatro colunas que ladeavam os primeiros degraus eram em mármore róseo. O tecto formava uma abóbada e no centro os trabalhos em alto relevo, mostravam um bouquet de flores. Á esquerda dois espelhos rectangulares a uma distância paralela reflectiam as plantas plastificadas dispostas perto da parede oposta. Não havia elevador. Os degraus da escada tinham uma altura regular e encontravam-se cobertos por uma fina alcatifa de um vermelho escuro. Os dois primeiros pisos habitualmente ocupados por escritórios de empresas com actividades diversas não se encontravam totalmente ocupados. Havia um dístico na porta do primeiro andar esquerdo com : Para arrendar. O primeiro direito tinha sido outrora o escritório-sede de uma revista de Moda. Dois dias após a sua última edição impressa, fechou portas, tendo a fracção, pertencente a um particular abastado, sido alugada a um preço bastante módico ao recém criado Movimento.

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Marés Calmas 1.5 A reunião Tocou à campainha desta feita já em frente à porta do primeiro direito. A porta abriuse e ouviu uma voz masculina: Até que enfim! Entra, já começámos mas ainda vamos no segundo ponto da ordem de trabalhos. Olá! É infernal chegar aqui a esta hora. Péssima ideia agendar a reunião para as 13h00. Fabrízio não respondeu. Limitou-se a entrar na sala e ocupar a cadeira que lhe estava destinada. Alguém iniciava o comentário ao ponto três dos dez previstos para debate. Francesca não o conhecia. Sentou-se numa das últimas cadeiras livres na última linha em relação ao estrado improvisado, num fundo frontal com um quadro branco. Viu um aceno de alguém à frente. Era Giovanni a saudá-la. Um rosto familiar! – pensou. Acenou-lhe de volta. O orador referia agora os danos causados nos oceanos pelo derrame de petróleo. Milhares de espécies marinhas colocadas em risco de extinção. Francesca ouviu-o atentamente e no final resolveu intervir e colocar uma questão: Detectados os problemas, qual as medidas que poderemos tomar? A situação dos mares e oceanos, rios e riachos e de todos os despejos de produtos tóxicos são sobejamente conhecidas de todos os presentes, atrevo-me a dizer. Mas se nenhuma acção é preconizada, o Movimento não tem razão de existir. Concordo. – disse uma morena que se encontrava a meio da sala. Concordamos todos! – afirmou o orador desconhecido. E os braços de todos os presentes ergueram-se e as vozes ecoaram. SIM! Giovanni sentiu-se satisfeito pelo andamento da reunião. Tinha tomado a decisão acertada ao convidar Francesca para o Movimento e ao persuadi-la para que aceitasse o convite. Também não tinha sido difícil. Era a pessoa certa, assertiva, ativa, interessada e com uma energia contagiante. A reunião prosseguiu durante mais duas horas. Os sete pontos seguintes foram debatidos detalhadamente e no final decidido por unanimidade realizar uma manifestação pelas principais artérias de Roma para dar a conhecer a defesa da ecologia a nível global prioridade do Movimento ‘Ecologia no Mundo’. Estou absolutamente faminta! – exclamou Francesca. A esta hora quem não estará – disse Giovanni. Vamos todos almoçar. Conheço o restaurante certo para nos servir um bom almoço a esta hora. É perto? – questionou Lauro, o orador. A meio do próximo quarteirão. Vamos então, experimentar as iguarias do sítio – alvitrou Francesca com muita vivacidade.

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Marés Calmas 1.6 A grande distância Avançava a madrugada, quando o ar começou a refrescar. O calor escaldante do dia anterior dava lugar a uma brisa amena que soprava suavemente através das persianas abertas. A lua brilhava no seu circulo cheio e os contornos vermelhos faziam antever sucessivos dias de calor. Uma outra luz ténue brilhava no quarto num ousado piscar de olhos com o brilho lunar. Não havia qualquer brecha que permitisse uma percepção do material da mesa situada num canto do aposento, dado o amontoado de papeis rabiscados, dossiers e pequenas pastas abertas numa imensa mistura desordenada e aparentemente descoordenada. Do outro lado, um laptop ligado e aberto deixava que se visse um vulto embrenhado, batendo num teclado, forçado numa escrita veloz mas concentrada. Nunca se tinha considerado eloquente e não fazia parte dos seus sonhos chegar a um lugar de destaque no seu meio profissional. Consciente das suas limitações, entregavase ao que mais gostava de fazer. Tido por muitos por um trabalhador incansável, era na verdade esforçado e minucioso nas suas investigações. Produzia relatórios concisos, cujos tópicos possibilitavam uma apreensão rápida e correcta dos casos. Distinto mas temido pelos seus ímpetos de fúria, muitas vezes motivados por um sono escasso, se tinha um defeito acentuado era o de se perder no tempo, consumindo horas a fio à procura de possíveis falhas nos depoimentos das várias testemunhas. Duncan Alby não sabia as horas. Ao acabar o seu trabalho, sentiu-se extenuado e com sede. Espreguiçou-se na cadeira com as suas mãos cruzadas atrás da nuca e bateu com os pés no chão para se descontrair. Ergueu-se depois em direcção à cozinha e ao frigo. O sumo de pêssego deslizou para o copo, deixando-o embaciado. Ao fim do segundo copo, ficou reconfortado. E vou descansar. Deve ser perto da 1h00 – considerou. Resolveu consultar o relógio num gesto de confirmação. Oh, 03h40. Nem acredito! – pensou de si para si. Dirigiu-se ao seu quarto, localizado na parte lateral da sua habitação vazia e deitouse. Passados poucos minutos, adormecia profundamente.

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Marés Calmas 2.1 Ambientar-se O carreiro era estreito e térreo, e percorridos os primeiros cinquenta metros em direcção à casa, havia uma curva acentuada. A seguir, tinha-se a percepção da dimensão da parte traseira da habitação e como de um quadro se tratasse, ressaltava uma quantidade imensa de flores dispostas de uma forma pouco harmoniosa mas contrastante com o aspecto austero da construção, e que adicionava à pintura uma palete de cores até aí ausente. O caminho de regresso, em passada calma e compassada, deu-lhe o alento que parecia perdido. O local é muito agradável – pensou João Miguel, afastando qualquer outra ideia que pudesse tornar o horizonte cinzento. Ao entrar em casa deparou-se com um rapazinho que estava a entregar umas mercearias em dois pequenos sacos e a receber o pagamento. D. Margarida, obrigada. Assim foi muito melhor, as moedas dão sempre jeito. Até amanhã. Adeus Nelo, espero que amanhã não falte mais nada na dispensa. Vêm entregar as compras a casa? – perguntou João Miguel. Ás vezes mas só aqueles produtos que ficaram esquecidos. Nós deslocamo-nos ao mercado normalmente duas vezes por mês. Qualquer coisa que nos falte, encomendamos e entregam sem custos gasóleo, se houverem entregas a outros clientes nas proximidades. Mas há pessoas a morar nas imediações? A noção de proximidade aqui é um pouco diferente… Depois verá! Estava a pensar ir arrumar as minhas coisas e tomar um banho antes de almoço. Ótima ideia. Eu subo consigo para mostrar o seu móvel, o quarto de banho e onde estão guardados os seus atoalhados. Assim fica mais à vontade.

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Marés Calmas 2.1 Ambientar-se Subiram os dois, João Miguel atrás, satisfeito por não ter de confirmar o nome da mulher de Pedro Bacéu. Que sorte ter presenciado a entrega dos produtos – pensou. De estatura mediana, cabelos encaracolados e um ar desenvolto, Margarida não tinha um traço em particular que a distinguisse, a não ser a sua genuína simpatia. Uns olhos castanhos ávidos e umas mãos irrequietas, que não gostavam de estar desocupadas, completavam a sua figura graciosa. A Margarida cuida da casa sózinha? Posso tratá-la assim, por Margarida? Sim, sim, Margarida ou Guida, como preferir. Temos uma senhora que normalmente trabalha aqui três vezes por semana, mas neste momento tirou uns dias para visitar um familiar em Ponta Delgada. E continuou: O seu móvel é este, as cinco gavetas estão vazias, pode utilizá-las e o restante, blusões, blazers ou calças pode utilizar este armário – disse. Premiu uma ranhura perto do móvel e deslizou a parede falsa, que ocultava um armário espaçoso, que continha apenas um cobertor grosso dobrado, uma almofada e duas toalhas de banho. Que bom aproveitamento de espaço! – exclamou João Miguel. A ideia foi do Pedro. Tivemos que fazer algumas remodelações na casa, esta foi uma delas. Faltam executar umas quantas, mas o Pedro gosta de comentar essas coisas de obras. Falarão depois, com certeza. Acrescentando: tenho de descer e verificar o assado. Até já! Obrigada, Margarida.

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Marés Calmas 2.2 Arrumações Meia hora bastou-lhe para colocar as roupas em ordem. Tinha optado por trazer apenas umas peças mais práticas, cinco camisas, várias camisolas de algodão, roupa interior para uma semana, dois pullovers, um camisolão, um blusão e um blazer com calça idêntica e jeans. A gaveta de cima acabou por ficar com os seus objectos de higiene, after-shave e outras coisas soltas, como o seu Tag Heuer e uma gravata – que agora se questionava por que motivo teria resolvido trazê-la. Disparate! concluiu. Ao voltar ao quarto, resolveu fazer a cama. Tarefa cumprida, olhou em redor. Na única peça de mobiliário existente para além da cama, uma mesa em madeira de pinho sem verniz, colocou o seu portátil e tentou encontrar uma tomada de corrente, mas só existia uma quase no final da parede. Teria de comprar uma extensão de fio, algures, ou pedir uma. Hoje não – pensou. O banco de madeira perto da mesa era sólido mas parecia ter uma perna mais curta, ao sentar-se sentiu um ligeiro desequilíbrio. Ora isto tem conserto – concluiu de si para si, sem dar importância. Num olhar mais detalhado, acabou por achar prático ter só um pequeno candeeiro de pé perto da cama. Só é pena o colchão ser tão rijo – congeminou. Decidiu ir tomar um duche. A água tépida e o aroma do sabonete foram revigorantes. Vestiu-se rapidamente pois estava em cima da hora do almoço. Não queria ser desagradável logo no primeiro dia.

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Marés Calmas 2.3 O quebrar do gelo Atirou a roupa suja para o cesto de palha perto da janela e desceu, dirigindo-se à cozinha. Tenho de confirmar se a minha roupa deve ficar ali… João Miguel, venha para aqui! – ouviu. Era a voz de Pedro a chamá-lo. Voltou para trás em direcção à sala e viu Pedro em frente, já sentado à mesa. Então pensava que ficávamos na cozinha?! disse Pedro. De facto foi o que pensei…- concordou João Miguel, abanando a cabeça. Eu já estou a petiscar. Que fome! E estendeu um pratinho com azeitonas pretas. João Miguel sentou-se num dos lados e sorriu. Também já tenho algum apetite – respondeu. E aceitou uma azeitona. Vamos comer o assado acompanhado com hortaliça cozida do nosso cultivo e em seguida vamos dar uma volta pelas terras. Se precisar de alguma coisa, damos um pulo à aldeia. Concorda? Parece-me um bom plano. Margarida trouxe o tabuleiro com o lombo de porco assado e algumas batatas, e João Miguel levantou-se e ajudou-a a transportar o restante: a travessa com a hortaliça, mais pão e a fruta para a sobremesa. O almoço aliviou a formalidade e o diálogo fluiu quase como se fossem conhecidos de tempos idos.

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Marés Calmas 2.4 Preparativos O final de tarde estava esplêndido e desafiava a um passeio pela cidade ou a uma paragem numa esplanada, das várias dispersas pelas aprazíveis praças de Roma. Apesar do habitual bulício da hora e das hordas de turistas ávidos por ver, calcorrear e desfrutar da beleza da urbe, Francesca apenas queria chegar rapidamente a casa para coordenar todas as ideias afloradas durante a reunião. Tenho trabalho pela frente – pensou. Uma ou duas horas, não mais, espero. O seu bairro era calmo, localizado num dos subúrbios, a cerca de 38 km a norte da capital. Já se encaminhava para o seu 3º andar, quando se lembrou que precisava de passar pelo mini-mercado na Viale de Africa. Saíu de novo do edifício e ao cruzar-se com a sua vizinha do 2º andar já na rua, cumprimentoua efusivamente como era seu hábito. Viva Roberta, que bela tarde temos hoje! Olá Francesca! Sempre bem disposta! Este sol é nosso, verdade? Verdade. Até logo. Tomamos um café mais tarde? – sugeriu Roberta. E por que não? Na sua casa ou na minha? Na varanda da minha sala! Nove meia? De acordo – respondeu Francesca. Até lá. Agora tenho de correr para fazer algumas compras, antes que as lojas fechem. Chiao! Vemo-nos mais tarde. Francesca apressou o seu passo mais uma vez. Andava sempre a correr de um lado para o outro – pensou. Por que seria? Ora! Era assim mesmo, não sabia viver de outra forma.

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Marés Calmas 2.4 Preparativos Continuou por aquele passeio até ao final do seu quarteirão, aguardou que o semáforo assinalasse luz verde para o peão e atravessou, continuando sempre em frente até meio do quarteirão seguinte. Deteve-se numa banca de frutas, cheirou uma maçã e apanhou um saco de plástico transparente dum monte de sacos à direita. Escolheu cinco ou seis maçãs, depois umas uvas e finalizou enchendo um saco com umas laranjas pequenas e feias e dirigiu-se ao interior da loja. Boa tarde a todos – saudou Francesca. Boa tarde, senhora – respondeu Dino ao aceitar os sacos. Temos laranjas maiores do que estas, ali, viu? Vi, mas estas são boas para sumo. É tudo? 10,85€. Obrigada. Até amanhã. Francesca pagou e saíu em direcção ao mini mercado. Atravessou a avenida a meio e o jardim municipal e em cinco minutos chegou ao mini mercado. Comprou sopa congelada, um pacote de chips, aperitivos, salame, pão e manteiga. É suficiente – pensou. E colocou-se na fila para pagamento. Só nesse instante, começou a aperceber-se que não ía ter muito tempo para elaborar o trabalho combinado com Giovanni. Pois aceitei o café… Ah, logo se verá! No caminho de regresso, olhou distraidamente para os prédios de apenas quatro ou cinco andares e frentes direitas. Sentia-se uma aragem quente que não chegava a ser vento. Muito agradável – Francesca concluiu contente. Ao chegar a sua casa, arrumou as suas compras. Colocou parte da sopa numa tigela pequena dentro do microondas e a outra parte acondicionou no frigorífico, onde já estava o salame e a manteiga. Preparou um tabuleiro que deixou em cima do balcão.

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Marés Calmas 2.4 Preparativos Na sala, abriu um dossier e pensou em iniciar o seu trabalho. Computador ligado, rapidamente elaborou um resumo da reunião, tentando não falhar qualquer comentário dos diversos oradores. Ata concluída e enviada por correio eletrónico. Cópia colocada no dossier. Decidiu verificar como estava a situação online. A página do Movimento mostrava última entrada da manhã desse dia. Grupo+ e blogue. O Grupo+ estava animado e os comentários sucediam-se entre os membros mais próximos. Acompanhou a conversa durante mais de 10 minutos, soltou ‘um até sempre’ ‘ate amanha’. e verificou o blog. Giovanni atarefava-se – pensou. Amanhã estará mais completo! E fechou a ligação. Tinha de aquecer a sopa e jantar. A criação dos panfletos ficaria para depois do café.

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Marés Calmas 3.1 Roberta Trenni O apartamento era pequeno. Uma acertada escolha de móveis, na sua maioria brancos, dera ao espaço uma aparente amplitude, e a disposição de objetos e almofadas vermelhos transmitia logo à entrada, uma alegria espontânea ao visitante. Roberta Trenni preparava o tabuleiro para o café quando a campainha da porta soou. De imediato, Roberta pulou sobre a sua direita, esticou o braço premiu o botão da máquina de café no On e impacientou-se em direção à porta. Ao abrir deparou-se com Maria, a sua vizinha do (1ºD). Ah – suspirou em tom de surpresa. Recompôs-se. Sim, Maria? – acabou por balbuciar. Olá Roberta. Pode por favor baixar o som da sua música? Sabe, estamos a tentar descansar e não conseguimos. Oh, desculpe! Vou baixar, claro que sim. Nem estava a reparar que estava tão alto. Obrigada. Até amanhã. Xau! Fechou a porta devagar, sorriu tapando a boca e encostando-se levemente à parede por um instante. Em seguida, baixou o volume de som da música e regressou à kitchenette para colocar uns biscoitos no tabuleiro e verificar o nível de água da máquina, quando a campainha se fez ouvir novamente. Será que o som da música não está ainda suficientemente baixo?- murmurou para si. Abriu a porta e lançou um olhar atónito. Afinal, era Francesca. Pareces admirada. Enganei-me no dia ou na hora? – perguntou Francesca a sorrir. Olá! Ora nada disso. Entra! Convenci-me de que seria novamente a Maria do 1º com problemas com o nível de som… Mas que aborrecido! – interrompendo. Está sempre a queixar-se não é?

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Marés Calmas 3.1 Roberta Trenni Quase todos os dias. Bom vamos tomar o nosso café! Vamos! A sala está diferente de novo? Nem acredito! Roberta, quanta necessidade de mudança das coisas!!!- exclamou. Renovação!- gritou Roberta da kitchenette. Noção de renovação, minha querida. Não há um único objecto novo, mas gosto da ideia do paralelismo com a novidade. Pois. – respondeu Roberta de forma desinteressada. E de resto? De resto – continuou Roberta num timbre de voz alto – pareces cansada. Talvez esteja, mas muito satisfeita e convicta de que estou a desenvolver uma actividade útil e construtiva. Roberta trouxe os cafés e os biscoitos e deixou-se cair desamparadamente no sofá ao lado de Francesca. Sabes, voltei a encontrar o Marcus – informou. Francesca tirou o seu café do tabuleiro tentando recordar-se do Marcus, deu um golo no seu café, e olhou pausadamente para Roberta a mexer o açúcar na sua chávena. Não sei se terá sido um acaso feliz – acabou por dizer. Nem eu – respondeu Roberta. A vida é assim. Estivemos duas horas a conversar. Ele estava giríssimo, tal como quando fomos ao Temper, lembras-te? Nós fomos ao Temper há meses… três ou quatro, suponho. Desculpa, mas não me recordo Roberta. Que desmancha prazeres! Como é possível não ter ideia? Francesca considerou de si para si, se aquela visita a Roberta não teria sido uma perda de tempo, tempo tão precioso para a sua nova atividade. Durante alguns escassos momentos, alheou-se dos diversos pontos vermelhos da sala, da espampanante blusa de folhos em tom laranja da amiga e fez um ‘tour’ rápido pelo passado recente da vivência de ambas.

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Marés Calmas 3.1 Roberta Trenni Decerto o vidro transparente que começava a erguer-se entre elas, devia-se essencialmente a um nome, a alguém: Giovanni. E disso Roberta era totalmente alheia. A convicção de Giovanni havia transformado a vida de Francesca. Uma forma de contágio, extremamente veloz, modificara o seu quotidiano e transformara-a numa pessoa muito mais consciente de um mundo que existia para além dos amigos, da casa, e do ex.namorado – que na verdade a constrangia, atalhava as suas ideias e até os seus movimentos. Ao contrário, Roberta mantinha-se fiel ao seu ideal de vida de sempre: ter um relacionamento estável, casar-se bem, e ter um trajeto sem recurso a um emprego, numa dedicação total à família e aos filhos. E ir a festas, claro. Francesca demitira-se sempre de qualquer opinião sobre o assunto. Por outro lado, a forma alegre e jovial da amiga tinha contribuído e muito, para aliviar os seus dias taciturnos durante o período de procura de colocação profissional. Sem ela, tudo teria sido assaz dramático, atendendo ao carácter intempestivo de Francesca. A imagem desse tempo fê-la estremecer. Acabou por ouvir Roberta a insistir na pergunta. Afinal só tinham decorrido alguns segundos… Até parece que não ouviste nada do que eu disse… Oh, claro que ouvi. Só que estava a tentar recordar-me com mais minúcia dessa época, do Marcus. Roberta, eu nunca omiti o meu desagrado pela forma como ele trata as mulheres. Nada do que ele afirma no que respeita a sentimentos ou episódios passados me parece credível. Receio pela minha amiga. E ele já te deixou ‘pendurada’ uma vez num local desconhecido e sem uma explicação atempada, acrescentou. A mãe estava doente, foi a explicação que ele me deu no dia seguinte.

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Marés Calmas 3.1 Roberta Trenni Está muito bem – respondeu Francesca, pondo um ar incrédulo. Mas nós já passámos da adolescência. E depois existem sms’s que se podem enviar no momento em que surge algum imprevisto. Foi a vez de Roberta ficar pensativa. Começou a brincar com a colher de café do pires da sua chávena de café, olhou em redor e acabou por dizer: Francesca, eu sei que tens razão. E também sei que como minha amiga queres evitar-me mais uma desilusão. Mas se uma pessoa não tenta, acaba por nunca saber. Ele convidou-me para uma sessão de cinema no sábado. Eu vou aceitar. Pensei telefonar-lhe amanhã. Cinema no sábado…E a sessão é numa sala pública de cinema ou em casa? Ora, Francesca. Que má vontade! No cinema, claro. – afirmou contristada. Está bem, óptimo – disse Francesca, não muito convencida. Mudando de assunto, lembras-te daquela mesa que vimos em Roma, quando saímos de La Pizzaria? Estou a pensar comprá-la. Que te parece? A mesa pequena, decorativa, ou a outra maior, tipo secretária? A maior. Será que ainda está disponível pelo mesmo preço? Eu estou nas imediações todos os dias. Posso perfeitamente dar um pulinho à loja ao final do dia. Queres? – prontificou-se Roberta. Obrigada. Que querida! Podias verificar o preço e a medida. Ou então, combinamos e passamos lá as duas. Também poderá ser. E quando? Sexta-feira, a próxima sexta-feira. E em seguida experimentávamos a outra pizza. Excelente. Combinado. Depois ligo-te para acertarmos a hora.

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Marés Calmas 3.1 Roberta Trenni Durante o dia de sexta-feira? Sim. Se houver algum imprevisto, falaremos antes. Claro! Roberta, tenho de ir. Já é tarde e ainda tenho de preparar uns panfletos para amanhã. Panfletos??? Tem cuidado, Isso não é nada de perigoso, pois não? Não, obviamente que não. Temos de preservar o nosso planeta e lançar alertas às populações, só isso. Francesca levantou-se e dirigiu-se à porta. Até amanhã. Dorme bem – desejou Roberta. Até amanhã. O café estava óptimo, obrigada. Xau.

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Marés Calmas 3.2 O processo Duncan acordava sempre muito cedo. Era um hábito crónico, e mesmo quando não era necessário levantava-se ao romper do dia. Durante a semana, gostava de ter muito tempo para todos os pormenores: reler os papéis com anotações, reverificar os dados a transportar, ouvir os primeiros noticiários do dia, abrir a janela envidraçada da varanda e decidir a cor do fato para esse dia, da gravata e da pasta. Seguidamente dava uma passeio com o seu cão Tim. No regresso, preparava o pequeno-almoço para ambos e finalmente tomava o seu duche, barbeava-se e saía calmamente despedindo-se calorosamente de Tim. O percurso até ao escritório parecia-lhe sempre curto, dado os poucos carros a circular àquela hora. A hora de ponta seria mais tarde. À saída da sua zona residencial, apreciava a tonalidade das folhas das árvores que ladeavam a avenida e depois embrenhava-se nas artérias da cidade. Ao chegar ao seu edifício, contornava-o até visualizar a entrada para a garagem, onde tinha um lugar cativo para estacionamento no piso imediatamente inferior à entrada do prédio. O seu gabinete localizava-se na área central do 3º andar, sob o lado direito do elevador principal. O piso era todo alcatifado num imponente vermelho escuro e o corredor de acesso aos diversos gabinetes e salas tinha várias litografias alusivas à cidade emolduradas a dourado, numa ordenação quase cronológica. O seu espaço, de dimensão média, tinha uma outra secretária que raramente estava ocupada. Destinava-se à representante da firma na filial de Auckland, para os raríssimos casos em que a sua deslocação profissional à cidade se tornava imperiosa, o que sucedia apenas em reuniões com clientes internacionais ou em formações, e cuja duração não excedia os três ou quatro dias. Apesar da sensação de uma comodidade clean, o ambiente estava impregnado de stress.

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Marés Calmas 3.2 O processo O computador sinalizava persistentemente que existiam três mensagens importantes por ler, pelo que urgia dar-lhes atenção para conseguir que o repetitivo som ‘clack’ pre-configurado parasse. Uma delas pertencia ao cliente cujo processo iria ser avaliado em audiência preliminar a meio dessa manhã. Anthony Sims pareceu-lhe muito ansioso, o que significava que Duncan Alby teria ainda de reservar um espaço de tempo para falar com ele pessoalmente antes do início da audiência. A outra mensagem era do Senior Partner da firma, Patrick S. Dynt. Solicitava uma reunião para ponto de situação daquele caso. Embora sendo um procedimento comum, este género de marcações de última hora deixavam sempre alguns laivos de desconforto em Duncan Alby. Sentado à sua secretária, não chegou a ler a terceira mensagem e o seu olhar desviou-se para o telefone. Discou a extensão da sua assistente e pediu um café e somente depois voltou a dedicar-se às mensagens. O café foi servido breves instantes depois e Duncan olhou para as horas. Tinha precisamente 10 minutos até à reunião , entretanto aceite via eletrónica. Recostou-se na sua cadeira e rodopiou em direção à janela e ao céu azul da cidade, mostrando-se extático. Todavia, a hesitação de Duncan crescia a cada segundo. Não existiam muitas opções – pensou. Apenas duas de acordo com o seu critério. Ou transmitia a única inconsistência do caso, aquela que poderia ser a pedra de toque para a derrocada da sua argumentação de defesa e consequente perda do processo, ou optava por omiti-la. Duncan tentou dissecar friamente as vantagens e desvantagens das duas opções. Se não divulgasse essa fragilidade, bem localizada, mais tarde em caso de derrota, seria certamente acusado por Dynt de ter negligenciado ou omitido um dado crucial. Se optasse por mencioná-lo, mais uma vez seria acusado de pessimismo e ouviria pela milésima vez uma palestra sobre as vantagens de ser menos minucioso e mais eloquente – em segredo, Patrick S.

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Marés Calmas 3.2 O processo Dynt pensaria que ele estava a vacilar perante o mais temido adversário, Robert Middletune. No entanto, as falhas na identificação e de provas levavam Duncan a considerar que para um advogado com o renome e competência de Middletune, seria impossível passarem sem serem detetadas, por mais que uma oratória bem construída, forte e evasiva fosse avançada. Como recurso, em sua opinião seria preferível tentar-se desde já um acordo do que deixar prosseguir o caso. Sem mais. O tempo parece ter galopado – pensou Duncan Alby. Vestiu o seu casaco, ajustou a gravata, pegou no laptop e saiu do gabinete.

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Marés Calmas 3.3 Pelas redondezas Soprava uma aragem quente que acariciava os rostos, quando João Miguel e Pedro Bacéu saíram de casa em direção ao jipe. O aroma das flores pairava no ar e continuava a surpreender João Miguel para quem todo o ambiente era uma novidade que aturdia o seu subconsciente citadino. A expressão carrancuda de Pedro contrastava com uma faceta comunicativa e muito cativante. Não estou a conseguir acompanhar toda esta informação, mas começo a simpatizar com ele – pensou João. Está a tentar ambientar-me… O trilho desde a saída da casa até à estrada principal de terra batida foi feito devagar e com muitos solavancos. A povoação mais próxima encontrava-se a cerca de 20 minutos. Pedro mostrou uma condução desenvolta mas calma, e durante todo o percurso mostrou-se mais concentrado na conversa e em João Miguel do que propriamente na chegada à cidade. É tão reservado, que mais parece querer esconder-se. Ou então está traumatizado… Caramba, não consigo entender nada deste tipo – congeminou Pedro Bacéu de si para si. Depois recordou-se das frases da sua Guida: “Nem tudo o que parece, realmente é, Pedro. As conclusões são bem melhores quando fortificadas pelo tempo.” E prosseguiu com a sua descrição da complicação com o arranjo do motor do poço. João Miguel escutava-o atentamente. Estacionaram no centro da vila, numa praça rodeada de edifícios municipais. Pedro Bacéu apressou-se a sair do carro e a indicar uma das ruas que desembocava naquele largo. João Miguel seguiu o seu exemplo, saindo do jipe.

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Marés Calmas 3.3 Pelas redondezas Vê aquela rua? – perguntou Pedro. João Miguel anuiu com um aceno de cabeça. Ali encontramos praticamente tudo o que precisamos para o nosso dia-a-dia: sementes de cultivo , ferramentas, peças para arranjo de máquinas, lojas de fruta… um mini-mercado, padaria… Tem alguma pastelaria? questionou João Miguel, interrompendo. Não me diga que ficou com fome?! Oh, não de forma alguma. Apenas pensei que poderíamos tomar a bica. Sabe, é a força do hábito – explicou um pouco a medo. Pois, nós nunca tivemos esse costume, mas há muitas pessoas assim. Então vamos primeiro à Pastelaria Torrente, por ali à direita e depois atravessamos em sentido contrário para fazermos algumas compras. Mas se lhe fizer diferença, podemos seguir já para as compras. Não, esta tarde será dedicada a mostrar-lhe a zona. Esta pastelaria para onde nos dirigimos tem um fabrico excelente e a última vez que recebemos os padrinhos da Margarida, o Joaquim adorou a bica na pastelaria. Na altura também estivemos no café da terra, mas segundo ele, ou pela ausência de creme ou pelo lote, o café não era tão bom. Eu como não sou apreciador, tenho de confiar na opinião dos entendidos. Então, vamos lá experimentar a bica da pastelaria! Atravessaram a praça, contornaram um pouco à direita e entraram numa rua algo estreita. Faltavam ainda alguns metros para chegarem ao local, quando se ouviu uma voz: Bacéu, então pelo centro? Pedro olhou à sua volta, quando de repente surgiu um homem alto a sair da porta de um prédio de dois andares, muito necessitado de pintura. Manuel, eu nem o via… É verdade, estou a mostrar a cidade a João Miguel, que chegou à ilha e a nossa casa ontem.

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Marés Calmas 3.3 Pelas redondezas Benvindo! exclamou Manuel, estendendo a mão para cumprimentar João Miguel. Vem colaborar na quinta? Boa tarde. Prazer! Espero que sim – respondeu João Miguel. Vamos tomar um café na Torrente. Os citadinos sentem falta da bica, sabes!? Eu também vou. Como vai a plantação? E a Guida? A Guida está ótima! A plantação um pouco atrasada mas se tudo correr bem, estará terminada antes das primeiras chuvas. Pedro, se precisares de uma ajuda suplementar, já sabes que podes contar comigo. Ao fim-de-semana, claro. Manuel, obrigado. Eu não gosto nada de pesar os outros com os meus assuntos, mas provavelmente desta vez vou ter de aceitar. Então e eu? Poderei certamente trabalhar nesse cultivo… – interrompeu João Miguel. E vai trabalhar. Só que até ter prática ainda vai demorar… No final da semana podes contar comigo e com a Brigida. Ela poderá dar uma mãozinha à Guida e fazer-lhe um pouco de companhia. As mulheres gostam de conversar! Combinado! Aparecem sexta-feira à noite ou no sábado de manhã? Entretanto já tinham entrado na pastelaria Torrente. As mesas dispostas em tipo L invertido estavam na sua maioria ocupadas por estudantes mas também por alguns idosos. Ficaram ao balcão, onde o funcionário, um homem robusto e sorridente que aparentava ter entrado nos finais de uns cinquenta muito bem vividos, acabava de atender uma cliente que comprava ‘petit-fours’. Após alguns instantes dirigiu-se aos três clientes recém-chegados. Viva, boas-tardes! Que vai ser? Boa tarde. Três bicas – pediu João Miguel.

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Marés Calmas 3.3 Pelas redondezas Não, para mim não – informou Pedro Bacéu. Nesse caso, são duas bicas. E água, Serafim. Três copos por favor – acrescentou Manuel. Pedro e Manuel continuaram a acertar os detalhes para o final da semana, e João Miguel alheou-se por instantes daquele diálogo. Estava algo ansioso pela bica. Olhou em redor, observando o local e constatou que apesar da falta de tato na decoração, respirava-se uma atmosfera acolhedora. As bicas foram servidas. O café era excelente. João Miguel sentiu-se reconfortado, e voltando-se novamente para as mesas considerou que talvez fossem os estudantes a converter o espaço, impregnando-o com um lastro de alegria. Ah, a juventude! – pensou. João Miguel, que tal a bica? Muito boa, forte, tal como eu gosto. – respondeu. Eu não lhe disse?! Já sabe, quando quiser dá aqui um pulinho. Ou quando puder, Pedro. Se seguir o ritmo da Guida e do Pedro só voltará a tomar um café daqui a um mês – afirmou Manuel, voltando-se para João Miguel. Esses dois estão sempre a cuidar da vida. Ora Manuel, estamos ainda de início, temos de nos esforçar e muito que aprender. Também é verdade! anuiu Manuel. Que tal lhe pareceu a propriedade? É uma boa casa. Não conheci ainda toda a área de terreno, mas pareceu-me muito extensa – respondeu João Miguel. Chegou quando? – tentou confirmar Manuel. Ontem à noite, muito tarde. Ah, pois… – disse Manuel pondo um ar compreensivo.

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Marés Calmas 3.3 Pelas redondezas Hoje ainda iremos dar uma volta pelos terrenos. É melhor irmos andando, temos de passar pela loja – atalhou Pedro Bacéu. E voltou-se para João Miguel. E quero também mostrar-lhe o resto da vila e o miradouro. Eu também tenho de ir – disse Manuel Serra. Até sábado. João Miguel fez questão em pagar os cafés e saíram os três da pastelaria. Tomaram direções distintas: Manuel seguiu em frente. João Miguel e Pedro Bacéu retrocederam até à praça, atravessaram-na e dirigiram-se à rua de “todas as compras”. João Miguel lembrou-se da extensão de fio que teria de adquirir para a ligação do portátil e afinal, até a extensão poderia ser comprada nessa mesma rua. Por ali todas as pessoas se cumprimentavam e conversavam sobre tudo e sobre nada. No meio de muita conversa entre Pedro Bacéu e os comerciantes e demais clientes do comércio local, acabaram por regressar ao jipe com dois sacos de compras, a extensão de fio e uma tira de papel com a confirmação de entrega dos produtos agrícolas no início da manhã do dia seguinte. Vou mostrar-lhe o miradouro, penso que irá gostar – disse Pedro Bacéu. E saíram da vila contornando a praça, rumo a norte.

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Marés Calmas 3.4 Início Giovanni estava agitado. Duas horas a enviar e a receber mensagens tinham conseguido deixá-lo a pensar em vários temas ao mesmo tempo e a sua mente teimava em não parar. Vou deitar-me. É muito tarde – pensou. Contudo, volvidos dez minutos levantou-se, foi à sala e começou a escrever umas notas no seu bloco de apontamentos, que mais se assemelhava a uma sebenta. Verificou as horas. Eram duas e meia. Pousou o bloco e decidiu voltar para a cama. Que estranho Francesca não ter contribuído para a troca de ideias desta noite… Tenho de ligar-lhe amanhã. Ou enviar um ‘sms’. E adormeceu. ::::::::::§:::::::::: Francesca Caprezzi estava embrenhada na criação dos panfletos. A criação do texto tinha vindo a confirmar-se a parte mais fácil do trabalho. A conjugação de ideias de Giovanni e de Lauro Donnati haviam tornado a sua execução muito leve, aliás tal como pensara que iria suceder desde o início. A questão complicou-se com a escolha de imagens e de cor. Percorria-a a intenção de criar uns folhetos apelativos mas sem o exagero que naturalmente impregnava tudo o que circulava veiculado por aquele género de iniciativas e movimentos ecológicos. É impensável não utilizar a cor verde. O verde é obrigatório. Verde relva? Não é muito escuro. Aplico o intermédio… Os três géneros de panfletos ficaram concluídos a altas horas da madrugada. Francesca não se incomodou. A versão online ficaria para o dia seguinte. Ao deitar-se foi inundada por uma sensação de realização.

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Marés Calmas 3.5 Patrick S. Dynt Bateu à porta antes de entrar. Ouviu-se uma voz: – Entre. Abriu a porta suavemente e tentou localizar Patrick S. Dynt. Estava junto à janela, voltado na sua direção. Bom dia, Patrick. Olá Duncan. Muito pontual. – exclamou Patrick S. Dynt, sorrindo. Sabe que gosto de ir direto ao assunto. Como estamos com o caso do Belga? Tivemos alguns progressos. Localizámos algumas provas e testemunhas que podem abonar a nosso favor. A investigação ainda prossegue, claro. Mas sinto alguma insegurança na sua voz, não é verdade? Insegurança?! Bom, não é bem isso. A questão relaciona-se com a ausência de uma base sólida no caso. Algo não bate certo. É instintivo, nada que se tenha conseguido atingir fatualmente. Intuitivo, intuição. Nem sei que lhe responda – retorquiu Patrick S. Dynt. Os processos nesta firma não se conduzem, nem têm um percurso baseado na intuição dos nossos advogados. Parou por segundos, olhando fixamente a secretária de madeira escura. Depois fitando Duncan, questionou: Não acredita no Belga, é isso? Também não é bem isso… Só que temo que esteja a omitir dados importantes. O seu nervosismo é absolutamente desconcertante. Sabe, para uma pessoa sem nada a temer e na posição dele, tamanha pressão nervosa é muito estranha. A menos que ele duvide da competência dos meus préstimos. Duncan, isso não será também insegurança sua perante o seu opositor, Robert Middletune? De todo! Patrick S. Dynt levantou-se da sua cadeira e deu dois ou três passos até atingir uma estatueta próxima do sofá maior, na zona central do gabinete. E continuou num timbre de voz calmo:

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Marés Calmas 3.5 Patrick S. Dynt Estou a tentar desmistificar o assunto – esclareceu. Considera que o Belga poderá estar a omitir fatos, mais concretamente falemos claro, números. Tentou verificar todas as suas ligações? Estará a ser pressionado por terceiros? Tive em consideração esse aspeto, mas a audiência preliminar foi marcada com um intervalo de tempo demasiadamente curto. Não tivemos possibilidade de aprofundar essa questão – explicou Duncan Alby. E acrescentou: Mesmo sem provas que possam cimentar as minhas impressões este é dos tais processos que têm tudo para poderem vir a causar-nos problemas. É demasiado simplista, por isso não bate certo. Duncan as suas dúvidas podem ser totalmente infundadas. Espero sinceramente que sim. Não querendo tomar-lhe muito tempo, repare: num assunto que aparentemente poderá ter uma solução fácil, por quê recorrer a uma das mais prestigiadas firmas de advogados da cidade? Pagar honorários altíssimos quando qualquer advogado mediano, a trabalhar sozinho poderia defendê-lo? Depois a marcação muito súbita da audiência, a escolha de um dos melhores advogados na barra por parte da acusação. Eu sei que são apenas detalhes, mas para mim… Algo não bate certo! – rematou Patrick S. Dynt. É a nossa reputação que também está em jogo… Já ponderou partir-se para um acordo? Já, mas o Belga mostra-se muito reticente, mesmo relutante. Não obstante, não se abre, invoca apenas que necessita ser credível. É um sujeito muito peculiar. Prefere a entrega do processo a outro advogado? - indagou S. Dynt, pausadamente. – Paul Trimble, por exemplo? Não, não é isso. Eu estou empenhado neste caso. Só que tem dúvidas… – disse Patrick S. Dynt, distraídamente como se falasse para um júnior.

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Marés Calmas 3.5 Patrick S. Dynt Duncan Alby compreendeu que o diálogo estava praticamente terminado. Que perda de tempo – pensou. Duncan, vamos levar por diante o processo. Caso se venha a encontrar algum obstáculo, informe-me de imediato. Sem dúvida. Obrigado. E saíu.

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Marés Calmas 3.6 Aprovação Giovanni estava a acabar de se vestir quando o seu computador começou a sinalizar a entrada de uma chamada. Saíu do quarto rapidamente, dirigiu-se ao computador e colocou os auscultadores. Quando premiu a tecla para atender, já a chamada tinha caído. Francesca – disse de si para si. Num segundo, procurou a sinalética para lhe ligar. Simultaneamente viu que estava a chegar um ‘sms’ que dizia “Giovanni se estás em casa, liga-me.” Já estou a ligar – acabou por deixar soltar quase em surdina. Francesca atendeu. Pronto! Giovanni! Querias falar comigo? Sim! Já viste os panfletos? Gostaste ou não? – perguntou Francesca, sem esperar pela primeira resposta. Não, não vi. Estão prontos? Bem eu enviei-te um e-mail com aquilo que elaborei. Não divulguei sem primeiro tomar a tua opinião. Estão colocados no nosso circulo? Vou ver. Giovanni, não me estás a ouvir. Enviei tudo para o teu e-mail. Se estiveres de acordo depois disponibilizamos para divulgação. Muito bem. Que gesto tão simpático! Vou examinar e volto a ligar-te. Liga-me se houver alteração. Se estiveres de acordo, envia-me um ‘sms’. Estou com imenso trabalho hoje… Certo? Certo! Chiau. – despediu-se Giovanni. E desligou. ::::::::::§::::::::::

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Marés Calmas 3.6 Aprovação ::::::::::§:::::::::: O miradouro estava um pouco escondido, mas Pedro Bacéu tinha razão: a vista era magnífica. A tarde estava a findar e o brilho do sol poente a bater na água, ao longe, deixava um rasto luminoso que parecia apontar na sua direção. O declive das terras, acentuado, mesmo escarpado à esquerda e verdejante à direita apresentava um contraste digno de um qualquer fotografo ávido de paisagens únicas. Pedro esforçava-se por esmiufrar informação sobre a zona e sobre a ilha. Quando finalmente ficou em silêncio, João Miguel suspirou devagarinho e apreciou a beleza do local. Subitamente uma agradável mas estranha sensação de pertença acabou por trazer uma inesperada expressão de leveza ao seu rosto. Pedro Bacéu notou. O efeito da paisagem funcionou. É um bom sinal – pensou.

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Marés Calmas 3.7 Anthony Sims Anthony Sims (o Belga) era um homem baixo e ligeiramente curvado. Moreno, o único traço que poderia identificá-lo seria o seu imenso cabelo preto, de um tom demasiadamente focado para a sua real idade. Uma primeira impressão levaria qualquer um a pensar que se tratava de um conversador incansável, dada a sua propensão para o diálogo de circunstância, acerca de pequenos ‘nadas’ do quotidiano. Duncan Alby tinha contudo ficado desde logo alerta e acertara. Assim que o tema era mais sério mesmo que não respeitasse ao processo, Anthony esquivava-se, brincava, mudava tacitamente de assunto quase parecendo assolado de um peculiar desinteresse, de um lapso de memória ou de uma imensa distração. Os parcos pormenores do caso tinham sido conseguidos à custa de horas a fio de conversa e incontáveis insistências e ainda assim, Duncan recusava-se a acreditar que todos os pontos relevantes estivessem em seu poder. Qualquer questão pertinente sobre o negócio do Belga ou uma questão mais direta sobre a contabilidade mensal apenas conduziam a um disperso rol de acontecimentos aparentemente desconexos com episódicas alusões a pessoas, das quais não havia certezas de nomes e tão pouco da sua atual situação ou localização. Tempo. O tempo tratará de me fazer vislumbrar um rumo. – pensava Duncan Alby. A investigação irá prosseguir e surgirão certamente novos dados. Enquanto isso, o Belga, permaneceria no seu aparente trato descontraído – polvilhado de momentos de um nervosismo exagerado – e com as suas desconcertantes frases episódicas. Agora havia que ultimar elementos para a audiência.

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Marés Calmas 4.1 As árvores O dia tinha decorrido de uma forma surpreendente para João Miguel. Ao recolher ao seu quarto reviu mentalmente os locais visitados e a simpatia das pessoas. E quanta calma! – considerou de si para si. A imagem do oceano a embater teimosamente nas rochas da baía ajudou-o a adormecer em escassos segundos. … O despertador tocou pontualmente, às 06h30. Estonteado, trancou a patilha do relógio e olhou para o teto. Não sabia onde estava… Optou por voltar-se na cama e aconchegar o cobertor. Subitamente levantou-se. Ainda ensonado, dirigiu-se ao quarto de banho. Teria de tomar um duche para acordar. Pedro Bacéu gostava de começar cedo e havia de cuidar do trabalho no campo. Aprender – pensou. Reaprender a viver. Volvidos 10 minutos já estava no piso inferior. Bom dia, Margarida. Olá João Miguel. Tem aqui pão, leite, manteiga. Gosta de torradas? Imenso. Mas não agora. Vou tomar um café com um biscoito. Só isso? Sim, Guida, ainda é muito cedo… João Miguel, bom dia. Caramba, madrugou homem! – exclamou Pedro Bacéu ao entrar na sala. Bom dia Pedro. Tenho de começar a aprender. Quanto mais cedo, melhor! Vamos a isso. Mas primeiro, o pequeno-almoço. Estou cheio de fome. Sabe, estou a pensar que se não estiver vento ou uma aragem forte, iremos iniciar o trabalho numa área mais pequena com cerca de 800m2, onde temos algumas árvores de fruto, só para consumo interno. É necessário apanhar alguma fruta?

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Marés Calmas 4.1 As árvores Não, não é isso. Ele não entende mesmo nada de agricultura – pensou Pedro Bacéu enquanto tomava mais um gole de café com leite. E continuou: há que prevenir os efeitos nocivos da mosca, por isso tem de se pulverizar as árvores com os produtos químicos adequados para que a fruta se desenvolva sem bicho, sã. Ah, sim?! E tem os produtos, suponho? Claro. Lembra-se do caramachão por onde passámos no regresso do passeio de ontem? João Miguel anuiu com um aceno de cabeça. Bom, esse caramachão dista uns bons metros do terreno mas não temos outro local onde guardar os produtos. Aí estão os químicos, o fato próprio, as luvas e o pulverizador. E os manuais sobre os produtos, épocas de aplicação, etc. O João Miguel sabe que até há bem pouco tempo eu não tinha praticamente qualquer conhecimento nesta área – afirmou como incentivo ao interlocutor. Recorro frequentemente a manuais. E ao Manuel Serra. E a outros – acrescentou Margarida – tomando um golo de leite. A propósito, no ano passado essas árvores deram tanta fruta que decidimos que seria melhor confecionar doce para venda. Eu nunca tinha feito uma compota na minha vida. Valeu-nos a receita e a ajuda de Brígida, a mulher do Manuel Serra. E da mãe do Pedro. Em abono da verdade, a minha mãe nunca foi grande cozinheira, muito menos doceira, não seria lógico recorrer a ela. Pois… E comercializaram o doce? Teve boa venda? – perguntou João Miguel. Teve, mas não por aqui, onde todas as pessoas fazem o mesmo que nós… Até bem melhor. E prosseguiu: olhe através de um contato do Carlos Maria, colocámos a compota à venda numa loja em Lisboa. Este género de lojas/mercados têm um conceito giro, algo novo, pelo menos para mim. Mas falaremos disso com detalhe, mais tarde. Temos de ir para o campo. Eu já acabei. Vamos!

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Marés Calmas 4.2 Panfletos Giovanni Onetto estava encantado a olhar para as imagens enviadas por e-mail. Cores acertadas – pensou. Tenho de verificar os tamanhos e imprimir. Enviou os ficheiros para a impressora, enquanto que se certificava sobre os suportes. Bem, não irei dizer nada – olhando para os esboços com alguma incerteza – o Fabrízzio irá visualizá-los no circulo e logo nos dará um parecer mais expedito – decidiu. Contornou a mesa de centro da sala, quase transformada em pequeno centro de operações e alcançou a impressora laserjet. Não fosse o aparador de 1,80m em nogueira herdado da sua avó paterna cheio de loiça de porcelana de época, que se impunha no centro da parede lateral direita em relação à porta principal de entrada na divisão em tudo o mais, desde o sofá junto à mesa, à estante e até mesmo a certas partes da superfície do chão, se vislumbravam papéis, revistas e croquis espalhados numa aparente mistura desordenada, mas verdadeiramente acessíveis a uma consulta rápida ou a um reavivar de planos. Giovanni observou as folhas impressas, uma por uma, e depois colocou-as à distância, em diferentes mas equidistantes pontos do compartimento. Deslocouse seguidamente até ao centro da sala e rodou lenta e pausadamente até chegar à posição inicial. Fantástico! – pensou ao apertar alternadamente cada uma das mãos. Parece que cada um dos panfletos tem o impacto suficiente, quer na mensagem, quer graficamente, até mesmo à distância. E concluiu de si para si – Sem serem demasiado agressivos no tom e nas frases – congeminou sorrindo. Aliás, o verdadeiro ‘senão’ poderá vir a ser esse – a menor agressividade! A ala Donnati não vai gostar… Ora veremos!

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Marés Calmas 4.2 Panfletos Correu para o computador. Rapidamente enviou um ‘sms’ de aprovação para Francesca e ele próprio partilhou os documentos com a nota “Aprovado” “Sujeito a comentários”. A seguir colocou a máquina em ‘stand-by’ e saiu do apartamento. ::::::::::§:::::::::: Francesca Caprezzi ouviu a sinalização de entrada de ‘sms’ no seu telemóvel ao longe. Estava a atender uma cliente, uma senhora na faixa dos trinta de discurso fluído, muito perfumada e convenientemente vestida. Prosseguiu com o atendimento, prestando esclarecimento a todas as questões da cliente o que demorou cerca de 15 minutos. No final, lamentou de si para si, que a senhora tenha saído da loja sem realizar qualquer compra. Acorreu ao seu telemóvel e sorriu de satisfação ao ler a mensagem de Giovanni. Na sua inocência de recém-chegada ao Movimento, assumiu que o seu trabalho estaria concluído. Engano de principiante: apenas tinha começado.

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Marés Calmas 4.3 Lauro Donnati Lauro Donnati preparava a aula dessa tarde. Ao receber a notificação de Giovanni, resolveu ignorá-la para permanecer concentrado na criação de um dos slides dum conjunto de oito sobre o regime feudal na Idade Média. Aquele era o sexto. Percorreu o Compêndio I e depois folheou o Compêndio II, à procura de imagens e de inspiração para os restantes. Como historiador, Lauro Donnati idealizava poder dedicar-se à investigação. Licenciado há cerca de dois anos e 10 meses tinha-se visto obrigado a dar aulas, nem sempre nas melhores condições. No ano corrente tinha sido colocado como professor substituto numa Escola Secundária a cerca de 40km de distância da sua residência. Em princípio, no curto espaço de 3 meses ficaria novamente desocupado com a chegada da professora da disciplina da sua licença de parto. Nessa altura, tencionava dedicar-se novamente a tempo inteiro a explicações e, ao Movimento, claro. A sua principal característica não era a escrita, tão pouco a criatividade, mas a sua particular aptidão para a oratória. Adorava multidões e falar em público. A sua adesão ao Movimento tinha ocorrido pouco tempo depois da sua criação, podendo quase considerar-se como um dos impulsionadores da sua expansão dado o número de membros angariados entre amigos, conhecidos e alunos. Esse conjunto de seguidores permanecia fiel ao seu mentor – em termos pessoais – o que abrangia aspetos muito mais vastos do que a defesa ecológica do Planeta ou do próprio Movimento. Após finalizar o oitavo slide, Lauro abriu a área de partilha do Movimento. Leu primeiro a notificação de Giovanni. Depois analisou os panfletos, um por um. Hesitou… Ótima conceção! – pensou.

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Marés Calmas 4.3 Lauro Donnati Durante alguns segundos parou como que a mirar apenas o monitor e em seguida foi buscar uma garrafa de água mineral à copa. Sentou-se novamente ao écran a beber a sua água, em goles pequenos, compassados, pensativos… Isto não vai ficar assim!!! Que ‘cachopita’ convencida! E esfalfou-se no envio de mensagens privadas – para 69 destinatários no total – no espaço de escassos minutos, saindo de casa em seguida, rumo à escola.

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Marés Calmas 4.4 Audiência I Duncan Alby tentou contatar o seu investigador principal antes de entrar na audiência. Não conseguiu ser atendido. Caso houvesse um dado novo, relevante, ele ter-me-ia contatado – pensou, sem reticências. Ao entrar no amplo hall circular de acesso à sala de audiências secundária – cuja porta evidenciava uma placa metálica dourada com letra preta de tamanho mediano gravada em baixo relevo indicando, simplesmente A-1 – viu que o Belga aguardava de pé junto à janela lateral esquerda com vista panorâmica para a avenida principal, numa atitude perfeitamente extática. Não notou a sua chegada. Estranho, muito estranho este sujeito – considerou Duncan pela centésima vez. Oscila entre um nervosismo desmesurado e uma calma apática. Bom dia, Anthony. Ah, bom dia. Já chegou a hora? Faltam cerca 12 minutos, mas já poderemos entrar na sala como é óbvio. Está mais calmo? Sim, sim. Entramos? Recorda-se da forma como acordámos que responderia às prováveis questões que possam vir a ser-lhe colocadas? Creio que sim – balbuciou. Temos uns minutos para rever os tópicos principais. Não é necessário. Estou mais calmo – respondeu Anthony Sims. Excelente! – afirmou Duncan. Vamos entrar então. Dirigiram-se à porta da sala de audiências. Duncan Alby quebrou o silêncio e anunciou:

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Marés Calmas 4.4 Audiência I É aqui – ao mesmo tempo que abria a porta da sala, com a intenção que Anthony Sims entrasse à sua frente. Nesse preciso instante sentiu uma palmada nas costas. Voltou-se sobre a sua direita e deu de caras com Robert Middletune. Olá, Robert! – e estendeu a mão para cumprimentá-lo enquanto segurava a porta com o seu corpo para impedir que se fechasse. Caro Duncan! Preparado? – ao mesmo tempo que o cumprimentava. Duncan Alby limitou-se a inclinar a cabeça para um dos lados, num jeito muito particular, muito seu. Saberemos daqui a poucos instantes! – rematou Robert Middletune num tom jovial. Quem é? sussurrou o Belga. O advogado da acusação. Conhecem-se? Sim! E continuou para atalhar assunto: – Vamos ficar sentados à frente deste lado, apontando ligeiramente para a esquerda. Robert Middletune aguardou o seu cliente de pé junto ao dístico metálico e pouco depois os dois tomaram os lugares paralelos aos dos oponentes à direita, na área central da A-1. Às 11h30 em ponto, o Juiz Jeffrey N. Stunt entrou na sala. Ouviu-se o som do martelo a bater na mesa frontal. A audiência tinha começado.

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Marés Calmas 5.1 Pulverização O dia estava magnífico, o céu azul embora uma brisa fresca e húmida tendesse a perpassar qualquer peça de lã mais fina. Vestiram as parkas que se encontravam à sua espera no bengaleiro do vestíbulo e saíram em direção ao campo. Pedro Bacéu ligeiramente à frente começou a apressar o passo e João Miguel atrás, a sentir o aroma das flores da entrada. Aqui sente-se mais este vento do que na zona das árvores, dado estarem num terreno mais baixo. De qualquer forma, vamos preparar a pulverização no caramachão, levamos os fato vestidos e quando chegarmos ao terreno logo veremos se as condições são propícias ao tratamento ou não. De acordo – respondeu João Miguel, que o seguia pelo carreiro como uma sombra. Chegaram ao caramachão, de média dimensão, construído em madeira e cuja cobertura em placas de lusalite era notoriamente frágil para as condições climatéricas da zona. Pelo menos assim pensou João Miguel, embora não verbalizasse qualquer opinião. Pedro Bacéu deu duas voltas com a chave que retirou do seu bolso e a porta do armazém abriu-se. Para surpresa de João Miguel, o interior contrastava com o exterior da construção. O local, iluminado com lâmpadas fluorescentes suspensas estava convenientemente dividido por oito áreas, quatro de cada lado de um corredor central largo. Cada uma dessas áreas tinha várias prateleiras de dexion. Os produtos e o restante que precisamos encontram-se na terceira área à esquerda-informou Pedro Bacéu enquanto caminhava já pelo corredor. Mas isto está muito organizado! Agora está! Nem imagina o estado deste caramachão quando adquirimos a propriedade. Tudo isto foi ideia nossa, adquirido e organizado por mim e pela

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Marés Calmas 5.1 Pulverização Guida, com a ajuda do Manuel Serra e dum vizinho – que ainda não conhece – o Leopoldo, Leo como o tratamos, dono do terreno a seguir a este. Quem vê o caramachão do lado de fora não idealiza a arrumação do interior. Um verdadeiro armazém – acabou por dizer João Miguel. E atreveu-se a perguntar: – O telhado, a cobertura é segura? Não há o risco de voar em caso de vento forte? Não ! Mantivemos as placas existentes porque era muito caro comprar placas novas para toda a área mas fizemos obras para ficarem devidamente acondicionadas. Aqui não entra água nem vento. Vê ali? O quê? – perguntou João Miguel. Antes das placas de lusalite ondulado há uma placa isolante em toda a extensão onde assentam as outras, i. é, o que se vê do lado de fora. Ah! Sim, estou a compreender. Engenhoso! Teve de ser! Este local dá muito jeito e estava totalmente subutilizado. Bom, aqui temos os manuais na prateleira do meio – indicou Pedro ao chegarem à terceira divisória. Vamos fazer uma consulta rápida para confirmar a quantidade dos químico a aplicar e a duração da sua atuação. João Miguel debruçou-se sobre Pedro Bacéu para ler melhor as instruções do livro. Ora temos que para 1 litro de água deveremos misturar 10 mg de Flint… E 16 ml de Garbol. Estes tratamentos são para as macieiras – constatou João Miguel. Sim, pedrado e cochonilha! Temos de preparar cerca de 6 litros – 3 litros para cada um dos suportes por produto que transportaremos tipo mochila. os suportes estão deste lado, ali em cima. Vê? Prático, sim. Quantidades… Para três litros por suporte serão 3 medidas de cada produto, na marca 10 mg para um e na de cerca de 15 ml para o outro. É fácil – disse João Miguel.

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Marés Calmas 5.1 Pulverização Eu costumo fazer doutra maneira, mas o João Miguel simplificou a operação. Vou reverificar se deverão ser 3 litros de cada. E voltou a pegar no livrinho. O outro ficou a aguardar pela conclusão agachado junto aos dois suportes, segurando um de cada lado na vertical para não tombarem. Sim, confirma-se. Agora, tenho aqui um garrafão de água vazio que servirá de medida. Os preparados foram elaborados. Os suportes devidamente fechados ficaram encostados às prateleiras enquanto os dois homens vestiam os fatos, tipo gabardina, com fecho nas costas. Pedro Bacéu entregou uma máscara a João Miguel e tirou uma para si também. Colocaram os recipientes nas costas. Pedro apagou as luzes e fechou o caramachão. Agora seguimos em frente por este outro carreiro do lado esquerdo. Subimos um pouco até ao topo e depois descemos e viramos à direita. Atravessaram o terreno da plantação de cebolas à esquerda. À direita, a área de cultivo de cenouras e continuaram até à zona das árvores de fruto. Não está muito vento, pois não? – tentou confirmar Pedro Bacéu. Não, aqui não se sente praticamente nem uma aragem. Vamos aplicar o tratamento. Este suporte metálico enrosca na extremidade do tubo e apertamos esta patilha aqui atrás para sair o produto. Assim vê? Muito bem – disse João Miguel. Atarrachou a parte metálica e experimentou. Colocamos a máscara e evitamos pulverizar muito na vertical para não ficarmos cobertos de químico, ok? Vou tentar. Separamo-nos? As árvores estavam dispostas em quatro fileiras e mostravam ter distâncias certas entre elas. Sim. Cada um para o seu lado – exterior – e encontramo-nos de novo aqui ao centro quando concluirmos. Eu vou pelo esquerdo. Vamos a isto! Certo – deixou sair João Miguel.

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Marés Calmas 5.2 Contatos Roberta Trenni estava a concluir a limpeza da sua sala, cumprindo fielmente a sua rotina de quinta-feira à tarde, quando o seu telemóvel tocou. Uma pessoa quando está a tentar despachar-se, o telefone decide sempre tocar – pensou. Quem será? Largou o pano de limpeza próximo da janela e correu para o hall de entrada. Ficou admirada a olhar para o móvel. O aparelho não estava ali. Onde teria eu deixado o telemóvel? Tentou recordar-se. Talvez estivesse ainda na mala… Voltou à sala e localizou a bolsa. O telemóvel também não estava na mala. Bom, logo aparecerá. Não deve ser urgente, já deixou de tocar. E atravessou a sala até chegar à segunda janela. Agarrou o pano e nesse instante, o aparelho fez-se ouvir de novo. Ok! Já percebi. Está na kitchenette. Pousou o pano e acelerou o passo até ao compartimento. O telemóvel tocava junto ao frasco do arroz em cima da pedra cinza do balcão da exígua cozinha. Roberta atendeu. Pronto! – disse. Olá Roberta. Como estás? Oh!… Que surpresa. Não é o teu número. Não, estou sem saldo e pedi o telemóvel a um amigo. Vou ser breve. Não consegui bilhetes para o filme no próximo sábado. Mas podemos combinar uma sessão de cinema em minha casa. Que te parece? Roberta ficou extática. Roberta? Alô? – exclamou Marcus do outro lado da linha. Sim, desculpa, deixei de ouvir – apressou-se a dizer. É que eu também tinha pensado em telefonar-te hoje à noite para desmarcar. Tenho um familiar muito doente. Compramos os bilhetes para o outro sábado. Pode ser?

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Marés Calmas 5.2 Contatos Claro! Fica para a outra semana. Vou adquirir os bilhetes. Xau! – disse Marcus, já com um timbre de voz diferente. Xau – despediu-se Roberta, desligando em seguida a chamada. E pensou em Francesca. ::::::::::§:::::::::: Ao chegar a casa no final de um dia de trabalho Fabrízio dirigia-se à cozinha, dava um beijo à namorada que habitualmente preparava a refeição para ambos, abria uma garrafa de água gaseificada e enquanto beberricava a água diretamente da pequena garrafa, entabulava conversa com Luciana. Em seguida, dirigia-se à sala e ligava o computador para verificar as suas mensagens e o círculo do Movimento. Viu os panfletos partilhados por Giovanni e gostou. Preparava-se para transmitir isso mesmo ao amigo quando se apercebeu de uma notificação de entrada de nova mensagem, esta de um outro membro do Movimento que dizia apenas: Já viste os dísticos de Francesca? Lauro detestou! Fabrízio abriu as mensagens privadas: Gostei do trabalho partilhado – escreveu – mas vamos ter problemas com Lauro! Liga-me Giovanni. Até logo! Colocou a máquina em stand-by e foi pôr a mesa para o jantar.

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Marés Calmas 5.3 Audiência II Linda sentia-se deslocada. Estava a exercer aquela função há pouco mais de dois meses e detestava. Detestava escrever! Detestava ter de tomar anotações sobre todos os diálogos em curso. O seu trabalho já tinha sido elogiado e pese embora tivesse noção de que o executava bem, continuava a olhá-lo como assaz entediante e ultrapassado. No entanto, as circunstâncias impunham que as suas sensações não fossem mais do que meras pequenas nuvens num dia cheio de sol. Logo que audiência começou, Linda iniciou as suas anotações ficando satisfeita pela batida ritmada com que a sessão decorria. A determinada altura escreveu: “O documento que exibo, como Prova A da acusação, mostra que no ano transato, mês de Abril, a empresa em questão publicou uma listagem de movimentos assinada pelo réu no valor total de Eur 2.524,00. Até aqui não nada tenho a objetar. Mas quando nos debruçamos sobre um outro documento, datado de 26 de Abril do mesmo ano – nossa Prova B – não publicado que analisa precisamente a mesma área, o saldo é completamente diferente e muito superior – Eur 5.940,00. Protesto! Esse documento nunca foi apresentado. Indeferido! Aproximem-se os Senhores Advogados.” Linda parou de escrever e esperou que os dois advogados regressassem aos seus lugares após breve troca de impressões com o Juiz. … Middletune, vou aceitar esse documento como prova. Espero que esteja diretamente relacionado com o caso. Seja breve na sua exposição. Vou ser. Obrigado Meretíssimo. Mas como é possível? Este documento não constava da compilação de documentos da acusação – retorquiu Duncan Alby. Só conseguimos este documento ontem. Não houve tempo – justificou Robert Middletune.

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Marés Calmas 5.3 Audiência II Basta. Vamos prosseguir – atalhou o Juiz. … Retomada a audiência, Linda continuou a tomar notas. Pela primeira vez estava realmente atenta ao processo em si. “Este documento – Prova B – tem um saldo que não confere com o anterior. Ora o réu deverá esclarecer-nos sobre essa diferença. O Sr. Anthony Sims desconhece o motivo da existência dessa diferença. A empresa não é do Sr. Sims. Mas existe esta diferença e não é a única. O documento foi assinado pelo Sr. Sims. O dono não pode esclarecer dado que desapareceu há uma semana. Assim, o seu cliente é a única pessoa que poderá explicar a diferença entre os dois documentos. Insisto que apenas outra ou outras pessoas da empresa que não o meu cliente poderão esclarecer esse e outros dados. Convém relembrar que essa mesma firma solicitou auxílio pouco depois da data mencionada, devido a uma situação financeira catastrófica. Protesto. Não se enquadra no assunto que estamos a tratar. Indeferido. Muito pelo contrário, a questão está totalmente relacionada. E o documento foi publicado pelo seu cliente. Sim. Com autorização! – argumentou Alby. E continuou: A pessoa a quem deverá colocar essa questão não está presente. Assim… Mais calma, Senhores Advogados – avisou o Juiz. Eminência, gostaria de continuar – disse Middletune.” Subitamente, ouviu-se o martelo.

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Marés Calmas 5.3 Audiência II “Senhores – interrompeu o Juiz Jeffrey N. Stunt – neste momento a minha decisão está tomada. Este processo será interrompido por tempo indeterminado até ser localizado o dono da Precious. Após a sua localização, a acusação terá uma semana para informar por escrito este Tribunal. Uma semana é muito pouco tempo, Eminência. Quinze dias, então. A audiência está encerrada.” Linda parou de escrever. Ouviu-se de novo o martelo.

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Marés Calmas 5.4 A vários quilómetros… João Miguel estava verdadeiramente interessado em pulverizar as macieiras como lhe tinha sido explicado. Procedeu com cuidado e alguma desenvoltura, o que agradou a Pedro Bacéu. João Miguel chegou ao ponto inicial pouco depois dele. Já acabei – informou João Miguel, suspirando. Cansado? Não, não. Ótimo. Vamos despir os fatos no caramachão e depois subimos novamente para preparar o terreno para a plantação. Uma parte. Temos ainda o dia de amanhã para acabar. E hoje à tarde – lembrou João Miguel. À tarde pensei que poderíamos dedicar-nos aos queijos. Sabe, hoje trocámos de funções: a Guida ordenhou as vacas e nós ficámos de preparar os queijos para dar-lhe tempo de começar a fazer umas cortinas. Muito bem. – disse João Miguel. E continuaram a descer até ao caramachão. ::::::::::§:::::::::: Giovanni gostava de sentir o ar do entardecer. Não importava a estação. A transição suave da luz do dia, crepúsculo e por fim noite, sempre exercera um fascínio muito singular, inexplicável sobre ele. Ao abrir a porta de sua casa, mais tarde do que o habitual, lembrou-se que não tinha jantar: ou telefonava a encomendar uma pizza para não de voltar a sair do bloco de apartamentos ou teria de ir até ao restaurante no final da rua, visto que mais nenhum outro estabelecimento estaria aberto. Hesitou… Ah, não vou comer pizza outra vez – decidiu.

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Marés Calmas 5.4 A vários quilómetros… Voltou a fechar a porta e dirigiu-se ao Il Leggero. Olá Luigi. Que temos de bom hoje? Tudo, tudo Giovanni. Como está? Bem, mas com fome. Então prato de carne, certo? Sim. Uma dose para levar. Quer escolher ou preparo o seu preferido? O meu preferido é o prato do dia hoje? Luigi acenou com a cabeça em sinal afirmativo. Ótimo! – exclamou Giovanni. É isso mesmo. Uma dose. Luigi sorriu, tirou ma caixa de dose do armário existente na parte inferior do balcão e dirigiu-se à cozinha. Subitamente, retrocedeu e trocou a caixa de dose por duas de meia dose. Giovanni percebeu. Olhou para a sala de refeições: estava meia vazia. Bom, tomei a decisão certa quanto ao jantar. Luigi trouxe a comida e Giovanni pagou, regressando de imediato a casa. Ao chegar, pousou as caixas em cima do balcão da cozinha e olhou para o relógio: 21h55. Tentou arranjar espaço em cima da mesa da sala, retirando uns papéis. Ligou a televisão. Trouxe a comida ainda quente, sentou-se e começou a jantar. O cheiro e o paladar da comida ofuscou tudo o resto e somente quando estava prestes a concluir a refeição, conseguiu centrar-se na informação noticiosa. Deslocou-se novamente à cozinha para ligar a máquina de café e no regresso, desligou o aparelho de TV e voltou-se para o computador. Foi outra vez à cozinha tirou o seu expresso e sentou-se a olhar para o monitor. No topo de várias mensagens estava a de Fabrizio. Marcou um número de telefone e ficou a ouvir a sinalização de toque de chamada. Ao final de quatro toques, a voz do amigo surgiu do outro lado da linha.

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Marés Calmas 5.4 A vários quilómetros… Pronto! Fabrizio? Giovanni! Já li a tua mensagem. Algum outro desenvolvimento? Giovanni! Estava admirado por não dizeres nada . Hoje cheguei muito tarde a casa. Por enquanto não sei de mais nada. Fiquei surpreso com esta atitude porque o trabalho de Francesca até superou as minhas expectativas . Eu já estava à espera, Fabrizio. Por outro lado, sabemos como funciona a ala Donatti… gostam de ter a última palavra. Esperemos que seja apenas isso, sem mais problemas. Não aproveita nada dramatizar questões tão simples. Vamos aguardar. Claro, terá de ser. Se souber de mais alguma coisa, comunico-te. Vamos estando em contato. Xau. Xau. Até amanhã! Obrigado. E desligaram.

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Marés Calmas 5.5 Bem cedo João Miguel estava progressivamente a sentir-se melhor: igual a si próprio, pleno de energia. Ao invés do seu habitual despertar tardio e entorpecido, acordava alegre, bem disposto e pronto para viver mais um dia na ilha. Um processo de identificação começava a desenhar-se sem que o seu protagonista principal disso tivesse consciência. Guida atarefava-se na cozinha quando João Miguel desceu para o pequeno almoço. Atenta como sempre, foi precisamente ela a primeira a notar a transformação e a atitude fresca do novo habitante. Bom dia Guida! – saudou João Miguel Viva! Dormiu bem? Lindamente e acordei cheio de fome. Estava a pensar preparar umas torradas com o seu doce e uma chávena de leite. Que bom! Será que pode preparar para mim também? Ainda queria acabar de arranjar estas couves. Claro que sim! Como gosta das torradas? Mais tostadas, menos? Mediamente tostadas com manteiga e doce. Uhh!… Vou tentar encontrar o ponto médio. Espero que a torradeira ajude. Ah?! Agora ninguém conta comigo…disse Pedro Bacéu ao entrar na cozinha de cabeça baixa em ar de queixa. Ora essa! Desde quando? Saem já torradas em triplicado! E Pedro, os últimos são os primeiros – retorquiu Guida, ao separar uma folha velha da couve para o monte do lado direito da bancada – o que pode significar que eu é que vou ter de esperar mais tempo pelas minhas torradas doces. Nada disso. A minha princesa primeiro! – gracejou Pedro Bacéu.

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Marés Calmas 5.5 Bem cedo Pedro, muito bem. Decididamente gostei. O que iremos fazer hoje? Ajudar na apanha da fruta, certo? Penso que tínhamos comentado ontem. Sim, é verdade. Mas preferi confirmar. Vamos iniciar João Miguel nesta outra labuta – indicou Pedro olhando para Guida. Guida limitou-se a piscar os dois olhos e a mostrar um sorriso rasgado num gesto muito seu. As torradas estavam prontas e foram colocadas num prato ao centro da mesa . João Miguel dividiu o leite pelas três chávenas e a primeira refeição foi tomada num ambiente puramente descontraído.

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Marés Calmas 5.6 À espera Francesca aguardava a confirmação final de Giovanni para a concretização da impressão de todo o material. Embora fosse novata na organização começava a pensar que haveria algo de peculiar na noção da palavra ‘urgência’ destas pessoas. De qualquer forma, a semana tinha chegado ao fim e na ausência de imprevistos, jantaria com Roberta. Para além disso teria de se decidir quanto à mesa a adquirir para a sua sala. Previdente, tirou as medidas do espaço disponível e apontou-as num bloco que guardou dentro da sua mala. O despontar daquela manhã de sexta-feira estava divinal. Corria uma aragem quente, o céu estava muito azul, limpo e a tonalidade dos raios solares apontava já para um dia que se adivinhava muito quente. Durante os segundos que ficou na sua varanda a apreciar o ambiente, Francesca aproveitou para respirar muito profundamente como se aspirasse absorver toda aquela envolvente matinal. Tenho de despachar-me – pensou. Saiu da varanda a contra gosto e dirigiu-se ao quarto. Preparou um vestido branco de Verão e umas sandálias pretas com um salto ligeiro. Em seguida tomou um duche, vestiu-se e saiu. O relógio marcava 07h23. ::::::::::§:::::::::: Um pouco mais abaixo no mesmo edifício, Roberta muito ensonada premia o botão da sua Linea Expresso e depois a tecla verde do comando da sua televisão. Olhou distraidamente à sua volta e ao focar-se no écran plano, surgiu-lhe uma locutora nova vestida em tons de vermelho. Em vez de escutar as primeiras noticias do dia, Roberta Trenni observou os

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Marés Calmas 5.6 À espera detalhes do vestido, dos sapatos e do colar da locutora-repórter que entrevistava alguém, um senhor, cuja face não lhe era estranha. Acho que um vestido assim me ficaria muito bem. Não tenho nada naquele tom… Vou ter de procurar nas lojas do centro – disse em voz baixa, já desperta. Voltou à sua copa para fazer o café. Tomou-o lentamente e resolveu sair para comprar os ingredientes para fazer uma sobremesa rápida. Francesca e eu iremos chegar tarde. Certamente uma fatia de bolo e um chá gelado irá saber-nos muito bem. Uma hora e meia depois voltava a sair para se dirigir desta feita, ao seu trabalho.

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Marés Calmas 5.7 Interregno Duncan Alby mantinha a sua expressão seráfica, impassível. Contudo debatia-se com um desconforto crescente mesclado de desconfiança. O seu cliente parecia muito satisfeito, repentinamente liberto de todo o nervosismo e tiques. Ao deixar o edifício do tribunal, despediu-se efusivamente do advogado e desceu o lanço de escadas como se alguém o aguardasse em baixo. Alcançado o passeio virou à direita, no sentido noroeste e continuou o seu percurso a pé, desaparecendo rapidamente no meio dos transeuntes. Alby estava convicto de que ele não teria prestado qualquer atenção à data marcada para voltarem a conversar sobre o processo. Após descer as escadas de saída, virou em sentido oposto ao do seu cliente e caminhou cerca de 100m, premiu o controle do comando e entrou na sua viatura. Chave na ignição, pasta no banco detrás… mas subitamente parou, recostando-se uns segundos no seu banco. Insólita – eis a palavra exata para descrever a forma como tinha decorrido a audiência. Sem concluir como se teria saído, o seu pensamento focava-se num ponto apenas: algo lhe escapava naquele processo. Inspirou fundo, tentou afastar as suas dúvidas, rodou a chave na ignição e a viatura arrancou. Trinta minutos mais tarde estava já a trabalhar no seu gabinete. A luz intensa de um sol quente batia sobre a sua secretária mas Duncan Alby nem se apercebeu. Estava praticamente a meio do seu relatório quando se ouviu um forte bater na porta do gabinete. Duncan, então como correu? – questionou Patrick S. Dynt após abrir a porta sem esperar por autorização para entrar. Bem, eu penso – respondeu Alby. Estou prestes a concluir o relatório… O adiamento foi ótimo para nós – afirmou perentoriamente S. Dynt. Duncan Alby anuiu afirmativamente com a cabeça e disse : Já sabe??? Ora, essas notícias correm céleres – declarou Dynt em tom jovial. Até amanhã! Até amanhã Patrick.

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Marés Calmas 6.1 Estranha demora… Giovanni Onetto preparava mais um set de slides para a sua aula de desfecho de semana. – Esta ideia de resumo/síntese em formato audiovisual parece estar a resultar – pensou enquanto hesitava quanto à música a inserir naquele terceiro tema. Verificou todos os slides do início até ao tema oito, o último, e voltou ao terceiro. Optou por um som em voga com a intenção de captar a atenção dos estudantes. Em seguida ligou a apresentação dos slides e tomou nota da duração e das pausas. Voltou ao início e um por um, retificou as gralhas do texto. Finalmente de um pulo levantou-se da sua cadeira deixando a apresentação automática a arrancar. Colocou-se estrategicamente a um metro e meio do monitor a observá-la minuciosamente. Ok! Terminei! – exclamou Giovanni como se estivesse a informar alguém em seu redor. A sua sala manteve-se silenciosa. Em meia dúzia de passos ajustou-se de novo à sua cadeira, fechou o modo de apresentação e retirou a marca de ‘automático’ para a colocar em ‘manual’. Consultou o seu relógio e procurou o comando do TV e quando o encontrou premiu o botão ’ligar’.Oh nada de interesse … Situações de justiça no estrangeiro, preços médios de produtos alimentares… Tocou novamente o mesmo botão e as imagens desvaneceram-se. A cadeira do costume parecia chamá-lo e ele acorreu para consultar o e-mail. Tão estranho não haver notícias sobre a campanha – considerou. Este Donnati é demais! De fato! Tenho de dizer alguma coisa à Francesca, pelo menos que não há qualquer avanço. Levantou-se e começou a passear-se pela sala com ambas as mãos como que meias presas nos pequenos bolsos dos desbotados jeans e um olhar vago como se o espaço fosse amplo e destituído de qualquer objeto, por minúsculo que fosse. Poucos instantes depois, agarrou o aparelho de telemóvel e fez uma chamada.

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Marés Calmas 6.2 Kate Sheen Kate Sheen era conhecida pelo seu bom gosto e o seu tato em escolher sempre a peça de vestuário adequada para todas as ocasiões, quer se tratasse de um encontro social, profissional ou mesmo simplesmente, de um jantar romântico. Robert Middletune tinha efetuado reserva para o jantar de ambos nessa noite num dos seus restaurantes favoritos em plena downtown, um extremamente badalado, o que constituía um bom augúrio para o final do dia de sexta-feira e início de um fim-de-semana. Kate Sheen chegou primeiro. Mostrou o seu maravilhoso sorriso ao funcionário da receção que a reconheceu e saudou, ao mesmo tempo que fazia uma pausa no atendimento de um casal jovem, a quem tentava explicar que as salas estavam cheias e que seria impossível tomar ali a refeição. Kate foi conduzida a uma mesa muito próxima da janela, sob a faixa lateral esquerda da sala principal. Naquela noite ela estava absolutamente deslumbrante. A sua escolha tinha recaído num vestido curto mas rodado, em azul céu, que contrastava com o tom de bronzeado castanho dourado da sua pele e com o seu cabelo louro. O crepe caía lindamente, marcando a silhoueta esbelta de Kate, a confeção era impecável e os pormenores de debruo em conjugação com o tamanho da saia impregnava-a de um ar muito feminino e jovial. Se o seu cabelo estivesse solto pareceria ainda mais teen, totalmente preso seria muito formal para a indumentária e assim, Miss Sheen tinha adotado um estilo de penteado arrojado, um meio solto, meio preso, assimétrico. Os brincos com um pendente ligeiro, também em azul exatamente da mesma cor dos sapatos e uma pequena bolsa branco-pérola completavam o conjunto. Mesmo estando sentada numa mesa localizada fora do ângulo central da sala era impossível para qualquer outro cliente que entrasse, não reparar nela. Robert Middletune chegou uns bons dez minutos mais tarde e ao entrar, abanou a cabeça para um dos lados na direção de Kate em sinal de aprovação.

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Marés Calmas 6.2 Kate Sheen Olá! Estás linda! Obrigada! Assim desculpo o atraso! – respondeu Kate. Ah, não a sério. Olha devo dizer-te que me apetece celebrar. Tive um dia soberbo. Que bom! O meu foi também excelente. Celebramos?! O quê? Ao dia, tonto? À vida, ao final da semana… Alinho – interrompeu Kate. É uma boa ideia!

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Marés Calmas 6.3 Sexta à noite… com Tim Duncan Alby acabara de jantar na companhia do seu inseparável cão Tim. Antes de arrumar a sua cozinha, dirigiu-se ao vestíbulo e pegou na trela branca que se encontrava sempre visivelmente pendurada no pequeno cabide por detrás da porta de entrada. Tim latiu de satisfação e pulou para Duncan, empoleirando-se nele com as duas patas da frente. Para baixo Tim! Já para baixo! – ordenou Duncan Alby. Tim obedeceu prontamente. Duncan colocou a trela no cão, abriu a porta e saíram os dois em passo calmo de passeio. Aquela era uma das noites da volta prolongada. Tim sabia disso pelo ar descontraído do seu dono e pelo seu andar compassado. Percorreram cinco metros da avenida sem se cruzarem com qualquer vizinho e viraram à direita em direção ao pequeno jardim. Tim parava de quando em quando, uma das vezes para escolher o seu ‘quarto de banho’. O dono mostrava-se paciente. A noite estava tépida e a leve brisa noturna tornava o ambiente exterior muito agradável. Duncan Alby respirou fundo enquanto observava uma das árvores mais frondosas do jardim, bem iluminada por um dos candeeiros de iluminação pública. Por momentos recordou-se da antiga agitação das noites de sexta-feira em companhia da sua ex. namorada, Katy Sheen. – Bela mulher, sem dúvida – pensou. Porém, não sentia a mínima saudade daquelas noites. Uma deliciosa sensação de tranquilidade perpassou-o e sentiu-se feliz por estar a atravessar a avenida em direção ao jardim com o seu fiel amigo. Esta calma bucólica tem tanto a ver comigo – reconheceu de si para si, olhando carinhosamente para Tim, que segundo depois, retribuiu-lhe o olhar.

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Marés Calmas 6.3 Sexta à noite… com Tim Ao chegar à parte central do parque Duncan tirou a trela a Tim, deixando-o passear a seu gosto. Estava educado, conhecia o espaço, por isso não havia perigo. Tim deambulou e pulou durante uns minutos e depois brincando com Duncan Alby, trouxe-lhe um pequeno tronco. O dono lançou a haste de árvore uma vezes para o animal lha trazer de novo. De regresso a casa cruzaram-se com Mick que desafiou Duncan para um jogo de ténis no dia seguinte. Alby aceitou tendo ficado o encontro combinado no court do Cork Village pelas 10h30.

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Marés Calmas 6.4 No Troley Ken Patrick S. Dynt apressou o seu passo até ao carro. O motorista já o aguardava no local habitual, mesmo em frente à porta do edifício. Dynt entrou no veículo e indicou: John para o Troley Ken, por favor. John arrancou suavemente. O Troley Ken ficava do lado oposto da cidade, mas o trânsito estava fluido o que encurtou o tempo da viagem. Chegados ao local, Patrick S. Dynt saíu da viatura deu boa tarde ao porteiro e entrou sem mais. Lá dentro Albert Rivera já o aguardava sentado numa das mesas do meio da sala. O local estava praticamente vazio, podiam perfeitamente ficar à vontade. Olá Albert! Não esperaste muito, suponho? Não, claro que não Patrick. Estou curioso pela marcação deste encontro aqui. Qual é o mistério? Sem mistérios! Tudo cordato e banal. Só que como sabes gosto sempre de comentar com o meu senior partner certas opções antes de tomar uma resolução. Olha o que tomamos? Apetecia-me um Rembrandt com muito gelo. Abert fez um gesto para a funcionária que acorreu à mesa. Dois Rembrandt com muito gelo – pediu secamente. A Dora e os miúdos ? perguntou Patrick S. Dynt. Oh, estão bem. E Bertha? Cindy? Ótimas! Então nesta época não têm outro desporto senão irem para a praia, a festas e fazerem compras. Mulheres! O sexo feminino adora fazer compras, é consumista por natureza e creio bem que seja assim desde o início dos tempos.

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Marés Calmas 6.4 No Troley Ken A funcionária trouxe as bebidas e colocou-as amavelmente sobre a mesa, incluindo um prato de aperitivos para cada um. Dynt limitou-se a um gesto de assentimento sobre o serviço se desviar o olhar de Albert. O diálogo solto continuou por mais uns minutos enquanto os partners saboreavam aos pouco as suas bebidas e picavam cadenciadamente os aperitivos. Albert, recordas-te do processo Sims? Vagamente. O Belga diz-te mais alguma coisa? Ah sim, claro! Como está esse assunto? Para já a audiência foi adiada até ser localizado o dono da loja. Muito linear. Qual loja? A loja onde trabalhava Sims. Entendo. Está no início… Sim. O processo foi entregue a Duncan Alby e do outro lado temos Robert Middletune. Que é muito bom. De qualquer forma, eu gosto do Alby. Pois, mas já começou com reticências. Como assim? Ele pensa que há algo que não bate certo – informou S. Dynt, contendo um sorriso. Ora bem… ele tem é que apurar os factos! – disse Rivera, rindo. Só que ele separou-se daquela namorada, aquela brasa também advogada que agora anda com Middletune e receio que não se aguente. Soluções temos? Sim. Substituto: Paul Trimble.

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Marés Calmas 6.4 No Troley Ken Muito bem! Não será nessa escolha que precisarás da minha opinião. Não de todo. Tive uma ideia: contratar um investigador para sabermos os passos de Duncan Alby. Assim teríamos uma noção mais próxima do estado do assunto. E da aproximação… Não me parece mal. Já tens um nome em mente? É que também depende da pessoa escolhida. Lembrei-me do Douglas Kent. Que te parece? Pode ser outro. Kent… Utilizámos o seu serviço há uns tempos, há dois ou três anos atrás, correto? Fez um bom trabalho. Sim. É um pouco rude, bruto. Mas dedicado… Isso é verdade. Pomos em prática esta ideia ou será que ela é excessiva para a dimensão do assunto? Rivera não respondeu logo. Acabou de beber o seu Rembrandt e sacudiu um pouco de aperitivo derramado sobre a mesa e só depois acabou por dizer: Não temos nada a perder. Os honorários não são muito dispendiosos e jogamos, suponho pelo seguro. Estamos de acordo – respondeu Dynt. Caso avances, dás-me um toque? Sem dúvida. Gostava também que me colocasses ao corrente do processo e dos relatórios do advogado e na eventualidade de se avançar com a ideia, os de Kent. Pode ser? Claro! Já pensava fazê-lo. Ótimo. Pouco depois os dois homens saíram do Troley Ken, deixando gorjeta em cima da mesa. Partiram em direção a suas casas.

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Marés Calmas 6.5 Por outros lugares… O sinal de chamada fez-se ouvir umas quatro vezes até que do outro lado Fabrizio atendeu. Pronto! Fabrizio? Fala Giovanni. Como estás? Bem! Vens saber notícias dos nossos panfletos… Acertaste! Decorreram dias sem qualquer novidade. A distribuição já devia estar concluída e não está sequer iniciada. Nem temos mesmo o material impresso quanto mais distribuídos… Verdade – confirmou Fabrizio. Eu ainda considerei enviar um mail ao Lauro mas não irei fazê-lo. Sabes como ele funciona… ainda poderemos ter de esperar mais tempo e causar-nos mais aborrecimentos. Verdade mais uma vez! Só que eu não sei de mais nada. Se quiseres posso tentar ligar ao Raoul e através dele saber o ponto de situação. Raoul??? Não pertence ao Movimento. Não, não! Pelo menos por enquanto, mas é muito amigo de Maurizzio da fação Donnati. Então liga para ele e depois diz-me alguma coisa. Mas ainda hoje! – pediu Giovanni. Mesmo que não tenha resposta? Sim, liga-me em todo o caso. Também preciso comunicar com Francesca que já deve estar a pensar que ou somos loucos ou totalmente desorganizados. Ou as duas coisas! Pois! Eu telefono-te. Até já então! Até já! – despediu-se Giovanni. E desligou o telefone.

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Marés Calmas 7.1 Apanha de fruta Até cerca das 10h00 a execução da nova função, embora exigindo algum esforço, ficava aquém da dificuldade imaginada por João Miguel. Pedro Bacéu explicara-lhe o procedimento com minúcia e o método bastante artesanal acabava por surtir efeito. Só que a partir do meio da manhã com o calor a fazer-se sentir, a tarefa complicava-se. Às 11h30 João Miguel estava estafado, transpirado e cheio de sede. Um dos trabalhadores notou. Muito cansado? – questionou Um pouco – respondeu João Miguel. Isto ao principio custa. Vinte minutos mais tarde apareceu Pedro Bacéu. Já me disseram que há aqui alguém a precisar de socorro – gracejou. Não é caso para tanto – respondeu João Miguel. Descanse um pouco, por que não? – condescendeu Pedro Bacéu. Fez mais do que eu quando me iniciei. Obrigado – respondeu João Miguel. Mais um quarto de hora e vamos almoçar. Ok. A fruta era apanhada e colocada em cestas de cores diferentes consoante a qualidade: maçãs ou peras. O transporte para o caramachão era realizado por pessoas que não efetuavam a colheita. A primazia da recolha era dada às peras. Antes do almoço Pedro Bacéu informou que teria de passar pelo armazém e fez sinal a João Miguel para ir consigo. Ao entrarem no espaço nas 2ª e 4ª divisões à direita, João Miguel apercebeu-se que a fruta estava a ser dividida por dimensão. Uma escolha manual, realizada por mulheres.

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Marés Calmas 7.1 Apanha de fruta Estas pessoas são da terra. Vêm aqui dar uma ajuda; a umas quantas pagamos, a outras não, trocamos serviço. Como assim? Também elas têm hortas ou pomares e quando necessário nós vamos trabalhar nas propriedades delas. Não são muitas, mas é um grupinho e uma colaboração interessante. E estabelecem-se laços. O trabalho é todo feito manualmente pelo que me é dado constatar… João Miguel compreendo a sua surpresa mas veja, nós estamos de início. É impossível para já conseguirmos investir em maquinaria. Primeiro temos de nos certificar que conseguiremos levar por diante esta aposta. Eu estou convicto que sim mas… Claro! – exclamou João Miguel – olhando em frente com ar seguro. Pedro não permitiu que continuasse. O quanto eu gostaria de modificar estes procedimentos mas seria dar um passo maior do que a minha perna, como se costuma dizer. Bom Pedro como deve ter entendido, eu estou realmente a gostar de estar aqui e acredito e quero acreditar que a sua aposta seja viável. Para mim tudo é novidade e tremendamente diferente do que fazia antes. Eu sei. Aliás eu e a Guida também transformámos totalmente os nossos hábitos e estamos felizes com a resolução que tomámos. de qualquer forma agradeço a frontalidade e todosos seus comentários serão bem vindos. Deixe-me apenas dizer-lhe: a troca de serviços que temos com os demais caba por ser benéfica para todos, sabe porquê? Fortalece relacionamentos? E não só. Veja o trabalho é gratuito logo não se reflete nos preços finais dos nossos produtos. Sem dúvida. Não tinha pensado nessa parte.

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Marés Calmas 7.1 Apanha de fruta Embora seja impensável competir com os grandes produtores esse ponto acaba por jogar um pouco a nosso favor. Agora vamos almoçar e concentrarmo-nos noutros assuntos. João Miguel limitou-se a sorrir. Pedro Bacéu abriu a porta de casa, segurando-a para deixar passar o amigo.

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Marés Calmas 7.2 Mais contatos Lauro Donnati estava extremamente satisfeito com a reação que tinha despoletado. A maioria dos seus seguidores havia contribuído ativamente para a modificação dos panfletos. A única nota digna de permanecer era a tonalidade de verde escolhida por Francesca. Para além disso, optaram por desenvolver um outro cartaz, maior e arrojado, com uma mensagem bastante agressiva, que mais do que uma frase ecológica poderia ser vista como uma critica feroz às atitudes vigentes. Após se certificar que a sua ala aprovava em uníssono o trabalho desenvolvido, Lauro enviou a versão final para Giovanni. ::::::::::§:::::::::: Fabrizio estava à procura do número de telefone do amigo para saber novidades quando se apercebeu da chegada do e-mail de Donnati. Parou, abriu a mensagem e ficou atónito a olhar para o material recebido, mais concretamente para o enorme cartaz enviado como último documento. Agarrou de novo no seu telefone móvel e ligou para Giovanni. Giovanni? Fabrizio, quanta rapidez! Nada disso… já viste a mensagem que acabámos de receber de Lauro? Não, não vi. Então abre. Só um minuto – pediu Giovanni Onetto. Dirigiu-se à mesa do computador e acedeu ao e-mail. Localizou a mensagem de Donnati, abriu-a e verificou o trabalho recebido. Fabrizio, alô? Sim… – respondeu Fabrizio. Já vi. Este tipo está parvo! Referes-te ao cartaz, suponho. Claro! Isto não pode passar!!!

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Marés Calmas 7.2 Mais contatos Claro! Isto não pode passar!!! Concordo. Ele é louco! Isso só nos trará problemas. Louco, sim. Atrasou toda a campanha para acabar por enviar um trabalho que embora diferente não traz qualquer melhoria significativa no approaching que desejamos fazer. Este cartaz é uma autêntica armadilha! O que tencionas fazer? Enviar para todos e sondar reações. Só depois irei dizer alguma coisa. Mais um dia também não irá fazer grande diferença. Envia para mim e eu farei os meus comentários. Queres que entre em contato com alguém? Não, não. Esta situação vai auxiliar-nos no conhecimento da posição exata de todos os membros do Movimento. Compreendo. Agora tenho de ir. Fabrizio, obrigado. Ora… Até amanhã. Até amanhã. Ficas pela cidade este fim de semana? Sim, sim. Óptimo. Então se precisar ligo-te. À vontade. Xau! Xau! Giovanni Onetto permaneceu imóvel na sua cadeira preferida durante alguns segundos. Em seguida reenviou o e-mail de Donnati para todos os associados, apenas com um nota posterior para Francesca indicando: – Preciso comentar este assunto contigo. Abriu um outro documento para verificar se a lista de membros estava atualizada; assumiu que sim. Acrescentou dois campos à grelha: comentários cartaz ; posicionamento geral. .

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Marés Calmas 7.3 Compra Francesca Caprezzi apressava-se a executar todas as ações habituais antes de deixar a loja. Contrariamente ao que havia sucedido durante os demais dias da semana, aquele tinha sido bastante movimentado com imensas clientes, umas apenas com o intuito de visitar e inquirir, outras acabando por comprar um artigo ou outro. Francesca estava satisfeita com o resultado. Tenho de ligar a Roberta – pensou. Estou muito atrasada. Dirigiu-se à sua mala, procurou o telemóvel e quando o localizou, marcou o número de Roberta. Pronto! – ouviu-se. Alô Roberta. Estou atrasada… Já tinha reparado – respondeu Roberta num tom aborrecido. Mais 10 minutos, pode ser? Outra solução existe? Queres vir aqui ter? Não! Vou tomar um refresco no Bambini. Vai lá ter… Combinado. Até já! E desligou. Roberta contornou a praça e escolheu uma rua que se parecia com qualquer uma das outras. Estancou na passadeira de peões, esperou pelo sinal verde e atravessou. A cinco metros um toldo grande azul e branco assinalava Bambino Café. Ao chegar optou por uma mesa sobre o lado direito da esplanada, recostando-se com um ar reconfortado na cadeira de verga. O funcionário vindo do interior dirigiu-se a um casal numa mesa ao lado e em seguida, aproximou-se dela. Uma limonada, por favor. Com muito gelo! Com certeza! Volvidos uns longos minutos a sua limonada foi servida. Precisamente nessa altura Francesca procurava a sua amiga na esplanada e quase esbarrava com o funcionário.

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Marés Calmas 7.3 Compra Desculpe! – disse Francesca para o rapaz. Oh, Roberta! Estás aqui. Viva! O funcionário inicialmente sisudo acabou por esboçar um sorriso perante tamanho despiste e vivacidade. Estás boa Francesca? – perguntou Roberta calmamente. Francesca, que já estava a voltar-se novamente para o funcionário, não respondeu. Por favor, um sumo igual para mim. Com gelo! Limonada, Senhorita? É limonada? – perguntou Francesca a Roberta. Roberta limitou a acenar que sim com a cabeça. Então limonada com gelo. Obrigada. O funcionário regressou ao interior do café. Estou estafada e cheia de calor – disse Francesca em jeito de resposta tardia à pergunta da amiga. Se preferires, não iremos ver as mesas hoje. Por que não? Vamos sim. Fica já tratado. E tu como estás? Ótima, mas este dia está tremendamente quente. Ui! Então depois da correria que foi até chegar aqui… Deixa, agora com os refrescos vamos ficar bem. Estas limonadas são fantásticas! Eu sei! Para mim estão completamente aprovadas. Saíram do Bambino Café vinte minutos depois em direção à loja de mobiliário. Nessa altura o sol poente e a aragem de final de tarde tornavam o ar mais suportável. Ao entrarem no espaço Design e Mobiliário ficaram surpreendidas com a sua dimensão. A montra, de tamanho médio, não denotava a imensa área da loja e

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Marés Calmas 7.3 Compra a existência de dois pisos. Francesca e Roberta concordaram em visitar os dois pisos para tirarem ideias e só depois debruçarem-se sobre o motivo da sua visita. Muito embora os dois andares tivessem algumas peças interessantes, os preços pareceram demasiado elevados a Francesca e a minúcia de Roberta naquele tipo de ambientes era totalmente exasperante. Em determinado momento, Francesca Caprezzi considerou que se soubesse o tamanho da Design e Mobiliário nunca teria combinado qualquer encontro com Roberta ali. Mas a amiga, quando queria, conseguia ser absolutamente amorosa. Eu perco-me não é Francesca? – questionou, após um olhar mais atento para a expressão da amiga. Roberta, nem vou responder… Tem peças lindas… Vamos já descer para o piso zero. Não digo que não, mas os preços são elevados, mesmo com promoção. Vamos ver as mesas? perguntou Roberta para mudar de assunto. Vamos! Acabaram por escolher uma das mesas médias dentro do quadro “supereconómico” assinalado por um enorme dístico que marcava uma reduzida área da loja. Antes Francesca Caprezzi tinha verificado cuidadosamente as suas anotações com as medidas e solicitado à funcionária que as atendia, as medidas de três das mesas em exposição. Decisão tomada, acordaram o dia e a hora da entrega da peça e Francesca efetuou o pagamento. Ao deixarem a Design e Mobiliário as amigas já estavam as duas bem dispostas e cheias de apetite. Eram 21h30. Durante o jantar o diálogo foi animado e acabaram a noite em casa de Roberta a tomar chá gelado com bolo já pela noite dentro. Francesca Caprezzi nem se apercebeu dos dois sms de Giovanni Onetto.

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