ensaios sobre a vida das casas ensaios sobre as casas da vida
ensaios sobre a vida das casas ensaios sobre as casas da vida
ensaios sobre a vida das casas ensaios sobre as casas da vida
irianna steck nogueira orientação artur rozestraten trabalho final de graduação fauusp | são paulo, junho, 2019
agradecimentos primeiro à minha mãe, pelo companheirismo noite adentro, pelas longas conversas através dos livros, por compartilhar a profissão e a poesia e me abrigar e questionar sempre; à bê pela alegria e pelas danças de charme na sala de estar e por manter a cachola no lugar do pé; à keka, pela amizade, por se fazer calma e presente, e por dar rumo às minhas divagações, sempre; à julia por formar um par mesmo dançando em dias e lugares diferentes; à lou, por me aconselhar mesmo sem que eu pedisse; ao pedro e henry pelas risadas que fizeram o caminho mais leve; à bia, malu, pati e carol por dividirem o mesmo teto e pelas infinitas conversas, conselhos, planos, desabafos e sabores à mesa da cozinha; ao joão pelas discussões ao som de vinho e ao sabor de música; ao pedro pelos encontros, amor e os dois pés no chão sempre; à carol e sté por acreditarem mesmo sem entender e por estarem sempre aqui perto, mesmo que distantes; à vó chitinha por não saber dizer não; ao vô hygino por materializar sonhos e contar histórias; ao artur por orientar e confiar; à Karina pelo carinho e apoio.
para minha mãe e minha irmã, minhas terças partes - com amor. em memória do meu avô Hygino, construtor de sonhos.
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índice . primeiros passos . 13 . sobre o ensaio e a vida . 15 . sobre a vida das casas . 17 . os nomes da casa . 19 . origens . 22 . porquês . 26 . as casas em mim . 31 . como morrem as casas . 113 . por onde andei . 121 . lista de imagens . 122 . referências bibliográficas . 124 . filmes . 129
primeiros passos
habitar significa deixar rastro (BRECHT, Bertold)
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primeiros passos. a produção deste trabalho se deu de forma livre, embora muitas vezes truncada. foi uma caminhada lenta, às vezes descontraída, às vezes atenta – que consiste em um conjunto de devaneios que partem de um lugar, a casa, e estabelecem relações com pessoas, memórias, histórias vividas, contadas e imaginadas, objetos, verbos, conceitos, razões, afetos. daí foram surgindo imagens por afinidade, uma puxando a outra. muito do que foi produzido já não coube mais aqui, outras tantas ideias ficaram no meio do caminho, outras por fazer, de modo que aqui houve também um trabalho de análise, questionamentos e escolhas. havia o anseio também de me atirar para fora da minha zona de conforto, navegar por lugares já vistos, mas com diferentes embarcações, abrindo novos caminhos e conhecendo
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novos lugares. procurei expressar as ideias e sentimentos por meios distintos da linguagem verbal cotidiana e, naturalmente, me reconheci nesse percurso. o processo não foi linear, foi complexo, entrelaçado, cheio de curvas e desvios. este é um trabalho ainda em curso e acredito que assim permanecerá, mas já era hora de deixar esse lugar e partir para outros. os esforços [deste trabalho] ainda espelham a disponibilidade de quem, como uma criança, não tem vergonha de se entusiasmar com o que os outros já fizeram. (ADORNO, O ensaio como forma, p. 16)
sobre o ensaio e a vida. este é um trabalho de reflexão que versa sobre o tema da casa – pelo viés das relações que se estabelecem com ela e ao seu redor, e não apenas pela análise do objeto arquitetônico em si – sem nenhuma pretensão de esgotá-lo. afinal, trata-se da exposição subjetiva da minha experiência das casas nas quais vivi e vivo e que me ajudaram a pensar a casa como repertório e entidade¹ , em sua dimensão simbólica e seu imaginário. através dessa experiência tão particular minha é que vou falar sobre as casas e seus personagens (animados, ou não) que habitam em mim, procurando dialogar com as experiências de outras casas vividas com suas singularidades e intersecções, na expectativa de comunicar um pouco da
¹ uso entidade aqui como aquilo que constitui a essência de algo, tudo quanto existe e pode existir de forma real ou imaginária.
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magia desse espaço no qual habitamos, nos demoramos, deixamos vestígios, contamos histórias e guardamos memórias. é ensaio também por encontrar-se inacabado de alguma maneira, está incompleto, falta alguma coisa, porque sempre faltará alguma coisa, estamos em movimento, a vida segue em movimento, me transformo todo dia e olho para esse trabalho, de novo, com outros olhos. é como se fosse impossível acabá-lo. assim parecem ser os projetos. penso que a vida é um ensaio, sempre há algo por melhorar, terminar de fazer algum ajuste, trazer à luz, tentar de novo, errar, aparar as arestas, concretizar. acho que a vida é uma obra também, uma construção repleta de possibilidades e limites, projetos e escolhas.
sobre a vida das casas. o universo das casas e do habitar sempre me fascinou. das casas enquadradas no cinema, às imaginadas a partir da literatura, tantas outras sentidas através da música, dos primeiros desenhos, de todas as plantas rabiscadas de moradas sonhadas e das tantas memórias vividas nesse lugar que faz parte de quem eu sou. me interessam as casas que compõem um cenário vivo no cotidiano de seus habitantes, ao mesmo tempo particulares e universais, a partir das quais os indivíduos movimentam e organizam suas vidas. casas como unidades que constituem e formam comunidades e cidades, casa para além do que possui de concreto, objeto. escolhi esse mote sem querer, mesmo antes de perceber que no fim quero permanecer ensaiando sobre as pequenas coisas do cotidiano da gente, entendendo o sentido que
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damos para elas, sua importância, a história que as coisas contam, ou que contamos das coisas, sobre a nossa relação com esse universo próximo, esse espaço que nos cerca. quero que me vejam aqui em meu modo simples, natural e corrente, sem pose nem artifício: pois é a mim que retrato.² e as casas em mim.
² MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios. Cia das letras, ao leitor, 2010.
alguns nomes da casa. morada, abrigo, toca, concha, invólucro, casulo, casca, ovo, carapaça, refúgio, canto, ninho, choupana, cabana, apartamento, residência, lar, domicilio, moradia, família, habitação, cafofo, maloca, oca, barraca, barraco. pois a casa é o nosso canto no mundo. (BACHELARD, 1957, p. 22)
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origens. o impulso primeiro deste longo processo deu-se a partir da leitura que eu fiz da casa do romance de gabriel garcía márquez, cem anos de solidão (1967). era março de 2015, e enquanto morava sozinha em um dormitório impessoal de estudantes na cidade de frankfurt, na alemanha, que de seus moradores passados guardava apenas um cheiro estranho, imaginava outras casas, enquanto tentava imprimir um pouco da minha personalidade a esse quarto, com coisas recém adquiridas. no centro do livro estão os personagens e seus dramas, mas foi a casa dos buendía que me chamou a atenção ao longo de todo o romance, não apenas como objeto arquitetônico, mas pela relação com a vida que a habita, e pelas maneiras que garcía márquez a percorre, criando uma espécie de cenário literário.
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um fio de sangue passou por debaixo da porta, atravessou a sala, saiu para a rua, seguiu reto pelas calçadas irregulares, desceu degraus e subiu pequenos muros, passou de largo pela rua dos turcos, dobrou uma esquina à direita e outra à esquerda, virou em ângulo reto diante da casa dos buendía, passou por debaixo da porta fechada, atravessou a sala de visitas colado às paredes para não manchar os tapetes, continuou pela outra sala, evitou em curva aberta a mesa da copa, avançou pela varanda das begônias e passou sem ser visto por debaixo da cadeira de amaranta, que dava uma aula de aritmética a aureliano josé, e se meteu pela despensa e apareceu na cozinha onde úrsula se dispunha a partir trinta e seis ovos para o pão. — ave maria puríssima! — gritou úrsula. (MÁRQUEZ, 1967, p. 171)
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a casa construída pelo próprio patriarca, que já pareceu uma pomba de tão branca, desbotou, foi reformada, ampliada, teve notas de dinheiro coladas a todas as paredes, alagou, secou, fechou suas portas em luto, abriu-se para danças, reuniões, casamentos e funerais, acolheu seus visitantes, abrigou em seu interior os mais variados personagens e tempos, foi devorada por formigas e levada pelos ares. a história acaba quando acabam a família e também a casa, que reflete o cotidiano da vida familiar dos buendía repleto de seus pequenos e grandes acontecimentos, assim como tantas outras casas. precisei começar por uma casa alheia, tentar imaginá-la, para depois debruçar-me sobre as minhas casas, meu repertório sensível, e a partir daí pude formar as imagens das casas em mim.
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[...] um bom edifício deve ser capaz de absorver os vestígios da vida humana [...] é a consciência do decorrer do tempo e uma sensibili28
porquês. guardamos vestígios de nossas vidas em fotografias, gavetas, prateleiras empoeiradas, cestos, baús, num fundo de armário, milênios no ar ³. herdamos roupas, a coleção de conchas, tecidos, papéis de carta, colecionamos coisas, afetos, histórias. guardamos segredos nos vãos das paredes, embaixo das camas, nos buracos de cupim. ficamos despidos de toda a farsa, sozinhos entre as quatro paredes dos nossos quartos e depois saímos, certos de que a nossa essência está guardada em algum canto da casa, para onde poderemos voltar no fim do dia. acredito que meu papel, como futura arquiteta é compreender o que é a casa, para além de um espaço sólido, projetado, construído e privado. acredito que o arquiteto deva ocupar-se das histórias que os lugares podem contar, as memórias e afetos de quem habitará uma nova ou renovada casa devem ser levadas em consideração com sensibilidade, ³ música de Chico Buarque de Hollanda, Futuros amantes.
dade para a vida humana que se desenrola em lugares e salas, conferindo-lhes um significado especial. (ZUMTHOR, 2009, p. 24) 29
para que haja identificação com o espaço criado e acima de tudo para que haja espaço para se criar uma infinidade de novas histórias e de novas maneiras de se morar em um mundo em constante transformação.
tudo tem que permanecer possível, tudo poderá acontecer, o ambiente tem que ser criado pela atividade da vida, e não o contrário.4
trago comigo fragmentos. pedaços de casas que me habitam, sobreposições de sensações vividas na intimidade de todos os lugares que habitei. procurei juntar algumas peças desse quebra-cabeça na esperança de que o sentimento do espaço habitado me per4 Tradução de Artur Rozestraten em “Habitar para além da Habitação - Ensaio sobre a mobilidade das imagens do habitar: Continuidade, Rupturas e Experimentações”, 2019, p. 35 apud Constant, The Decomposition of the Artist: Five Texts by Constant, The Drawing Center, New York, 1999, p. 12.
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mita construir espaços habitáveis onde haja liberdade de movimento e experimentação – talvez habitar seja experimentar o espaço, em todos os sentidos, ativamente, imergir conscientes no ar que nos cerca. a casa é tão grande quanto o mundo e “ habitar é um anseio existencial” 5 , é o que buscamos de mais primitivo, habitar é viver, habitamos o tempo e o espaço, habitamos um corpo e um quarto, habitamos aos poucos, os pequenos espaços, habitamos salas e cozinhas, corredores e banheiros e armários e gavetas e mochilas e livros, e roupas, habitamos caixas de papelão, habitamos a memória. habitamos a arquitetura, e eu habito até mesmo essas páginas, que são também uma espécie de espaço 6 . esse livro é como a minha casa, sejam bem vindos e não reparem na bagunça.
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ROZESTRATEN, op. cit., p. 35.
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referência ao titulo da obra de georges perec, “species of spaces”, 1974.
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as casas em mim
podemos imaginar o que aconteceu por ali, podemos lembrar ou esquecer. podemos inventar tambĂŠm. a casa ĂŠ o cenĂĄrio onde a vida acontece.
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1. a minha casa imaginada fica rente ao chão. primeiro ela é quente. ao adentrá-la a primeira sensação é calor, mas não um calor abafado, incômodo, um calor de aconchego, contato. depois há o frescor da varanda, esse lado de fora que ainda é meio dentro. minha casa tem varanda-sala, e pelas portas abertas entra o sol fazendo desenhos no chão, e entra o vento também, balançando tudo o que tem potencial de voar, as folhas das plantas fazendo seus sons e o cheiro de terra molhada pela chuva. agora a cozinha, o centro da casa, que tem o chão gelado e todas as cores, cheiros e sons do meu mundo. na cozinha sempre me demoro, procuro e acho conforto.
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o quarto deve ser capaz de conter o silêncio do sono e a calma do despertar e tem janela emoldurando a vista do nascer do sol, que atravessa as cortinas finas nos dias claros. minha casa tem quintal, horta e pomar. tem gata e cachorra que vêm me receber à porta, tem escadas para ver de outras vistas, tem arcos que acolhem as passagens e tem pedras e tijolos no chão. tem livros espalhados por todos os cantos, sempre ao alcance das mãos, e músicas desenhadas nas paredes. minha casa possui muitos recantos, nela cabem todas as pessoas e coisas que amo e ela já existe dentro de mim. 2. talvez fosse bom guardarmos alguns sonhos para uma casa que habitássemos mais tarde, sempre mais tarde, tão tarde que não tivéssemos tempo para realizá-la. (BACHELARD, 1957, P. 58)
3. acordo no meio da noite – olho para o teto, sinto-me limitada e ao mesmo tempo segura por duas das quatro paredes do quarto quase totalmente escuro, posso tocá-las com as mãos, já durmo numa cama de gente grande, não é mais um berço. levanto-me e caminho no semiescuro, tateante até o banheiro. sento no vaso frio ainda sonolenta e aprecio a chuva de cerejas nos azulejos enquanto faço xixi.
o quarto deve ser capaz de conter o silêncio do sono e a calma do despertar e tem janela emoldurando a vista do nascer do sol, que atravessa as cortinas finas nos dias claros. minha casa tem quintal, horta e pomar. tem gata e cachorra que vêm me receber à porta, tem escadas para ver de outras vistas, tem arcos que acolhem as passagens e tem pedras e tijolos no chão. tem livros espalhados por todos os cantos, sempre ao alcance das mãos, e músicas desenhadas nas paredes. minha casa possui muitos recantos, nela cabem todas as pessoas e coisas que amo e ela já existe dentro de mim. 2. talvez fosse bom guardarmos alguns sonhos para uma casa que habitássemos mais tarde, sempre mais tarde, tão tarde que não tivéssemos tempo para realizá-la. (BACHELARD, 1957, P. 58)
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3. acordo no meio da noite – olho para o teto, sinto-me limitada e ao mesmo tempo segura por duas das quatro paredes do quarto quase totalmente escuro, posso tocá-las com as mãos, já durmo numa cama de gente grande, não é mais um berço. levanto-me e caminho no semiescuro, tateante até o banheiro. sento no vaso frio ainda sonolenta e aprecio a chuva de cerejas nos azulejos enquanto faço xixi.
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4. essa é uma memória imaginada, acredito eu. embora pareça vívida para mim, desconfio que não seja minha pois me olho de cima, assisto a cena de fora. não me vejo bem, sei que estou ali, mas não me enxergo. vejo meu pai e tanto a lembrança quanto ele cabem dentro do berço. está deitado de lado, as pernas dobradas, virado para mim. 5. em épocas de vacas gordas a casa se enchia de flores, eram flores de maio, copos de leite, margaridas... como eu me lembro das margaridas pela casa, espalhavam-se como a alegria pelos cantos, em cima das mesas, sobre os beirais, repousando sobre o chão. sempre brancas e amarelas, sorriam para nós, anunciando bons momentos.
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6. sobre as escadas. podem conter, distribuídas em seus degraus, declarações de amor. paro, me viro, olho, absorvo e digo: - mamãe, você não sabe o quanto eu te amo! 7. alcanço com o andar cambaleante, muito embora objetivo o terceiro andar de gavetas do criado mudo, puxo a da esquerda que ao deslizar revela o esconderijo do sapo que não lava o pé, o alcanço e seguro na palma da minha mão. 8. sobre as casas das coisas tudo cabe dentro de uma gaveta, nela guardamos nossa intimidade, segredos e memórias, sonhos e listas de compras, pequenos tesouros, sabores e aromas e papéis, infinitos papéis.
6. sobre as escadas. podem conter, distribuídas em seus degraus, declarações de amor. paro, me viro, olho, absorvo e digo: - mamãe, você não sabe o quanto eu te amo! 7. alcanço com o andar cambaleante, muito embora objetivo o terceiro andar de gavetas do criado mudo, puxo a da esquerda que ao deslizar revela o esconderijo do sapo que não lava o pé, o alcanço e seguro na palma da minha mão. 8. sobre as casas das coisas tudo cabe dentro de uma gaveta, nela guardamos nossa intimidade, segredos e memórias, sonhos e listas de compras, pequenos tesouros, sabores e aromas e papéis, infinitos papéis.
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9. a fechadura emperra. estou presa no pequeno lavabo e sinto um medo descabido de nunca mais sair dali, grito! uma voz preocupada se aproxima, a porta não abre por fora, é preciso ter calma. a voz, abafada, me tranquiliza, é preciso virar a tranca, a fechadura é mais alta que eu. a conversa continua através da porta, só eu sou capaz de me libertar. giro a tranca pacientemente, não é força, é jeito, abro a porta e os braços, um abraço me espera do outro lado. 10. quem virá bater à porta? numa porta aberta se entra numa porta fechada um antro o mundo bate do outro lado da minha porta. (BACHELARD, 1957, p. 21 apud BIROT p. 217) 11. a porta separa ou une?
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12. começávamos com a sugestão entusiasmada e em seguida – vamos! – não sei como começou a história do “berção”, mas o montamos algumas vezes e fomos muito felizes em todas elas. a sensação de poder subverter a ordem da sala lembrava algo como comer a sobremesa antes do jantar. e com algum esforço juntávamos os dois sofás da pequena sala de estar, um de frente para o outro, rentes. eles eram iguais e suas estruturas conjuntas formavam uma espécie de fortaleza, ou embarcação. saqueávamos dos quartos os cobertores e todos os travesseiros da casa. eu trazia o banquinho, para que pudéssemos saltar para o conforto e mergulhar naquele amontoado de macio às cambalhotas. nos acomodávamos, nós três, aconchegadas, à meia luz para ouvir uma história por dia ou acalanto.
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13. a luz do sol entra pela grande porta-janela que dá para a sacada e me alcança sobre o tapete, ao lado do som – deve ser outono, é de manhã. enquanto isso o canoeiro puxa a rede, puxa a rede do mar e paro para cantar. 14. eram lindas as cores da mesa posta. a toalha estampada vermelha e branca sempre um pouco suja, o bule azul complementar às mexericas azedinhas e cheirosas, a xícara clara, carrega um leve amargor. a cor do caqui doce que combina tanto com o pão preto – que não é preto, é marrom – a manteiga, a textura lisa e brilhante em contraste com a maciez opaca e o leite tão branco ali ao lado dos azulejos de girassóis amarelos.
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15. o aconchego é feito de pouca luz, indireta, tem sombras e muito tato, tem cor de sorvete, tem toque macio, calor na medida, tem abraço, tempo de sobra e um pouco de preguiça, tem cheiro de lavanda, tem melodia e cabe num sofá. 16. no outro quarto cabíamos minha mãe, uma barriga enorme e eu naquela cama de solteiro que logo seria minha. a luz do sol amarelava a parede e o rosto dela, realçando a cor dos olhos parecidos com os meus, minha mãos pequenas repousavam sobre a barriga – eu não vejo a hora de ter ele aqui nesse meínho!
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17. nas noites que minha mãe passava em claro, trabalhando no escritório, minha irmã e eu nos revezávamos para dormir com ela. montávamos uma caminha improvisada por uns três travesseiros no chão sob a mesa retangular, e de repente era como se acampássemos dentro de casa. há algo especialmente confortável nesses pequenos espaços que criamos dentro de outros espaços. éramos embaladas pelos sons do computador que ficava ali, acima de nossas cabeças, denunciando que tínhamos companhia.
17. nas noites que minha mãe passava em claro, trabalhando no escritório, minha irmã e eu nos revezávamos para dormir com ela. montávamos uma caminha improvisada por uns três travesseiros no chão sob a mesa retangular, e de repente era como se acampássemos dentro de casa. há algo especialmente confortável nesses pequenos espaços que criamos dentro de outros espaços. éramos embaladas pelos sons do computador que ficava ali, acima de nossas cabeças, denunciando que tínhamos companhia.
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18. a criança dentro de meu avô tomou as rédeas dessa empreitada. ele não era uma pessoa impulsiva, pensara muito sobre esse projeto antes de coloca-lo em prática. sugeriu e a adesão foi unanime. construiríamos uma cabana, no meio da sala! penso que o bom design pode ser definido pelo conjunto de sofás togo que acomodam-se na sala íntima do apartamento de meus avós, porque, devido a sua leveza, ele nos permite criar estruturas que proporcionam diversão infinita. instruções para se construir uma cabana de sofás na casa dos meus avós: serão necessários ao menos duas crianças dispostas a prometer para a minha avó que a sala voltará a ser como era antes, 2 sofás togo, um de canto e um de 1 lugar, 3 cabos de vassoura (ou rodo) e uma coberta. passo 1. tire os sofás de sua formação original separando -os;
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passo 2. vire o sofá de 1 lugar, de modo que sua lateral encoste no chão; passo 3. em seguida, vire o sofá de canto de modo que uma de suas arestas sem encosto apoie-se no chão; passo 4. coloque os sofás um de frente para o outro de modo que a base do sofá (que normalmente encostaria no chão) forme as paredes externas e paralelas da cabana e deixe-os à uma distância pouco menor que um cabo de vassoura um do outro; passo 5. apoie os cabos de vassoura sobre as superfícies dos sofás que estão voltadas para o teto, formando uma estrutura paralela ao chão, que conecte a lateral do sofá menor com um dos encostos do outro; passo 6. cubra a superfície formada pelos cabos de vassoura com a coberta. está pronta a cabana!
19. ligo o chuveiro e corro para o lado mais distante do box, o aquecimento é a gás e demora. acompanho o correr da água que vem se aproximando de mim, ela tem sua lógica própria de caminhar pelo piso gelado do banheiro – corre mais rápido pelos rejuntes e percebo a sujeirinha insistente que se acumula ali. a poça se aproxima cada vez mais, fico na ponta dos pés para escapar do frio e quando já não há mais para onde fugir a água esquenta, embaçando aos poucos primeiro o vidro, depois os reflexos no espelho, assim podemos escrever recados com os dedos. ouço atenta aos sons desse ritual que é o banho, os pingos ressoando sobre a porcelana. entro debaixo d’água – primeiro os pés, as mãos, depois o resto – muda o som. depois vem a toalha macia, que me envolve, afundo os pés no tapete fofo, estou aquecida. apago as velas, ascendo a luz e desvencilho-me satisfeita do vapor denso que me abraça para encarar o mundo, abrindo a porta.
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20. sobre a xícara. serve para aquecer as mãos em dias frios. uma pequena xícara guarda também a cura para quase todo mal. 21. a mania de por a toalha da metade da mesa pra cá, a outra metade guarda a bagunça. a xícara grossa de cor creme, com duas faixas contornando seu perímetro – uma marrom, outra amarela – tem o poder de carregar todo o carinho e o melhor café com leite do mundo. bolinhos de chuva acompanham – o gosto doce da infância. a arte de jogar conversa fora, os braços cruzados sobre a mesa, uma das mãos alisa a toalha, recolhe um farelo aqui e ali, dá uma gargalhada gostosa – avó.
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22. sozinha num canto é apoio, enfileiradas uma locomotiva, em círculo reunião, sem ela, senta-se no chão. 23. os cafés da manhã nos fins de semana são sagrados, não importa o horário, há que se pôr a mesa, com o que tiver em casa, sentar-se preguiçosamente na larga cadeira quase poltrona que nos convida a ficar até mais tarde ao redor e conversar largas horas sem compromisso, até que os outros afazeres pouco a pouco nos tirem de lá. 24. existe essa sequência de travessias que a luz precisa fazer para encontrar meu olhar. deitada na cama vejo a luz acesa na lavanderia do vizinho que passa para o pátio a despeito do vitrô fechado e atravessa quase sem tocar a rede que mantém os gatos dentro de casa. avança, em seguida, através da janela aberta deixando-se filtrar pelas roupas brancas penduradas no varal, atingindo, difusa, a porta entreaberta e esgueirando-se para dentro do quarto para me alcançar.
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25. a arquitetura tem o seu espaço de existência. encontra-se numa ligação física especial com a vida. [...] inicialmente não é mensagem nem sinal, mas invólucro e cenário da vida, um recipiente sensível para o ritmo dos passos no chão, para a concentração do trabalho, para o silêncio do sono. (ZUMTHOR, 2004, p. 12) 26. as vezes pela manhã, quando nos damos mais tempo e não há compromisso, chegamos aos poucos, ainda de pijamas e nos sentamos juntas à mesa da cozinha. a água a ferver fazendo seu som característico, o abrir e fechar da geladeira que sempre atualiza seu som e as infinitas conversas. e se houver mais alguém que se achegue, carregam-se as cadeiras da sala, a mesa vai ficando pequena e torna-se apenas ponto de referência para a grande roda que vai se formando no centro da cozinha. sempre cabe mais alguém no coração da casa.
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27. a cozinha é esse lugar magnético e se estamos em casa e alguém vai pra lá, de repente lá estamos todos. no fim do dia, chegamos aos poucos, cansadas, mas sempre há alguma novidade para contar, alguma pitanga para chorar. alguma tristeza ou alegria nova, ou a mesma reclamação de sempre. abre-se um vinho, servem-se as taças, é difícil dizer não. as segundas-feiras, m. faz sua marmita da semana e somos capazes de ficar horas conversando na cozinha aquecida pelo calor saído do forno e do fogão, aos poucos os vapores e cheiros aparecem, a panela chia e o barulho da conversa se mistura ao barulho gostoso do líquido alcançando a taça. o dia já pode acabar.
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28. deito na cama de barriga pra cima, esfrego os pés sob o lençol branco, gelado, e os sinto esquentar aos poucos. me aconchego sob as cobertas, estou protegida. olho para o teto de concreto, para a dança das luzes que entram pelas frestas da persiana de alumínio e que se mexem de um jeito ritmado conforme os carros passam na avenida fazendo barulho. 29. estamos todos reunidos na sala, o sofá ficou pequeno, nos espalhamos também pelo chão, sobre o tapete. as cortinas estão fechadas, o som do mastigar da pipoca mistura-se com o ruído branco – o vento sim, vento não – do ventilador apoiado sobre uns livros, na altura perfeita. – alguém apaga a luz? – estamos todos confortáveis. – pode começar? – a trilha sonora familiar dá o tom dramático, estamos excitados, me acomodo melhor e nos deixamos entreter por algumas horas.
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30. fazia muito frio naquela noite, o vento entrava uivando pelas frestas, não havia nenhuma espécie de aquecimento ativo no quarto, o que tínhamos era o cobertor e o calor do corpo. as camas pareciam pedras de mármore de tão geladas. minha mãe deitou-se na minha cama na maior demonstração de amor que alguém pode dar, com a simples finalidade de aquecê-la para mim. 31. então, se mantivermos o sonho na memória, se superarmos a coleção das lembranças precisas, a casa perdida na noite dos tempos sai da escuridão, parte por parte. não fizemos nada para reorganizá-la. seu ser se restitui a partir de sua intimidade, na suavidade e na imprecisão da vida interior. (BACHELARD, 1967, p.56)
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32. fazia tanto calor que dormir parecia algo impossível. a janela escancarada deixava entrar um bafo quente. imóveis sentíamos a roupa de cama esquentar sob o nosso corpo. encostávamos na parede próxima primeiro as mãos, depois as pernas e pés e em seguida o corpo todo, como lagartixas, para obter um alívio refrescante e fugaz. sentíamos os materiais roubando nosso calor até que as temperaturas se igualavam, não adiantava mais. em seguida, deitamos no chão, que se fez mais gostoso que a cama, tudo é relativo. 33. os primeiros raios da manhã, ao entrarem no quarto, tocam os cristais do lustre num ângulo preciso em determinadas épocas do ano, e trazem consigo todas as cores do arco-íris pelas frestas da janela. muito cedo, podemos espiar, com a vista ainda embaçada, essa pequena festa de cores dentro do quarto, e vale a pena acordar.
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34. tantas foram as conversas naquela mesa que perdi a conta. é quase impossível continuar o que se está fazendo quando chega mais alguém em casa, as presenças enchem o espaço, tem o poder de torná-lo denso ou leve e todo movimento leva para a mesa de jantar. é um privilégio morar numa casa de mulheres. quantos aprendizados naquela mesa, quantos planos mirabolantes, quantos conselhos dados e tomados, quantos desabafos, discussões acaloradas, quantas risadas, quantas decisões importantes foram tomadas ali. a mesa tem um outro tempo, de demora. atrapalha a rotina de modo delicioso e ali nos deixamos ficar. 35. todas as texturas do chão, a sujeira que gruda nos pés descalços, a temperatura agradável da madeira, a porosidade sensível da cerâmica, o frio agudo do granito liso da pia da cozinha sob as minhas coxas enquanto assistia minha mãe lavar a louça, os espinhos do cacto, a leveza das palavras sussurradas, um gato que se esfrega em minha perna. tato.
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36. é de manhã, o tilintar dos talheres lá longe, as gavetas deslizando e fechando com um barulho seco, o som das coisas balançando por dentro com o tranco, porque queriam continuar onde estavam. esses são os melhores despertadores, porque chegam aos poucos, um a um, e parecem aumentar de intensidade. e daqui um pouco o cheiro vem terminar de me despertar na cama. c. está passando o café, e eu amo ela por isso. tem dias que espero ela sair, sei pelo barulho das chaves que destrancam a porta que em seguida fecha-se suavemente, estou sozinha em casa. saio do quarto arrastando as meias e aprecio o silêncio fresco da manhã e depois o barulhinho do café que sai da garrafa para a xícara antecipando o prazer do primeiro gole. o dia já pode começar.
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37. subimos três degraus e saímos do barulho incessante da rua empurrando com força a porta verde e pesada de ferro e vidro, a fechamos e reverbera um barulho tremendo que logo cessa, estamos seguros. assim adentramos o silêncio momentâneo, mudam-se os ares, o espaço é mais amplo ali dentro, o olho passeia e encontra os grandes lustres pendurados, um a um, é como se adentrássemos um outro tempo. nos dias quentes ali é mais fresco. chegamos em casa.
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37. subimos três degraus e saímos do barulho incessante da rua empurrando com força a porta verde e pesada de ferro e vidro, a fechamos e reverbera um barulho tremendo que logo cessa, estamos seguros. assim adentramos o silêncio momentâneo, mudam-se os ares, o espaço é mais amplo ali dentro, o olho passeia e encontra os grandes lustres pendurados, um a um, é como se adentrássemos um outro tempo. nos dias quentes ali é mais fresco. chegamos em casa.
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38. da cadeira posso observar as manchas amarelas no tapete, o furo mal tapado na parede, a luz do sol emoldurada pela janela e distorcida nas superfícies do lado de dentro, a marca de tinta branca da pata do coelhinho da páscoa que nunca mais saiu da cadeira preta, as manchas de copos na madeira, o emaranhado de fios atrás da televisão, a marca do vinho derramado na almofada do sofá, estou em casa. 39. a luz do sol no inverno atravessa a sala pela manhã enquanto os gatos se divertem com as roupas no varal instalado provisoriamente na sala – deve ser gostoso passar pelas roupas cheirosas que formam estreitos tuneis, sentindo-as tocar levemente o pelo, penso. caetano toca na vitrola –cajuína – e embala aquele hoje que começa lento e nítido.
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40. alguĂŠm aprendendo um instrumento, as conversas dos vizinhos, um grito, o eco dos passos na sala vazia, o choro no quarto, o nariz assoado, um latido, o canto dos passarinhos presos na gaiola, a vitamina no liquidificador, a companhia solitĂĄria da tv, o zumzum da geladeira que abrimos e fechamos para pensar, o tilintar de copos e talheres, a mĂĄquina de lavar roupa batendo, o motor do carro que chega na garagem, a campainha tocando, o disparo da descarga, sapatos de salto contra o piso, chaves que abrem e fecham portas, as pessoas na sala de jantar , o despertador tocando, o elevador chegando, o som ao redor, o barulho da rua que invade a casa.
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41. um disco na vitrola – que é uma espécie de máquina do tempo – e, de repente, os passos ritmados, cada uma a seu modo, sem vergonha, dançávamos no meio da sala, do quarto, da casa, sozinhas ou acompanhadas, de meias para escorregar, descalças ou calçadas, nuas, arrumadas, de pijama. nunca era premeditado, simplesmente vinha a vontade, ou alguém começava e as outras iam no embalo, porque dançar é contagiante. spice girls ou toda menina baiana, david bowie ou forró, sempre que dava vontade de dançar, dançávamos, a respiração ofegante, a sensação de liberdade e a intimidade de estar no melhor lugar do mundo, aqui e agora.
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42. visito esse quarto que habitei por tanto tempo. visito as palavras riscadas à chave nas portas macias dos armários, visito os adesivos colados nas janelas e as marcas de cola que nunca mais saíram mesmo quando não havendo mais adesivos. um gancho no teto, não há mais nada pendurado. visito as paredes hoje brancas e os resquícios da tinta rosa que escaparam para o teto de concreto quando as pintamos à seis mãos. visito esse tempo que já não é mais. 43. a cama desarrumada, a pilha de roupas sobre a cadeira, a aspereza sutil do tecido claro da cortina que deixa passar a luminosidade difusa, a marca de poeira no contorno do livro que tiro do lugar depois de algum tempo, a densidade do ar que envolve o sono a se dissipar, abro a janela, os sons da rua se misturam ao sonzinho harmônico da respiração profunda da gata que ainda dorme. um amanhecer do quarto.
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44. creio que o belo não é uma substância em si, mas apenas um desenho de sombras, um jogo de claro-escuro produzido pela justaposição de diversas substâncias [...] o belo perde a sua existência se lhe suprimirmos os efeitos da sombra. (TANIZAKI, 1933, p. 48)
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sobre a morte das casas
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casa da árvore | sobre a morte das casas imagine a minha surpresa, ao visitar o sitio, domínio de meu falecido avô – depois de muitos anos, ao final deste trabalho – e me deparar com os vestígios do que um dia fora a nossa casa na árvore. a falsa seringueira, cujos galhos antigamente parecíamos ter o poder de domar, onde meus primos, minha irmã e eu costumávamos subir e fantasiar histórias, onde meu avô resolvera construir o melhor presente que poderíamos ter ganhado um dia – com sua estrutura de madeira e revestida com o mesmo material das caixas de leite longa vida, com duas janelas, porta e uma escada de acesso de madeira pintada de azul, que subimos e descemos tantas vezes – cresceu, como nós, e destruiu completamente a casinha, me oferecendo essa imagem que eu interpretei como uma espécie de fim de uma inocência. poderia pensar que a casa na árvore está hoje morta. morta pois foi engolida pela árvore que um dia a sustentou, morta por não possuir mais nenhuma criança brincando, sonhan-
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do, abrigando-se do mundo em seu pequeno interior - espaço suficiente para infinitas fantasias - no entanto existe uma outra dimensão da casa, e ela mora na nossa memória. talvez possa ser, então, que a morte de uma casa se dê, não quando ela se desintegra no espaço físico, mas quando já ninguém mais se lembra dela. ninguém mais pode contar as histórias que se passaram naqueles espaços. se for uma casa histórica, pode ser infinita, se reside na literatura – assim como a casa dos buendía – permanecerá viva enquanto alguém ler o romance, mas a casa de qualquer um morre junto com a memória de quem percorreu seus aposentos, comemorou aniversários, chorou desilusões, amou e desamou sob seu teto, porque a casa guarda a vida de quem por ela passou. e, por isso, a casa na árvore permanece viva, não poderemos jamais adentrá-la novamente, mas aquele espaço tão pequeno torna-se agora grandioso na minha lembrança, pois guardará para sempre, enquanto houver memória, o gosto e o cheiro da infância.
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— no vive ya nadie en la casa — me dices —; todos se han ido. la sala, el dormitorio, el patio, yacen despoblados. nadie ya queda, pues que todos han partido. y yo te digo: cuando alguien se va, alguien queda. el punto por donde pasó un hombre, ya no está solo. únicamente está solo, de soledad humana, el lugar por donde ningún hombre ha pasado. las casas nuevas están más muertas que las viejas, por que sus muros son de piedra o de acero, pero no de hombres. una casa viene al mundo, no cuando la acaban de edificar, sino cuando empiezan a habitarla. una casa vive únicamente de hombres, como una tumba. de aquí esa irresistible semejanza que hay entre una casa y una tumba. sólo que la casa se nutre de la vida del hombre, mientras que la tumba se nutre de la muerte del hombre. por eso la primera está de pie, mientras que la segunda está tendida.
todos han partido de la casa, en realidad, pero todos se han quedado en verdad. y no es el recuerdo de ellos lo que queda, sino ellos mismos. y no es tampoco que ellos queden en la casa, sino que continúan por la casa. las funciones y los actos se van de la casa en tren o en avión o a caballo, a pie o arrastrándose. lo que continúa en la casa es el órgano, el agente en gerundio y en circulo. los pasos se han ido, los besos, los perdones, los crímenes. lo que continúa en la casa es el pie, los labios, los ojos, el corazón. las negaciones y las afirmaciones, el bien y el mal, se han dispersado. lo que continua en la casa, es el sujeto del acto. (VALLEJO, César. No vive ya nadie… )
— no vive ya nadie en la casa — me dices —; todos se han ido. la sala, el dormitorio, el patio, yacen despoblados. nadie ya queda, pues que todos han partido. y yo te digo: cuando alguien se va, alguien queda. el punto por donde pasó un hombre, ya no está solo. únicamente está solo, de soledad humana, el lugar por donde ningún hombre ha pasado. las casas nuevas están más muertas que las viejas, por que sus muros son de piedra o de acero, pero no de hombres. una casa viene al mundo, no cuando la acaban de edificar, sino cuando empiezan a habitarla. una casa vive únicamente de hombres, como una tumba. de aquí esa irresistible semejanza que hay entre una casa y una tumba. sólo que la casa se nutre de la vida del hombre, mientras que la tumba se nutre de la muerte del hombre. por eso la primera está de pie, mientras que la segunda está tendida.
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todos han partido de la casa, en realidad, pero todos se han quedado en verdad. y no es el recuerdo de ellos lo que queda, sino ellos mismos. y no es tampoco que ellos queden en la casa, sino que continúan por la casa. las funciones y los actos se van de la casa en tren o en avión o a caballo, a pie o arrastrándose. lo que continúa en la casa es el órgano, el agente en gerundio y en circulo. los pasos se han ido, los besos, los perdones, los crímenes. lo que continúa en la casa es el pie, los labios, los ojos, el corazón. las negaciones y las afirmaciones, el bien y el mal, se han dispersado. lo que continua en la casa, es el sujeto del acto. (VALLEJO, César. No vive ya nadie… )
por onde andei
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. lista de imagens p. 6 caneta nanquim s/ fotografia p. 11 caneta nanquim c/ finalização digital p. 18-19 grafite s/vegetal com finalização digital p. 20-21, 40-41, 58-59, 64-65, 77-78, 82-83, 88-89, 111 fotografias autorais nikon D3200, casa n. 4 p. 29 colagem colorplus e pastel oleoso s/ canson p. 35 aquarela s/ canson com finalização digital em estampa p. 38 colagem analógica e pastel oleoso c/ finalização digital p. 43 caneta nanquim s/ vegetal p. 45 caneta nanquim s/ vegetal p. 46 recorte em papel pólen p. 49 colagem desenhos c/caneta nanquim, giz pastel oleoso s/ colorplus e finalização digital p. 51 giz pastel oleoso s/ canson p. 52 colagem fotografia c/ desenho em caneta nanquim e finalização digital p. 55 giz pastel oleoso s/ canson e colagem digital p. 57 caneta nanquim e colagem analógica e digital p. 61 caneta nanquim s/ fotografia e colagem analógica e digital
125 p. 67 giz pastel oleoso s/ vegetal p. 68-69 caneta nanquim s/ fotografia e colagem digital p. 70 caneta nanquim s/ fotografia e colagem digital p. 72-73, 106-107 fotografias autorais, nikon D3200, casa n. 5 p. 76 ilustração em nanquim c/ finalização digital p. 85 caneta nanquim s/ fotografia autoral e finalização digital p. 87 giz pastel s/ canson p. 91 caneta nanquim s/ fotografia e colagem digital p. 93 fotografia autoral iPhone 6s, casa n. 5 p.94 colagem de ilustrações em giz pastel oleoso s/ vegetal e colorplus p. 98-103 caneta nanquim s/ fotografia e giz pastel oleoso e colagem digital p. 100-101 caneta nanquim s/ fotografia e colagem digital p. 104 ilustração em caneta nanquim e texto s/ vegetal e colagem digital p. 114-119 fotografias autorais, iPhone 6s, casa na árvore (2019) p. 115 fotografia de acervo pessoal, casa na árvore (1999)
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ensaios sobre a vida das casas irianna steck 2019