Livro o Malho e o Cinzel

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O Malho e o cinzel Temas maçônicos

Luiz Caramaschi Luiz Caramaschi

Editora Sociedade Filosófica Luiz Caramaschi Praça Arruda, 54 - Caixa Postal 44 - 18800-000 - Piraju - SP Fone (14) 3351.1900


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O Malho e o Cinzel Temas maçônicos

"O túmulo vazio de Jesus não é a interpretação sacerdotal da ressurreição do corpo; é o símbolo da ressurreição do pensamento e do Espírito"

"Trata, pois, de cinzelar teu caráter, abrilhantando de virtudes essa alma que deverá refletir, em algum dia da eternidade, a imagem e semelhança do seu Criador"

PIRAJU - SP - 2006 -


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PREFÁCIO Luiz Caramaschi é considerado pela comunidade maçônica de Piraju como uma fonte poderosa de luz que, por uma graça do Grande Arquiteto do Universo, por aqui transitou, espargindo seus raios de luz e sabedoria. Foi iniciado na Loja Maçônica "Cavalheiros do Sul", de Piraju, em 29 de novembro de 1947, tendo sido elevado ao Grau 33 em 7 de outubro de 1982. Permaneceu na Maçonaria toda a sua vida e, enquanto habitava entre nós, espargiu sua sabedoria através de palestras pronunciadas em diversas Lojas Maçônicase e em trabalhos publicados na imprensa e em livros. Sua temática, com pequenas exceções, é a filosofia, onde, com grande erudição e laborioso trabalho de pesquisa, procura demonstrar a natureza do nosso Criador e o comportamento dos seres humanos entre si e em face do mesmo Criador. Todavia, a maior parte da obra de Caramaschi foi deixada em manuscrito. Para tornar possível a edição e difusão das obras foi fundada a Associação Filosófica Luiz Caramaschi que, embora Entidade autônoma, funciona em anexo à Loja Maçônica Cavalheiros do Sul, de Piraju. E dois membros dessa Loja, os irmãos Antonio Arruda e Caleb Caramaschi, este, irmão carnal do filósofo, tomaram para si a árdua tarefa de editar as obras, aí incluindo desde a transposição dos manuscritos, trabalho difícil e demorado, pois além da caligrafia, que praticamente tem de ser decifrada, há diversos asteriscos indicando que no lugar deve entrar um texto escrito posteriormente. Nessas condições, era impossível digitar os escritos, diretamente dos originais, sendo necessário transcrevê-los primeiro. Esse trabalho era feito unicamente por D. Odila Prestes Caramaschi, esposa de Luiz Caramaschi. Após o falecimento de D. Odila esse serviço continuou sendo feito por Caleb Caramaschi. A feliz idéia de reunir em um livro os artigos de Caramaschi versando especificamente sobre a maçonaria foi dos abnegados irmãos acima mencionados. Como foi dito, a obra é extensa e o tema, sempre Filosofia. Considera Caramaschi que a Maçonaria é, no seio da humanidade, uma das poucas instituições que, pela pregação do amor e da fraternidade, contribui de maneira decisiva, para frear a degenerescência por que passa a humanidade, bem como ser capaz de leva-la a um porvir de paz e concórdia. Toda a sua obra é embasada por sólidos argumentos e por princípios universalmente aceitos e debatidos por intelectuais de diversas tendências e opções. Nesta obra os artigos selecionados têm por foco especificamente a Maçonaria que é esmiuçada sob uma ótica inédita, revelando aspectos impensados, só visíveis a uma inteligência arguta e preparada como a de Luiz Caramaschi. A Coletânea é composta por treze artigos que analisam a Maçonaria nos aspectos mais profundos e humanos, focalizando-a sob ângulos novos e surpreendentes, enriquecendo-a com as luzes do seu saber, com a riqueza e originalidade poucas vezes encontradas na literatura maçônica. Assim, no decorrer da leitura aprendemos que nem todas as pedras brutas são trabalháveis; sentimos um certo desalento quando discorre sobre a unificação da maçonaria, afirmando ser um problema simples, mas de solução complexa; ficamos surpresos ao depararmos com a lógica irretocável de que o enunciado do ternário maçônico Liberdade, Igualdade, Fraternidade deve ser corretamente enunciado como Fraternidade, Igualdade, Liberdade; sentimos a verdadeira dimensão do pavimento de mosaico ao vê-lo relacionado com o homem unitivo, qualidade inerente ao homem maçom, em contraposição ao homem sectário; aprendemos novos e profundos significados do salmo 133; descobrimos que podemos ter toda a ciência sem contudo, sermos sábios; vemos a variada gama de ensinamentos advindos de um instrumento chamado compasso e sua colocação sobre o coração durante os rituais; conscientizamo-nos de que devemos “nos cinzelarmos a nós mesmos para que possamos entrar como parte no edifício social da humanidade"; concordamos que o passado, ao contrário do que pregam os manuais de auto ajuda, “não desaparece, e antes, pervive em cada momento do presente”; ficamos convencidos do acerto do aforismo “não há penas nem recompensas, e sim conseqüências”; tomamos ciência da síntese entre o Criacionismo e o Evolucionismo e, finalmente, nos leva a um mergulho profundo sobre a nossa existência ao expor sua filosofia sobre o grau 18. Embora versando sobre altos graus da Maçonaria em alguns dos seus escritos, podem eles, e até seria conveniente, que fossem analisados pelos profanos. Caramaschi não desce aos assuntos privativos da Ordem, mas trata tão somente do seu pensamento filosófico, onde o tema principal não é a Maçonaria em si, mas a angústia da humanidade em seu caminhar atribulado. O autor procura mostrar o caminho ideal a ser seguido pelo ser humano, perante si mesmo, perante Deus e perante os seus semelhantes. Com a presente obra está a Ordem Maçônica cumprindo com um de seus postulados mais importantes: o de ser uma instituição filosófica, que prima pela investigação constante da Verdade, conforme preceitua o artigo primeiro de nossa Lei maior. Mário Felipe


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Índice I - O que é a Maçonaria? II - Unificação da Maçonaria III - Inversão da Ordem do Ternário IV - Unitivos e facciosos V - Fraternidade VI - Sabedoria e ciência VII - As pontas do compasso sobre o coração VII - O malho e o cinzel VIII - Ampulheta IX - Aforismo X - Grandes pontífices XI - Minha filosofia e a linha do Grau 18 XII - Faça-se a luz XIII – Religiões e Crença XIV – Homem, Mundo e Deus XV – O que é o Espírito XVI – Conflito de Gerações


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I - O que é a Maçonaria? A Maçonaria é uma instituição iniciática, como as muitas que existiram no passado. Sua simbologia e liturgia remontam-se a eras sem quantia. Quando, a partir do século 19, a arqueologia começou a fazer descobertas de civilizações desaparecidas das quais os homens haviam perdido todo o contato, foram desenterrados objetos em que figuravam símbolos maçônicos. A imutabilidade dos símbolos torna possível guardarem-se puros os preceitos e as práticas maçônicos que seriam deturpados se fossem expostos em longas dissertações. Além disso, a linguagem simbólica é uma linguagem sintética que condensa toda uma longa narrativa num simples símbolo. Pretendendo a Maçonaria ser a síntese de todo o progresso humano, não teve outro recurso senão condensar todo esse desenvolvimento na concisão dos símbolos. Eis, pois que a simbologia e a liturgia maçônicas são antiguíssimos, embora a forma moderna em que a Maçonaria se apresenta, date apenas de uns dois séculos ou seja, a partir de 1717. No entanto, recuando mais no tempo, podemos deparar com uma Maçonaria medieval, formada por pedreiros livres, isto é, não escravos, sendo esta uma corporação como as muitas outras vigentes então. Pode dizer-se franco-maçons ao invés de maçons, e a palavra "franco" vem de franquia, ou seja, do maçon que tinha trânsito livre, franco, para viajar de uma cidade para outra a serviço da sua Arte Real, isto é, a arte dignificada pelos reis, em virtude de, por ela, se construírem palácios, catedrais, obeliscos e túmulos. Já no Egito antigo os arquitetos eram agraciados com o título de nobreza, passando a pertencer à casa do faraó. Este prestígio não declinou, visto como sempre houve palácios, catedrais, monumentos comemorativos e mausoléus por construir. Todavia, quando todas as corporações medievais principiaram a declinar, igualmente as agremiações de pedreiros livres deram sinal de enfraquecimento. Por causa disto, essas agremiações começaram a admitir nobres e pessoas prestigiosas em seus quadros, fazendo que surgissem duas ordens de maçons que eram os operativos e os aceitos. Com o correr do tempo, o número dos aceitos sobrepujou o dos operativos, até que estes cessaram de existir, ficando só os aceitos. Os maçons aceitos, então, fizeram a transposição de significado dos objetos ou utensílios dos pedreiros para o plano moral e social, nascendo, deste modo, a Maçonaria moderna. Maçom, logo, é sinônimo de pedreiro, ou seja aquele que trabalha com o maço e com o cinzel ou escopro sobre pedras. Do maço saiu o ofício de mação ou maçom. Hoje a Maçonaria deixou de ser operativa no sentido de construções materiais, para ser construtora do edifício social. Para conseguir este objetivo, ela precisa congregar, como sempre o fez, homens unitivos. Já escrevemos sobre estes homens, mas é preciso insistir um pouco mais sobre este assunto, porque é só com tais homens que se pode construir o edifício social. Antes de encetar a edificação do social é preciso edificar o próprio homem fazendo-o passar de pedra bruta a pedra trabalhada, o que se faz com o maço e com o cinzel. Nem todas as pedras brutas se prestam ao trabalho do maço e do cinzel; umas porque moles (caráter humano frouxo, mole, acomodado, moluscóide), outras porque excessivamente duras (caráter obstinado, insubmisso, intransigente, com tendência ao fanatismo irracional). Quais, logo, são as pedras brutas trabalháveis? Ei-los: Todo homem unitivo é um pensador, porque, como diz Gusdorf, "o filósofo é o homem da totalidade, da composição global onde todas as significações são retomadas e arbitradas em


6 função da pessoa"1. "Tal como o rei Midas, que ao simples contato transformava em ouro os objetos mais vulgares, o metafísico (que é o mesmo que filósofo) eleva ao absoluto tudo aquilo em que toca"2. O parentese é nosso. Huberto Rohden afirma que "a inteligência humana é filosófica por natureza"3, e é certo isto, porque ela busca o nexo que tudo interliga na unidade até o absoluto. Falando de Smuts, diz Toynbee que "a «totalidade» era a chave de sua grandeza, assim como o era a da de Einstein. Einstein fez suas descobertas que marcaram época reunindo coisas que espíritos menores tinham deixado separadas. Sir Winston Churchill é outro grande homem do mesmo filão não-moderno. A amplidão de vistas destes três grandes homens é um elo entre si que transcende as diferenças de suas personalidades e suas carreiras. Todos três ter-se-iam sentido à vontade se tivessem nascido no mundo de Políbio, Catão, o Censor, e Arquimedes"4. Mais: "Tal como o filósofo da história islâmica do século XIV Ibn Khaldum e o filósofo ocidental da história do século XVIII Vico, Freeman tinha o dom de «ver o mundo em um grão de areia»" 5. Sem esta característica de homem da totalidade, de homem unitivo a Maçonaria se enche de nulos com os quais nada se poderá construir. Em contrapartida, o homem só de fé, não de razão, abdica de sua inteligência para se pôr no cabresto daquele que o sugestionou. Como, voluntariamente, se fez destituído de razão, nem usa sua inteligência, está impedido de pensar, de argumentar; daí porque suas reações são desabafos emocionais agressivos, próprios dos fanáticos, exclusivistas, separatistas e irracionais. Ora, a Maçonaria não poderá contar com homens desta espécie para construir o edifício social. Já os que usam a razão acabam concluindo que todos possuem a verdade e que apenas estiveram falando da mesma coisa por palavras diferentes. Então, que é a verdade? Pois não pode ela ser senão aquilo que há de comum em todas as diferentes afirmações. Mas fica isto para o próximo artigo.

II - Unificação da Maçonaria Solução complexa para um problema simples O problema é muito simples. É só unificar. Não há óbices grandes a vencer. A Doutrina é a mesma. O patrimônio é de todos os maçons que se amam, que se respeitam, que se visitam, que se consideram irmãos. A ritualística e a liturgia são meios, e, não, um fim, sendo, portanto, de somenos importância. Embora, como se vê, o problema seja simples, sua resolução se faz dificílima, porque os maçons agem como quase a maioria dos seguidores de Cristo, os quais se abstinham em questionar, por exemplo, sobre se o batismo deve ser por imersão, ou se apenas se deve pôr água sobre a cabeça. Esta e outras questiúnculas foram condenadas pelo próprio Cristo ao dizer: "pagais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, e desprezais os pontos mais importantes da lei" 6. Por causa de os maçons, em sua maioria, serem misólogos, tal qual os divisionistas de Cristo, ficam ocupados com miuçalhas farisaicas que separam. Portanto, a solução do problema vai só depender de os maçons se tornarem em homens unitivos, de mentes abrangentes, capazes, por conseguinte, de grandes idéias, as só que unificam. 1

Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 122 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 123 3 Huberto Rohden, Filosofia Universal, 1, 21 4 Arnold J. Toynbee, Experiências, 125 5 Arnold J. Toynbee, Experiências, 125 6 Mat 23, 23 2


7 Deste modo, o problema é muito simples, visto como, o que une é o ideal maior; pela recíproca, o que separa são as questiúnculas que são o regalo da gente filosoficamente miúda, quer dizer, sem nenhuma ofensa, não possuidoras de mentes abrangentes. O problema da unificação fica na dependência de os maçons serem homens de mentes abertas, totalizantes, que só nisto se resume o ser filósofo. Ora, isto só pode acontecer ao longo do tempo, e tem que começar na Loja de Aprendiz, pela aquisição de candidatos, seguindo-se um critério de seleção não só na base de livres e de bons costumes, mas também, e sobretudo, levando-se em conta a CAPACIDADE DE ABRANGÊNCIA MENTAL dos candidatos. Se os filósofos não entrarem pela porta dos Aprendizes, ninguém se admire de os maçons continuarem misóssofos, mesmo tendo chegado ao grau 33. Não se trata de encher as Lojas de doutores, porque um doutor, qualquer que seja sua especialidade, pode não ser filósofo, e, no entanto, um operário, sim, pode. Espinosa era polidor de lentes. Como a filosofia não dá de comer a ninguém, segue-se que todo o filósofo tem de ocupar-se com algo para ganhar o seu pão. E o doutor? Qualquer doutor pode ser um filósofo também; não raro, porém, ele não vai além de um homem de ciência, o qual, no dizer de Ortega, é um "sábio-ignorante". Não pode ele ser classificado como ignorante, porque é um homem de ciência, e conhece muito bem sua "porciúncula de universo"; não obstante, é um ignorante, porque "se comportará em todas as questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem na sua questão especial é um sábio"7. Tais doutores não servem para a Maçonaria, embora sejam, como se exige, livres e de bons costumes, porque, como não são filósofos, e são doutores em alguma coisa, suas doutorices serão postas no lugar da filosofia, pelo que farão realçar as bagatelas que esses homensmassas, apesar de doutores, têm nas cabeças. Eis, pois, que não se pode perder de vista o dito por John Dewey: "A memória é a grande simuladora da inteligência", e o maçom tem que ser inteligente para não ficar ocupado com nadas como: forma de administração, observância meticulosa deste ou daquele ritual havido por verdadeiro, dando azo a infindáveis discussões como as medievais em que os escolásticos se propunham questões quais esta: quantos espíritos caberiam numa cabeça de alfinete? Modernamente: como fazer com o patrimônio?, se as Constituições não autorizam fundi-los num único? Quem vai aceitar o ritual e liturgia de quem?, e quais vão depor seus malhetes nas mãos de um único homem? E visto que se propõe haja um único mandante, como sofrerei eu não ser esse único? Tudo isto são o que chamamos miuçalhas! Sabedoria, portanto, não há de ser erudição, nem maçônica, nem profana, nem ambas juntas, mas capacidade de ver em globo, só indo para os pormenores, depois de apreendida a totalidade. Todo o mal, por conseguinte, consiste em querermos fazer grandes coisas, por exemplo: salvar a Maçonaria do divisionismo que a matará, como já matou outras instituições; salvar a civilização da sua queda iminente; fazer a Maçonaria constituir-se na CRISÁLIDA de que surgirá a nova civilização, a Jerusalem Celeste antevista nos graus 19 e 29, que, espera-se, estará acontecendo no terceiro milênio, a exemplo do que foi o Cristianismo em relação à nossa atual civilização ocidental, depois que a civilização greco-romana se esboroou nas mãos dos bárbaros; etc. Todo o mal consiste em ter pela frente tais grandes projetos, e contar, apenas, com homens pequenos quanto à abrangência mental. Serão homens boníssimos, amáveis, adoráveis, dignos de todo o respeito, e, por azar, ardorosos defensores de sua idéias miúdas, mas não serão filósofos capazes de integrar uma sociedade que é, primeiro que tudo, "essencialmente filosófica" (Const.) ... Por causa de não serem naturalmente, isto é, por natureza, filósofos, suas reuniões são monótonas, descoloridas, apartadas dos grandes problemas que o nosso tempo colocou, e que afligem, hoje, a humanidade inteira. Apesar disto, eles não se darão por achados, continuando a considerar-se como "líderes da sociedade", ou então, farão coro com um escritor que afirma ser a 7

J. Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas, 174


8 Maçonaria uma escola de líderes, esquecendo-se, ou não sabendo que o líder não se faz: ele é, do berço. Qualquer bando de moleques, assim como uma tropa de macacos, de zebras, ou de outros mamíferos quaisquer de grande porte, tem um líder; pois bem: pegue-se um liderado qualquer, animal ou homem, e faça-se dele um líder! Isto só se torna exeqüível, se banalizarmos o termo líder, fazendo-o confundir-se com chefia, como ocorre com os líderes das assembléias legislativas, eleitos por votos, pelo que, de cambulhada, também, se escolhe qualquer um para ser o vice-líder. Igualmente, numa "escola de líderes" qual se diz ser a Maçonaria, poder-se-ia forjicar líderes de nada como os das assembléias, que ora lideram, ora não lideram, como se isto fosse possível in natura; uma espécie de Moisés que ora é Moisés, ora é outro qualquer que lhe ocupa o cargo, assumindo-lhe a missão de ser o "libertador do povo"(?!), e isto, por eleição duma maioria embaída por politicalhos. Datã, Coré e Abirão tiveram o topete, a insolência, o descaramento de pretender ocupar o posto de Moisés. Cuidaram fosse viável fazerem-se líderes eleitos por maioria, antecipando o que agora se faz nas assembléias. E que lhes sucedeu a eles? Foram todos mortos com seus familiares e sequazes, e tudo, deles, tendas, pertences, enterrados nas areias do deserto, exceto os sequazes, duzentos e cinqüenta, que foram queimados com fogo8. Tal é o líder, e ele não se forja em escolas! Tudo, então, tem que começar na Loja de Aprendiz pela seleção de candidatos, não servindo para a Maçonaria os bonacheirões, os pacíficos de gênio 9, os amodorrados, os que não se exaltam por nada, os que não brigam por um ideal distante que não enxergam, mas que sempre estão atentos à execução cuidadosa das liturgias e rituais... Não serão estes que formarão a Maçonaria do futuro, porque, se houver Maçonaria no futuro, tais homens não estarão nela, e, se estiverem, ela já não será mais Maçonaria. Escreve Bertrand Russell: "A maioria dos homens prefere deixar-se matar a pensar. A história o atesta". Pois a Maçonaria do futuro, se ela existir no futuro, não será constituída de tais misóssofos. O Ir∴ Theobaldo Varoli está equivocado quando escreve: "Não se pretenda, com isso, fazer da Maçonaria um presunçoso cenáculo de sábios. Não, pois a Instituição se firma em três colunas: SABEDORIA, FORÇA E BELEZA. O que está faltando à Ordem é mais sabedoria e mais ação ou força, pois a Maçonaria jamais perdeu a própria beleza" 10. Varoli não disse o que entende por sábios, e bem pode ser que, os dele, sejam os mesmos sábios-ignorantes de Ortega, visto que tais, sim, são sábios presumidos, ou que têm a pretensão de sábios. Todavia, se ser sábio é possuir mente abrangente, totalizante, então, sim senhor!, as Lojas devem ser cenáculos de sábios! Se ocorrer o contrário disto, ninguém se admire de que a unificação possa ser tão impossível como a resolução matemática da quadratura do círculo, ou, a mecânica, do moto contínuo. Se o enchermos as Lojas de misóssofos continuar sendo a regra, para o futuro será assim: um Grão Mestre fará a unificação, em parte; depois dele, as coisas correrão, algum tempo, mais ou menos bem, até que tudo retorna ao estado anterior. Aí, então, outro Grão Mestre fará nova unificação, em parte ainda menor, e assim por diante, até que a Sublime Instituição que, como disse o Ir∴Varoli, já perdeu muito da sua força e da sua sabedoria, se esfacele por crescentes divisões, a exemplo do Protestantismo fragmentário, até que se extinga para sempre, como se extinguiram outras respeitáveis instituições iniciáticas do passado, como o Baquismo, o Orfismo, o Pitagorismo, sem lhes valer de nada quanto tinham em si de Belas! E não se trata de "presunçoso cenáculo de sábios", como o afirma o Ir∴Varoli, porque o presunçoso é o que presume, que supõe, que imagina, e o caso é de ser, de fato, de possuir, por 8

Num 16 a 35 O pacifismo tem que ser uma opção voluntária, e ser adquirido às duras penas, semelhante ao que disse Cristo do reino de Deus. "Desde os dias de João Batista até agora, o reino dos céus adquire-se à força, e são os violentos que o arrebatam" (Mat 11, 12). Quer dizer: Não há lugar para os frouxos. "Eu sei as tuas obras, que nem és frio nem quente: oxalá foras frio ou quente! Assim, porque és morno, e não é frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca" (Apc 3, 15 e 16). 10 Theobaldo Varoli Filho, Curso de Maçonaria Simbólica, Grau de Aprendiz, 45 9


9 natureza, mente abrangente, totalizante, o que é uma característica do homem filosófico o qual, como o poeta, nasce, e não se faz. O filósofo está transitando por aí, angustiado e confuso, afligido por mil questões que não existem para o povoléu, e precisa ser despertado pela Maçonaria, como foi despertado Descartes pelo sábio holandês Beeckman, ocorrendo este despertar como um "Pentecostes da razão" como escreve Maritain. Daí a necessidade das Sessões Brancas de estudos mensais, para o fim destes despertamentos. Outros despertam-se sozinhos, tal como ocorreu com Nietzsche, com Pascal, com Kierkegaard, com Rousseau, com Malebranche. Este último "folheia, numa livraria, o Tratado do homem de Descartes, e exclama: «tambem eu sou filósofo...»"11. Tudo isto nada tem a ver com a presunção de sábio, de que fala Varoli; trata-se de um como batismo filosófico, de uma visitação, de um relâmpago fugacíssimo, de uma iluminação subtânea que os gregos chamavam de alétheia, antes de Pitágoras trocar este termo por filosofia, e que pode acontecer a qualquer homem, e a qualquer momento. "Kierkegaard e Nietzsche, querendo caracterizar esse momento, falaram também do «sismo» que faz vacilar em suas bases mais profundas o universo pessoal"12. De tais homens filosóficos é que se hão de encher as Lojas, uns de maior, outros de menos alcance, e é certo que eles jamais se embriagarão com os fumos do poder, se este, um dia, lhes cair nas mãos. Pelo contrário, a aceitação do mando por tais homens, é um ato de obediência, de renúncia, de humildade, imposto pela consciência de que alguém tem que mandar. O cargo ser-lhes-á encargo e carga, e, não motivo gratificante de fúteis honrarias e incensamentos. Por causa disto estariam em condições de jogar tudo, TUDO!, para manter a UNIDADE, vindo, como agora, a UNIFICAÇÃO em primeiríssimo lugar, pela imediata eleição de um só mandante, vindo o resto, porque é resto mesmo, em segundo lugar. Portanto, como devia ter sido conduzida a UNIFICAÇÃO que ainda está, em parte, por fazer-se? Muito simplesmente, UNINDO-SE AS CÚPULAS, do mesmo modo como lá se deu a DESUNIÃO. Tinha-se (agora se sabe claramente) de ter agido como Alexandre Magno: cortando o nó górdio. Por acaso, quando foi para separar, alguém foi consultar o Povo Maçônico? Não! E não se fez tudo ao arrepio da vontade soberana desse Povo? Sim! Não é fato que, apesar das recomendações de que os de ambas alas não se deviam visitar, cada maçom mandou essas recomendações às urtigas? É verdade também isso! Pois, então, o que manda é o Povo Maçônico, o único que está acima da Lei, e tanto, que se esta o atrapalhar, ele a muda. Coerente com esta verdade inexpugnável que a história atesta em todo o seu curso, a UNIFICAÇÃO havia-se de ter sido feita pelos dois Grãos Mestres, entre si somente, sem mais aquelas. Eles, sozinhos, haveriam feito aquilo para o que foram eleitos por vontade do Povo. Haviam de ter deposto seus malhetes nas mãos de um terceiro, e se postarem ao lado deste para o ajudar nas reformas, assessorados por aqueles só que, intransigentemente, desejassem essa UNIFICAÇÃO. Nada de unificar ouvindo as bases... que foram alguns, os das comissões, dando azo a que estes micrólogos ficassem interpondo nadas, como, reforma da Constituição, Mútua Maçônica e outras mais coisas que não diziam com o caso. Tais miudeiros nunca quiseram unificação nenhuma, mas apenas evidenciar suas minuscularias separatistas. Eis aí: uma solução complexa, dificílima, impossível até, para o momento, para um problema simples! Contudo, este é o caminho e única saída para uma sociedade que se diz, entre outras coisas, "essencialmente filosófica". Daqui não há fugir: a Maçonaria tem que ser o que promete ser: uma associação de filósofos... de fato, e não isto para ser entendido só "ritualisticamente"... como soem ser outras coisas dela.

III - Inversão da Ordem do Ternário 11 12

Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 44 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 44


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Em nossa obra "Grandes Pontífices", defendemos a tese de que o Ternário Maçônico Liberdade, Igualdade e Fraternidade (dado que são os FINS SUPREMOS da Maçonaria – Constituição) deve ter sua ordem invertida, ficando a Fraternidade em primeiro lugar, e, em último, a Liberdade. O princípio de razão suficiente alegado por nós, é o da existência de Deus... o qual, como tem que ser, como não pode ser de outro jeito, fundamenta e hierarquiza tudo, estando Ele no tope supremo de todas as hierarquias, e para cuja UNIDADE se convergem todas as perspectivas. Não são permissíveis quaisquer violações a estes princípios preliminares de que tudo vai depender, e é deles que emana a autoridade com que falamos e escrevemos. O princípio de hierarquia rege todo o Universo, subpondo-se (quer dizer, pondo-se por debaixo, como fundamento) ao outro princípio imediato que é o de decorrência. Não há isso de se dizer que os três enunciados do Ternário se igualam entre si, e que a ordem não altera, sendo cada um deles um enunciado à parte, sem interdependência entre os três. Foi exatamente assim que pensaram os industrialistas do século XIX, para ficarem só com a Liberdade, mandando às urtigas tanto a Igualdade como a Fraternidade. A mesma Liberdade do Ternário que andou encabeçando as flâmulas revolucionárias do maçom Maximiliano Robespierre, apareceu, depois, no nefando Liberalismo Econômico do século XIX do qual saiu o slogan laissez-faire (deixar fazer)... Existe, pois, nos enunciados, uma ordem de importância, uma ordem de valor, uma hierarquia, pelo que não se pode inverter a seqüência nas fórmulas sacramentais e dizer: em nome do Espírito Santo, do Filho e do Pai. Quem diz: Deus, Pátria, Família, Indivíduo, declara exatamente o oposto do que dá primazia ao indivíduo, e afirma: Indivíduo, Família, Pátria, Deus! Isto posto, vem a primeira pergunta que é: que base tem dizer-se que todos somos irmãos? Todos somos irmãos porque Fraternidade se baseia num Criador que é o Pai comum de todos os homens, ao qual, maçônicamente, se dá o nome de G∴A∴D∴U∴. Quem negar a existência e a essência desse Pai comum, não tem no que se alicerçar para dizer que todos os homens são irmãos. Logo, na hierarquia de valores, vem primeiro a Fraternidade. Certa feita um Ir∴ nosso escreveu que deveríamos nos tratar por "amigos", em vez de por "irmãos", porque a palavra amigo é mais autêntica que irmão, dado que até entre irmãos de sangue há inimizades. Pondo de lado a constatação indubitável de que a palavra amigo13 se acha tão deturpada quanto a de irmão, queremos propor um problema filosófico ao Ir∴ que sustentou essa tese; perguntamo-lhe: de que base o Ir∴ deduziu a Amizade, supondo-a superior à Fraternidade? Acaso do dado empírico? Acaso, do fato de que Caim matou Abel, seu irmão? E desde quando, um dado empírico serve de base a conclusões filosóficas, que, por sua natureza são abrangentes? O que?, a experiência pode ocupar o lugar de Deus? Por desventura, tornou-se, então, o Deus-Pai numa "hipótese desnecessária", como o declarou a Napoleão o maçom Laplace? Embora Aristóteles tenha dito que o amigo é o outro eu (alter ego), Aristóteles não é Deus. Afora isto, nem sempre um homem se mostra amigo de si mesmo; os suicidas são exemplos dos que se querem anular para sempre, pelo que desejariam ser outros. Cristo propõe ao pecador que "se negue a si mesmo", antes de o seguir. Quem se nega, deixa com o si negado as amizades perniciosas que tinha. Por causa disto é que o Diabo tem muitos amigos, mas não tem nenhum irmão, dado que nega a paternidade de Deus. Aceita, portanto, a Grande Premissa de que Deus é nosso Pai, vem a primeira decorrência de que todos somos irmãos, tirando-se disto, que todos somos iguais. A Igualdade, por conseguinte, deflui da Fraternidade. Aos olhos onividentes de nosso Pai14, todos somos livres, porque todos somos irmãos. 13 14

Cristo disse a Judas, depois do beijo de traição: "amigo a que viestes?" - Mat 26, 50 E não há outros olhos além dos d ' Ele autorizados e indiscutíveis para este julgamento.


11 Pois é muito claro que entre filhos iguais, entre irmãos iguais, uns não podem exaltar-se sobre outros, estabelecendo-se a divisão dragontina, satânica, de senhores e de servos. Se o Pai não tolera isto, quem outro pode autorizar? Não havendo servidão autorizada pelo ÚNICO que o poderia fazer, todos, então, somos livres. Eis de onde nasce, emana, a Liberdade. Quando aconteceu "A Declaração dos Direitos do Homem", a Assembléia, antes de afirmar que "os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos", havia declarado no preâmbulo: "a Assembléia Nacional reconhece e declara diante e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do homem e do cidadão". Já se vê, então, que os homens não nascem livres porque sim, sem mais aquela; nascem-no, porque Deus fundamentou essa afirmação. Portanto, se esta é a verdade incontestável, esta tem que prevalecer numa Instituição que, entre outras coisas, tem isto de Sublime: "a investigação constante da verdade"(Constituição); e é por esta razão que "a Maçonaria não impõe limite à investigação da verdade e é para garantir a todos a amplitude desse liberdade, que ela exige a tolerância"(Doutrina do grau 33). A Liberdade, pois, só pode existir, se apoiada sobre a Igualdade que, por sua vez, se fundamenta (e não há mais nada em que se fundamentar) na Fraternidade que decorre de ser Deus o Pai comum de todos os homens. Esta ordem hierárquica do Ternário é moralmente fecunda, no passo que a outra, a tradicional, não o é; provemos esta conseqüência: Estando a Liberdade na cabeça do Ternário, ela, como primaz, não decorre de nada, tornando-se num postulado, completamente apartado e independente de Deus. Esta é a primeira imoralidade. Não dependendo de nada, esse postulado se torna num absoluto..., pelo que substitui Deus o qual, portanto, se torna numa "hipótese desnecessária", como já o disse Laplace. Se isto não é uma segunda imoralidade, alguém apareça para nos dizer por que o não é? E foi como absoluta que tal Liberdade norteou o execrável Industrialismo do século XIX na Inglaterra, Alemanha, Itália, etc. Essa Liberdade, em se fazendo absoluta, pariu um filho abominável, o Liberalismo Econômico, cujas garras de Satanás se evidencia no aforismo "laissez-faire"– deixa fazer. Deixa o homem livre para satisfazer o seu egoísmo que, em o satisfazendo, trabalha para o bem geral. E daí? Daí que contra a peste do Industrialismo capitalista do século XIX, surgiu, por reação, outra peste igual e oposta que é o Comunismo antiliberal, ditatorialista e ateu. Por que aconteceu isto? Aconteceu, simplesmente, porque a Liberdade era livre e autônoma em si mesma, não decorria de nada e não precisava prestar contas a ninguém. A Maçonaria, então, precisa evitar futuros desastres, não permitindo que seu dístico saia de novo nas bandeiras e estandartes de outras revoluções, como saiu na francesa, antes de ir-se enrodilhar, como serpente, nas fábricas desumanas da época do Industrialismo. É tempo de alguém acordar, sacudindo, a todos os Irmãos, para que exijam a correção do Ternário, não mais permitindo a que Lúcifer se aproprie dele, como já aconteceu, pelo que se massacrou crianças de dez anos para cima, sobretudo dos asilos, que viveram em pocilgas, alimentando-se do lixo dos poderosos, e trabalhando dezesseis horas por dia, sem direito a nada, e sem NENHUM status de pessoa humana! Esta é a terceira imoralidade. Se ninguém, NINGUÉM !, pode demonstrar o contrário disto que afirmamos, e isto é um desafio, perguntamos: por que não se põe de lado a tradição bissecular, e não se muda a ordem do Ternário? Ou então, para que serve a "investigação constante da verdade", e em que sentido a Maçonaria, entre outras coisas, é essencialmente progressista? Esta é a nossa posição da qual só arredaremos o pé, se alguém, com a mesma proficiência, nos demonstrar que o Ternário, como está, deve ser mantido. Do contrário, teimamos na nossa... de que ele deve ser mudado, ficando: Fraternidade, Igualdade e Liberdade.


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IV - Unitivos e facciosos Os homens podem classificar-se em unitivos e sectários. Enquanto que estes últimos são intransigentes, sempre prontos a apegar-se a um fragmento da verdade geral, os unitivos têm sempre as vistas voltadas para a totalidade. Os grandes mestres da humanidade são todos, sem nenhuma exceção, unitivos, entendendo-se todos eles muito bem entre si. Já a maioria dos adeptos desses mesmos mestres são intransigentes, faccionários, dispostos a criar seitas que tomam a parte pelo todo, isto é, elevam o fragmento à categoria de absoluto. Por que há tantas seitas cristãs a se hostilizarem entre si dentro do cristianismo? Que sentido tem as recentes lutas fratricidas entre irlandeses católicos e protestantes? Quantas seitas há do budismo? Por que são os homens propensos a fragmentar a verdade única, quando os próprios mestres se mostram unitivos formando todos eles uma fraternidade que não conhece tempo nem espaço? Ia, Cristo, um dia, de um lugar para outro, quando vieram os discípulos dizer-lhe que haviam proibido a um homem de expulsar demônios em seu nome, porque, como afirmavam, ele "não nos segue"15. Aí está o espírito de intolerância, de separatismo, de exclusivismo. Porém, Cristo, que era unitivo, advertiu: "Não lho proibais; porque ninguém há que faça milagres em meu nome e possa logo falar mal de mim". E acrescentou: "Porque quem não é contra nós é por nós". E noutro lugar: "Quem não é comigo é contra mim; e quem comigo não ajunta espalha" 16. Eis aí as duas classes: a dos que se ajuntam na unidade, e a dos que se espalham pela diversidade; a dos homens cósmicos e a dos acósmicos. Pondo Cristo o ato caridoso do samaritano por modelo de conduta para com o próximo 17, não declarou qual fosse a religião ou a fé do samaritano. Igualmente, no Juízo Final18, a separação entre bodes e ovelhas 19, não diz Cristo que há de ser feita tendo em vista as fés, as crenças, os sectarismos intransigentemente separatistas. A estes, que sempre existiam no mundo, brada Cristo: "Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que dizimais a hortelã, o endro e o cominho, e desprezais o mais importante da lei, o juízo, a misericórdia e a fé; deveis, porém, fazer estas coisas, e não omitir aquelas. Condutores cegos! Que coais um mosquito e engolis um camelo"20. "Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois que edificais os sepulcros dos profetas e adornais os monumentos dos justos, e dizeis: Se existíssemos no tempo de nossos pais, nunca nos associaríamos com eles para derramar o sangue dos profetas. Assim, vós mesmos testificais que sois filhos dos que mataram os profetas. Enchei vós pois a medida de vossos pais"21. Tendo de ir Jesus a Jerusalém, resolveu pernoitar em Samária, para o que mandou alguns irem adiante arranjar-lhe pousada. Os enviados foram e vieram com a notícia de que os samaritanos se recusavam receber o Mestre. Afrontados com isto, Tiago e João já queriam, a exemplo de Elias, fazer cair fogo do céu sobre os samaritanos22. É sempre assim com o faccionário: ou crê ou morre pela espada ou pelo fogo (Elias, Maomé, Tiago e João e a "Santa" (!) Inquisição). Aí está que os homens se dividem em unitivos e sectários, em justos e injustos, em ovelhas e cabritos, em homens que trazem em si o princípio de integração (amor, sabedoria), e em 15

Marc 9, 38 Luc 11, 23 17 Luc 10, 30 a 37 18 Seleção planetária a fim de ver quais os que hão de continuar habitando a Terra que mudará de categoria: passará de planeta de expiação, como agora é, para planeta regenerador. 19 Mat 25, 34 a 46 20 Mat 23, 24 e 26 21 Mat 23, 29 a 32 22 Luc 9, 54 16


13 homens cujo princípio interno é o do egoísmo ignorante separatista que desintegra produzindo o espalhamento. E nada terá que se fazer com estes últimos, e sim só poderá contar com o unitivos. Todavia, se houve sempre, por parte dos involuídos egoístas e desamorosos, um esforço para dividir e separar até o ponto máximo de cada um se ver sozinho, por outro lado, igualmente, sempre existiram aqueles cujo trabalho é de ajuntar, de reunir, de conectar as partes divididas, fazendo do caos um mundo. E isto se torna, então, o ponto de convergência de todos os unitivos que já pertencem às instituições já, de si, unitivas tais como: a Sociedade Brasileira de Eubiose, a Igreja Seicho-no-ie, a Associação Rosa-Cruz (Amorc), a Fundação Alvorada, o Espiritismo Kardequiano, as várias sub- divisões da Yoga, a Maçonaria, fora outras que ainda virão. O chão da Loja de Aprendiz moçom é um mosaico axadrezado, feito de quadrados brancos e negros. Esse "pavimento mosaico" simboliza a união de todas as crenças e ideologias religiosas, filosóficas e políticas. A argamassa que prende as consciências é o reconhecimento, primeiro, de que ninguém é dono da verdade em regime de exclusividade; segundo, consequentemente, de que há uma parcela de verdade em toda a afirmação ou negação; e terceiro: destas duas verdades axiomáticas resulta o enunciado de que a VERDADE TOTAL só pode ser achada no ponto de convergência de todas as linhas, ou no ponto em que todas as varetas do leque universal se reúnem na unidade do cabo. Daí que a tolerância ou indulgência é a virtude suprema que se identifica com a sabedoria-amor. Este é o fundamento precípuo da Maçonaria. Segue-se disto que a Loja de Aprendiz (que é por onde se começa na Maçonaria) aspira ser um modelo da futura sociedade humana em que reinará a irrestrita fraternidade. Esta é a razão por que a Loja de Aprendiz é dedicada à fraternidade universal simbolizada no "pavimento mosaico" que possui, nos seus bordos, uma "orla denteada" que representa a irradiação daquela fraternidade. Por tais motivos a Loja de Aprendiz se chama "Fortaleza do Silêncio e da Paz" ou "Reino da Harmonia". Aí os maçons trabalham pela futura comunhão (comum + união) universal. Como se vê, a Maçonaria já é um ponto de encontro dos homens unitivos de todas as religiões, filosofias e partidos políticos; por tal motivo é vedado aos obreiros discutirem, quer em Loja, quer nas dependências do Templo, quaisquer assuntos capazes de promover a desunião tais como sectarismo religioso e filosófico, e política partidária.

V – Fraternidade Hoje encerro o primeiro ternário maçônico composto pelas três palavras: liberdade, igualdade e fraternidade. Não é que ele seja só isso; há vários grupos de três palavras sempre representando os três lados do triângulo em cujo centro se acha o olho onividente da Divindade. O tema de hoje é de quantos o mais importante, e tanto que se acha expresso na oração, no Salmo 133, lido sempre no início dos trabalhos, ao ser aberto o Livro da Lei. "Oh! Quão bom e quão suave é que os irmãos vivam em união! É como o óleo precioso sobre a cabeça, que desce sobre a barba, a barba de Aarão, e que desce à orla dos seus vestidos. Como o orvalho de Hermom, que desce sobre os montes de Sião; porque ali o Senhor ordena a benção e a vida para sempre". Oh! Quão bom e quão suave que os irmãos vivam em fraternidade, em amorosa confiança! É como o óleo precioso que, à ordem de Deus, ungiu e sagrou o primeiro sacerdote hebreu, Arão, irmão de Moisés. Estava Moisés no monte; e apareceu-lhe um fogo envolvendo umas salsas, de modo que as salsas não se consumiam. Quero gozar esta vista monologou Moisés. E qual não foi seu espanto quando, ao chegar perto, uma voz de trovão lhe disse: – "tira tuas sandálias, porque o chão que pisas é santo. Quem me fala? Interrogou Moisés, e veio-lhe do meio do fogo a resposta: – Eu sou o que sou! E prosseguiu: – Vá ter com o povo meu, e liberta-o do jugo de Faraó. Mas como,


14 Senhor, posso falar ao povo, se sou gago? E do meio da salsa ardente veio-lhe a ordem: – Fala pela boca de Aarão, teu irmão! Dize ao povo que o que é, te envia! Então desceu Moisés do monte, assustado da visão, mas disposto a cumprir a ordem divina, e logo pega da ânfora de óleo e unge Arão, em nome de Deus, e o constitui seu auxiliar imediato. E a benção de Deus, no óleo precioso, derramou-se sobre a cabeça de Arão, pingou-lhe da barba, ensopou-lhe os vestidos, escorreu por todo seu corpo gotejando pelas orlas das vestes sobre a terra. Tal é a benção de Deus! Tal, a suavidade e a bondade de viverem os irmãos em união, em amorosa fraternidade! E quando já o povo de Israel estava em sua terra, tão portentosamente tirado por Deus dos barreiros egípcios, o orvalho de Hermom descia sobre todos os montes de Sião e também pelas campinas e valados, abençoando a vida vegetal que crescia como uma exalação. E rebanhos pululantes de ovelhas se viam pelas encostas, pastando ao som mavioso da flauta do pastor. A natureza em festa, as árvores engalanadas de flores perfumosas, o balido das greis ao longe se ouvia, porque ali Deus, com sua benção, ordenava a vida para sempre. Vendo esta maravilha, o cantor de Deus, Davi, escreveu o seu verso: – Oh! Quão bom e quão suave é que vivam os irmãos em amorosa fraternidade! É como o óleo precioso sobre a cabeça de Arão, ou como o orvalho bendito sobre frondes vegetais! Deus é amor, diz São João Evangelista, e onde houver amor, aí Deus está presente. Os gregos divinizavam o amor em Eros, e o mestre Esíodo dizia que o amor é o princípio de integração dos elementos. Onde houver união aí está Eros, e Platão já dizia que o universo está cheio de Eros. O universo está cheio de amor, foi criado por um ato de amor, e onde houver união aí está Deus, porque Deus é amor. Os elétrons e prótons se buscam e, amorosamente se unem no átomo, e o amor, no nível atômico, se chama eletromagnetismo. Os átomos contrariamente polarizados se procuram numa ânsia de união, e esse amor unitivo, no nível atômico se chama afinidade. As moléculas se irmanam, se fundem num amplexo amoroso, e o amor nesse nível se chama coesão. Assim nasce a molécula, o cristal, os amontoados siderais, o universo. As estrelas, planetas e satélites se entrosam, e o amor, nesse nível se chama gravitação. As moléculas de compostos protéicos se unem nas células, nos tecidos, nos órgãos, e surgem então os seres vivos que se amam, que se irmanam, que se confraternizam na família, na sociedade, na humanidade inteira. A própria palavra inteligência vem de inter-legere que quer dizer ler entre as coisas o nexo que as liga. A inteligência busca o nexo unitivo, e por esta razão, como diz Ortega, ela vai conduzida por Eros donde vem que a inteligência é de natureza erosóide ou erótica. Quem cuidara que na própria inteligência tão fria e discursiva está imperando o amor? a união? A inteligência em que falta o nexo unitivo de Eros, a inteligência que não pode ou não sabe ler entre, não é inteligência, é loucura, estupidez. A sociedade que não vai conduzida por Eros, pelo amor, se desfaz. A família onde não impera o amor se desintegra, se reduz a nada. Quando cessa a integração harmoniosa e amorosa dos órgãos, nós ficamos doentes. Quando as células do nosso corpo trocam o amor colaboracionista pelo egoísmo destruidor, então chamamos a essa rebelião celular câncer. Se as moléculas reciprocamente não se buscassem numa loucura de amor, de eros, não haveria a coesão do aço de vídia que corta o aço mais duro, não haveria a coesão do diamante, do carborundo que desgastam e comem o mesmo aço de vídia. Se os átomos eletricamente contrários não estivessem ansiosos por união, não se formariam as moléculas, não haveria a afinidade química. Se os elétrons não buscassem os prótons, ou se os prótons não procurassem os elétrons para amorosamente se unirem, não haveria o eletromagnetismo. Se não houvesse a gravitação que enlaça o universo num amplexo de amor, tudo reverteria ao caos primeiro donde tudo veio. É por isso que Aristóteles primeiro, e depois, Santo Agostinho e Dante disseram "que o amor de Deus move o Sol!". É do nosso conhecimento que há alguns irmãos maçons que não se afinam. Pois saibam esses irmãos que sem o amor nada se constrói; que Cristo disse: – vá, e reconcilia-te com teu


15 adversário enquanto estás em caminho com ele, para que ele não te entregue ao juiz que te encerrará na prisão, até que pagues o último ceitil, o último centavo. Esquecei as vossas desavenças, enchei-vos de tolerância, de perdão, de amor, que se não, a ordem que vos congrega alijará para longe, e estareis fora da benção do Altíssimo, porque é da sua vontade que os irmãos vivam em união. Oh! Quão bom e quão suave é que os irmãos se unam pelo amor fraterno. Isso é como a benção derramada com o óleo sobre a cabeça de Arão, ou como o orvalho bendito com que o Grande Arquiteto do Universo afaga e vivifica a natureza toda. Viam os gregos esta benção do Alto Deus, e daí lhe deram a ela o nome de Pã. Então o Pã era imaginado como um fauno, metade homem, metade bode, que nada mais era do que a natureza bruta unida à racional. E toda a beleza e harmonia da natureza era supostamente ouvida na extasiante flauta de Pã. "Oh! Quão bom e quão suave é que os irmãos vivam em união! É como o óleo precioso sobre a cabeça, que desce sobre a barba, a barba de Arão, e que desce à orla dos seus vestidos; como o orvalho de Hermom, que desce sobre os montes de Sião; porque ali o Senhor ordena a benção e a vida para sempre".

VI – Sabedoria e ciência Apareceu Deus em sonho a Salomão, e lhe perguntou: – que queres que te dê?23 Então lhe respondeu Salomão: – Senhor! eu sou ainda um menino, e no entanto já me acho sentado no trono do meu pai, o teu grande servo Davi. Dá-me, então, um coração reto e justo, para que possa eu julgar este teu grande povo. Deus, contente da resposta, assim lhe fala: já que me não pediste para aniquilar os teus inimigos, nem me pediste riqueza, nem honra, dar-te-ei o que me pedes, e serás o mais sábio de quantos homens houve no mundo, e no futuro não haverá outro que te iguale. Ora, Salomão pediu um coração reto e justo; e disse Deus que lhe ia atender o pedido, e lhe deu sabedoria. Segue-se, logo, que sabedoria é ter coração reto e justo. A sabedoria, por conseguinte, é uma dádiva de Deus. Não é uma conquista do homem. A cultura pode ser adquirida, a erudição pode ser alcançada, mas a sabedoria tem de vir do Alto. A sabedoria é a consciência de retidão, cujo símbolo é o fio de prumo; é mais que a retidão da régua, porque é retidão vertical, orientada para Deus, o Oriente de todas as coisas, do qual todas derivam, todas dependem, e sem o qual nenhuma é ser. Eu disse orientar, e não, nortear, porque o guiar-se pelo norte é posterior ao guiar-se pelo oriente. A bússola é de ontem, no passo que a orientação pelo Sol, é de todos os tempos. As abelhas (dizem os apicultores) se orientam pelo Sol. E se acontece de as aprisionarmos nos seus destinos, durante algumas horas, elas, ao se verem livres, voam para a colmeia, guiadas pela posição do Sol; mas como o Sol andou, elas se transviam. Vendo-se perdidas, elas voltam ao ponto de origem, ao lugar em que estiveram presas, e de aí, principiam a fazer giros circulares cada vez maiores, até que uma das circunferências passe por sobre sua colmeia. Eis aqui sabedoria e ciência: primeiro o vôo reto, orientado, da colmeia ao objetivo; depois, por causa da desorientação, vôos circulares. Ora, a circunferência se traça com o compasso que serve, também, para aquilatar distâncias, avaliar espaços. Assim, se o fio de prumo representa a sabedoria que avança para Deus, o Ser, em altura, e também desce em profundidade rumo ao não-ser, no extremo oposto de Deus, o compasso não sai da superfície da razão, onde traça círculos do pensamento, das definições, medindo, avaliando, perquirindo como faz a ciência.

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I Reis 3, 9


16 Deste modo, o compasso simboliza o pensamento discursivo, a razão analítica próprios da ciência. Fio de prumo e compasso, eis simbolicamente representados sabedoria e ciência. Sabedoria não é ciência; por isso é que se fala da sabedoria da Natureza, da sabedoria que Deus pôs nos átomos, nas moléculas, nos cristais, nas flores, nas abelhas, nas formigas. E o próprio Salomão, em Provérbios diz: "vai ter com a formiga, ó preguiçoso, olha para os seus caminhos, e sê sábio"24. Se, pois, o preguiçoso pode ir ter com a formiga a fim de aprender, seguese que a formiga é a mestra, e ele, o aprendiz. Porque a formiga mostra, ao preguiçoso, uma lição de sabedoria, não de ciência. Por isto, sabedoria não é ciência. A formiga nos ensina a lição do trabalho! A abelha, além de nos ensinar a ser laboriosos, ainda nos dá lições de civismo, mostrando-nos como devemos lutar pela nossa Pátria, assim como ela morre pela sua colméia. Vieira, que também procurava aprender da Natureza, assim escreve num sermão: "as abelhas em picando, morrem, e maior é o dano que sofrem que o que causam". A sabedoria está, aí, no grande livro do Universo, e o cientista, o estudioso vai investigar, a fim de aprender, porque a Natureza é a mestra, e ele, o discípulo. A diferença entre sabedoria e ciência está em que a primeira vê o geral, o universal, o todo em que quaisquer partes se encaixam. Já a ciência olha o pormenor, a minudência, o fragmento que cada vez mais se pulveriza no particular. A sabedoria contempla o Ser, no passo que a ciência volta as vistas para o extremo oposto ao Ser, no rumo do não-ser. Esta diferença entre sabedoria e ciência, podemos observar na fala de Sócrates, escrita por Platão. Na Apologia, diz Sócrates que o Oráculo de Delfos revelava ser ele, Sócrates, o homem mais sábio da Grécia. No entanto, Sócrates sabia que não sabia; eu só sei que não sei, dizia ele. Por ventura, em saber que não se sabe, nisto reside a sabedoria? Sim. Porque sábio é o homem que chegou a ter idéia do quanto ignora. Saber que ignora, e quanto ignora, é já saber, porque o verdadeiro ignorante nem que não sabe não sabe. Um animal inferior desconhece que haja medicina, engenharia, direito; já qualquer homem comum sabe que ignora estas disciplinas. Pois Sócrates declarava saber que conhecia a extensão da sua ignorância, e esta consciência o fazia o mais sábio da Grécia, porque o resto dos gregos do seu tempo, nem que não sabia não sabia. Mas Sócrates quis por a limpo a sentença do Oráculo, e por isso saiu a verificar se havia, na Grécia, algum homem que soubesse mais que ele. E assim, entra em discussão com os poetas, e em disputa com os artesãos; depois de tudo, chega a este resultado: os artesãos padeciam do mesmo defeito dos poetas: porque são peritos em seus ofícios, por isso cuidam que tudo sabem, e com isto mostram-se ignorantes. Assim, um especialista em qualquer disciplina, porque conhece bem sua profissão, sente-se autorizado a opinar sobre aquilo de que não entende. Esta mesma fala de Sócrates, temos em Ortega y Gasset que diz assim: antigamente os homens podiam-se classificar em sábios e ignorantes, em mais ou menos sábios, e mais ou menos ignorantes. Mas hoje apareceu uma classe de homens que não podem ser enquadrados nem como sábios, nem como ignorantes, e estes são os cientistas. O cientista é um senhor que conhece muito bem sua porciúncula do universo, e sua especialidade; por conseguinte não pode ser considerado um ignorante. No entanto, ele opina sobre as questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem, na sua especialidade é um sábio. Então Ortega dá para estes cientistas a designação de sábios-ignorantes; sábios, porque conhecem bem a sua matéria; e ignorantes, porque se saem dela para aventurar-se em campos que eles não conhecem, e assim, mostram-se ignorantes. A mesma coisa diz Garcia Morentes com outras palavras: diz que nada há tão desanimador do que o que se tem verificado nestes trinta ou quarenta anos, quando homens sem nenhum preparo de filosofia, se põem, de repente, a filosofar. Só porque o indivíduo adquiriu cultura, erudição, conhecimentos técnicos, científicos, só porque descobriu uma nova estrela no firmamento, ou uma nova teoria da gravitação, só por isso, sem nenhuma preparação e exercitação prévias, se põe a fazer filosofia, e por isto, de maneira pueril e quase selvagem. Um matemático de sempre, um físico de toda a vida, diz ele, sem mais delongas, se põem a fazer filosofia. 24

Provérbios 6, 6


17 Por que acontece isso? Pois acontece porque ciência não é sabedoria, ou sabedoria não é ciência. A ciência pode ser haurida nos livros; pode ser adquirida pela observação e pela experimentação. Porém, a sabedoria é uma dádiva de Deus a quem busca andar nos seus caminhos. Como Salomão pediu a Deus que lhe desse sabedoria, então podemos saber que Deus lhe deu um coração reto e justo, e assim pode muito acontecer de um homem não possuir ciência, e ser até iletrado, e no entanto, possuir sabedoria; pode sim, porque ela existe na Natureza, como nos casos da formiga e da abelha já referidos. E é muito preferível que se tenha só sabedoria, a ter somente ciência. Por que? Porque a ciência pode inchar e envaidecer o homem; mas a sabedoria o torna humilde. A ciência pode fazer que o homem cuide que sabe; a sabedoria faz que ele saiba que não sabe. A ciência pode fazer que o homem se volte contra Deus, como fez Lusbel no empíreo; a sabedoria, jamais, faria o homem afrontar Deus, porque o sábio sabe que sua mesma sabedoria emana de Deus, e sabe ainda que, mantendo-se fiel a Deus, terá de luz ondas sobre ondas, e, de sábio, passará a sapientíssimo. O sábio sabe que a ciência luciferina torna o homem cego e que sua cegueira se faz cada vez mais cega, na proporção em que se afasta da Fonte única de todo saber que é Deus. Quereis exemplos? Ei-los: Quando Laplace estava expondo a Napoleão Bonaparte sua teoria da formação do universo, perguntou-lhe o imperador onde ficava Deus no seu sistema, ao que Laplace respondeu: "Sir, essa hipótese se tornou desnecessária"25. Assim, inflamado da vaidade científica, o cientista Laplace julga Deus, primeiro, como mera hipótese, e segundo, como desnecessária. Quando Yuri Gagarin, primeiro astronauta soviético que deu voltas à Terra em sua nave espacial, foi interrogado pelo centro de controle terrestre, se ele, lá nas alturas, tinha encontrado Deus, ele respondeu que não, que não tinha achado Deus. Deste modo, fica evidenciado que não adianta o progresso técnico-científico, porque tal progresso, se não acompanhado pela sabedoria, leva ao rumo oposto ao em que Deus está. A ciência e a técnica fizeram do alemão o maior povo do mundo; no entanto, é de ontem que Mengele, "o anjo da morte", fazia criminosas experiências científicas, usando os prisioneiros do campo de concentração de Auschwitz, como cobaias! É de ontem que Irma, "a mulher monstro", amarrava as pernas ambas das mulheres que iam parir, para que morressem de um parto impossível. Nietzsche dizia assim: "Se existe Deus, como posso suportar não ser Deus? "... Com muito mais razão poder-se-ia gritar a Nietzsche o que Festo disse a Paulo: "Estás louco, Paulo; as muitas letras te fazem delirar"26. Estás louco, Nietzsche! a muita ciência encheu-te o coração de orgulhosa rebeldia, e, como Lúcifer, não te conformas com menos que com ser Deus! Quem, pois, tem coração reto e justo, quem tem sabedoria, quem tem amor, esse pode ser um sábio; todavia, aquele que só possui ciência, erudição, cultura, esse não pode ser considerado sábio, pelo menos no conceito maçônico. Lá fora, no mundo profano, pode ser que haja confusão, e a um cientista especializado em ramificação que se vai cada vez mais filamentando em capilares cada vez mais finos, esse homem pode, no mundo, ser considerado um sábio; não aqui! Porque o nosso conceito de sabedoria é o de Salomão: a sabedoria promana do coração, e é uma dádiva de Deus. Cultivemos as virtudes da sabedoria; sejamos sábios. E depois, em segundo plano, porfiemos por ser cultos, eruditos, capazes. Oxalá todos nos compenetremos desta consciência para a glória da nossa Ordem Venerável, para a grandeza da nossa Pátria, para o bem da Humanidade, para que, em vivendo no agrado do Grande Arquiteto do Universo, possamos ter nossos nomes anotados pelo escriba do universo, no Grande Livro da Vida.

25 26

Politzer, Princípios Fundamentais de Filosofia, 114 Atos 26 e 24


18

VII – As pontas do compasso sobre o coração No decorrer da iniciação ao grau de Aprendiz, sobretudo no momento em que vai pronunciar o juramento, e também na elevação de grau de Aprendiz a Companheiro, o iniciando coloca as pontas de um compasso sobre o próprio coração. Este é o nosso tema de hoje: as pontas do compasso sobre o coração. A noção do círculo nasceu, no homem, da simples observação, da simples experiência visual, daquilo que os filósofos modernos chamam de intuição sensível. O seccionamento transversal do tronco de uma árvore, mostrou-se ao homem como um círculo. As flores e os frutos seguem, mais ou menos, um plano circular. Olhando para o Sol e para a Lua, o homem os vê como círculos. Nos eclipses da Lua, a Terra aparece nela projetada numa sombra circular, o mesmo ocorrendo com os eclipses do Sol, quando a Lua, interposta entre a Terra e o Sol, encobre a este, em parte, como um disco preto. Os trajetos, no céu, do Sol, da Lua e das estrelas são metades de um grande círculo, e não foi difícil conceber que a outra metade se achava na parte oculta aos olhos. Daí a idéia primeira de que as trajetórias de todos os astros são circulares. Da observação destes círculos, das evidências espontâneas, o homem chegou a compreender que o sistema planetário solar é curvo, circular, e que o mesmo Sol gira, com sua família planetária, em círculo, ao redor de um ponto, no centro da Via-Láctea, donde vem que esta é também circular, como todas as demais que compõem o Universo, e que o próprio Universo é curvo e finito, como o demonstrou Einstein. Se, de um salto, passarmos do macro ao microuniverso, verificaremos que é circular a molécula, circular o átomo, circular o elétron. Há o ciclo das chuvas: em caindo elas do céu, fazem os rios que se encaminham ao mar donde se evaporam para formar outras nuvens das quais decorrem novas chuvas. Há o ciclo do carbono: os vegetais absorvem o gás carbônico do ar, decompõem-no em carbono e oxigênio, fixam o carbono na celulose do tronco e das folhas; com parte deste carbono formam os frutos. Na outra metade do ciclo, os animais comem as folhas e os frutos, transformam-nos em açúcares que se queimam no interior das células, e o carbono havido da alimentação se combina ao oxigênio, recompondo o gás carbônico que é expelido na atmosfera, pela respiração. Animais e plantas, deste modo, são máquinas vivas entre si invertidas, e o gás carbônico que o vegetal decompõe, recompõem-no os animais. A luz solar fixada na fotossintese, vai para o alimento que produz o calor animal. Assim, todos os animais e plantas vivem da luz, são lucífagos. E a mesma luz é onda, e as ondas todas são círculos desdobrados, e assim, quando não podemos enxergar os ciclos diminutos que rápidos se formam, podemos vê-los na luz, e ouvi-los no som, na música. A idéia do círculo, pois, faz parte da nossa vida espontânea, da nossa vida pré-racional, da nossa intuição sensível, e ainda de nossas últimas concepções científicas do universo, da molécula, do átomo, do elétron e de toda a mecânica ondulatória. O círculo, portanto, está no começo e no fim da nossa vida racional, e a mesma vida física é um meio ciclo do berço ao túmulo, e se completa com nosso retorno, pela morte, ao lugar de onde viemos a este mundo. * *

*

Quis, então, o homem, desenhar o círculo, e, para tanto, inventou o compasso. Do círculo traçado com o compasso surgiram as relações matemáticas da circunferência e seu diâmetro, o pi, já conhecido dos egípcios. Reparou o homem que, com o compasso, podia traçar círculos maiores e menores, e ainda comparar distâncias. Verificou que a capacidade do compasso se esgota


19 quando atinge 90°, que é quando ele se transforma num esquadro, por isso chamado, maçônicamente, de "esquadro justo e perfeito". Pois bem: Que representa o compasso, na Maçonaria? Pois representa o pensamento. E por que? Porque o pensamento é circular, gira em torno de um centro que é o tema, e o círculo pode ser menor, se o assunto é pequeno, ou maior, se o assunto é mais largo. Todavia, em chegando o compasso do pensamento a 90°, esgota-se a capacidade racional, e tentar ir por diante, é cair nas antinomias de Kant. Deste modo, a razão não é infinita; ela atinge o seu limite a 90° do compasso mental, e simboliza, tal abertura, os graus maçônicos que vão do 14 ao 18. No grau de Mestre, o compasso simbólico se abre a 45°, e no grau 5 sua abertura vai para 60°. A 90° o compasso se torna num esquadro, como ficou dito, e por isso chamado "esquadro justo e perfeito". O compasso lembra ainda a pessoa humana que também possui cabeça e duas pernas, estas que se movem, que dão passos, e estes passos, em Loja, são dados pelo Aprendiz de modo a formarem um esquadro, o "esquadro justo e perfeito", que também o Companheiro executa, com passos, se bem que de modo diferente do Aprendiz. * * * Do que ficou dito já podemos tirar uma lição prática: se cada assunto é um círculo que se abre e se fecha ao redor de um ponto que é o tema, anda muito errado quem não encerra cada assunto, para se passar a outro. Deste vício intelectual padecem todas as pessoas dentre as quais algumas de cultura. Alguém nos formula uma questão, ou faz uma pergunta e quando estamos desenvolvendo o círculo do nosso pensamento em torno do tema proposto, eis que nosso interlocutor, em certo ponto, faz outra pergunta, embora do assunto, mas que nos obriga a fazer outro círculo. Assim, de pergunta em pergunta nenhum círculo se fecha. É o caso da briga de lavadeiras: sai, na discussão, o diabo; porém nada se resolve. As digressões infindas não levam a resultado nenhum. Muitos oradores prolixos padecem deste vício. Como não se mantêm no assunto, como fogem ao tema básico, como que numa conversa que um tema puxa outro, podem falar o dia inteiro. Por que? Porque nenhum círculo se fecha. Nossas conversas ao pé do fogo são assim: começamos por uma coisa, e no fim estamos a falar de outras muito diferentes. Ora, quem não obedece à lei do círculo, ao tratar de um assunto, é porque pensa por esse modo caótico. E aí vai a diferença entre um pensador e um homem comum. Todos pensamos sem interrupção o dia inteiro; quando não é um pensamento, é outro que ocupa a nossa mente. Logo, como todos pensamos sem parar, somos todos pensadores? Não. O pensador ou filósofo se fixa num tema, e traça completamente seu círculo; nós, em nossas imaginações, abrimos mil e um círculos, e não fechamos nenhum. Quem muda mais de idéia que de roupas, não pode fazer nada, não pode realizar coisa nenhuma na vida. Aqui também se aplica a lição já estudada da vigilância e da perseverança. Vigiar para não fugir ao círculo; perseverar na construção dele até o fim. Vede que abrimos e fechamos um círculo, explicando a significação do compasso na Maçonaria. Agora vamos abrir outro círculo, e depois mais outro, e fechar os três dentro de um outro círculo maior; vede: Dado que o compasso significa o pensamento, o raciocínio discursivo, como nasce este no homem? No começo da nossa vida mental, quando ainda somos crianças tenras, nosso compasso mental é zero; ele é ainda apenas cabeça (cabeça do compasso) sem os ramos ou pernas. Com as primeiras experiências da vida, os ramos começam a crescer, e já podemos traçar pequeninos círculos, e tratar de assuntos muito simples. As experiências vão-se acumulando, os ramos do compasso, crescendo, e os círculos já podem ser maiores, abarcando assuntos mais complexos. Quem, pelo crescimento de seu compasso mental, pode abarcar círculos imensos, chegou a ser um sábio. Aqui, outra vez, a diferença entre um sábio e um ignorante; o ignorante possui compasso mental diminuto, no passo que o sábio o possui grande. É assim que os homens se classificam em sábios e ignorantes, mais ou menos sábios, e mais ou menos ignorantes; quem possui compasso mental grande, pode traçar círculos grandes; quem o possui de ramos curtos, só


20 pode traçar círculos pequenos. Sócrates, Platão, Aristóteles, Einstein, porque possuem compassos mentais de ramos longos, puderam traçar os círculos do Universo. Já os círculos traçados pelo compasso mental de uma pobre lavadeira, não vão além de sua casinha, de seus filhos, de seus netinhos. Eis que a soma de conhecimentos amplia os ramos do compasso, e é assim que, de ignorantes, nos tornamos sábios. Está fechado este outro círculo; vamos agora a outro, porque nosso tema é o compasso posto sobre o coração. O coração é, figurativamente, a sede dos sentimentos bons e maus. O homem não age segundo razões, e sim, de acordo com os pendores sentimentais e emocionais. O homem sente primeiro, e depois é que vai forjar razões para seus atos. Por isso é que Pascal já dizia que "o coração tem razões que a razão não alcança". O avarento, o cobiçoso, o adulador, o glutão, o beberrão, o fumante, todos apresentam suas justificativas, todos racionalizam suas ações, todos possuem suas razões. O homem chega ao cúmulo de pensar de um modo e agir de outro, como os exemplos, aqui já citados, num de nossos estudos, de Bernard Shaw e Schopenhauer. O homem é um esquizoide, um ser contraditório, que pensa uma coisa e faz outra. Por isso é que São Paulo a si mesmo se chamava miserável e dá o porquê: porque, como dizia, o bem que quero fazer, não faço; mas o mal que não quero, esse eu faço! Eis, aí, a força do sentimento sobre o raciocínio, a força do coração sobre o pensamento, sobre o compasso que devia traçar círculos ao coração, e, no entanto, é o coração que impõem seus círculos ao compasso. A razão dita isto; mas o sentimento arrasta a fazer aquilo. Eu quero fazer o bem, porque minha razão, meu raciocínio, meu compasso traçou tal círculo; todavia, de repente, dou comigo fazendo aquilo que minha consciência reprova. Vigilância e perseverança, pois, sobre nossas impulsões egoísticas, animalescas, sobre nossos pendores e atrações baixas. Está fechado este outro círculo cujo centro ou tema é o coração. Agora o círculo maior que envolve os três anteriores e menores. Que nos ensina a Sublime Instituição? Pois ensina-nos que o compasso deve estar com suas pontas sobre o coração; que o compasso é que deve medir e delimitar os sentimentos, e não, o coração impor suas normas à razão. Quem vive só ao sabor dos sentimentos, como estes são vários e discordantes, se mostra contraditório, apresentando sempre atitudes dúbias, confusas, medindo sempre tudo com dois pesos e duas medidas. Tal sujeito apresenta-nos reações imprevisíveis, porque caóticas. Como, em tal sujeito, a razão é desnecessária às ações, o compasso do seu entendimento se atrofia, os ramos dele, em vez de se estenderem, encurtam-se, até que tal homem cai na irracionalidade animal. O compasso, então, passa ser guiado pelo coração, pelos sentimentos; e que estes fossem bons, ainda bem; mas ocorre sempre que os piores sentimentos, os de egoísmo, de avareza, de luxúria são os que passam a guiar o compasso, forçando-o a traçar círculos e a apresentar razões que são sofismas, que são sem-razões, que são absurdos. Eis que temos desenvolvido nosso tema com quatro círculos, sendo que este último mais geral e maior, envolve os três primeiros.

VII – O malho e o cinzel Por ocasião da realização de uma sessão de iniciação na minha Loja, fiquei incumbido de discorrer sobre assuntos que dizem respeito ao Grau de Aprendiz. Os instrumentos do Aprendiz são o malho e o cinzel, o avental e o par de luvas brancas. O malho simboliza a vontade; o cinzel, o julgamento; o avental, o trabalho; o par de luvas brancas a pureza; uma luva é para o Aprendiz, e a outra, para a mulher eleita do seu coração. Mas nem porque o assunto é particular e nosso, é pequeno. Eu pretendo hoje discorrer somente sobre o malho e sobre o cinzel. O malho, como já vos disse, representa a vontade. E que é a vontade? Na esperança de colher informações sobre nosso tema, andei folheando aqui e ali livros sobre o poder da vontade,


21 um da Editora do Pensamento e outro da autoria de Orison Swett Marden. Todavia, nem uma nem outra obra me satisfizeram; a do Pensamento, porque pretende que a vontade se desenvolva pela auto-sugestão, e a de Marden porque se atém quase só a biografia de homens célebres. Então resolvi andar com minhas próprias pernas, ou voar com minhas asas próprias. Ora vede: O malho da vontade se aplica sobre a cabeça do cinzel que tem sua ponta assentada contra a matéria bruta que se tem a desbastar. O cinzel é o julgamento, e por isso é ele que determina o momento da pancada, e ainda se deve ela ser forte ou fraca. Não há vontade potencial ou inativa, porque ela pela sua própria natureza é cinética, ativa, executiva. Eu já disse nestes nossos estudos que há uma virtude e um vício maiores dos quais nascem todos os outros. A virtude mor é o amor, e, o vício, tronco de que nascem todos os galhos, é o egoísmo. Pois bem: o amor concentrado a uma coisa move o amante à ação. E proporcionalmente ao seu amor será sua vontade em atender ao objeto do seu amor. Eu, que vos falo, passei a maior parte da vida estudando. E quando eu era estudante muitos me consideravam como um sujeito possuidor de força de vontade. Pois minha força de vontade era galho do amor que sempre tive pelo saber. Meu juízo, meu julgamento, escolhia qual matéria a me aplicar, e depois o malho da vontade não cessava de golpear até à saciedade. Como a vontade é energia moral, por isso ela não se gasta nem se cansa, e antes, pelo contrário, quanto mais se aplica mais se reforça. O cansaço vinha e vem sempre pelo lado do físico, e é com desgosto que deixamos o trabalho vencidos pela exaustão. Edison, inventor destas lâmpadas que nos iluminam, resolveu, certo dia, tirar umas férias. Perguntado sobre onde iria gozá-las, respondeu que no lugar do seu maior agrado. E no outro dia, Edison, em férias, foi achado trabalhando na sua oficina de todos os dias. Sua vontade poderosa nascia do amor que tinha pelo seu trabalho de inventor. Quem quiser ter vontade forte que arranje alguma grande coisa a fazer, e depois poderá verificar que Santo Agostinho tinha razão quando dizia: "meu amor é meu peso; por ele vou a toda parte que vou". Reparai que os fracos da vontade são sempre aqueles que mudam mais de idéias do que de roupas. Pedro Chagas já dizia que "só vencerão na vida, os que forem fanáticos por um ideal". A decisão inabalável em fazer alguma coisa determina a vontade de gigante, e a decisão nasce do juízo que julga, que decide, e assim o cinzel dirige o malho. Assim, a vontade-malho tem de estar guiada pelo julgamento-cinzel, e nada há pior do que uma vontade bruta desorientada. Acaso imaginais que um Lampião, um Al Capone não tinham vontade poderosa? Pois que cada um considere o que eles fizeram no mal, e verão que suas vontades tinham a mesma força das vontades dos mártires, seja os da Pátria, seja os de alguma idéia. Salomão, o grande Salomão que edificou o templo do qual este nosso templo é cópia grosseira, disse "que o amor é mais forte que a morte". E como vos tenho demonstrado, a vontade nasce do amor, donde vem que a vontade é mais forte que a morte. Cristo, embora sabendo que ia morrer numa Cruz, quis, e foi a Jerusalém, porque sua vontade, com ser mais forte que a morte, o impeliu a ela, e nela teve o seu fim terreno. Sócrates é outro que teve morte linda, ei-la: "... Já se avizinhava então a hora do pôr do sol... Em pouco entrou o servidor dos Onze... e se postou junto dele, dizendo: – A vós, Sócrates, que reconheço ser o mais delicado e o melhor de todos os que têm estado neste lugar, não atribuirei os sentimentos de outros homens, que se encolerizam e praguejam contra mim, quando, em obediência às autoridades, mando-os beber o veneno; tenho a certeza de que não vos enraivecereis, já que cabe a outros, não a mim, a culpa deste ato... Este homem é cativante – disse Sócrates – , desde que estou preso vem sempre ver-me e agora mostra-se generosamente condoído de minha sorte... Que tragam logo a taça de veneno.


22 ... Criton respondeu: – Mas os raios do sol ainda iluminam os cimos dos montes e muitos houve que tomaram a bebida mais tarde; e, depois de a mandarem tomar, ainda os deixaram comer e beber e entregar-se aos prazeres do amor; não vos apresseis, portanto; ainda não chegou a hora. Replicou-lhe Sócrates: – Sim, Criton; esses a quem vos referis andaram bem procedendo assim, já que achavam proveitosa a demora; quanto a mim, tenho razão de não me portar desse modo, pois não julgo que lucre alguma coisa bebendo um pouco mais tarde o veneno; estaria a preservar uma vida que já perdi; com isso, apenas me enganaria a mim próprio. Peço-vos, pois, que façais o que digo. Ouvindo estas palavras, Criton fez sinal a um carrasco que se achava perto; o escravo afastou-se; em seguida voltou com o carcereiro a trazer a taça de veneno. – Disse-lhe Sócrates – meu bom amigo, como tendes experiência destas coisas, dizei-me como devo proceder, – o carcereiro respondeu – ponde-vos a andar até sentirdes as pernas fracas; deitai-vos após e o veneno produzirá seu efeito. Ao mesmo tempo oferecia a taça a Sócrates, que, do modo mais natural e gentil, sem o menor medo, nem mudança de cor ou de expressão, olhando fixamente o carcereiro conforme era seu costume olhar os homens, tomou a taça e disse: Que achais da idéia duma libação a algum deus, derramando um pouco desta bebida? Poço ou não fazê-la. O carcereiro respondeu: Nós, Sócrates, preparamos apenas a quantidade que julgamos necessária. Compreendo, volveu o filósofo: mesmo assim devo pedir aos deuses que favoreçam minha viagem deste mundo para o outro – e possa este meu desejo, que será minha prece, ser atendido por eles. Então, levando a taça aos lábios, bebeu rápida e corajosamente a cicuta"27 Todos vós, ó respeitáveis aprendizes, tendes vontades poderosas. Mas sobre que matéria deveis aplicar vossos cinzéis? Pois deveis aplicar sobre as pedras brutas de vós mesmos, desbastando-as aqui e ali nos defeitos e vícios, até que ela possa ser utilizada no edifício social E nós outros que aqui estamos, conquanto mestres, também possuímos arestas a desbastar, pelo que nossa mestria é só simbólica. Em verdade, seremos eternos aprendizes, visto que sempre temos o que fazer sobre nós mesmos com o malho e com o cinzel. E para que serve o nosso trabalho em desbastar a pedra bruta que somos? Para que isto? Para que, proximamente possamos ajudar, com nossas pessoas, a construir o edifício social simbolizado neste templo que Deus mandou Salomão construir. Se as pedras não forem trabalhadas uma a uma, o edifício arquitetônico não se levantará da terra. Deus mandou Salomão edificar o templo, vede bem! Por isto a Maçonaria, conquanto obra humana, tem suas origens nos Céus. Daqui decorre o porque remoto, o porque devemos nos desbastar das pétreas asperezas! Isto nos cumpre a nós fazer, para que possamos, após a morte física, sermos recebidos no Oriente Eterno, na Maçonaria extra-terrena. Lembrai-vos de que numa de nossas sessões, um boletim nos informava que certo poderoso Irmão se tinha passado para o Oriente Eterno. É esta mística que deve ser o primeiro objetivo do Maçonaria, e deste decorre o outro, o secundário e próximo, que é nos cinzelarmos a nós mesmos para que possamos entrar como parte no edifício social da humanidade. Que o Grande Arquiteto do Universo nos abençoe o propósito de sermos dignos aprendizes.

VIII – A ampulheta A ciência antropológica nos demonstra, hoje, por seis tipos de provas, que houve evolução; são as provas paleontológicas, as embriológicas, as dos órgãos residuais as anatômicas, as sorológicas, e as geográficas. Como se deu a evolução, ainda é uma incógnita. E teorias várias 27

Extraído parcialmente do livro História da Filosofia de Will Durant, da pág. 31 a 32


23 têm surgido, sem que o fato tenha sido explicado cabalmente. Nem Darwin, com sua luta pela vida, nem Lamarck, com sua transmissão dos caracteres adquiridos, nem Hugo de Vries, com o seu mutacionismo esclarecem como a evolução se deu. Assim, refutar teorias da evolução, teorias evolucionistas, é fácil; o impossível é negar os fatos, documentos e provas que atulham os museus antropológicos. Antes, se procurava o elo que faltava; hoje foram descobertas séries inteiras deles. O Homo Habilis viveu há dois milhões de anos; sua pele era escura, depilada, e tinha l,30m. de estatura. Mas esse macacóide se distinguia já de todos os demais símios: falava, fabricava instrumentos e era antropófago. Assim, desde que o primata superior se equilibrou nas patas traseiras, libertou as mãos para prender e segurar, coisa que antes era feita com os dentes, do modo como o fazem os animais nossos conhecidos. A ociosidade dos maxilares produziu o seu atrofiamento e o esforço das mãos e da língua provocou o aumento da massa encefálica, e a conseqüente expansão da caixa craniana. Com o surgir do pensamento, da razão, apareceu a necessidade da comunicação por meio da linguagem. Então, a linguagem que era antes feita só de interjeições, começou a complicar-se. Desde que o primitivo descobriu que tinha voz, nasceu o canto, e, com este, o ritmo, a dança. Por meio da dança se representavam cenas de caça, ou era ela usada no culto dos deuses. Então, a dança e os gestos eram liturgia, e os petrechos empregados durante a liturgia eram símbolos. Eis a origem remota dos símbolos e da liturgia. A própria linguagem musical se grafa com símbolos, e a linguagem literária nasceu dos desenhos simplificados de animais e coisas. O homem desenhava, e os desenhos foram-se, aos poucos, esquematizando nos símbolos gráficos que ainda hoje usamos. Todos os eventos históricos sempre foram relembrados num ritual, os das caçadas, os das guerras, os das lendas do aparecimento dos deuses. Nós estamos rodeados de símbolos, e nos comunicamos por linguagem feita de símbolos. Compelidos pela necessidade de se comunicar, os homens criaram várias formas de linguagem que são, para citar as mais importantes, a pictórica, a escultural, a musical, a literária e a simbólica. Porque sempre se usou a liturgia e o simbolismo; porque desde sempre se empregou os ritos místicos, iniciáticos, nos vários mistérios, por isso supõem alguns que a origem da Maçonaria se perde na noite dos tempos. Ela é, de fato, a revivescência dos métodos e processos iniciáticos que sempre existiram, e é neste ponto que se perdem em fantasias os maçons chamados místicos. Todavia, os maçons autênticos sabem que a Sublime Instituição nasceu de corporações de pedreiros livres da Idade Média. Contudo, porque a Maçonaria é o repositório de todas as conquistas da humanidade, tanto intelectuais, como espirituais, como morais, para poder abarcar toda a vastidão do progresso, teve de sintetizar tudo na sua simbologia. A linguagem simbólica, pois, é a da síntese. E para que vós, Poderoso Irmão, possais saber quanta coisa se oculta sob um símbolo, eu vos hei de falar hoje sobre a ampulheta: Quando o neófito começa sua iniciação maçônica, é levado à Câmara das Reflexões. Esta é um cômodo pintado de preto, lúgubre, macabro; lágrimas, pingando, aparecem desenhadas sobre as paredes; uma foice ou alfanje adverte: lembra-te que te hei de ceifar para que sejas pó; e uma caveira o alerta: és mortal; aplica-te a conquistar a virtude; há o dístico vigilância e perseverança de que hei falado no outro estudo; lá está o galo a anunciar: eu sou o que desperta o dia; cuida de ser perfeito. Depois vem a ampulheta que nos sugere: o tempo passa com o passar da minha areia; sê perseverante em tua ação; acaso sabes quanto tempo tens para concluir tua tarefa? Mas, que é a ampulheta? É um relógio de areia que substituiu o mais antigo ainda de água e o de sol. E que é um relógio? É um dispositivo que nos permite contar o tempo. E que é o tempo?


24 Já dizia Santo Agostinho: "Se ninguém me pergunta o que é o tempo, eu sei o que é o tempo; mas se alguém me pergunta o que é o tempo, eu não sei o que é o tempo!" Assim o tempo é uma das grandes dificuldades da filosofia. Aqui divido meu estudo em tempo cronológico e tempo vital. Hoje vos falarei sobre o tempo vital; e se os Poderosos Irmãos o desejarem, falarei, da próxima vez, sobre o tempo cronológico. O tempo vital é o da duração da nossa vida, a da vida da sociedade, o da civilização. Esse tempo contamos como passado, presente e futuro. O homem vive a partir do futuro, vive em função do futuro, vive tendo em vista o futuro. Todas as nossas ações, todos os nossos esforços são feitos para realizar uma programação que pertence ao futuro. Mas, como será o futuro? Será ele do modo como o desejarmos? Não: porque ele depende do passado; a vontade quer, mas o passado resiste. Por isso o futuro será uma resultante do passado mais a nossa ideação. O passado têmo-lo na história; e o futuro, na nossa programação. É ainda Santo Agostinho o que dizia: "Se queres conhecer o futuro, olhai o passado!". O homem, pois, tem de olhar para o passado e para o futuro juntamente, para orientar sua ação presente. Por isso o homem se assemelha ao deus jano de duas caras. Um rosto fita o futuro onde está o ideal a ser realizado; o outro encara o passado que já foi, no qual se gravaram as impulsões que determinam, em parte, o presente. Foi Numa Pompílio, segundo rei de Roma, sucessor de Rômulo, o que, entre outras grandes coisas que fez, decretou o calendário de doze meses, que ainda hoje usamos. O primeiro mês recebeu o nome de "januarius", donde o nosso janeiro, em homenagem ao deus Janus, deus da paz, e que por isto mesmo seu templo ficava fechado em tempo de guerra. No começo do ano está "januarius" ou Jano, com suas duas faces, uma a olhar para o passado, a contar pelo ano que se findou, e a outra a encarar o futuro, no ano que se inicia. O passado não desaparece, e antes pervive em cada minuto do presente. Um homem que sofre um acidente grave, fica com uma neurose do desastre! Se o passado não persistisse, seria impossível educar-nos. Um homem sem passado, é um indivíduo que perdeu a memória, ficou amnésico, e tem de reaprender tudo de novo como uma criança. Vieira escreveu um sermão em que dizia que "tudo passa e nada passa; tudo passa para a vida, e nada passa para a conta". Nenhum minuto se perde, porque se acha assegurado no minuto seguinte, na hora, no dia, no mês, no ano, na década, no século, no milênio, na eternidade. Todo o minuto se eterniza como antecedente de que decorre o futuro. O passado se sedimenta, se cristaliza em nossa vida. Nós somos filhos do tempo. São Tomás de Aquino, em sua filosofia concreta, querendo saber em que consiste a eternidade, chegou à conclusão de que ela é o momento, ou a menor porção possível do tempo. Hoje ele teria dito que a eternidade é o que a ciência chama de tempo mínimo, ou seja, o raio do elétron percorrido com a velocidade da luz. Fundado nesta doutrina de São Tomás, o escritor Arnaldo da Silva Ramos fez, para um advogado novato, a defesa de um réu que era já recidivo numa mesma culpa por três vezes. Fora condenado as três vezes com penas cada vez maiores. Mas na última vez, o argumento do escritor convenceu os juizes que absolveram o réu por unanimidade. Eu tive a prazerosa oportunidade de ler essa peça de defesa. Tratava-se do seguinte: A mulher de um homem o traiu. Ele ficou, então, traumatizado pela ofensa e pela vergonha. Abandonou sua mulher, e mudou-se de sua cidade, levando, consigo, um filho. E aconteceu, daí por diante, que cada vez que seu filho era xingado de "filho da p...", o trauma do pai aflorava-se, ele perdia o uso da razão, e ia direto à desforra, ao desagravo pela violência. Não havia premeditação, como alegou a Promotoria, mas sim, verdadeira suspensão dos processos racionais. O nome afrontoso desencadeava no pai o trauma, ele revivia toda a cena de vergonha e humilhação,... porque o passado se eterniza, e nenhum minuto se perde. Assim, todo o momento é eterno como dizia São Tomás. O réu, como o demonstrou Arnaldo, precisava de tratamento psiquiátrico, e não, de cadeia. Por que assim? Porque o passado não morre nem desaparece, e antes, pervive no presente, e, até certo ponto, determina o futuro.


25 Deste modo, porque cada segundo se eterniza, cada movimento passado se mostra atuante no presente, donde vem que "tudo passa e nada passa; tudo passa para a vida, e nada passa para a conta", conforme o disse Vieira. Como numa máquina de calcular, cada momento é como cada pressão que fazemos na tecla de um número, e tudo vai sendo levado para o somador. Não obstante, a outra cara do deus Jano fita o futuro do que queremos ser; e se planejarmos bem esse futuro, se formos persistentes, perseverantes na ação, ainda que o passado nos atrapalhe em parte, acabamos por vencer. Tudo o que disse, e também o que não disse, está resumido num simples símbolo que é a ampulheta. Ninguém se iluda: cada símbolo, cada gesto litúrgico, representa a síntese de uma lição profunda. Sobre cada um deles eu posso discorrer um pouco; porém, muito mais ainda é o que fica por dizer... No entanto, muitos há que entram para a Sublime Instituição, e acabam saindo dela, por julgar, ainda que o não declarem, que isto aqui é uma palhaçada. Esses tais não podem ser maçons; precisam ser adormecidos. Porém, aqui vão permanecendo selecionados, os que podem compreender: esses são os verdadeiros maçons.

IX – Aforismo Não há penas nem recompensas, e sim, conseqüências. O aforismo é uma sentença moral breve e conceituosa; é o mesmo que máxima. É como o "slogan", correspondente, em português, a divisa. Os "slogans" ou divisas são frases freqüentemente usadas pelos partidos políticos e pelas escolas doutrinárias de cariz político. Na moral, os "slogans", as divisas, são aforismos ou máximas. E até na ciência há destas palavras chaves que são repetidas para fechar a porta ao pesquisador. "A natureza não dá saltos" é um "slogan" científico, que muito emperrou o andar do pensamento, e hoje se sabe que a natureza dá saltos: dá saltos quânticos no átomo, e dá saltos mutacionais na evolução. Assim também com os aforismos que podem ser uma ajuda para a moral, ou podem ser para ela um emperro. A máxima em estudo hoje nos diz que não há nem recompensas nem penas, e sim conseqüências. Havendo leis morais rígidas no universo, cada um colhe o que semeou. Quem é que não entende, de pronto, que recompensas e castigos são conseqüências? Quem faz o bem recebe o bem; quem pratica o mal colhe o mal; quem semeia ventos colhe tempestades, diz um provérbio, um aforismo, uma máxima de Salomão. Pois esta frase axiomática, evidente por si mesma, não carente de demonstração, quando submetida à perquirição do filósofo, mostra-se falha ou imperfeita. Assim, a filosofia mostra-se eivada de dificuldades, e aquilo que é inteligível para todos, aquilo que soa como se fora um axioma que não precisa de demonstração, quando cai debaixo da meditação do filósofo, já se mostra não muito verdadeiro. Senão dizei-me: quem semeia o bem colhe o bem? Pois Cristo passou sua vida a semear o bem, e só o bem; contudo teve por conseqüência ser pregado numa Cruz. Sócrates passou sua vida num apostolado moral; antes de Cristo, suas verdades se assemelhavam às de Cristo; no entanto sua vida de apóstolo do bem, da retidão e da justiça, teve uma conseqüência: a condenação à morte pela cicuta. João Batista do qual disse Cristo: dentre os nascidos de mulher, João Batista é o maior; pois este maior dos nascidos teve sua cabeça decepada, posta num prato, e apresentada aos convivas num macabro e nojento festim de Herodes... Quem espalha o mal recebe o mal?


26 Pois Herodes, o porco, viveu no trono o resto de seus dias em honra e glória, nada lhe sobrevindo de mal como conseqüência de seus atos criminosos. Pilatos lavou as mãos, ao entregar Cristo à sanha do povo desvairado, e aquela água, em vez de lavar-lhe as mãos, sujou-as do sangue daquele a quem o próprio Pilatos considerava inocente e justo. Enodoou ele, para sempre, sua toga de juiz, e no entanto, permaneceu no poder, tendo até sido elogiado por César por sua habilidade em contornar e impedir levantes. Viveu no fausto, na grandeza, e quando se recolheu a Roma, ninguém, senão sua consciência, lhe pediu contas de seus crimes e injustiças. Estaria, logo, errada a máxima? Pode, neste mundo, o bem ter por conseqüência o mal, e o mal ter por resultado o bem de quem o pratica? Está provado que, neste mundo, sim. Daí a idéia de um outro mundo e de uma outra vida, para se corrigirem lá os erros e desatinos desta. Assim pensava o padre Vieira, quando escreve isto num sermão: "O Batista em prisões! Logo há de haver outro juízo e outro mundo. Provo a conseqüência. Porque, se há Deus, é justo; se é justo, há de dar prêmios a bons, e castigo a maus: no juízo deste mundo vemos os maus, como Herodes, levantados, e os bons, como o Batista, oprimidos: segue-se logo que há de haver outro juízo e outro mundo: outro juízo, em que se emendem estas desigualdades e injustiças; outro mundo, em que os bons tenham prêmios de seus merecimentos, e os maus castigo de suas culpas"28. E acrescenta o padre pouco mais adiante: "Um dos principais fundamentos da nossa fé é a imortalidade das almas, e a nossa injustiça é a mais evidente prova da nossa imortalidade. Se os homens não foram injustos, puderase duvidar se eram imortais; mas permite Deus que haja injustiças no mundo para que a inocência tenha coroa e a imortalidade prova. Quem pode duvidar da imortalidade, da outra vida, se vê nesta a maldade de Herodes levantada ao trono e a inocência do Batista posta em prisões?"29 Tal, também, é o parecer do pensador Emmanuel Kant; não podendo ele chegar a Deus em sua "Crítica da Razão Pura", a ele chega pelos caminhos do padre Vieira, em sua "Crítica da Razão Prática", isto é, faz derivar a imortalidade da necessidade de recompensa. Tenho demonstrado que o bem, proximamente, pode ter por recompensa o mal, e viceversa, o mal pode redundar no bem imediato de quem o pratica. Mas, nem sempre o perverso colhe frutos bons de sua maldade. Dimas e Gestas eram ladrões e salteadores, e tiveram por conseqüência serem pregados nas cruzes. Contudo, no meio de ambos se elevava a Cruz de Cristo que era o sumo bem. O bem e o mal crucificados no mesmo local e mesma hora, provam que bem e mal podem ter por conseqüência o martírio e a morte. Não importa se é Cristo ou Gestas: se estão neste nosso mundo injusto e mau, haverá cruzes para ambos. Segue-se, de tudo isto, que o sofrimento decorre do meio em que nos encontramos. Cumpre-nos, portanto, para não sofrer, fazer duas coisas: a primeira, e mais importante, é melhorar-nos intelectual e moralmente; a segunda, é lutar pela melhoria do meio social. Pela primeira, elevamo-nos de nível espiritual, e com isto, nos candidatamos aos mundos felizes que são as Grandes Oficinas extra- terrenas (na casa de meu Pai há muitas moradas – Jesus), todas recebendo a inefável Luz do Oriente Eterno. Pela segunda (e esta é a missão da Maçonaria terrena), procurarmos transformar a grande oficina deste nosso mundo numa das Grandes Lojas do Infinito, expulsando dele, para sempre, a injustiça e o mal, repondo, em seus lugares, a justiça e o bem. De maneira que está correta a máxima: não há punições nem recompensas, mas conseqüências; só que estas conseqüências são o meio social a que somos compelidos a habitar pela nossa densidade espiritual. Os bons sobem para mundos felizes, leves e luminosos; os maus, por sua grande densidade, caem para os planos trevosos de ignorância, de injustiças, de lágrimas, de dores. O que vale é a densidade espiritual: e está exclusivamente em nós tornarmo-nos leves ou densos. Gestas era denso, inferior, por sua natureza animalesca, cultivada no sentido de aumentar seu satanismo, e a conseqüência disso foi sua cruz. Cristo era leve, diáfano, divino; mas por amor 28 29

Vieira, Sermões, Ed. das Américas 11, 355 Vieira, Sermões, Ed. das Américas, 11, 356


27 de nós, fez-se a si mesmo denso, fez-se carne, e por isso teve também como resultado ser pregado numa Cruz. Cristo era missionário do bem, era a mesma luz, e sua Cruz foi o resultado do seu imenso amor. Gestas era um demônio perverso e mau, era a mesma treva, e sua cruz foi a conseqüência do seu egoísmo, do seu ódio pela humanidade. No entanto, parece que estou a ouvir as vossas objeções, primeiro, que tomei exemplos extremos, e se é verdade que os expoentes extremos, sejam do mal, sejam do bem, podem ter por resultados o martírio e a morte, contudo a maioria dos medíocres não padecem horrores tais. A segunda objeção é que nem todas as dores resultam de punições impostas pelos homens, e a massa enorme de sofrimentos que todos padecemos são conseqüências de causas desconhecidas. A primeira objeção nos leva a concluir, que a moral verdadeira é a da áurea mediania de Aristóteles: in medio virtus, isto é, no meio está a virtude. Nem maus, como Gestas, nem bons, como Cristo, visto que tais extremos podem nos levar à cruz. Logo, sejamos como somos, nem bons, nem maus. Sejamos medíocres nas virtudes, que nesta mediocridade está toda a virtude. Consequentemente, cada um deve cuidar-se de não ser mais do que é, pois que somos perfeitos, acabados, porque medíocres. Esta moralidade se contrasta com a extrema virtude pregada por Cristo que dizia: ou sejas frio ou quente, porque se fores morno, vomitar-te-ei da minha boca. Assim aquilo que para Aristóteles era o ideal, para Cristo é repelente vômito. Cada um de vós que escolha qual dos dois seguir: mas se vos decidir por Aristóteles, já não tendes o que fazer na Maçonaria, desligai-vos dela, porque aqui curamos de nos aperfeiçoar objetivando a virtude extrema de Cristo, ainda que isso nos custe a vida. Quanto à segunda objeção, que é a dos males sofridos sem culpa aparente ou conhecida, dessa não vos posso falar, porque minha convicção me levaria a defender uma tese sectária, e estou disso proibido pela nossa Constituição. O que só vos posso adiantar é que creio deva existir uma Maçonaria extraterrena, e estarão fora do Oriente Eterno todos os que praticarem a iniquidade; em lugar de irem para o Oriente que é a sede da luz, irão para o lado oposto, para o ocidente, para o ocaso do Sol, para onde morre o dia e a luz se apaga, e, nas trevas densas duma noite infinita, todos os passos estarão perdidos, porque não se aproveitam, porque não conduzem a lugar nenhum. Perdido o sentido de orientação, sem o Oriente, andar e desandar é como estar parado. Além daquela porta que ali está, ali no poente, situa-se a sala dos perdidos passos; de lá viemos, e para lá retornaremos, se nos descurarmos do cultivo das virtudes e do saber.

X - Grandes Pontífices A Constituição Maçônica do GOB, em seu Cap. I item I, afirma, entre outras coisas, que ela é "essencialmente filosófica", e que um dos modos de ela pugnar pelo "aperfeiçoamento moral, intelectual e social da humanidade", é, entre outras, "a investigação constante da verdade". Assente que ela se propõe a investigar constantemente a verdade, ipso facto, ela não se tem como detentora da verdade, e, antes, sua verdade se mostra progressivamente em aberto, e isso, ainda, tendo em vista a humanidade. Disto é que decorre o ser ela essencialmente filosófica. Conseqüentemente, todas as questões filosóficas que a Maçonaria põe, podem e devem ser discutidas exaustivamente. Tal, o fundamento inquestionável que nos propiciou fazer a crítica da filosofia do grau 19, a qual permaneceu intocável faz duzentos anos. Ao mesmo tempo que fazemos essa crítica, assentamos os alicerces da filosofia que vigorará no mundo (tal, a nossa crença) a partir do século XXI. Como a verdade não é privativa de ninguém, nem de nenhuma instituição, esta filosofia deve ser para todos, para todos os graus, e também para o público profano, ministrada em sessões


28 livres ao público, mensais, conforme tais sessões de estudo foram aconselhadas pelo GOSP. Feito este preâmbulo, vamos ao assunto: Contra o que pensava Spengler, Toynbee demonstrou, em vinte civilizações que se foram, que as civilizações não morrem pelos mesmos motivos pelos quais se finam os organismos biológicos, dado que, em nada, elas se parecem a estes organismos. As civilizações entram em colapso quando deixam de responder a um dado repto, o último, que continua reptando, sem resposta. Tudo vai indo relativamente bem, até que a civilização sofre um repto, um desafio, ou lhe surge uma antítese. É preciso, então, dar a resposta ao repto, ao desafio, ou seja, fazer a síntese. Pois bem: nossa civilização ocidental desenvolvia-se segundo a tese criacionista; vigorava, até há pouco, o Criacionismo bíblico. E todas as filosofias, exceto a de SpencerNietzsche, trazem o Criacionismo como subentendido, como substrato, como terreno sobre o qual se assentam seus primeiros princípios. De meados do século XIX para cá, nossa civilização sofreu o repto da Doutrina da Evolução, ou foi-lhe imposta a antítese do Evolucionismo. Por causa de não se haver achado ainda a síntese entre essas duas posições contraditórias; por causa de se não haver harmonizado a tese Criacionismo com a antítese Evolucionismo na SÍNTESE de um pensamento mais abrangente que abarque essas oposições em nova unidade ideológica; por causa de não se haver feito ainda isso, nossa civilização começa a declinar para o seu ocaso. É exatamente essa SÍNTESE que a obra "Grandes Pontífices" faz. À meia verdade do Criacionismo temos de juntar a outra meia verdade do Evolucionismo para obtermos a verdade inteira, mais completa, até que novos tempos futuros imponham novos reptos, novos desafios, para os quais, como agora, serão necessárias novas respostas, novas sínteses. O Ritual do grau 19 foi composto e redigido segundo os ideais imperantes no século XVIII, que são os do Iluminismo o qual fazia da razão uma deusa. Era crença, então, que o Racionalismo, sobretudo, o da linha Bacon-Locke, era tudo, e que a ciência e a tecnologia eram suficientes para transformar o inferno terrestre num paraíso. O "paraíso" proposto é o no qual estamos vivendo hoje, submetidos ao medo e ao horror de todos os matizes. Ora, a Maçonaria não tem isso de ficar de braços cruzados, como está fazendo hoje, não indiferente, mas impotente, face ao inevitável de um mundo que soçobra no abismo. Ela tem que reagir. E para reagir é-lhe indispensável um pensamento novo. E um pensamento novo, norteador da grande renovação, só pode provir de seus Obreiros. Não há outro caminho a seguir, a não ser este. Assim, esse pensamento novo se impõe como uma questão de vida ou de morte para a civilização a qual, se cair, arrastará na queda, a própria Sublime Instituição. Deste modo, cumpre à Maçonaria salvar-se a si mesma, e, em se salvando, salvar a própria civilização. Se isto não acontecer, nada mais terá a mínima importância. Nosso mundo atual se acha sob o repto do Evolucionismo antitético em relação à tese do Criacionismo. Ou agora vem a SÍNTESE, ou sobrevirá a morte da civilização, após uma agonia longa à qual Toynbee chama de "interregno", e Gustavo Corção, na sua irreverência contumaz, chama de "diarréia". Essa agonia vivemos hoje, em todos os setores: no da moral, no do social, no da economia, no da política, no das religiões, estas, já, de há muito, esvaziadas de seu conteúdo espiritual. A obra que damos ao prelo, agora, é filosófico-científica, não mística, embora leve em conta o que há no Evangelho, sobretudo, no "Apocalipse" de São João, em que se fundamenta o grau 19. Mesmo nesta abordagem, com base no Evangelho, nosso pensamento mostra-se rigoroso quanto à lógica. Quando São João diz que "Deus é Amor" (I Jo 4, 8), e que "Deus é Luz" (I Jo 1, 5), assente que, na linguagem filosófica, Deus é o mesmo que SER, podemos emparelhar São João com os filósofos substancialistas de Mileto: Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Empédocles, Heráclito. Moisés, também, tira tudo da luz, inclusive a própria matéria, haja vista o próprio Sol que foi criado da sua luz, ao dia quarto, enquanto que a luz surgiu no dia primeiro. Deste modo,


29 Heráclito, com o seu fogo primordial, não distancia quase nada de Moisés com sua "luz que era no princípio", nem de São João para quem, além de o Ser consistir-se de Luz, ainda é o AMOR. Daí que podemos construir o filosofema de São João, trocando a palavra Verbo pela palavra Amor, e teremos isto: "NO PRINCÍPIO era o Amor, e o Amor estava com Deus, e o Amor era Deus. (...) Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez" (Jo 1, 1 a 3). Coerente com isto, o texto lido ao serem abertos os trabalhos do grau 19, pode, também, servir de ponto de partida para a construção de toda a filosofia do terceiro milênio. Cristo, em dizendo, "Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, o primeiro e o derradeiro" (Apoc 22, 13), simplesmente assenta, para a reflexão filosófica, que ele, como Amor que é, é o ponto de partida e de chegada COINCIDENTES de um grande círculo que começa no Mundo Celeste e lá termina, havendo passado pelo caos que ficou no meio da circunferência, caos esse do qual saiu este nosso universo, este nosso mundo. Assim sendo, a fórmula maçônica ORDO AB CHAO, subentende uma fase inversa, já vencida em que a Ordem empírea caiu no caos, ou seja, CHAO AB ORDO. Existe hoje, portanto, a Evolução, porque houve uma fase anterior de Involução. A Evolução que, começada pela matéria, acaba no amor, implica uma fase inversa em que o Amor que é Deus, tornando-se autônomo (livre para fazer sua lei) nos Espíritos celestes, inverteu-se no seu oposto que é o Egoísmo desintegrador, disto resultando a queda e dissociação de parte do que "era no princípio" no Caos de que, depois, surgiu este nosso universo evolutivo.

XI - Minha filosofia e a linha do grau 18 Deus criou os filhos, os anjos, da sua Substância, visto como não havia outra; não podia Deus lançar mão de nada exterior a si, porque, sendo infinito, não possui exteriores, nem limites. Sendo substancial o Amor, por isso mesmo possui polaridade, podendo, porque livre, esfriar-se e inverter-se no seu contrário. "Deus é Amor" (I João 4, 16), e desse Pai-Amor saíram os filhos; "Deus é Luz" (I João 1, 5), e dessa incriada luz inacessível se criaram os anjos qual Pai, todos luminosos, todos santos, todos amorosos. E aconteceu esfriar-se o amor num terço dos espíritos celestes, e o impulso, como o de um pêndulo que oscila, inverteu-se no seu contrário, no egoísmo. Se o amor cria, o egoísmo descria, dissolve, desintegra, e assim os anjos caídos do amor se escureceram, sendo arrojados no Orco profundo, no centro do universo primevo, e em se fechando cada um cada vez mais sobre si mesmos, todos os dragões se desintegraram no que se chamou, então, depois, medonho e turbulento caos. Daqui principiou a fase inversa à da queda, que é a evolução, e quando pôde o homem ser recriado na subida, viu, atônito, perplexo, que a ignorância e a dor são a sua sorte. Porque se perdeu o amor, por isso erra o homem pelo mundo; procura o enigma do Universo, e não o encontra; sente a morte lançar-lhe a descarnada mão, e se toma de horror do Nada. Acaso conheceu o homem o amor? Sim, conheceu-o antes da queda, e o conhece agora, porém, na sua forma invertida de egoísmo. A Natureza toda é egoísta, e o homem, nela, não teve outra sorte que não ser egoísta também. Que, pois, fizeram, os primeiros homens? Ignorantes e fracos, a noite os enlouquecia de horror. Adoravam coisas de todas as espécies chamando-as deuses. O egoísmo engendrou a tirania, e esta criou o trabalho escravo, impedindo, ao mesmo tempo, o esforço da pesquisa da verdade. Por causa da inversão do amor em egoísmo, o mundo todo se mostrou invertido também, e, como num negativo fotográfico ou numa fôrma, tudo tem de ser entendido pelo avesso; daí que onde nos diz, a fôrma, saliência, é para entender-se reentrância ou depressão; onde o negativo nos diz luz, é para entender-se escuridão, e


30 onde, negro, é para entender-se branco. Porque tudo se mostrou invertido, o Mal foi tomado pelo Bem e o Bem pelo Mal. Todavia, os anjos que, lá no empíreo, se tiveram na virtude, inflamados do sacrossanto amor, varando as trevas do Orco, sempre levaram socorros mil a todos os que quiseram salvar-se, os que, de dragões, desejaram negar-se, na reconquista do perdido amor. Que estrela, pois, esta que brilha nas trevas? É a Nova Lei que reaparece, a Lei do Amor que exsurge, desponta e esplende fulgurante, negando o estulto egoísmo, clareando a escuridão do mundo, derretendo os ferros, as algemas, as gargalheiras com que a negra tirania agrilhoou a Liberdade do humano corpo e da consciência humana. O homem dragontino, egoísta e mau, escravo da ignorância e do vício, só pode achar a liberdade na nova Lei do Amor, e a Grande Estrela Fulgurante diz: – "Conhecereis a Verdade, e ela vos libertará!" A Verdade? Mas o que é a Verdade? Movido pelo anseio de ser livre, passou o pensador a joeirar todas as vozes, e andando pelo mundo, foi interrogando as gentes: – em que crês tu? – Creio na existência de dois deuses: um claro e luminoso como a luz do Sol, e bom como a mesma bondade, e outro, negro, peçonhento e cheio de maldade. Interrogado outro, este assim responde: – Creio em Brahama que gerou Trimurti; Brahama, o criador; Wishnu, o conservador; e Shiva, o destruidor. – Eu aqui budista, esse ai brahamanista, aqueloutro lá discípulo de Platão, todos cremos na transmigração das almas por corpos sucessivos. Vagando o pensador pelos confins da Terra, por terras ignotas, ouviu ainda dos selvagens a primitiva fala: – Adoremos o Sol, a Lua e as Estrelas, porque deuses são. Desesperado de achar a verdade na escuridão dos tempos, dirige os passos para Roma, a cabeça da Igreja, e ouve que o recém-nascido, morto sem batismo, para sempre está perdido. Ouvindo a um tirano, desejoso de forjar uma mística que lhe sustente o despotismo, esse, em proveito próprio e arrogante, diz: – O rei é Deus, e nós outros, todos somos seus escravos. – Mahomet é infalível, diz o muçulmano, ao que retruca o católico romano: não, o Papa é que o é. Ainda ecoou na lembrança do viajor do mundo, a fala primitiva, ouvida quando andara por ignotas terras: – É deus o fogo. Estátuas lhe façamos, de pau, e pedra, e bronze; curvemo-nos ante elas, em adoração, humildes; cultos lhes prestemos! Todavia, insistindo, repete a Estrela Flamejante: – conhecereis a Verdade, e ela vos libertará! Mas, que é a Verdade? Feita esta pergunta por Pilatos, Cristo emudeceu... porque se via à frente dum filosofastro, céptico, descrente de que a Verdade possa ser achada. Contudo, sem o conhecimento dela, jamais seremos livres. Sedento de saber, estudou o pensador as filosofias, as antigas todas, todas as modernas; atormentado pelo enigma do Ser, seu espírito esteve mergulhado nos problemas metafísicos, os da origem, os do fim da natureza, origem e fim das coisas. Até que se instala a dúvida terrível, e com ela, desesperada dor. Noites indormidas, o cérebro em fogo, passa e repassa o fio da mente sua, na pedra milenar que é o enigma do Ser. E Fausto, encarando a caveira, diz-lhe: "Que me estás tu daí zombeteando, caveira despejada? Entendo a mofa: dizes que os teus miolos, quando os tinhas, também como hoje os meus, esfervilhavam; tudo era afadigarem-se às escuras em demanda da luz, que vivifica; por gosto erravas, mísero, qual erro, trás a verdade e em vão"30 e, noutro lugar: "Ao cabo de escrutar co'o mais ansioso estudo 30

Goethe, Fausto, Clássicos Jackson, XV, 44


31 filosofia, e foro, e medicina, e tudo até a teologia... encontro-me qual dantes; em nada me risquei do rol dos ignorantes. "Mestre em artes me chamo; inculco-me Doutor; e em dez anos vai já que, intrépido impostor, aí trago em roda viva um bando de crendeiros, meus alunos... de nada, e ignaros verdadeiros. "O que só liquidei depois de tanta lida, foi que a humana insciência é lei nunca infringida. "Que frenesi! Sei mais, sei mais, isso é verdade, do que toda essa récua inchada de vaidade: lentes e bacharéis, padres e escrevedores. Já me não fazem mossa escrúpulos, terrores De diabos e inferno, atribulados sonhos E martírio sem fim dos ânimos bisonhos. "Mas, com te suplantar, fatal credulidade, que bens reais lucrei? Gozo eu felicidade? Ah! nem a de iludir-me e crer-me sábio. Sei que finjo espalhar luz, e nunca a espalhei Que dos maus faça bons, ou torne os bons melhores; Antes faço os bons maus, e os maus ainda piores. Lucro, sequer, eu próprio? Ambiciono opulência, E vivi pobre, quase à beira da indigência. Cobiço distinguir-me, enobrecer-me, e vou-me Coa vil plebe confuso, à espera em vão de um nome. "E chama-se isto vida! Os próprios cães da rua não quereriam dar em troco desta a sua"31. Perguntando o rei Midas ao capro e calvo semideus Sileno, qual o melhor destino de um homem, este frígio semideus, inventor da flauta, gorducho, baixo e de orelhas suínas, lhe reponde: "Miserável raça de um dia, filhos do acidente e da aflição, por que me forçais a dizer o que bom fora não fosse dito? O melhor dos fados é inacessível – não nascer, não ser. Depois, o melhor fado é morrer cedo"32. E o sábio Salomão concluiu ser melhor o dia da morte que o do nascimento (Ecl 7, 1)... Deste modo, todas as pretensas revelações sobre que os homens fundamentaram suas crenças, sofrem abalos terríveis, terríveis metamorfoses... O pensador desolado, em cujo rosto a reflexão arou profundos sulcos, sente-se tremer. Viu o pai, a mãe, a mulher amada ou o filho morrerem; assistiu-lhes a agonia longa, penosa, e por fim, o último suspiro; depois a algidez das pernas, dos braços e das mãos com os dedos entrelaçados sobre o peito. A vida se quedou no Nada. Qual é, logo, a realidade de sua esperança? Acaso a morte é o fim? Ó dúvida terrível! E sacudindo a cabeça pendente, murmura o pensador: verdadeiramente, a ignorância e a dor são as companheiras inseparáveis do homem!... Curvado ao peso da dor, de alma arrasada, vê desfilar por sua memória toda a humanidade no espaço e no tempo. Escuta, como ao vivo, a voz da despótica intolerância: – Que todo inimigo seja sacrificado ao altar de Baal! Que todo budista seja queimado vivo! Matemos os muçulmanos! tal o manda, tal o quer Deus! Os negros foram criados para servir aos brancos; sejam eles, pois, escravos! Trucidemos os brancos, dizem os de cor! Morte a Sócrates, sentenciam os juizes gregos! Morte a Cristo! crucifica-o, brada a turba enfurecida, açulada pelos sacerdotes, e 31 32

Goethe, Fausto, Clássicos Jackson, XV, 27 - 28 Will Durant, História da Filosofia, 389


32 sequiosa de sangue! Aquele que não crer em Cristo, seja anatematizado, exclama o jesuíta! ao fogo com ele! Anátema sobre todo o que acreditar em Deus, diz, por fim, o comunismo materialista e ateu. Onde, pois, a verdade, aquela que me libertará? Exclama o pensador, à meia voz, como a pensar alto. Não quero o cristianismo que é a verdade de Cristo posta ao serviço e interesses dos homens, mas a verdade pura, do modo como, em palavras, lhe saiu dos lábios. Ora bem: o enigma do Ser, tal como me atormenta agora, azucrinou também os grandes do passado. No entanto eles, em vez de, como eu, perderem tempo com lamúrias, lançaram-se ao trabalho, aos estudos, pelo que se tornaram intrépidos naturalistas e, sob as aparências mais ou menos sinceras da alquimia, promoveram pesquisas científicas por meio da observação. Sob o pretexto da medicina, percorreram, durante dois séculos, todo o ocidente da Europa, recolhendo elementos que outros deveriam fazer frutificar, para refundir o método científico. Inúmeros livros foram escritos pró e contra eles. É um episódio da história que me cumpre cuidadosamente conhecer, pois o que busca a liberdade, tem de, primeiro, descobrir a verdade, uma vez que só ela me libertará. A exemplo deles, cumpre-me ser livre-pensador, como o foram eles nos séculos XV e XVI, eles, os audaciosos defensores da ciência natural, tal qual como Jesus foi o livre pensador da moral. Ninguém, como ele, pregou resolutamente a moral ideal, fundada sobre o sentimento, a única possível naqueles tempos; ninguém feriu com mais rigor e sucesso a hipocrisia e a tirania sacerdotais. A doutrina toda sentimental de Jesus repousa na intuição de Deus, como Providência, e na alma humana imortal! A antiga "Associação de Pedreiros" sempre proclamou os mesmos princípios, mas com o corretivo – LIBERDADE DE ESPÍRITO e OBRIGAÇÃO DO TRABALHO, isto é, com a indagação da VERDADE. Identificando-se à obra "dos Bons Pastores", a "Associação de Pedreiros" proclamou o estudo da Natureza, como base de todo o progresso, porém, com este aditivo: A Natureza não está somente na matéria, mas também nas leis morais, cuja sede é nossa consciência e cuja realidade está demonstrada pela formação da sociedade humana, tal como as leis físicas são demonstradas pela existência dos fenômenos físicos. A "Associação de Pedreiros", como Jesus, empenha-se em aproveitar o homem em seus sentimentos, agindo sobre sua conduta, seus costumes, predispondo-os às boas ações e à Virtude. Não adotando para si mesma, determinada crença, a "Associação" considera todas elas como transitórias e subordinadas aos lentos progressos da razão humana. Fiel ao único princípio da liberdade e do trabalho, a "Associação" pode tirar de determinada época da história, verdades parcialmente descobertas; pode conservar-lhes o sentido exato, repudiando seus maus elementos ou, melhor, seus abusos, por verdades mais completas. É assim que a "Associação" tem glorificado a Fé, a Esperança e a Caridade. Sem prejuízo, porém, tem repelido a Fé pela Ciência; tem repudiado quimeras com as quais o homem infante embalava sua imaginação, e, até a Caridade, quando orgulhosamente revestida da forma de esmola. Jesus falava, de acordo com as idéias de seu tempo, da Fé e da Esperança que ele pregou. Sua mais importante obra resume-se em um vocábulo: Amor. Para ele a Bondade, a Tolerância e o Amor tornavam os homens iguais. Não poucas vezes sua palavra fez entrever essa igualdade, como correspondente ao direito, pois a Justiça de não fazer aos outros o que não queremos que se nos façam, deveria transformar-se em Caridade, que é a sentença na sua forma positiva de fazer aos outros o que queremos que nos façam, tal, sua única finalidade. Cumpre, pois, ao obreiro procurar a Verdade em sua sombra profunda! Esta é a voz do Trabalho e da Liberdade. Assim se conhecerá a Lei que governa o mundo! Que motivo leva os pedreiros-pastores a se reunirem? A pedra angular, a pedra de esquina do edifício social foi levantada num madeiro, e a lançada de Longuinhos abriu-lhe o lado de que saíram sangue e água. A Pedra Cúbica verte sangue e água! Por que aconteceu isso? Porque se perdeu a Verdade no prístino passado! Como, pois, se poderá reencontrá-la? Pela


33 Paciência, pela Coragem e pelo Amor. Não só por estas virtudes, senão também pela Fé, pela Esperança e pela Caridade. Armados da prudência, saíram os pedreiros-pastores pelo mundo de norte a sul, de oriente a ocidente! Interroguem os homens, todas as religiões, as filosofias todas, todos os monumentos; percorram a Terra inteira; interroguem homens e coisas. Que a prudência os guie. E saindo eles, aconteceu verificarem estar extinta a Fé, a Caridade extinta. Notaram que os que se propuseram a reerguer a Humanidade foram mortos pelos homens cegos pela ignorância. Aquele que disse: "Sede uma Família de Irmãos", não foi compreendido pelos homens que o mataram. Aquele que disse: "Não há mais escravos", os homens, sem o compreenderem, mataram! Aquele que disse: "Procurai e encontrareis", não foi compreendido pelos homens que o condenaram à morte! Aquele que expulsou os mercadores do Templo, foi privado da existência pelos homens! Aquele que denunciou a mentira dos Fariseus, os homens não o escutaram e o condenaram à morte! Aquele, em fim, que afrontou a tirania dos grandes e o fanatismo das multidões, foi insultado e morto pelos homens! Só resta a Esperança, e desgraçado de aquele que a extinguir! Poder-se-ia percorrer as Câmaras dos Suplícios, dos castigos que, em várias épocas, a sociedade tem imposto aos que se mostraram esquecidos ou indiferentes às leis supremas do Amor; aos que, sem escrúpulo, lançaram sobre outrem as torturas dos sofrimentos físicos e as angústias do desespero moral e material, como os espantosos tormentos das prisões, das pocilgas dos escravos, dos antros sombrios, úmidos e infectos das masmorras sobre que os poderosos edificaram seus imponentes castelos; aos que, olvidados dos eflúvios da Fraternidade, asfixiaram os mais nobres sentimentos altruístas e da caridade, como o arcebispo Rogério Ubaldini que trancafiou na Torre da Fome o conde Ugolino com seus dois filhos e dois netos, fazendo-os perecer. Assim, embora não se tenha diante dos olhos as tristes conseqüências do esquecimento criminoso da solidariedade humana, alimente sempre o pedreiro-pastor a Esperança, que sua Fé e sua Esperança sejam as suas mais puras alegrias. E neste momento, depois de os pedreiros-pastores terem ouvido a maldade dos homens, façam a si mesmos a promessa de jamais se esquecer desses sublimes sentimentos, dizendo, cada um, em sincero e profundo recolhimento espiritual: "Eu hei de ser bom, caridoso e justo. Jamais causarei mal a meu semelhante"! Depois de tantas privações, tantas dores, de interrogar os homens e as coisas, acaso se encontrou a Verdade? Acaso a encontrou quem veio a Judéia, Nazaré, Rafael e Judá? Sim, que Judéia, Nazaré, Rafael e Judá formam a sigla INRI que, posto no tope da Cruz, também significava, para os antigos: Igne Natura Renovatur Integra! (O fogo renova a Natureza inteira). Na origem do movimento, da vida e do pensamento, isto é, de todos os fenômenos naturais, os Árias, nossos antepassados, colocavam uma substância que não era uma abstração, mas uma força real e visível – o Fogo. Primitivamente, o fogo terrestre, o Agni do sacrifício; depois, o fogo atmosférico ou o relâmpago, e por fim, o fogo celeste, representado pelo Sol. O fogo concebido, a princípio, como personalidade divina, somente diferençando do homem pela extensão maravilhosa de suas faculdades, tornou-se o símbolo do Ser Único, a fonte e cúpula do Universo. Pois que quando todas as virtudes foram extintas, e todas as luzes se apagaram, restou ainda uma – a Esperança. Que, logo, esperança pode acalentar o viajor obscuro perdido nas trevas? Não outra, senão a de produzir a centelha que fará renascer a Luz, o Calor e a Vida. E onde se oculta essa centelha? No começo dos tempos ela esteve na floresta sombria, onde um raio elétrico, caído do céu, incendiou um tronco seco. Hoje ela está noutro bosque, o das acácias, onde se ergue uma Cruz com uma Rosa nela. Uns disseram que a centelha gerou-se a si mesma pelo atrito primordial, que este foi o modo também de o primitivo produzir o fogo. Mas, que gerou o movimento inicial para que se produzisse o atrito? Outros chamam-na Agni ou Indra ou Varuna; outros, ainda, a denominam


34 Ormuzd, Odin, Osiris, Iahved. Nada, porém, sobre ela se poderá saber, porque temerária é a interpretação do mortal que pretenda impor um nome ao Grande Arquiteto do Universo! Vinde, ó vós, primeira e segunda linha do Ternário! Vinde! Reavivemos a antiga Idéia! Salve, ó tu, filho celeste, no tríplice nascimento que Prometeu trouxe aos homens no oco dum cajado! Filho do homem, tu, a quem os antigos, nossos antepassados, adoravam sob o nome de Agni, e veneravam sob a figura dum cordeiro, aquele que pôs termo às impurezas do mundo! Salve, ó tu, revelador do céu e da terra! Vencedor dos monstros da tempestade, da noite antiga e do desolado inverno! Ó tu que desvendas as maravilhas do Templo, porque, no momento mesmo em que expiravas num madeiro infame, o véu do Templo rasgou-se de alto abaixo! Ó tu que acendes, por sobre as nossas cabeças, os lampadários das estrelas! Ó tu que nos ofuscas nos ziguezagueantes coriscos, nos relâmpagos, e que nos aqueces no aconchego do lar com os doces eflúvios do calor! Ó tu que dás aos homens o meio de dominar a natureza, fazendo-os, guardadas as devidas proporções, semelhantes a Deus! Tais filhos, ó Pai, procurando compreender-te, deramte o atributo de Criador supremo, estando, desde toda a eternidade como germe e potência de tudo o que criaste! Teu símbolo, ante nossos olhos, o Atarvan da antiga raça ariana, o princípio de todas as combinações que na Natureza se operam, na essência do movimento, na vital essência, fundamento do princípio de Razão que esclarece os homens. Aumenta, ante nós, o teu vigor e brilho! Derrama ao longe, ao largo, teus raios fulgurantes! Sobe ao céu, ao Céu dos céus donde partiste um dia, ó mediador dos mundos, para purificar as consciências nossas! E quando terminado estiver nosso dever na Terra, queiras tu acolher o que de nós subir como sutil porção imorredoura, levando-a daqui, pondo-a a coberto da corrupção que é o termo final das coisas neste mundo! Ó Jesus Nazareno Rei dos Judeus! Ou, de outro modo: Igne Natura Renovatur Integra! Que esta chama ilumine o mundo como o esplendor da ciência! Que ela envolva a Humanidade inteira! Que o Amor engendre fecundas energias! Agora conservai, vós que andais pelo mundo, conservai para a Grande Obra, este candelabro doravante fecundo. Igne Natura Renovatur Integra! Deste modo se emprega a sigla INRI em seu duplo sentido: referindo-se a Jesus e à máxima hermética; à doutrina moral e democrática de Jesus, combinada com a obra especial do que procura a ciência real. Introduzidos todos neste tabernáculo iluminado, é hora de ser enunciado que foi achada a Verdade perdida no prístino do tempo, quando o puro Amor se transmudou no egoísmo. Esta Congregação de pedreiros-pastores não quer afirmar que a Verdade está achada na sua totalidade e inteireza. Não. A Verdade inteira ainda não foi descoberta. Depois de termos andado errantes no meio dos homens, e de haver consultado os monumentos todos, todas as tradições, os livros, as crenças, as opiniões de todos, continuamos a ignorar a Verdade Eterna. Todavia, achamos o caminho que dela mais nos aproxima, até o ponto em que a humana inteligência pode compreendê-la. Foi achado o método; é a direta observação da natureza, o princípio científico; é autoridade da consciência fundamentada na moral de Jesus. Se, para Francis Bacon e outros, a observação exata cria a ciência, para Cristo, a consciência executa, sobre si mesma, um trabalho de revelação, embora lento, seguro. Imprudentemente a ignorância sacerdotal fez mau uso do nome de Jesus. Depois da sua morte, não lhe faltaram defensores. Em todos os tempos os cristãos proclamaram, em nome de Jesus, que entre a Consciência e a Verdade não há ponto intermediário, que ninguém tem o direito de sentenciar: creia nisto! ou não creia naquilo! Liberdade de consciência, eis o que se perdeu outrora e hoje está achada. Até onde tal preceito conduzirá o mundo? Ninguém o sabe! O túmulo vazio de Jesus não é a interpretação sacerdotal da ressurreição do corpo; é o símbolo da ressurreição do pensamento e do espírito. Assim, a vida renasce sem parar, e a ciência aliada à liberdade deve despertar o nosso ardor mais vivo; elas nos fazem gozar a única felicidade deixada ao homem nas agonias de sua ignorância sobre seu próprio destino.


35 Entre nós há quem afirme ser desnecessária a Esperança, enquanto outros atendem, por diversos modos, sua sede de imortalidade. O primeiro caminho seguem-no os jovens, enquanto dentre os velhos, muitos há que não se resignam ao ver-se exaustos pela obra da morte que, lentamente, lhes vem enfraquecendo as forças, antes do golpe derradeiro e fatal; tais velhos, em vez de renunciarem, sentem aumentar em si os atrativos da vida. No entanto, feliz de aquele que, fiel ao dever sincero a si mesmo, espera com serenidade. Entretanto, há ainda um outro ensinamento que é a defesa do direito, até pelas armas, se necessário. Durante os sombrios anos da Idade Média, a Cavalaria representou a reivindicação do direito individual, a defesa do fraco e desvalido, o justo orgulho da justiça, o protesto frontal contra a arbitrariedade. Nesses tempos, em que tantos preceitos predominaram, pareceu ao homem que tinha de fazer a divisão do trabalho, e apareceram as corporações. Fora esta divisão, ainda a uns incumbia a idéia científica, a outros, corrigir os costumes, e ainda a outros cumpria conservar a energia moral. Assim, o homem devia estar munido de três valores: ciência, coragem e amor, e isto, para trazer o inimigo à razão, e chegar a uma solução pacífica sempre que possível, e violenta, quando necessária. Deste modo, ao naturalista laborioso, ao meigo apóstolo da tolerância, a maçonaria supriu de recursos, armando-lhe o braço com a espada. Armado dos recursos intelectuais da ciência, e dos morais da coragem e do amor, e ainda da espada representativa da justiça, o homem viu cair dos próprios olhos o véu negro, deixando-o, para sempre, ver a luz. Assim se fez a aliança dos bons, todos ligados pela fraternidade. Desde então, o fraco e o oprimido encontraram nesse homem iluminado o mais resoluto defensor. A inteligência, então, se pôs a aprender as leis que governam o mundo, e a coragem e o amor se colocaram ao serviço da pátria livrando-a da tirania. Para impedir a extinção das luzes que mais de uma vez se apagaram na história, ao sopro da tirania, o homem bom teve, desde então, a ciência e o direito e, se preciso, a sua espada. Há uma virtude, certamente, o ponto de partida de todas as demais, e sem a qual a felicidade e a justiça seriam bem difíceis, e que se encontra no fundo de todas as máximas: a bondade. Mais que o gênio, a bondade mede a elevação da alma; mais que a beleza, dá ao rosto um encanto indizível. Ela, a bondade, ilumina e se erradia do rosto do justo. É através dela que contribuímos para a felicidade da família, esposa e filhos; é por ela que podemos levar ao infeliz, ao desgraçado, um socorro eficaz. Sem ela, estaríamos entregues a sentimentos tristes, pessimistas e odiosos, que, em tantos homens, explicam suas atitudes de intolerância e de hostilidade à instituições sociais. Toda a doutrina de Jesus ressumbra bondade. Na cordialidade para com os outros, fica suposto o contentamento interior. É por isso que a Congregação dos Bons exerce uma influência tão eficaz sobre os que a freqüentam com amor. Encontram eles, aí, nutrição para a inteligência, ocasião de trabalho para o pensamento, instrumento de progresso moral, e, como conseqüência, a satisfação do dever cumprido. Aí também se encontra a amizade que vai até o sacrifício. Há congregados para os quais são estranhos esses sentimentos. Para muitos, a Congregação é instrumento utilizável para fins ambiciosos e, daí, abandonarem-na, imediatamente, preferindo esmolarem favores em outras esferas, a serem os primeiros entre amigos fiéis. Outros há que se desencorajam porque não compreendem a organização cujos princípios não se dão ao trabalho de estudar; ou porque desejam coisas impossíveis; ou porque não encontram a quimera que sonharam; ou porque pensam que os outros fazem muito pouco, quando, na verdade, eles próprios nada fazem. Esses ambiciosos, não encontrando guarida para suas ambições, afastam-se, ou são expulsos. Os verdadeiros congregados são os que amam a Congregação dos Obreiros do Bem; os que gostam de manejar a trolha da tolerância, fornecendo sua quota de trabalho na construção do edifício social. Estes encontram nos irmãos o que de melhor eles têm. Esses dão a bondade de seus corações, e sentem o prazer inefável de um sincero aperto de mão, de um olhar de afeto, e vê em


36 cada rosto o seu próprio a irradiar simpatia, cálida amizade cujo valor só se conhece quando, nos dias maus, se lembra de haver gozado. Animados destes sublimes sentimentos vão-se à ceia que é de pão e vinho como a de Jesus. Ao menos uma vez por ano, hão de reunir-se, vindos de todos os quadrantes da Terra. Ali cada um dá a conta de seus trabalhos, ouve e aprende o que outros hajam aprendido, tomam parte no repasto, e retornam às suas origens. O Grande Chefe da Congregação então diz: – A nutrição que vamos tomar é o corpo e o sangue de nós mesmos, em que tais alimentos se hão de converter. Que ela, pois, aumente em todos nós as forças vitais; que sustente, em nosso cérebro, a nossa inteligência para que seja sã e sincera, a fim de que possamos discernir a verdade do erro, e esclarecer nossas aspirações diante de Deus. Comamos e demos de comer aos famintos; amemo-nos e frutifiquemos. Bebamos e demos de beber aos sedentos; aprendamos e ensinemos. E feita a coleta, e recolhidos os cajados, cada um retorna ao seu assento, para ouvir a eloqüência do Grande Orador que, em se levantando no seu lugar, principiou assim: * *

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Grande Pastor, chefe desta augusta assembléia, meus pares. Depois de percorrer o mundo todo, de repensar os pensamentos de quantos nos antecederam, aqui nos reunimos para, pela discussão fraterna, acharmos a Verdade perdida no prístino do tempo, quando o amor, em se fechando sobre si mesmo, se transformou no egoísmo. A Natureza toda, todo o Universo, teve sua gênese no Caos; e cuidando nós que tudo se nos mostrava em positivo, não podíamos atinar que um Deus Bondoso tivesse criado tanto mal, feiura tanta, tanta miséria e dor. O mundo primitivo que cuidáramos fosse o real e verdadeiro, hoje se nos mostra como num negativo fotográfico, em que tudo tem de ser interpretado pelo avesso. Onde, no negativo, se nos diz claridade, é para entendermos escuridão, e onde, trevas, é para entendermos luz. Tal, também numa fôrma: onde ele nos diz reentrância, é para entendermos saliência, e vice-versa. Interpretando assim o mundo pelo seu reverso, onde ele nos diz tirania, escravidão, temos de pôr, no lugar, democracia, liberdade; onde, prepotência arbitrária, temos de substituir por liberalismo, por igualdade, por justiça. Em lugar da obediência à vontade caprichosa e absoluta de um chefe, cumpre-nos lutar para que se imponha o Direito, a Lei. Onde a intolerância fez jorrar o sangue dos justos, nós, tendo na mão a trolha, havemos de conciliar as mais contrárias opiniões. Daí que nossa confraria é o mosaico da fraternidade universal, com orlas denteadas a significar a irradiação dessa igualdade. Onde a Inquisição intolerante acendeu suas fogueiras, nós pusemos archotes cujos fogos não são para destruir, mas para que as luzes deles sirvam para nos clarear os caminhos. Não somos ainda detentores da Verdade inteira, porém, uma certeza nos anima o coração, e nos encoraja a prosseguir: essa certeza é a liberdade. Sem a liberdade de pensamento, não podemos especular sobre a natureza, estudá-la, e descobrir-lhe as leis. Sem a liberdade de ação estaremos impedidos de fazer as experiências necessárias ao aprendizado da ciência, pelo que provocamos a natureza, fazendo-a repetir mil vezes seus fenômenos diante de nós. Sem a liberdade, jamais escaparemos da roda perpétua que nos mói sempre, e nos faz dizer: a ignorância e a dor são as companheiras do homem. A liberdade, pois, é o instrumento que nos permitirá inverter a ignorância no saber, e a dor na alegria. Graças a ela, desvirados, nós, de egoístas em amorosos, nossa ação benfazeja se espalhará pela Terra, o nosso exemplo será seguido, e o mundo, então, ir-se-á, pouco a pouco, se negando de feio e mau, até se cumprir o que sempre pedimos a Deus no Pai-Nosso: Venha o teu Reino! Venha o teu Reino à Terra que habitamos, e que Cristo não tenha mais de dizer que seu Reino não é deste mundo.


37 Pois que é, ó Grande Pastor, ó pares, o que é a Verdade? Hei-la! Cristo no-la deu nos exemplos da sua vida, e no-la declarou no seu Evangelho: a Verdade é o Amor. Porém, o amor coexiste com a liberdade, daí que não pode haver amor forçado, amor escravo; logo, a liberdade é o instrumento do amor, e é por ela que ele se efetiva. No entanto, para que haja liberdade, faz-se preciso a tolerância, pois como pode haver liberdade onde a intolerância tirânica acende fogueiras ou prende com grilhões? Logo, a tolerância é instrumento da liberdade. Amor, Liberdade, Tolerância, eis os três lados do Triângulo em cujo centro se vê escrita, com letras de ouro, a palavra VERDADE. Mas Cristo prometeu: conhecereis a Verdade; donde vem que a Verdade é objeto de conhecimento pelo qual se chega à sabedoria. E que é a sabedoria? Ora, vede: Aparecendo Deus a Salomão, disse-lhe: – Que queres que te dê? – Dá-me, Senhor, um coração reto e justo, para que eu possa julgar este teu grande povo. (II Cron 1, 7 a 12). Então lhe torna Deus: – já que me não pediste riqueza, nem honra, nem glória, nem muitos anos de vida, nem que te ponha nas mãos teus inimigos, dar-te-ei o que me pedes, e serás o mais sábio dos homens, como nunca houve outro antes, nem outro haverá depois de ti. Salomão pediu um coração reto e justo, e Deus lhe promete conceder o que almeja, fazendo-o sábio. Logo, ter coração reto e justo é ser sábio. Ora, ser reto e justo de coração é ser virtuoso; segue-se, portanto, que sabedoria é virtude; mas a virtude suprema é o amor de que todas as demais virtudes decorrem. Consequentemente, sabedoria é amor. Como? Acaso a virtude não é o sentimento que nos induz ao bem? E sendo sentimento, não é próprio do coração? Sim, é; que o coração amoroso é sábio e justo. No próprio pedido de Salomão vai o que o preocupa: "para que eu possa julgar este teu grande povo". Para o povo se dirigia o afeto de Salomão, e em favor desse povo quer ter coração reto e justo. Não pediu riqueza, porque o povo vale mais que todas as riquezas, e é a fonte delas; não pediu honras, porque o bem público vale mais que todas as honras. Não pediu glória, porque a glória é fumo, ilusão, vaidade, e o bem-estar do povo é a realidade. Não pediu longos anos de vida, porque o mesmo Salomão havia de dizer que melhor é o dia da morte que o do nascimento. Não pediu que lhe pusesse Deus nas mãos os inimigos, porque o coração reto e justo pode converter os mais ferrenhos inimigos em amigos fiéis, como, de fato, sucedeu durante todo o governo do rei sábio. E realizando o bem-estar do povo, veio a Salomão a glória, veio a honra, veio a riqueza para todos, veio a paz, e até os dias longos vieram para si. E que tudo isto promane dum coração reto e justo? De um coração sábio? Acaso a sabedoria não é própria da cabeça? Acompanhai-me neste raciocínio: Todo o amor quer realizar-se. Este querer do amor impele o amante à ação. A ação encontra obstáculos, resistências, dificuldades, e, para vencê-los, o indivíduo se lança ao estudo que traz o saber que vence as dificuldades que realiza a vontade que satisfaz o amor. Eis que o amor está na raiz do conhecimento, ou, que o próprio conhecimento nasce do amor. Quem a nada ama, por nada se esforça e nada aprende. Se não houver o amor que quer algo, no começo, não haverá o conhecimento, no fim. E quando o homem, já por isto sábio, descobre que o conhecimento é a chave que lhe propicia a realização de todos os seus bons propósitos, então se lança, sequioso, a adquirir conhecimentos, ainda que não para aplicá-lo no momento, do mesmo modo como o homem prudente se põe a economizar o dinheiro, para tê-lo mais tarde, quando as precisões surgirem. De igual modo, o homem sábio cura de adquirir conhecimentos que lhe permitam a solução de problemas futuros, problemas próprios ou alheios. Este procurar o conhecimento se torna num hábito que é como uma segunda natureza, e o sábio sente indizível gozo nesta conquista do saber. O amor quer, então, diretamente, o conhecimento, por puro diletantismo, e não mais por força, como fora no começo. Este amor do conhecimento, este amor pelo saber, é o que se chama filosofia. O filósofo é o que ama o saber, e eis que o princípio e o fim da cadeia se unem no circuito de auto-crescimento. O amor quer, então, o saber, para iluminar-se; e este querer move a ação diletante de buscar o saber. Amor no começo, e sabedoria no fim, porque o amor é sabedoria,


38 ou a sabedoria é amor. Daí que, tendo pedido Salomão um coração reto e justo, Deus lhe promete satisfazer o anseio, fazendo-o o mais sábio dos homens que quantos vieram antes, e viriam depois. E pondo o homem sua mente a serviço do saber, observando a natureza em torno, olhando o mundo, descobre que, neste, o amor primeiro se mostra no negativo, no egoísmo pai da ignorância de que todos os demais vícios decorrem. Endireitar-se a si mesmo primeiro, corrigindo os erros, os vícios, eis o primeiro passo no trabalho de quem busca o saber; depois, quando estiver no seu alcance, tem de lutar pela melhoria dos demais, no seu contorno, porque o amor implica sempre na existência de um objeto para o qual se dirige, sobre o qual recai, e o próprio saber que se ama, ama-se, para o aplicar, sendo ele, o amor do saber, um meio, e não um fim. O que amealha conhecimentos sem cessar, sem os distribuir, assemelha-se ao avarento que sempre se vê pobre, padecendo insaciáveis sede e fome; sede de Tântalo, e fome de Ugolino. O fim é o outro, é o objeto amado, pelo que Salomão estava certo ao pedir: – Dá-me, Senhor, a sabedoria, ou seja, um coração reto e justo... para que fim? – para que possa julgar este teu grande povo. Todavia, cuido que estais vós, aí, a discorrer: de começo esse orador declarou que nosso mundo é invertido e mau, por efeito do egoísmo em que se inverteu o amor sábio e bom. Como, agora, só nos fala do amor, silenciando o egoísmo que é sobre que repousa a natureza e o mundo? Grave é a vossa ponderação, e para respondê-la, peço continueis a honrar-me com vossa preciosa atenção: O egoísmo é o amor pelo avesso; e como o mundo primitivo se fundava nele, no egoísmo, a natureza se nos mostrava toda egoísta, toda invertida no contrário daquele mundo de Cristo, que não é o nosso. O egoísmo, com sede nos indivíduos, do vegetal ao homem, também quer, com uma vontade que se lança à ação; a ação da vontade também encontra obstáculos, resistências, obrigando o agente a conhecer. Quer-se, então, saber, para vencer as resistências, realizando a vontade com sede no egoísta. O egoísta logo descobre que, para ser forte, precisa associar-se a outros. Descobre que, para viver em sociedade, precisa reconhecer e respeitar o limite do egoísmo alheio. Nasce o direito, a justiça que é o respeito pelo limite, não o transpondo, como nunca transpõe o Sol o trópicos, e como a circunferência é eqüidistante do centro. Transpor esse limite para tirar um proveito do outro, contra a vontade desse outro, nisso se cifra a injustiça e o mal. A sociedade, então, aceita esta verdade meridiana, e a impõe pela força aos recalcitrantes. Assim nasce o Estado que é o órgão aparelhado a executar a justiça. Deste modo, todo o mal que o recalcitrante fizer aos outros, reverte-se, de imediato, em prejuízo do próprio infrator da lei. Pela recíproca, onde não alcança a lei, a sabedoria ética ensina que todo o bem que se fizer aos outros, enriquece o meio social em que se vive, redundando em proveito para todos. Forte desta consciência, passa o sábio a fazer o bem que pode ao próximo, porque, a longo prazo, fazer aos outros, é fazer a si. E há mais isto: quando nos ocupamos de distinguir a diferença entre o eu e o meu, verificamos que o eu e o meu se confundem, e tanto que costumamos dizer meu corpo, meu cérebro, meus pensamentos, meu espírito, minha alma, e até meu eu. Ora, se tudo é o meu, onde se situa o eu? Pois o eu e o meu se confundem. Tire-se a um homem tudo o que ele chama seu, até seu corpo pela morte, até seu espírito, sua alma, pelo hipotético aniquilamento, e ver-se-á que se reduz a nada. Então o egoísmo se dilata por uma zona de meus cada vez maior, a começar pelo corpo, estendendo-se, depois, pela esposa, pelos filhos, pelos pais, pela família, pelos amigos, pela confraria, pela sociedade, pela pátria, pela humanidade inteira. O pai dá o que pode à companheira, ao filho, à família, porque eles são seus, e dá aos seus. A abelha que morre pela colmeia, o herói pela pátria e o santo pela humanidade, morre cada um pelo seu. Neste egoísmo dilatado consiste a sabedoria que é também amor. Tal, o amor que em nosso mundo vemos, diferente daquele outro dos celículas, feito de puro altruísmo que, conforme a etimologia da palavra, vem de alter – outro, ou seja, o amor a partir do outro, e não, como o nosso, que é a partir do eu. Já se disse até do amigo íntimo, fiel, verdadeiro, que é o alter ego, o outro eu, porque a excelência da amizade não poderia ir além do máximo que consiste em considerar o outro como a


39 si, e a partir de si. No céu há o altruísmo puro, amor sem metas, que é o sistema do outro, com a máxima super-evangélica, sentida e vivida, mas não expressa em código: ama ao próximo mais do que a ti mesmo. Em nosso mundo, podemos chegar ao egoísmo dilatado, ao sistema do eu que se expande, e a máxima é: ama ao próximo como a ti mesmo. O preceito de amar a Deus sobre todas as coisas, pressupõe que o próximo está entre elas, e é coisa. Isto é perfeitamente inteligível, mas não sensível, a menos que, se de entre as coisas, for excluído o sujeito para quem o mandamento é endereçado. Por que? Porque sendo o eu o ponto de partida e padrão de quaisquer amores, não pode o homem amar nem mesmo a Deus mais que a si. Amar a Deus mais do que a si mesmo, é preceito compreensível pela razão, e fácil de dizer, porém, inexecutável, visto como ninguém pode sentir tal amor por Deus... a menos que seja anjo, e viva o altruísmo puro, porque aí, então, o ponto de partida é o outro, e o maior Outro que existe é Deus. Esta impossibilidade se reforça com se saber que o amor tem um sujeito e um objeto. Quando o sujeito se ama a si mesmo, o amor é reflexivo; quando o amor recai sobre um objeto fora do sujeito, então é transitivo. O objeto do amor sempre existe: ou é o próprio sujeito que a si se ama, ou é um objeto amado exterior ao sujeito. Ora bem: quando este Objeto é Deus, o amor se dirige a um Ser indefinível, e se exaure na procura deste Objeto sem o alcançar. Então, se o amor se frustra por não atingir nunca o Objeto seu, porque infinito e vago, porque inacessível, como pode tal Objeto polarizar o amor do sujeito ao ponto de este sentir... não apenas dizer, mas, sentir... que ama a Deus mais do que a si mesmo? Se o ponto de partida do amor é o eu, nenhum amor pode ser maior do que aquele que o eu tem por si mesmo. Por esta razão, Deus não pode ser diretamente amado nem odiado, e a prece do santo e a maldição de Satanás, conquanto endereçadas a Deus, são interceptadas pelas mais altas criaturas. Quando o anjo mau se rebelou lá no empíreo contra Deus, foi contra as criaturas, contra o próximo, que moveu a sua ação. E atingindo seus irmãos, neles, ofendeu a Deus. Quando, pela recíproca, o santo espalha benefícios por amor entre seus irmãos, é a Deus que ama, neles, que outra forma não há de o homem amar a Deus. São João, também, é deste parecer, e por isso disse: "quem não ama a seu irmão a quem vê, como pode amar a Deus a quem não vê?" (I João 4, 20). Deste modo, o primeiro mandamento de Cristo, se aplicado ao homem, ao segundo se reduz. Conquanto o altruísmo puro dos celículas, e o egoísmo sábio ou dilatado tenham sentidos opostos, porque um se abre para a direita, e outro, para a esquerda, como ambos são abrir, o resultado é o mesmo que é o de promover a integração. E para provar minha tese, valho-me do Evangelho em que Jesus expôs sua doutrina vazando-a na linguagem do egoísta que é a que só entendemos. Diz ele ao moço rico: "vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres, e terás um tesouro no céu". Quem dá aqui, para ter lá, não abre mão de nada: muda apenas a posse de lugar. Diz mais: "se perdoardes aos vossos inimigos, amontoareis brasas vivas sobre as cabeças deles". Deste modo, troca-se uma vingança ativa, próxima e iminente, por outra passiva e remota, qual seja a de esperar que o inimigo esteja, um dia, sob o fogo de brasas vivas. Quando deres, diz Cristo, faça-o, em segredo, de modo que não saiba tua mão esquerda o que fez a direita. E acrescenta: Esses que dão a toques de trombeta, com alarde, já receberam sua recompensa na fama que adquirem, no aplauso que compram com a esmola. E os que dão em segredo, em silêncio, como não recebem galardão nenhum aqui na Terra, fica subentendido: recebê-lo-ão no céu, que é o que interessa mais. Egoísta um, egoísta outro; apenas que o egoísmo dilatado age a longo prazo, pelo que fica tendo razão La Mettrie que dizia ser "a virtude o egoísmo munido de óculos de alcance". E Espinosa: "Ninguém jamais rejeitou o que julga bom, exceto se tem esperança de, com a rejeição, alcançar bem maior". A frase dar desinteressadamente significa apenas que não se espera retribuição nenhuma do beneficiado, nem mesmo a sua gratidão, nem outra qualquer vantagem terrena pela ação praticada. Mas isto não significa que não se tem esperança de receber recompensa nenhuma, alhures, pelo ato. Dar desinteressadamente, pode levar, também, oculto, o interesse de desenvolver a renúncia, a piedade; será, então, um exercício ascético que tem em vista tornar mais brando o coração, sufocando nele a desagradável sensação de perda que sofre todo aquele que distribui o


40 seu, fora da sua zona de domínio. Age-se, então, como se houvera perdido algum bem, e, para o não sofrer, se o esquece. Que faça esta experiência fácil quem o desejar: pegue uma porção de dinheiro que doaria prazerosamente a um filho, e a dê para o primeiro mendigo que encontrar. Nem o "Deus lhe pague" do necessitado, ainda que sincero, será suficiente para desfazer, na alma do esmoler, a insofrível sensação de perda. Finalmente, diz Cristo: ama ao próximo como a ti mesmo, e, dizendo-o, faz o amor do próximo derivar-se do amor próprio que é o que cada um tem por si mesmo; e se houvesse um homem que a si não ame, esse homem hipotético, porque não existe, ficaria desobrigado de amar a outrem. Se Cristo pregara a anjos em exílio voluntário aqui na Terra, e com o propósito de preservá-los do aniquilamento certo... a que se acham expostos os desprendidos neste mundo egoísta e mau, teria de fundar sua doutrina no altruísmo puro, e, a partir do outro, e não, do eu, sentenciar: ama-te a ti, como a teu próximo. O próximo, neste caso, seria o ponto de partida, padrão, medida e referência do amor que cada anjo havia de ter por si mesmo. Porém, como pregava a homens dragontinos que só a si se amam, teve que alicerçar sua máxima no egoísmo, pondo o amor próprio de cada um, por fundamento do amor ao próximo. E quando Cristo manda Pedro meter a espada na bainha, acrescenta que quem com ferro fere, com ferro será ferido, e esta lei ética da reversibilidade do dano, se completa com a outra, a da responsabilidade proporcional que diz: a quem muito é dado, muito será exigido. A primeira lei ética, aqui considerada, é extensão da que vigora no mundo físico: toda ação corresponde a uma reação igual e contrária; a segunda lei ética encontra igualmente apoio na mecânica: em toda máquina, o trabalho produzido é proporcional à energia consumida. Se a máquina tem consumo interno muito grande, pelo que rende pouco, é substituída por outra que produza o máximo possível. Assim é que ninguém é inteligente e culto ou rico para si somente, pois tem contas a prestar; e se usufruir do bem próprio, olvidando os demais, é máquina improdutiva que precisa ser alijada do serviço. Negadas as condições que propiciaram ser o que se é, tudo pára, tudo se embota, tudo se apouca, tudo tende para nada. Era inteligente, e culto, e rico, e tudo isto empregou para saciar o egoísmo próprio, fechado sobre si mesmo? Sofra a sentença, renasça idiota e viva na indigência. Ora, o egoísta bem que pode fazer tudo isto funcionar em seu proveito, que nisto reside a sabedoria, e se Cristo fora crido, o mundo deveria ser já um paraíso. São Francisco de Assis que foi havido como sendo a sombra de Cristo, também não achou outro meio de falar que não fosse na linguagem do egoísta. Dirigindo sua prece a Cristo, diz: " – Fazei que procure eu mais consolar, que ser consolado". Por que? Porque o consolador, para consolar, precisa possuir primeiro a consolação, que do contrário, não poderia dá-la aos que a não têm. " – Fazei que procure eu mais amar, que ser amado". Por que? Porque quem ama é rico, e possui, para dar; no passo que o só amado, se não ama, é pobre; e é melhor possuir que ser necessitado. Paulo já dissera: melhor é dar que receber, porque quem dá, possui; e o que recebe, se acha na carência. Se o objeto amado não retribuir ao amante, em dose igual, amor por amor, fica sendo mera posse do amante, e, vazio do amor, não sentirá compensação nem gozo algum de ser amada. Quem a nada ama, sente-se flutuar no vazio da vida, e não é muito até que passe a aborrecer-se de si mesmo, pelo que busca o próprio aniquilamento pela morte. " – Possa eu mais compreender, que ser compreendido". Por que? Pois porque melhor é ser sábio do que ignorante, visto como só quem está em cima, pode compreender ao que se acha embaixo, nunca, jamais, se dando o contrário. Ser incompreendido é um tal gênero de desgraça, que é mil vezes preferível sofrê-la, do que gozar a ventura de a não ter. Ser incompreendido é a infelicidade do gênio, do santo e do sábio; porém, é preferível ter esta sorte, que ser agraciado com a mediocridade de todos. E prossegue o santo: " – É perdoando, que se é perdoado". E para sermos perdoados, perdoamos. " – É dando, que se recebe"; e para recebermos, damos. " – É morrendo, que se renasce para a vida eterna"; e para renascerem para a vida eterna, os cristãos da primitiva Igreja morriam, felizes, cantando, na arena de Roma. Mais uma vez La Mettrie tem razão: "a virtude é o egoísmo munido de óculos de alcance".


41 Ora bem: se tal é a virtude, o que é, então, o vício? É o egoísmo retrativo, míope, que, como a toupeira, mais se guia pelo olfato, pelo faro, do que pela vista. Ao fechar-se sobre si mesmo, o ignaro egoísta perde o que quer e o que tem. Cristo tem razão: a quem tem, dar-se-lhe-á, e terá em abundância, e ao que não tem, até o que tem ser-lhe-á tirado (Luc 19, 26). Esta é a sorte do egoísta ignorante: quanto mais se fecha, quanto mais se aferra à posse do que cuida só seu, e não, de todos, mais se apouca, mais se empobrece, e, em caso extremo, aniquila-se no não-ser, quando, de fora, todo o auxilio lhe é negado. Quanto mais fechado o egoísta, mais frustrado, mais violento, mais destrutivo, mais exposto ao auto-aniquilamento, até o não-ser. Já o egoísmo expansivo leva o homem sábio a compreender que nem ele próprio se pertence, pois que é parcela e posse do todo em que se acha alojado, e esta consciência o faz ser uma benção para o coletivo em que viver. Conquanto seja esta a verdade última a que pode alçarse pela inteligência clara e fria, seu sentimento, cálido, obscuro, abscôndito, profundo, lá no íntimo da alma lhe segreda outra coisa: diz-lhe que o todo lhe pertence, que o todo é seu, e para esse todo que ama e sente como seu, faz todos os sacrifícios, até que, por fim, se entrega à morte como herói. A vida já nos demonstrou vezes sem conta, que não agimos por razões luminosas, insofismáveis, mas por sentimentos que são, depois, justificados com razões. Schopenhauer escreveu de maneira incomparável sobre como triunfar das paixões; no entanto, era impiedoso na cobrança dos aluguéis, e, irritado com uma inquilina, deu-lhe um arremessão, jogando-a, desastradamente, escada abaixo, tendo, por isto, de pagar-lhe uma indenização. Era avarento, mesquinho, orgulhoso, quase como Nietzsche, e possuído da mania de perseguição, pelo que trazia sempre um revolver carregado na mesa próxima à cabeceira da cama em que dormia. Bernard Shaw também era sovina, miserável, vivendo como um monge, apesar da riqueza que possuía. Ocupava-se de escrever contra a exploração do homem, mas era o último no mundo a lembrar-se de seus empregados aos quais pagava salário de fome. São Paulo, ao menos, teve a coragem e a sinceridade de confessar; disse: " – Miserável homem que eu sou, pois o bem que quero fazer, não faço; mas o mal, que não quero, esse eu faço". Por que assim? Porque, uma coisa é o que se pensa, e outra o que se faz, arrastado pelos sentimentos, contra todas as razões claras, insofismáveis. Uma coisa, pois, é o sentir, e outra, o pensar. Do mesmo modo que sabemos todos, por princípio de razão, que a morte é inevitavelmente certa, e, no entanto, despreocupados, não a sentimos longe ou perto, assim também o sábio entende que é posse do todo a que pertence, porém, seu coração lhe diz, em contrário, que esse todo é seu, e por esse todo vive, e sofre, e deixa-se matar como fez Sócrates, como fez Jesus. Eis, aí, duas razões opostas: a natural do coração, e a formal da cabeça, ambas coligadas para o bem comum. A sabedoria não está no pensar, mas no sentir justo e reto, e até dizemos que a natureza é sábia, conquanto irracional. Acabei meu discurso; e com ele tenho demonstrado minha tese: o egoísmo dilatado ou sábio é o que chamamos amor, e amor e sabedoria são termos sinônimos. Agora fecho meu assunto: para que o egoísmo se dilate, dadivosamente, ampliando sua zona de domínio, é preciso a liberdade; para que haja liberdade, é necessária a indulgência ou tolerância. Como no Triângulo anterior, podemos construir outro agora com os lados: Liberdade, Indulgência e Egoísmo dilatado. O anterior e este são semelhantes entre si, e se poderia encerrar tudo com o Triângulo da síntese que generaliza e engloba os dois primeiros na unidade; eis-lhe os lados: Verdade, Sabedoria, Amor.

XII - Faça-se a luz Se Moisés fora materialista, certamente Deus ter-lhe-ia falado à intuição: – Faça-se a matéria!, porque todas as luzes que conhecemos nascem de materiais. No archote queima a


42 resina, na candeia, o óleo, no fogão, a lenha. De tal modo está o fogo ligado a seu suporte material que, segundo Vieira, os antigos fizeram a Vulcano, deus do fogo, arrimado a um bordão. Porém, Moisés escreveu que a primeira coisa que houve foi a luz. E isto se confirma com os resultados da ciência moderna para a qual energia e matéria são termos reversíveis entre si. O nosso universo nasceu da condensação da energia; há mais ou menos cinco ou seis bilhões de anos, a matéria do universo era apenas um ponto... em torno do qual as energias se foram condensando, e surgiu o "Colosso Primitivo de Alpher, Beth e Gamow". Esse Colosso, esse Ovo primitivo do universo, teria dez mil anos luz de diâmetro. Depois é que o Colosso se expandiu, tornando-se no universo que é hoje. Parafraseando o Apóstolo São João que disse:– "No Princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus; e todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele, nada do que foi feito se fez"33. Mas como São João diz que "Deus é luz"34, podemos afirmar: no princípio era a luz, e a luz estava com Deus, e a luz era Deus; e sem ela, nada do que foi feito, se fez... Como a luz é energia, então, no princípio era a energia, e a energia estava com Deus, e a energia era Deus; e todas as coisas foram feitas por ela, e, sem ela, nada do que foi feito se fez. Eis a perfeita concordância do Gênesis com a ciência moderna, contra os materialistas que teimam em fazer tudo se derivar da matéria. A matéria nasceu da energia, e o Sol, da sua luz. São Tomás, e com ele o sentir mais comum de todos os teólogos, afirma o que escreve Vieira: "No primeiro dia foi criado o sol informe; no quarto dia foi criado o sol formado" 35. O Sol nasceu da sua luz, ao tempo em que o universo surgiu da energia. Tudo, pois, o que existe é luz modificada, donde, como bem acertou em dizer Huberto Rohden, nós somos lucigênitos e lucífagos. Lucigênitos, porque, como tudo, somos nascidos da luz; e lucífagos, porque, nos alimentamos de luz. Sentimos o calor do nosso corpo, sem o qual não há vida; pois bem: donde vem esse calor? Dos alimentos ingeridos. E o calor aprisionado nos alimentos, donde vem? Vem da função clorofiliana, pela qual os vegetais transformam a energia luminosa em energia química da fotossintese. Aqueles raios solares que a planta aprisionou, é agora este calor que nos anima o corpo, e por isto somos todos lucífagos, isto é, comedores de luz... Olhai para esta luz que nos ilumina neste instante! Também ela vem do Sol que, sem este, não haveria o trabalho da evaporação das águas, que formam as nuvens, que dão as chuvas que alimentam os rios que tocam as rodas d'água. Toda essa dança da vida é ocasionada pelo Sol. No princípio era a luz, e a luz estava com Deus, e a luz era Deus. Pois essa luz e esse Deus seja dado ao neófito. E como a luz é o Verbo, o Verbo seja dado ao neófito. Mas que é o Verbo? O mesmo São João diz, no cap. 1, 14, que o Verbo se fez carne e habitou entre nós, sendo esse Verbo encarnado Jesus Cristo. Ora bem: Jesus disse ser o caminho, a verdade e a vida; então, o caminho, a verdade e a vida sejam dados ao neófito. Jesus é o Amor vivo, e São João diz que "Deus é Amor" 36; portanto, o amor seja dado ao neófito. O Amor, o caminho, a verdade, a vida, o Verbo, o movimento, a ação, a energia, o calor, a luz sejam dados ao neófito. O calor humano, o Amor, sejam dados ao neófito. Eis quanta sabedoria está contida na frase tão simples: "A luz seja dada ao neófito"...

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Jo l, l I Jo l, 5 35 Vieira, Sermões Ed. das Américas, l, l82 36 I Jo 4, 7 34


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XIII - Religião e Crença _ "Esta crença que honra e enobrece o vosso coração não é exclusivo patrimônio do filósofo; também o é do selvagem. – Desde que o selvagem percebe que não existe por si mesmo, interroga a natureza e faz render tosco, mas sincero culto a um Ente Supremo que é o Criador do Mundo". Já hoje não padece dúvida que o homem evoluiu de uma ordem inferior de animais não muito dissemelhante dos chimpanzés e dos gorilas. Egresso, assim, do mundo animal, o homem traz em si e consigo enorme acervo de animalidade que lhe cumpre superar, a fim de que possa conviver com os demais homens, ou seja, viver em sociedade. Ora, isto é impossível sem um regramento ético-legal... com fundamento em Deus, visto como a Natureza é impotente para fundamentar a moral. Por este motivo a antropologia, indo procurar os começos da sociedade humana, deparou-se, sempre, com o xamã, com o feiticeiro, com o sacerdote, com o fautor de religião, este que é o "primo-irmão” do filósofo" (Gusdorf). Face a isto, qual é o padrão de medida para se saber, dentre tantas, aquela que seria a religião melhor?, superior? O padrão é a ANTIANIMALIDADE. Deus revelou-se, progressivamente, através dos tempos, como ANTIANIMAL. Superar a animalidade, e mais ainda, dominar a subanimalidade, nisto consiste o tornar-se ético. Todavia, a animalidade é recalcitrante, desnorteadora, traiçoeira, despistadora dos objetivos, fazendo os homens pensarem que avançam, rompendo caminho, quando estão estacionados, não indo a abertura de seus egoísmos além de suas famílias. Ocorre que a Vida é Egoísmo desde os seus fundamentos mais remotos, e isto, pela observação de que cada ente vivo é um egoísta. A partir deste egoísmo, o homem age, e age, porque a mesma Vida é Ação. Nos níveis mais inferiores, a vida é só movimento. Um animal, para resolver o seu problema de evadir-se de uma jaula ou gaiola, emprega o movimento, tentando, pelo ensaio-e-erro, achar a solução do problema. Já um chimpanzé, após algumas tentativas desassisadas, pára, e reflete, como o demonstrou o Prof. W. Köehler. Este refletir do chimpanzé é feito de um ensaio-e-erro subjetivo, no qual o antropóide se imagina, como se estivera fazendo todos os movimentos que faria um rato ou galinha, quando submetidos ao mesmo desafio de fugir da prisão. E o homem, num nível mais alto, ao resolver seus problemas, faz o mesmo que o chimpanzé, com esta diferença: o primata usa imagens para pensar, ou pensa por imagens, no passo que o homem, usando conceitos, pensa abstratamente. Como o pensamento teve suas raízes evolutivas no movimento, no agir corporal, por isto os filósofos chamam a ação de uma contemplação enfraquecida, o que nos dá a recíproca: o pensamento é uma ação reforçada. Conseqüentemente, há quatro níveis de realidade superpostos que se erguem do lastro primário da VIDA, VIDA que, por sua natureza, é EGOÍSTA. O primeiro nível da realidade que


44 se confunde com a própria vida, diz-nos que a vida é ação, ação que se mostra como uma forma enfraquecida de pensamento no ensaio-e-erro dos animais inferiores, vida que, num nível mais alto, alcança sua plenitude de ação reforçada no pensamento abstrato do homem. Portanto, se a ação é o primeiro nível, o pensar abstrato é o segundo... que se sobrepõe ao primeiro. O terceiro diz-nos que, sendo o homem obrigado a agir e a pensar, tem de fazê-lo segundo uma direção, e não mais que uma, escolhendo-a no leque de opções que as contingências lhe oferecem. O que dá essa direção é a CRENÇA. Esta crença (terceiro nível) é uma como sedimentação das experiências da vida, uma como decantação daquilo que o homem tem para si como sendo a verdade. A crença é o seu conjunto-verdade. Por conseguinte, a crença foi criada pelo pensador que todo homem é, a partir da meditação ao longo do tempo, e é a que, agora, lhe orienta a escolha a ser feita. Ora, só escolhe quem é livre, sendo a LIBERDADE o quarto nível que se sobrepõe a todos os demais, e só existe para quem, como o homem, chegou ao uso da razão. Disto se infere que quanto mais pleno é o uso da razão, tanto mais livre é o homem na escolha do seu quefazer, sendo esse o motivo pelo qual sentenciou Jesus: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará" (Jo 8, 32). E o sentido desta liberdade se acha expresso no versículo seguinte, 34, quando Cristo remata seu pensamento ao dizer: "... todo aquele que comete pecado é servo do pecado". E, como diz Gusdorf, "os cativos mais dignos de lástima são os que nem sequer têm consciência de seu cativeiro". Quem nem chega a ter consciência do próprio cativeiro é sumamente ignorante; ora a ignorância é o oposto da sabedoria: disto se tira que quem não erra nunca, e só faz o certo, é sábio, que é o mesmo que santo. Só são, pois, livres, o sábio e o santo. Assim, o último nível da realidade, o da liberdade plena, só é atingido com a sabedoria e com a santidade. Estes quatro níveis da realidade não são estanques, mas decorrentes, desenvolvendo-se do simples para o complexo, da ação pura para a liberdade plena, não havendo linha divisória nítida entre eles. Pela ordem de construção: Ação, Pensamento, Crença, Liberdade, eis a superposição de níveis da realidade a partir do fundamento que é a VIDA. A vida, portanto, é ação que se manifesta como uma meditação enfraquecida, um pensar insipiente, no ensaio-e-erro animal, no passo que, também, se manifesta como uma ação reforçada, potencializada, no pensamento abstrato do homem. Meditar, portanto, é uma forma plena de agir, como a ação ensaio-e-erro dos animais é uma forma insipiente de pensar. E quem age tem de tomar por um caminho dentre vários, tem de decidir. A vida impõe-nos como diz Ortega, não uma, mas várias trajetórias. E temos de escolher. Daí o dizer Ortega que "viver é sentir-se fatalmente forçado a exercitar a liberdade, a decidir o que vamos ser neste mundo. Nem um só instante se deixa descansar nossa atividade de decisão. Inclusive quando desesperados nos abandonamos ao que queira vir, decidimos não decidir"37. O homem tem de decidir-se por um caminho, por uma direção, sendo que o que lhe impõe este caminho, esta direção é sua CRENÇA. A crença é o homem, não se separando ela dele um só instante. "Nós somos as nossas crenças", diz Ortega. Assim sendo, a crença (que somos, e porque a somos) não pode ser posta como objeto de discussão. A crença que somos forma o nosso substrato mais profundo, do qual nascem TODOS os atos de nossa vida, sem nenhuma exceção. Atos são ações; e ações implicam escolhas direcionadas pela crença. Não podemos discutir ou permitir discussão sobre ou a respeito da crença que somos, porque, como a somos, ela é o fundamento; e fundamento nenhum é passível de discussão, porque, se o fosse, não seria o fundamento. Eis por que a crença num Ente Supremo ("Credes num Ente Supremo?") "honra e enobrece" o coração do homem, uma vez que essa crença lhe norteia não só a conduta moral, como ainda todas as obras da sua vida. Só que a resposta do neófito: "Sim, creio", raramente é sincera, por causa da confusão que se faz entre crença e religião. Como vimos, a crença, sendo o substrato profundo do homem, donde lhe nascem TODOS os atos da vida, sem nenhuma exceção para ninguém, segue-se que este fundamento não 37

Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas, 102


45 pode ser posto como objeto de discussão. No entanto, as religiões, com serem exteriores ao homem, são discutíveis. Deste modo, a crença que somos nada tem a ver com nossa religião, porque a religião que seguimos pode ser discutida, enquanto que a crença que somos, não. Bem pode ser, portanto, que o neófito haja confundido religião com crença, donde se segue que ele aceita a existência de um Ente Supremo como um primado intelectual, distante, como puro Ente de Razão, nada tendo isto a ver com suas vivências cotidianas, com seus atos nascidos de sua verdadeira crença da qual Deus não participa. Conseqüentemente, para sabermos qual é a crença de um homem, não nos devemos ater à sua profissão de fé, que é intelectual, mas sim, às suas obras. As ações de um homem são o aspecto exterior de sua crença, no mesmo passo que, pela recíproca, sua crença é o aspecto interior das sua obras. Como tudo no mundo tem o fora e o dentro, podemos conhecer o dentro de cada um por suas obras. Ponhamos esta doutrina em sentença: Mostra-me as obras de tua vida, e dir-te-ei qual é tua crença. Isto eqüivale a: Mostrame as obras de tua vida, e dir-te-ei quem és. Pois claro: a crença é o homem. Agora, pela recíproca: Revela-me tua crença, teu substrato profundo, e dir-te-ei quais serão as obras de tua vida. S. Paulo, o grande Apóstolo de Cristo, tinha uma CRENÇA... que era sobre si mesmo, e por isto dizia: "Viver para mim é Cristo, e morrer é lucro" (Epístola aos Filipenses, 1, 21). "Sede meus imitadores, assim como eu sou de Cristo" (Cor 11,1; Filip 3, 17). "Estou crucificado com Cristo; logo já não sou eu o que vivo, mas Cristo que vive em mim" (Gal 2, 20-21). Esta identificação de Paulo com Cristo formava a mentalidade de Paulo, e a mentalidade não se constitui só de conceitos vazios, puramente intelectuais, e sim, por conceitos cheios de conteúdo vivencial, emocional. Cristo em Paulo, se tornou vivência, CRENÇA, consorciada às obras de sua vida. Essa sua Crença-Cristo se tornou, como sói acontecer, o aspecto interior das sua obras, como estas eram o aspecto exterior de sua Crença-Cristo. Por causa disto, Paulo sentia-se crucificado com Cristo no mundo, como todo aquele que se diz ser de Cristo deveria estar, e o não está. Todo mundo que se diz ser de Cristo está, também, em paz com o mundo... mundo que, como diz São João, "está todo, inteiro, posto no maligno" (I Jo 5, 19). Donde se tira, como inferiu S. Tiago, que quem é "amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus" (Tgo 4, 4). Mundo que, por estar posto no maligno, não é o mundo de Cristo que disse expressamente: "Meu reino não é deste mundo" (Jo 18, 36). Por causa desta crucificação de Paulo com Cristo... que consistia em estar num mundo invertido no negativo, sendo este mundo a contradição do mundo celeste; mundo este dragontino... em que todos os valores são a contraditória dos valores imperantes nos planos celestiais; por causa de estar o Apóstolo no mundo dos dragões no qual impera a subanimalidade, ou seja, a animalidade requintada pela inteligência; por causa disto Paulo mostrava-se dividido, como aquele que, tendo visto a luz, tem de retornar à caverna de Platão, a fim de ensinar seus companheiros. A seu modo diz Paulo o mesmo que propõe Platão ao filósofo, ou seja: "Tenho desejo de partir deste mundo e estar com Cristo, porque isto me é melhor. Mas julgo mais necessário, por amor de vós, ficar na carne" (Filip 1, 23-24). Este nosso mundo não é ilusório, mas real; só que de uma realidade invertida e mostrada pelo avesso, desde quando ocorreu a queda dos Espíritos celestes, parte dos quais, em se desintegrando no atro abismo, produziu o Caos do qual nasceu nosso universo evolutivo. Por causa disto, nosso mundo ainda é, em parte, a "Caverna de Platão", reino das trevas em que pontificam os dragões, mundo que tem de ser desinvertido do seu negativo... pelo trabalho dos bons, dos de Cristo, dos de Deus, aos quais, por isto mesmo, se pode dizer: "Essa crença que honra e enobrece o vosso coração não é só patrimônio do filósofo. Também o é do selvagem, etc.", porque ser selvagem não significa ser dragão, se o selvícola pauta seus atos pelo Deus que pôde intuir. Ser dragão, as mais das vezes, é ser só intelectual, vazio de princípios morais, isto é, sem Deus, e, por isto mesmo, perfeitamente identificado com o mundo, e ainda disfarçado de homem de fé, pelo fato de seguir uma religião qualquer.


46 O objetivo da religião seria incutir crença, deixar de ser extrínseca, passar para o substrato profundo, recriar o homem, re-li-gá-lo com a Divindade, fazê-lo nascer de novo, isto que é simbolizado no batismo. Mas que nada; tudo não passa de ritualismo vazio de conteúdo: o tal muda, às vezes, de religião, mas não muda de vida, tal qual como diz Sócrates, e, Vieira escreve, do forasteiro: "O peregrino sempre anda mudando de lugar em lugar, e nunca melhora, porque sempre se leva a si consigo"38 . Entre os dois termos, religião e crença, aparece um terceiro que é a FÉ, capaz, sozinho, de produzir toda a confusão reinante no mundo hoje, e que fez nada menos que falirem as religiões. Quando, onde e por quem teve origem esse grande mal-entendido? O Apóstolo S. Paulo recebeu de Cristo a incumbência de levar o Evangelho aos 39 gentios , e para isto organizou um programa com base na fé, FÉ que, para esse Apóstolo, é o mesmo que CRENÇA. Um homem, como S. Paulo, para quem "viver é Cristo e morrer é lucro", que dizia: "faço penitência, para que me não suceda que, havendo salvo os outros, venha eu mesmo a me perder"; que recomendava: "sede meus imitadores, assim como eu sou de Cristo"; que dizia de si: eu e Cristo somos um, visto como "já não sou eu o que vivo, mas Cristo que vive em mim"; um tal homem para quem CRENÇA e FÉ são uma e mesma coisa, podia, com toda a verdade afirmar: "o justo vive da fé", isto é, da crença; "as obras nascem da fé", ou seja, da crença. Toda sua vida de apostolado, de sacrifícios, de martírios, e, finalmente, sua morte por decapitação, provam que, de fato, suas obras nasciam de sua crença... que ele chamava fé, exatamente como acontece com qualquer homem da rua que, metido só consigo, vai indo executar muitos quefazeres nascidos todos de sua convicção mais profunda, indiscutível para ele, que é sua crença. Só que a crença de qualquer um é qualquer crença 40, no passo que a de S. Paulo era Cristo. Ele não pregava uma religião exterior, sempre discutível, e que, por isto, não é o homem; ele pregava Cristo com o qual se identificava tanto, ao ponto de ser um com ele. Em face destas evidências irrecusáveis, indiscutíveis, move-nos a riso a polêmica dos espíritas e protestantes, cada um teimando na sua, os primeiros enfatizando as obras (salvação pelas obras), e os segundos pondo em destaque a fé, pelo que a salvação se faz pela fé. Fé ou obras? Ora, que fé e que obras? Pois separe alguém as obras da vida de qualquer um de sua crença, que é ele mesmo, e verá que é o mesmo que pretender separar o ser pesado do chumbo, do próprio chumbo, ou o ser carnívoro do leão, do mesmo leão. A crença forma uma como que natureza de cada um, e desta como que natureza, nascem, espontaneamente, ainda que se não queira, as obras da vida. E tudo isto não tem nada a ver com a religião exterior à qual, também, se costuma chamar de fé. A crença-Cristo de S. Paulo, que ditava as obras de sua vida, ele chamava FÉ. E é aqui ou nisto que, repetimos, os religiosos de todos os credos fizeram a enorme confusão, porque a fé-crença de S. Paulo não tem nada a ver com a fé-religião, com o entusiasmo religioso de uma religião discutível, porque exterior ao homem, e por isto mesmo separada das obras de sua vida. Partindo da máxima que diz: mostra-me as obras de tua vida, e dir-te-ei qual é tua crença, podemos perguntar: qual era a crença de Torquemada (1420-1498) que o levou a praticar, durante catorze anos, todos os horrores do Santo Ofício espanhol, perecendo sob sua crueldade sem limites nada menos que oito mil pessoas? No entanto, perguntado a ele qual era a sua féreligião, diria não só que era católico, como, por cima, religioso dominicano. Sua ganância, sua crença no dinheiro, crença no poder o fez conivente com os exploradores espanhóis que destruíram os índios bolivianos. Estes eram obrigados a meter-se nos rios, com a água pela cintura, para minerar o ouro de aluvião. Desesperados, os infelizes abreviavam a morte certa pelo suicídio, não sem primeiro matarem os próprios filhos. Que fez Francisco Pizarro (1475-1541) contra os incas peruanos ao dar vazão a sua cupidez, orgulho e crueldade? E acaso Pizarro não 38

Vieira, Sermões, 12, 123 – Ed. das Américas Gentios, para os judeus, tinha a mesma conotação de bárbaros para os gregos e romanos. 40 Como a crença na riqueza material, donde a máxima: "Ser é ter"; ou então, a crença no poder: "Ser é poder"; ou ainda a crença nos sentidos, e daí o dizer: "Gozar de todos os deleites dos sentidos, nisto consiste o viver" etc., etc. 39


47 tinha uma religião que era a católica? Que fez Fernão Cortês (1485-1547) no México contra os naturais da terra, contra todo o império asteca, sobretudo, contra o imperador Guatimozin? De que lhe valeu, então, a sua religião católica? A polêmica nascida já no tempo de S. Tiago, e ainda hoje acesa entre as duas facções religiosas, uma, a espírita, que dá excelência às obras, e outra, a protestante, que dá primazia à fé, não tem nenhuma razão de ser, porque crença e obras são dois aspectos de uma mesma coisa. Crença e obras fazem a vida de cada homem, do mesmo modo que núcleo e citoplasma formam a célula, que prótons e camadas eletrônicas fazem o átomo, que homem e mulher constituem a família. São Tiago diz que "a fé sem obras é morta" (Tgo 2, 26). Mas se a fé é igual à crença, a frase fica sem sentido, porque não há crença morta, ou seja, crença sem obras, assim como também, pela recíproca, não há obras sem crença. Ora, se uma não há sem a outra, falar de fé morta é supor que a fé pode existir independente de sua contraparte? Se a fé é morta por faltar-lhe sua contraparte obras, segue-se que ela jamais nasceu; e porventura poder-se-á falar a respeito do que jamais existiu? Ocorre que S. Tiago, quando se referiu à fé sem obras, estava pensando em religião que, de fato, pode existir sem obras, e não, em crença que não pode. Este absurdo foi possível por causa de se confundir crença com religião, tomando-se esta como sinônimo de fé. Para S. Paulo, crença e fé eram uma mesma coisa, porque ele e Cristo eram um, e todas as obras da vida do Apóstolo nasciam do Cristo interior, do Cristo que vivenciava nele. Agora, os religiosos cristãos de todos os credos vivem suas vidas e praticam seus atos os quais nada tem a ver com Cristo, mas se dão como pessoas de fé... só porque trinam lindos hinos, fazem extensas orações, emocionamse, entusiasmam-se, nunca se esquecendo de curvar-se à frente de Cristo e de fazer-lhe mesuras. Esta é a causa por que diz Vieira que somos cristãos de meias: "temos uma parte da fé, e falta-nos outra; cremos em Cristo, mas não cremos a Cristo"41. Mais: "Quando Cristo saiu ao mundo com a primeira prova da sua onipotência e divindade, convertendo uma coisa em outra nas bodas de Caná de Galiléia, conclui o evangelista S. João a narração do milagre com esta notável advertência: Este foi o primeiro milagre que fez o Senhor Jesus, e creram nele seus discípulos. Já vejo que reparais em uma e outra conseqüência. Se depois do milagre creram nele seus discípulos, segue-se que antes do milagre não criam nele; e se ainda não criam nele, como eram já seus discípulos? Eram já seus discípulos, porque criam a sua doutrina, mas ainda não criam nele, porque não conheciam a sua divindade. Criam-no a ele, mas não criam nele: criam-no a ele como mestre, mas não criam nele como Deus. De sorte que crer em Cristo e crer a Cristo não são crenças que andem sempre juntas. Os discípulos naquele tempo, e naquele estado, criam a Cristo, mas não criam em Cristo; e nós agora, às avessas deles, cremos em Cristo, mas não cremos a Cristo: cremos em Cristo, porque cremos o que é; não cremos a Cristo, porque não cremos o que diz"42. Cristo disse expressamente: "Vós sois meus amigos se fizerdes o que vos mando" (Jo 15, 14). Perante isto, perguntamos: quem é que ama a seu próximo como a seus próprios filhos? Quem é que perdoa ao inimigo, e faz o bem a quem o persegue e calunia? Quem é que dá a capa a quem lhe está querendo furtar a túnica? Quem é que vê em cada mendigo andrajoso o próprio Cristo? Que disse: todas as vezes que amparastes a um destes pequeninos, é a mim que o fizestes. Quem é, pois, que toma os mendigos por Cristo, e os trata como se tratara o próprio Cristo? Somos, logo, meio cristãos, ou cristãos de meias, porque cremos em Cristo mas não cremos a Cristo. Se um homem passa o tempo todo correndo atrás do dinheiro, sendo este o objeto constante, supremo, de suas meditações, ainda que vá à igreja, e seja "crente fervoroso", dando-se por homem de muito fé, sua verdadeira crença, a que lhe forma o substrato profundo, é a de que o dinheiro é tudo. Pela recíproca, se um homem tem a crença de que o dinheiro é tudo, andará 41 42

Vieira, Sermões, 3, 183 – Ed. das Américas Vieira, Sermões, 3, 183-184 – Ed. das Américas


48 correndo atrás do dinheiro. Cremos no dinheiro, porque ele torna o homem forte e respeitado. Cremos na força porque ela vence e esmaga, e duvidamos da justiça porque pode ser enganada com mentiras, e, astuciosamente, mentimos sempre nos negócios e no tribunal, só falando a verdade, quando ela nos é indiferente ou nos convém. O advogado é um perito nisto, e, portanto, sabe aconselhar a seu constituinte o que deve e o que não convém dizer. E a verdade? Ora, a verdade!... Eis, pois, que, como o afirma S. João, "o mundo todo está posto no maligno", em razão do que o Reino de Deus não é o deste mundo. Conseqüentemente, este nosso mundo é um inferno, e nós todos somos diabos; uns piores, outros melhores, mas todos somos dragões que precisam ser desvirados do avesso, desinvertidos desse negativo no positivo, no sábio e no santo que ainda haveremos de ser. Como será isto? Pela compreensão e esforço própros, ou então pela dor. Se somos passíveis de sofrer mudanças segue-se que a crença que somos, embora indiscutível, não é imutável. O esforço próprio, o estudo meditado, e, sobretudo, a dor, podem mudá-la. Quando, na vida, nos sai algo errado, entramos em DÚVIDA, donde vem que, segundo Ortega, "a dúvida pertence ao mesmo estrato das crenças". Todavia, como não podemos permanecer em dúvida, porque ela nos inibe de agir, porque ela nos impediria os atos, o único recurso que nos resta é metermo-nos em solidão, pensar, meditar, e, com isto, criar nova crença. Moisés, o príncipe culto, genial, da casa do faraó, provavelmente teve a sua alétheia 43 quando ainda estava no Egito de onde saiu para os desertos de Midiã, pretextando estar fugindo por ter matado um homem. Retirou-se para o deserto para estar só consigo a fim de recompor suas idéias, visto como suas antigas crenças egípcias lhe ruíram por terra deixando-o em dúvida. Saulo de Tarso, o culto judeu-romano, educado aos pés de Gamaliel, em pedindo cartas ao sinédrio para ir caçar os cristãos, certamente que sabia o que pregava o "inimigo". E teve sua alétheia, sua hora de verdade, na estrada de Damasco. Para recompor seu universo de crenças, retirou-se para um deserto entre tecelões de tapetes, fazendo-se ele também tecelão por três anos. Esta "hora de verdade", todos os filósofos a tiveram, e todos concordam em que são impotentes para explicar suas experiências supra-racionais, intuitivas. Ao que crer num Ente Supremo, com uma crença que identifica o homem com Deus, pelo que o homem assume um aspecto divino de antianimalidade, no sentido com que S. Paulo escreve: "Mas o que esta unido ao Senhor é um mesmo espírito com ele" (I Cor 6,17); ao que crer deste modo vital, não apenas intelectual e religioso, mas vital, num Ente Supremo, a esse, com toda verdade se pode dizer "Essa crença que honra e enobrece o vosso coração não é exclusivo patrimônio do filósofo; também o é do selvagem". Eis a filosofia implícita no grau de Aprendiz, pela qual ficamos cientes de que crença não é religião, dado que esta nós discutimos, analisamos, expomos, aduzimos razões, exatamente como procedemos com qualquer matéria de estudo. Podemos nos entusiasmar com nossa religião, irmos aos templos onde se reúne a igreja, e aí fazermos sentidas orações, trinar lindos hinos, derramar lágrimas de alegria, e sairmos, depois, confortados espiritualmente. No entanto, todo esse fervor religioso não é a crença que somos, a única que, verdadeiramente, norteia nossa conduta moral e todos os demais atos de nossa vida, sem nenhuma exceção. É assim que, diferente da crença que somos, a religião acaba não sendo a vida, havendo total divórcio entre uma e outra, entre religião e vida. Daí que há até o aforismo popular que diz: primeiro a obrigação, depois a devoção. Obrigação são as obras da vida, e devoção é diletantismo, devaneio, gosto, qual o que sentimos ao ouvir música, ao assistir a uma peça teatral ou filme. A este respeito, o jornal "O Estado de S. Paulo”, em sua edição de 30 de agosto de 1984, trouxe um artigo de George Cornell com o título: «Religião nos EUA, segundo as pesquisas». Eis parte do que escreve Cornell: 43

Alétheia: primitivo nome da filosofia e que quer dizer: desnudamento, patentização, desvelação, apocalipse. É como "um tremor de terra" (Gusdorf) que abala toda a estrutura do homem. Desfeito seu universo de crença, ele tem de construir outro.


49 "NOVA IORK – Os norte-americanos mostram-se firmes em matéria de religião, mas fracos na moralidade, segundo indicam os resultados de uma pesquisa sobre esse aspecto da vida nos Estados Unidos. "A pesquisa demonstra a existência de um «gigantesco paradoxo» conforme expressão do veterano pesquisador George Gallup, cuja organização fez vários estudos sobre esse tema no decorrer do último ano. "Em um relatório condensado, de cem páginas, intitulado «A religião em 1984 nos Estados Unidos», Gallup afirma que «a importância da religião está aumentando entre os norteamericanos, mas a moralidade está perdendo terreno». "Embora os níveis de participação religiosa sejam altos, e a maioria dos entrevistados tenha afirmado ter maior interesse pela religião hoje do que há cinco anos, «o ato de enganar está generalizado, em todos os níveis da sociedade» – diz o relatório Gallup. Duas terças partes dos norte-americanos sustentam que o nível de ética nos Estados Unidos declinou no último decênio – afirma ainda o documento. "O aspecto paradoxal – segundo o estudo – consiste no fato de «haver muito pouca diferença» entre o comportamento das pessoas que vão à igreja e o das que não vão, no que diz respeito a uma ampla série de assuntos, como a mentira, o engano e o furto". O artigo prossegue, mas o transcrito dele basta para documentar nossa afirmação de que o homem vive de sua crença e age segundo ela, e não, de sua religião que lhe é exterior. Todavia, apesar do acima exposto referente aos Estados Unidos... que é só uma mostragem do que igualmente ocorre nas demais nações, não devemos menosprezar as religiões: elas são um chamamento constante para o que há de superior no homem. E pode suceder de ela se tornar crença verdadeira nalguns que, por isso mesmo, se hão de santificar, de se desanimalizar, de se voltar para Deus substancialmente, como tem que ser, em vez de só de maneira formal, como geralmente é. Temos visto a primeira parte do enunciado da filosofia do grau de Aprendiz; vem, agora, a segunda na qual se afirma que o selvagem, em observando a Natureza, intui Deus.

XIV - Homem, Mundo, Deus No capítulo anteiror, “Religião e Crença”, ficou assente que a Vida é Egoísmo, dado que todos os entes vivos são egoístas, e agem a partir de si mesmos. Dir-se-á que existe impulsos altruísticos, e temos a prova na mãe, já no nível animal, que se sacrifica pela prole, e, pelo menos por certo tempo, vive em função dos filhos. Entre os insetos gregários como a abelha e a térmita, há os que sacrificam suas vidas: as abelhas, pela colméia, e as térmitas guerreiras, pelo termiteiro. Quando o herói morre por sua pátria, e o mártir, por sua idéia, um e outro repete o impulso vital que já existe lá embaixo no mundo invertebrado. A Vida, logo, dá-nos provas de existir o altruísmo, termo criado por Augusto Comte para significar o oposto do egoísmo, ou seja, agir a partir do outro, alter, o que daria alter + ismo, sendo que o sufixo ismo, neste caso, que dizer doutrina ou sistema. Os romanos já chamavam ao amigo íntimo, em quem se pode confiar, de alter ego, e que significa outro eu. Portanto, há isso de se poder agir a partir do outro. Não obstante, se repararmos bem, notaremos que a ação invariavelmente tem sua geratriz no sujeito, e não, no objeto. Este objeto da ação excita o interesse no e do sujeito, porém, em si mesmo, o objeto é sempre passivo. No sujeito da ação é que está a atividade. É o sujeito que expandiu sua intenção egoística, pondo o amigo dentro de sua esfera de domínio; daí o dizer: meu amigo, minha pátria, minha ideologia, e, para a abelha e para a térmita, minha colméia, meu


50 termiteiro. Ninguém lutaria senão para o que considera seu; e este seu pode ser qualquer coisa, donde se tira que o alter ou outro nem sempre é o amigo, alter ego. Se um rei não sobreviveria à perda do seu trono, este trono é o seu outro eu; se um político não pode viver sem o seu cargo, sem o poder, ele e o poder são um; se o argentário não pode suportar viver sem sua riqueza, esta é o seu outro eu. Disto se conclui que eu e o meu se confundem, e o altruísmo é uma invenção artificial de Augusto Comte, sem base na realidade. Qualquer um tem provas vivenciais de que o egoísmo pode expandir-se e abarcar o outro em sua zona de domínio. Altruísmo é egoísmo dilatado, e quem diz dilatado ou expandido, deixa subentendido para o que vai, e até que ponto vai essa dilatação ou expansão. Com a palavra altruísmo Comte pretendeu superar o Evangelho de Cristo com a criação de um conceito sem conteúdo ontológico, sem base na realidade deste mundo. No seu superevangelho sem Cristo, a máxima seria: "ama ao próximo, mais do que a ti mesmo". Meu outro eu (alter ego), seja o amigo, seja o próximo, seja uma coisa qualquer como um trono ou a riqueza, subentende a existência, em primeiro lugar, do eu, do eu 1.º... Não pode haver eu 2.º, para o eu 1.º, se não houver, primeiro, o próprio eu 1.º... que é o sujeito da ação de desejar, de querer, de amar. Logo, real é o egoísmo, não passando o altruísmo de artificiosa criação intelectual de Comte. A fórmula da filosofia de Ortega se resume nesta frase: "Eu sou eu e a minha circunstância". Por que não põe Ortega "a minha circunstância" em primeiro lugar, para depois dela derivar a outra realidade, a realidade segunda, “eu sou eu"? Porque esta é que é a realidade primeira; o alter, seja lá o que for ou quem for, em relação ao "eu sou eu", vem depois. E há mais isto: a palavra altruísmo não dá a idéia de demarcação, de limite; o conceito de egoísmo dilatado sim, dá: dilatado até onde? E abarcando o quê? Repetimos que o egoísmo do sujeito se dilata até o outro (alter), passando esse outro a ser posse do sujeito, a fazer parte daquilo que o sujeito chama de seu, isto é, o meu dele. Todavia, o sujeito pode sentir que o outro é seu, em dois sentidos: pode ser no sentido de tirar proveito desse outro, ou pode ser no sentido de dar alguma coisa para esse outro, e até de dar-se a ele. Podemos explorar o próximo, tirando dele para nós o que pudermos, e isto é egoísmo fechado, egoísmo puro; e podemos amar ao próximo, e aí darmos de nós para ele, e isto é o que se chama egoísmo dilatado. Daí que egoísmo dilatado, é o mesmo que amor. Ora, se egoísmo dilatado e amor são uma e mesma coisa, por que dar outro nome ao amor? Este nome novo dado ao amor nasceu do desenvolvimento da premissa inicial que diz ser a Vida egoísmo, antes que seja qualquer outra coisa. No entanto, poderia aparecer um outro pensador, de linha comteana, que partisse doutra premissa, e seria a que diz: a Vida é altruísmo. Assim sendo, o outro vem antes do eu, do ego. O sujeito, que ainda não tem consciência de si mesmo, tem já de haver-se com um meio, com o mundo. Nenhum animal se reconhece no espelho, e quando se vê no espelho cuida que sua imagem é o outro com o qual se defronta. A criança humana, em tenra idade, também não se reconhece no espelho. O reconhecer-se no espelho marca o limite de sua integração de personalidade, de sua constituição como pessoa para si. Já pode dizer eu, em oposição a algo que é o outro. Pois, então, se o sujeito, animal ou criança tenra, não têm consciência de si, e a têm do mundo, o outro, para eles, vem em primeiro lugar. Como outro é alter, então, o altruísmo precede ao egoísmo, e a Vida, que, de princípio, é altruísta, só se torna egoísta, quando o sujeito pode dizer: eu. Daí que o eu é odioso, e, para suavizar essa odiosidade, os homens inventaram o plural majestático, pondo o nós com valor de eu. Todo o mal no mundo, portanto, surgiu quando apareceu um animal, o homem, que pôde ter consciência de si mesmo, e dizer eu. O ego é mau, e egoísmo vem de ego – eu. Se não houvesse o homem... que pode dizer: eu, o mundo seria bom, e a Vida seria só puro altruísmo. Favoravelmente a isto, diz Ortega:


51 "O mundo humano precede, em nossa vida, o mundo animal, vegetal e mineral. Vemos todo o resto do mundo como através das grades de uma prisão, através do mundo de homens em que nascemos e em que vivemos. E, como uma das coisas que mais intensas e freqüentemente fazem esses homens, em nosso imediato contorno, em sua atividade reciprocamente, é falarem uns com os outros e comigo, com o seu falar injetam em mim as suas idéias sobre todas as coisas e eu vejo, em princípio, o mundo todo através dessas idéias recebidas"44. Disto conclui Ortega: "Isso nos leva a formular este primeiro teorema social: o homem está a nativitate aberto ao outro que não é ele, ao ser estranho; ou, com outras palavras: antes de que cada um de nós percebesse a si mesmo, já havia tido a experiência básica de que existem aqueles que não são «eu», os Outros; isto é, o Homem ao estar a nativitate aberto ao outro ao alter que não é ele, é, a nativitate, queira ou não, goste ou não, altruísta"45. O homem está, assim, aberto ao outro do seu meio social, desde o nascimento, mas em que sentido? Será para dar algo a esse outro?, ou para tomar algo dele? Perguntado isto a Ortega, eis o que ele diz: "Quando se afirma que o homem está a nativitate e, portanto, sempre aberto ao Outro, a saber, disposto no seu fazer, a contar com o Outro, enquanto estranho e diferente dele, não se determina se está aberto favorável ou desfavoravelmente. Trata-se de algo prévio ao bom ou mau talante em relação ao outro. O roubar ou assassinar o outro implica estar previamente aberto a ele, não mais nem menos do que para beijá-lo ou por ele sacrificar-se"46. Que teria pensado Augusto Comte ao ver o seu altruísmo, assim, reduzido a nada, por Ortega para o qual é ser aberto ao outro ou altruísta, tanto o que assassina e rouba, quanto o que beija e se sacrifica? Desse jeito, concordamos em que a Vida seja altruísta. Neste sentido, o primeiro teorema social de Ortega, referido há pouco, tem validade para toda natureza animal, conforme o explica o próprio Ortega: "O animal não rege a sua existência, não vive a partir de si mesmo, mas está sempre atento ao que se passa fora dele, a esse outro diferente dele. Nosso vocábulo outro não é senão o latino alter. Dizer, portanto, que o animal não vive a partir de si mesmo, mas do outro, trazido e levado e tiranizado por seu outro, eqüivale a dizer que o animal vive sempre alterado, alienado, que a sua vida é constitutiva alteração"47. Se, pelo primeiro teorema do social, diz Ortega que, desde seu nascimento, "a nativitate", o Homem está "aberto ao outro, ao alter que não é ele", donde concluiu que o Homem é, "queira ou não, goste ou não goste, altruísta"; e sendo alteração a ação de centrar-se no outro, de estar fora de si e voltado para esse outro, segue-se que alteração é o mesmo que altruísmo. Diz-nos a lógica que, se duas coisas forem iguais a uma terceira, são iguais entre si. Pois alteração e altruísmo são "estar aberto ao outro"; são ser "trazido e levado e tiranizado por seu outro"; são viver a partir do outro. Logo, o que se mostrar altruísta não "vive a partir de si mesmo, mas do outro", seja o animal e a criança tenra, seja um primitivo em fase mítica, seja um homem-massa... que vive a crédito da sociedade e, por isto, não é si mesmo. Dado que nenhum destes "vive a partir de si mesmo, mas do outro", todos são trazidos e levados por seu outro, que é o mesmo que viverem alterados, alienados, fora de si. Eis a que fica reduzido o tão decantado altruísmo, palavra cara a Augusto Comte. Altruísta é o que não tem consciência de si, e, embora exista, não pode reconhecer-se e dizer: eu existo; eu sou eu, e ajo a partir de mim mesmo pelo que sou responsável por meus atos bons e maus. Muito pelo contrário, sou irresponsável, visto que meus atos são maquinal ou automático cumprimento dos rituais impostos pela sociedade. Não sou eu quem vive, mas a sociedade que vive em mim. Dado que minha vida é o puro reflexo do social, e que vivo a partir do meu 44

Ortega y Gasset, O Homem e a Gente, 142 Ortega y Gasset, O Homem e a Gente, 142 46 Ortega y Gasset, O Homem e a Gente, 142 47 Ortega y Gasset, O Homem e a Gente, 56 45


52 contorno social, nunca sou eu mesmo, mas o social em mim. Como não sou eu mesmo, vivo alter-ado, ou seja, vivo sendo o outro. Sou, por isto mesmo, altruísta, pois o Outro é o centro a cujo redor gravito; o Outro é a minha referência, e, por esta razão, sou como todo mundo, sem nenhuma autenticidade... Ninguém reparou, no entanto, que a ação do sujeito parte do sujeito, tenha ou não ele consciência de si mesmo. E não há outro modo de agir senão no e sobre o contorno. E mesmo quando o homem-massa, que não é si mesmo mas o social nele, reage, refletindo o social, essa reação e reflexo nasce de um núcleo vital que tem de ter um nome, e este será re-agente, sujeito da re-ação. Mesmo aqui, como se vê, o sujeito, embora inconsciente de si, devolve a ação a qual vem pejada das características egoístas do sujeito. O alter, para o ego, só pode vir depois. Não importa que quando nasci, já houvesse a sociedade; eu só tive acesso a ela, depois que me constituí como centro vital de ação e de reação, e esse centro não é senão o ego, donde se tira que não há altruísmo, sem que primeiro tenha havido o egoísmo. Demonstrada a nossa tese de que o altruísmo é uma ilusão, simples jogo de palavras, por causa de a ATIVIDADE ter sede no sujeito da AÇÃO, e não, no objeto, seja ele qual for, voltamos à nossa sentença inicial: A Vida é Egoísmo, e este egoísmo manifesta-se através da AÇÃO dos sujeitos ou agentes que são todos os entes vivos. Goethe, no seu Fausto, diz: "No princípio era o Verbo. No princípio era o Senso... No princípio era a Potência... Agora é que atinei: No princípio era a Ação"48. Há, pois, de uma parte, o sujeito da ação que é o agente; da outra parte, o objeto da ação, o paciente. A atividade está da parte do sujeito que atua sobre seu meio; este meio é passivo, e, por isto, sofre, padece, a ação do sujeito. O sujeito, porque agente, porque ativo, é a pessoa, em oposição ao objeto que vem de ob-jacere49 que significa jazer contra. De um lado temos a pessoa e, em sua oposição frontal, temos todos os objetos que compõem o mundo. Pessoa vem de persona, e esta era uma máscara de cera que os atores usavam no teatro grego. O ator, sendo um só, podia representar muitas personagens. Então, estas personagens eram únicas, específicas, inconfundíveis, não podendo haver duas iguais. Do mesmo modo como São Tomás diz que "cada anjo é uma espécie", cada persona é uma espécie. Como não há, também, dois homens iguais, cada homem é uma espécie, uma persona. O simples agente, que pode ser um animal, ganha a dignidade de pessoa, quando o agente é um homem. Como é que o selvagem descobriu Deus? Descobriu-o por extensão de si mesmo como pessoa que age sobre o mundo. O homem age sobre o mundo, sobre o meio, modificando o existente. Então é que se pergunta: quem me criou a mim? Quem agiu sobre algo, modificando-o, e desta modificação eu surgi? Se eu não sou o agente da minha própria modificação que me criou, quem foi? Ora, se eu, por inconfundível, sou uma pessoa, o que me criou a mim é a Pessoa por excelência, e essa Pessoa que existe por si mesma, Agente primeiro de toda transformação, é o Ente Supremo, a Pessoa plena ou, de outro modo, a plenitude da Pessoa, ou ainda, o Grande Sujeito – Subjectum – subjacente e sustentador de tudo, que é Deus. Aqui temos as três entidades inconfundíveis: homem, mundo, Deus. O homem sabe, de si mesmo, que é pessoa e agente; sabe do mundo que é objeto e paciente da ação não só dele, homem, mas sobretudo, paciente da ação do Grande Sujeito que é Deus. Dissemos que o homem sabe de si, e também que ele sabe do mundo. E de Deus o homem sabe? De si o homem sabe, porque tem uma experiência radical de si, e pode dizer: eu existo. Do mundo ele tem uma vivência quotidiana, e pode dizer: o mundo existe, está aí, à mão, ao perto e ao longe, a perder de vista, mesmo estando esta vista armada do mais que potente telescópio. E de Deus, o homem tem uma experiência sensível também, pela qual pudesse, igualmente, dizer: Deus existe? 48

Goethe, Fausto, Clássicos Jackson XV, 79-80 "Sujeito, do latim subjectum, derivado de sub-jacere (jazer debaixo), que quer dizer, aquilo que está por debaixo, como base, substrato e sustentáculo de todas as coisas; aquilo que causa efeitos, mas não é causado. Objeto, do latim objectum, derivado de ob-jacere (jazer contra), é aquilo que está contra ou defronte, algo que é oposto ao sujeito, algo que foi emitido ou individualizado pelo sujeito subjacente" – Huberto Rohden, Filosofia Universal, 1, 164. 49


53 O existir ou o ser de Deus não é um dado da experiência sensível, nem da inteligência racional, mas, da intuição. A razão trabalha com conceitos. Conceito é uma definição, e definir é traçar os confins de alguma coisa; é recortá-la num todo maior. Cada coisa é limitada, recortada, destacada de um todo maior, e esse destaque é a definição da coisa, ou seu conceito. Assim, há coisas maiores e menores, mas todas delimitadas. Até que, em chegando a uma coisa única em si mesma, sem nada além de si, que por isto mesmo, não pode ser recortada sobre um todo maior, aí temos uma intuição. Deste modo, a intuição é uma visão total, ou visão em todo, toda sem recortes, por isto mesmo indefinível. Se é indefinível, não podemos dizer que é, não podemos conceituar. Então, neste caso, só podemos falar a respeito dessa coisa ou dar nosso testemunho dela, assinalá-la, mas sem dizer o que é. É assim que ninguém define o Espaço, a Eternidade, Causa primeira, os Postulados todos de qualquer espécie, Deus. Este é um aspecto pelo qual podemos saber o que é a intuição. Mas há outro, correlato, que é a visão em globo na qual o todo é um conjunto, ou conjuntura, ou situação, e, embora esse conjunto esteja limitado por um contorno, esse limite não nos interessa. Quando um mecânico vai consertar um carro, ele olha o veículo como um todo, e procura enxergar com os olhos da inteligência (daí intuição), onde está o defeito no conjunto de peças articuladas. Ao mecânico não interessa o carro relacionado com nada. Todas as implicações que o veículo possa apresentar em relação ao dono, à família, ao social, ao econômico, ao tecnológico, ao científico, ao artístico, ao bem-estar humano, etc., nada disto interessa ao mecânico. Para ele, naquele momento, o carro se lhe apresenta como em globo, como um todo, como um conjunto que lhe cumpre analisar ou estudar mas só desse todo para baixo. As relações que procura entre as peças, o nexo que busca entre elas, é relação e nexo vistos do todo para as partes. Trata-se de visão analítica, dedutiva, que, idealmente, decompõe o todo em partes, para intuir o defeito, visão intuitiva esta, diametralmente oposta à outra visão, a indutiva ou sintética que relaciona o carro com tudo o mais que a ele se refere: o dono, a família, a sociedade, a economia, a política, Donde vem que há dois modos de ver uma coisa: a visão intuitiva ou em totalidade, que apreende o todo, e vai para as partes, e visão associativa, indutiva, sintética, que vai das partes para o todo. Na visão do mecânico, o carro é um todo enxergado dele abaixo. Para o dono do carro este é apenas uma parte de quantas outras há enchendo a sua vida. O mecânico olha o carro, e procura ver a situação como em globo. Para o dono do carro a situação é a sua vida da qual seu carro faz parte. Este modo de ver do mecânico é o próprio do filósofo que é o homem que considera qualquer matéria ou problema à luz ou em função da totalidade. O filósofo sempre está na totalidade, de onde parte para qualquer estudo, em razão do que, para ele, nada é desconexo. Fale Toynbee: "Recusei-me a ser encurralado dentro de um campo de conhecimentos arbitrariamente delimitado. O Sr. Haselfoot salvou-me disso, ensinando-me, uma vez por todas, a considerar um problema em totalidade"50. Falando, Toynbee, do general Smuts, diz: "A «totalidade» era a chave de sua grandeza, assim como o era a da de Einstein. Einstein fez descobertas que marcaram época reunindo coisas que espíritos menores tinham deixado separadas. Sir Winston Churchill é outro grande homem do mesmo filão não-moderno. A ampliação de vistas destes três grandes homens é um elo entre si que transcende as diferenças de suas personalidades e de suas carreiras. Todos três ter-se-iam sentido à vontade se tivessem nascido no mundo de Políbio, Catão, o Censor e Arquimedes"51. Mais: "Tal como o filósofo da história islâmica do século XIV Ibn Khaldum, o filósofo ocidental da história do século XVIII

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Arnold J. Toynbee, Experiências, 109 Arnold J. Toynbee, Experiências, 125


54 Vico Freeman tinha o dom de «ver o mundo em um grão de areia»" 52. O mesmo que Toynbee, afirma Gusdorf: "O filósofo é o homem da totalidade, da composição global onde todas as significações são retomadas e arbitradas em função da pessoa"53. Ainda isto: "Tal como o rei Midas, que ao simples contato transformava em ouro os objetos mais vulgares, o metafísico eleva ao absoluto tudo aquilo em que toca"54. A diferença existente entre um professor de filosofia, ainda que com pós graduação e doutoramento nesta matéria, e um filósofo, está em que o professor conhece todas as filosofias que se foram, mas não segue nenhuma, nem tem uma própria, no passo que o filósofo, ou está na cabeça duma escola, ainda que por se formar, ou tem uma filosofia para si, tomada de outrem, filosofia que lhe forma a mentalidade como um absoluto, de onde parte para, por dedução, entender o mundo e enfrentar a solução de todos os problemas. E do mesmo modo como procedemos o estudo do pensamento como ação reforçada, tendo em vista o ensaio-e-erro animal como uma meditação muscular, uma contemplação enfraquecida, agora iremos ver como procede o pensar intuitivo. Wells e Huxley recomendam fazer uma experiência para verificar a capacidade de uma criança, de um cão e de uma galinha, para resolver um problema, usando a intuição; escrevem eles: "Armemos uma pequena cerca de arame assim disposta: um lado encosta na parede do quintal, formando com a mesma ângulo reto: o outro lado, perpendicular ao primeiro, corre paralelamente à parede, a uma distância de dois ou três metros e tendo ele próprio dois ou três metros de comprimento; formamos, desse modo, uma área de uns nove metros quadrados, limitada por duas cercas de arame, mas aberta na outra extremidade. Para experimentar com esse simplicíssimo «labirinto» escolhamos três animais – uma galinha, um cão, e uma criança de três anos. Levemo-los, um de cada vez, para um dos lados da cerca, e atiremos por cima da mesma uma iguaria qualquer (escolhida conforme os gostos de cada um). O problema será resolvido com sucesso, se o sujeito, sem hesitar, perceber a situação e fizer imediatamente a volta à cerca, para colher a presa. O leitor poderá pensar que o problema é tão estupidamente simples, que nem constitui um problema. Mas não é tal. A galinha nunca o resolverá satisfatoriamente; enquanto ver e desejar o alimento, mostrar-se-á irrequieta, investindo debalde contra a cerca; e se conseguir fazer a volta e apanhar a iguaria, será porque, tendo desistido de vencer a dificuldade e tendo seguido seu caminho, casualmente se voltou e viu o alimento numa posição mais acessível. A criança, porém, nunca falhará: contornará a cerca imediatamente. O cão fica entre os dois: se o alimento, atirado por sobre a cerca, cair muito longe, ele fará algumas tentativas ineficazes para alcançá-lo através do arame, mas, de repente, perceberá a situação e, num só ímpeto, fará a volta à cerca; mas se o alimento caiu muito perto do lado da cerca onde ele está, ficando a poucos centímetros do seu nariz, o cão se mostrará tão estúpido como a galinha – porque, dessa vez, o estímulo é muito poderoso e o animal, magnetizado por este, não pode ter a liberdade de movimentos necessários para contornar a dificuldade, entregando-se então a tentativas infrutíferas e desesperadas para segurar o inacessível alimento. Maier estudou detalhadamente essa espécie de comportamento e verificou que ocorre também noutros mamíferos, como o rato, dependendo de uma capacidade algo semelhante à razão e inteiramente distinta da simples habilidade de aprender os caminhos de um labirinto"55. O destaque posto acima é nosso, e o fizemos para sublinhar que essa "capacidade algo semelhante à razão" chama-se intuição. Koehler fez experiências com macacos um dos quais teve a idéia de embutir uma vara no oco de outra a fim de fazê-la suficientemente longa para 52

Arnold J. Toynbee, Experiências, 125 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 122 54 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 123 55 H. G. Wells, Julian Huxley e G. P. Wells, "Como Vivem e Sentem os Animais"– A Ciência da Vida, 7, 274-275 53


55 alcançar umas bananas fora do alcance de uma vara mais curta. Este "ver a situação" chama-se intuição sensível, dado que a situação foi enxergada com os olhos da cara. E é algo semelhante à razão, porque esta enxerga o nexo nas e entre as coisas. Inteligência vem de inter (entre) e legere (ler), e significa ler ou apanhar o nexo nas ou entre as situações. Entender é apreender o nexo, é perceber a situação. E, como o afirma José Ferrater Mora comentando Ortega, "... o mundo não é um conjunto de «coisas», mas antes um conjunto de situações"56. No estudo procedido atrás da conjuntura: o carro, seu dono e o mecânico, verificamos que, para o seu proprietário, o carro é uma "coisa" entre as demais de sua vida; para o mecânico, essa mesma "coisa" é um conjunto de situações, ou seja, uma conjuntura de peças conexas. Como o afirma Ortega, "a «coisa» é «em realidade» a soma ou integral de seus aspectos"57. Estivemos, até agora, vendo os casos mais simples de situações apreendidas pela intuição sensível. No entanto, há situações mais complexas que se apreendem pela intuição intelectual, pela intuição emotiva, pela intuição volitiva, etc. Einstein quando diz: "Penso noventa e nove vezes, e nada descubro; paro de pensar, entro em profundo silêncio, e eis que a verdade me é revelada", esta revelação subitânea é um ver a situação com o intelecto. A descoberta surpreende, e a surpresa é o começo da filosofia, ou, como diz Gusdorf, o primeiro filósofo foi o primeiro homem que se deixou colher pela surpresa. O mesmo diz Ortega: "Surpreender-se, estranhar, é começar a entender. É o esporte e o luxo específico do intelectual (...). Seu atributo são os olhos em pasmo. Por isso, os antigos deram a Minerva a coruja, o pássaro com os olhos sempre deslumbrados58. E escreve Vieira: "Dizem os filósofos que a admiração é filha da ignorância e mãe da ciência. Filha da ignorância, porque ninguém se admira senão das coisas que ignora, principalmente se são grandes; e mãe da ciência, porque, admirados os homens das mesmas coisas que ignoram, inquirem e investigam as causas delas até as alcançar e isto é o que se chama ciência"59. Quem não se admira de nada, não se surpreende com nada, não se sobressalta, esse não é filósofo. Por isto, como diz Gusdorf, "o metafísico tem, da criança, não só a candura, como também a puerilidade. Obstina-se em ver obscuridade onde tudo é claro para seus semelhantes". Esta é a razão por que o primitivo nome da filosofia é alétheia, e que significa descobrimento, patentização, desnudamento, revelação, Apocalipse. Alétheia guarda afinidade com teoria... palavra órfica que, originariamente, significa "contemplação apaixonada simpática", em que "o espectador se identifica com Deus". Daí a raiz "teo" (deus). Teoria era, também, a reunião dos que iam a consultar os oráculos, ou a embaixada sagrada que um Estado grego enviava para o representar nos grandes jogos públicos de outro Estado; cada membro desta embaixada ou reunião era um teoro. "Para Pitágoras, a «contemplação apaixonada simpática» era intelectual, tendo como resultado o conhecimento das matemáticas"60. Donde vem que teorema vem de teoria. Como se vê, sendo teoria o mesmo que contemplação ou visão, não só simpática, senão, também, apaixonada; paixão extática pela qual "o espectador se identifica com Deus", então, teoria, originariamente, significa experiência religiosa ou mística, forma de intuição intelectoemotiva. O ato de ver a situação, sempre vem carregada de emoção forte, porque não há ninguém que, de repente, de um piscar de olhos, de um estalo, veja claro uma situação, sem que se sinta pasmado, surpreendido, admirado. Repetindo o que já dissemos de Gusdorf: "O primeiro filósofo foi o primeiro que se deixou colher pela surpresa, e de modo definitivo, para toda a raça

56

Ortega y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 91-92 Ortega y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 192 58 Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas, 61 59 Vieira, Sermões, XV, 151 – Ed. das Américas 60 Bertrand Russell, Obras Filosóficas, I, 39 57


56 dos filósofos, pois a ele se deve o arranque inicial"61. Donde ele tira que "suprimir a admiração eqüivale a cometer uma espécie de pecado contra o espírito"62. Assim como no nível da intuição sensível uma criança de três anos, ou um cão, ou um macaco, toma-se de alegria ao ver a situação e resolver, de pronto, o problema da cerca atrás referido, igualmente, o primeiro selvagem extasiou-se ao ter a intuição intelectoemotiva de Deus ao ver-se de fronte desta situação: não existo por mim mesmo, e, interrogando a natureza, verifico que ela me é inferior, dado que, excetuado meus semelhantes, nada nela tem consciência de si. Ora, se nada na natureza tem o que só eu possuo, que é a consciência de mim mesmo, segue-se que nisto lhe sou superior, e esta superioridade me confere o status de pessoa... em comparação às coisas que me cercam, que são meros objetos. O mundo, portanto, ao longe, ao largo, é a Coisa máxima ou a plenitude do Objeto frente ao qual eu sou a pessoa. Não me reduzo a Mundo, porque, em lhe sendo hierarquicamente superior, posso entendê-lo a ele, e não, ele a mim. O Mundo não se reduz a mim, porque ele me é superior em extensão, me envolve e me faz partícipe da sua substância que me forma o corpo. No entanto, como não me fiz a mim, nem existo por mim mesmo, quem me fez a mim é superior, sendo esse a Pessoa por excelência, ou Pessoa em grau excelso, Pessoa frente à qual eu não sou coisa, mas pessoa também, embora em grau diminuto. A essa Pessoa excelsa eu me inclino, ponho-me de joelhos, em respeitosa reverência, ao conferir-lhe o nome de Ente Supremo, meu Criador e Criador do Mundo. Não importa que na mente do primitivo esta intuição não se tivesse mostrado assim tão às claras: o certo é que dele até nós, o homem não se cansou de ver, sempre, a mesma situação do ternário: Homem, Mundo, Deus. Daí que, como diz Gusdorf, "o feiticeiro é o primeiro filósofo, e a religião é o berço da metafísica"63. Assim, desde o dia em que o primeiro selvagem se surpreendeu, tendo tido a sua alétheia, a sua teoria, esta como "contemplação apaixonada simpática"; desde quando percebeu que está ligado a Deus por suas potências superiores, e, ao mundo, por ser corpo, desde esse dia até hoje o homem não cessou de ter intuições sobre intuições, e "intuir", no latim, significa "ver", donde vem que intuição é o mesmo que contemplação. Espinosa escreve sua "Ética", como se fora um matemático a demonstrar seus teoremas. No entanto, escreve Garcia Morente, "ao chegar quase ao término de seu livro, sente-se elevado, sente-se sublimado no propósito filosófico que desde o começo o anima, e escreve esta frase como o enunciado de um de seus teoremas: «(...) Nós sentimos e experimentamos que somos eternos»". E continua Morente: "Aí se vê bem até que ponto toda esta crosta de teoremas e de demonstrações estava recobrindo uma intuição, palpitante de emoção, uma intuição quase mística da identidade do finito com o infinito e da eternidade no próprio presente"64. Este sentir e experimentar que se é eterno, é o primado de que parte toda a filosofia espinosiana, do mesmo modo que o princípio de Descartes é o seu cogito, e o de Pascal consiste em "encontrar Deus sem procurá-lo", como o afirma Morente, e afirma-o para sublinhar que o saber intuitivo é um saber espontâneo, não procurado que, ou se tem, ou se não tem. Ou se vê ou não se vê a situação, seja isto para a criança, o cão e a galinha, na experiência da cerca, seja para um primitivo medíocre e um mero professor de filosofia, na experiência do absoluto, isto é, de Deus. "Aliás (diz Gusdorf), os filósofos clássicos, de quando em quando, confessam sua dívida. Nós é que não prestamos suficiente atenção aos momentos em que eles dão testemunho daquele elemento TRANSINTELECTUAL, sem o qual a razão nada mais seria que mero jogo de sutilezas formais"65. O destaque em versal é nosso. Assim, diz ainda Gusdorf, "os grandes pensadores dão a impressão de se terem familiarizado com uma captação privilegiada do real, na qual encontram a 61

Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 6 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 6 63 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 136 64 M. Garcia Morente, Fundamentos de Filosofia, 50 65 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 132 62


57 justificação última de todos os esforços de expressão por eles envidados. Se o único pensamento do filósofo ou do artista permanece inexprimível, quer dizer que não se trata de pensamento, mas sim de APREENSÃO ORIGINÁRIA E TOTAL DA VERDADE, DA TOMADA DE SER INICIAL. Toda a obra subseqüente desenvolver-se-á como esforço imenso para recuperar esta primeira entrada em ação, e para a traduzir no domínio público da comunicação" 66. Os destaques e versais são nossos, exceto em "tomada de ser", que é do autor. Esta "expressão originária e total da verdade"; esta "tomada de ser inicial" é a intuição que, como estamos vendo, significa ver a situação, em ver a situação que começa com o selvagem perante o mundo, ou seja: "o selvagem (...) interroga a natureza", tal qual faz o filósofo, o que resulta para um e para o outro, na "TOMADA DE SER INICIAL" que é acontecimento transintelectual, e, portanto inexprimível. Que sucede depois? Pois sucede que a obra subseqüente do pensador consiste em traduzir para a linguagem corrente de todo mundo, a sua visão, sob a forma de conseqüências que se deduzem, todas, a partir da premissa inicial. Por causa disto, vem uma recomendação de Gusdorf: "Não devemos deixar-nos iludir pela armadura lógica, visto ser impossível legitimar pela razão o absoluto sem inverter os papéis: se o absoluto obedece à lógica, a lógica, exercendo o cargo de criada investida na autoridade de ama, toma o lugar do absoluto" 67. Daí que "a linguagem do absoluto, apesar de inválida (inválida para a razão), corresponde a uma experiência do absoluto, que é a experiência metafísica por antonomásia"68. Portanto, "a experiência metafísica só é possível se fundamentada na experiência religiosa. A religião precede a filosofia como articulação do senso do sacro; o absoluto é o sacro do metafísico. Só que o filósofo impõe tratamento diferente a matéria idêntica"69. Assim sendo, "a coberto das aparências mais modestas da atual filosofia geral, o filósofo, que já não se atreve a chamar Deus pelo seu nome, mantém a mesma ambição, desde que faz intervir em seu discurso a noção de absoluto. Pôr em discussão o absoluto eqüivaleria pois a falsear, desde o início, todo o empreendimento filosófico"70. Consequentemente, "na realidade, metafísica e religião ocupam o mesmo espaço mental. Tanto uma como outra visam articular uma fórmula de concórdia por meio de uma ascese de ação e de pensamento que faculta a reclassificação do finito em função da totalidade e realize a desalienação do homem. O metafísico põe no devido ponto liturgias do intelecto, mas promete a seu discípulo aquilo mesmo que o sacerdote prega a seus fiéis, a saber, a reabilitação na paz e na alegria, depois de terminadas as provações transitórias"71. Está fartamente assessorada por citações, sobretudo de Gusdorf, a tese proposta na filosofia do grau de Aprendiz: tanto o selvagem como o filósofo vêem o mundo em situação, daí intuindo o absoluto, que é Deus, para voltar ao mundo e justificá-lo. Assim, "a meta da filosofia só pode encontrar-se na justificação do mundo e no equilíbrio de uma teodicéia"72. Teodicéia é termo criado por Leibniz, e significa "justiça de Deus". Se o mundo é mau, é preciso saber por que o é; se o mundo resulta de uma queda, de uma culpa, é necessário endireitá-lo, desvirando-o do seu avesso. Se o homem é dragontino, pedra bruta, cumpre-lhe a ele transformar-se, transfigurar-se. Daí que o ponto final ou "o termo verdadeiro de toda filosofia é uma transformação do mundo, que sirva de ponto de arranque de novos empreendimentos"73. "Pelo que, o filósofo e, mais geralmente, o homem de gênio, é um revelador do mundo, ou antes um transformador das

66

Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 130-131 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 131 68 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 130 69 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 137 70 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 129 71 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 136 72 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 46 73 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 48 67


58 significações"74. "Portanto, não haveria, em filosofia, nem fim nem começo rigorosamente assinaláveis. Todo começo é recomeço, todo fim é convite, apelo"75. Começamos este nosso estudo pela intuição sensível, pela criação de um problema, a cerca no quintal, para testar o nível de inteligência de uma criança, de um cão e de uma galinha. Antes, não havia problema para nenhum destes animais; depois, os desafiamos, impondo-lhes a situação problemática. O selvagem, desde que sai da fase do puro animismo, depara-se com o mundo-problema. Deste modo, "a filosofia nasce quando desperta deste sono do imobilismo mítico. O estado de problema atesta a inquietação de um indivíduo que verifica ser, em seu mundo, como que pessoa deslocada"76. Antes tudo estava bem, sem problemas nenhuns, nem para o selvagem, nem para a criança, nem para o cão, nem para a galinha; de repente, se apresenta a cerca do quintal para os três últimos, e o mundo à mão para o primitivo. Acabada a fase animista mítica, "encontra-se definitivamente comprometida a segurança do gênero de vida, donde a nostalgia, que a humanidade nunca deixará de sentir, da idade de ouro, na qual se tinha a impressão de que os cuidados ainda não tinham dado entrada no mundo. De ora em diante o universo oferece-se como tarefa a cumprir; impõe-se a necessidade de repor em ordem o mundo quebrado, ainda que seja com risco de vida. Começa então a aventura da liberdade, e por entre as angústias dos indivíduos a humanidade move-se, assumindo a responsabilidade de sua promoção ou de sua degradação. O fracasso, bem como a consciência que tem do pecado, ecoa na reflexão"77. O mundo em situação para o selvagem e para o filósofo, compara-se à situaçãoproblema criado para a criança, para a galinha e para o cão. Do primitivo ao filósofo, cada um apresenta a sua solução racional, mas o ponto de partida é sempre a intuição, por sua natureza transintelectual. O Irmão filósofo Johann Gottlieb Fichte, discípulo de Kant, partia da intuição volitiva do Eu absoluto em que alicerça todo o seu idealismo. Tudo tem início no homem que quer agir para realizar alguma coisa desejada, pretendida. O eu que quer, deste modo, se põe a si mesmo como fundamento primeiro o qual pode não ser o mais importante, porém é o prioritário na ordem de idéias. No entanto, o eu como fundamento pressupõe, de pronto, um outro fundamento mais remoto que é a Vida. Daí que o eu quer agir, porque é vivo, e a Vida é Ação. É daqui que havia de partir Fichte. Por que não o fez? Diz José Ferrater Mora no ensaio de Ortega que "Fichte chegou quase até o limiar da compreensão da vida humana. Mas se deteve – se deteve freado por um persistente e herdado intelectualismo"78. Todavia, continuemos com Fichte: Uma vez posto a si mesmo, vem o ato seguinte: o eu quer realizar a sua ação; porém, ao realizá-la, encontra obstáculos que dificultam, que resistem, que se contrapõem ao agente, ao eu, ao sujeito da ação. Os obstáculos obrigam o eu a pensar para vencê-los, para superá-los. Deste modo é que o eu se faz um solucionador de problemas, um autor de ações, um superador de obstáculos. Como se vê, antes do pensar está o agir, e, para agir, é preciso que haja, primeiro o eu, e, depois, o seu querer. O eu quer; os obstáculos se opõem a ele, resistem-lhe a ação. É aí, então, que o eu ou sujeito vai estudar os obstáculos, os objetos que lhe obstam a ação, donde vem que o intelecto vem depois do eu e da vontade. Pelo visto, o sujeito ao pôr-se a si mesmo, põe o mundo como objeto da ação. Deus é, então, o Eu absoluto que quis o mundo; e do seu querer, da sua vontade, o mundo surgiu. Aqui está o que vem a ser uma intuição volitiva. Outro filósofo do mesmo filão é Schopenhauer que até escreveu um livro: "O Mundo como Vontade e Representação". 74

Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 49 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 51 76 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 78 77 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 78-79 78 Ortega y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 88 75


59 Platão, para quem "o Verdadeiro, o Bem, o Belo são três aspectos da mesma realidade suprema, da qual derivam todos os Valores"79, nunca começa seus diálogos por Deus, pelo Bem ou pelas Formas, como o afirma Goldschmidt que prossegue: "O platonismo autêntico nunca se oferece, de início, o luxo de algum «princípio» donde possa deduzir todo o resto. Ele sempre começa por onde todo mundo começa; todas as investigações se voltam, inicialmente, para as coisas mais familiares do universo em que vivemos; não há nenhuma pesquisa dialética que não tenha sido, no começo, uma simples conversação"80. No entanto, seu método discursivo, sua dialética81, era só para expor sua doutrina. Para si, no entanto, ele guardava o seu trunfo, a intuição donde partiu, chegando mesmo a declarar: "A intuição esclarece e sustenta a dialética em todos os seus níveis"82. Com isto, Platão dá exemplo de que o método indutivo, que vai das partes para o todo e do particular para o geral, é bom para expor idéias, mas não para concebê-las, originariamente. A tomada de ser original há que se fazer pela intuição. Todavia, para transmitir idéias, o método indutivo, ou dialético, ou discursivo é o melhor, porque é mais fácil associar idéias do que dissociá-las. Os macacos de Koehle conectavam partes para chegar a um todo; isto é, enfiavam uma vara curta no oco de outra para torná-la longa, e empilhavam caixões, antes espalhados, tudo para alcançarem as bananas. Contudo, não conseguiriam tirar as conseqüências de uma premissa. Assim sendo, o método dialético ou discursivo, se opõe ao método intuitivo. Discursivo vem de discorrer e de discurso, um e outro vocábulo que nos dá a idéia de uma série de atos ou esforços sucessivos para captar a essência do objeto. A intuição, em vez de uma série de tais esforços, capta a essência ou a realidade do objeto por um único ato da inteligência. Fale Garcia Morente: "O método discursivo é, pois, essencialmente um método indireto. Em lugar de ir o espírito direto ao objeto, passeia, por assim dizer, ao redor do objeto, considera-o e contempla-o de múltiplos pontos de vista: vai sitiando-o cada vez mais de perto, até que por fim consegue forjar um conceito que se aplica perfeitamente a ele. "Frente a este método discursivo está o método intuitivo. A intuição consiste exatamente no contrário. Consiste num único ato do espírito que, de repente, subitamente, lança-se sobre o objeto, apreende-o, fixa-o, determina-o com uma só visão da alma. Por isso a palavra «intuição» tem relação com a palavra «intuir», a qual, por sua vez, significa em latim «ver». Intuição vale tanto como visão, como contemplação"83. Vimos que a Vida é Ação, e que é por meio da ação ou movimento que um animal tenta resolver seus problemas, como, por exemplo, o de evadir-se duma jaula. Este método animal de solucionar problemas chama-se ensaio-e-erro. Vimos que meditar sobre um problema é praticar um ensaio-e-erro subjetivo, donde tiramos que a reflexão é uma ação reforçada, do mesmo modo que, pela recíproca, a ação, no ensaio-e-erro, é uma contemplação enfraquecida. Vimos que o pensamento discursivo ou dialético, consiste em supor alguma coisa que ainda vamos averiguar, o que vem a ser: antecipamos o saber que buscamos. No momento seguinte, negamos nossa tese com argumentos contrários, discutindo as afirmações anteriores, isto é, fazemos uma depuração. Esta segunda fase, contrária à tese anterior, e que por isso se chama antítese, serve de ponto de partida para ulteriores afirmações e negações. Nisto se cifra a meditação ou reflexão, quando o problema se mostra complexo. Pois a intuição, quem o suspeitaria?, é o prosseguimento deste processo de reflexão; vejamos: Quando, depois de grande e prolongado esforço de meditação sobre dado problema, não conseguimos atinar com nenhuma solução, e, por isto, acabamos por desistir; quando, porque desistimos de procurar a solução, abandonamos o problema, e entramos em estado de descanso, de quietação racional, de profundo silêncio mental, inesperadamente, a mágica acontece, a intuição 79

V. Goldschmidt, A Religião de Platão, 30 V. Goldschmidt, A Religião de Platão, 34 81 Dialética significa: seguir pensando 82 V. Goldschmidt, A Religião de Platão, 48 83 M. Garcia Morente, Fundamentos de Filosofia, 46 80


60 surge, explode, relampeja, aparece, heureca! Nosso cérebro assemelha-se a um supercomputador que se programa a si mesmo com os dados da meditação aliado às experiências da vida. Esse prodigioso computador... que não deixa escapar nada e computa tudo, não cessa o seu movimento nêurico, a sua ação subcortical, quando paramos de lucubrar. E quando dá com a resposta do problema, ele joga para o consciente. Daí Einstein afirmar: "Penso noventa e nove vezes, e nada descubro; entro em profundo silêncio, e a verdade me é revelada". São Francisco de Assis vem por uma estrada, a cavalo. Ao encontrar-se com um leproso, teve sua alétheia, seu relâmpago de intuição emotiva. Viu tudo claro diante de si; seu universo familiar de valores esboroou-se. Apeia-se, então, do seu cavalo, abraça e beija o homem, seguindo-se deste ato, toda a sua vida de abandono das riquezas, iniciando a prática de boas obras. Fale Gusdorf: "Kierkegaard notava um dia esta condição essencial de toda reflexão: «O importante, na vida, é ter visto uma vez, ter sentido uma vez alguma coisa tão incomparavelmente grandiosa que tudo o mais comparado com ela parece ser nada: alguma coisa que nunca mais esquece, embora tudo o mais tombe no olvido»"84. E prossegue: "Kierkegaard, num escrito autobiográfico, evoca o momento em que tomou consciência de uma espécie de maldição divina que se abatia sobre sua família, e que para ele devia continuar sendo a cifra de seu destino de homem e de filósofo: «Foi então que sobreveio o grande tremor de terra, a horrorosa catástrofe que, de improviso, me impôs uma nova lei de interpretação infalível de todos os fenômenos...». Por coincidência significativa (continua Gusdorf), a mesma imagem se impõe a Nietzsche em admiráveis páginas onde descreve o itinerário espiritual do espírito jovem ainda escravo das aparências e como que adormecido na caverna platônica: «Para servos desta categoria o golpe decisivo sobrevém súbito como tremor de terra: a alma, ainda bisonha, sente-se abalada, isolada, arrancada – não compreende o que está passando. É uma instigação, um impulso que se exerce e os empolga como uma ordem; surge uma vontade, um desejo de avançar a todo custo, não se sabe para onde; violenta e perigosa curiosidade perante um mundo ignoto chameja e despede labaredas em todos os sentidos...»"85. Ainda Gusdorf: "Outro filósofo da mesma espécie que Kierkegaard e Nietzsche, a saber, Júlio Lequier, propôs uma parábola empolgante deste encontro com a verdade absoluta, numa página a que deu o título de A Folha de carpa. (...). «Ao pensar nisto, prossegue Lequier, todo meu ser se revoltou, gritei de angústia e de pavor: a folha tombou de minhas mãos e, como se houvesse tocado na árvore da ciência, baixei a cabeça desfeito em lágrimas»"86. Mais: "Descartes descobre o objeto do absoluto num pedaço de cera, simples suporte ocasional de sua reflexão, exatamente como a folha de Lequier"87. "O absoluto é a transcendência presente, e que transfigura todas as coisas à luz de suas significações"88. Por esta razão "religião e metafísica parece porem em ação certas estruturas básicas do ser humano; o fato de presentemente se oporem em nossa área cultural não deve mascarar implicações essenciais que hoje em dia, ninguém deseja que se manifestem demasiadamente. Claro está que a experiência do sacro é o protótipo de toda experiência do absoluto"89. Ainda isto: "Pascal vê, num acidente de carruagem, escancarar-se-lhe diante um abismo, segundo uma tradição onde alguns pretenderam enxergar um mito, mas que, em todo caso, se afigura profundamente reveladora do gênio pascalino. (...). E o Zaratustra de Nietzsche reconhece sua própria imagem no saltimbanco que dança sobre corda"90. "O destino bate à porta; cumpre porém, nesse mesmo instante, captar o sentido do apelo ao valor, e em seguida permanecer fiel à nova orientação do ser profundo que assim se revela. O 84

Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 133 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 133-124 86 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 134 87 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 135 88 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 135 89 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 135 90 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 42 85


61 metafísico é todo aquele que reconhece, na interrogação antológica, sua própria vocação"91. Gusdorf ainda: "O discurso do método sairá a público somente em 1637, dezenove anos após o encontro com Beeckman, a quem se deve o impulso primordial que jogou o moço aspirante a oficial «Renato de Poitou» na aventura que desembocaria em Descartes"92. "O destino bateu as três pancadas, e foi Descartes quem subiu ao palco do teatro do mundo, entrando para todo o sempre na história. Fenômeno idêntico se verifica em todas as provocações exteriores, que só fazem sentido, porque permitem, aos olhos dos próprios interessados, uma espécie de epifania da verdade. Malebranche folheia, numa livraria, o Tratado do homem de Descartes, e exclama: "também eu sou filósofo..."Rousseau, indo visitar Diderot, que se encontrava prisioneiro em Vincennes, num dia de verão de 1749, durante o caminho lê no Mercure de France a notícia do concurso sobre determinada questão, aberto pela Academia de Dijon, – e inopinadamente, apenas em face da solicitação de um assunto de torneio de eloqüência, Rousseau descobre ser Rousseau. Kant lê Hume, lê Rousseau, encontra a Revolução Francesa... De cada vez, é a mesma tomada de consciência profética, mediante a qual o pensador ascende da existência à essência. Semelhante revelação pode ser dom do acaso, todavia o acaso só favorece aqueles que disso são merecedores. O filósofo é aquele que, tendo chegado à essência, impõe-se a tarefa de regressar da essência à existência, fazendo da essência o sentido íntimo da existência. O fenômeno opera uma espécie de desnudez: desmascara, e ao mesmo tempo, mobiliza, as potências no Bosque adormecido. A conversão filosófica abre um como que acesso à eternidade; consagra a adoção do caráter inteligível, que resolve a crise transformando a vida"93. Todas estas citações são para explicar o que é a alétheia, primitivo nome da filosofia. Depois, como diz Maritain, "Pitágoras, observando que a sabedoria convém propriamente só a Deus, e desejando que não o chamassem de sábio, mas tão somente amigo ou desejoso da sabedoria, foi o primeiro que propôs o nome de Filosofia (... – amor da sabedoria)"94. Daí que "um filósofo é um homem humanamente sábio"95. Depois de sua alétheia, depois de suas intuições basilares, "Descartes começa a duvidar de tudo; é, desde esse momento, o homem «que marcha sozinho nas trevas», possuidor de um segredo que o separa do resto de seus semelhantes, o segredo da «ciência admirável» que lhe foi revelado na noite de novembro. É tal o poder de transfiguração desse segredo que, desde o momento em que o pressentiu, o moço Descartes, alistado como voluntário para a carreira das armas, deixa de se compreender, a um tempo admira-se e queixa-se de ser obrigado a meditar em pleno ambiente da estupidez militar (inter ignorantiam militarem), cônscio de aí não ter mais nada que fazer". E continua Gusdorf: "Kierkegaard e Nietzsche, querendo caracterizar esse momento, falaram também do «sismo» que faz vacilar em suas bases mais profundas o universo pessoal. Na verdade, trata-se de um sismo, de um abalo das certezas estabelecidas e das evidências do senso comum, que desfaz o equilíbrio da vida pessoal. Para de tal nos convencermos, basta salientar que Descartes, depois de tomar a decisão, formula uma moral provisória para seu uso pessoal. Espinosa faz outro tanto, na Reforma do entendimento, traçando para si, anteriormente a toda investigação teórica, uma higiene física e até mesmo monetária, a fim de mostrar que a reforma visada não se circunscreve ao domínio das idéias, mas implica a "instituição de vida nova". A pessoa deslocada, enquanto não encontra a fórmula de concórdia que consagre a reorganização de sua vida espiritual, deve retornar ao seu lugar, promulgando um estatuto provisório para uma existência de ora em diante inadaptada e, por assim dizer, fora do prumo num universo destituído de sentido" 96. 91

Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 43 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 44 93 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 44 94 Jacques Maritain, Introdução Geral à Filosofia, 19 95 Jacques Maritain, Introdução Geral à Filosofia, 20 96 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 45 92


62 Tendo em vista quanto aqui se disse, a tarefa, do selvagem ao filósofo, consiste em justificar o mundo o qual se mostra mau, invertido no negativo, onde a Vida que se mostra egoísta... através de todos os entes vivos, dá a palma da vitória para o forte e/ou astuto, tudo isto, em face da justiça de Deus (teodicéia). Por isto é que a Maçonaria está certa ao construir o ternário declarando: "Desde que o selvagem percebe que não 1 – EXISTE POR SI MESMO 2 – INTERROGA A NATUREZA 3 – FAZ RENDER... CULTO A UM ENTE SUPREMO... Eis o triângulo: HOMEM MUNDO DEUS Estes três elementos são indispensáveis à construção de uma filosofia. Deus é uma intuição, e intuição não se define por ser transintelectual da mesma natureza dos postulados. Deus é infinito, e o infinito não tem boca para articular palavras. Quem é que fala na revelação? Quem falou à intuição de Moisés? à de Buda? à de Zoroastro?, à de Lao-Tse? Digamos que foi um anjo: e quem falou ao anjo?, ao arcanjo?, ao serafim, que é o mais alto na hierarquia!? A linguagem de Deus é a linguagem do ser, linguagem muda, mas escrita no livro da Natureza. Essa linguagem é idêntica a de uma viga de cimento armado que estivesse como que dizendo para o engenheiro construtor: "Considerando a grossura e a disposição dos ferros com que me armaram; considerando a carga que vou suportar, é certo que vou romper-me e o edifício virá abaixo". Essa é a linguagem do ser para aquele que, como o engenheiro da viga, a pode entender; essa, a intuição que consiste em ver a situação de um lance de olhos. Essa é a inteligibilidade das coisas, inteligibilidade que vem de inteligência de inter e legere – ler ou apanhar entre as coisas, o nexo. Como é que Deus falava ao salmista Davi? Di-lo o próprio Davi: "Os Céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras de suas mãos" (Sl 18,1). A isto escreve Vieira: "O mais antigo pregador que houve no mundo foi o céu: (...). Suposto que o céu é pregador, deve de ter sermões e deve de ter palavras"97. Eis a linguagem dos seres-das-coisas pela qual esses seres falam à intuição do homem. A intuição é a comunicação dos objetos a nós, na linguagem muda, que se nos mostra como uma situação, como, por exemplo, a cerca do quintal, a viga de cimento, os céus de Davi. Esta linguagem do ser é entendida em todos os níveis, como diz o texto maçônico, do selvagem ao filósofo, tal qual o sermão que nos prega os céus, no dizer de Vieira: "De maneira que o rústico e o navegante, que não sabem ler nem escrever, entendem as estrelas; e o matemático, que tem lido quantos escreveram, não alcança a entender quanto nelas há"98. Davi intuía Deus olhando para o Mundo, e mundo quer dizer puro, porque é aí que está o livro de texto escrito na linguagem do Ser. Os três elementos persistem sempre, são irredutíveis entre si, e nenhum deles pode ser alienado: Davi, o Mundo e Deus. Davi não é o mundo; é pessoa. O mundo não é Davi, nem é Deus; é Objeto, é plenitude da Coisa. Deus não é Davi, nem é o Mundo; ele é a plenitude da Pessoa, o Eu absoluto, falando como Fichte. De um lado está a pessoa, quer seja ela um selvagem, quer seja um filósofo; esta pessoa é o sujeito, o agente, o ativo, o que não pode deixar de agir porque a Vida é Ação. Do outro lado, em oposição à pessoa, está o Mundo, ao perto, ao longe, que é o objeto, o paciente da ação, o que sofre a atuação promovida pelo eu-sujeito-agente. O primeiro modo de atuar sobe o Mundo é o reflexivo, e consiste em observá-lo. Nesta contemplação do Mundo, nós o enxergamos de duas maneiras que são: ao longe e em grande, e ao perto e em pequeno. Ao longe e em grande é a 97 98

Vieira, Sermões, 1, 60-61 Vieira, Sermões, 1, 62


63 visão do salmista que canta: "Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras de suas mãos" (Sl 19,1). Olhando o mundo ao perto, em miúdo, deparamo-nos com a Vida que é Egoísmo, dado que cada ente biológico é um egoísta. Aí impera a força, a astúcia, a rapina, a violência, dores e angústias, tragédias e mortes. Por causa das dores do mundo (Schopenhauer até escreveu um livro com este título), desde sempre houve uma animosidade contra ele, mundo, e Deus foi intuído como anti-mundo. Daí que o reino de Deus não é deste mundo conforme o afirma, expressamente, Cristo (Jo 18, 36), e S. João não deixa por menos ao declarar que "o mundo todo está posto no maligno" (I Jo 5, 19), do que conclui S. Tiago: "quem é amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus" (Tgo 4, 4). Este é também o pensamento de Buda, no Oriente, e de Pitágoras, no Ocidente. E quando Heráclito, na Grécia, demonstrou que o mundo é um devir, um vir-a-ser, onde tudo tendo sido uma coisa está indo a ser outra que se transforma em outra, indefinidamente, Parmênides lhe contrapôs a doutrina do Ser, como essência pura, inespacial, intemporal, imutável, etc. Daqui nasceu o dualismo metafísico semelhante ao dualismo cristão, ao pitagórico, ao bramânico, ao budístico, ao zoroastrino, etc. O Topos Uranos de Platão ou Ilha dos Afortunados em nada se difere (e já o demonstramos no livro "Grandes Pontífices") do Céu dos bemaventurados cristãos. As revelações, assim como as filosofias intuíram Deus como Criador de um Mundo, verdadeiramente Mundo que quer dizer puro, Mundo esse, celeste, avesso deste nosso que é imundo, impuro, referto de caducidade, de aflições, de angústias, de dores, de mortes. Deus aparece, então, como o reverso da Vida-na-terra, sendo esta egoísta por motivo duma inversão que ocorreu no empíreo, quando a terça parte dos Espíritos celestes, inverteram o impulso amoroso no seu contrário impulso egoístico. Esta queda está na raiz de todas as religiões e mitos, como sendo a única maneira de explicar a existência da dor e do mal em nosso universo. Como a intuição de Deus se revela como o avesso do espetáculo que nos apresenta a Vida-na-Terra, dessa intuição de Deus nasceu a MORAL sobre que se ergue e se edifica a CIVILIZAÇÃO. Por isto é que CIVILIZAÇÃO é o mesmo que DESANIMALIZAÇÃO, que DOMÍNIO DO HOMEM SOBRE A BESTA que é o mesmo que SANTIFICAÇÃO. Qual é, pois, o objetivo da CIVILIZAÇÃO? Diga-o Toynbee: "Mas se houve alguns raros homens ou mulheres transfigurados, nunca sucedeu tal coisa com uma sociedade civilizada. A civilização, tal como a conhecemos, é um movimento mas não é uma condição, é uma viagem mas não é um porto. Nenhuma civilização conhecida chegou a atingir o OBJETIVO da civilização. Nunca houve uma comunidade de SANTOS sobre a Terra"99. Os destaques e versais são nossos.

XV - O que é o Espírito ? O homem possui dois saberes: um que lhe é ofertado pelo mundo, e que ele recebe desde o berço, sobretudo que lhe vem com a linguagem. A primeira oferta que temos do mundo não nos vem diretamente da visão dele, mas, por via social da linguagem. Platão chamava doxa, a este saber que não procuramos e que, no entanto, nos assalta a todos os momentos e nos invade, nos penetra formando nosso primeiro conhecimento. O outro saber é aquele que procuramos, e que nasce ao perguntarmos: o que é isto? O querer saber o que é isto, leva-nos à segunda classe de saber a qual, porque se opõe à primeira, se chama para-doxa, donde nasceu o vocábulo paradoxo. O paradoxo, nascido por oposição à doxa, Platão chama de epistéme que é a ciência, ou seja, um saber que procuramos. 99

Arnold J. Toynbee, A Civilização Posta à Prova, 57


64 Ora bem. Quando nós nos iniciamos na Maçonaria, o Orador nos lê a Declaração de Princípios, existente como preâmbulo da Constituição, após o que se nos pergunta se estamos dispostos e em condições de cumprir esses princípios, ao que respondemos: sim. E nessa declaração está que a Maçonaria admite a prevalência do espírito sobre a matéria. Assim, o espiritualista admite a prevalência do espírito sobre a matéria, no passo que, o materialista, em oposição, assenta que a matéria é primaz na ordem das coisas. A doxa, ou a epistéme estaria, aqui, com quem? Seria que o espiritualista está com a doxa, com a opinião, e que o materialista deteria a recíproca, a epistéme que é a ciência? Suponhamos que um profano, na hora de ser iniciado, afirmasse, não a prevalência, mas a EQUIVALÊNCIA, entre o espírito e a matéria; neste caso, como procederia o Venerável Mestre conduzindo a iniciação? Vamos discutir isto, tendo em vista que "a Maçonaria é uma Instituição essencialmente filosófica," e, ipso facto, ela se ocupa da "investigação constante da verdade". Como todos os maçons admitem a prevalência do espírito sobre a matéria, então, vale perguntar-lhes: o que é o espírito? Quando um materialista sustenta que o espírito resulta da matéria, que primeiro está o cérebro, e, depois, o pensamento, o espiritualista reage com todas as forças, afirmando a primazia do espírito sobre a matéria. Porém, se o espírito é primaz, na ordem das coisas, então a matéria procede do espírito? Se, todavia, dissermos que a matéria é independente, e existe por si mesma desde toda a eternidade, sendo separada de Deus, e estranha a ele, então ela é uma forma de antiDeus, dado que se opõe ao espírito, assente que "Deus é espírito" (Jo 4, 24), de certo, diferente dos demais espíritos, porque estes podem mostrar-se como bons e como maus. Se os espíritos bons acham sua oposição, sua contraditória, sua negação nos espíritos imundos, impuros, perversos, malfazejos, dos quais, não menos que Cristo faz inúmeras referências, em que consiste a primazia do espiritual sobre o material? Haveria, então, um Deus que é espírito, e um anti-Deus que é matéria, oposta e negativa dele, não sendo ele, logo, a origem de tudo o quanto existe? E a luz que era no princípio, acaso não veio de Deus? E a luz não é energia que pode tornar-se matéria? Já Vieira, discursando sobre a dificuldade que consiste em Deus ter criado a luz ao dia primeiro, e o Sol, ao dia quarto, assenta, com São Tomás, que o Sol nasceu da sua luz. Mas o Sol é matéria; logo, a matéria nasceu da luz. Por conseguinte, se Deus criou a luz, ipso facto, criou também a matéria..., donde se segue que ela não é estranha a Deus... como entendia Aristóteles cujo mais insigne discípulo foi São Tomás. Sendo que Deus é o que criou a matéria, não pode ela ser má, que, se o fosse, sê-lo-ia também seu Criador. Em que, logo, se baseia a tão disputada primazia do espírito sobre a matéria, se esta, tal qual o espírito, procedeu de Deus? Mais: Quando Deus criou a luz, tirou-a do que? Do nada, diz Santo Agostinho. Se do nada, ela é nada, tenha o aspecto que tiver, porque tudo o que existe é seu aspecto anterior modificado. Acaso, então, o Universo é nada? acaso somos nada?, não indo nós e o Universo além de pura ilusão fósmea? Acaso, logo, Deus é um Grande Mágico que, em estalando o dedo, fez surgir esta enorme massa de angústias, de sofrimentos?, no dizer de Schopenhauer? Todavia, se, como disse o próprio Deus, na alegoria bíblica, "a luz era boa" (Gên 1, 4), e não podia ser má, porque procedeu Dele, então, a matéria, nascida dessa mesma luz que é boa, também não pode ser má. E não o é, de fato, pois, prosseguindo Deus na gênese das coisas todas feitas de matéria, foi acrescentando que tudo, mares, terras, ervas, árvores frutíferas, luminares (Sol e Lua), répteis, demais viventes, era bom. E os místicos de todos os matizes concordam com a bondade das coisas exceto a parte chamada "povos da Bíblia" no dizer de Maomé, que acham que tudo se corrompeu com o pecado de Adão, embora, esses mesmos povos da Bíblia concordem que o pecado vem da parte do espírito, e não, da matéria, do corpo. Isto deu o que fazer a Santo Agostinho que argumentava: se a


65 alma não se transmite ao filho, e sim, só o corpo; e se o pecado original está na alma, como este pecado original da alma do pai se transfere ao filho? Como todo fautor de religião é um filósofo, Moisés meditou muito, nos campos de Madiã, ao tempo em que apascentava o rebanho de Jetro, como foi a origem das coisas. Antes dele, em Mileto, aí pelo sétimo e sexto século antes de Cristo, já se perguntava: qual é a substância primacial, fundamental, primária, na ordem das coisas? Para Tales era a água, para Anaximandro era o apeiron, coisa indefinida, nem ar, nem água, nem terra, nem fogo, mas os princípios genitais de tudo; para Anaxímenes era o ar; para Heráclito era o fogo; para Empédocles eram os quatro elementos juntos, ar, água, terra e fogo. Estes quatro elementos estiveram presentes na física (natureza) de Aristóteles, venceram toda a Idade Média, só vindo a cair nos começos da Renascença. Fosse Moisés miletano em vez de egípcio, quanto à cultura, ele passaria a pertencer ao elenco de filósofos de Mileto com sua luz que era no princípio. Contudo, Moisés tira esta sua luz primordial de Akhenaten o qual, segundo Charles F. Potter, foi "o primeiro pacifista, o príncipe realista, o primeiro monoteísta, o primeiro democrata, o primeiro herege, o primeiro internacionalista, o primeiro humanista e a primeira pessoa que tentou fundar uma religião"100. Não é o Sol que se devia adorar, e sim, um poder oculto que se esconde no Sol, e que, através dele se derrama pela natureza criando tudo, seja sem vida, seja vivente. Assim, "Akhenaten parece ter tido uma vaga concepção do que Bergson veio a chamar «élan vital», ou «impulso vital»”101. Esta energia vital procedente do Sol era representada como raios vindo dele, cada raio terminado em pequeninas mãos, algumas das quais segurando o ankh, símbolo da vida – um oval preso à letra T. «O ankh fora tomado de muitas religiões, e também se encontra na arte cristã, como a cruz ansata, ou cruz de ansa. Originariamente, sem dúvida, teve ela significação fálica»" 102. Este DeusLuz-Vida de Akhenaten, aparece na sarça ardente de Moisés, no Deus-Vivo, até que São João declara que Deus é luz (I Jo 1, 5) e que Deus é amor (I Jo 4, 8). Vimos, já, que nosso primeiro conhecimento deste mundo, após nascidos, nos vem do contorno social, e que nossa primeira tomada de consciência do universo se faz ao mesmo tempo em que dominamos a linguagem. A este conhecimento que nos vem do mundo à mão, ao mesmo tempo que do contorno social, por meio da linguagem, chamava Platão de doxa que quer dizer opinião, em oposição à qual o filósofo põe a para-doxa, donde paradoxo, que é a ciência ou epistéme. Este é o motivo de dizer Ortega que a filosofia é um xeque-mate que se dá à verdade estabelecida, e começa desde o momento em que pomos, como objetos de meditação todas as verdades que nos foram impostas desde o berço. Por causa disto, o filósofo é o homem da questão, que questiona tudo, não aceitando nada, sem que antes tenha passado pelo crivo da razão. É deste modo que, naturalmente, nasce a dialética que não é outra coisa senão o ato de seguir pensando. E seguir pensando é discutir conosco mesmo. Primeiro enunciamos um pensamento, e o desenvolvemos até certo ponto. Depois negamos tudo por meio de uma proposição contrária, que também desenvolvemos. Após isto, fazemos a síntese entre os argumentos contraditórios os quais, por isto mesmo, se chamam tese e antítese. E deste modo, propondo uma tese e logo sua antítese e depois a síntese, nosso pensamento caminha. Eis, então, que a dialética se define também como a arte de raciocinar. Apliquemos isto: Quando a Maçonaria põe no cabeçalho de sua Constituição que ela admite a "prevalência do espírito sobre a matéria"; e o Venerável Mestre pergunta ao candidato se ele "está de acordo e em condições de cumprir esses princípios", e ele responde que sim, podemos argumentar: para se estar de acordo ou contra alguma coisa, é preciso conhecê-la; logo o candidato conhece ou sabe o que é o espírito e o que é a matéria. Mas esse conhecimento que ele tem do espírito é opinião?, ou é ciência? É doxa?, ou é epistéme? Vejamos: 100

Charles F. Potter, História das Religiões, 15 Charles F. Potter, História das Religiões, 26 102 Charles F. Potter, História das Religiões, 26 101


66 Georges Gusdorf, em seu "Tratado de Metafísica" afirma que o teólogo é o primo irmão do filósofo, e que os fautores de religiões são os primeiros filósofos. Por que? A razão disto está em que a filosofia se define como sendo uma visão do mundo, da qual se infere uma forma de conduta. Quer dizer: todos gostaríamos muito de saber como é o mundo, como ele funciona, para podermos nos orientar e nos ajustar a ele de uma vez para sempre. O que difere o filósofo do fautor de uma religião, é o modo de expressar-se, o modo de expor sua doutrina. Como é que havia Moisés de dar sua alétheia 103 cujo relâmpago lhe veio quando ainda estava no Egito, e sobre a qual foi meditar, retirando, nos campos de Mediã, enquanto apascentava os rebanhos de Jetro, como havia de dar esta sua filosofia, senão sob a forma de mandamentos e de preceitos de toda espécie, fosse para regular a conduta moral, fosse para guiar os costumes? Como é que ele, o príncipe genial, educado nas universidades do Nilo com o melhores mestres do mundo, como é que ele havia de acabar, por exemplo, com o péssimo e anti-higiênico costume dos soldados hebreus, de andarem defecando por toda parte? Naquele tempo não se sabia nada de micróbios, e é por isto que eles não aparecem no Gênese; contudo, Moisés suspeitava haver doença advinda após se pisar em fezes humanas; e é, então que estabelece este preceito: Juntamente com suas armas, cada soldado terá de levar uma pazinha ou pausinho para com eles fazer um buraco no chão, fora do arraial, em lugar designado, e dentro dele defecar, feito o que, cobrirá tudo com terra. Não suceda que, vindo o Senhor visitar o acampamento, se depare com alguma sujeira, fique irritado, e desampare o tal que a fez, para que ele morra. (Deut 23,13). Ninguém repara que quando Moisés perguntou a Deus que lhe falava do meio da sarça, em chamas quem era, a resposta EU SOU O QUE SOU (Ex 3,14) é próprio para um filósofo que se tenha interrogado: QUEM É O SER? – Dize ao povo meu: o QUE É me enviou. O que é é oposto do que não é. Examinando as coisas, verificamos que umas são em outras, e estas, em outras. Por fim, tem que haver aquilo que não é em outro, para ser... em si mesmo. Esse é o SER que os filósofos procuram, e essa busca dura já vinte e cinco séculos ou mais. Falando São Paulo aos gregos, no Areópago, sustenta que Deus não está longe de nós, mas perto, uma vez que "nele vivemos, e nos movemos, e existimos"(Atos l7, 28). Este Ser continente incontido, isto é, que contém em si tudo, e não é abarcado por nada, foi havido como sendo o Espaço. Assim também, para Espinosa, tal como para São Paulo, "tudo o que é, é em Deus". Deus é o lugar em que se inserem as coisas, segundo Aristóteles. Tal, também, pensava Campanella. Para os Neoplatônicos, o espaço era o próprio Deus. Kant supunha haver três intuições puras prioritárias (a prioris) que eram, espaço, tempo e causalidade, e que, sobre estas três, ou a partir delas, todos os processos intelectuais se elaboravam. Porém, o espaço objetivo tinha que ser infinito, e, sendo-o, estaria cheio duma matéria também infinita, pelo que essa matéria infinita se confundiria com Deus, donde se tira que Deus é espacial e material. Esta conclusão, embora repugnasse a Kant, estava certa, sendo errado supor que a matéria é vil, imunda, alheia à divindade. Para Moisés não o era; se o fosse, ele a não faria nascer da luz, pondo ainda na fala de Deus, que tudo o quanto ia criando de material, era bom. A vileza da matéria tem origem primeiro oriental, e, depois, grega, nascendo aqui do dualismo metafésico que estabelecia ser este nosso mundo, o mundo do não-ser. A própria palavra mundo significa puro, donde vem que imundo quer dizer impuro. São Francisco de Assis não via incompatibilidade entre si e seu corpo, e chamava a este de irmão corpo; e se o corpo era irmão, não podia ser considerado como inimigo. Temos de lutar contra nossa animalidade grosseira cuja baixeza pode chegar ao subanimal, superando, em muito, a ferocidade da besta mais feroz, a luxúria do caprídeo mais lascivo, a sordidez e a torpeza do animal mais sórdido e torpe. É, sobretudo, contra esse 103

Iluminação interior, intuitiva, subtânea, pela qual a verdade é revelada num único ato da consciência, significando descoberta, revelação, desnudamento, apocalipse. Este primitivo e belo termo grego foi substituído por Pitágoras pela palavra filosofia.


67 subanimalismo que se deve lutar, e, não, contra o corpo que, uma vez dignificado pela virtude, passa a ser o "santuário do Espírito Santo" (I Cor 6, 19), com o qual, portanto, podemos glorificar a Deus (I Cor 6, 20); corpo que é o campo de semeadura em animal, para a colheita em espiritual (I Cor 15, 40); corpo corruptível que cumpre ser revestido de incorruptibilidade (I Cor 15, 53). São Paulo não diz que "há corpos celestes e corpos terrestres"? (I Cor 15, 40). Não afirma haver corpo corruptível, e corpo incorruptível? Desde que há corpo há espaço com três dimensões, e se esse espaço não está vazio, se não é um oco, está cheio do quê?, senão de uma matéria espiritual (?!) incorruptível? O espiritual, portanto, a seu modo, também, é material, dado que os espíritos têm corpos, e não há corpos tridimensionais (espaço) sem matéria. E é dessa matéria, presente nos corpos dos espíritos, que é feito o Mundo Celeste que Cristo dizia chamar-se, também, a "Casa do Pai", onde há muitas moradas, nas quais ele prometia ir preparar os lugares para os seus (Jo 14, 2). Não há, logo, opor o espiritualismo ao materialismo, porque o próprio espiritualismo, também, a seu modo, é materialista, visto como existe uma matéria incorruptível que enche a forma corporal dos espíritos, habitantes, eles, de um mundo espiritual-material, ou, se se preferir, material-espiritual. Tudo o que existe (e existir vem de ex-sistere104 que significa estar por fora, estar no tempo) possui matéria, e se não possuir matéria de nenhuma espécie, simplesmente não existe. É o caso dos entes de razão, das essências, dos objetos matemáticos, dos conceitos, os quais SÃO, mas não EXISTEM. Não há um tempo, por exemplo, em que o triângulo não era, e depois passou a ser. Ele é, desde sempre, podendo ser construído com a matéria (papel e lápis), e é só quando passa a existir objetivamente. Antes disso ele é um ente de razão, um objeto ideal. Por isto, tudo o que existe, existe por sua matéria. Se o espírito não possuísse matéria alguma, ele seria um ente de razão, que só existe na nossa mente durante o transcurso do pensamento rememorativo. Se nossos mortos não tivessem um outro corpo de matéria, de matéria incorruptível, no dizer de São Paulo, eles seriam simples memória em nossa mente, donde se segue que "morreu, acabou"! O espiritualista se enfurece contra o materialista? Saiba ele, então, que, sem a matéria, também "morreu, acabou"! Mas, o que é a matéria? Fale Ortega: "Quando Aristóteles se encontra com que tudo está «feito de alguma coisa» como cadeiras e mesas e portas estão feitas de madeira, chamará a esse ente de que (ó éx oy) estão feitas todas as coisas, a «madeira» (hylé) – entenda-se, a «madeira por excelência, a última e universal madeira». Ou «matéria». Nossa palavra matéria não é senão a madeira metaforizada"105. Matéria que é o mesmo que substância – de sub e estar (substans) – é a que está de baixo da essência ideal; matéria que é o mesmo que conteúdo o qual enche a forma ideal e a torna substanciosa ou substantivamente real. A essência é aquilo que a coisa é; a matéria é aquilo de que a coisa é feita. Quando perguntamos: o que é isto? A resposta é a essência ou inteligibilidade da coisa: isto é uma roda; isto é uma estante. Quando perguntamos: de que é feito isto?, queremos saber de que matéria ou substância é feita a coisa. Esta roda é de pedra; esta estante é de ferro. Se tudo o que existe, sem nenhuma exceção, é constituído por um par de opostos e complementares, opostos que são essência e substância, forma e conteúdo, como será possível dar primazia a uma destas partes, em detrimento da outra? Em face disto, perguntamos: o que é o espírito? É uma entidade viva, atuante, pensante, capaz de sentimentos e emoções, privada do seu corpo de matéria mais densa. De que é feito o espírito? Ele é constituído por uma substância ou matéria incorruptível, como o afirma São Paulo, matéria essa que lhe enche a forma corporal. 104

Assim é como está na obra "Filosofia Universal"de Huberto Rohden, Vol. I, pág. 192. Todavia, J. Mesquita de Carvalho, em seu "Dicionário Prático da Língua Nacional", dá, como raiz do vocábulo existir, IST ou ST, donde, exISTere. 105 Ortega y Gasset, Origem e Epílogo da Filosofia, 208-209


68 Sendo que, como estamos vendo, até o espírito tem que possuir sua parte substancial, material, sem a qual ele não existe, em realidade, como é possível que a tese-essência, que a tese-alma e a antítese-substância NÃO SEJAM EQUIVALENTES na síntese-da-entidade que essas oposições formam? Se o materialismo não pode ser vencido pelo espiritualismo, porque este também, a seu modo, é materialista, dado que, nele, também há a matéria que dá existência às formas espirituais, e também ao mundo celeste no qual essas formas habitam, o jeito não é procurar vencê-lo, mas, superá-lo. Esta é uma das SÍNTESES que o nosso tempo nos impõe, consistindo ela, aliada às demais sínteses, à FILOSOFIA NOVA, exposta na obra "Grandes Pontífices". Vejamos como fazer esta síntese: Os filósofos de Mileto, no VI século a. C., se propunham a questão de qual seria a SUBSTÂNCIA primacial, fundamental, primeira na ordem das coisas. Para Tales era a água; para Anaximandro, o apeiron, uma substância indefinida; para Empédocles eram os quatro elementos: ar, água, terra e fogo. Para Heráclito era o fogo. Se houvéramos de incluir Moisés e São João entre os filósofos substancialistas, teríamos isto: para Moisés, a substância primária era a Luz, e, para São João, igualmente, além de ser a Luz ("Deus é Luz"– I Jo 1, 5), Deus, também, é o Amor ("Deus é Amor" – I Jo 4, 8). O primeiro ato do Criador, para Moisés, foi criar a luz ao primeiro dia, e só no quarto dia é que foram criados o Sol, a Lua e as estrelas. De onde, pois, vinha a luz primeira? Faz trezentos e trinta e oito anos que Vieira levanta a questão de o Sol ter sido criado quatro dias após surgir a sua luz. Escreve ele: "São Tomás, e com ele o sentir mais comum dos teólogos, resolve que a luz que Deus criou o primeiro dia, foi a mesma luz de que formou o sol ao dia quarto. (...) No primeiro dia foi criado o sol informe; no quarto dia foi criado o sol formado. São os termos de que usa São Tomás. No primeiro dia foi criado o sol informe, porque foi criado em forma de luz; no quarto dia foi criado o sol formado, porque foi criado em forma de sol"106. De maneira que, conforme o deduz São Tomás, Moisés deixara implícito, antes de a ciência moderna o demonstrar, que a energia se transforma em matéria, e que, portanto, não há matéria, no Sol nem abaixo dele, que não houvesse sido luz no princípio. Ora, se a luz é a que era no princípio, e "Deus é Luz", como o afirma São João, podemos substituir, então, no texto do Evangelho de São João a palavra Verbo pela palavra Luz, e teremos: "NO PRINCÍPIO era a Luz, e a Luz estava com Deus, e a Luz era Deus. Ela estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ela, e sem ela nada do que foi feito se fez" (Jo I, 1 a 3). Temos dado, então, o primeiro passo ao estabelecer: o Sol nasceu da sua luz; ou então: a luz se fez matéria; ou ainda: matéria e energia são termos reversíveis entre si, e o fato desta reversão aterroriza o mundo hoje – a bomba atômica! Dando-se à seta o significado de "vai para", temos a primeira fórmula: MATÉRIA

ENERGIA

O segundo passo é saber que as energias são transformáveis umas nas outras. Todavia, nestas transformações, as energias se degradam dinamicamente, isto é, vão-se tornando energias pobres do ponto de vista de produzir trabalho mecânico. Ora, desde que matéria e energia são apenas modos de a substância manifestar-se, se a matéria se conserva, sendo indestrutível, ipso facto, a energia se conserva e é indestrutível. Como se não bastasse esta conclusão, Lavoisier estabeleceu que "na natureza nada se cria e nada se perde, mas tudo se transforma". Na química, este princípio diz: o peso dos reagentes é igual ao peso dos produtos da reação, mais ou menos a energia, ou produzida, ou consumida, conforme se a reação for exotérmica ou endotérmica. Na mecânica, a energia consumida é igual ao trabalho produzido mais as perdas em calorias, ou então, 106

Vieira, Sermões, 1, 182 – Ed. das Américas


69 em vez de trabalho que todo ele é atrito que desenvolve calor, a energia consumida é igual a energia produzida de nova espécie, mais as perdas em calor, pelo atrito, e mais o coeficiente de degradação. Então, temos isto: as energias são transformáveis umas nas outras; e nessas transformações elas se degradam; e embora se degradem, conservam-se constantes (princípio de conservação da energia). Se do nada não sai nada, e o que existe, vem de transformações, do quê, de que algo anterior nasceu a energia vital?, ou seja: de que energia antecedente surgiu a energia vital conseqüente? Antes não havia vida no universo, e depois ela passou a existir; do quê? Não aceitamos a tese de muitos, de que a filosofia seja a síntese das ciências, do mesmo modo que não se pode dizer que a inteligência resulta dos sentidos. Embora não haja inteligência sem os sentidos, ela é o centro de elaboração das imagens e impressões recebidas através deles. O que criou os sentidos foi a VIDA; e, ao ir criando os sentidos, como se pode verificar analisando os estágios por que ela passou, seja num embrião, seja na escala zoológica, concomitantemente, foi criando também o centro de elaboração, o centro nervoso que, mais tarde, se mostrou ser o cérebro no qual tem sede a inteligência. Esta é a que elabora os dados vindos dos sentidos, mas ela não é o produto, nem a síntese destes. Os filósofos realistas diziam: "nada há na inteligência que não tenha passado pelos sentidos". A isto, Kant acrescenta: "menos a própria inteligência". De igual modo, a filosofia tende a resumir-se nesta sentença paralela ao enunciado anterior kantiano: Nada haverá na filosofia que não tenha vindo das ciências, menos a própria filosofia. Como a filosofia é o centro de elaboração dos dados recebidos das ciências, tal qual a inteligência o é das sensações, podemos dizer: as informações sensoriais, estão para a inteligência, assim como as teses finais das ciências estão para a filosofia. São tão necessárias as ciências à filosofia, como as impressões sensoriais à inteligência, que, quando ainda não havia ciências como hoje, a filosofia supunha verdades científicas em suas hipóteses. Estas hipóteses científicas, forjadas pela filosofia, foram os pontos de partida das ciências. Agora, cumpre à filosofia organizar as teses vindas das ciências, construindo suas próprias hipóteses filosóficas. Fique, pois, bem claro que a filosofia é uma instância superior de elaboração de dados científicos, do mesmo modo que, paralelamente, os sentidos produzem as imagens sobre as quais cavalga a inteligência. A diferença entre um macaco arbóreo e um homem é que, neste, existe um prodigioso centro de elaboração (inteligência) o qual, no macaco, se mostra embrionário. Quanto aos sentidos, o homem pode até mostrar-se em desvantagem em relação a certos animais. Conseqüentemente, a filosofia continua tendo seu campo próprio, e é a ela que todas as ciências hão de recorrer ao assentar seus primeiros princípios e seus postulados, uns e outros indemonstráveis. Se tais primeiros princípios e postulados são indemonstráveis, e, no entanto, eles fundamentam as ciências, já se vê que eles não pertencem à esfera das ciências, e, sim, a da filosofia. Haja vista, por exemplo, que as ciências não podem fundamentar a MORAL; e sem moral não há civilização, e sem civilização não há ciências... As ciências, portanto, não vão além de suas sentenças finais que são generalizações. Estas generalizações são a matéria bruta da filosofia. Vejamos e utilizemos algumas destas sentenças: 1 - A energia-substância107 do Universo é constante, dado que "na natureza nada se cria e nada se perde, mas tudo se transforma" (Lavoisier). Em decorrência disto, temos que tudo o que existe é o seu aspecto anterior modificado. 2 - As energias transformam-se umas em outras, e, ao se transformarem, elas se degradam dinamicamente, ou seja, vão perdendo a capacidade de produzir trabalho mecânico. Estes dois enunciados produzem uma contradição, um paradoxo... que a ciência não resolveu, que é: 3 - A energia-substância do Universo é constante, e as energias se degradam. 107

Termo criado por Einstein para ser o denominador comum entre todas as matérias e tidas as energias do Universo.


70 Para onde vai, então, a energia degradada? Em que se transforma ela? Por um lado, as energias se conservam, isto é, não se perdem; por outro, elas se degradam. Logo, a energia produzida pela desintegração atômica, não se torna mais, in natura, na matéria donde proveio. Em vez disto, ela toca por diante em seu processo de degradamento dinâmico, a cada transformação. Se a energia se transforma em matéria, e, depois, pela desintegração atômica, essa mesma matéria se transforma em energia, e esta energia provinda da desintegração atômica, se degrada, temos esta conclusão: o processo transformativo universal é irreversível. Logo, a primeira energia que vai para a matéria, não é igual a segunda energia, a que nasce da matéria; se o fosse, teríamos um circuito fechado, e estaria, aí, o "eterno retorno" de Heráclito-Nietzsche. Assim, fica resolvida a contradição, e solucionado o paradoxo da ciência existente entre seus dois princípios: o da "conservação da energia", e o da "degradação dinâmica". A solução consiste em alterar a fórmula PROVISÓRIA já exposta, só porque aceita por todos, que é: ENERGIA

MATÉRIA

pela outra, a da irreversibilidade do transformismo universal, exposta assim: ENERGIA

MATÉRIA

ENERGIA DEGRADADA

Eis o que faz a filosofia, elaborando sobre ou com os dados que a ciência lhe propicia com suas teses ou sentenças, tal qual faz a inteligência elaborando sobre ou com as impressões vindas do mundo através dos sentidos. Portanto, a "luz que era no princípio" de Moisés e de São João, não é a mesma luz que, vinda do Sol, move, agora, toda a máquina da VIDA no mundo. Se "todas as coisas foram feitas por ela (Luz), e sem ela nada do que foi feito se fez" (Jo 1, 3); do que surgiu a vida? Se do nada não sai nada, e tudo o que existe é algo anterior modificado, de que algo anterior surgiu a vida? Pois não pode ser de outra coisa, senão da energia degradada... a qual não podendo mais movimentar as maquinas mecânicas, passam a acionar as máquinas vivas. Eis isto, então, posto em fórmula: MATÉRIA

ENERGIA

ENERGIA DEGRADADA

VIDA

Qual será o passo seguinte? Ficou demonstrado que tudo o que existe é o seu estado anterior modificado. Ora, da vida nascem os sentimentos por um lado, e a consciência e o pensamento, por outro. Então, os pensamentos e os sentimentos são originados da energia Vital nascida das energias degradadas. Todavia, o mais alto e mais sublime sentimento é o amor. Logo, o amor é a energia-substância na sua forma suprema, além da qual não há mais subir. Sendo o amor o fim da escalada ascendente, sendo tanto mais alto quanto mais se sublima; sendo ele o fim da cadeia de transformações; não havendo o superamor nem o transamor, pelo que ele se torna o termo final, sem referência a nada mais acima de si; não havendo mais nada com que se relacionar, sem termo de relação cessa de ser relativo, tornando-se absoluto. Sendo o amor absoluto, ele fica Deus, donde dizer São João que "Deus é amor" (I Jo 4, 8). Conseqüentemente: MATÉRIA

ENERGIA

VIDA

SENTIMENTOS

AMOR


71 Acima, portanto, da grande síntese de Moisés, está a maior ainda, a mais que grande, a suprema síntese de São João, não sendo sem razão que ele é cognominado a Águia dos Apóstolos. Em conclusão do que vínhamos expondo, podemos repetir a pergunta fundamental da filosofia quando ela nascia, em Mileto, no VI século a. C.: "QUE SUBSTÂNCIA EXISTE?, primordial, primaz, na ordem das coisas? Substância que é em si mesma, e, não, em outra? Para Tales era a água; para Anaxímenes era o ar; para Heráclito era o fogo; para Empédocles eram os quatro elementos ar, água, terra e fogo. Saindo de Mileto agora: para Akhenaten primeiro, e depois, para Moisés, era a luz; para São João, além de ser também a luz, também era o amor. Atrás, no texto de São João, havíamos substituído Verbo por Luz. Agora, como ele afirma que "Deus é amor" (I Jo 4, 8), substituindo Verbo por Amor, teremos: "NO PRINCÍPIO era o Amor, e o Amor estava com Deus, e o Amor era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez" (Jo I, 1 a 3). Fechando o raciocínio numa conclusão monumental e última, da qual não há fugir, temos: aquela "matéria", aquela "energia-substância" que enche consigo o Espaço Infinito, constitui o que Espinosa chamava o Corpo de Deus; a SUBSTÂNCIA desse CORPO, é o Amor do qual tudo se fez, e para o qual tudo retorna, dado que ele é o ponto da circunferência onde os extremos se ligam, ou seja, é o Alfa e o Ômega; o Princípio e o Fim; o Primeiro e o Derradeiro. (Apoc 22, 13). Um homem, portanto, que dissesse de si mesmo que é materialista; como a matéria vem da energia, por enrolamento da onda em partículas, e estas tornam a ser energia, por desintegração atômica; se tal homem não for um retrógrado, passará a chamar-se a si mesmo de energista. Todavia, como as energias, em se transformando umas nas outras, vão-se degradando dinamicamente; como em se degradando, torna-se dinamicamente pobres; como, por isto, passam a ser outra coisa; assente que, na natureza, "nada se perde"... e "tudo se transforma"... donde se tira que a energia-substância do universo é constante, então, essa outra coisa saída da energia degradada, é a energia vital. Logo, o nosso homem que era antes materialista e, agora, energista, tem que passar a chamar-se vitalista. No entanto, a vida não é o fim; ela se sublima, no homem, em razão e sentimento ambos que se fundem na INTUIÇÃO do santo e do gênio. Os sentimentos ganham o topo da hierarquia, além do qual não há mais subir, quando chegam ao nível do amor. Este amor, como é o topo da hierarquia, não pode relacionar-se a nada mais acima de si, pelo que, não sendo relativo, é ABSOLUTO, e, sendo absoluto, é Deus. O nosso homem que era materialista, e se fez energista, e se passou a vitalista, e se tornou sentimentalista, é, agora, o que? O Amor, em grego, se chama Eros, donde vem que o nosso homem, se entendeu tudo, dirá, de si, que é erosista. Este será o homem do futuro, o que superou o materialismo, aceitando-o como primeiro degrau de sua auto-realização eterna. Não há, pois, vencer o materialismo, como cumpre fazer com um inimigo, mas, assimilá-lo, digeri-lo, superá-lo. É a revolução franciscana que implicita o seguinte: visto como nenhum espírito pode prescindir duma matéria, nem desvencilhar-se de um corpo, ainda que ele seja um Serafim, ainda que seja o próprio Deus ("Deus é espírito"- Jo 4, 24 e II Cor 3, 17), então, a matéria em si, não pode ser inimiga, mas, irmã, tal qual o é o corpo, donde se tira que o mal não está na matéria, senão na animalidade grosseira, no egoísmo fechado, na vilania, na imundicie. Isto que expomos, com base nos Evangelhos, tem pleno apoio em Platão, dado que o seu Topos Uranos coincide ipsis litteris com o Mundo Espiritual dos pensadores cristãos. Querendo, Platão, descrever o mundo ideal de Parmênides, que foi havido como sendo o mundo da realidade, que lhe saiu? Acaso, o Topos Uranos ficou, como Parmênides o exigia, um mundo fixo, imutável, intemporal, incausal, inespacial, etc., como o impõe os objetos ideais que são as formas arquétipas, com forte odor de geometria? Diz Platão que o Demiurgo (parelho ao Verbo) cria as almas na cratera. Criar é transformar algo em algo, e isto é o devir ou vir-a-ser heracliteano. Aí está o movimento do Demiurgo, o que implica tempo, e ainda o espaço em que ele se move, e a substância (matéria) que ele emprega na feitura das almas. Como a cratera é única para todas as almas, elas saem


72 indiferenciadas, semelhantes às bonecas prensadas numa fábrica; após isto, as almas são postas frente às formas imperecíveis ou arquétipos eternos. Outra vez os verbos de ação ou de movimento (tempo), e o espaço intermediando as almas e as formas arquetípicas. E por aí se vai, mostrando que o topos uranos, ou mundo celeste de Platão, em tudo se parece ao dos cristãos. Até a queda das almas existe, e é quando elas, segundo Platão, são postas nos vários planetas, com o fim de diversificar-se, pois, jamais, retornam ao estado de indiferenciação. Aí, nos planetas, elas se esquecem do que contemplaram no lugar celeste, e, através das reencarnações em corpos de matéria corruptível, elas vão-se recordando do prístino passado, ao mesmo tempo que adquirindo a sabedoria e a diferenciação. Assim, o topos uranos de Platão e o mundo celeste dos cristãos se eqüivalem, quanto a que um e outro é constituído de matéria a qual enche consigo um espaço próprio onde entes espirituais, feitos de corpos de matéria incorruptível, se movimentam. A salvação da alma, em Platão, se dá pela conquista da sabedoria, no passo que, para Cristo, a alma se salva quando se torna amorosa. Cada um, por seu modo, diz a mesma coisa, porque o amor é sábio, visto que não erra, e, pela mesma razão de não errar, a sabedoria é santa, donde vem que ser sábio é ser santo e vice-versa. Segundo Platão, portanto, as almas (espíritos) rompem o ciclo das reencarnações ao tornar-se sábias. Esta Sabedoria, em Platão, eqüivale ao Amor ou Eros que, como cristãos, nos cumpre a nós desenvolver. Tal, o substancialismo erosista que dominará o mundo do terceiro milênio em diante, o que não implica ser preciso, a ninguém, mudar de religião. CONCLUSÃO FINAL: considerando que matéria, energia, vida, pensamento (dinamismo mental), vontade, sentimento, afeto, amor, tudo é ENERGIA-SUBSTÂNCIA; considerando que nada existe que não seja feito dessa ENERGIA-SUBSTÂNCIA, e isto sem nenhuma exceção; considerando que um ESPÍRITO, qualquer que seja a sua hierarquia, e por fim o próprio DEUS, o que é mais, é constituído por ela, pela ENERGIA-SUBSTÂNCIA; considerando que essa ENERGIA-SUBSTÂNCIA, na sua expressão mais excelsa, é o AMOR, donde vem que Cristo põe esse AMOR como começo e fim deste nosso GRANDE CICLO CRIACIONAL ao dizer: "Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, o primeiro e o derradeiro" (Apoc 22, 13); perante todas estas considerações bem fundamentadas, pergunta-se: Que sentido tem afirmar a prevalência do espírito sobre a matéria? Ainda que espírito se traduza por alma, ainda assim, pode haver alguma forma objetiva sem sua substância?, ou alma sem seu corpo? Não será, então, que se deva fizer que são EQUIVALENTES corpo e alma, como sói ser a tese e a antítese, ambas, sempre, no mesmo nível hierárquico, por isto mesmo, da mesma importância, do mesmo valor? Eis aqui uma amostra do que tem a fazer a "Sublime Instituição", para que não seja letra morta sua "Declaração de Princípio", na qual afirma que é uma "Instituição essencialmente filosófica", e que, em decorrência disto, se ocupa da "Investigação constante da verdade"! Esta filosofia, aqui e alhures exposta, tinha que surgir no mundo, para norteá-lo na transição por que ele hoje passa, pois cumpre ao filósofo dar dignidade à palavra, aceitando a incumbência de ser o humilde instrumento pelo qual se cumpre a promessa que diz: "Eis que faço novas todas as coisas" (Apoc 21, 5).

XVI - Conflito de Gerações Sendo o homem, por essência, um animal cultural, visto que se rege por cultura, em vez de por instintos, como os outros animais, vale perguntar: como se dissemina a cultura entre os homens, e como ela se transmite de uma geração a outra? Pela EDUCAÇÃO. Disto se tira que


73 todo o contato humano é educativo, se ele promove o bem, a integração; ou deseducativo, se dele resulta a desintegração, o mal. A educação, pois, é o fenômeno da disseminação da cultura entre os duma geração, e da transmissão dessa mesma cultura de uma geração a outra. Os fenômenos, no entanto, grosso modo, podem ser físicos108 e humanos, havendo entre ambos esta diferença: os fenômenos físicos, isto é, da natureza, como a refração, a combustão, a locomoção, o movimento dos astros etc., são repetitivos, no passo que os fenômenos humanos são sucessivos. Os fenômenos econômicos, políticos, sociais, históricos, educativos etc., sucedem-se, no tempo, mas não se repetem. Como não há repetições, as previsões neste terreno são impossíveis. Neste campo, tudo são probabilidades e tendências. A educação, como vimos, é um fenômeno social que consiste na transmissão da cultura, sobretudo, de uma geração a outra; e como os fenômenos sociais não são repetitivos, a geração que recebe a cultura dos ancestrais, não a recebe exatamente como lhe é transmitida. Há variações, adaptações e mudanças neste recebimento, disto resultando o conflito entre as gerações. Logo, este conflito é um bem, se dele nascer o progresso, e um mal, se dele decorrer a decadência. O conflito não é, então, nem um bem nem um mal em si mesmo; ele apenas é a conseqüência de o fenômeno da educação, como humano que é, não ser repetitivo. Suponhamos que o fosse, como é o ensinamento de sobrevivência que, sobretudo, os mamíferos e as aves transmitem às suas crias. Sendo repetitivo, não apresentaria variações, nem mudanças, nem progresso, com o que não teríamos saído de primitivos antropóides. Então, a variação que produz o conflito é um bem? Pode não o ser. Quando uma civilização cai, isto ocorre, também, por causa das variações..., não num sentido de progresso social, mas, de embrutecimento, de decadência, qual o estamos vendo hoje. O "Diário de S. Paulo" em uma de suas edições de dezembro de 1971, publicou o seguinte, com o título de "ESSA MOCIDADE"... Posteriormente no jornal de 13 de outubro de 1982, o Estado de S. Paulo, republicou a mesma matéria. Ei-la: "Falando do conflito das gerações diante de uma associação de classe, o médico inglês Ronald Bibson começou sua conferência por quatro citações. Primeira – "Nossa juventude adora o luxo, é mal educada, caçoa da autoridade e não tem o menor respeito pelos mais velhos. Nossos filhos hoje são verdadeiros tiranos. Eles não se levantam quando uma pessoa idosa entra, respondem a seus pais e são simplesmente maus". Segunda – "Não tenho mais nenhuma esperança no futuro de nosso país se a juventude de hoje tomar o poder amanhã, porque essa juventude é insuportável, desenfreada, simplesmente horrível". Terceira – "Nosso mundo atingiu seu ponto crítico. Os filhos não ouvem mais seus pais. O fim do mundo não pode estar muito longe". Quarta – "Essa juventude está estragada até o fundo do coração. Os jovens são malfeitores e preguiçosos. Eles jamais serão como a juventude de antigamente. A juventude de hoje não será capaz de manter nossa cultura". "Somente após ter lido as quatro citações, todas aprovadas pela assistência, foi que o conferencista revelou a origem delas: A primeira é de Sócrates, 470-399 antes de Jesus Cristo; a segunda, de Hesíodo, 720 antes de J. C.; a terceira é de um sacerdote egípcio que viveu no ano 2.000 antes de J. C.; e a quarta, descoberta só recentemente sobre um vaso de argila, nas ruínas da Babilônia, tem mais de 4.000 anos de existência". Jacob Bazarian, num artigo intitulado "A rebelião da juventude", saído no Estado de S. Paulo do dia 13 de outubro de 1982, conta que houve uma mesa-redonda em 15/06/82, com a participação de diferentes especialistas, para estudar o problema enfocado sob o título de "Geração Abandonada", do jornalista Luiz Emediato e do psicólogo Jacob Goldberg. O resultado da mesaredonda é dado, como ficou dito, por Jacob Bazarian que transcreve as quatro citações do médico inglês Ronald Bibson. 108

A física, em sentido lato, abrange toda a natureza, esta que se opõe à metafísica que consiste na idealidade.


74 Bazarian começa assim: "Logo de início é necessário frisar que a chamada rebelião da juventude não é um problema especificamente nacional, brasileiro, mas universal. E, em segundo lugar, o fenômeno é tão velho quanto a sociedade humana". E conclui mais adiante: "Como se vê, a rebelião dos jovens é universal e tão velha quanto a sociedade humana. É necessário acrescentar que o fenômeno é periódico e aparece de modo mais agudo nas épocas de crises e mudanças sociais radicais. E, por fim, é passageira para cada geração no sentido de que a geração descontente e revoltosa acaba adaptando-se ou acomodando-se às exigências da sociedade". Se o fenômeno da rebelião dos jovens é periódica, "e aparece de modo mais agudo nas épocas de crises e mudanças sociais radicais", se há mudanças sociais radicais, como dizer que "a geração descontente e revoltosa acaba adaptando-se ou acomodando-se às exigências da sociedade"? Que sociedade? se esta se renova através dos jovens, e são estes os fautores de tais reformas sociais radicais, contra o conservantismo, contra o misoneísmo, da velha geração? Como hão de adaptar-se, de acomodar-se, se as mudanças sociais radicais promovem-nas eles, e, não, os velhos? Onde há radicalismo, há ruptura com o passado, e, rompendo com o passado, os jovens hão de adaptar-se ou acomodar-se com o quê? O que haveria de produzir de bom aquelas juventudes de diferentes épocas e de diferentes lugares, das citações de Bibsom se elas eram radicalmente anarquistas? Quem não repara que aquelas mocidades (qual a nossa hoje) marcaram o fim de suas civilizações? Que elas puderam ser horríveis, adoradoras do luxo, mal educadas, tirânicas, insuportáveis, desenfreadas, estragadas até o fundo de seus corações, malfeitoras, preguiçosas etc., conforme as citações de Bibson, PORQUE NÃO PRECISAVAM TRABALHAR PARA GANHAR O PÃO DE CADA DIA? E acaso não é nas épocas, como esta nossa, de riqueza, de fastígio, que as civilizações soçobram no embrutecimento, corrompem-se, caem? E os pobres de hoje?, tema associado à fome, preferido por todos os demagogos de todos os tempos e de todos os lugares, para seus parlapatórios? "Os pobres tê-los-eis sempre convosco", já o disse Cristo (Jo 12, 8)..., quaisquer que sejam os regimes, dado que os homens são dragontinos... Por isto mesmo, não são os pobres, e sim, os ricos e poderosos que, com toda sorte de abusos e torpezas, fazem naufragar as civilizações, não havendo, por este motivo, nenhuma civilização que se finasse, justamente, quando, às duras penas, estivesse saindo da pobreza. Não é que estejamos a defender um estado de vida pobre, nem admitindo que a virtude coexiste com a pobreza, nem que a tecnologia seja a raiz de todos os males,... cujo único remédio seria voltar ao artesanato, como queria Gandhi. A raiz de todos os males consiste na falta de sabedoria, na perda da capacidade de idear, no não saberem, os homens de todas as civilizações que se finaram, o que fazer com os ócios, com o acúmulo de bens, com a facilidade de vida; em terem, tais homens, perdido o tino para distinguir, entre eles próprios, quais os autênticos, que são si mesmos, e quais os demagogos, dispostos sempre a bajular as massas, tudo isto nada tendo a ver com programas e formas de governo, bonitos sempre... no papel. Todo o mal do mundo esteve sempre, e o está agora, na ignorância..., seja a ignorância rica, seja a ignorância erudita, seja a ignorância tecnológica, esta última, própria dos homens de ciência os quais, segundo Ortega, são sábios-ignorantes: sábios, porque bons conhecedores de sua "porciúncula do universo"; mas ignorantes, porque se comportam frente ao que ignoram, qual seja o caso da rebelião dos jovens, "não como ignorantes, mas com toda a petulância de quem na sua questão especial é um sábio"109. Também, pois, para estes, vale o dito do pintor grego Apeles: "não suba o sapateiro acima das sandálias!". "Civilização do bode expiatório (diz Joelmir Beting), preferimos atribuir aos avanços da tecnologia moderna e não aos fiascos das ciências sociais a culpa por todos os males do mundo.

109

Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas, 174


75 Bancar o avestruz da anedota, convenhamos, é uma atitude politicamente confortável. Tão confortável como a de Pilatos, ao lavar as mãos"110. Que ciências sociais? Caro Joelmir, se tais ciências de cujos enunciados não se formulam leis nenhumas, e, por isto, se resolvem em disputas, quais as escolásticas, entre vintenas de escolas antagônicas? Que é de proveitoso, de útil, que tais "ciências sociais" produziram? Como podem tais ciências sociais segurar a civilização no resvaladouro para o abismo, se, desde Aristóteles, ficou estabelecido que MORAL vem de mores, que quer dizer costumes, e ÉTICA, de ethos, que também quer dizer costumes, uma e outra, moral e ética, em sendo costumes, são relativas? Onde se há de fundamentar a sociedade, se seus alicerces são movediços, relativos, sem nenhuma Instância Superior, fora do homem, para apelar? As ciências têm seus primeiros princípios indemonstráveis; as matemáticas têm seus postulados e axiomas, igualmente indemonstráveis, e, apesar disto, há ciências e há matemáticas. Com a MORAL não ocorre o mesmo, porque ela é costume que se muda sempre, baseado em quê?, senão nos achismos de cada tolo? Cada futilidade que se quer implantar aqui, o argumento decisivo do macaco que somos, é dizer que isso já existe nas nações mais desenvolvidas... Fica a frase suspensa pela reticência, porque o macaco, harto, entende... que desenvolvimento significa progresso tecnológico e riqueza, esta, advinda desse progresso! Eis aí o padrão, o paradigma, o metro, para se averiguar se isto ou aquilo é bom: é só verificar se isto ou aquilo existe nos "países desenvolvidos"!... E quando uma sociedade como a nossa, que não quer nada com a filosofia, que desampara os seus filósofos os quais, apesar disso, continuam laborando no silêncio, no anonimato, não sabe o que fazer com o seu fastígio, e começa levar a breca, reúne os seus homens não filósofos em mesas-redondas para quê? Para cada um, olhando pela fresta de sua viseira de especialista, para não dizer antolhos, dizer: "eu acho..."? E se alguém, filósofo – não mero professor de filosofa que só repete o dito nos compêndios; mas, filósofo – tiver a solução do problema, como há de apresentá-la aos demais, se lhe não permitem falar? Como há ele de vencer as BARREIRAS DA COMUNICAÇÃO, se os fariseus dela (se bem se comparam aos do tempo de Cristo, os quais, em fechando as portas do reino dos céus, não entravam nem deixavam outros entrar) não resolvem nem deixam outros resolver? "Neo-cínicos de formação, os «hippies» freqüentam a universidade como bons filhotes da fartura, e são capazes, intelectualmente, de produzir riquezas. Mas não há maneira de fazê-los ganhar a vida pelas vias convencionais. Eles brincam de ser pobres porque sabem que numa sociedade rica, como aquela em que vivem, poderão deixar de brincar de pobreza quando tocados pela idade, decidirem mudar de vida. É o que já faz a primeira leva deles, sobreviventes do ócio, do tédio, do cio e da doença, a sarna, por exemplo 111. Bravo! Joelmir! Até que, enfim, houve quem tocasse com o dedo na ferida! Quem quiser, consulte agora Arnold J. Toynbee, "Um Estudo de História", e veja como e por que caíram as vinte civilizações que ele analisa. Hesíodo e Sócrates, um e outro fala da horrível mocidade de sua época? Desejaríamos ouvir falar dessa mesma mocidade quando acabou escrava, para nunca mais levantar o topete, sob o tacão de Felipe da Macedônia, de Alexandre Magno, e, por último, dos romanos. Falem-nos da mocidade egípcia, petulante, atrevida, que não ouvia mais os pais, permitindo colher-se o mau presságio de que o fim do mundo não podia estar muito longe, como, de fato, não o estava; falem-nos, pois, dela, quando, por quinhentos anos, esteve sob a dominação dos hicsos dos quais, ainda puderam os egípcios libertar-se, até que Roma os anulasse para todo o sempre! E a Babilônia? Que foi feito dela? Falem-nos daquela juventude babilônica constituída de malfeitores e de preguiçosos, quando Ciro, o persa, pôs, a todos, jugos invencíveis! Se outras civilizações já ruíram, e desapareceram no pó, sobrando apenas poucos documentos indecifráveis, que garantia temos nós de que a nossa, andando pelos mesmos caminhos do embrutecimento e da imoralidade das que se foram, milagrosamente, ficará em pé? 110 111

Joelmir Beting, Na Prática a Teoria é Outra, 18 Joelmir Beting, Na Prática a Teoria é Outra, 127


76 Tróia é de ontem, e, contudo, sumiu-se de uma maneira tão sumida, que os relatos de Homero, em relação a ela, foram tidos por lendas. Coube a Heinrich Schliemann descobri-la, e a história desta descoberta é tão fascinante, fantástica, que mais parece um conto de fadas. Perfurou o chão, Schliemann, e descobriu o que ele pensou fosse Tróia. Pois era a quinta cidade enterrada e sumida, a contar da superfície da terra. E comprovou-se haver mais duas cidades ainda, com o que se totalizou o número de sete, e, posteriormente, outros arqueólogos encontraram mais duas, perfazendo o número de nove cidades soterradas! Tróia era, então, a sexta cidade, a contar de baixo para cima. Depois que até as notícias de nove cidades se perderam, (!) cidades opulentas, regurgitantes de gentes, dentre as quais, muitas ricas, outras nobres, outras famosas, cada cidade, quando decadente, com uma mocidade de ricos e de nobres, a qual, por isto mesmo, ociosa, preguiçosa, atrevida, insolente, perversa, ainda se duvida que a nossa civilização, embora em processo de apodrecimento acelerado, não se vai com a breca? Qual naqueles tempos, tal hoje. Fale Ortega: "Este personagem (o homem-massa), que agora anda por toda a parte e onde quer impor sua barbárie íntima, é, com efeito, o garoto mimado da história humana. O garoto mimado é o herdeiro que se comporta exclusivamente como herdeiro. Agora a herança é a civilização – as comodidades, a segurança; em suma, as vantagens da civilização"112. Mais: "As pessoas, comicamente, se declaram «jovens» porque ouviram que o jovem tem mais direitos que obrigações, já que pode demorar o cumprimento destas até as calendas gregas da madureza. Sempre o jovem, como tal, considerou-se isento de fazer ou haver feito façanhas. Sempre viveu de crédito. Isto se acha na natureza do humano113. Mais isto: "A juventude de agora, tão gloriosa, corre o risco de arribar a uma madureza inepta. Hoje goza o ócio florescente que lhe criaram gerações sem juventude"114. Ainda isto: "Vivemos em um tempo que se sente fabulosamente capaz para realizar, mas que não sabe o que realizar. Domina todas as coisas, mas não é dono de si mesmo. Sente-se perdido em sua própria abundância. Com mais meios, mais saber, mais técnicas que nunca, o mundo atual vai como o mais infeliz que tenha havido: puramente ao acaso"115. As civilizações caem, diz Toynbee, quando, havendo respondido todos os reptos, deixam de responder o último. Pois a nossa sofreu um repto que não foi respondido ainda, e, se o foi, o homem da resposta não pôde vencer a barreira da comunicação; ainda não lhe deram a palavra... Nossa civilização ia mais ou menos bem sob o signo do CRIACIONISMO. Todas as religiões e todas as filosofias (exceto a de Spencer) são criacionistas. De meados do século XIX para cá, foi imposto à nossa civilização ocidental o repto do EVOLUCIONISMO. Eis aí a tese (Criacionismo) e a antítese (Evolucionismo) clamando, urgentemente, pela síntese. E sem esta Resposta ao Repto, sem esta SÍNTESE, a civilização cairá, primeiro no marasmo, no "interregno" de Toynbee, ou "diarréia" do irreverente Gustavo Corção, e, depois, será o golpe final que virá, como sempre aconteceu, com uma guerra catastrófica. Enquanto isto, continuar-se-ão fazendo mesas-redondas e simpósios, tais quais se fizeram em Roma, na Grécia, na Babilônia, no Egito. O problema do grande conflito de gerações, não do conflito normal que ocorre sempre, mas do conflito incomum que estamos vivendo hoje, foi resumido na seguinte sentença do artigo do "O Estado de S. Paulo", datado de 22 de agosto de 1982, sob o título: "Você sabe onde está seu filho?”, sentença que pusemos em destaque: "A juventude só encontrará seu caminho quando toda a sociedade for modificada". A isto responde um jovem descrente, na coluna "dos leitores": "Uma total reformulação do mundo (como se isso fosse possível). Na verdade a "Geração Abandonada" e todos nós, em geral, somos vítimas de um mundo que não deu certo"116. 112

Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas, 158 Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas, 260-261 114 Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas, 331 115 Ortega y Gasset, A Rebelião das Massas, 98 116 Augusto Gomes, O Estado de S. Paulo de 27 de outubro de 1982 113


77 O mundo, quer dizer, sistema, deu certo até aqui, caro Augusto Gomes, vencendo todos os REPTOS, com felicidade. Agora surgiu o REPTO da EVOLUÇÃO... cuja RESPOSTA está tardando a vir, em razão do que o mesmo mundo entrou em entropia, a qual, como sói acontecer, tende para um máximo. E como entropia quer dizer reversão, retorno, arrepio de carreira, trata-se de reversão ao ponto de onde esse mundo saiu..., que foi a barbárie. É elementar, caro Gomes! Entropia, termo tomado à termodinâmica, aplica-se a quaisquer sistemas físicos, representando a tendência de todos os SISTEMAS FECHADOS, ou QUE SE FECHAM, a apresentar um estado confuso, aleatório, caótico, por ter-se esgotado o potencial para as transformações. Assim, a desordem (assaltos, assassinatos, terrorismos, abusos da polícia, justiça caquética); a falta de padronização (os achismos, no lugar da lei e da moral); a falta de objetivo (ninguém sabe o que fazer com a riqueza criada, nem para onde ir); a ausência total de um ideal superior (lenta agonia das religiões, e velório ululante da filosofia, ambas, moribundas e mortas, fontes realimentadoras do sistema); tudo isto mostra que nossa civilização entrou em processo entrópico. Causa mor? O não ter sabido ou podido REPLICAR ao REPTO do E V O L U C I O N I S M O. Modificação, portanto, "total reformulação", implica planejamento, projeto. E onde, o projeto? O projeto consiste numa nova filosofia... que resolva, na SÍNTESE, as contradições entre a TESE (Criacionismo) e a ANTÍTESE (Evolucionismo). E onde, essa nova filosofia? Todavia, essa obra pode já estar pronta: como fazê-la chegar a todos, se aqueles que podem abrir as portas da comunicação querem saber, primeiro que tudo, de currículos, só em função dos quais sabem julgar? Currículos universitários (acaso não vêem isto?) quanto melhores, piores..., para o caso presente, dado que o enquadramento universitário condiciona o poder criador, em razão do que os gênios sempre se dão mal nas escolas. Ora, onde é preciso criar o novo, os pontífices da comunicação, para concederem a palavra, exigem que o inovador esteja, até às tampas, cheio, saturado, dos arcaísmos culturais, e ainda, por cima, das inutilidades (para o caso) contemporâneas. Nenhum diploma prova a inteligência e a criatividade de ninguém, e a maioria deles serve só para demonstrar que, conforme Dewey, "A memória é a grande simuladora de inteligência". De Cristo, também, se pediam currículos: "Não é este o filho do carpinteiro?, etc. Donde lhe vem tal sabedoria? (Mat 13, 54). "Pode vir alguma coisa boa de Nazareth"? (Jo 1, 46). A sabedoria, a doutrina, não interessa nada; o tudo que interessa é a procedência, o currículo. Então Cristo sentenciou: "Não há profeta sem honra, a não ser na sua pátria e na sua casa" (Mat 14, 57). Isto bate com Feodor Chaliapin que dizia: "Ninguém é grande homem para o seu criado de quarto". E Vieira: "Não basta que as coisas que dizem sejam grandes, se quem as diz não é grande". (...) "Talvez acertou a dizer o rústico, o que tinha dito Salomão; mas no rústico não merece ouvidos, em Salomão é oráculo"117. Por causa disto se fecharam a Cristo as portas do Templo de Salomão, e ele, se quis comunicar sua Doutrina, teve de o fazer pregando às margens do mar de Tiberíades ou no campo. De igual modo, quando se acabar esta civilização, o que sobrar dela, se sobrar, levantar-se-á noutra base, seguindo a nova filosofia que, agora, então, se revelará através de papéis e livros amarelecidos, sujos, empoeirados, semicomidos de traças. Verdadeiramente, desta nova filosofia poder-se-á escrever: NOVAE SED ANTIQUAE. Nova para ser seguida; antiga porque resto de uma civilização que se finou... A verdade é que, doa isto a quem doer (e quanto mais doer, melhor), a moral é absoluta, não, relativa, do mesmíssimo modo que são absolutos e não, relativos, os primeiros princípios das ciências e os postulados das matemáticas. Pode-se ir pedindo o porquê de tudo; mas o último porquê é um postulado indemonstrável... até mesmo, o que é mais, para as matemáticas. A moral se chamou, desde sempre, "Mandamentos de Deus", pertencentes, portanto, à esfera das religiões, até que, com a decadência da religião grega, Aristóteles trouxe a moral para o campo da filosofia, fazendo-a derivar-se de costumes. Este pecado original teve seu reforço, na Renascença, quando se lançaram as bases do pensamento moderno, fazendo-nos crer que a Razão é deusa, e que a 117

Vieira, Sermões, 8, 145-146 – Ed. das Américas


78 ciência e a tecnologia poderiam produzir um paraíso na Terra. Alguns lugares da Terra, de fato, se fizeram paraíso..., mas habitados por homens-feras, não obstante a "beatice da razão", no dizer de Ortega. A Doutrina da Evolução criou milhões de materialistas, e ateus, e agnósticos, e, no entanto, como ela é a metade da Verdade, não pode ser negada, e, sim, precisa ser digerida e assimilada com a outra metade do Criacionismo. Como encher o vazio da alma do homem moderno que se recusa, e com razão, a remastigar os alimentos rançosos ou bolorentos quanto à forma, oferecidos pelas religiões? Uma filosofia nova se impõe, e ela derramará nova luz, clareando os textos antigos, todos interpretados segundo uma ótica acomodada à selvageria e à animalidade do homem, incapaz, portanto, de reformá-lo, tornando-o sábio, não erudito, mas sábio... Soou a hora, como se vê, de cumprir-se o dito: "Eis que faço novas todas as coisas" (Apoc 22, 13). Do mesmo modo como não há matemáticas sem postulados que, por indemonstráveis, se fazem absolutos; do mesmo modo que, sem primeiros princípios, igualmente indemonstráveis, não há ciências nenhumas, também, sem um Metro fora do homem, sem um Modelo, sem um Parâmetro, uma Regra, para serem postos no lugar dos achismos, o conflito hodierno de jovens e velhos alucinados não se resolve. Sem uma Instância Superior tudo fica relativo, passando cada "homem a ser a medida para todas as coisas" como o entendia Protágoras. Por causa desta verdade apodística, peremptória, inexorável, sem contestação possível, todo o achismo, em matéria de moral, é luciferismo, ou seja, uma tentativa, qual a do arcanjo Luzbel, de usurpar o posto privativo só de Deus, o só que pode fundamentar a moral. Por isto, a queda do lendário Adão foi, antes de tudo, moral, visto como ele, conforme a alegoria, desprezou o preceito único que lhe impusera Deus, para seguir o achismo de Satã. Mesmo não se tratando de moral, seja em que assunto for, quando um homem diz: "eu acho", neste ponto ele se põe como medida, como fundamento, em função do qual ele vai aferir aquilo que lhe é proposto. Porque nenhuma sociedade, NENHUMA! pode sobreviver, se o arbítrio anárquico de cada um se fizer lei e moral, Protágoras foi levado a defender a lei, a convenção e a moralidade tradicional118. Deste modo, o mesmo Protágoras que foi, por excelência, o filósofo do ACHISMO..., achou, para surpresa de todos, que não se pode sair, por aí, achando isto, e achando aquilo, como agora é moda fazer-se. Por que? Ora, por que?... (responderia o filósofo), porque sem lei e sem moral, não há sociedade. Urgia, pois, defender a sociedade de seu tempo, contra a imoralidade dos que, como hoje, raciocinando com os estômagos, de flatulências cheios, eructam frases como esta: "Quando pela porta da rua entra a fome, sai pela janela a moral!". O dito causa, hoje, o efeito de axioma (!) a outros ventrófilos achistas que sacodem as cabeças em sinal de aprovação. Prevenindo isto, Protágoras antecipava o mesmo pensamento de Gusdorf que, falando de Sócrates, escreve: "Sócrates, na prisão, dialoga com as leis do Estado e vence-as, obedecendolhes. A morte é sua derradeira vitória, pois é imensamente preferível, mesmo dentro de uma perspectiva utilitarista, ser Sócrates caído em desgraça do que porco satisfeito"119. As civilizações têm convivido sempre com a fome, porém, nenhuma, até hoje, sobreviveu sem moral. Por que? Porque a MORAL é o Estatuto Mor sobre o qual se há de erigir o Direito Positivo, e, sobre este, os demais códigos e regras sociais. Urgia defender, Protágoras, a sociedade de seu tempo contra os que, achando, diziam: tudo está bem, sem nenhum perigo..., e na santa paz! A rebelião da juventude é perfeitamente compreensível e normal..., tendo existido sempre em todos os tempos e em todos os lugares. Os jovens de hoje, como de sempre, não têm outra escolha a não ser aceitar as regras do jogo, fincando os pés firmes na vida, adaptando-se, acomodando-se às exigências da sociedade... que segue o seu caminho sem precisar de Deus... que "se tornou numa hipótese desnecessária" (Laplace), e, que vai, passo a passo, forjando sua moral, conforme o impõem os costumes. Contra isto, punha,, Protágoras, uma Instância Superior, como necessária, para regular a moral, a lei e o convencionalismo tradicional. Foi ele, portanto, obrigado a aceitar a existência de Deus, embora 118 119

Bertrand Russell, Obras Filosóficas, I, 90 Georges Gusdorf, Tratado de Metafísica, 51


79 não o pudesse demonstrar, racionalmente, porque Deus é uma INTUIÇÃO A PRIORI, tal qual os POSTULADOS, sejam eles os das ciências, sejam os das matemáticas. No grande conflito, essa Instância Superior, a que cumpre recorrer, é a MORAL cujos alicerces precisam ser justificados por filosofia nova, por novo pensamento. Não se trata de a filosofia alicerçar a moral, e sim, de dar dela testemunho, de falar a respeito dela, sem a definir, do mesmo modo que Cristo, em sendo perguntado pelo asneirão do Pilatos: "o que é a verdade?", não a definiu, porque ela é indefinível, e da qual só se pode dar testemunho, e que, por isso mesmo, ele já tinha dito: "vim ao mundo a fim de dar testemunho da verdade" (Jo 18, 37). Falamos do Espaço e do Tempo, sem os definir: O Espaço, porque, infinito; o Tempo, porque, eterno. Ninguém sabe o que é a Vida, a Energia, o Sol; contudo, podemos falar a respeito de tudo isto e mais ainda, isto é, dar deles testemunho. Este é o caminho, e não há outro, para se resolver o problema do grave conflito, do incomum conflito de gerações; da solução dele, ou da não solução, vai depender, não menos, se o nosso mundo sobrevive, agora, à crise, ou se vai para o caos.


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