ensaio
jean cocteau_sangue de poeta a origem dos filmes alteridade e estranhamento china_hou, wong, jia plano-sequĂŞncia_caos e movimento cassavetes_idiossincrasia e independĂŞncia
16 25 32 36 44 77
cĂĄssio starling carlos heitor dhalia
4 60
parola
2
revistaprojecoes.com.br
reportagem
distribuição_qual o futuro? comédia brasileira_piada pronta paulínia_petróleo, cinema e o colosso vale cultura
19 22 50 70
review
80
atlas
polônia_vivências detonadas
95
3
4
c
รกssio starling carlos
parola Fotos: Eduardo Rizzo, Pedro Pipano e Natalia Barrenha
P
oucas vezes, em momentos dessa estranha atividade intelectual que é estar diante de uma crítica, encontramos ressonância da nossa própria voz, como se as palavras escolhidas pudessem ter sido escritas por nós mesmos, tamanha a coincidência de ideias. Frequentemente, no entanto, esse raro prazer, para nós da Projeções, era despertado pela leitura de Cássio Starling Carlos e suas críticas na Folha de S. Paulo. Apesar de ser jornalista na prática, Cássio estudou História e Filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais. Cidade em expansão, mas ainda provinciana, Belo Horizonte não possuía grande oferta cultural a um “jovem careta”. Porém, ao invés de se mudar para São Paulo ou Brasília para estudar cinema, Cássio foi encontrar na Biblioteca Pública, mais precisamente nas edições da Cahiers du Cinéma e um dicionário de francês, para ler palavra a palavra no idioma de André Bazin, o espaço de vazão às suas idéias.
5 Num final de tarde na rua Augusta, antes da exibição do longa de estréia do também crítico e amigo de Cássio, Eduardo Valente [editor da Revista Cinética], que apresentava para a cidade pela primeira vez No Meu Lugar [leia resenha na página 87], Cássio falou aos editores Felipe Arra e Isaac Pipano [com a ajuda dos colaboradores Eduardo Rizzo, Natalia Barrenha e Pedro Pipano] sobre crítica, cinema de autor, indústria, cânones e idiossincrasias. Antes de entrarmos na sala para a sessão, porém, Cássio, de mochila nas costas, saiu de fininho: “É ruim ser crítico e ver filme de amigo. Há sempre o risco de ser uma bomba e você não saber o que dizer”. Eis o fardo de ser crítico:
Isaac: Gostaríamos que você falasse sobre sua rotina de escrita. Você assiste ao filme e escreve imediatamente ou dá um tempo para que se assentem as ideias? Cássio: No sentido método, acontece desde o filme que assisto vinte dias antes ou que eu vi na Mostra, tenho que escrever sobre ele meses depois e já me esqueci de detalhes. Quando vejo um filme sabendo que vou escrever para
muita dúvida sobre seu valor, eu leio o máximo de críticas possível - Les Inrockuptibles, Positif, Cahiers, Sight and Sound, Le Monde, New York Times, Metacritic. O texto do jornal, que é um texto curto, de 2.100 toques, tem de ter apenas uma ideia, pois se tiver várias vai acabar com uma a cada parágrafo sem fechar nenhuma. Outra coisa útil quando você lê muito é a questão do método.
I: Lembro de um texto seu elogiando o [M Night] Shyamalan quando todo mundo estava criticando. Às vezes você tem que parecer impessoal sobre uma coisa que gosta e acredita muito?
Em um blockbuster, por exemplo, Batman [O Cavaleiro das Trevas, Christopher Nolan, 2008], todo mundo pegou o mesmo aspecto que é basicamente o que estava no release. Nesses casos você precisa não ir contra, mas buscar uma outra perspectiva, e em todo objeto cultural que tem uma riqueza você encontra.
deixe sanguíneo, que te envolva. E no caso do Shyamalan aconteceu isso. Na época acontecia uma coisa que chamaram de “Polêmica da crítica”, as pessoas discutindo que relação é essa que o espectador tem com a crítica. Aí eu fiz a relação que tive como espectador, que foi diferente das críticas que li – esse é o momento em que o espectador chega a ter ódio do crítico. É uma relação que
C: Essa neutralidade, essa ideia da imparcialidade jornalística é conversa fiada. Não no sentido de se estar engajado o tempo todo, defendendo causas, mas é preciso alguma coisa que te
6
aquela mesma semana, assisto como um espectador um pouco mais atento e me deixo conduzir pela narrativa ou por algo da forma. Mas não anoto durante a sessão porque acho que se perdem imagens, conexões. Vou assistindo e formulando uma ideia ao longo da projeção, chego em casa e registro, uma anotação simples, nada de esboço de texto ainda. Quando o filme me deixa
não tem jeito de não existir, pois sempre vai aparecer alguém falando bem de algo que você não gosta ou vice-versa. Por isso comecei a escrever crítica. Foi assim que comecei a estudar cinema. I: O crítico Luiz Carlos Merten escreveu em seu blog: “a forma como nos apropriamos dos filmes tem a ver com qualidades intrínsecas às obras, por certo, mas o que nos leva a amar esse ou aquele filme mais do que outro é uma experiência no limite pessoal e intransferível”. Gostaria que você comentasse. C: Eu vou pontuar com algumas idéias que orientam o tipo de trabalho que tento fazer. A primeira questão é sobre existir, obviamente, um gosto pessoal que incide sobre o que se escreve. Porém, esse gosto não pode ser fechado na subjetividade, não pode ser o meu gosto num sentido idiossincrático. Por isso é interessante ler outros críticos e seus textos antes de escrever. Porque, num primeiro momento, você reage ao filme - e essa reação pode ser de emoção ou ressentimento -, mas o filme permanece ainda muito fechado na subjetividade. Como escrevo num jornal que tem uma audiência, é preciso sacudir um pouco isso. Então, entre a segunda e a quinta-feira, é possível deixar que as coisas se acomodem um pouco. Portanto, fechando a questão da subjetividade, acredito que o gosto vem acrescido de um monte de outras coisas. Pois se você coloca o seu gosto acima de todos os outros, deixa de fazer crítica no sentido público. Se a crítica é um diálogo com o leitor, não adianta eu colocar ali qualquer coisa num sentido impositivo. Tenho que estabelecer uma articulação, usando o repertório do leitor, para fazer a audiência se interessar ou se desinteressar conforme minha avaliação. As pessoas dizem que gosto não se dis-
cute, eu já acho que o que não se discute é a falta de gosto. Na medida em que cada um tem uma apropriação, uma experiência própria das obras, o gosto passa a ser uma questão de debate possível. É preciso abrir as janelas mentais para não fazer um exercício de legislador e entender que aquilo que está fora do cânone hoje pode estar daqui a meses ou anos. Isso acontece ao longo da história do cinema o tempo todo. Quanto à fala do Merten, acho que a experiência é de fato pessoal, mas não intransferível. Aí existe o diálogo. O que me faz tão especial a ponto de ter um espaço no jornal para dizer o que eu acho? É preciso diminuir o seu eu, por maior que ele seja, e dialogar. Em ambientes plurais – como o jornal, a internet ou veículos como a Cinética - existem filiações, onde os leitores passam a selecionar os textos de determinados autores. Você identifica o seu gosto, encontra semelhanças entre seu gosto e o do crítico. I: Qual seria a outra questão? C: Existe outra questão ligada ao imediatismo da crítica. Frequentemente você pode sentir que fez um julgamento apressado, como no caso de Mostras e Festivais, onde assiste a muita coisa, não dá tempo de digerir tudo e você é um pouco influenciado pelo ambiente da sessão e pela recepção dos jornalistas. De repente, todos vaiam o filme que você gostou e fica aquela sensação: “Será que eu errei?”. A gente é facilmente influenciado nessas ocasiões. E a tendência de um movimento muito maciço é reagir de uma maneira um pouco emocional demais. Depois você assiste ao filme seis, dez meses depois da estreia, e percebe que, ou não era tudo aquilo ou, na verdade, o filme é muito mais do que foi dito. Se a sua recepção fílmica, como leitor,
não está de acordo com a minha – e se isso se torna recorrente – você vai deixar de ler as minhas críticas. No fim das contas, quem é autônomo pra continuar lendo ou não a pessoa que escolheu como crítico é o leitor, e não o crítico em relação a ele. Eu tento conhecer o leitor nessa conversa unidirecional, pois senão você deixa de me ler. E isso eu acho bom, porque você pode desistir. Eu desisti de ler os Cahiers porque não sei mais o que eles escrevem. Eu não entendo, quer dizer, eu entendo, mas acho que aquilo já é incomunicável. Aí eu me questiono por que ler aqueles críticos se eles já não me informam mais, ficam naquela verborragia, naquela sintomatologia com que vêem os filmes. Penso que não é assim que deve ser a crítica. Felipe: Para dar seqüência ao papo sobre o papel da crítica, há uma citação do Bazin que diz: “a função do crítico não é colocar numa bandeja de prata uma verdade, mas prolongar no espectador, o máximo possível, as impressões que têm da obra de arte”. Você acha que o crítico tem esse papel de dialogar com a obra em si ou mais o caráter de tentar compreender e explicar a obra em questão? I: Acho que isso se aproxima também de uma fala do Roland Barthes, que propõe que o trabalho do crítico não fique restrito a reduzir ou limitar a obra a explicações, fechando-a em soluções, mas abrindo os parênteses a fim de que sejam encontradas respostas que emanam do filme. C: Acho que dar chaves, mesmo que você as tenha, te coloca num lugar um pouco sacerdotal. Muitos críticos são adeptos dessa postura, mas eu não me sinto muito confortável em desempenhá-la. Primeiro porque te coloca num lugar de dono de uma verdade, liderando uma legião de seguidores. Prefiro ter outra experiência, que reproduz
7
8
a que tive durante muitos anos como leitor, sobretudo do Inácio Araújo. Ou seja, quando você lê um crítico que têm algumas respostas – não tem todas, é claro – sua experiência da obra é ampliada. Ter ou não as chaves, ter ou não ter o segredo, não funciona. Existe um diálogo que mantenho com a obra e que o meu texto mantém com quem o lê. Não é pessoal. Nenhuma das duas instâncias é pessoal. Não é entre mim e o artista, e isso acontece muito em festivais. Você encontra determinado diretor e ele pergunta: “Mas por que é que você me detesta tanto?”. E eu respondo sempre que não trabalho para ele [os diretores], mas para as pessoas que assistem às obras. A questão está refletida
em outro eixo. Não é voltando ao sacerdócio onde eu tenho que doutrinar as massas pra sair da ignorância e chegar à luz – esse é um ideal iluminista que sabemos estar ultrapassado. I: Mas você acha que ainda é presente? C: É presente, sim, mas você pode usar essa expectativa – pois é uma expectativa que o leitor tem de tentar entender algo ou descobrir porque determinado aspecto é importante de outra forma. O interessante é que muita gente, ao invés de ler antes determinada crítica para saber se o filme está ou não fazendo sucesso, se deve ou não ser visto, se foi ou não bem avaliado, lê depois. E no
depois é que aquele texto pode ampliar a experiência. O crítico e o leitor têm que ter freqüentado o mesmo terreno pra poder conversar, partir da experiência do mesmo objeto. Se estivermos em patamares diferentes, e o crítico num superior, será como numa aula onde o leitor estará apenas ouvindo. F: O leitor também precisa compartilhar das referências que você usa no texto. C: Sim, claro. Outro dia eu escrevi um texto onde morri de rir pela experiência que foi fazê-lo. Como experiência de ex-editor, agora na posição de crítico, me proíbo de usar determinadas expressões, tais como “plano-sequência”,
“mise-en-scene”. Acredito que ao usar conceitos, são criadas relações de poder. Diferente de quando você apenas faz uso do conceito, sem necessariamente se referir à nomenclatura. Mas, voltando à experiência engraçada, me deram a crítica do filme Arca Russa [Aleksandr Sokurov, 2002] e eu pensei: “O que eu faço agora?” I: Como falar desse filme sem usar o termo “plano-sequência”? C: Como, se o filme é um plano-sequência?! [risos]. Quer dizer, se a chave, a grande riqueza do filme é o próprio plano-sequência. Então, comecei o texto explicando porque a gente não usa os conceitos nas críticas no jornal, expliquei o que era plano-sequência e aí passei a usá-lo no texto. Nesse caso, o texto virou um ensaio sobre o que é o plano-sequência tomando o filme como exemplo. Acho que os termos, muitas vezes, são usados de maneira abusiva. “Mise-en-scene”, por exemplo, é um conceito que você não mata facilmente em duas linhas. A mise-en-scene do [Jean-Luc] Godard não é a mesma do [Jacques] Rivette e aí começam os problemas. Para escrever a crítica, eu tenho que pensar no anônimo, no cara que não freqüentou as aulas na USP, o cara que não leu o Bazin, entendeu? I: No jornal, devido à compressão do texto, você tem de trabalhar com um volume de ideias reduzido para um público totalmente heterogêneo. Diferente dos veículos na internet, como a já citada Cinética – que usam e abusam de referências, nomenclaturas e conceitos -, que se direcionam para um público mais bem delimitado, com a bagagem teórica necessária para compreender o texto integralmente. A crítica nos jornais diários tem perdido público leitor pela presença de veículos com tais características?
C: Eu tenho ouvido nos festivais, Cléber [Eduardo] versus [Luiz] Zanin, assumindo posições do tipo “Nós somos a crítica”, segundo o Cléber, “e os jornais atualmente fazem resenhas de filmes”. I: A chamada resenha crítica? C: Que seja, alguma coisa do tipo guia de consumo. Da minha posição de crítico, eu adoro que existam espaços – apesar de ter aflição com blogs que surgem do nada atirando gostos como argumentos – como os disponibilizados pela internet, pensando a Contracampo, a Cinética, as revistas e o burburinho de produção intelectual que tem se enriquecido. O leitor insatisfeito com o volume de informações do jornal pode ampliar sua leitura através dos sites. Ele não fica mais refém dos escribas, como chamam às criticas dos jornais recortados no shopping Frei Caneca. Claro que se eu dei ótimo, minha opinião está lá; se eu dei ruim, minha opinião não está. Ou seja, a crítica de internet ocupa um espaço que não existia e já havia sido desocupado pelo texto do jornal, que ficou cada vez menor e mais ligeiro. Isso significa que o texto do jornal não é crítico? Bem, eu tento fazer crítica. Não sei se faço crítica o tempo todo. O leitor do jornal objeto em papel relaciona o jor-
9
10
nal como uma experiência que amplia os significados – do texto de cinema à coluna do comentarista econômico. O fato está aí, mas a interpretação passa por esses canais que ainda são nobres, ou seja, os livros, as escolas, os jornais, que possuem sua hierarquia. Se o texto do jornal é meramente uma resenha de consumo, esta não deixa de fazer um filtro entre lixo e algo que vale a pena ser visto. Nesse sentido, é crítica de qualquer modo. Você pode questionar que ela seja ou não rigorosa, pois alguns críticos fazem parte da grande máquina do marketing. Esse efeito midiático que é só de ecoar sobre a obra, como era o perfil da revista Set, de ecoar um valor que vem de fora e já está embutido. As pessoas não leem o que você escreveu. Já vi centenas de vezes essa cena: você está na porta do cinema, as pessoas chegam com o guia e dizem que vão ver tal filme porque a Folha deu tantas estrelas. A hora de dar as estrelas é o maior dilema. Penso sempre no que fazer. Porque você sabe que o leitor vai se guiar pelas estrelas e o distribuidor do DVD vai usar sua cotação na capa pra vender mais, porque a articulação dessa repercussão na mídia é usada como publicidade depois. É republicidade. Ele entra na lógica do marketing, entendeu? F: Como você vê o surgimento desse caráter de guia de consumo, o julgamento prévio que determina os gostos? Como você acha que surgiu a necessidade disso? C: Acho que houve um momento em que não se distinguiu, dos 1980 pra frente, quando houve a oferta para o acesso a muitos bens culturais de uma vez só, a chamada democratização do acesso. A oferta de produtos é maior do que a capacidade de consumi-los e aí se instaurou essa figura do sujeito que atua como filtro. E é um volume muito grande de lixo. Um volume que
te impede de julgar aquilo que de fato merece ser julgado. Eu insisto muitas vezes no jornal que eles deviam dar um texto grande para um filme e esquecer o resto, dar só uma nota. Tem pouca coisa no meio dessa selva para reter de verdade. O tal do resenhista é essa espécie de seletor cultural. I: Eu tenho dois tópicos que gostaria que discutíssemos. O primeiro relaciona-se à crítica canonizando, à obsessão que a crítica tem de apontar os novos gênios, como o caso recente da “Nouvelle Vague Brasileira”, publicado pela revista Bravo!, ou mesmo o burburinho em cima do Matheus de Souza, do filme Apenas o fim [2009], citado como o novo Domingos Oliveira. C: O texto da Cinética é excepcional. Eles publicaram um editorial destruindo a reportagem da Bravo!. É incrível. Desmonta o mecanismo de criação do mito. É um problema que nós termos de criar mitos a cada edição pra vender jornal, vender revista. Porque se não há algo novo pra vender, não se vende
nada. Faz parte de um mecanismo do jornalismo cultural. E uma coisa que eu insisto sempre que falo nisso é que jornalismo cultural é Indústria Cultural, é braço armado da Indústria Cultural. Não existe essa coisa que somos isentos e vamos julgar os produtos com isenção. Não existe. É uma função que a indústria cultural abastece com viagens, jantares, festas e tudo mais e você embarca – ou não. Não é fazer o frankfurtiano que fica achando paranóia em tudo. É desempenhar o trabalho sabendo que é comercial e faz parte de marketing, ao invés de achar que é a cabeça glorificada que está fora deste esquema. Posto isso, sim, elegemos, somos novidadeiros, faz parte da profissão. Sem ela a profissão é extinta, não vende jornal e você perde o emprego. I: Mas eu digo mais pelo caráter de referenciação, procurando o novo que sempre remete a algo. C: É o novo-velho. Como é o caso da Nouvelle Vague, que virou franquia para tudo. Eu participei de um debate so-
bre a Nouvelle Vague Alemã, da escola de Berlim. Tudo bem, eles têm alguma coisa entre si, mas não têm absolutamente nada a ver com uma nova onda alemã. Cada um está fazendo seu cinema sem conversar muito com o lado, estão expressando uma sociedade que está naquele momento, que está suscitando aquelas questões. Assim como acontece com relação aos orientais, cujos filmes têm nos ajudado a enxergar elementos da sociedade chinesa, por exemplo. Agora, eles conversam entre si e montaram um plano de dominação estética do mundo? Não. Assim como os caras da Nouvelle Vague também não. Eles apenas estavam juntos na mesma revista. Existe obviamente um repertório comum, mas não era um plano de dominação. Assim como existiram cinemas novos pelo mundo todo nos anos 1960. Mas que vínculo tem entre si? Faz parte da época, é um sintoma da época. Mas essa tendência do novo faz parte da nossa linguagem no contexto do marketing jornalístico. Mesmo que você pense contra, vai aparecer um editor e perguntar qual o grande nome novo do festival de Cannes. Inventaram o filipino, o Brillante Mendoza. Quer dizer, o trabalho do filipino é interessante, mas ele é o grande nome, ele vai revolucionar o cinema? Não! Ninguém revolucionou. É uma estratégia de sobrevivência do próprio jornalismo. F: Recentemente, eu li um texto no livro do José Lino Grünewald sobre o 2001, Uma odisséia no espaço [Stanley Kubrick, 1968]. Ele começa o texto maravilhado, pois, segundo o que escreve, o mérito do filme é, ao contrário de alguns cineastas de vanguardas anteriores, como Godard, [Michelangelo] Antonioni ou [Alain] Resnais, que desenvolveram a linguagem do cinema abolindo o espetáculo, o Kubrick parte do espetáculo para criar a vanguarda, experimentar como linguagem e estética. Queria que você falasse sobre isso, se você acha que a oposição... C: É um pouco a oposição entre autoria e indústria, ou a oposição entre criação e espetáculo, vamos dizer assim. F: A questão que eu queria fazer é a seguinte. Se o criador precisa se afastar da vontade do público... C: Eu acho que existem estratégias. O Zé Lino é
historicamente um documento de uma época em que o valor é o da ruptura. Naquele momento, inclusive, o Zé Lino faz crítica entusiasmado porque há objetos críticos a serem indagados, que tem a ver com a experiência dele de poeta. Quando esse cinema fica também restrito a um grupo, fica restrito a uma ideia de arte e não amplia o seu grau de ação, ele para de escrever. Kubrick não era um homem da indústria – apesar de estar sempre apoiado por capitais industriais. Contemporâneo a esse panorama, você tem a chamada Nova
11
12
Hollywood, dominando o cenário num momento em que os estúdios perdem seu poder. Falo em Coppola, Scorsese, Carpenter. Acabaram de sair de escolas de cinema, uma novidade na época, e fazem um cinema de autor dentro da indústria. Como? Usando os gêneros de álibi. A ideia do gênero, assim como o José Lino enxergou na ficção científica, será usada por todos eles na produção de um cinema pessoal. Coppola até inventa um gênero, que é o filme de máfia. Ou seja, são filmes comerciais feitos para consumo, que ganham Oscar, e são lidos esteticamente. Têm uma dupla face. Não é de oposição do tipo “se não é vanguarda, é entretenimento; se não é entretenimento, é vanguarda”. E por que não encontrar essa fricção entre os dois? Quer dizer, é uma inteligência histórica apreendida. Chega uma hora que o Godard não vai mais fazer cinema para fazer militância política, e recusa o Truffaut por achar que está vendido aos americanos. Mas o Truffaut faz a mesma coisa que a turma americana. I: A noite americana [François Truffaut, 1973] é uma super estratégia. C: E ele é adorado a partir do A noite americana, ou seja, qual o problema desse cinema? Eu não vejo. É pobre? Pelo contrário, para mim não. Porque possui esse vírus de inquietação. Da mesma forma que existem gêneros, tais como o terror, comédia, etc., existe o tal do cinema de autor. Quer dizer, esse cinema de autor foi inventado enquanto gênero desde que o diretor emergiu na condição de artista. Isso tem se tornado muito comum em Mostras, na cobertura de festivais, mas há uma mitologia em torno do nome de alguns diretores, que muitas vezes não diz nada. Penso nisso em relação ao diretor catalão Albert Serra, que estreou em Cannes há duas edições como o novo gênio. Com
o mexicano Carlos Reygadas é a mesma coisa. Então tá, o cara tem a genialidade dele. Mas a primeira genialidade era Tarkovski; a segunda era Buñuel; a terceira era Dreyer. Mas e a própria genialidade? Sim, filma magnificamente - mas não me diz nada. Nada. Você pega o filme, o sacode e não sai nada. O próximo vai ser o que? Antonioni? É diferente de alguns orientais que foram valorizados, porque há uma tensão criativa, como Jia Zhang-ke, Tsai [Mingliang], o Wong [Kar-wai] – que eu defendo e muita gente detesta. O Carlão [Carlos Reichenbach] fala que é cinema de manicure [risos]. Então, se você acredita, é sua tarefa defender, aí você precisa da ideia do autor e por isso ela não é descartável. Mas não funciona em todas as situações. Não adianta buscar uma autoria onde ela não está pensada como tal. Almodóvar, por exemplo, é uma marca. Lynch é uma marca. I: O cineasta se transforma em franquia. C: É uma franquia a ponto de se cometerem lynchismos, almodovarismos, assim como felinices ou tarkovicices foram feitas. O seu nome não está isento de você repetir uma fórmula pronta. Acho que a ideia romântica que a gente tem do artista gênio é o que dificulta um pouco essa relação. I: Talvez o Clint Eastwood seja um dos diretores contemporâneos que melhor saiba usar os gêneros de artifício atualmente. C: Ele aprendeu com a mesma turma... Quer dizer, ele é mais velho geracionalmente. I: Mas é porque ele ainda era ator. C: Ele aprendeu com a turma que fazia isso no B, com o [Don] Siegel...
I: O [Sergio] Leone? C: O Leone também, mas ele não faz parte da indústria. É um caso a parte, usa o código da indústria. Os filmes do Leone são plenamente legíveis. I: Você gosta do Clint? C: Eu adoro. No caso do A Troca [2008], por exemplo, que muita gente falou mal e tal, fui ver o filme com aquela preguiça. Mas adorei! Um melodrama descabelado. Aí você fala: “Não é cinema de autor”. Mas eu não estou procurando autoralidade! Eu escrevi o texto nesse sentido, eu falava que se você procura um filme com história, uma atriz bonita que chora, que você chora com ela, vá correndo! I: Você falou de autoralidade, para trocar o termo “cinema de autor” por “níveis de autoralidade”. Porque às vezes o autor se expressa em determinado filme, a assinatura está mais recalcada. Eu fico pensando no Fernando Meirelles, em quem há uma dificuldade enorme em se encontrar autoralidade. C: Eu acho que tem astúcia, no caso do Meirelles. Acho que a autoralidade ali a gente inventou porque ele fez um nome que tem repercussão internacional, e nós, como brasileiros futebolísticos, ficamos torcendo. Mas a estratégia dele é outra. O texto do Cléber no Cinema Mundial Contemporâneo, o livro do Fernando Mascarello, sobre cineastas transnacionais é a leitura mais apropriada do fenômeno Fernando. É o mesmo fenômeno Guillermo del Toro, do Babel
[Alejandro González Iñárritu, 2006]. São cineastas que se aparecer um projeto agora, na África do Sul, ele tá lá. Ele é oportunista. E aí ele [Meirelles] tem também esse lado de querer criar uma espécie de nicho de bom acabamento para as produções que tem O2 no nome. Já no Blindness [Ensaio sobre a Cegueira, 2008] eu não enxergo. Eu não enxergava desde o Cidade de Deus [2002], na verdade. Autoralidade, não. Eficácia, sim. F: Eu fiz essa questão recentemente ao Heitor Dhalia [leia a entrevista na p. 32]. Sai de Nina [2004] e O Cheiro do Ralo [2006], dois filmes totalmente claustrofóbicos, para a praia no À Deriva [2009], e disse que o próximo projeto é na Serra Pelada. Eu perguntei a ele: “Você busca autoralidade?”. Ele respondeu que não. Falou que, sinceramente, é algo que não busca, mas que acontece naturalmente nos filmes. C: Eu acho que ele é mais honesto nesse sentido, porque se ele não tem essa visão de mundo tão demarcada que quer expressar, pode fazer isso através de apropriações. Eu não conheço Nina para contrastar, só vi O Cheiro do Ralo. Mas acho que pode acontecer isso, e não penso numa escala Daniel Filho, porque aí é outra coisa. Mas, infelizmente, não temos uma produção que permita a esses diretores que são médios fazerem a estratégia da apropriação dos gêneros. I: Acho que o Walter Salles tentou adotar essa postura com o Dark Water [Água Negra, 2005], mas que não deu certo e aí retornou para filmar o Linha de Passe [2008]. C: É, não sabe fazer, ele tem o fantasma do autor. Mas aí a gente fica preso a Cláudio Assis, Bressane, a uma lista de autores que não conseguem filmar. Uma
coisa que eu acho lamentável é que não exista uma constância de nomes como o da Tata Amaral, o Ugo [Giorgetti], que são uma série de médios diretores e fazem coisas interessantíssimas no meio do caminho. Eu adoro o Antônia [Tata Amaral, 2006], adoro o Príncipe [Ugo Giorgetti, 2002]. Quer dizer, por que não deixar esses caras soltos fazendo filmes de 800 mil reais ao invés de ficar buscando a grande obra, adaptar o clássico, sabe? E não sai do lugar nunca. Taí desde os anos 1950... É uma leva... I: Uma leva de autores improdutivos. C: Autores sem filmes. Cinema-de-autor sem filme. I: Na FLIP [Festa Literária Internacional de Paraty] deste ano aconteceu uma mesa sobre cinema e indústria. Estava presente o diretor de A Mulher Invisível [2009]... C: O Cláudio Torres, ele faz o filme não-visível [risos]. I: Ele dizia que filmou o Redentor [2004], um filme que não atingiu sua função pública, a de chegar a um determinado número de pessoas, com apenas 230 mil espectadores. Isto é, o filme não cumpriu com sua função social. Então ele disse ter optado por fazer um filme diferente com o Mulher. O mediador questionou se o que ele tentava dizer é que havia optado por fazer um filme mais comercial, já que em seu primeiro havia as opções estéticas em que o diretor acreditava. E o Cláudio respondeu que sim, para ver se conseguiam atingir um público tornando-o eficaz nesse ponto-de-vista. Então a saída é se desvencilhar de suas opções para fazer com que o filme chegue? C: Eles pensam de modo maniqueísta mesmo. E é engraçado porque, por
13
exemplo, eles trabalham juntos com a Conspiração Filmes. Estou pensando em dois filmes, Dois Filhos de Francisco [Breno Silveira, 2005] e Era uma vez... [idem, 2008], ambos com o pensamento de “como atingir um público”. Tem uma ideia, uma articulação e tem uma eficiência – e ambos atingiram. Dois Filhos de Francisco é um fenômeno. Ou seja, o que impede que a gente continue fazendo filmes com ideia? Eu acho invisível A Mulher Invisível. E eu acho que existe essa opção média. I: De filmes mais modestos do ponto-devista da produção?
14
C: Mas sem a bressanice... A gente é “oito ou 800”. Do ponto de vista de uma recepção da crítica, o Bressane não erra. Será que o Bressane não erra? Eu acho que a gente não entende o Bressane. Fica proibido falar ou fazer reservas ao Bressane porque ele é canonizado. É uma encrenca, eu sei porque já lidei com Cleópatra [ Júlio Bressane, 2008]. Eu tive que escrever, inventei uma tese. I: É uma obra-prima, para a crítica geral. C: Só que ninguém entende. Acho que ele e o Manoel de Oliveira devem entender o Cleópatra [risos]. Porque é uma estratégia parecida, a de filmar a palavra. Você até vê que é interessante, agora aí é que está a questão. O Cleópatra é um filme caríssimo? O Cleópatra se pagou? Isso não tem absolutamente nada a ver, essa pergunta a gente nem responde mais, está em outro plano. O que a gente tá pensando é se o Mulher Invisível e Se eu fosse você 2 [Daniel Filho, 2009] se constituem como indústria? A nossa resposta é “sim” ou “não”? Depois do décimo filme assim as pessoas vão continuar a ver? I: Acho que eles não têm força pra mover
uma indústria. Eu gosto muito da fala do JeanClaude Bernadet quando se refere à indústria cinematográfica brasileira, dizendo que o erro sempre foi pensar na produção esquecendo que os filmes têm que chegar ao espectador. C: Eu fiz um curso com o Roberto Moreira na USP e ele falava isso, sobre a coisa mais absurda no Brasil. Você faz o filme e pode engavetá-lo, porque ele já está pago e não tem nenhuma despesa. É um mecenato às nossas custas para quem quiser e tiver o poder de conseguir a verba. Mas aí fica parecendo que o meu discurso é anti-Bressane e pró-Daniel Filho. Não é no sentido de precisa encontrar o público, mas precisa encontrar um público. Quando me pediram a resenha do Linha de Passe, eu lembrei que ele começou a trajetória ganhando Cannes, com a atriz Sandra Corveloni. Quando ele chegou em DVD, um ano depois, a pergunta que eu fiz foi se agora que ele passou pelo cinema restrito do Espaço Unibanco, onde o público não vai – nós vamos até lá, mas o público que ele filma não vai –, será que na hora em que o filme chegar na banca da rua, sendo vendido a dois reais, não irá atingir o público e cumprir a sua função social? Eu fiz essa pergunta num texto muito curto. Na verdade, eu estava dialogando um pouco com o Waltinho, entendeu? O filme já está pago, não está? Agora então ele já não pode ser visto, fazer sucesso? Não fez sucesso nenhum, não é? Quando eu ando na Augusta – tudo bem, a pirataria é outra coisa, porque o lucro não chega para os caras – fico pensando quem vai analisar a pirataria enquanto estratégia de distribuição. I: Haja vista o fenômeno Tropa de Elite [2007, José Padilha]. Parece absurdo, mas por que não usar a pirataria como divulgação? C: Como pré-mídia [risos], mídia pró-ativa. E aí quando você sai do Espaço Unibanco na Augusta acontece um fenômeno que você se pergunta: “Quem está comprando um filme romeno a cinco reais?”. Alguém, certamente, não é? Todo mundo amaldiçoa a pirataria, são os monstros, pirataria vende droga na porta das escolas, aquela conversa fiada que exibem antes dos filmes. Tudo bem, eles têm pânico do filme perder público no cinema. No
“
As pessoas têm medo quando se fala de mercado, é como se fosse um demônio. Mas o que não entendem é que o cinema de mercado é muito mais complexo do que parece, que até o próprio cinema de arte está dentro de um mercado. Não é só Hollywood.
“
Será que na hora em que o filme chegar na banca da rua, sendo vendido a dois reais, não irá atingir o público e cumprir a sua função social?
caso do cinema americano, o filme perde público pagante, sim. Mas na nossa realidade, de um cinema que não está procurando dinheiro, está procurando público, ele pode encontrar. Devia ser feita uma estratégia mais anarquista de divulgação. Só que é tudo muito oficialesco. Então, se o filme ganhou a capa, um destaque na Ilustrada, cumpriu o papel, entendeu? Com Antônia aconteceu isso. Quando fizeram a divulgação – não era um projeto à la Batman –, pensaram num projeto de dominação das salas absurdo. Fizeram uma matéria pra repercutir o fracasso do Antônia. Mas as pessoas não vão ao shopping pagar R$19 para ver um filme. Não dá. A estratégia do Andrea Tonacci é maravilhosa. Ele não tem condição de ampliar a questão salas do filme, mas ele tem um público que ainda não chegou. Então marca a sessão na faculdade, exibe o filme em DVD e vende na saída por dez reais. Vende bem. Por quê? Porque ele
chegou ao público dele. Ele sabe o público a que gostaria de chegar. É meio artesanal, parece coisa de poeta dos anos 1970, mas o canal está em funcionamento. E assim ele continua ativo do ponto-de-vista da comunicação. Parabéns, bravíssimo! Ele não fez o filme para deixar guardado na gaveta, para não mostrar. I: E nem para ser discutido só numa roda de críticos. C: Eu queria finalizar com uma coisa. Eu li outro dia, quando preparava um curso. Há um texto do Truffaut no “Prazer dos Olhos” [Escritos sobre cinema, Jorge Zahar Editor, 2005], em que ele faz um comentário bem interessante, no final dos anos 1950, sobre esse lugar da crítica, a influência dela. E, contextualizando, ele falava algo mais ou menos assim: o crítico não atrapalha a carreira do Batman, mas pode ser útil para a carreira do Horas de Verão [Olivier Assayas, 2008].
15
!
Assista a trechos desta entrevista na seção Canal do site
sangue de poeta o cinema poesia de Jean Cocteau por Cesare Rodrigues
E 16
m suas considerações sobre cinema e poesia, Maya Deren parece ser mais objetiva que a maioria dos poetas na definição de sua arte, afirmando que “um poema [...] cria formas visíveis e audíveis para algo invisível, que é o sentimento, ou a emoção, ou o conteúdo metafísico do movimento”. Considera então que a investigação do poema dar-se-ia verticalmente, imergindo na profundidade do mesmo. E é com essa abordagem vertical que devemos encarar o primeiro filme de Jean Cocteau: Sangue de Poeta [1930]. Quase um manifesto do cinema-poesia, o debut do proeminente poeta, dramaturgo, intelectual, empresário de boxe, celebridade excêntrica e então cineasta é um mergulho na irrealidade da mente do poeta, escancarando seus delírios e temores, numa ousada tentativa de desvendar seus mistérios. E para Cocteau, o poeta seria um mensageiro capaz de vagar por outros mundos e trazer novidades de lá, um desbravador do inconsciente e do sonho que daria forma a ambos em seus poemas e, por que não, realizá-los em imagens?
“
Ninguém ignora que a poesia é uma solidão espantosa, uma maldição de nascença, uma doença da alma.
Jean Cocteau
ensaio
O ano era 1930 e as vanguardas artísticas encontravam no cinema sua mais interessante fonte de inovações. Cocteau passara a década anterior recuperando-se da traumática morte de seu grande amor, o também poeta Raymond Radiguet [autor de O Diabo no Corpo, morto pela febre tifóide aos vinte anos, em 1923], e descobrindo a fuga e os prazeres do ópio. É também na década de 1920 que Cocteau, influenciado pelos efeitos do ópio, definiria os principais temas de sua poesia, também norteadores de sua produção cinematográfica: as angústias e o sofrimento do poeta, o trânsito através de portas e espelhos entre mundos povoados de estátuas, as referências e personagens de mitologias e o elogio do fantástico. Avant-garde cinema Mas, por que um poeta consagrado arriscar-se-ia a experimentar os temas e formas de sua poesia numa outra arte, dependente de um dispositivo ainda em desenvolvimento e de diversos outros fatores, como realização e interpretações, entre si e o receptor? Aquele era um momento em que o desenvolvimento técnico, teórico e tecnológico do cinema era intenso, levando importantes teóricos de vanguarda, como outro proeminente poeta-cineasta Jean Epstein, a afirmar em meados dos anos vinte que “o cinema parece poder transformar-se – se já não o fez – no instrumento de uma propaganda mais eficaz que o da coisa impressa” . Ainda mais exaltado, Epstein atribuiria o sucesso do espetáculo cinematográfico a que “grande parte da humanidade, que
corria o risco de ficar sem poetas e sem poesia, de desaprender a sonhar, de não mais poder sublimar suas aspirações recalcadas, tenha começado a usar e abusar do cinema como arte-medicamento, como prazer-válvula de escape”. Então, impressionados pelo poder de representação da nova arte, como por sua imediata realização diante do espectador, artistas do calibre de Salvador Dalí também se aventurariam no cinema e, ao lado de Luis Buñuel, faria aquele que se tornou um sinônimo de cinema avant-garde e é inegável influência na criação de Sangue de Poeta: Um Cão Andaluz [1928]. Nele, como no filme de Cocteau, vemos a estetização do insólito, o exagero de formas, a alinearidade e inorganicidade da narrativa, o uso quase teatral dos cenários, poucos e fixos, a realização do sonho e da mente em cenas que alcançariam a iconoclastia e a destruição puramente estética. Não as metáforas visuais que Brakhage e a vanguarda estadunidense exaltariam algumas décadas depois, como o cinema-poesia, mas a projeção do que habita a mente do poeta. Um Cão Andaluz é também tido como marco inicial do surrealismo cinematográfico, movimento em que, pela clara influência da película de Buñuel e Dalí, erroneamente se encaixou a obra cinematográfica de Jean Cocteau, devido à sua busca pelo maravilhoso e pretenso uso do inconsciente. Mas, diferente do surrealista, que segundo Ismail Xavier “quer atingir o maravilhoso, e, para tal, precisa lutar contra o cinema que celebra a estabilidade do mundo de frustrações cotidianas ou fornece uma experiência escapista bem comportada que nada mais faz senão aprisionar o espectador no círculo de suas fantasias [...] O filme surrealista deve ser um ato libertador ”, o cinema de Cocteau, ainda fortemente influenciado pelos experimentos de Méliès , consiste num trânsito entre real e irreal enquanto procedimento mágico-lírico-poético. Não alguma luta ou ato libertador, mas uma descoberta de si próprio, um mágico encantar-se, o desvendar do poeta.
17
desvendando
18
o poeta
A trajetória de Orfeu:
Nosso poeta considerava a poesia uma religião sem esperança. A própria epígrafe que encabeça este ensaio me parece a mais clara expressão do fardo que Jean Cocteau considerava ser a obrigação do poeta carregar, o de mensageiro de outras realidades, criador e divulgador de uma ética que questiona e contradiz. Uma ética em busca do belo e do poético. Ainda que não explícito, cada cena de Sangue de Poeta decifraria uma nuance da mente do poeta. Seu desespero, seu jogo, seu medo, seu amor, seu trânsito entre mundos. Mas muito mais explícito em sua obra literária e num filme subsequente, Orfeu [1950], o cineasta Cocteau, mais que fazer cinema, dedica-se insistentemente à aparentemente impossível missão de desvendar o poeta: invariavelmente o próprio Orfeu.
Colagem: Caroline Panzian
reportagem
Qual o futuro da distribuição de filmes?
A pergunta que não quer calar em meio a novas tecnologias, oferta de vídeos online e pirataria.
por Felipe Arraa
A
produção e o consumo de produtos audiovisuais estiveram em constante mutação desde sempre. Disseram conservadores de diferentes épocas que o teatro seria morto pelo cinema, que seria engolido pela televisão, que, assim como as revistas e jornais impressos, teria na internet carrasco impiedoso. Sempre fomos testemunhas oculares de mudanças de paradigmas. Mas, em tempos de web 2.0, 3.0, seja lá qual o motor da máquina, perguntamo-nos a todo o momento qual padrão de comportamento, consumo e entretenimento ainda não foi modificado pela internet e a chamada cibercultura. E, no cerne dessa questão, está a distribuição de filmes [e, por que não, de produtos audiovisuais em geral, já que assistimos impávidos à proclamada “morte do CD”]. Balanços de grandes empresas, produtoras, distribuidoras e exibidoras de filmes do Brasil e do exterior mostram quedas acentuadas no público e nas receitas geradas pelos negócios cinematográficos nos últimos anos. Especialmente depois da crise econômica mundial de 2008, e tal qual um jogo de peças de dominó enfileiradas, abala-se o cenário da produção e distribuição de filmes.
19
O cenário é basicamente o mesmo ao redor de todo o planeta. Demissões e cortes de despesas em estúdios acarretam em menos produções novas. A economia enfraquecida impossibilita a ação de distribuidoras, o que torna crescente o número de películas que sequer chegam às telas dos cinemas, quanto mais lançadas em DVD. Quando isso acontece, a mídia física “oficial” se depara com a competição implacável da internet e da pirataria. Com menos lançamentos e menos público, a quantidade de locadoras de vídeo encerrando atividades cresce em progressão geométrica. Nos cinemas A recessão torna mais agudos os efeitos genéricos da orientação do público de massa por manipulações da indústria cultural, de acordo com estratégias de marketing, o que acarreta em ocupação maciça de salas de cinema e prateleiras de lojas pela produção comercial. Saem perdendo as produções menores, “independentes”, “de arte”, que veem opções de financiamento cada 20 vez mais escassas. Aqui, tratam-se de dois movimentos conjugados: o modo de ocupação do mercado e o investimento em marketing [o que inclui desde hotsites e capas de revistas até convites à imprensa internacional, que asseguram destaque nos jornais de todo o mundo]. Segundo o crítico Cássio Starling Carlos, “basta saber o montante de um orçamento de um blockbuster direcionado para publicidade para entendermos como a máquina funciona. Ou comparar o poder de transporte de um caminhão e de uma formiga.” Transformers, Batmans e Crepúsculos lançados a rodo comprovam o argumento do jornalista. Cássio também aponta que a “multidão de ofertas”, por paradoxal que possa parecer, joga contra o desenvolvimento do circuito alternativo. “O Batman todo mundo vai ver, enquanto o [Júlio] Bressane tem de dividir o público com o [Domingos] Oliveira, o Wong Kar-wai e, talvez, com o novo do Clint Eastwood. E com o YouTube, com a série de TV que já está na rede, com o clássico que vai passar no TCM e com a obscuridade catalã que apareceu no Karagarga.”
Enquanto isso, na web... A internet, sempre ela. O referido site Karagarga [karagarga.net] oferece a seus associados um acervo inimaginável de películas para download, e é apenas uma entre os zilhões de opções de blogs e programas de compartilhamento de arquivos que funcionam “ilegalmente”, segundo empresas, leis de direitos autorais e mecanismos articulados pela industria do entretenimento. Amedrontados pelos efeitos de tais práticas, exibidores e distribuidores veem seu ganha-pão rodar livremente pela rede. No carnaval de torrents, .AVIs e bytes circulantes só não vai [ou faz download] quem já morreu. Aqui, entram na dança as pequenas produções, mas principalmente os filmes comerciais, cuja velocidade de circulação na web é mais intensa. Cientes do bacanal em que todos estão metidos, produtores, distribuidores e até locadoras de vídeo tem procurado vias de sobrevivência
de pedidos feitos pelo site e oferece filmes também via streaming], aluga DVDs e Blu-ray pela internet, e lançou este ano seu próprio serviço de streaming de longas-metragens. Mas com o download ilegal já enraizado na cibercultura [especialmente no Brasil], como e por que apostar no streaming pago? “Não cobramos nada a mais pelo serviço. Já temos mais de 310 filmes e devemos chegar a 2.500 até o final do ano. Sai barato e é mais seguro do que baixar de forma ilegal ou mesmo comprar produtos piratas”, conta Daniel. A competição com sites como o Karagarga e as outras tantas possibilidades [sem custo] da internet promete ser difícil. Entretanto, o idealizador da NetMovies lembra que “não dá para ficar apenas brigando contra a rede.” Alugar filmes?
na própria internet. Endereços internacionais como o Amazon [amazon. com], Hulu [hulu.com] e, mais recentemente, The Auteurs [theauteurs.com] – que, na última Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, bancou bem sucedidas exibições de filmes do festival via streaming – apostam no sistema on-demand [nos moldes do YouTube] como alternativa viável dentro da nova realidade. Todos tem vínculos com empresas distribuidoras. O The Auteurs, por exemplo, é patrocinado por Costa Films, Celluloid Dreams [produtoras] e Criterion Collection [selo de DVDs de arte]. Para Daniel Topel, executivo da videolocadora virtual brasileira NetMovies [netmovies.com.br], “vivemos um momento de transição e precisamos ser mais atraentes do que a pirataria”. A empresa, cuja concepção foi inspirada na estadunidense Netflix [maior locadora do mundo sem nenhuma uma loja física - faz todas as entregas a partir
O negócio do cinema em casa, em especial, tem declinado vertiginosamente. Segundo dados da União Brasileira de Vídeo [UBV], hoje, 60% do mercado de DVDs no Brasil é ilegal, o que representa uma circulação de 10 milhões de discos por ano. Desde 2006, o total de DVDs vendidos no País caiu 45% em locadoras e 14% no total. O número locadoras de vídeo despencou de 12 para 8 mil em menos de quatro anos, e cada vez mais lembramos delas como um fenômeno do século passado. Nesse novo cenário, em que buscamos na web, não mais em lojas, os filmes que queremos assistir, empresas brasileiras como a citada NetMovies e a Saraiva Digital [livrariasaraiva. com.br/digital], por exemplo, seguem timidamente modelos estrangeiros de locação e venda de filmes online, e tentam brigar com o avanço da pirataria, a internet e segmentações de mercado operadas por camelôs. Será possível? Para Daniel Topel, sim, “oferecendo um serviço melhor com preço competitivo”. No meio do carnaval de tendências e possibilidades, a única certeza é que, cada vez mais, o público exige consumir filmes e outros produtos culturais da sua preferência, onde, quando e como quiser. E se a indústria não atendê-lo, alguém o fará - seja o Karagarga, o eMule ou o camelô mais próximo.
21
Piada
por Fernando de Paulo
“
22
O povo ama as coisas que o alegram”. A frase de Machado de Assis, criada no fim do século XIX, explica muito bem a engrenagem do cinema nacional. Afinal, desde que o Brasil criou o embrião de uma indústria cinematográfica, no começo do século passado, a comédia é o gênero que mais encanta e que mais faz com que o brasileiro se dirija ao cinema. Desde as chanchadas, gênero que dominou a produção nacional entre as décadas de 30 e 60, passando pelas pornochanchadas e as comédias de costume, que fizeram muito sucesso durante o período militar, até chegar aos grandes sucessos da Retomada, a qual tem como marco justamente uma comédia, Carlota Joaquina – Princesa do Brasil [1995], de Carla Camurati, o humor tem presença maciça na cinematografia nacional, mantendo um lugar cativo entre as maiores bilheterias. Entre os mais de 150 filmes que já ultrapassaram a marca de um milhão de espectadores no país – algo como a barreira dos $100 milhões nos EUA, o que, na maioria das vezes, diz se um filme fez sucesso ou não – a maior parte da lista é composta por comédias, que vão desde Trapalhões e Mazzaropi a Jece Valadão e Carlo Mossy, até a recente onda de filmes baseados em modelos televisivos como novelas e seriados, o chamado padrão Globo Filmes. Criada em 1998, a empresa produziu seus primeiros êxitos em 2000, quando viu O Auto da Compadecida, de Guel Arraes, e A Partilha, de Daniel Filho, figurarem entre as
Sucessos de bilheteria no deixam a desejar em
maiores bilheterias do ano. Mais do que filmes rentáveis, a Globo parecia descobrir a fórmula do sucesso: ambos possuíam um elenco estrelar, recheado de nomes do primeiro escalão da emissora, uma linguagem acessível, baseada em piadas e situações simples que poderiam ser entendidas pelo espectador da novela das oito e, claro, utilizando-se da enorme audiência da emissora para divulgar os filmes. O segredo era atrair para as salas de exibição uma fatia do público que não mantinha o hábito de freqüentar cinemas, preferindo novelas e outros programas televisivos. Era um público de certa forma órfão do cinema nacional das décadas de 70 e 80, quando havia uma grande oferta de filmes nacionais em cartaz, com ingressos acessíveis e filmes para todo gosto. A maior parte desse público se acostumou a ver blockbusters nacionais, como Dona Flor e seus dois maridos [1976], de Bruno Barreto, no cinema. Com a crise do cinema nacional, a partir do fim da década de 80, essas pessoas abandonaram aos poucos o hábito de ir ao cinema ver filmes nacionais, preferindo os grandes sucessos hollywoodianos. De certa forma, a Retomada trouxe esse público de volta ao
cinema e o humor era o gênero em que os produtores e os estúdios apostariam suas fichas, uma vez que a comédia sempre foi o carro-chefe responsável pelas maiores bilheterias do cinema nacional. Outro truque importante usado pelos filmes era tentar mostrar – mesmo que por vias tortas e de forma inverossímil – semelhanças entre os personagens e o público desejado – no caso, pessoas a partir dos 25 anos. Para isso as histórias sempre giram em torno de casais já formados, de boa condição financeira, na faixa de 30 a 40 anos, que estão em crise no casamento, como no caso de A Partilha [2001] e Se eu fosse você [2006], ambos de Daniel Filho e Divã [2009], de José Alvarenga, passando a repensar suas escolhas e a tentar mudar suas vidas, sempre acompanhados de coadjuvantes também globais. Mesmo que toquem no assunto de forma vaga e supérflua, o roteiro desses filmes chama a atenção do público,
reportagem
Pronta cinema nacional, comédias matéria de inovação
que, além de se divertir com os filmes, de certa maneira se identifica com o que está sendo retratado. O já citado Se eu fosse você talvez seja o exemplo que mais deu certo – e consequentemente o que mais foi copiado – entre as comédias. Lançado em 2006, o filme fez enorme su-cesso [público superior a três milhões de pagantes], mostrando a história de um casal de meia-idade [Tony Ramos e Glória Pires] quando um assume o corpo do outro ao repetir a frase do título. Retomando uma característica da chanchada, que se baseava abertamente em famosas produções hollywoodianas, a produção abordava um tema já visto em diversas outras produções, desde filmes esquecíveis exibidos na Sessão da Tarde até sucessos como Do que as mulheres gostam [2000], com Mel Gibson, e Sexta-Feira Muito Louca [2003], com Lindsay Lohan. Em 2009, Se eu fosse você 2
chegou aos cinemas, sendo basicamente uma cópia do primeiro, com as situações se repetindo, o que não desanimou o público, pelo contrário, levou quase o dobro dos espectadores ao cinema. A continuação atraiu seis milhões de espectadores e se tornou o filme mais rentável da história no país, rompendo a barreira dos 30 milhões de reais, o que corroborou com a tese de Daniel Filho, de que, segundo palavras do próprio em entrevista à revista Bravo!, “o público gosta de ver a repetição de cenas nas continuações, mas feita de forma diferente, com uma nova piada”. Amparado em uma estrutura extremamente televisiva, em que a iluminação, o cenário, a imagem, os diálogos e as piadas pareciam ser de qualquer novela global, e no carisma e na identificação que a dupla de protagonistas possuía com o público, Se eu fosse você, além de render uma continuação, consolidou um modelo que foi copiado por outros diretores em outras comédias. As semelhanças com as novelas e mesmo com seriados, a exemplo de séries globais que originaram filmes como Os Normais - O filme [2003] e A Grande Família - O filme [2007], se consolidavam, reforçando a impressão
de que o filme nada mais era do que um capítulo de novela de 90 minutos ou um episódio de uma série exibida na tela grande. Lançado em 2003, na esteira do sucesso da série, Os Normais, de José Alvarenga, foi um estrondoso sucesso, apenas reproduzindo nos cinemas o que já estava na TV, um humor ágil e de boas sacadas, mas que se fez repetitivo na tela grande. Mesmo a presença de Evandro Mesquita e Marisa Orth não ajuda muito, já que ambos parecem deslocados e passam despercebidos em certos momentos do filme. A rentabilidade do filme rendeu uma continuação, Os Normais 2 - A noite mais maluca de todas, lançado recentemente e que deve superar o público do primeiro filme. Se este já deixava a desejar, a sequência é de se lamentar. Enquanto o primeiro ainda procurava manter alguma semelhança com a série, Os Normais 2 lembra uma comédia adolescente nos moldes de American Pie [1999], com humor escatológico e cenas constrangedoras. O filme caminha a passos largos para superar o público de outros dois sucessos de 2009, Divã, de José Alvarenga, e A Mulher Invisível, de Cláudio Torres. Enquanto Divã segue a fórmula diretor global + elenco estrelar + roteiro ruim, A Mulher Invisível ao menos é mais criativo e original, um filme com bons momentos e, embora deixe a desejar muitas vezes. O resultado final, porém, fica aquém do trabalho anterior de Cláudio Torres, o bom Redentor [2004]. Pra não dizer que Divã não
23
24
apresenta inovações, o filme ao menos procura não reproduzir totalmente um capítulo de novela na telona, mas sim um texto teatral – ruim, é verdade – de Martha Medeiros, resultando em um teleteatro semelhante aos que eram exibidos pelas emissoras nos anos setenta. Há casos também de filmes que não alcançam o sucesso esperado, mesmo seguindo fielmente o modelo de vícios e excessos dos grandes êxitos. Entre os exemplos mais recentes, há filmes lamentáveis como A Guerra dos Rocha [2008], de Jorge Fernando, e A Casa da Mãe Joana [2008], do veterano Hugo Carvana, diretor de sucessos setentistas como Vai trabalhar vagabundo [1973]. Diversidade zero A grande questão acerca das comédias nacionais não seria sua qualidade, mas a ausência de diversidade e de uma oferta de produtos nacionais. As produções estão caminhando a passos largos para o mesmo caminho estreito, enquanto outros modelos não são criados. A descoberta de uma fórmula que aproxima do sucesso de público, em prejuízo da qualidade
e da inovação, está fazendo com que os diretores se tornem reféns de um padrão único, ao invés de buscarem algo mais criativo e pessoal, que possa agradar e principalmente retratar um público que costuma ser esquecido pelos cineastas: os jovens. Com raras exceções, historicamente adolescentes, estudantes e recém egressos ao mercado de trabalho não encontram um produto nacional criado especialmente para eles, com quem possam se identificar e se divertir sem maiores compromissos. As comédias privilegiam o setor bem remunerado da classe média na confecção do enredo e dos personagens, enquanto os jovens ficam a mercê do cinema hollywoodiano, o que não é de todo ruim, já que as comédias românticas convencionais ganharam companheiros inovadores e anárquicos, desde que os Irmãos Farrely lançaram o clássico Débi e Loide, em 1994, abrindo caminho para novas formas de se fazer comédia, revelando ao mundo o talento de atores como Adam Sandler, Jim Carrey e a turma de amigos conhecida como “Frat Pack”, que engloba atores como Ben Stiller, Luke e Owen Wilson, Will Ferrel, Vince Vaughn, entre outros, que vêm substituindo gradualmente antigos as-
tros como Steve Martin e Chevy Chase. Mais recentemente O Virgem de 40 anos [2005] e Superbad [2007] provocaram efeitos semelhantes no cinema norteamericano, revelando nomes como o diretor Judd Apatow e o ator Seth Rogen. Já no Brasil, a diversidade é praticamente inexistente, ficando restrita a exemplos solitários, como os filmes de Jorge Furtado, com destaque para Houve uma vez dois verões [2002], e Meu tio matou um cara [2004]. Outro exemplo de cinema autoral seria Fica Comigo Esta Noite [2006], de João Falcão. Estrelado por Vladimir Brichta e Alinne Moraes, o filme mostra a simpática história de um cantor que morre após uma briga com a esposa e tenta voltar à vida para passar uma última noite com ela, contando com a ajuda de fantasmas e anjos da guarda, numa espécie de versão tupiniquim de Ghost [Jerry Zucker, 1990], em meio a referências da cultura pop como HQ’s. Embora tenha passado despercebido pelos cinemas, Fica Comigo Este Noite é a prova de que há outros caminhos que podem ser explorados pelo cinema de humor nacional, não ficando restrito apenas a uma única fórmula.
E
m seu livro sobre a história dos arquivos de filmes e da preservação audiovisual, Penelope Houston – por décadas a editora-chefe da revista inglesa Sight and Sound – relatou o episódio em que um experiente crítico, sentado numa sala de cinema ao seu lado, certa vez divagou sobre de onde vinha aquela luz que atingia a tela no momento de projeção dos filmes. Esse “causo” servia apenas para ilustrar o argumento da autora de que mesmo pessoas que estudam, pesquisam, conhecem, amam e estão bastante familiarizadas com a experiência cinematográfica, podem revelar uma completa ignorância sobre tudo que está “por trás” dos filmes na tela. De modo mais simples, sob a forma de uma pergunta que pode se assemelhar ao inevitável questionamento das crianças sobre a origem dos bebês, trata-se de perguntar de onde vem os filmes, afinal?
por Rafael de Luna Freire*
A origem dos filmes
25
26
O original no cinema De início, devemos assinalar que o cinema não é uma arte tradicional como “as outras seis” [no manifesto de Ricciotto Canudo, que cunhou a expressão “sétima arte”, o cinema era visto como o apogeu e síntese de todas as artes anteriores] que, tomando as artes plásticas como exemplo, possuem a aura da “obra de arte”, do objeto único e original. Podemos dizer que todos nós já vimos muitas vezes a imagem da famosa pintura Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, mas até hoje milhares de turistas vão diariamente ao Museu do Louvre, em Paris, para ter uma visão direta do original da obra, ainda que [ou justamente porque] já a conheçam muito bem através de reproduções em livros, jornais e revistas. O motivo para tal é o fato de que ali está a verdadeira e única Mona Lisa, ao alcance dos nossos olhos sem nenhum tipo de intermediação ou interferência entre nós e as pinceladas
dadas pelo mestre renascentista há mais de cinco séculos. O cinema, por sua vez, com seu estatuto inevitavelmente ambíguo de arte e indústria, sustenta-se num princípio de reproduções, tendo talvez um parentesco mais próximo com a técnica da gravura, responsável por popularizar a circulação de imagens ao final da Idade Média ao permitir reproduções mecânicas, rápidas e baratas. Desse modo, podemos começar perguntando o que é o original de um filme. No caso de uma realização em película cinematográfica – que, mesmo com o advento do vídeo e da tecnologia digital, ainda é o suporte mais frequente do que entendemos genericamente como cinema – seria o negativo utilizado na câmera? Para começar, ninguém assiste a um negativo [com as cores ou o preto-e-branco invertido] e o acesso à obra tal como ela foi concebida já deve ser dar necessariamente a partir de uma
primeira reprodução, do filme negativo para o positivo, com a criação de um novo material que, este sim, poderá ser visto e apreciado. Além disso, na quase total maioria dos casos, o chamado “negativo de câmera”, mesmo já montado e editado, ainda não é a obra final, pois esta ainda receberá marcações de luz, trucagens óticas, além de, hoje em dia, uma infinidade de efeitos digitais [incluindo até a total inserção de personagens e cenários] que diferenciarão ainda mais o produto final [intermediado digitalmente ou não] do que foi sensibilizado originalmente através da câmera. Entretanto, ao término do processo moderno de “finalização”, chegase a um material chamado justamente de intermediário [no caso da película, um interpositivo ou internegativo] que será utilizado para dar origem às cópias exibidas no cinema. Desse modo, podemos considerar como o original o filme que vemos na tela, ou seja, a cópia? Por hora podemos dizer que sim, mas para os arquivistas audiovisuais, o melhor elemento para preservar uma obra, são aqueles que deram origem à cópia, os materiais intermediários, e que, mesmo não podendo ser acessados diretamente, poderão dar origem a novas cópias com a mesma qualidade, ainda que as “cópias de exibição” sejam fundamentais, no mínimo, como referência. Aqui deve ser citado o conceito de “geração”, que se refere a cada passagem da criação de um novo material positivo a partir de um negativo [ou vice-versa], em que há inevitavelmente perda de qualidade em qualquer suporte cinematográfico ou eletrônico. Como para uma cópia dar origem a outra são necessárias pelo menos duas gerações, os materiais mais próximos às primeiras gerações [negativos originais ou materiais intermediários que deram origem à primeira geração de cópias] têm melhor qualidade,
portanto mais apropriados para serem preservados. Uma grande vantagem da tecnologia digital em relação aos processos analógicos é ausência de qualquer tipo de perda na feitura de cópias. Dito desta forma, parece tudo muito simples: o material intermediário [digital ou não] feito a partir do negativo de câmera dá origem às cópias e, preservando todos esses elementos, temos a obra cinematográfica salva e acessível. Obviamente, o mundo real é bem mais complicado. Afinal, nem todas as cópias de um filme são iguais e nem todos os elementos da obra estão sempre e igualmente presentes em todos os seus materiais. E o pior: nem sempre são preservados ou sobrevivem todos os materiais envolvidos na criação de uma obra. A película cinematográfica – o vídeo e o digital então, sem se fala – revelaram ser suportes bem mais frágeis do que a tela e as tintas usadas por Leonardo Da Vinci. Desse modo, é importante citarmos uma das “regras” assinaladas por Paolo Cherchi Usai, de que o “original” de um filme é um objeto múltiplo, fragmentado em diferentes entidades iguais ao número de materiais sobreviventes. Ao contrário da pintura, em que a obra equivale a um único objeto [a Mona Lisa é o quadro que está no Louvre], no cinema a obra existe em um conjunto de diferentes materiais. A citação de Usai é justificadamente tirada de seu livro sobre o cinema
silencioso, período em que as diferenças entre os materiais eram mais agudas. A história do cinema também tem sido a trajetória do crescente controle dos realizadores sobre a padronização das cópias que são exibidas de suas obras. A conversão da indústria para o cinema sonoro, no final da década de 1920, é um exemplo claro disso. Se antes as músicas, narrações e sonoplastia ficavam a cargo de cada sala de cine-ma - que podia optar, inclusive, pelo silêncio –, com a sonorização mecânica e sincronizada por discos e depois pelo processo ótico (com o som impresso fotograficamente na própria película, junto com as imagens) todas as salas passaram a reproduzir exatamente o mesmo som que fora gravado para o filme. Num futuro próximo, com a transmissão via satélite dos filmes em arquivos digitais diretamente para a sala de cinema, esse processo chegará ao seu apogeu. Nos primeiros trinta anos da história do cinema, a situação era muito diferente. Os primeiros processos de colorização, como a pintura manual ou a viragem e tintagem, se davam somente nas cópias e geravam cópias diferentes umas das outras. Por serem processos custosos, alguns filmes eram lançados em cópias coloridas e outras em preto-e-branco. Outras vezes, cópias do mesmo filme podiam trazer ainda mais dife-renças, inclusive de enquadramento. Os primeiros negativos não suportavam que fossem
27
28
feitos números tão elevados de cópias antes de se danificarem [não existindo deainda os materiais intermerdiários] e, desse modo, nos anos 1920, diversas produções eram filmadas simultaneamente com duas câmeras, dando origem a dois negativos ligeiramente diferentes, sendo um deles geralmente destinado à exploração comercial no exterior. Cópias de primeira geração [como as tiradas diretamente do negativo] têm uma qualidade maior e, até hoje, são feitas em ocasiões especiais, como na sessão de estréia de um filme ou em exibições em Festivais de Cinema. Para citar outro exemplo, mais próximo de nosso contexto, durante a ditadura militar no Brasil, a censura frequentemente exigia cortes de determinadas cenas nas cópias que seriam exibidas nas salas de cinema e, somente em casos extremos, eram feitos cortes no próprio negativo. Assim, podem existir cópias de um longametragem sem cortes [respeitando a integridade da obra conforme criada pelos seus realizadores] e outras com tais cortes [com uma informação essencial sobre a forma no qual o filme foi visto pelas platéias na época de sua exibição], diferenças fundamentais na ausência, nem um pouco rara, dos negativos dos filmes. Filmes brasileiros os mais diferentes – incluindo os do Cinema Novo, do Cinema Marginal ou da Boca do Lixo – quase sempre eram feitos com poucos recursos e raramente custeavam a feitura de um material intermediário. Nesse caso, todas as cópias eram feitas diretamente do negativo original montado, resultando frequentemente no comprometimento desse material e no consequente paradoxo de que, quanto mais popular o filme fosse [e mais cópias fossem feitas], mais prováveis eram as chances de seus melhores materiais se degradarem pelo excesso de uso. Hoje existe um consenso de que quando se realiza a restauração de um filme, o objetivo geralmente é criar um novo material o mais próximo possível à forma no qual foi visto original-
mente em seu lançamento. O primeiro e mais importante passo nesse processo é justamente a localização e verificação do estado de todos os materiais existentes dessa obra que possam auxiliar na criação de uma versão de como essa obra existiu e foi apreciada em determinada época. Ou seja, a visão que temos da obra vai sempre depender da cópia que assistimos ou do material que lhe deu origem, sendo este um universo que comporta inúmeras diferenças [clássicos como Metropolis, 1928, de Fritz Lang, ou Encouraçado Potenkim, 1925, de Serguei Eisenstein, foram exibidos em versões diferentes em vários países ao longo dos anos]. Mesmo falando apenas de longas-metragens de ficção – a parcela reduzida e mais óbvia do que entendemos como cinema –, muitas vezes o que assistimos é uma dentre várias versões possíveis da mesma obra. Não é nem um pouco raro que as cópias as quais temos acesso representem apenas uma pálida e incompleta versão do do que teria sido a obra em dado momento. Assim, o historiador – ou o crítico mais comprometido – deveria sempre, ao escrever e analisar as caracterísicas textuais de uma obra cinematográfica, apontar qual foi a cópia que teve a oportunidade de assistir. Além disso, as origens de uma cópia são as mais diversas e atribuladas. Que cópia é essa? Nem sempre, ou raramente, todos ou os melhores materiais da maioria dos filmes realizados até os anos 1940 e 1950 foram preservados, o que inevitavelmente afeta as cópias hoje disponíveis deles. O cinema era encarado mais ou menos como o comércio de gelo – a exploração do lucro imediato de um produto efêmero – e um filme antigo era quase tão desprezado como o jornal do dia anterior. Sob uma visão industrial, a ampla consciência de que uma obra cinematográfica poderia continuar gerando dividendos após esgotada sua carreira comercial inicial nas salas de
ensaio
cinema se consolidaria apenas com o surgimento da televisão, sendo reforçada posteriormente com os lucros advindos da venda dos direitos para o mercado de vídeo doméstico e TV à cabo nos anos 1970. O caso da televisão – que, em termos de preservação de seus produtos, repetiu os mesmos erros do cinema – também não é muito distinto, pois a Rede Globo, por exemplo, só atentou para a necessidade de preservar todos os capítulos de uma novela [antes guardava apenas os primeiros, alguns do meio e os finais, apagando o resto] quando passou a comercializá-las para redes estrangeiras, nos anos 1980. Hoje, com as inúmeras janelas de exibição – DVD, blue-ray, internet, celular – a noção de que um acervo representa um ativo comercial já está mais do que disseminada, ao lado de uma consciência de viés cultural igualmente mais difundida que defende a necessidade de preservação do que passou a ser encarado como o patrimônio audiovisual [passo fundamental nesse sentido foi a Recomendação para a salvaguarda e preservação das imagens em movimento, adotada pela UNESCO, em 27 de outubro de 1980, data que passou a se comemorar o dia mundial da herança audiovisual]. Os materiais que sobreviveram dos filmes de ontem são responsáveis pela visão e audição que temos – ou não – das obras hoje. Praticamente nada sobreviveu dos primeiros dez anos de filmagens realizadas no Brasil e muito do que ainda vemos do cinema silencioso brasileiro são fragmentos, copiões, cópias incompletas ou muito danificadas. A associação entre filmes antigos e filmes riscados, sujos e tremeluzentes é baseada no geralmente precário estado físico dos materiais que chegaram aos dias de hoje, criando uma concepção equivocada sobre a qualidade, por exemplo, fotográfica dessas obras. A noção de um cinema antigo exclusivamente preto-e-branco
também se consolidou devido à perda das muitas cópias coloridas que circulavam amplamente e a rara exibição das que ainda existem. Num outro caso mais próximo, várias chanchadas brasileiras dos anos 1940 e 1950 só sobreviveram em cópias muito danificadas. Desse modo, devido à perda de seus negativos, os novos materiais que podem ser feitos hoje dessas obras apresentam sempre graves defeitos no som e imagem que não existiam originalmente, ampliando um antigo preconceito a respeito da qualidade técnica destes filmes. Esses equívocos também estão ligados não somente aos materiais que sobreviveram, mas também à forma como eles são disponibilizados e vistos. Muitas pessoas têm a impressão de que nos filmes silenciosos tudo era acelerado. As pessoas não andavam, mas pareciam correr! Obviamente que os filmes não eram assim, mas isso se deve a uma exibição incorreta deles hoje, sobretudo quando popularizados através da televisão ou vídeo. A velocidade padrão das câmeras e projetores durante o cinema silencioso era de 16 quadros por segundo [ou seja, em um segundo, 16 fotogramas eram filmados pela câmera/projetados na tela], mas com o advento do som, a velocidade se estabeleceu em 24 quadros. Ao exibirem esses materiais numa velocidade diferente da qual eles foram concebidos, o público associa à obra uma característica decorrente da incorreta exibição daquele material. O mesmo ocorre com filmes exibidos na televisão em formatos diferentes daqueles para os quais foram criados. Filmes feitos em formatos panorâmicos [ou seja, “retangulares”, como 1,85:1, ou o scope tradicional, 2,35:1] são mutilados para serem exibidos na TV, seja a convencional [1,33:1 ou 4x3], ou as digitais e ditas wide-screen [16x19 ou 1,78:1] e até mesmo para serem lançados em DVD. Na televisão, através
29
30
do simples corte lateral da imagem ou do panning [criando um movimento panorâmico no que antes era um plano estático], subjuga-se a imagem ao meio, mas sempre buscando tornar invisível ou imperceptível essa alteração. Para voltar à analogia com a pintura, corta-se o quadro para adaptá-lo à moldura. Alterações no formato continuam sendo frequentes nas salas de cinema [em muitos casos, a visão do boom - o microfone – nos filmes está mais associado a erros no formato de projeção do que dos filmes], e tem alimentado um recente debate dos críticos brasileiros a respeito das imperfeições e da baixa qualidade do padrão de projeção digital que está se impondo no Brasil [A partir de discussões em listas da internet, um grupo de críticos escreveu e divulgou, em outubro de 2009, uma “Carta aberta aos responsáveis pela projeção digital no Brasil”, acompanhado de uma lista de assinaturas, acesse em www.preservacaoaudiovisual.blogspot.com]. Ainda é importante tocar num outro aspecto, que é o suporte do material. Os arquivistas audiovisuais [além dos cinéfilos frequentemente acusados de purismo] defendem sempre a conservação e também, quando possível, o acesso a uma obra no suporte original no qual foi concebida. Ou seja, um filme
realizado em película 35 mm deveria ser preservado nessa bitola e sua visão se dar num material nessas mesmas especificações. Por diversas questões, inclusive custos, muitos filmes sobreviveram apenas em 16 mm, resultando na qualidade inferior dos materiais que podem ser criados – e consequentemente vistos – a partir deles. Essa questão tem vários complicadores, pois muitas vezes os suportes têm sua produção descontinuada. Até 1950, o cinema utilizava como suporte películas de nitrato de celulose – que tinham um brilho e transparência excepcionais, mas que eram quimicamente instáveis e, se mantidas em condições inadequadas, eram perigosamente inflamáveis. Com o desenvolvimento do triacetato de celulose [ou simplesmente acetato], o nitrato deixou de ser fabricado. Desse modo, não só pelos riscos de incêndio, mas por quase sempre tratar-se de materiais de primeiras gerações e, por isso, destinados à preservação, hoje praticamente não se exibe mais cópias em nitrato, não sendo possível também fabricar novas cópias nesse suporte. Entretanto, a diferença entre o nitrato e o acetato é muito menos acentuada do que entre a película cinematográfica e formatos eletrônicos
[fotograma de bitola 70 mm]
ou digitais. Há sempre uma perda envolvida ou, pelo menos, uma diferença significativa, mesmo quando falamos de arquivos digitais de alta qualidade. Porém, a indústria segue em sua “renovação” tecnológica e hoje já se prevê um futuro em que a produção da própria película cinematográfica será descontinuada – seguindo o que aconteceu com a fotografia still, substituida quase totalmente pela fotografia digital. Diante desse panorama, há quem avente a possibilidade de num cenário futuro em que, com o fim da fabricação de filme virgem e dos laboratórios e não sendo mais possível fazer novas cópias em película cinematográfica, todos esses materiais nesse suporte venham a se tornar objetos raros. Nesse sentido, uma boa cópia 35mm de um clássico do cinema – um objeto não mais possível de ser reproduzido ou recriado – passaria a ser cercada dos mesmos cuidados com que se trata um quadro de um mestre da pintura, como a Mona Lisa. A dependência tecnológica Diferentemente de um quadro ou escultura, qualquer material audiovisual necessita de uma mediação tecnológica para que a obra possa ser desfrutada. Mesmo que seja possível
observar as imagens fotográficas de cada fotograma de uma película cinematográfica a olho nu, a ilusão de movimento, a representação visual ampliada para a qual as imagens foram pensadas, além da própria audição do som, só podem ser alcançadas através de uma máquina como o projetor cinematográfico. De forma mais acentuada ainda, isso se dá com as fitas magnéticas ou os discos óticos, em que nem essa “pista” é possível. A inexistência de tal equipamento – devido à sua obsolescência tecnológica e à descontinuidade de sua fabricação industrial – torna um material “inassistível” e, logo, compromete o próprio acesso e, assim, a existência dessa obra. Um exemplo são filmes realizados em bitolas [termo que se refere à largura da película] diferentes da que viria a se tornar o padrão da indústria [como o 28 mm] ou se tornariam obsoletas [como o 9,5 mm], ou com tipos de perfurações distintas dos padrões [os filmes dos irmãos Lumière, por exemplo, possuíam duas perfurações redondas por fotograma]. Nesses casos, a obra só pode ser recuperada através da contínua duplicação deste material para outro formato ou suporte coerentes com os padrões correntes da indústria. No caso do vídeo e dos inúmeros suportes utilizados nas primeiras décadas da televisão [fitas de 1 polegada, 2 polegadas, U-matic, entre muitas outras] a manutenção da operacionalidade dos aparelhos é ainda mais complicada. A inevitável migração das fitas VHS – cujos players deixaram de ser fabricados no país há poucos anos – é um exemplo ainda mais próximo desse processo. Por isso, a questão da obsolescência tecnológica é essencial tanto em relação à fabricação dos suportes, como também aos aparelhos específicos que permitem o acesso ou reprodução de determinados materiais. Enquanto no caso das artes plásticas é necessário apenas se preocupar com a preservação do objeto [que equivale à obra, como vimos], no cinema é necessário também manter o equipamento necessário à sua visão, ou, pelo menos, recriar [ou emular] aparelhos que permitam a sua duplicação para os padrões atuais. Se não há nada que atrapalhe diferentes pessoas verem da mesma forma a Mona Lisa, no caso do cinema essa mediação pode fazer com que um mesmo material seja visto de formas distintas.
* Rafael de Luna é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Imagem e Informação da Universidade Federal Fluminense, diretor da Associação Cultural Tela Brasilis [www.telabrasilis.org.br] e coordenador da comissão executiva da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual [ABPA]. Professor e pesquisador na área de história do cinema brasileiro e preservação audiovisual, é autor de inúmeros livros e artigos – entre eles, Navalha na tela: Plínio Marcos e o cinema brasileiro [2008] – e responsável pelo blog www. preservacaoaudiovisual.blogspot.com. [rafaeldeluna@hotmail.com]
Aqui nos referimos, por exemplo, a erros de projeção das cópias, que podem afetar o som, o foco, a luminosidade, o enquadramento, enfim, quase tudo relacionado ao que vemos na tela. Ou seja, mesmo quando você possui uma boa cópia de um filme [uma cópia nova, processada com qualidade e a partir de um material em igualmente bom estado e de uma geração inicial], seu acesso à obra pode ser comprometido por essa mediação, por interferências não relacionadas à inte-gridade do material. Infelizmente, no Brasil temos graves problemas nos dois campos. Por um lado, há uma despreocupação cada vez maior em se projetar cópias de boa qualidade em seus formatos originais, exibindo com assustadora frequência filmes em cópias em DVD de baixa qualidade, por facilidade e economia, mesmo em Cinematecas, Centros Culturais e em mostras e festivais que deveriam ser mais rigorosos nesses quesitos. Por outro lado, mesmo quando se dispõe de boas cópias e nos suportes originais, a projeção da quase totalidade das salas de cinema está longe de um padrão mínimo que permita ao espectador usufruir de toda a potencialidade da obra expressa naquele material. Entretanto, sabendo mais sobre o que está sendo projetado e como está sendo projetado, coloquando em questão uma equivalência automática entre obra e material, indagando sobre a origem e o estado das cópias exibidas, estaremos fazendo justiça ao nosso interesse e paixão pelo cinema, tornando-nos mais exigentes sobre como essas obras nos estão sendo apresentadas para melhor desfrutarmos delas.
31
A guerra santa ao que ousa não ser eu por Marcos Silva*
A
32
sociedade pós-industrial é vincada de cacoetes hipermodernos, tais como a insatisfação permanente e [sua consorte] a crescente necessidade de paraísos artificiais, situemse no plano das substâncias químicas ou teológicas. Essa sociedade aumenta a tendência à bipolaridade psíquica, pois, se nos libe-ra da venda da força de trabalho para nos fazer fornecedores de serviços intelectual e tecnicamente sofisticados, nos faz reféns de um status lastreado por cacarecos tecnológicos e grifes suntuosas. Assim, se ganhamos tempo para satisfações estéticas, por exemplo, estendemos a jornada de trabalho para tatear às escuras os amplos mercadões de novidades fugazes. Ainda nesse admirável e exaustivo universo técnico, há uma escalada da perda da pessoalidade enquanto nos enfurnamos nalguma comunidade que, paradoxalmente, se expande em escala global por meio da web 2.0. Porém, destarte o associativismo, o agrupamento comunitário é virtual, e a virtualidade retira a experiência do outro e a própria experiência do vivido, afinal, minha tribo mais imediata sou eu próprio, já que a virtualidade solapa a relação concreta: conviver é exercício duro e a negociação de sentido se faz à base da transposição do estranhamento. A inconsistência do convívio se avizinha à negação da alteridade – senão a incompreensão da própria dimensão comunitária, vivenciada à base de modismos – a partir do momento em que não se propõe ao estranhamento, porém a uma tabula rasa cujos julgamentos são
dados a reboque do exotismo, por meio do qual se aceita que o movimento do conhecimento prescinda da novidade e de tudo aquilo que foge a uma racionalidade experimentada, descartando as outras racionalidades possíveis em detrimento do não vivido. Nesse contexto, alteridade e estranhamento são ingredientes fundamentais para a percepção do mundo. A expressão estranhamento possui foro privilegiado na crítica literária, nas artes, na psicanálise e na antropologia, segmentos do saber nos quais é fundamental a experiência do outro [que me é estranho porque, obviamente, não sou eu, ainda que não seja tão distinto de mim]. Segundo o formalista russo Viktor Chklovski, estranhamento corresponde ao efeito criado pela obra de arte que nos distancia do modo corriqueiro com o qual apreendemos os objetos, e essa desfamiliarização nos libera para a dimensão do novo. No caso do crítico russo, o estranhamento permite nova visada a respeito da estética, o que não é fundamentalmente distinto da questão da alteridade. Sabemos que a China existe e, mais ou menos, onde fica [e a China fica em muitos lugares, dada a condição geográfica de sua dimensão e localização], mas sabemos pouco a respeito do chinês, e quando pensamos saber algo, chega-nos pela via do exotismo: cão, gato ou inseto que viram iguarias... Diretores orientais apostam no estranhamento pelo exótico como base da construção de suas estéticas. No contraste entre a es-
ensaio
tética exagerada e as temáticas quase banais é que retratam o exótico. A ficção de Jia Zhang-ke [filho da “famigerada” Revolução Cultural Chinesa] flerta com o real/documentário e apresenta as transformações da vida na China contemporânea nos microcosmos que são as vidas das personagens. Sua grande referência cinematográfica é o neo-realismo italiano, que utilizou processo semelhante na Itália do pós-guerra. Referência compartilhada por Hou Hsiao-hsien, porém sem um compromisso com a realidade que não a apresentação das ambiguidades inerentes a ela, distancia-se da história e aliena-se em situações rarefeitas de ação. Já Wong Kar-wai começou contando estórias kitsch de luta e se tornou exímio contador de estórias de amor, com forte influência ocidental: música pop ou tango nas trilhas e referências à literatura e/ ou ao cinema ocidentais. Enfim, uma produção cinematográfica que atua na interface do estranhamento com o exótico, para solucionar a negociação de sentido. Assim, idéias como “fim da história” [Francis Fukuiama] e “choque de civilizações” [Samuel Hungtinton], presentes no universo mental capitalista do imediato pós guerra-fria, evidenciam como a alteridade ainda é uma quimera, mesmo após um século no qual sua negação legou “formosos” morticínios, como as guerras mundiais e suas parentas regionais, Coréia e Vietnã, por exemplo – ou ainda a pós-moderna [sic] guerra do Golfo, de 1991. Em uma sociedade que
se individualiza e chancela o outro a partir da experiência restritiva do eu, o distinto de mim é avaliado como exótico, ainda mais quando interesses materiais entram em campo. Então, cresce a dificuldade de construção de histórias pessoais, conforme Peter Handke e Wim Wenders impingem às suas criaturas, e tanto no plano micro quanto macro-político o outro/exótico se torna necessário para justificar a aventura do bem contra o mal. Recentemente, o caso Obama evidenciou que a promoção da paz não é mais pré-condição para faturar o Nobel homônimo, basta [talvez?] um conjunto confuso de [boas] intenções. Isso reforça o fato de que a idéia da paz mundial [preferencialmente perpétua, conforme pretendia Immanuel Kant] tornou-se tão simulacro quanto um McCountry, o lanche produzido pelo McDonald’s na Iugoslávia durante a guerra de 1999, com hambúrguer de carne suína condimentado com páprica, tão ao gosto do paladar sérvio. A busca virtual pela paz redunda em pouca operacionalização, e a inviabilidade de uma pax global em tempos de crise econômica [guerra é um grande negócio] não é ingrediente desprezível num mundo que não se abala à auto-reflexão mesmo diante de um evento com as proporções do atentado de 11 de setembro, quando George W. Bush conclamou a população às compras, afinal, o Estado – guardião da liberdade e da democracia, primasirmãs da paz – daria aos bárbaros a reprimenda merecida: desde então, os
33
[Mao Tsé-tung, líder da Revolução cultural chinesa; microcomputador, ícone pós-moderno; as torres gêmeas do World Trade Center no momento do fatídico atentado]
34
EUA não deixaram as terras iraquianas e afegãs, e, ainda que, reiteradamente, seu presidente se mostre simpático à retirada das tropas estadunidenses, não esboçou planos concretos para operações militares que exigem envergadura pouco banal. Se, por um lado, em “O choque de civilizações”, Hungtinton administra um receituário chauvinista para que os EUA ganhem sua cruzada contra as civilizações islâmicas ou confucionistas; por outro, o evento grandioso que foi o atentado ao World Trade Center, em 2001, reiterou a idéia do bem contra o mal, em uma “guerra perpétua para a obtenção da paz perpétua”, conforme formulação irônica de Gore Vidal – um dos últimos representantes da geração de Nova York, e um dos críticos mais ilustres [e contumazes] dos desvarios do império norte-americano. Desse modo, a dicotomia bem versus mal ajuda a compreender, certamente, o êxito de uma das mais bem sucedidas produções cinematográficas: no decurso de três décadas, George Lucas desenvolveu a vibrante sextologia cinematográfica Star Wars, cuja tessitura atravessou momentos importantes de duas ordens internacionais [elaborada do fim para o começo, a obra teve início no final da década de 1970] e em nenhum momento perdeu sua força
expressiva. Ademais, dado seu talhe ficcional científico, caso seu viço venha se exaurir não ocorrerá tão cedo, afinal tem cativado as novas gerações que lhe cruzam o caminho. Se os efeitos especiais, inéditos até então nos filmes de ficção científica, constitui um dos motivos do sucesso da trilogia inicial de Lucas, o ponto mais e-levado de uma obra capaz de atrair legião de fãs mundo afora, é a simbologia e os aspectos psicológicos que perpassam a composição da história e dos personagens. Aliás, o diretor de Star Wars teve aulas com o renomado mitólogo Joseph Campbell [1904-1987], cuja obra O Herói de Mil Faces contribuiu para a construção da trilogia pelo cineasta, na qual há a presença do herói obediente ao “Chamado à Aventura”, que cumpre a “Ressurreição” e volta com o “Elixir”. Também são explícitos os arquétipos conforme expressão de Carl Gustav Jung, como o Herói, o Mentor e o Arauto, dentre outros, com funções dramática e psicológica claramente definidas.
É interessante que no robusto e tão detratado pensamento de Karl Marx, a alienação é um dos poucos conceitos ainda aceitos pelos plantonistas detratores. Alienação deriva do latim alien, que significa estranho. Marx, inclusive, apreciava a frase de Públio Terêncio “Sou homem e nada do que é humano me será estranho”. Porém a Academia de Estocolmo sucumbiu ao discurso charmoso. Ele não é exótico. Cá no andar debaixo [bem abaixo] a virtualidade das relações estreita o espaço para a surpresa e para o inusitado. Por outro lado, o status lastreado pelos cacarecos mercadológicos da hipermodernidade nos torna reféns do sagrado, seja adquirido às pencas na feira-livre do mercado das religiões ou no Olimpo da fetichização mercadológica, onde o valor monetário de uma bermuda ombreia o de uma TV de tela plana, indiferente aos atributos intelectuais necessários para produzir cada item. E dá-lhes pop rock, porque salsa ou cinema taiwanês soam exóticos, muito exóticos!
* Marcos Silva é escritor e sociólogo, professor de Geografia, Antropologia e Política na Fundação de Ensino Octávio Bastos [Unifeob], em São João da Boa Vista [SP]. Publicou artigos e dois volumes de poesia, além de ter adaptado textos para montagens teatrais. [claracrocodilo@uol.com.br]
ensaio
efemeridade e contemplação A estética moral de Hou Hsiao-hsien e a imaginação de um cotidiano lírico por Cesare Rodrigues
[...] com o cinema, é o mundo que se torna sua própria imagem, e não uma imagem que se torna o mundo. Gilles Deleuze Tudo era um todo. Agora o espaço se desagrega e se expande; o tempo se torna descontínuo; e o mundo, o todo, se desfaz em pedaços. Octavio Paz
35
A
intenção original deste ensaio era observar o estranhamento que a descoberta de um outro país, de uma outra cultura, causava ao cineasta taiwanês Hou Hsiao-hsien a partir da análise de seus dois filmes estrangeiros: Café Lumière [Japão, 2003] e A Viagem do Balão Vermelho [França, 2007]. Diretor de convicções duras, cujo estilo representa uma posição moral, no qual contemplação é mais valorizada que narrativa, e que encontra na tradição de narrativas rarefeitas dos clássicos japoneses Yasujiro Ozu e Kenji Mizoguchi, em que a forma de filmar o cotidiano assume mais relevância que o próprio filmado, Hou vem desde os anos 1980 desenvolvendo sua estética e estilo baseando-se em minimalismo cênico, planos duradouros, poucos cortes e pouquíssimo e suave movimento de câmera, normalmente posicionada à
média distância da cena, propiciando uma visão de 180° da mesma e a possibilidade de utilizá-la em diversas profundidades, como imortalizado por Ozu, cujo centenário de nascimento foi o motivo de Café Lumière, uma homenagem e uma citação. Nascido na China em 1947, mas criado e educado em Taiwan após a Revolução Comunista de 1949, Hou começou a filmar na ilha na transição dos anos 70 para os 80, época da chamada Nova Onda taiwanesa, quando, impulsionados pelas facilidades recém advindas do vídeo e influenciados pelo neo-realismo italiano, jovens realizadores procuravam fazer um cinema com preocupações estéticas e que retratasse as lutas e a realidade de seu povo, diferente dos filmes de artes marciais produzidos até então e massiçamente importados de Hong Kong.
Mas mesmo apontando para referências neo-realistas [mais clara em seu estilo a de Michelangelo Antonioni e seus longos e rarefeitos planos], o realismo de Hou seria um realismo misterioso. Um realismo ambíguo e baziniano, em que a objetividade seria encontrada pela expressão das ambiguidades inerentes ao real. Um real composto de situações líricas do cotidiano, de flagras na trajetória das personagens, quase nunca instrutivos para a compreensão do enredo. Quando há enredo ou linha narrativa que se possa seguir. É um realismo composto por pedaços de cotidiano e não um alinhado a um todo real. É um realismo alienado, que embora contemple o cotidiano das ruas, não tenciona a retratar sua época, mas a buscar nas sutilezas da vida cotidiana a matéria de ficção, um lirismo discreto, os temas e as cenas de seu cinema.
“O olhar elevas e a contemplas. Uma memória de algo que foi teu começa e se dissipa. (...)
Jorge Luis Borges
Estética de contemplação
36
A característica mais marcante no estilo de Hou diz respeito ao tempo, mais precisamente à duração dos planos. De uma posição fixa, a uma distância em que caiba o mise en scène [elementos constituintes da cena, como cenário e ação], fica a câmera, como um espectador presente no cenário e atento aos detalhes que compõem a cena. Normalmente sem cortes, não há sequer a utilização de campo-contracampo nos diálogos, fazendo com que os planos tenham a duração da cena toda e com que o filme apresente poucos cortes e consequentemente poucos planos com pouquíssima movimentação, consistindo naquilo que Deleuze define como a imagem-tempo [quando a própria imagem se estende pela duração do plano e não a ação que o representa]. Planos que pela movimentação e duração assemelham-se aos de Antonioni e Ozu, porém diferenciando-se especialmente deste por usar muitos elementos na composição do quadro, enquanto o cineasta japonês usava cenários bastante vazios e simples. Também como em Ozu e Antonioni, podemos observar na disposição do enquadramento de Hou a presença de molduras e formas geométricas encerrando os detalhes do mise en scène e fechando ou moldando o conteúdo dos quadros. A observação dos detalhes desses quadros é facilitada pela quantidade de vezes que se repetem. A volta a alguns poucos cenários é constante,
cada vez filmando-o com uma pequena angulação de diferença, como se o mesmo espectador que observava a cena anterior procurasse conhece melhor seus detalhes, olhando o ambiente por outra perspectiva. Perspectivas e repetições que o permitem conhecer os ambientes e participar do cotidiano das personagens, porém sem a intimidade forçada do close ou da superexposição, mantendo um distanciamento das personagens tão respeitoso quanto a postura moral com que Hou honra seu estilo. Cinemas de narrativas rarefeitas Em um ensaio em que pretende sumarizar a poética de Hou em apenas quatro fórmulas prosaicas [objetivo atingido apenas em partes], Fergus Daly constata que “[H]á um lado becketiano em Hou Hsiao-hsien; tudo começa e termina com resignação”. Como no teatro do dramaturgo irlandês, no cinema de Hou as coisas parecem evitar acontecer. Mais uma vez lembrando o mestre Ozu, o largo tempo do plano não se configura no tempo de desenvolvimento da ação, mas no de fruição da imagem. Normalmente Hou simplesmente dissolve situações no tempo do plano, sem direcionar seus desmembramentos. Mais importante que a trajetória das personagens é o desenvolvimento ou a ação de cada uma dentro da duração [espaço-tempo] do plano.
Porém, a dissolução de pouca ação em planos longos torna a narrativa de Hou em uma narrativa rarefeita. O filme é a construção obtida do conjunto desses planos, que pouco determinam a existência ou teor dos seguintes e sequer dependem dos anteriores. Uma série de unidades-cena independentes que o caracteriza e inclusive influencia autores talentosos e inventivos como Jim Jarmusch ou Jia Zhang-ke. Essa rarefação da narrativa é acentuada pela efemeridade da ação e da existência na obra do cineasta. Tão efêmeras que são incapazes de afetar indelevelmente a narrativa [no caso da ação] ou a história [no da existência]. Por isso, pode-se considerar que Hou conta episódios, não uma estória, constituindo as cenas nos próprios episódios individualmente, e não na evolução que iria de seus motivos a desencadeamentos. Por isso, além de escassas, as ações das personagens pouco interferem na narrativa ou provocam transformações, tornando a definição de tempo pouco clara. A rarefação de ação e narrativa, a insignificância das situações registradas, torna-as livres pelo tempo e espaço, como memórias, já que não conseguimos relativizar o tempo do plano ao tempo da experiência. O fato de as ações mostradas no filme não serem as determinantes, deixam uma série de possibilidades não resolvidas, lapsos de informação que permanecem inexplicados, contribuindo para que o espectador tenha acesso apenas a uma visão parcial do narrado, como nas visões da vida, expressando a tal ambiguidade baziniana, que leva Tony McKibbin a considerar o cinema de Hou não como um espaço para a observação do homem, mas um espaço para a observação humana, um exercício de observação do periférico, já que o central normalmente está fora de cena ou de quadro, o que, ainda segun-
Espaço, indivíduo, história
personagens estrangeiras, como as protagonistas de Café Lumière ou A Viagem do Balão Vermelho, que, mesmo numa terra que não a sua, estão em cena muito menos para observar [e daí encontrar os motivos para estranhamento ao chocarse com o insólito ou o cotidiano] que para serem observadas. Sua relação com o espaço seria mais a de componentes inseridos neles, de seres que transitam, mas que pouco
[Pedro Costa]
do McKibbin, faria do cinema de Hou “um grande cinema da imaginação, mas não no sentido de imaginário realizado, [...] mas, em vez disso, onde o cineasta nos força a usar a nossa imaginação” e concretizar, com o que conhecemos das personagens, uma narrativa imaginária e subjetiva, ou seja, um cinema que não vise a imitar a vida, mas a contar pedacinhos dela e sugeri-la, provocando a imaginação do espectador.
Diante de uma narrativa tão rarefeita, com lapsos que não permitem sua plena compreensão ou a definição de um plot, como contar o que acontece num filme de Hou? Apresentando as personagens e contando o que cada uma delas faz, sempre irrelevante para a história, mas um dos muitos pedaços em que a mesma se fragmenta, como a vida. Portanto, não haveria motivo para mostrar o mostrado que não fosse contemplar aquelas personagens de ações irrelevantes e efêmeras como memórias - prestes a se dissiparem. Como se filmasse sempre a iminência ou algo que nunca acontece. Ou, se acontece, não está na ação filmada, mas ao redor dela, fora de quadro ou de cena. Uma história que se faria ao redor do indivíduo, registros de existência, não uma narrativa. Um tornar o mundo em imagem [cena], valendo-se da bela leitura de Deleuze para a relação do espectador com o cinema, para que o espectador torne a imagem [objeto de sua imaginação] em mundo. Então, pouco estranhamento pode-se esperar dessas personagens cuja presença em cena faz-se mais importante para a composição do quadro que como agente da narrativa. Sequer das
sofrem influência do espaço. Alienadas que estão na própria individualidade, poderiam estar em qualquer lugar. Uma individualidade que ainda as alheia da história, que, se feita pelas personagens, é feita longe da vista do espectador. A
efemeridade de suas ações e existência, de cada uma de suas cenas e situações, enquanto se configura como mais um detalhe transitório do espaço, faz de cada uma delas um indivíduo alheio a ele e insignificante para qualquer história que não a sua própria. Ainda que Octavio Paz considere que, com a modernidade, “[O] espaço perdeu, por assim dizer, sua passividade: não é aquilo que contém as coisas e sim aquilo que, em perpétuo movimento, altera seu transcorrer e intervém ativamente em suas transformações”, em Hou, a alienação das personagens faz com que elas transitem pelos espaços, mas pouco sejam afetadas por eles para além do mise en scène. Embora em Café Lumière e A Viagem do Balão Vermelho tenhamos a personagem estrangeira “descobrindo” Tóquio ou Paris, as metrópoles não estão nos filmes. Podemos ver um pouco de sua arquitetura, mas nada de sua vida, de sua multidão, de seu submundo. Tudo o que se conhece delas é mostrado sem movimento e conduzido pelas personagens. Ora trens, ora balões vermelhos conduzem esse estrangeiro pelas cidades, mas seu percurso não é de estranhamento e descoberta. Atualidade e história não apresentam qualquer relevância para o indivíduo, uma vez que as situações isoladas que constituem sua trajetória assemelhamse a memórias: enquanto efêmeros detalhes, desvanecem diante da história.
“Ei, balão! Vem aqui. Você vem? Vamos. Está escutando? Se você vier... vou te dar uma coisa. Algo maior do que pode imaginar. Fala de Simon a um balão que não consegue alcançar, a primeira de A Viagem do Balão Vermelho
37
o fardo da memória O cinema de Wong Kar-wai a partir e para além de Amor à Flor da Pele por Felipe Arra
H
38
ong Kong, pequena ilha ao sudeste da China continental, foi um local propício para o cruzamento de culturas e desenvolvimento artístico, especialmente no terço final do século 20. Seu cinema, em especial, reflete perfeitamente o conteúdo de hibridização e cruzamento de culturas, possível desde sua abertura à China, sua complexa história colonial e suas sucessivas diásporas – como atesta a obra de seu mais destacado cineasta. Embora nascido em Xangai, Wong Kar-wai muda-se para Hong Kong com sua família aos oito anos de idade, após a explosão da Revolução
[Pedro Costa]
Cultural chinesa. É na ilha que ele cresce, nos arredores das Chungking Mansions, sem dominar o idioma local [cantonês], relacionando-se desde cedo com cinema, música e literatura de variadas procedências: China, Inglaterra, Estados Unidos, América do Sul. Como cineasta, Wong desponta na segunda metade da década de 1980, na efervescência da chamada “nova onda” do cinema de Hong Kong, que teve início no começo daquela década. Trata-se aqui de cineastas que frequentaram estúdios e escolas estrangeiras, com cultura fílmica fortemente influenciada pelos contornos urbanos característicos da localidade, e que são contratados para trabalhos televisivos – o que lhes proporciona experiência técnica para suas realizações posteriores. Beneficiado por esse cenário de ebulição cultural, Wong Karwai passa a desenvolver, a partir de seu primeiro longa metragem, Conflito Mortal [porca adaptação do título original, As Tears Go By, 1988] uma estética que progride ao longo dos anos:
derivativa mas completamente singular, de forte caráter antropofágico, releitura de referências modernas [notadamente Alain Resnais e Michelangelo Antonioni] com olhos para temas latentes da pós-modernidade, seja em Hong Kong, Buenos Aires ou Nova York, cenários de seus filmes. Desenvolvimento de uma assinatura Em toda a sequência de filmes de Wong Kar-wai, é notável um aspecto básico: sua obra não é uma soma de películas, mas um todo encadeado, polissêmico e mutuamente interativo, como atesta um breve mapeamento de seu trabalho. Dias Selvagens [1991] foi concebido como a primeira parte de um díptico, cuja segunda parte não se chegou a filmar - embora o próprio diretor considere Cinzas do Passado [1994], em certo sentido, e Amor à Flor da Pele [2000], em outro, poderiam ser entendidos como “sequências” do primeiro. Por sua vez, Amores Expressos [em inglês, Chungking Express, 1994] é composto pelas duas únicas, embora separadas, histórias que inicialmente formavam parte de uma trilogia, cujo terceiro segmento se converteu depois em Anjos Caídos [1995]. A primeira montagem de Felizes Juntos [1997] – cuja duração beirava três horas – incluía também outros personagens e histórias paralelas, suprimidas da versão definitiva. E, finalmente, Amor à Flor da Pele se configurou, ao longo de sua complicada
gestação, como três partes de uma visão múltipla sobre a comida [protagonizadas por um cozinheiro, um escritor e o dono de uma lanchonete] para acabar centrando-se unicamente na história do escritor. Nessa dinâmica de intersecções, 2046 [2004] se faz fundamental, já que, além de dar continuidade à história do escritor, engloba referências a quase todas as produções anteriores cuja ação transcorre nos anos sessenta. Para talhar esse todo polissêmico e interativo, extremamente autoral, Wong buscou constituir um núcleo de trabalho que pouco variou ao longo dos anos. A partir de seu primeiro filme, o cineasta forma uma base técnica, que tem no fotógrafo Christopher Doyle, no montador William Chang e no produtor Jeff Lau [sócio de Wong na Jet Tone Productions] bases firmes. Além da equipe técnica, o realizador trabalha muito com repetição de atores [Tony Leung e Maggie Cheung são os destaques]. Trata-se de exemplos paradigmáticos da criação de uma equipe compacta, à qual é atribuída a assinatura autoral do realizador. No cinema de Wong, essa questão parte do grupo e da repetição, que permitiram sua notável progressão estética e narrativa. Forma e discurso: Amor à Flor da Pele O caminho para que adentremos a obra de Wong Kar-wai é sinuoso, promove diversas conexões internas, e se faz por meio das fendas que o realizador opera no espaço-tempo de suas películas, como em uma viagem dos personagens do trem do tempo em 2046. Aqui, é notável a herança de filmes como Hiroshima, Meu Amor [1959] e Ano Passado em Marienbad [1961], de Alain Resnais – com quem o cinema de Wong tem profunda afinidade estrutural –, e também da obra do grande narrador argentino Julio Cortazar, em
“Alguém que conheci recentemente me deu esta
garrafa de vinho. Ela disse que ele é mágico. Uma taça e você esquecerá o passado. Achei que era loucura. Como poderia existir tal vinho? Huang Yaoshi em Cinzas do Passado
novelas como Rayuela [1963]. Para tratar das características fundamentais da paleta de estilos do diretor chinês, Amor à Flor da Pele, seu trabalho mais importante, é também o melhor ponto de partida para essa tarefa. As ações do filme se dão na Hong Kong dos anos 1960. Chow [Tony Leung, que arrebatou o prêmio de interpretação em Cannes] é um jornalista que se muda para Hong Kong com a mulher, que viaja com frequência. No apartamento contíguo vive Li-Cheung [Maggie Cheung], casada com um exportador que também viaja constantemente. A trama se desenvolve lentamente, até percebermos que o marido de Li-Cheung e a esposa de Chow [cujas figuras não conhecemos, já que permanecem atrás de molduras, paredes, portas, fora de campo] vivem um relacionamento secreto, o que acaba aproximando os traídos. Eles passam a viver uma relação dúbia e distante, e têm dificuldades não só para aceitar um relacionamento adúltero, mas sobretudo para amar, para se entregar. E quando descobrem que realmente amam, já é tarde demais. Amor arrasta o espectador a um território íntimo que está em sua própria mente: a recordação, o tempo, o amor frustrado, a incomunicabilidade, o desencontro: expressões de uma sensibilidade contemporânea e universal. Vivências pessoais que todos suportamos e pretendemos trancar no esquecimento. Wong Kar-wai consegue que esse lugar sepultado rompa todas
as barreiras que nosso inconsciente o impõe. Por esses fatores, identifica-se outro tipo de semelhança, desta vez de ordem temática, com outro renomado realizador ocidental, Michelangelo Antonioni. O filme traz consigo esse aspecto revulsivo, e que nos conta uma história “dupla”: de um lado, a que provém da trama argumental; de outro, a que cada um de nós leva em seu interior, uma história de amor daquelas que poderia ser, mas nunca foi. A verdadeira película transcende o espaço da projeção para se fundir diretamente com nossas lembranças. Aqui, Wong remete seu discurso aos aspectos formais e opera um mecanismo de desconstrução a partir do interior do filme. Esse processo se deu ao longo dos 15 meses de rodagem de Amor, que propiciaram amplo material visual que constituiria uma narrativa sem vazios, com relações plenas entre os personagens. Porém, essa possibilidade, em Wong, é eliminada no processo de montagem, e dá lugar a um filme feito de recortes, sugestões e, principalmente, ausências. Amor é autêntica poesia e, como tal, não importa o que diz, mas o que sugere. O processo se dá mediante a utilização de um procedimento enunciativo [o ponto de vista] e outro formal [o uso do fora de campo], comum em outros cineastas chineses, como Hou Hsiao-hsien. O ponto de vista se manifesta através da câmera de Wong Kar-wai, que propicia um olhar que tem proble-
39
40
mas para identificar o que vê, longe da onipotência das formas hegemônicas a partir de Hollywood. Ela é narradora, e representa uma visão exterior aos personagens e à história narrada. Para conseguir tal efeito de distância, um “cinema de bordas”, Wong utiliza recursos como a escuridão e a tela vazia, mas, sobretudo, a já citada filmagem de fora de campo. A câmera funciona como alter-ego do realizador, e se detém na antesala do acontecimento – como atestam os belos planos de corredores, enquanto as ações se desenvolvem nos cômodos. É esse efeito o que permite a substituição, em nossas mentes, dos personagens dos filmes por nós mesmos, nossas experiências pessoais. Tempo e memória Outro aspecto fundamental em Wong é da “descontinuidade temporal”, à maneira de Resnais, em que diversos tempos convergentes vão se apresentando à medida que se desenvolve a narrativa. O tempo progride de forma incerta, a narrativa estanca, ou progride muito lentamente, por meio
de diminuições de velocidade. Segundo o próprio realizador, suas características desacelerações no fluxo das imagens são “pragmáticas”, “uma maneira de os personagens e espectadores desfrutarem de um olhar, dar atenção a uma luz ou a um ruído”. Como se o tempo é que estivesse “à flor da pele”. Além disso, a cidade, Hong Kong, é outra das grandes marcas na obra do cineasta. A presença urbana é física, e se manifesta no desenvolvimento dos personagens, inclusive na chuva. O ambiente é intrínseco à cidade: mesmo Felizes Juntos, rodado em Buenos Aires, tem esse mesmo ambiente, cujas mais agudas representações se encontram em Amores Expressos e Anjos Caídos. Hong Kong é, em todos os casos, um personagem a mais, do qual nenhuma imagem pode se desvincular; um lugar onde parecem ecoar músicas do passado e do presente. Wong costuma dizer que as canções, em seus filmes, falam sobre aquilo que permanece não dito. Desde o tango, que reforça o caráter melancólico e dá voz à pintura impressionista que o fotógrafo Christopher Doyle faz das Cataratas do Iguaçu em Felizes Juntos,
passando pelos “quizás” de Nat King Cole em Amor à Flor da Pele [já que tudo no filme gira em torno das sugestões, quizás], até a resignação de Cat Power em “The Greatest” [novamente, a lembrança do que era para ter sido, mas não foi], tema de Um Beijo Roubado [My Blueberry Nights, 2007]. Em Wong Kar-wai, essa memória se constitui num fardo inerente à condição humana. Em Cinzas do Passado Redux [Ashes of Time Redux, 2008], versão repaginada do filme de 1994, o protagonista Ouyang Feng [Leslie Cheung] sentencia: “Quanto mais tentava esquecer, mais me lembrava. Dizem que quando você não pode ter o que quer, o melhor que pode fazer é não esquecer.” Parece ser uma síntese do discurso de Wong, ilustrado por sua paleta de estilos. Não menos ilustrativa é a cena de Amor à Flor da Pele em que Chow conta à árvore o segredo de que todos compartilhamos, seu amor por LiCheung. As memórias dos personagens de Wong Kar-wai são também as nossas memórias, e aí se encontra o poder da representação humana deste chinês tão singular. Afinal de contas, o que seria de nós sem nossas lembranças.
poéticas do real
De Xiao Wu a 24 City, Jia Zhang-ke rompe com o exotismo em sua representação da nova China
por Isaac Pipano
O
s liames do cinema contemporâneo chinês com as questões políticas apontam para a tomada do poder pelo Partido Comunista, em 1949. Ao estatizar estúdios, controlando não somente a lógica de produção, mas intervindo também na concepção estética, a partir de 1953, a arte transforma-se em instrumento ideológico de difusão de mensagens políticas. Porém, se ainda hoje, passadas mais de cinco décadas, os efeitos gerados pelo desmonte [parcial] desse cenário ainda não podem ser plenamente deduzidos, sabese que ao menos culminam na montagem de um novo esquema a partir dos anos 1990, inicialmente vigoroso, permitindo ao cinema chinês um viés de combate frente ao modelo de representação exótica, das tradições dinásticas milenares e seus dragões, remanescente das décadas anteriores. Reunidos pelo rótulo de Sexta Geração, sob a manifestação indistinta de um programa estético articulado e homogêneo, alguns cineastas respondem às dinâmicas e novas imposições da sociedade chinesa: a China mitológica, bem como as representações baseadas em dicotomias maniqueístas ou os arquétipos herói/vilão, protagonista/antagonista, é relegada por uma narrativa que objetiva o desnudamento da vida cotidiana. Associa-se a esses diretores uma tendência cuja essência baseia-se na vida submetida ao seu próprio fluxo, que contraria a adoção de ideologias e privilegia a descrição de retratos subjetivos – o íntimo humano ao excessivamente político. Por fim, pode-se dizer que a transnacionalidade
configura-se como fator estético, temático e produtivo de base para a irrupção desse cinema conciso, mas de envergadura bastante crítica. No plano industrial, muitas das películas não autorizadas pelo Estado passam a ser pós-produzidas em países como a França, Holanda ou Austrália, o que também acontece com a captação de recursos, a partir de investidores estrangeiros. No plano temático, ressaltase o interesse pelo processo vigente de ocidentalização e o conseqüente contato da juventude chinesa com a cultura pop; a imposição do êxodo aos trabalhadores e as mudanças provocadas pela industrialização corrente acarretando a perda de raízes culturais. No plano estético, ocorre a incorporação de métodos e teorias ocidentais, além de novas formas de expressividade artística, como a performance, a instalação ou o teatro experimental. Como síntese desse quadro, o processo de transformação da sociedade chinesa, com experimentação estética aliada ao uso das novas tecnologias, está Jia Zhang-ke.
41
Terra natal Aludindo ao terceto Xiao Wu [1997], Plataforma [2000] e Prazeres Desconhecidos [2002], como Hometown Trilogy, algo como a Trilogia da Terra Natal, tais filmes concentram suas narrativas em Fenyang, cidade periférica de Shanxi, onde o diretor nasceu, em 1970, e viveu até os 21 anos, quando a deixou para iniciar os estudos em cinema na Beijing Film Academy. Ao focar-se na cidade provinciana que ainda reserva uma face original da China continental, como uma espécie de microcosmo em mutação que condensa os efeitos primários da abertura política e econômica, a trilogia ocupa-se de um sentimento de não-
silêncio, evita-se o corte reincidente e a montagem paralela, como também são pospostos os diálogos baseados na alternância entre os personagens no jogo do campo/contra-campo. Pequenas unidades dramáticas e autônomas, de própria modulação no tempo-espaço, embebem a atmosfera narrativa e propiciam um ambiente de deambulação constante. Como no cinema-moderno, munindo-se da concepção própria do universo deleuziano, as situações sensório-motoras são substituídas por situações puramente ópticas e sonoras: diante das conversões sociais, os personagens já não sabem como agir e as sensações transbordam por sobre qualquer possibilidade de reação. Elevada à condição de totalidade,
“O tempo continua passando como este rio, que flutua sem fim, dia e noite.
42
Confúcio
pertencimento que tange a vida da juventude marginalizada e enfastiada, que vislumbra a possibilidade de uma vida plena distante dali. A rarefação narrativa e a dilatação dos planos apregoam o registro de tom realista e a predileção pelo uso de não-atores, suscitando, no Ocidente, o cinema italiano do pós-guerra, bem como autores mais próximos, geograficamente, como Hou Hsiao-hsien ou Yasujiro Ozu. Em oposição à narrativa clássica norte-americana baseada pela subsequência de ações articuladas ao epicentro da trama, herança das estruturas literárias, os filmes de Jia empenham-se menos na concatenação cronológica de acontecimentos do que por uma atenção demasiada ao tempo morto e sua prolongação. A insatisfação com o cotidiano apático e lacônico emana dos personagens primordialmente através do ritmo – que vem da vida e não se impõe a ela. Sobressai o
a percepção sobrepõe-se aos níveis de ação e ao espaço se confere um novo estatuto, depreendido de conexões com as situações motoras dos personagens. Na investida dos jovens tentando transformar o curso da própria vida, as ações estão submetidas ao olhar, ao silêncio, no limite, ao resignar-se. A varredura pelos prazeres desconhecidos volta-se no sentido oposto: na busca pelo novo, chega-se apenas ao antigo lar. Tal retorno, no entanto, característica reincidente na obra do diretor, reserva aspectos autobiográficos. O fluxo going home reage à revolução econômica, de efeito gradativo, que incide sobre alguns, vitimando aqueles que não se adequam, instaurando um modelo baseado em dicotomias. Antigos valores morais são subjugados às novas imposições sociais, onde os sujeitos são expelidos para uma zona de desconforto. O materialismo da nova sociedade destrona as relações familiares. Xiao Wu
e Cui Mingliang, personagens estigmatizados, já espelham uma característica que irá ser sobressalente nos próximos filmes de Jia: no retorno, já não há o que encontrar. Natureza-morta Através de um diálogo mais estreito com o governo, novas políticas de incentivo a produtos audiovisuais são instauradas a partir de 2003. A produção de roteiros prescinde uma aprovação integral para apenas uma leitura de um plot de 1.500 caracteres. A descentralização do Ministério do Rádio, Filme e Televisão, ao delegar a função para outras seis regiões, dá autonomia suficiente para que estes aprovem ou recusem roteiros. Se na trilogia da terra natal os personagens e as camadas temáticas colidiam com a composição dos novos espaços projetados pela revolução econômica, a escalada de Jia para esse esquema “aboveground”, ao alterar também seu método de produção, conduz sua estética para um caminho que conjetura um estreitamento com a audiência local - até este momento, seus filmes ainda eram vistos e distribuídos por cópias piratas – e um refinamento plástico da fotografia de Yu Lik-wai, seu parceiro no decurso da carreira. Enquanto em outros países do Ocidente a globalização foi sentida num processo ao longo de muitas décadas, o que permitiu às sociedades absorverem os efeitos gradualmente, não sem corolários; na China, em contrapartida, a compressão temporal, num hiato de apenas dez anos, foi responsável por projetar um ambiente ainda mais claudicante. O Mundo [2004] reflete esses sintomas a partir das relações que os indivíduos estabelecem com falsos espaços gerados pela industrialização. Tratando-se de um parque temático na periferia de Pequim contendo algumas
“A day is as long as a year” O que faz Jia Zhang-ke pertencer ao seleto grupo de cineastas que permanecem à frente da exigência crí-
tica, mantendo a autoralidade em alto padrão, incidindo, evidentemente, no modo como se situa no interior do corpo de cineastas contemporâneos, é sua capacidade de auto-reinvenção. De Xiao Wu a 24 City [2008], Jia mesclou uma obra ficcional a documentários, num processo concomitante, como em Dong [2006] e Em Busca da Vida, ou alternado, na entressafra de Inútil [2007]. Na lapidação dos procedimentos e linguagens, Jia incorre eminentemente a essa via dupla que abriu. A condensação narrativa lhe permite retirar da vida o drama, sem romantização, abrandando o hiato entre o nível de seus relatos, enquanto a obra documental recebe virtudes poéticas, permitindo a si mesma soar lírica e, não por menos, manter um compromisso fiel quanto ao estabelecimento de asserções, enunciando sobre e para o mundo factual. 24 City, documentário de propriedades tão singulares que o fazem transitar por esse campo estranho entre as balizas de registros cinematográficos distintos, suscita processo semelhante de [re]encenação operado pelo Jogo de Cena [2007] de Eduardo Coutinho. Aos sectários da objetividade documentária, lançam-se as questões sobre o que é a verdade através da alternância de relatos emitidos pelas vivências dos sujeitos ou por atrizes que, a partir de roteiros e imagens, puderam compor a persona da fonte dessas histórias, somada às suas próprias experiências. [Pedro Costa]
das réplicas de monumentos mundialmente conhecidos, como o Arco do Triunfo ou as pirâmides do Egito, é retratado o cotidiano de artistas e vigilantes reunidos nesse ambiente diminuto, um falso mundo fabricado que abriga os indivíduos fisicamente, mas os isola enquanto traços identitários e características culturais locais. A modernidade forjada, num movimento que encontra suas raízes externas à China, incide na classe trabalhadora, mal-remunerada, mas responsável por edificar os monumentos que convertem o país em potência em Em Busca da Vida [2006]. Aqui, os efeitos da globalização são ainda mais devastadores, soterrando uma cultura milenar qual uma bomba nuclear ou uma invasão extraterreste [estas duas imagens estão presentes no filme]. Dois eixos narrativos paralelos – ambos, no entanto, abordam o retorno de personagens à terra natal – são dispostos de modo que, ao final, sejam encontrados apenas os destroços soterrados de pequenos vilarejos, onde agora ocupa a construção da usina de Três Gargantas. Aos trabalhadores e suas vidas em particular sobrepõe-se o peso econômico da história, que infringe os limites do subjetivo para abrir terrenos para um futuro próspero, e em troca, submerge o passado. À medida que o país consolida-se como potência, os indivíduos perpetuam um caminho de alienação, que só pode ser vencida através de escolhas. Porém, elas recaem sobre o abandono das antigas tradições e a abertura para novos paradigmas. Na contradição daquilo que é destruído - e da pouca vida que ainda emana dali.
Aqui, recai-se no artista enquanto criador do novo, que não é a essência e não somente sua representação, e à arte na oposição de uma verdade ilustrada. De Xiao Wu e seus karaokês às coreografias coloridas sob batidas eletrônicas em O Mundo; dos retratos corpóreos de Dong ao canto e dança de Prazeres Desconhecidos; da indústria da moda e o protesto estilístico de Ma Ke em Inútil ao teatro e à performance em Plataforma, a arte se apresenta, sem exceção, em todos os filmes de Jia. De certa forma, a fuga dos personagens a tais espaços de catarse são contrapostos à exigência do real e suas imposições cotidianas, como se diante das transições econômicas, dos efeitos da globalização, em suma, dos paradigmas sociais pósindustriais que se delineam no vigor pulsante de um novo mercado, esses ambientes de epifania legitimam as individualidades dos sujeitos, no novo epicentro de massificação: salvaguardados pelas satisfações estéticas.
43
plano-sequência 44
por Gustavo Padovani
caos & movimento Um dos mais desafiadores recursos cinematográficos encontra novos significados na produção fílmica mundial
ensaio
V
irtuosismo para deleite de cineastas e cinéfilos ou um dispositivo para expressar melhor uma estética cinematográfica? Uma representação mais próxima da realidade ou um simulacro controlado da irrealidade? Esse recurso cinematográfico, o plano-sequência, quase nunca passa despercebido aos olhos do espectador e à sua realização se impõem desafios técnicos. Ao sintetizar o significado do plano-sequência, os teóricos Jacques Aumont e Michel Marrie já o definem expondo suas problemáticas: “um plano bastante longo e articulado para representar o equivalente de uma sequência [...] Tal distinção, porém, no mais das vezes, é difícil, e geralmente fala-se de plano-sequência quando um plano é suficientemente longo”. Já o diretor italiano Pier Paolo Pasolini exibe uma associação poética sobre a técnica, defendendo que o cinema “é substancialmente um plano-sequência infinito, como exatamente o é a realidade perante nossos olhos e ouvidos, durante todo o tempo em que nos encontramos em condições de ver e ouvir [um plano-sequência subjetivo que acaba com o fim da nossa vida].” Durante a década de 1920, o cineasta e teórico russo, Dziga Vertov, foi pioneiro ao propor em seus tratados uma nova relação com a câmera cinematográfica. Seu conceito do “Cine-Olho” procurava tornar visível o invisível e “libertar a câmera reduzida a uma lamentável escravidão”. Esses preceitos se transpuseram do papel para a película em seu longa O Homem da Câmera de Filmar [1929]. Além da aparição da própria câmera e a presença do cineasta dentro do espaço diegético do filme, Vertov demonstrou as possibilidades que uma câmera em movimento pode proporcionar através de filmagens interiores de barcos, carros, trens e motos. A reverberação da obra de Vertov apresenta pelo menos dois aspectos dialogantes, imbricados na concepção do plano-sequência: a estética
[no que diz respeito à movimentação e percepção da câmera dentro do espaço fílmico] e sua influência na construção teórica do “cinema-verdade”, substituída posteriormente pelo “cinema-direto” em que a câmera torna-se um instrumento de revelação do mundo e seus indivíduos, influenciando cineastas como Jean Rouch e Jean-Luc Godard. Como demonstra a história do cinema, a técnica não é nova, mas o aumento de sua utilização renova constantemente seus próprios significados. Carregado de contradições e amparado pelo desenvolvimento de novas tecnologias, esse recurso está longe de perder força e sua utilização abarca um número cada vez maior de diretores. Os autores e o plano-sequência A percepção de críticos e teóricos sobre o “cinema autoral”, na década de 1950, acalentou a aparição de obras em que o “olhar” e a expressão individual do diretor eram valorizados. É justamente nesse período que a técnica do plano-sequência evidencia-se, assumindo um valor positivo que difunde sua utilização e promove sua discussão. Tomando como exemplo o “filmeZarpruder” (a filmagem incidental de Abraham Zarpruder que capta o assassinato do presidente americano John F. Kennedy), Pasolini atribui a esse fragmento fílmico o estatuto de plano-sequência mais característico. Para ele, o espectador-operador da câmera não havia realizado escolhas em qualquer nível, filmando da onde se encontrava aquilo que o seu olhar – mais do que a objetiva – via. Bazin também defendia essa concepção, pois para ele, o plano-sequência não fragmentava a realidade, respeitando assim o próprio real e a liberdade do espectador. Porém, autores como Jean Mitry e Jean-Louis Comolli dissolveram a importância do real no plano-sequência,
45
46
ressaltando que a suposta “transparência” defendida por Bazin tornava-se infundada, pois havia normas estéticas em rigor. Independente das discussões teóricas, sua aplicabilidade é verificável entre os diretores que deslocam a atenção do “o quê” [história, tema]para o “como” [estilo, técnica], agregando, consequentemente, uma noção que fundamenta o planosequência no interior de um conjunto de recursos que assinalam um estilo próprio do realizador. Um dos primeiros filmes a chamar atenção para essa propriedade foi Festim Diabólico [1948], de Alfred Hitchcock. Baseando-se em uma peça teatral, o diretor decidiu filmá-lo como um plano-sequência único de uma hora e vinte minutos – somente não efetivado pelas limitações do tempo de gravação dos rolos de filme. Embora seja quase imperceptível, o filme estrutura-se em 10 tomadas que variam entre 04 e 10 minutos, cujos cortes são efetivados pela sutil aproximação de alguns objetos na tela ou em alguns locais mais escuros do cenário, para então afastar-se num movimento contrário ao iniciar o próximo rolo. Orson Welles também se revelou um dos embaixadores da técnica, ao utilizá-la na abertura de A Marca da Maldade [1958]. Com a movimentação de uma grua, o plano revela um homem instalando a bomba em um carro e ainda acompanha o movimento de um casal que irá dirigi-lo por algumas quadras até o momento de sua explosão [que ocorre fora de campo]. Em Eu sou Cuba [1964], de Mikhail Kalatosov, as premissas de Welles são levadas ao extremo: a câmera é capaz de subir e descer prédios, invadir apartamentos, piscinas e levantar-se do chão para sobrevoar avenidas, em inúmeros planossequência. Financiado pelo governo soviético e cubano com propósitos políticos, o filme utilizou técnicas inovadores de lentes, construções verticais de trilhos e equipamentos que permitiam a entrada da câmera na água. Com a simplória justificativa de que “não queria filmar a cena da morte”, o diretor Michelangelo Antonioni também realizou um dos planos-sequência mais célebres da história do cinema, em Profissão: Repórter [1975]. A câmera
.travelling
.grua
.dolly
deixa o quarto onde o personagem David Locke [Jack Nicholson] está deitado, atravessa as grades da janela do hotel, mostra ações no exterior do estabelecimento e volta para o interior do quarto, demonstrando, finalmente, que o personagem fora assassinado. Plano-Sequência Contemporâneo A direção cinematográfica contemporânea prossegue intentando novas relações com a câmera, principalmente com a popularização e a criação de equipamentos que auxiliam a produção fílmica – Dolly, Steady Cam, travelling automatizado -, o que corrobora também para sua inserção em produções dos mais variados tipos de orçamentos. Mesmo assim, ainda que se consista como trabalhosa e custosa, sua prática trafega na incorporação de uma era digital em que a “cultura visual” gera novos sentidos. Como aponta o teórico Robert Stam, “as novas tecnologias audiovisuais, além de produzir um novo cinema, produziram também um novo espectador”. Esse novo espectador não se encontra mais em posição tão distante do cineasta, uma vez que o seu acesso aos mecanismos de criação, assim como os de disseminação, foi facilitado. Sites como o You Tube, por exemplo, agrupam uma quantidade enorme de “filmes-Zarpruder”. Na perspectiva de Pasolini, portanto, embora exista uma série de registros audio-
visuais amadores, inúmeros deles sem qualquer trato ou intento de finalização como produto artístico, o site agrupa filmagens contínuas, sem cortes e edições como uma série de pequenos planos-sequência. De forma complementar e/ou paralela, os recursos cada vez mais aprimorados de efeitos especiais nas filmagens realizam uma mudança no sentido ontológico da imagem, acentuando uma formulação de um novo simulacro que impossibilita qualquer garantia de uma verdade visual sobre as imagens. No começo da década, o controverso Irreversível [2002], de Gaspar Noé, desfigurou as questões da “verdade visual”, transformando sua câmera em um ponto frenético que flana em torno dos cenários ocupados para demonstrar a trajetória inversa de dois personagens em busca de vingança. A câmera de Gaspar entra e sai de apartamentos, viaja por túneis, atravessa janelas de vidro de carros, latarias e paredes – dentro de um mesmo plano contínuo. A câmera até mesmo se desloca para assumir o plano-ponto-de-vista do personagem Marcus [Vincent Cassel] no momento em que ele está deitado em uma maca. Circular e atordoada, a câmera demonstra sua onipresença, conseguindo inclusive realizar deslocamentos espaciais e temporais, simulando, assim, uma elipse narrativa inversa – que sempre parte do presente para seu acontecimento anterior. Todos esses processos foram possibilitados pela utilização de efeitos especiais: tanto para remover a aparição de cabos e sombras geradas pelos movimentos vertiginosos, bem como na inserção de vidros e paredes em que a câmera supostamente adentra. No making of do filme, o produtor, Rodolphe Chabrier, alega que na pós-produção a película passou por milhares de tratamentos digitais, até chegar ao resultado pretendido por Noé. Ao utilizar-se da construção simulada pelos efeitos especiais, Irreversível procura aproximar-se de uma suposta captação da realidade – para isso, simulando também a real capacidade da câmera realizar esses movimentos. Embora também se utilize de planos-sequência, Filhos da Esperança [2006], de Afonso
47
subjugado à ação do tempo “real” em que se dá a narrativa. Para realizar um dos planos-sequência do filme, Cuarón e sua equipe construíram um veículo especial, cujo teto foi removido para acoplar uma câmera com um dispositivo de rotação em seu eixo de sustentação controlado à distância [Sparrow Head], além de duas barras que permitem a movimentação lateral e frontal da câmera [Power Slide]. Durante os 6 minutos desse plano-sequência, a câmera acompanha, em uma perspectiva de 360 graus no interior do carro, o ataque de uma gangue ao veículo onde estão os protagonistas. A inserção de outros planos-sequência no filme serve como artifício para valorizar as cenas de ação, tornando-as aparentemente realistas, através da utilização em conjunto da profundidade de campo, que, geralmente, abriga o espaço em que se localiza um perigo ou uma problemática que se aproxima.
48
Um filme, um plano
Cuarón, se posiciona no sentido inverso de Irreversível. “Uma das razões em contar o Filhos da Esperança em tomadas muito longas e fluídas foi para aproveitar o elemento do tempo real”, pondera o diretor. Diferentemente dos voos-livres no tempo e no espaço efetivados de Noé, a câmera de Cuarón atém-se ao presente, praticamente perseguindo os personagens - provocando um ritmo espectatorial
O atributo do plano-sequência no cinema contemporâneo pode servir não somente para delinear um estilo, mas pode converter-se em base sobre a qual se sustenta uma narrativa inteira, como no já citado Festim Diabólico, ou nos contemporâneos Arca Russa [2002], de Alexander Sokurov, e Ainda Orangotangos [2008], do brasileiro Gustavo Spolidoro. O filme de Sokurov foi rodado inteiramente no grandioso museu russo Hermitage, em São Petesburgo, contando com mais de 2000 atores e a utilização de uma câmera em Steadycam – equipamento acoplado ao corpo de quem o opera, oferecendo grande estabilidade nas filmagens, isolando os movimentos do corpo humano, evitando,
dessa forma, trepidações nas tomadas. Através de uma voz que realiza asserções sobre a história da Rússia, é criada uma imagem subjetiva que emula o ponto-de-vista desse narradorpersonagem oculto. A existência da voz que ressoa entre os diferentes ambientes do museu é assegurada pelo princípio do filósofo irlandês George Berkeley, segundo o qual “Esse est percipi” [Ser é ser percebido]. Sendo assim, o suposto “narrador” é apenas percebido por um único homem que o vê e passa a dialogar com “ele” ao olhar para a própria câmera. O diretor utiliza o espaço das salas para revisitar aproximadamente 300 anos de história, usando a fluidez de seu plano-sequência aproximando-o da própria experiência que o museu proporciona: manter todos os tempos históricos em conjunto como um só. Embora seja filmado também em apenas um único plano-sequência, a proposta de Ainda Orangotangos difere em sua temática e nos elementos narrativos: o objetivo é flagar a trajetória de 14 personagens em uma cidade, através da movimentação contínua da câmera. A opção do diretor pelo plano-sequência permite questionar algumas de suas utilizações, além de incluir dentro do espaço diegético elementos complementares que, tradicionalmente, são adicionados na pós-produção – como os créditos iniciais pintados no próprio cenário urbano do filme e a trilha sonora. Nos primeiros minutos da narrativa, o desespero do marido com a esposa supostamente morta em um trem é pontuado por uma trilha dramática, executada por um trio de músicos presentes no interior do mesmo plano. A presença deles no espaço diegético, embora seja empregada com um recurso funcional,
adquire também um sentido provocativo, questionando a suposta “realidade” geralmente agregada ao plano-sequência. Mas Spolidoro amplia ainda mais essa condição. Ao acompanhar um de seus personagens por um edifício, a câmera revela a criação de um ambiente onírico, onde uma mulher nua anda de forma atormentada por um apartamento vazio, chegando a encontrar uma sala cheia de pombos. Para poder reorganizar esse cenário e reutilizá-lo na mesma tomada, a equipe de Ainda Orangotangos utiliza o tempo em que o enquadramento foca a personagem para arrumar o imóvel, possibilitando, assim, que a câmera volte a enquadrar novamente o mesmo ambiente num plano geral. Assumindo o plano-ponto-de-vista da mulher, a câmera move-se pela sala agora com móveis, quadros e televisão, chegando até o quarto em que a mesma está dormindo. Cada um desses filmes contemporâneos levanta, individualmente, questões de difícil solução. A transformação de um único plano-sequência em um filme será o último paradigma que essa técnica pode apresentar? A frequente aparição da câmera subjetiva realmente sustentará a simulação de um olhar com aspectos realísticos? A concepção do planosequência apresentada no cinema contemporâneo está longe de resolver de forma definitiva essas questões - que estarão sempre sujeitas a modificações com a chegada de cada novo recurso tecnológico que o cinema dispor. Na última cena de O Homem da Câmera de Filmar há uma imagem sobreposta de um olho humano nas câmeras de uma lente. Imponente, a imagem do “Cine-Olho” se revela como absoluta. Ela simboliza a impotência do olhar humano perante a máquina, pois diferentemente de sua perspectiva autônoma que se reproduz e reverbera infinitamente, ainda dependemos delas para tentar eternizar pequenas simulações que, de acordo com Pasolini, não passam de “um plano-sequência subjetivo que acaba com o fim de nossa vida”.
49
!
Confira a versão estendida deste ensaio, com vídeos de planossequência de Vertov, Antonioni, entre outros, no site
50
Petróleo, Cinema e o colosso de paulínia Sede da maior refinaria do Brasil, a cidade procura afirmação cultural através de um grandioso projeto cinematográfico por Felipe Teram, Felipe Arra e Isaac Pipano
51
52
Fotos: Isaac Pipano e Thiago Muller
reportagem
Do calor energético do petróleo à luz da tela.
O
petróleo representa uma das principais matrizes energéticas do mundo. Há situações em que trava-se guerras por ele, como no Iraque, há cidades inteiras feitas de seu lucro, como Dubai. E há lugares em que por ela se efetua a viabilidade de novas formas econômicas. E Paulínia, localizada no interior do estado de São Paulo, a 118 km da capital parece ser um exemplo de como a energia do petróleo não está apenas em sua componência químico-substancial, mas também seu tino para impulsionar mudanças estruturais na concepção urbana de um espaço. Atualmente a cidade abriga 80 mil habitantes, algo distante das 6.900 pessoas que lá moravam no início da década de 1970. Desanexada de Campinas, a cidade foi fundada em 1964 e no intervalo entre 72 e 73 teve sua população quadruplicada. Num país que vivia na ânsia do crescimento econômico e o inchaço das metrópoles parecia afetar sua capacidade de prometer conforto, Paulínia inaugurava a maior refinaria da América Latina, a REPLAN [Refinaria Planalto Paulista], o que engendraria geração de empregos e renda. A Petrobrás, maior estatal da época e garota propaganda da eficiência militar, expandia sua produção e necessitava de um complexo fisicamente amplo para atender às futuras [e crescentes] demandas industrializadoras de São Paulo. A localização estratégica em relação à capital e o estímulo fiscal – protagonizado em muito pelas articulações do fundador e primeiro prefeito da cidade José Lozano Araújo – tiveram grande peso para que Paulínia fosse a sede do empreendimento desenvolvimentista.
53
54
Utilizando-se do PIB originado pelo lucrativo petróleo, em um mundo que conclama à energia toda a responsabilidade material de viabilizar o crescimento econômico, Paulínia tornouse uma cidade movida a uma vigorosa máquina pública. O pornográfico superávit fiscal, somado à quantidade lúbrica de capital, ofereceu aos governos da cidade todo o suporte para realizar os mais ousados empreendimentos. Não era de se admirar, pois, a presteza com que a cidade instituiu alguns benefícios a seus cidadãos. A paisagem urbanística, antes mesclada entre reminiscências rurais e um jeito tacanho de ser cidade, foi pavimentada quase que por inteiro através de iniciativas da máquina pública. Calçadas, construção de escolas, rede de esgoto para a grande maioria da população e a já conhecida isenção de impostos municipais aos seus habitantes foram algumas ações nesse sentido. Popularmente, isso é o que mais intriga: durante o final da década de 1990 – e, de certa forma, até hoje – todas as maiores cidades brasileiras começavam a enfrentar os altos custos de transporte, em boa parte gerados pela ausência de plane-
jamento urbano. Resolução pragmática: aumento progressivo do montante tributário. Nessa mesma época, Paulínia oferecia transporte público gratuito a todos os seus cidadãos. Nem tudo é Éden, no entanto. A cidade enfrenta alguns problemas dig-
O pornográfico superávit fiscal de Paulínia, somado à quantidade lúbrica de capitais gerados pelo petróleo, ofereceu aos governos da cidade todo o suporte para realizar os mais ousados empreendimentos nos de cidades mais humildes. Segundo o portal Conheça Paulínia [conhecapaulinia.com.br], havia em 2007 um déficit de vagas em creches municipais, bem como um número aproximado de 5 mil pessoas sem moradia pela cidade. Talvez porque o alto padrão de vida tenha efervescido a
especulação dos negócios imobiliários, no caso dos desabrigados. Outra queixa de moradores da região é a falta de remédios em alguns postos de saúde pública. São problemas que, antes de preocupação, causam estranhamento. A questão da administração pública, nesses casos, é: o quanto deve ser gasto para resolvê-los? Não se sabe ao certo. De uma coisa é difícil duvidar: nessa discussão, não se fala em limites orçamentários. Trazendo a tona a noção de gastos reinante na cidade, de janeiro a junho de 2009 a prefeitura custeou seus gastos correntes, em todas as secretarias, a um excêntrico valor de 443.251.026,91 reais. Diante de todo capital alocado – e tendo por base o preceito de não ser nada saudável tê-lo estagnado – os governos investem certa atenção em diversificar a atividade econômica da cidade na intenção de dinamizar o capital concentrado. No início do novo século, sob a governança de Edson Moura [PMDB, que foi prefeito da cidade durante os períodos 1993-96, 2001-04 e 200508], iniciou-se um novo projeto para a cidade cuja importância talvez não permita uma comparação justa ao sucesso finan-
ceiro das refinarias, mas que, sem dúvida, revigora sua identidade e cultura. Dentre os mais destacáveis – e quase exóticos – benefícios concedidos aos paulinienses está o cultural, que através do investimento público tenta fomentar o mercado da região. A secretaria, para melhor gerir o volume de recursos a disposição, segmenta suas ações nas áreas de artes visuais, teatro, dança e cinema. O kitsch Theatro Municipal de Paulínia, por exemplo, abriga atrações de todo tipo. Produções de diversos lugares que não da própria cidade, em sua maioria. Algumas a preços relativamente acessíveis [a peça Doce Deleite, com Camila Morgado e Reinado Gianecchini, tinha ingressos entre 20 e 60 reais], a população local divide as cadeiras com os volumosos espectadores de cidades maiores como São Paulo e Campinas. Referências como a Orquestra de Câmara de Berlim, a Filarmônica de Israel ou a Orquestra Sinfônica de Viena, compõem a desmedida, e nem por isso menos atraente, vida cultural oferecida pela cidade. O barateamento de ingressos busca a legitimidade do dinheiro público e fomenta o corpo da economia cultural de Paulínia. O investimento da prefeitura, segundo o atual Secretário de Cultura, Emerson Alves, faz-se presente nos novos negócios da cidade em um peso de 17,6 milhões de reais. Um dos planos mais arrojados e, como tudo aqui descrito, fora das conformidades inerentes ao tamanho da cidade, é também o mais ambicioso: criar um pólo cinematográfico. O custeamento e estímulo continuam aliados às iniciativas governamentais. Assim como a refinaria, a nova indústria que modificará profundamente a cidade, a do cinema, já faz parte de um empreendimento do Estado, o qual um dia impulsionou os primeiros atributos de gigantismo econômico da cidade. Pode ser a próxima revolução industrial de Paulínia.
Atenas? Hollywood? Um passeio pelos bastidores do Pólo Cinematográfico de Paulínia.
É
impossível não ficar impressionado ao chegar a Paulínia. Marinheiros de primeira viagem se espantam logo ao entrar na cidade por um de seus portais temáticos, seja o “medieval” ou o “futurista”. As boas vindas são excêntricas, espécie de prenúncio do que vem pela frente. A atenção do viajante perdese em meio à tranquilidade da pacata cidade para, novamente, ser atacada de surpresa quando se chega ao Paço Municipal. Lá está a sede da Prefeitura, que fica defronte ao Theatro [com h] Municipal de Paulínia. Atenas? Definitivamente, não, embora a fachada de templo dórico possa sugerir. Mas o teatro não é só clássico; é pós-moderno, barroco, tudo em uma construção só. À sua frente, a espelhada sede da Prefeitura reflete a imagem, e o teatro parece admirar sua própria grandiloquência como se não houvesse amanhã. Essa miscelânea arquitetônica, megalomaníaca desde sua concepção, mostra bastante do projeto do Pólo Cinematográfico de Paulínia, idealizado na gestão do prefeito Edson Moura - famoso pelas obras faraônicas da cidade. A inspiração para construir portais, pirâmides e pólos cinematográficos é fruto da imaginação do próprio ex-prefeito. Segundo Jaime Donizete Pereira, antigo presidente da Câmara
Municipal e afilhado político de Moura, “ele imaginou todas as suas obras. É um inventor. Ele passa tudo rascunhado detalhadamente para o arquiteto, que só coloca a ideia do prefeito no papel”. De todas as referidas obras, a que mais chama atenção é o Theatro Municipal. Não apenas por sua pomposa entrada, mas por tudo que pode oferecer em termos de espetáculo. Com capacidade para 1.350 pessoas, em uma área de 12 mil metros quadrados, a sala interna do teatro multiuso pode abrigar peças, concertos e até exibições de cinema – embora quase nunca seja utilizada com esse fim. Todo forrado de madeira, o recinto tem acústica impressionante. Tanta grandiosidade gera a sadia dúvida: como é ocupada, ao longo de um ano todo, uma sala de espetáculos de tal envergadura em uma cidade pequena de interior? O Secretário Municipal de Cultura, Emerson Alves, aponta que a programação “não tem datas disponíveis até fevereiro do ano que vem”. As atrações são variadas, e vão desde montagens como A Bela e a Fera até apresentações da filarmônica de Buenos Aires, passando por peças de humor stand up. Segundo Alves, a média de público por apresentação gira em torno de mil pessoas. É em torno e a partir do Theatro Municipal que se articula o Pólo Cinematográfico de Paulínia.
55
56
Tudo cheira a novo, a começar pela rique Goldman, 2009], O Menino Escola Magia do Cinema, que está da Porteira [Jeremias Moreira, 2009] sob reformulação e ainda adquirindo e Salve Geral [Sérgio Resende, 2009 equipamentos. A ideia é oferecer cursos leia resenha na pág. 92], entre outros. técnicos centrados na formação de Nos últimos dois anos, mão-de-obra, em especial nas áreas de Paulínia distribuiu a bagatela de nove cenotecnia e elétric, através de parcerias milhões de reais entre 20 filmes, mesmo com instituições como Senac e FGV. em tempos de crise – vale lembrar que Já a Paulínia Stop Motion, que editais mais tradicionais [como os da trabalha com crianças de cinco a 15 Petrobras e do BNDES] sofreram siganos, está em pleno funcionamento. Em nificativos atrasos. parceria com a Secretaria de Educação Além do financiamento do da cidade, professores e alunos da rede edital municipal, o Pólo Cinematográmunicipal têm acesso a laboratórios e fico de Paulínia oferece ampla estrututécnicas de filmagem stop motion através ra para os produtores: cidade cenográdos famosos brinquedos Lego. fica, cinco estúdios [um deles, ainda O Secretário de Cultura colo- em fase de acabamento, com 1.200 ca que, através dessas metros quadraA miscelânea duas escolas, Paulínia dos e pé direito investe na formade 12 metros], arquitetônica, ção de mão de obra e logística orgamegalomaníaca desde local. Entretanto, nizada por uma sua concepção, mostra como se nota, o Film Comission, foco empreendedor bastante do projeto do Pólo encarregada de do projeto deixa de catalogar locaCinematográfico lado questões imções, figurantes portantes, como a e prestadores ausência de salas de exibição na cidade, de serviços de Paulínia, Campinas e para aplicar pesado em produtividade. região, catalisando o diálogo entre O coração desse investimento produtores e órgãos governamentais. é o edital de nove milhões de reais para Hollywood? Nem perto. produção cinematográfica e televisiva. O Mas Emerson Alves garante que Paulínia benefício atende projetos aprovados pela oferece “condições plenas para atender Ancine, e o fomento vem da Prefeitu- a demanda de todas as produções de ra, não de empresas. Para os filmes selecio- audiovisual que encontrarem na cidade nados é estipulado que 40% do orçamen- as condições para transformar uma boa to deve ser investido em Paulínia, e que a ideia em um grande filme”. equipe permaneça na cidade durante 25% Além de todos esses ingredido tempo total de filmagem. entes, a cereja do bolo de Paulínia chega O edital deste ano teve 44 nos meses de julho, na forma de Festival projetos concorrentes, dos quais 10 de Cinema. Trata-se da parte mais ousaforam contemplados. Entre eles, os da do plano, fundamental na ideia da longas Transeunte, de Erik Rocha administração Edson Moura [que tem [filho de Glauber], Filme de Estrada, continuação com o mandato de José de Selton Mello e As vidas de Chico Pavan, DEM] de fazer a cidade famosa. Xavier, de Daniel Filho. Eles vão se Seja com portais, colunas de mármore juntar a outras produções já rodadas ou festivais de cinema – ou tudo isso ao em Paulínia, como Jean Charles [Hen- mesmo tempo.
menina dos olhos 57
À
primeira vista, o troféu Menina de Ouro, acomodado em frente ao Paço Municipal de Paulínia – dizem as más línguas, feito que serviu como estopim para a exsecretária da cultura, Tatiana Stefani Quintella, pedir exoneração de seu cargo – rememora a estatueta do velho uncle Oscar. Um olhar mais atento sobre as colunas neoclássicas a la Kodak Theater, o tapete vermelho, o sistema produtivo e o Festival de Paulínia, atestam sobre as escolhas serem algo além de mera coincidência, rememorando uma frase retirada do cancioneiro popular, “[T]udo isso deve ser pra evitar a concorrência porque não é Hollywood,
mas é o sucesso”, como cantou Gabriel, O Pensador. Isto porque o 2º Festival Paulínia de Cinema, realizado de 09 a 16 de julho deste ano, foi projetado com o intuito de se tornar um dos mais importantes eventos de cinema no país, fazendo jus ao suporte oferecido pela provinciana cidade e todo seu aparato de produção. “Há alguns anos, os diretores se digladiavam para colocar seus filmes nos festivais mais tradicionais, Gramado e Brasília em especial”, conta o crítico do Estadão Luiz Zanin Oricchio, “com a inflação de festivais, esse tempo passou. Eles [os diretores] vão onde encontram melhores condições
para a logística de lançamento dos seus filmes. E também onde podem ganhar mais dinheiro com os prêmios. A lógica de mercado [a única hoje em dia] manda que assim se faça”. Entre a ascensão do prêmio fluminense Redentor, e um momento de transição dos Kikito [Gramado] e Candango [Brasília], Paulínia parece responder a ambas as exigências: aproveitando sua posição estratégica entre uma viagem curta de carro de São Paulo ou um voo do Rio e o investimento de 5 milhões de reais, garantindo um prêmio de 60 mil ao melhor longa de ficção e 45 mil ao melhor documentário – tal desnível já acentua algumas das diretri-
58
zes de base do Festival – importantes produções nacionais são seduzidas, como a estreia brasileira de À Deriva [leia a entrevista com Heitor Dhalia na página 60], na abertura do evento. Na competição, veteranos e jovens diretores revezaram-se; dos estreantes No meu lugar [leia a resenha na página 87], de Eduardo Valente, e Antes que o Mundo Acabe, Ana Luiza Azevedo; aos cânones Eduardo Coutinho, com o inventivo Moscou e o xará Eduardo Mocarzel, Sentido à Flor da Pele. Criatividade ou qualidade artística, porém, não foram méritos lá muito significativos para a premiação do júri, bastante eclético, por sinal, no qual configuraram nomes como o do jornalista Zuenir Ventura e o exibidor Adhemar Oliveira. Ao contrário das apostas, o resultado – entregue pela dupla Murilo Benício e Guilhermina Guinle, responsáveis por um show a parte no que diz respeito às gafes e improvisação – deixou os jornalistas mais céticos com a pulga atrás da orelha: Olhos Azuis, do diretor José Joffily, adjetivado por quase todas as críticas como “esquemático”, foi o grande vencedor. Com efeito, a premiação, que por um lado pareceu privilegiar menos o cinema e seu processo criativo por uma feição de caráter ideológico, corresponde ao modus operandi do pólo e seus atribu-tos. Pois, de acordo com o Secretário da Cultura Emerson Alves, “Não nos cabe entrar em critérios artísticos. Queremos saber quantas externas o filme tem e o quanto mobiliza a cidade”. Se a afirmação referia-se a seleção das obras no edital municipal, não é exagero supor, portanto, na continuidade dessa conjetura e suas aplicações [bem como suas intencionalidades] sobre as escolhas dos filmes premiados no Festival: aqui, além das qualidades intrínsecas às obras, há uma propensão para a exposição do local e o consequente retorno dos investimentos aplicados. Todos os postulados e as políticas públicas do Pólo apontam para um único caminho: o da consolidação de uma indústria cinematográfica brasileira. Para o secretário, do mesmo modo que foram necessários altos investimentos estatais na produção de bens materiais, como automóveis, a máquina administrativa estatal configura-se como elemento de base no fortalecimento de
políticas voltadas à produção de bens culturais. “Cada indivíduo, numa concepção liberal à direita de Adam Smith, pode definir sozinho se deseja assistir ou não um filme nacional. Certo? Errado. Só haverá filmes e a tradução de nossa cultura no cinema, se houver produção cinematográfica. E para haver produção cinematográfica é necessário o apoio do Estado”, reflete Edson. A afirmação deduz o recorrente argumento sobre a defasagem existente entre a produção, setor responsável por cobrir os maiores investimentos através das leis de incentivo [leia mais sobre o tema na página 70], e os demais setores da atividade cinematográfica brasileira em âmbitos industriais: a distribuição e exibição. Segundo dados da Ancine, o Brasil possui uma sala de cinema para 105 mil habitantes, concentradas normalmente em cidades com mais de 400 mil habitantes. Paulínia, por sua vez, mesmo com todo o aparato cinematográfico montado, prescinde de sua própria. No que diz respeito às distribuidoras e sua presença nas salas, apenas 8 empresas – através da distribuição de 5 ou mais filmes cada – detêm 80% dos recursos captados. O panorama dos oligopólios é ainda mais preocupante ao constatar que apenas quatro delas – Columbia, Warner, Lumière e Fox, internacionais – dominam 82% da renda auferida, controlando o regime interno de exibições no país. Se os dados podem ser alarmantes, os mesmos não parecem constar na ata de prioridades da Secretaria Cultural de Paulínia, dispensando políticas voltadas a tais demandas nas obras vinculadas ao pólo. Como afirma Edson: “Exibição não gera emprego. Estamos formando mão de obra local”. Em amplo processo de expansão, que inclui a construção de novos estúdios e a finalização dos centros formadores de mão-de-obra, o Pólo Cinematográfico de Paulínia pode levantar algumas dúvidas. Mas talvez a maior delas esteja relacionada às mudanças que uma eventual troca de partido e corpo administrativo podem provocar, pondo abaixo um projeto somente efetivado a longo prazo e soterrando o tão malogrado sonho da criação de uma indústria cinematográfica brasileira, tal e qual Hollywood.
59
60
Fotos: Tales Gremen
parola
Heitor Dhalia F
oi um daqueles casos em que “Se Maomé não vai até a montanha, a montanha vai até Maomé”. Os editores da Revista Projeções procuravam pautas e possíveis entrevistados para a primeira edição da revista, em meados de maio, quando chega, via e-mail, um release da Assessoria de Comunicação da Faac [Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp - Bauru]. Informava que o cineasta Heitor Dhalia faria uma palestra na faculdade. Perfeito. Uma semana depois de apresentar o seu À Deriva na mostra Un certain regard [Um certo olhar] do mais prestigioso festival de cinema da Europa, Heitor Dhalia chegaria em Bauru com muito o que contar. Pernambucano, 39 anos, ele trabalhou como publicitário antes de estrear no cinema. Em 2004 dirigiu o contestado longa-metragem Nina, livremente inspirado no romance “Crime e Castigo”, de Fiodor Dostoiévski. Seguiu seu segundo filme, O Cheiro do Ralo, em 2006, baseado no livro homônimo do quadrinista Lourenço Mutarelli e com roteiro de Marçal Aquino e do próprio Dhalia. Cheiro ganhou prêmios pelo Brasil e entrou na seleção oficial do Sundance Film Festival de 2007. Ao mesmo tempo em que lançava À Deriva, Heitor inaugurava no Brasil a filial da Celluloid Dreams - renomada produtora e distribuidora independente no mercado internacional. A conversa a seguir se deu após a referida palestra de Heitor aos alunos da Unesp. Descontraído e simpático, ele falou sobre seus filmes, cinema no Brasil, sua relação com a crítica e ideias para o futuro, entre outros tópicos, aos editores da Revista Projeções Cesare Rodrigues e Felipe Arra, além do colaborador Gustavo Padovani.
61
Felipe: Gostaria que você começasse contando da sua passagem da publicidade para o cinema.
62
Heitor: Na verdade, começou no cinema. Minha primeira experiência foi em uma produção de 1989, e aí fiquei louco para fazer cinema. Nesse ano, o Collor acabou com a Embrafilme, acabou com o cinema no Brasil. Eu morava em Recife, lá não tinha faculdade de cinema. Então pensei: “O que eu faço?”. Entrei na faculdade de Comunicação Social, especialização em Jornalismo, e comecei a fazer crítica de cinema. Legal, bacana, mas muito longe ainda. Até hoje alguns críticos fazem essa transição. Mas lá no Recife uma namorada minha gostava das mesmas coisas e fazia Publicidade. Pensei “Cara, vou ficar fazendo Jornalismo? Eu quero fazer Cinema. Vou ganhar uma merda fazendo Jornalismo... Vou fazer publicidade, porque pelo menos eu produzo, ganho mais dinheiro e tenho acesso ao set mais fácil, vejo como é que é”. Então mudei. Mas também não aguentei, não. Passei seis meses e fui trabalhar em uma agência. Comecei a fazer publicidade e mudei para São Paulo, meu primeiro desafio. Logo depois vi que não era isso que eu queria. Queria fazer cinema de novo. Só que estava longe da área, 27 anos. Fiz assistência de direção num longa do Aluízio Abranches [Um copo de Cólera, 1999] e dirigi um curta [Conceição, 1999]. Veio o envolvimento com a O2, por conta do Cidade de Deus [Fernando Meirelles, 2002], quando dei o livro ao Fernando. Depois comecei a pensar em produzir um longa. Foi uma transição dura, difícil. Eu era um publicitário bem sucedido, abri mão de tudo pra me lançar nessa jornada. F: E como foi para entrar nesse mundo?
H: Ainda é muito doida essa história de fazer cinema no Brasil, muito apaixonante e muito lamentável também. Um sistema de produção muito viciado. Você tem um monte de diretores ruins pra caramba, que se beneficiam do sistema público, nada meritocrático. As principais fontes de financiamento são os editais, os concursos, e há uma mentalidade reinante – que está mudando, estamos vendo uma mudança de paradigma muito forte – que é de um cinema muito velho, muito ultrapassado, que não se comunica com o público em nada. São feitos 30, 40 filmes por ano no Brasil, e os que chegam com algum tipo de expressão na vida real são pouquíssimos, uns cinco. E é foda esse mundo dos concursos. Uma amiga trabalha na secretaria de cultura do governo do Estado. Ela conta que muito diretor ruim vai lá pra tomar café, cortejar a mamata pública, entregar um filme ridículo, que ninguém vai ver... Uma cultura muito antiga. Acho que tem que haver incentivo público, mas temos que aprender a sobreviver de outros jeitos. E isso se dá de acordo com a qualidade do seu filme. Em todos os países é assim: França, Bélgica, Japão. Temos que ter um cinema mais engajado com a qualidade. Cesare: Você disse que o cinema brasileiro dialoga pouco com o público. Acho que dialoga pouco também com a arte. Uma coisa que achei interessante em Nina [Heitor Dhalia, 2004] e O cheiro do Ralo [2006] é que você brinca um pouco com a forma: dialoga com HQs, com videoclipe, repete o take, a mesma cena do sujeito caminhando... Guardadas as proporções, é algo que eu vejo nos primeiros filmes do [Jean Luc] Godard, de colocar outras linguagens dentro do cinema. H: Acho que o cinema é uma linguagem. Eu conversava com o Waltinho
Se
[Walter Salles] sobre o À Deriva [Heitor Dhalia, 2009]. É um filme diferente em termos de linguagem, mas tem também uma busca de linguagem estética, narrativa. Tentar encontrar um jeito de narrar instigante, pouco óbvio, um jeito de enquadrar. É uma busca que você tem ou não tem. Acho que o cinema de arte tem a obrigação de experimentar nesse sentido.
Guta Stresser em Nina [2004]
elton Melo em O Cheiro do Ralo [2007]
Laura Neiva em À Deriva [2009]
C: Você parte de conflitos pequenos e consegue fazer a história ser geral, se aprofunda nela, fazer os personagens crescerem. Seus filmes não dependem de um conflito grande, ou então de algo que seja a realidade do seu povo. Os maiores filmes brasileiros recentes, por outro lado, são aqueles que retratam a realidade brasileira para o mundo ver. Nesse caso, são conflitos menores que se realizam em si mesmos. H: Eu entendo esse cinema que tenta retratar o Brasil, pretendo fazer filmes assim. Não tenho nada contra. Acho que você tem que retratar seu país, mas não é a obrigação principal da obra de arte, na minha opinião. Gosto de um [Michael] Haneke, que busca questões mais profundas do ser humano, mais filosóficas. Acho que não podemos deixar para o primeiro mundo as reflexões sobre o ser humano, enquanto a nossa função seria só retratar a realidade que a gente vive. É importante, mas temos outras coisas pra falar. Por que temos que fazer um relato social, documental do nosso país? Muitas vezes os festivais, os países de primeiro mundo buscam nos filmes do terceiro mundo uma indulgência pra esconder a própria culpa. “Olha como sou engajado com a questão da fome lá na... Puta que pariu”, entendeu? Às vezes você apresenta um filme do Brasil que não trata disso e não é o que as pessoas estão esperando lá fora. F: Você não acha que aconteceu um fenômeno parecido no Oscar, com o
Quem quer ser um milionário? [Danny Boyle, 2008]? Uma premiação talvez oportunista, aproveitando o embalo de crise econômica mundial. H: Acho que você tem duas razões: eles estão fechando acordos grandes de business com a Índia. Spielberg está indo pra lá e tal. Uma economia emergente muito forte, se abrindo para os Estados Unidos. E acho que tem outra coisa: foi uma produção inglesa, que filmou lá, e um filme otimista... F: Otimista e que vê a Índia de maneira totalmente condescendente. H: Sim, retratando a mesma visão folclórica. Tudo bem, bacana. É que as plateias esperam isso do terceiro mundo. E qualidade também, porque, falando a verdade, a gente entrega pouco, né? Gustavo: Aqui eu queria engatar uma questão: Jean Claude Bernardet coloca que o problema do cinema brasileiro não está no cinema em si, mas da imagem que o povo brasileiro tem ao se ver no cinema – que essa imagem afastaria o público. Você concorda? H: Não acho. Você pega À Deriva. É um drama burguês, uma família de classe média. As pessoas veem e gostam. Por que não temos mais filmes assim no Brasil? Você pega [Luchino] Visconti, um italiano aristocrata que fez uma obra prima como O Leopardo [Luchino Visconti, 1963], profundo, refletindo sobre as mudanças na Itália a partir da classe alta. F: Ao mesmo tempo em que fez também, por exemplo, Rocco e seus irmãos [Luchino Visconti, 1960]. H: Exato, transitou entre os dois universos. Nós temos dificuldade em fazer
63
64 isso. Nossos diretores são de elite. Até o Waltinho, que é um cara que eu admiro muito, busca retratar uma realidade que não é dele. Eu adoraria ver o Waltinho falando sobre a classe alta. O país é tão complexo... O problema não é o assunto em si. Falta soul setting. Não tem personagem, não tem plot, não tem drama de verdade. Você pega os Dardenne [Jean-Pierre e Luc], belgas que tratam da marginalidade, do que está fora do sistema. O silêncio de Lorna [Jean-Pierre e Luc Dardenne, 2008], A criança [2005]. Repare na pulsão dramática desses filmes, como são intensos. Uma história pequena potencializada ao máximo. Tem drama ali. Câmera na mão, drama pesado, intenso, mestres do cinema. Agora, como fazer isso aqui? Era esse o filme social brasileiro que eu queria ver: um Dardenne brasileiro, entendeu? Não só retratar a realidade, mas com o cinema junto.
Aqui, muitas vezes, o tema justifica, protege a falta de qualidade do filme. Essa condescendência é mortal. Ou então o oposto, que é uma desgraça: a galera que tenta ir direto para o mercado, a qualquer custo, mas não entendem o que é fazer um filme de mercado. Então produzem lixo que não se encaixa em nada. De novo não está havendo cine-ma. Claro que deve se pensar no mercado. Hoje o mercado internacional é muito forte, e o mercado de arte acabou. Há um esgotamento do cinema de autor, que está condicionado à qualidade dos autores. Temos grandes autores, que se repetem. No Festival de Cannes estavam todos lá, inseridos no sistema industrial. E o cinema de autor virou um gênero que às vezes não entrega, uma intenção que não se concretiza. [Federico] Fellini, Godard, [François] Truffaut, ou quem for, eram gênios. Tem um monte de gente tentando fazer
isso, mas fazem filmes que ficam no meio do caminho: refletem a intenção do autor, mas não se comunicam com ninguém. É um autor pobre. O cinema de autor virou um gênero. O que não é verdade. É uma expressão individual de cada um daqueles realizadores, que têm uma pulsão criativa própria, individual e totalmente peculiar. Tem isso por aí? Tem, mas está em crise. Todos de quem nos lembramos estão na indústria. F: Heitor, eu queria agora apontar a discussão especificamente para os seus filmes. Vamos fazer um apanhado de cada um deles para depois jogar a discussão para o todo. Primeiro o Nina, que foi muito criticado. H: Aqui, né? Fora do Brasil não, isso é engraçado. Eu ganhei o prêmio da crítica no Festival de Moscou, críticas boas em Los Angeles, Roterdã... Críticas
muito positivas, mas muito negativas também. Aqui no Brasil também teve crítica boa, mas as críticas ruins foram tão ruins, agressivas, que pareceu que o filme foi atacado pela crítica. Aqui, teve uns 60% de críticas boas e 40% ruins, mas tão ruins que pesaram. E o público também não entendia direito o filme. Foi muito mal lançado, pouquíssimas cópias. Os distribuidores não acreditaram no filme, lançaram só cinco cópias. Fizemos uma das melhores médias de cópias do cinema brasileiro: cinco cópias, 40 mil espectadores. O lançamento foi ridículo, o filme tinha mais potencial. Só que era tão doido... E com a Columbia lançando, cara. Imagina se lançasse com 20 cópias, igual o Cheiro. Podia ter feito 100 mil espectadores. O que é ótimo para o cinema brasileiro de arte. Poucos filmes chegam a esse número. O Invasor [Beto Brant, 2001], O Céu de Sueli [Karim Aïnouz, 2006] fez 76 mil... Então foi um filme que fez menos público por causa de um preconceito, era totalmente novo no cinema brasileiro. F: Preconceito da parte de quem? H: Tudo muito conservador. Distribuidor, a imprensa - que era engajada com um tipo de cinema de uma década atrás, meio esquerdista, uma tradição da época da ditadura. Hoje em dia temos um cenário muito mais complexo, apesar de muitos diretores ainda estarem aí. As pessoas têm medo quando se fala de mercado, é como se fosse um demônio. Mas o que não entendem é que o cinema de mercado é muito mais complexo do que parece, que até o próprio cinema de arte está dentro de um mercado. Não é só Hollywood. Estou falando como parceiro da Celluloid Dreams, maior distribuidora de filmes de arte da Europa. Agora, o filme tem que fazer sentido para eles. Você pega
Um profeta [2009], do Jacques Audiard, agora em Cannes. Filme maravilhoso, cinema puro. Custou 20 mi-lhões de euros. Você acha que o filme não vai se pagar? Ele tem a obrigação de se pagar. E o cara entende isso. Que fez um filme bom pra caramba e isso tem que voltar. O filme tem que ter valor em si, como obra de arte. Tudo bem, tem que ser subsidiado, apoiado, porque é produto de exce-ção, é arte. A França faz isso, a gente tem que fazer também. Mas não desobriga o realizador a ter qualidade naquele produto. Um livro que tem que ser lido, um filme que tem que ser visto. Claro, não é ditadura de mercado. Mas você tem que ter um mínimo de orientação para isso. Não dá pra fazer filme para duas mil pessoas verem. Essa pessoa tem que ter a carteira cassada. G: Tem que ter a consciência do mercado. H: Não, tem que fazer bem. Trabalhar um pouquinho mais. Entregar um cinema de qualidade, para o público que for. Como o caso do Nina, um filme fechado que não foi maior por preconceito. Aí O Cheiro do Ralo também sofreu esse preconceito, mas eu já tinha a experiência do Nina, então fui mais malandro, porque já tinha passado por uma experiência dolorosa, então pensei: peraí, vamos dialogar mais. O tema é muito sombrio, tão difícil quanto o outro, mas vou me comunicar mais. Jogo de cintura na trilha, mais acessível. Se eu tivesse feito negro como o livro, ficaria impossível também. F: Como você vê o Nina hoje em dia? H: Um filme de estreia, pulsão criativa forte, falta de técnica e experiência completas. Tanto de realização quanto de dramaturgia. Revi um dia desses no cinema. Se eu tivesse o domínio de dramaturgia que eu tenho hoje, eu teria feito aquele filme ficar do caralho. Seria polêmico, mas um golaço. A dramaturgia é o principal erro do filme. Teria manejado melhor a estética também, mas acho que não é por aí, não é isso. Trilha sonora, teria maneirado um pouco mais. Algo mais acessível. Mas foi o que consegui diante do desafio tudo no primeiro filme. Foi o filme que me formou: saber lidar com o público, com a crítica, saber
“
As pessoas têm medo quando se fala de mercado, é como se fosse um demônio. Mas o que não entendem é que o cinema de mercado é muito mais complexo do que parece, que até o próprio cinema de arte está dentro de um mercado. Não é só Hollywood.
65
como dialogar e receber, ficar tranqüilo. Em O Cheiro do Ralo, que foi um filme elogiado, eu não li crítica nenhuma. Eu não leio mais crítica. Não tenho nada contra, leio crítica de outros filmes, acompanho certos críticos, adoro alguns... Mas acho que pro realizador que está lançando um filme é uma relação muito dolorosa. Primeiro, você recebe um ataque e não pode rebater, discordar. Ele só aponta um lado. C: A crítica dialoga pouco com o filme. H: Pouco. Os caras vão muito pré-concebidos para destruir. Ou o contrário. Mas nenhuma das coisas ajuda de fato. Claro que a crítica boa ajuda o filme, o que é muito bacana. É legal ter esse engajamento, faz as pessoas verem o filme, acho isso um papel muito positivo da crítica. Mas para ler quando estou lançando um filme é complicado. Prefiro não ler pela minha sanidade emocional. Prefiro não saber. Aí você consegue manter uma relação saudável com o crítico depois. Você encontra com o cara que te entrevistou e te detonou, e você foi super simpático com ele, você continua simpático, não guarda rancor. Não vou mudar a opinião do cara.
66
Mulher é tudo igual. Se a gente bobear, o convite vai pra gráfica
“
Lourenço em O Cheiro do Ralo
F: O que você levou de aprendizado para o seu segundo filme, O Cheiro do Ralo? Você vê uma evolução? H: Vejo uma evolução clara. A dramaturgia era boa, porque era do Lourenço [Mutarelli]. Eu entendi que, primeiro, você não pode fazer o filme que quer sem considerar quem está vendo. As pessoas têm um limite de tolerância. Você tem que dialogar, pensar um pouco na audiência também, por mais que seja pessoal. Todos os escritores fazem isso, os grandes autores fazem isso. Um debate, você está falando com alguém. Claro, primeiro a mensagem acontece em você. É o que você pensou. Depois você traduz a mensagem para a obra. E já é diferente do que você pensou, daquilo que você pensou, o que você conseguiu concretizar na obra. E ela acontece, em terceiro lugar, na cabeça de quem vê. É outra coisa, outra leitura. Então tem um caminho por onde a coisa passa. Eu aprendi isso. Aprendi que você tem que
ter variação. Depois de estudar dramaturgia entendi isso. Mas foi intuitivo em O Cheiro do Ralo. Depois do primeiro dia de filmagens não consegui dormir. “Estou fazendo o mesmo filme!”, “Selton, pelo amor de deus, estamos fazendo o mesmo filme, me ajuda”. Em O Cheiro, o personagem é um filho da puta mais leve, engraçado, tem mais ironia. Talvez se eu fizesse hoje faria diferente ainda. Mas já era ótimo. F: Fale da influência da comédia negra americana de irmãos Coen [Joel e Ethan], [Martin] Scorsese. H: Foi uma tendência. Eu entendi que esses diretores abordam assuntos muito pesados, mas eles têm um grau de comunicação violentíssimo. Mundial, pela qualidade dos filmes, dos elencos, e se comunicam com o mundo inteiro. Isso que a gente precisa, achar um tipo de cinema que comunique, no nível de cinema que ele é. O Scorsese faz isso, filme de gênero, filmes pesados pra caramba. Ele usa a trilha como contraponto. Cenas violentíssimas com uma trilha super divertida. Eu me inspirei nisso. “Precisamos de uma trilha divertida aqui, esse filme é punk demais”. Aí o filme foi ficando esse sujeito e achou o público que ele achou. Foi um jeito que eu encontrei dentro dos recursos que eu tinha. Agora, o À Deriva já é outra coisa, um cinema muito mais de arte, menos pulsante no sentido criativo que O Cheiro, mas mais sofisticado do ponto de vista narrativo. Filme mais de personagem, narrativa cinematográfica muito mais sofisticada. Mais sutil, menos notas, minimalista, mas mais difícil de construir também. O mais difícil de construir dos três foi esse. E eu acho o mais maduro também. Apesar de eu adorar O Cheiro, acho À Deriva mais maduro.
que o Selton deixou as referências dele muito evidentes: a Lucrecia Martel, o próprio Cassavetes. Muito evidentes. Acho que se empolgaram muito na cena da morte do menino, muito fraca, na minha opinião, na jornada. G: Dialogando com O Pântano [Lucrecia Martel, 2001].
F: Gostaria que você comentasse sua predileção pelo anti-herói e como você enxerga isso nos seus três filmes. H: Eu prefiro o anti-herói, sinceramente. Acho muito melhor. Eu fiz um roteiro de herói, mas não rola, não consegui ir para frente com ele. Tudo muito bonzinho, faltava malícia. Eu queria fazer a estrutura dramática clássica, precisava fazer um filme com dramaturgia pura, queria experimentar isso. Só que não dava certo. Acho que a falha trágica é o principio da dramaturgia, onde está a base de tudo, e acho que o anti-herói te oferece a falha trágica de um jeito claro. E são mais interessantes: pessoas falhas, mais defeitos. São mais complexos, as curvas são mais radicais, como a curva de redenção. Um princípio da dramaturgia fala que “Change is inevitable, growth is optional”. Crescimento é opcional. Você pode ou não ter redenção, mas a mudança tem que existir. Esse filme, O Profeta, tem uma transformação brilhante. E você só percebe isso no final. F: Usando o mesmo termo, comente a cur-
va da redenção do Lourenço, personagem do Selton Mello em O Cheiro do Ralo. H: Ele tem uma falsa redenção. Você acha que depois de abraçar a bunda, acabou. Ali seria a redenção, feliz para sempre. Mas no outro dia ele já está tratando mal a menina, “Vou demitir”. Ali ele já está escroto de novo. Ele não vai mudar. Ele é sofocliniano, herói trágico, que não se transforma, que é destruído pela própria obsessão. E aí quem tira a conclusão temática é a audiência, não o herói. Já é tarde demais pra ele, mas não para você. G: Você dirigiu o Selton Mello. Como você avalia o Feliz Natal [2008], filme que ele dirigiu? H: Olha, eu adoro o Selton como diretor, como ator. Acho que ele tentou fazer um filme que o cinema de São Paulo tentou fazer e não conseguiu. Esse negócio tipo [John] Cassavetes, tem várias pessoas tentando, cinema de autor autêntico. Acho que o Selton foi lá e fez. Acho que é uma construção dramática muito sofisticada. Muito fina. Mas acho
H: E um exagero em reforçar. Um erro de diretor iniciante – que eu cometi também – de achar que você tem que sublinhar tudo. Na verdade, deve ser mais sutil. Não precisa sempre do big event, do grande evento. Precisa do evento certo, na medida certa. Às vezes você pensa: “Ah, eu vou chocar”, e não precisa disso, porque isso não engaja. Não é isso que choca de verdade. Mas é um diretor promissor. Ele vai aprender, como eu aprendi com os erros do meu primeiro filme. F: Vamos para o À Deriva. Depois de dois filmes fechados, claustrofóbicos, agora filma na praia. Você disse que tem um tom autobiográfico. H: Tem. Foi o filme mais difícil de filmagem, porque a natureza é caprichosa. A gente estava nas locações mais bonitas do mundo, mas com três frentes frias, então foi difícil filmar na água, debaixo d’água... Um desafio. Foi a primeira vez que saí do estúdio, e eu estava precisando de natureza, vida real. Fiz dois filmes de estúdio, bacana, mas tem uma hora que você quer menos controle, estético inclusive. E a história pedia: não era expressionista, não tinha diálogo com quadrinhos, sem padrões estéticos muito definidos. É algo mais realista, naturalista, verdadeiro. E foi legal, uma jornada bacana. F: A menina protagonista [Laura Neiva, que interpreta Filipa], você chegou a diz-
67
er que ela tem um quê de anti-herói por causa dos conflitos internos. H: Ela não é anti-herói, ela é conturbada, ela está em conflito. Não é uma heroína perfeita. F: Você buscou referências diferentes para compor a personagem?
68
H: Busquei. Pensava muito no cinema francês dos anos 60, os filmes morais do [Eric] Rhomer, aqueles filmes de praia, dramas intimistas franceses, Godard, Truffaut... O Desprezo [1963], do Godard. E um pouco de cinema italiano, dramas de família. Alguns filmes do [Bernardo] Bertolucci. Toda uma linha de cinema italiano que gira em torno da família. Um pouco de cinema argentino, extremamente família. Foi uma inspiração leve, na verdade. Filmes americanos que falam disso também. [Ingmar] Bergman, Cenas de um casamento [1974], pirei, porque o debate era esse. Mas me inspirei mais na minha situação familiar. Morei numa praia durante 20 anos, minha família se sepa-rou com a mesma idade da personagem, e a minha grande inspiração foi a lembrança daquele tempo. Foi muito legal construir isso. F: Eu li que sua mãe esteve no set de filmagens. H: No dia da cena da separação, acredita? Por acaso, ela foi no dia que os pais contam aos filhos que eles vão se separar. Minha mãe no set, do lado. Ela olhou para uma cadeira e me disse: “Olha, Heitor, lembra que em casa tinha uma cadeira igual a essa?”, e eu
respondi “Olha, mãe, que coincidência, igual mesmo”. Eu adorei fazer esse filme. Foi muito gostoso, tenho muito carinho pelo filme, acho que ele vai arrebentar. Já arrebentou. F: E o contato com o Vincent Cassel? H: Puta ator, puta ser humano também. Cara muito legal, fã do Brasil. Fala português fluentemente. Tem sotaque, mas você quer o que? O cara fala fluente com sotaquezinho, mas pouco. Peguei-o falando português no programa
do Amaury Junior. Eu tinha passado o carnaval trabalhando no roteiro, e decidi ver televisão, quarta-feira de cinzas. Aí aparece o Vincent falando português. “Porra, esse cara fala português?”. Sou fã dele desde O Ódio [Mathieu Kassovitz, 1995]. Adoro as escolhas, quem ele é como personalidade, como ele apóia o cinema francês de vanguarda, como produtor inclusive. Aí comecei a entrar em contato, ele topou. Gostou do roteiro, a gente se encontrou, gostou
de mim, tinha a Focus no meio, era um filme internacional... F: Fale sobre a recepção em Cannes. H: Ah, foi muito bom, porque entendemos que o filme já ía bem nas sessões de mercado. Então o filme começou a ser vendido para o mundo inteiro, felicidade para o diretor. E um mercado muito frio, executivos, dinhe-iro. E a Focus estava muito feliz com o filme. Legal, o principal selo de filmes independentes de arte do mundo, os caras
estão muito felizes, vão fazer outro filme meu. Fiquei feliz. E na sessão foi muito legal, o pessoal começou a bater palmas nos créditos, continuaram a bater palmas nas fotos... Ovação, muito lindo, emocionante, 1500 pessoas. Ine-quívoco o sentimento de aprovação do filme. E acho que é meu nascimento para o mercado internacional, para Cannes também, me credencia a voltar. F: Sobre a Focus, eles estão investindo
em nomes da direção brasileira consagrados, como Fernando Meirelles, Cao Hamburger, Walter Salles, José Padilha e você. Como você vê esse cenário de grandes nomes do cinema nacional contemporâneo?
vida é uma guerra tão dura, você tem que ser muito bom.
C: Eu queria acrescentar, você falou de filmes do Beto Brant e do Karim Ainouz. Caras que como você, também se centram mais nos conflitos dos personagens do que nos temas.
H: Acho que não. Acho que eu já estava no caminho certo. O que mudou a minha vida foi essa coisa da dramaturgia, o que tenho estudado de três anos pra cá. Entender o que engaja uma pessoa numa história, acho que esse é o segredo. Dar integridade artística e engajamento com a audiência. O autor pode ser autor e falar com muita gente.
H: Mas é o que eu avisei, a diferença é a seguinte, desse monte para esses dois. O Karim tem uma carreira internacional, mas muito voltado pro cinema de arte. Cinema de arte muito fechado. E esse tipo de cinema é muito europeu, cada vez minguando mais de tamanho. C: Li uma entrevista dele dizendo que pode se dar a esse luxo, porque tem grana e pode se divertir fazendo filmes. H: Ah, é? Bom... E o Beto é um cara de grande pulsão criativa, mas nos últimos anos não conseguiu ultrapassar uma barreira, talvez por conta de produção. Os filmes dele estão sempre na mesma margem de público. Fora O Invasor, que fez 100 mil espectadores, sempre ficam ali nos 20 mil. Muito pouco. Acho que ele não conseguiu fazer essa transição, mas talvez consiga nos próximos filmes. Eu adoro os filmes dele. Mas os outros nomes citados, esses diretores conseguem fazer uma transição melhor de filme de arte e diálogo com o mercado. F: Talvez por fazerem filmes brasileiros que dialogam de alguma forma com o público do exterior? H: É muito difícil, viu. Eu estou muito bem com a Focus. Estou bem cansado, Cannes foi punk. Muita tensão, muito difícil. Mas acho que está indo bem. A
G: Você acha que a boa recepção em Cannes alterou alguma coisa nos seus planos, ideias?
F: Pra fechar, só mais duas questões. Uma sobre o Serra Pelada... H [interrompendo]: Bold Mountain.
Se for em português vai ser muito bom, vai ser melhor para o Brasil, fazer o filme em português e contando uma história bem brasileira, melhor para o país. Mas vai ser muito mais difícil de realizar, porque não tem grana. Para saltar de 10 milhões de reais para 40, 50 milhões, tem que ser em inglês, entendeu? Um pouquinho de realidade. Para mim seria bom, mas tanto faz. O importante é ser feito. F: E em que pé está o projeto? H: Acabamos de terminar o roteiro. F: Quanto ao elenco, você disse algo sobre o Wagner Moura. H: Ele vai entrar. E eu quero o Javier Bardem também. Vamos ver.
F: Conte do projeto. H: Um filme sobre ambição. Fome que não se esgota do ser humano por aquilo que ele quer ter: ouro, dinheiro, uma montanha inteira. Além da depredação do planeta, de uma maneira bem contemporânea, os recursos do planeta sendo consumidos vorazmente. Um faroeste Scorseseano também. Historia de violência, humor, tudo, no meio do garimpo. Um puta projeto. F: Você contou que está na dúvida entre rodar em português ou inglês. H: A Universal veio com esse papo agora, de fazer o filme em inglês. Acho que não vou ter coragem. G: Porque o tema é brasileiro demais? H: Não, porque é um Sangue Negro [Paul Thomas Anderson, 2007]. Se fosse em inglês, esse filme seria feito como merece, com os caras que merece.
69
!
Leia a resenha de À Deriva e assista aos trailers dos filmes de Heitor no site
Como a cultura deixou de ser enfeite, passou a ser negócio e agora vislumbra ser coisa do “público”
É 70
um grande clichê acadêmico dizer que o conceito de cultura é muito amplo. Exotismo alegórico, expressão artística, saber humano e mais uma nada modesta lista de expressões podem ser afuniladas pela mesma “cultura”. Essa diversidade de significados surpreende-nos não somente quando concluímos que os clichês, ao contrário do que se professa na academia, são válidos para a reflexão. As coisas tendem a se complicar mais quando verifica-se que em diversos países do mundo existe um Ministério do governo atento a isso. Cultura, para além de toda a sua desavença simbólica, já foi instituída como coisa pública. Como tratá-la? No Brasil, a principal articulação da esfera governamental para esse assunto é o Ministério da Cultura, conhecido por alguns de MinC. Trata-se de uma pasta criada no governo Sarney de 1985, que levava o nome composto de “Ministério da Cultura e Educação”. De lá para cá, o MinC já passou por diversos governos, por um aumento de montante de investimento e pelos mais turbulentos escândalos de corrupção – sem mudar radicalmente sua incerta proposição de onde, para qual e como destinar-se à cultura. O ofício, eficiência e modo de gestão do MinC ilustrou a pretensão de seus governos vigentes antes de acompanhar as mutantes resignificações da
vale cultura?
Ilustrações: Fernando Solano
reportagem
por Felipe Teram
dimensão cultural ao longos dos anos: quando o Estado inchado era nacionalista e controlador, o MinC dispunha gastos exorbitantes em desfiles de feriados nacionais, produções populistas de showmício e outras interpretações dúbias do que ele poderia tratar. Não há dúvida, no entanto, que a cultura sofreu uma inflação de investimentos [o que balanceia e acompanha a inflação monetária e econômica brasileira]. Em 1995, consumia 0,22% da receita corrente líquida do governo, enquanto em 2008 a proporção praticamente dobrou para 0,43%. Os números revelam a hipótese do Brasil afinal, acompanhando o arrojo político da democracia e o vigor econômico das duas últimas décadas, ter arremetido o campo da cultura financeiramente como uma contrapartida social e uma necessidade de firmar um dos principais predicados da identidade brasileira no mundo. Parafraseando as idéias de Delfim Neto: o bolo aumentou. Mas a pergunta que malogrou o economista, e que mantemos como central para a problemática das ações ministeriais é: como e para quem foi divida a parte doce de nosso país? Quando o neoliberalismo se fortaleceu no início da década de 90, o ministério encolheu suas articulações administrativas em nome da oportunidade do segundo setor participar dos investimentos na cultura, diferente do que fazia em épocas de controle estatal. A ainda vigente dinâmica Público-Privada explica a importância e volume de recursos destinados ao principal sistema de incentivo a cultura, a Lei 8.313, criada em 1991. Em 2008, a apelidada Lei Rouanet consumiu quase 865 milhões dos 1,9 bilhões de reais da receita geral
do MinC, o que permite considerar esse o maior e mais notável instrumento de investimento do ministério. Por meio da isenção fiscal do imposto de renda, empresas e pessoas físicas podem “doar” até 4% de seu imposto de renda a produções culturais que passam pelo crivo da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura [CNIC], um orgão colegiado e consultivo do MinC. Nesse sistema, o valor repassado é integralmente deduzido do imposto do “patrocinador”. Como contrapartida, o artista beneficiado comprometese, segundo critérios pré-estabelecidos, a divulgar a marca da empresa. O objetivo básico da Lei é estimular a produção cultural, ampliando a colaboração de setores da sociedade que antes nada influenciavam nas escolhas de direcionamentos de recursos, diversificando assim a fabricação dos produtos culturais. Empresários poderiam cooperar com o único custo de regularizar sua rotina fiscal; os artistas teriam maior proteção à liberdade de expressão já que, em tese, não estariam mais exclusivamente dependentes da adequação a propósitos ideológicos estatais. Seguindo as orientações das escolhas, os produtores poderiam perseguir patrocinadores no grande campo de mercados e não mais dependeriam exclusivamente do abrigo estatal. A mais rudimentar das aritméticas acusa: o custo real dos patrocínios, o sacrifício despendido por parte das empresas, é zero. No entanto, o ganho simbólico de estar atrelado a uma obra artística fixa-se nos bens intangíveis que o marketing social tenta valorizar para tornar empresas mais competitivas ante a opinião pública. Apesar da blindagem liberal, o
71
72
passo otimista da Lei Rouanet. filha de um modo de se governar pelo mercado, ainda encontra dificuldades em se legitimar como ação pública com a mesma eficiência que se fez rentável. Dentre os problemas, estão a alta concentração de isenção fiscal em determinadas regiões do país. Para ser mais pontual a região sudeste concentra, atualmente, 80% desses investimentos, enquanto que a região norte recebe apenas 1%. Diante dessa e outras problemáticas, a Lei Rouanet está passando por uma reforma que pretende setorizar os investimentos por região, de forma a equalizar diversidade de mercado e investimento regular público. Todavia, não é só na localização geográfica que este esquema de mecenato se compromete em centralização. Outra das insuficiências do sistema de “mecenato público” reside na fragilidade do Estado perante as pressões do segundo setor. Se antes o Estado controlador deixava-se favorecer por suas vontades umbilicais, agora encontra-se mais lasso e limitado ao lobby, diriam os críticos. Não raros, alguns escândalos figuram estes argumentos. No ano de 2006 a Lei Rouanet liberou 9,4 milhões de reais para apresentações do Cirque du Soleil no Brasil. A polêmica não ficou só no picadeiro: houve patrocínio de shows de Caetano Veloso, Roberto Carlos, Leonardo, além de gravações de DVD das cantoras Vanessa da Mata e até da Ivete Sangalo – que rendeu à cantora baiana o recorde de vendas da gravadora Universal [o segundo lugar ficou para o Unplugged in New York do Nirvana]. Dentre as incumbências e tendências da Lei Rouanet, pode-se perceber os fundamentos que a condenam por instrumentalizar a fortificação do mainstream. Segundo o MinC, não trata-se de um promiscuidade com as grandes produtoras, tampouco de uma
negligência a projetos com menos desenvoltura de mercado. A justificativa para fazê-lo é formar e consolidar a indústria cultural brasileira aumentando o acesso a produtos e artistas já conhecidos do grande público, ao invés de estimular com maior peso a criação de outros paralelos ao mercado. O fato do Brasil ser uma referência – com certo ar de exotismo, é bom lembrar – não exclui a pouca familiaridade da grande população com a produção cultural custeada a seus impostos. Mesmo o que se pode chamar de “mais popular” e convencional. Tal justificativa foi contabilizada. No ano de 2007, o IBGE realizou uma pesquisa que atestou, dentre outras coisas, que 73% dos livros estão concentrados em 16% da população, 90% dos municípios não têm equipamentos culturais e que 92% da população nunca foram a museus. Nem mesmo o hábito de assistir filmes escapou da cisma: 87% dos brasileiros nunca foram a um cinema. Talvez o cinema seja o exemplo mais ilustrativo para compreender como a cultura produtiva tem engendrado as insuficiências de sustentação de mercado. No caso do cinema brasileiro, o Estado sempre foi protagonista de sua história – ou o anti-herói de seu drama de interdição. Nos anos 80 o Brasil passava por uma crise econômica – que acabou por legar ao período o apelido econômico de “década perdida” – na qual o cinema e seus altos gastos foram afastados das prioridades do MinC. Já no estrito início da década de 90 as coisas se tornaram mais complicadas: Collor transformou o MinC em Secretaria, enxugando seu caixa. Além disso a estatal Embrafilmes e o Conselho Nacional de Cinema [Concine], que cuidavam da produção e distribuição, além da gestão pública do cinema, respectivamente, foram extintas. O susto só passou em 1993, quando Itamar
Franco restabeleceu as instituições ministeriais para o cinema e elaborou a Lei do Audiovisual, outro instrumento de isenção fiscal cujas qualidade e limitações podem quase que se equiparar às da Lei Rouanet: ambos deduzem 100% do investimento no IR do patrocinador. Na administração de quem e como deve receber os recursos, e cuidando também da regularização do mercado audiovisual, estaria a Agência Nacional de Cinema [Ancine], criada em 2001 no segundo governo Fernando Henrique Cardoso. Apesar de especificações institucionais diferenciadoras, a cultura política da época em que foram postas em exercício transmitiram aos efeitos da atuação da Lei Rouanet e às ações da Ancine trejeitos mercantis seme-lhantes. A Agência estabelece em sua linha de ações, através da Lei do Audiovisual e de outros instrumentos de financiamento, três focos para o desenvolvimento do cinema: produção, infraestrutura para exibição e distribuição. No entanto, esses três pilares formam uma abóboda disforme. Segundo dados da Ancine, no primeiro semestre desse ano, de todo o montante autorizado para isenção fiscal, as produções de filmes valeram-se de 93,1%. Os 6,9% restantes ficam para projetos ligados à infra-estrutura de exibição, mostras e festivais de cinema e distribuição/co-mercialização. Em que se pese, a grafia “cinematografia” costuma vir acompanhada da especificação “indústria”. Isso por que, tal e qual seu acompanhamento definitivo, o cinema é um esquema massivo: as preocupações com a lojística de distribuição, formação de público e promoção [só pra citar alguns], senão bem definidos podem fazer o artesanato artístico de seu processo morrer na praia – ou seja, não chegar a quem se destina. Somente para endossar os resultados da pesquisa do IBGE, o produto está pre-
sente, mas as prateleiras longínquas de mais do cotidiano dos brasileiros. Em 2003 as empresas estatais repassaram via editais da Ancine quase 18 milhões de reais, enquanto que as empresas privadas investiram pouco mais de 2,3 milhões no cinema nacional. A falta de um ciclo que sustente a relação produção-consumo é capaz de desmantelar também o grande foco de investimento na produção como o meio pelo qual se deveria tornar popular o que é quase indiferente ao público. Afinal, os espectadores de salas de projeções parecem inspirar mais estranhamento do que confiança aos que estufam o peito e classificam os últimos 20 anos de “retomada do cinema brasileiro”. Entre 2001 e 2008 aumentou em 163% o número de produções nacionais, todas financiadas por editais supervisionados pela Ancine e/ou ferramentas de investimento do MinC, enquanto que o público dos mesmos filmes aumentou singelos 6,6%. As discussões sobre a primazia do inchamento da produção ao invés da fruição do consumo começaram a se tornar centrais. Desse conflito nasce o embrião do Vale-cultura. Tal e qual o tíquete alimentação e o vale-transporte, o Vale-cultura oferecerá a uma parcela dos brasileiros o benefício social decorrente de seu trabalho. O trabalhador que recebe até cinco salários mínimos será portador de um cartão magnético com saldo de 50 reais para serem gastos exclusivamente em cultura. A contrapartida dele não superará os 10% - o que significa que lhe será descontado no máximo cinco reais de seu salário – e ficará a sua escolha onde investir no benefício: livros, discos, cinema, teatro, exposições em museus, dentre outros. Os mais entusiastas avaliam que esse foi um grande salto para a recém-estabelecida democracia de direitos no Brasil. Afinal, as-
73
74
sim como o direito à previdência, à saúde e à educação, agora reconheceuse, através de uma política mais direta e palpável, um direito antes renegado como tal. O lugar comum dos Titãs “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte” já parecia insurgir por intenções de transformar a cultura em um conceito menos etéreo e mais positivo. Ressalva importante: essa medida atenderá somente trabalhadores registrados com carteira assinada em empresas devidamente regularizadas e dispostas a conceder esse benefício, além de aposentados. Não é algo estrangeiro aos ensaios de welfare state promovidos pelos benefícios sociais atrelados ao dever do trabalho e nunca pelo direito inalienável. A originalidade do projeto reside em atentar-se ao público – como sinônimo de plateia ou espectador, não se pode esquecer – pela primeira vez. No volume financeiro em que está sen-
do regulamentado, o Vale-cultura pode representar para as políticas públicas um passo importante – e largo. Através dele pretendes-se injetar anualmente sete bilhões no consumo cultural brasileiro – e será investido pelas escolhas consumíveis de seus tributários. Mercados como o do cinema certamente sentirão o impacto, as dúvidas residem em que nível tal fenômeno se dará. As limitações do mecenato público fizeram alguns filmes encararem uma suposta realidade na qual o consumidor pode ser algo mais distante do produto do que parece. As ações insuficientes ao estímulo do ir ao cinema – ao invés de fazer cinema – fizeram com que algumas obras, a maioria nascidas do Estado e batizadas pelo mercado, fossem realizados sem perspectivas audaciosas de simpatia com as salas de projeções. Parece estranho imaginar a intenção de produzir um filme sem imaginar a exigência de quem vai assistí-lo. Se considerarmos o custo público não parece
um investimento muito rentável. Na medida em que o poder de compra aumenta, e nas condições de educação cultural e nos agentes de influência desse segmento, o acesso a filmes pode aumentar, é óbvio. Em certas regiões, como o Sudeste, em que os brasileiros formam o maior mercado de consumo cinematográfico do país, o Vale-cultura tende a adensar as feições correntes – e a alta no volume pode gerar outros efeitos marginais como a queda no preço do ingresso, senão sua estabilização. No entanto, fica difícil alimentar esperanças na conjetura nacional do cinema. Por mais que a diminuição do preço real para se chegar às salas tenha relevância considerável, há ainda de se levar em conta que existe uma outra distância a ser superada: a “cultura do cinema”. Transformar um hábito excêntrico em exercitável pode fazer com que a distribuição mais difusa de obras aumente a diversidade da fome das sa-
las de exibição, a audácia de diretores e a oferta das produtoras. Caso as prioridades não se atentem às nuances do espectador, outros segmentos artísticos se beneficiarão com o poder de escolha, cedido como direito civil, aos brasileiros espalhados em todo esse heterogêneo país e expostos a singulares emulações dos artistas locais. Dentre outras coisas, a elegibilidade oferecida ao detentor do direito do que consumir e o grande apelo social explicam os apelidos que “os não tão entusiastas” do programa rugem: “Bolsa família da cultura”. Não é dos escárnios mais descabidos, afinal. As críticas direcionadas ao Bolsa família estão sempre a recordar o caráter assistencialista e anti-produtivo que não atende à necessária política pública mais sólida e continuada que solucionaria a questão da má distribuição de renda brasileira. Em realidade, o caráter social, no caso desse programa, está mais para um espectro publicitário – e pode-se dizer com mais riscos, eleitoreiro – do que para uma ação de combate à desigualdade social. Utilizando o dinheiro público, auferido pelos impostos, para assim distribuí-lo diretamente ao contribuinte em forma de poder de compra, é uma medida de cunho econômico liberal – por mais que seja para os mais pobres. A lógica é muito semelhante ao Jobseeker’s Allowance inglês, ou ao Arbeitslosengeld alemão [ambos consistem no repasse de um salário para os que estão desempregados]: não modificam a conjeturaproblema, tanto no caso do desemprego quanto da pobreza, mas permitem a estabilidade do consumo, o qual garantirá a fluidez da moeda, a geração de riqueza e, consequentemente – e quem sabe a um mais longo prazo –, a criação de empregos. Um dos efeitos do bolsa família foi o de ativar diretamente o consumo
de determinados bens pelas camadas mais pobres da população através da ampliação dos lucros e da rentabilidade de certos negócios, como celulares, alimentícios e eletrodomésticos. O Vale-cultura pode ser considerado uma extensão dessa lógica: um estímulo financeiro para frutificar novas demandas e necessidades, acostando-se no aumento do poder de compra nesse setor da população. É algo que pode ajudar a ampliar o acesso aos mais diversos produtos ofertados pelo mercado, o qual o próprio governo afiança via renúncia fiscal. A idéia de estimular a outra ponta da cadeia de troca, o consumidor, é inédita e especialmente atual – no que diz respeito à delegação do mercado para viçar o desenvolvimento socioeconômico. Uma das dificuldades em avaliar as possíveis transformações emanadas do Vale-cultura concerne a imprevisibilidade de como o governo utilizará sua abrangência. Qual o tamanho do Estado neo-liberal para resolver os problemas propostos pela sociedade? A garantia é que problemas mercadológicos, seja da cultura ou de qualquer outro ministério, são totalmente passíveis de transformação com medidas de mesma perspectiva e natureza. E nesse sentido o Vale-cultura pode representar para a cultura um pacote econômico muito parecido com esses que “salvaram” a economia de alguns países na grande recessão de 2008. A já citada pesquisa do IBGE expõe que existe um mercado quase nada abordável e – principalmente – indiferente às demandas dos consumidores. No entanto, os problemas circunscritos à cultura não pertencem exclusivamente à sua destreza de mercado – e é nessas horas que necessitamos nos voltar aos clichês acadêmicos. Cultura não refere-se apenas a produções artísticas – que o governo
já provou estar disposto a investir –, nem tampouco a um direito de acesso cidadão – que o Vale-cultura pretende assimilar aos direitos trabalhistas. Ela tem a ver também com uma certa dimensão humana de pertencimento à memória temporal e simbólica, algo que nos diferencia dos animais. Com essa leitura, a palavra cultura ganha uma interpretação sublimada o suficiente para não ser afetada de forma substancial por estímulos econômicos. Como o governo poderia, então, ampliar seu subsídio à cultura? Através do Vale-cultura o governo terá em mãos um capital intelectual preciso de como e por quais produtos culturais os brasileiros são apetecidos e através disso criar políticas públicas mais permanecentes – o único modo de abranger a extensão mais humana da cultura. Se em cada região consome-se diferente, o Estado terá em mãos as informações necessárias para aliar o volume de investimentos em cada região, que tipos de produtos deve favorecer e mais que isso: como fazer com que em cada localidade a cultura faça parte do dia-a-dia da população. Além disso, a possibilidade de criar políticas especializadas para cada segmento da produção artística podem tornar-se muito mais acertivas através da abrangência com que o Vale-cultura pode descobrir uma parte do Brasil. Para além de um instrumento de fomento econômico e de uma articulação de gestão do conhecimento, o Vale-cultura já não pode muita coisa. O que pode fazer a cultura ter uma diferenciada importância qualitativa para a sociedade brasileira depende de um projeto mais integrado com as outras abstrações humanas cuidadas como coisas públicas de ministério, como a educação, a saúde, a comunicação e o meio-ambiente, por exemplo.
75
76
Em meados deste ano, o go-verno do estado de São Paulo [de José Serra] começou a colocar em prática uma ação chamada “Cinema vai à Escola”. A ideia central do projeto é familiarizar os alunos à linguagem cinematográfica, através da criação de interfaces com os conteúdos pedagógicos. A secretaria de cultura envia às escolas do ensino médio acervo de 20 filmes, em DVD, de diferentes linhas cinematográficas e gêneros, e ainda o DVD Luz, Câmera... Educação! e o “Caderno de Cinema do Professor”, com roteiros para discussão de filmes e temas para debates em aula. Não é recomendável copiar as medidas do governo paulista, levando a uma literalidade arriscada, mas assim atentar-se que ministérios complexos, exigem medidas menos contingentes. Já faz parte do senso comum considerar educação e cultura como elementos cruciais para uma sociedade minimamente justa – e um dia já foram consideradas perfumaria, ironicamente. Por que não assimilar, em nível nacional, as duas em consonância de políticas públicas, já que as reverberações desses investimentos tendem a complementar-se entre si? É um exemplo que acusa a necessidade de um Ministério e não de um fundo de investimentos e distribuição monetária – que resumem as atividades do MinC atualmente, através da Lei Rouanet e do Vale-cultura, respectivamente. Somente políticas públicas estruturantes poderão fazê-lo, algo quase inédito na nossa democracia. Mas essas são outras dificuldades brasileiras – que não deixam de ser “problemas culturais”, como bem nos recordam os clichês acadêmicos.
idiossincrasia e independĂŞncia
77
por Thiago Venanzoni
John Cassavetes inovou ao abolir a hierarquia no set e lançar a narrativa-teatro, deixando um indelÊvel legado no cinema dos EUA
T
78
endência no cinema mundial, na virada dos anos 1950 para os 60 o cinema norte-americano também vivenciou um período de transição. Seu principal centro de produção cinematográfica, Hollywood, vivia uma crise financeira sem precedentes, com superproduções alçadas a custosos investimentos, sem, no entanto, atingir o pretendido retorno de público e bilheteria, alastrando o panorama deficitário em que se situavam os estúdios, época de filmes como Cleópatra [1963], de Joseph Mankiewicz, épico orçado em milhões de dólares que nem mesmo o reforço de Elizabeth Taylor e Richard Burton no cast ou a legitimação pela premiação com quatro Oscar puderam justificar os investimentos faraônicos. Anos antes, outro acontecimento apontava e anunciava mudanças sistemáticas no interior desse quadro, como alternativa à condição hegemônica dos estúdios: Jonas Mekas, Gregory Markopolous, Kenneth Anger e John Cassavetes, entre outros, totalizando 23 cineastas, encontraram-se em Nova York decidindo fundar uma associação independente de financiamento, promoção e distribuição, feito inédito no país da indústria cinematográfica por excelência. Através de um manifesto redigido por Jonas Mekas e tendo como base fundamental Manhattan, o New American Cinema Group conclamava o fortalecimento de um grupo de realizadores alinhados numa postura anti-estúdios, onde o diretor deteria o controle total de sua obra, decidiram descolar-se da gigante lógica comercial. Assim, a independência que cunhava o nome do grupo se dava em duas frentes principais: a fílmica, protagonizada pelos arranjos de liberdade autoral do diretor; e a financeira, a qual era agenciada pelo coletivo de incipientes diretores que davam as caras no mercado
cinematográfico para bancar suas idéias de modo mais idiossincrático. Porém, tão logo a proposta tenha sido posta em prática, identificaram-se os primeiros embates. Já um ator afamado, John Cassavetes estreia como diretor com Sombras [1959], que levou o prêmio da crítica no Festival de Veneza e deu notoriedade ao diretor até mesmo em Hollywood, chamando atenção por uma direção de elenco muito destacada pelos fluxos de personagem-ator e seu retrato da sociedade marginalizada. Logo, a Paramount, se interessou pelo Cassavetes cineasta. O filme ganhou uma montagem da produtora, a qual incomodou Jonas Mekas, o mais experimental diretores do movimento, culminando em uma contenda entre os dois diretores. Para Mekas, Cassavetes era desertor de um movimento legítimo. Em resposta, Cassavetes abandona o grupo. Para além de um cinema de fluxos Logo após o primeiro filme, no qual abolira a hierarquia no set de
filmagem, dando igual importância a todos os envolvidos no filme, que seria, portanto, de todos, Cassavetes migra para o esquema de produção hollywoodiano em seu primeiro longa de estúdio, A Canção da Esperança [1961]. Na narrativa, John segue as estruturas estéticas semelhantes às experimentações de Sombras, ambientada na comunidade jazzística e marginal dos EUA. Apesar disso, recém-inserido no mesmo esquema que fomentava o mainstream, o cineasta passava a lidar com a interferência dos estúdios, principalmente na montagem, declarando inúmeras vezes ser este seu pior trabalho. Em 1963, dirige seu último filme nessa linha de montagem, Minha Esperança é Você, que também sofre uma montagem diferente da proposta inicial. Afastando-se do nicho de produção industrial, Cassavetes fica recluso durante cinco anos, quando finalmente dirige Faces [1968], filme em que acentua o modus operandi que o caracterizaria: cenas que mais se assemelham a atos teatrais pela duração prolongada e densidade dramática, aproximando-o
da noção que tinha Pasolini acerca do plano-sequência, no qual se identifica a ideia, não o corte. O fluxo narrativo como aquilo que flutua em torno e excede o eu, criando um instante do corpo fílmico com o próprio ser. Para conseguir tal efeito, entretanto, o cineasta depositava em exaustivos ensaios a força que rege seu cinema, em um extremo contraponto do que a Actors Studio pregava, e ainda prega, em sua metodologia. Há quem acredite, muito em razão dos fluxos, que a improvisação é inerente à sua obra. Porém, Cassavetes se manteve distante dessa característica, lapidando o personagem até chegar ao ator, e não o inverso [como seria o lógico], através de horas intermináveis de preparação, até conseguir extrair uma verdadeira amálgama dos seus personagens-atores. O mais constante deles, sua mulher, Gena Rowlands, que em Uma Mulher Sob Influência [1974] dá corpo a Mabel Longhetti, ou o contrário. A influência se dá em todos os níveis, e o corpo responde às interferências sociais, explorando sensações como ex-
altação, frustração ou ansiedade. Noite de Estreia [1976], se caracteriza principalmente por fazer parte do cotidiano de todos os envolvidos na produção, a escola do teatro. Os corpos frenéticos se ultrapassam, se misturam, se tocam; as personagens da peça que tem sua noite de estreia se misturam às personagens do espaço fílmico, que, por sua vez, se confundem com os atores reais. Essa liberdade de improvisação e mútua e recíproca transformação do ator na personagem ao mesmo tempo em que dá contornos de realidade à ficção evidencia a humanidade das personagens e se aproxima, mais que na narrativa clássica, de realizar o desejo do espectador de encontrar-se na tela, escancarando pelas vicissitudes do ator-personagem algo mais próximo da complexidade do homem real. E como exímio leitor dos dramas existência humana, o processo criativo que envolve os atores-personagens é tratado a partir da espontaneidade narrativa, onde diegético e vida tornamse espaço contíguo, indissociável.
!
Leia o manifesto do New American Cinema Group escrito por Jonas Mekas no site
79
D
80
iziam de Bergman que conseguia da especificidade dos conflitos e das angústias de suas personagens fazer análises do homem geral e da alma humana. O mesmo pode ser dito de Michael Haneke se o elemento em investigação configura-se na crueldade desse homem. Personagens que seriam meios para o espectador encontrar a própria crueldade, encontrar em si as raízes da violência. Porém, Haneke é um diretor que fala da violência sem necessariamente mostrá-la. Com exceção de Funny Games [1997], cujo título em português, Violência Gratuita, anuncia o exagero sádico que se desenrola na película, a violência é sempre a tônica condutora, mas pouco espaço ocupa nas cenas, ficando normalmente relegada a momentos fugazes de acentuada intensidade ou permanecendo irrealizada, como em seu último lançamento, A Fita Branca [2009], vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes. A fita branca em questão é um adorno que simbolizaria a inocência e a pureza. É com ela que o Pastor [naquele microcosmo as personagens são a sua condição social] tenta resgatar esses valores em seus filhos maiores. Valores que vão se mostrando cena a cena mais desviantes no vilarejo norte-alemão onde os fatos se desenrolam às vésperas da I Guerra Mundial. Num contexto de relações sociais intensificadas [especialmente por serem elas que definem as relações entre as personagens], estranhos atentados trazem a tona o medo e a desconfiança. Iniciando-se com uma armadilha pueril que fere gravemente o Médico, mas intensificando-se, com a tortura de crianças do vilarejo, tais atos, narrados pela voz romântica e hesitante do Professor, parecem ter mais relevância para aquele momento histórico que a guerra que explode. Tanta importância quanto sua paixão pela jovem babá ou a dura educação encenada na formação das crianças [uma formação de crueldade, tradição e nacionalismo, em que poderia ser observada talvez uma gênese do nazismo]. Sobram idiossincrasias e abusos de poder por parte dos adultos. Sobram tristeza, crueldade e lirismo a cada cena de A Fita Branca, especialmente evidenciados na fotografia em preto e branco e na singeleza hesitante da narrativa. [Cesare Rodrigues]
A Fita Branca, Michael Haneke, 2009
review
“
Caos reina”. Falada por uma raposa a ele [Willem Dafoe, as personagens não têm nome], a expressão define e fecha numa teia de significados todos os acontecimentos de Anticristo, o polêmico filme de horror de Lars von Trier. A tal altura do filme, ele já está também consumido pelo caos que se apossara dela [Charlotte Gainsbourg] após a morte do filho do casal, ainda um bebê. Desencadeadora desse caos, a morte acontece ainda no belíssimo Prólogo, no qual, enquanto o casal faz sexo, o bebê foge do berço e cai pela janela, coincidindo sua queda no chão de neve com o silencioso orgasmo da mãe. Tudo sem sequer uma fala, funcionando quase como um videoclipe para Rinaldo, de Handel. Observado pelos bonecos dos três mendigos [Sofrimento, Dor e Desespero, também os nomes dos
capítulos que seguem], a morte do bebê deixa algumas dúvidas, mas explica todo o horror que começa a se intensificar cena a cena, conforme avança a terapia a que o marido submete a própria esposa após o intenso luto em que ela mergulhara. Isolando-se numa cabana na floresta como forma de fazê-la encarar seus medos, o casal descobre ali o grande vilão: a natureza. Naquela mesma cabana, mãe e filho tinham estado no verão anterior para a fracassada feitura de uma tese dela sobre ginocídio [morte de mulheres], abortada pelo avanço do desespero já naquela ocasião. Naquela cabana a natureza opressora os conduz à loucura e desencadeia reações cada vez mais violentas dela, quase sempre controladas por ele e resultando em cenas de sexo. Mas é quando ele não consegue controlá-la que vemos os momen-
tos mais agudos do filme, momentos de violência, misoginia e mutilação, em que se honra a inserção de Anticristo no gênero horror e resultou na polêmica recepção de público e crítica. A crítica geral que se fez a Lars von Trier, signatário do Dogma 95 e relevante experimentador da arte e dos gêneros cinematográficos, foi o exagero de sexo e violência, o fato de deixar tudo tão explícito e chocante. Mas o choque não é novidade na obra do realizador, e sim uma de suas principais soluções estéticas, como a simplicidade cenográfica ou o descompromisso com verossimilhança. O que mais interessa a von Trier é a intensidade das relações entre as personagens, e em Anticristo caos, desespero, misoginia e violência são a base delas. Para o bem ou para o mal. [Cesare Rodrigues] 81
A Fita Branca, Michael Haneke, 2009 Anticristo,
Lars von Trier, 2009
À Procura de Eric, Ken Loach, 2009
82
Q
uando as gaivotas seguem o barco dos pescadores, é porque pensam que sardinhas serão atiradas ao mar”. Frases como essa, aforismos que versam sobre o nada, marcaram a carreira futebolística de Eric Cantona, craque francês do Manchester United, da Inglaterra. Embora talentosíssimo com a bola nos pés, ele nunca levou essa história de futebol muito a sério. Falava besteiras o tempo todo, e costumava desvirtuar os códigos de comportamento sérios que regem o meio esportivo profissional, desde a gola levantada e a camisa para fora do calção durante os jogos, até brigas homéricas com adversários. Para Cantona, o futebol é essencialmente escapismo. É justamente esse Eric Cantona, “King Eric”, o ídolo do novo protagonista do diretor Ken Loach em seu À Procura de Eric. O Eric em questão não é Cantona, mas o personagem vivido por Steve Evets, em grande atuação. Um carteiro que encontra no cuidado e zelo [mesmo que puramente imaginários] de um ídolo, conforto para superar problemas que afligem seu dia-a-dia. Eric tem de cuidar dos enteados de seu segundo casamento, meninos envolvidos em crimes sérios. Depois de levar sua neta para ver sua primeira
esposa, Lily [avó da criança], e de perceber que ainda a ama, ele busca refúgio nos baseados escondidos dos garotos, e acaba encontrando em algum lugar perdido entre seus devaneios o único homem que pode ajudá-lo a sair da bagunça espiritual em que se encontra: Eric Cantona. O ex-craque passa, a partir daí, a destilar muitas de suas emblemáticas frases nonsense, mas, principalmente, a atuar como uma espécie de “companheiro de time” de Eric. Em consonância com os temas abordados por Loach, indissociáveis da crítica social, o filme defende de ferozmente, mas por meio de enredo e personagens doces, a importância de prazeres como o futebol [personificado na figura do ídolo Cantona] na vida das pessoas comuns – sempre protagonistas no cinema do diretor irlandês – como fuga de uma realidade que as oprime. E ninguém melhor que Cantona para atestá-lo e dar o passe final para Eric. [Felipe Arra]
review
Bastardos Inglórios, Quentin Tarantino, 2009
A
Bastardos Inglórios
Tarantino, 2009 o menos de asséptico ninguém pode acusar, Quentn Quentin Tarantino. Desde o início de sua cinematografia, com Cães de Aluguel [1992], Quentin desenvolve um estilo próprio e fortemente característico, reconhecível ao primeiro contato e centrado na trajetória das personagens e numa estética de elogio ao kitsch e aos filmes B e pulp dos anos 1970. Sucesso de público e crítica, sua abordagem irônica de violência, tiros e artes marciais, seus personagens desajustados, sua veia pop e cômica, tudo está presente no novo filme, Bastardos Inglórios, e chegam a ofuscar o tema mais grandioso de sua carreira: a II Guerra Mundial. Tão grandioso que permite a Tarantino buscar estórias nos pequenos conflitos e abusar de tiros, torturas, crueldade e palavrões sem parecer gratuito ou oportunista: trata-se de um filme de guerra sem guerra. Nada de exércitos em formação, a narrativa de Bastardos Inglórios baseia-se em seguir a trajetória de três personagens caricaturais e arquetípicas: o oficial nazista Hans Landa [Christoph Waltz, o caçador de judeus], o capitão americano Aldo Raine [Brad Pitt, líder dos Bastardos Inglórios] e a francesa judia Shosanna Dreyfus [Mélanie Laurent, sobrevivente que viu a família dizimada]. Trajetórias que se encontrariam no momento ápice do filme: planos distintos que se desenrolam no mesmo cenário, o pequeno cinema da garota em Paris, onde a cúpula nazista se reunia para o lançamento de um filme. A brigada do capitão Aldo pretendia encurralá-los e a garota teria sua vingança, incendiando o cinema com todos dentro. Destaques são os diálogos e situações, o desenvolvimento das personagens, o controle do tempo e o suspense causado pelo mesmo. Ao atrasar a resolução de algumas cenas, Tarantino aumenta a tensão e joga com a paciência e o humor do espectador. Em outras, ao exibir assassinatos frios, escalpos ou torturas, cita o exagero com que lida com a própria obra. Mas exageros à parte, do título [roubado de um filme de guerra italiano] às personagens caricaturais, Bastardos Inglórios é outro show de referências, cinema e entretenimento. Outro grande acerto de Quentin Tarantino. [Cesare Rodrigues]
83
R
84
evolucionário do humor ou profissional das pegadinhas? Genial ou sujo? Delator da homofobia ou sintoma dela? O trabalho do ator e comediante inglês Sacha Baron Cohen sempre gerou reações extremas de identificação ou repúdio, desde seu programa de TV Da Ali G Show até Borat[indicado ao Oscar de roteiro adaptado]. Em seu mais recente trabalho, Brüno, Cohen leva seu método de atuação subversivo às últimas consequências - e as reações aos pontos mais extremos possíveis. O austríaco Brüno é um repórter gay em busca do estrelato. Por meio de uma narrativa ficcional, Sacha Baron Cohen faz intersecções com o documentário [mesclando cenas de pessoas desavisadas filmadas em situações embaraçosas com outras ensaiadas], e faz da falta de papas na língua do personagem uma metralhadora giratória. Não sobra nada nem dos intolerantes, nem dos não tolerados. Sempre em busca da fama, Brüno invade [e acaba com] um desfile de modas em Milão e entrevista modelos; tenta virar heterossexual procurando igrejas e até um grupo de orgia de casais; adota um bebê negro [“Brangelina (Angelina Jolie) tem um. Madonna também”]; viaja ao Oriente Médio para tentar promover a paz; e grava uma música com cantores famosos, como Elton John e Bono. Durante essa jornada, Sacha/Brüno bate recordes de escatologia e passa longe do “politicamente correto”. Entrega-se convicta-
Brüno, Larry Charles, 2009 mente à tarefa de agir como um imbecil e, assim, extrair toda a imbecilidade de seu entorno para revelar sinais atenuados pelos códigos de comportamento. Não se trata, porém, de inverter a equação da homofobia e da intolerância por meio de humor corrosivo. As vítimas das gargalhadas são os homofóbicos, mas também os homossexuais; os israelenses, mas também os palestinos, entre tantos outros exemplos. Assim como Borat, Brüno se pretende e se faz polêmico, por tratar de temas que mexem com princípios dos mais arraigados ao comportamento humano [sexualidade, religião, etc.]. Brüno é diagnóstico e sintoma, ou talvez a consciência autoparódica dessa ambígua condição. Chocante ou hilário? Escatológico ou ousado? Vale tirar a sua própria conclusão. [Felipe Arra]
review
Che 2, Steven Soderbergh, 2009
N
a primeira parte do épico de Steven Soderbergh, Che – O Argentino, há uma cena em que o protagonista, o lendário revolucionário Ernesto “Che” Guevara [vivido por Benicio del Toro] e Fidel Castro [Demián Bichir], conversam em uma sacada sobre a revolução que se iniciaria em Cuba. Assim que Fidel termina de esboçar o plano, Che diz que participaria com uma única e romântica condição: ao seu término, levaria a revolução a toda a América Latina. É desta matéria que Che 2 – A Guerrilha trata. A extensão colossal do filme [260 minutos, ou 4h20] obrigou o diretor a dividi-lo. Do primeiro montante, Soderbergh ocupou-se com a evolução do médico Ernesto ao guerrilheiro Che. A transição para então comandante da tropa que derrubaria o último foco de
resistência do governo ditatorial de Fulgêncio Batista, a cidade de Santa Clara, em Cuba. Na Bolívia, no entanto, a adesão dos camponeses ao movimento não acontece plenamente e a dissidência do Partido Comunista Boliviano, anti-luta armada, gera um ambiente difícil para que a campanha revolucionária prossiga. Ao aceitar o projeto de Che, Soderbergh - diretor do multipremiado Traffic [2000], além de sucessos como Onze Homens e Um Segredo [2001] - sabia que o material que tinha em mãos era dos mais complexos. Isso porque, ao abordar o mito e, a partir disso, almejar um processo de desconstrução em direção ao humano, criou chancelas para os delatores do “assassino” ou de seus mais fieis adoradores, num sentido menos político do que teológico. Posicionando-se em um patamar seguro, a isenção buscada por Soderbergh em sua representação, ressaltada pela concepção estética da segunda parte, de tom eminentemente “realista”, recaiu sobre si mesmo, num sentido oposto. Ao contrário do proposto, de uma ponta a outra da longa trajetória facetada de Che, inúmeros episódios importantes foram suprimidos, impossibilitados pela extensão e relevância de sua biografia. Na permanente batalha em tentar se desvencilhar da lenda, Soderbergh criou um filme arrastado que, não fosse pela atuação de del Toro, Che [1 e 2] seria um acessório descartável como as camisetas que ilustram o líder e seu charuto. [Isaac Pipano]
85
J
á nas primeiras cenas do novo longa de Bong Joon-ho [sensação do cinema sul-coreano, autor de O Hospedeiro, 2007, filme de maior sucesso no país], Hye-ja [Kim Hye-ja, a mãe que dá nome ao filme] aparece como condutora da ação, primeiro cantando e depois cortando ginseng no primeiro plano, enquanto seu filho Do-joon [Won Bin] sofre, em segundo plano, a ação mais relevante: é atropelado enquanto brinca com o cachorro. Mais que apresentar os problemas mentais e consequente dependência que representarão Do-joon durante todo o filme, o ocorrido é a matriz para a trajetória de degeneração em que a mãe se aventura em busca da verdade. Motivado pelo acidente, Dojoon vai com um amigo a um clube de golfe se vingar dos atropeladores e lá pega bolinhas, que o incriminariam de um
assassinato: uma colegial de má fama é encontrada morta no teto de uma construção. Ao seu lado encontram uma das bolinhas de golfe assinadas por Do-joon. Conquanto sua fraca memória não conseguisse esclarecer o ocorrido [o rapaz voltava para casa embriagado e, de fato, seu caminho cruzava com o da vítima na noite anterior], a polícia encerra o caso e o prende, levando sua mãe às últimas conseqüências em busca da verdade que inocentaria o filho. Tendo de lidar com advogados incompetentes, estudantes mal-intencionados e a falta de memória e confusão do próprio filho, Hye-ja é submetida aos extremos, descobrindo muito da própria força e crueldade, além de uma nebulosa sucessão de fatos e boatos que chegariam até a fatídica noite do assassinato e a descobertas chocantes e
86
Mother, Boog Joon-ho, 2009
perturbadoras por parte dela e do filho. Uma trajetória que a conduz por erros e desventuras, encontros e desencontros com a verdade. Uma verdade diferente daquela que buscava e que talvez preferisse sequer descobrir, uma vez que o acaso e a mesma prontidão que condenaram Do-joon se responsabilizassem por uma espécie de “final feliz”. Famoso por seu filme de monstro [O Hospedeiro] e pelos recursos técnicos que esbanjava nele, Bong Joon-ho mostra em Mother não precisar de tema fantástico, super-recursos ou efeitos para fazer um bom filme, extraindo de uma relação de dependência extrema e amor incondicional a matéria para uma narrativa sem excessos, culminando com a sempre complicada e angustiante relação entre consciência e culpa. [Cesare Rodrigues]
review
No meu lugar, Eduaro Valente, 2009
H
á algo de ruim a um filme quando a cena que abre a narrativa concentra força insuperável ao longo do percurso. Talvez seja justamente este o maior problema de No Meu Lugar, longa de estreia do renomado crítico da Revista Cinética, Eduardo Valente. Dois policiais atravessam ruas em direção a Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Outrora refugo de uma elite intelectual, o morro foi tomado, como grande parte da arquitetura carioca, pela construção de favelas, justapondo às residências luxuosas um emaranhado de barracos. A fotografia estourada em alto contraste satura o rosto de um dos policiais enquanto uma bateria marca dedilhados melódicos que dão o tom. A quebra da aparente leveza vem com os gritos de uma mulher pedindo ajuda. O eixo desloca-se para uma casa, cuja entrada é filmada rigorosamente num plano-sequência longo e estático. Não é possível ver a ação que decorre em seu interior quando os policiais a adentram. É através do som, usado como elemento criador de tensão,
que se descobre que haver um homem armado e um refém. O filme chamaria Vórtice, que etimologicamente traz uma raiz que sugere turbilhão. Seria apropriado, partindo do pressuposto que a tal casa e a ação invisível que se desenrola é o ponto de choque comum entre três famílias: a do policial que atirou no refém; a do assaltante que vive no morro vizinho e, por fim, a da família do refém assassinado. O multiplot, a vida dispersa em fragmentos temporais que se interpolam a fim de projetar uma unidade singular no entorno daqueles personagens, condena a ação ao seu epicentro - como se o passado estivesse determinado àquele presente, condicionando também o futuro. Reservando à abertura a chave da narrativa, Eduardo não só concede de antemão ao espectador a fruição do roteiro, como retira dos seus personagens autonomia sobrecarregando-os numa via crucis de autocrítica, numa crise cíclica de consciência que culmina no eterno retorno à casa no morro em Laranjeiras cansativa, redundante e apática. [Isaac Pipano]
87
O
88
estadunidense Wes Anderson é um cineasta de características fortes, que saltam à vista e o fazem facilmente reconhecível, seja pelas cores primárias gritantes, estórias estranhas ou personagens desajustadas, a palavra normalmente utilizada para definir seu cinema é weird [estranho]. Outra vez, como nos destaques de sua carreira, Os Excêntricos Teenenbaums [2001] e A Vida Aquática com Steve Zizou [2004], o centro da trama é uma família. Assim como não apenas nesses filmes, mas toda a sua obra, O Fantástico Senhor Raposo tem personagens e situações esquisitas. O que o diferenciaria é tratar-se de uma animação em stop motion [filmada com bonecos parados, quadro a quadro] baseada no romance homônimo de Roald Dahl [1970]. Embalado em seu mundo weird e pop, Anderson conta uma estória para crianças com pouca brincadeira e felicidade. As tensões da vida familiar, a necessidade de reconhecimento e carinho do filho, Ash, a necessidade do Senhor Raposo de abandonar sua perigosa e excitante vida de ladrão pela de provedor da família. Ao som de Beach Boys, Rolling Stones e das vozes de alguns dos atores mais constantes na filmografia do diretor [entre os dubladores estão Bill Murray, Clive Owen, Jason Schwartzman, além das estrelas George Clooney, Maryl Streep e Willem Dafoe], Anderson parece valer-se de soluções simples para problemas cada vez maiores em que as personagens se metem: Raposo descumpre a promessa feita à esposa e passa a fazer roubos nas fazendas dos vizinhos humanos Boggis, Bunce and Bean, que iniciam uma guerra contra os animais, forçados a cavar e esconder-se mais e mais ao subsolo. A partir daí, as soluções simples do roteiro parecem conduzir um jogo, em que a dificuldade da missão aumenta conforme se aproxima do fim, como nos videogames, a que tanto se assemelham as animações do filme. As personagens vão cena a cena vencendo os obstáculos e avançando até um final, em que talvez fosse mais sincero aparecer um “congratulations” [que normalmente indica o final de um videogame] no lugar do tradicional “the end”. [Cesare Rodrigues]
O Fantástico Sr. Raposo Wes Anderson, 2009
review
O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus Terry Gilliam, 2009
M
ontar um quebra-cabeças exige tempo e dedicação, mas pode ser muito divertido. Porém, se já não é das brincadeiras mais simples em condições normais de temperatura e pressão, imagine-se montar um quebra-cabeças sem peças. Ou melhor, sem uma peça, a última, a definitiva. Se pudermos comparar o processo de confecção de um filme com a montagem de um brinquedo desses, Terry Gilliam seria o vencedor inconteste em um desafio internacional de cineastas. E não seria pela primeira vez. Um histórico de inconvenientes durante gravações marca a carreira desse estadunidense radicado na Inglaterra, a ponto de cunharem uma tal “maldição de Gilliam”. Em 2008, antes de recuperar os direitos sobre uma adaptação de Dom Quixote para o cinema, perdidos por sete anos para uma seguradora, o dire-
tor se viu diante de um dilema. Heath Ledger, protagonista de seu novo projeto, O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus, morreu subitamente. Novamente Gilliam se viu obrigado a montar um quebra-cabeças. Mas como substituir a maior estrela ascendente do cinema mundial e resolver seu filme? Nessa brincadeira de fazer cinema, Ledger era a peça final, talvez maior, mais importante. Assim, com peças menores, mas de formatos diferentes, que não se encaixam perfeitamente, Terry Gilliam encontrou a solução para o enredo de Parnassus. Conseguiu um todo coeso e coerente, mas não completamente coeso e coerente. No mundo detrás do espelho do Dr. Parnassus [Christopher Plummer], tudo é fantástico [“imaginário”?], colorido por efeitos especiais deslumbrantes, em consonância com os universos surrealistas característicos de Gilliam. Aí se dá o mote para que
Heath Ledger se transfigure em Johnny Depp, Jude Law e Colin Farrel, em diferentes ocasiões. Ledger não teve tempo de filmar as cenas no universo fantástico e, mesmo em ação no mundo “real” do filme, parece ainda tatear em busca de seu personagem, especialmente no início do filme. Por mais que o quebra-cabeças tenha sido resolvido, permanece a sensação de que está incompleto. Desde a aparição inicial de Ledger [aparentemente morto numa forca], passando pela cena em que seu personagem [Tony, nesse momento encarnado por Depp] encontra barquinhos com fotos da Princesa Diana e dos atores Rudolph Valentino e James Dean - numa referência aos que morreram jovens -, muitos elementos tornam a obra refém de seus fatos exteriores. Um quebra-cabeças resolvido aos trancos, bela homenagem póstuma, mas não o grande filme que poderia ser. [Felipe Arra]
89
D
90
e um encontro de elevador com a viúva de Henri-Georges Clouzot [cineasta francês de produção relevante entre as décadas de 1940 e 60, autor de thrillers de destaque como As Diabólicas e do documentário O Mistério de Picasso, estudado por Bazin e declarado patrimônio cultural pelo governo francês], surge o interesse nos jovens diretores Serge Bromberg e Ruxandra Medrea de investigar o material que comporia o mítico filme L’Enfer, deixado incompleto pelo autor na década de 1960, mas cujo roteiro renderia a versão “sem fim” de Claude Chabrol em 1994. Retratando a transformação de um ciúme doentio em obsessão, a intenção de Clouzot, então encantado com os resultados dos experimentos de
Fellini em 8½, era fazer um filme conduzido pelo som, mas que se perdeu pela insistência do diretor em experimentar com efeitos de imagem e refilmar cenas já prontas por outros ângulos, segundo depoimentos de membros da produção, que, junto com trechos do material bruto das filmagens originais, compõem a base do documentário O Inferno de Clouzot. A ausência do som original é sanada com a montagem teatral de alguns dos diálogos, permitindo aos diretores do documentário dar sentido ao contado pela intercalação dessas cenas às gravações originais com os atores Serge Reggiani e Romy Schneider [então uma starlet no esplendor da beleza], não numa tentativa de encerrar o filme não concluído de Clouzot, mas de
mostrar ao espectador as intenções do realizador e sua trajetória cheia de percalços e contratempos para transformálas em filme. Muitas dessas intenções de Clouzot esbarraram em sua falta de planejamento, insônia e desajeito para lidar com a equipe, nos contam os próprios membros dela. O diretor é descrito por todos como um homem e artista de temperamento difícil e extremamente perfeccionista, buscando à exaustão a refeitura das cenas e texturas até atingir a qualidade desejada. Mas foi encalhado nessa busca incessante que o filme afundou. E, iludido pela ambição, Clouzot não conseguiu contar sua inventiva estória sobre o ciúme. Ao menos o futuro se encarregou de contar a de seu fracasso. [Cesare Rodrigues]
O Inferno de Clouzot, Serge Bromberg e Ruxandra Medrea, 2009009
review
O Homem que Engarrafava Nuvens Lírio Ferreira, 2009
91
D
enise Dummont, percorrendo um cemitério com seus túmulos e estátuas fúnebres, lança a jornada: quem foi Humberto Teixeira? descortinando-o de suas facetas de músico, político, advogado, letrado e trazendo-o ao balaio onde vivem os homens sem suas máscaras. Lançada a tese, a da busca de um pai desconhecido no lar e venerado em âmbitos internacionais, O Homem que Engarrafava Nuvens, de direção ufanista de Lírio Ferreira, do também musical Cartola, Música para os olhos, parte para uma investigação que ultrapassa os âmbitos pessoais e recai diretamente na cultura popular brasileira no que há de mais singular: a música. Com fotografia de Walter Carvalho, o documentário investiga inicial-
mente as raízes da criação do baião, ritmo que ao lado do samba – segundo depoimento de Gilberto Gil no documentário – possui o genuinamente brasileiro, que provém do fundo das expressões populares. Assim, todas as derivações da música brasileira devem ou ao samba, ou ao baião. Tratando-se deste, Lírio refaz o trajeto de Humberto Teixeira em seu encontro com Luiz Gonzaga, com quem escreveria alguns dos mais importantes registros do cancioneiro brasileiro, como Asa Branca, Adeus Maria Fulô, No meu pé de serra ou a própria Baião. Durante dois terços do filme, perde-se o horizonte da busca de Denise; em troca, tem-se uma exaltação à música brasileira, recorrendo a cânones como Chico Buarque, Maria Bethânia,
Gal Costa, Caetano Veloso, Fagner, Belchior, Zeca Pagodinho, entre tantos outros. Trechos de uma apresentação realizada em 2002, em comemoração ao Doutor do Baião Humberto Teixeira, são mescladas às belas imagens de Carvalho, do vaqueiro no sertão às ruas de Nova York, quando as fronteiras geográficas são ultrapassadas e o ritmo torna-se universal, encontrado em pubs ou casas noturnas, em versões produzidas por guitarras e distorções. Ao final, Denise se encontra com sua mãe, Margarida Jatobá, a qual finalmente vai esmiuçar um pouco do homem reservado sob o título de Doutor do Baião. Mas ainda que revele idiossincrasias, o mito, por fim, sobrepõe-se ao homem. [Isaac Pipano]
Salve Geral, Sérgio Rezende, 2009 92
S
em nem sequer tocar no vespeiro que é o tema escolhido pelo diretor [que não pode, nem deve, ser restringido a mero pano de fundo], os ataques do PCC no estado de São Paulo, em maio de 2006, o filme prescinde do irrefreável pela articulação de um roteiro fundamentado num princípio de causalidade simplista. Onde os elementos da dramatização poderiam convergir para uma narrativa que viesse a se sustentar, o fluxo se dá no sentido diametralmente oposto: a artificialidade da ambientação, a disposição das ações e o entrelaçamento de personagens e fatos no decurso da história, se parecem meramente providenciais. O acaso, o lance de dados da vida, é suprimido por uma espécie de determinismo que se apoia em arquétipos dos quais Sérgio lança mão, culminando num reducionismo histórico
baseado em forças antagônicas, em estereótipos planos que de tão recalcados tornam-se, por vezes, cômicos. Não há em Salve Geral nada que não esteja milimetricamente articulado no espaço diegético para que em algum momento venha à tona dando vazão às demandas do roteiro, num movimento que se inicia na constante inserção de situações e artefatos que vão se autojustificando. Suprime-se a revelação e sobra ao espectador o axiomático. A pluralidade de personagens permite menos que o pretensioso panorama do quadro traçado por Rezende se mostre como análise complexa do que uma imposição cujo fim incide na disposição de Salve Geral como mais uma tese da cinematografia brasileira recente que se volta para a compreensão das origens do crime organizado, dogmaticamente – qual as instituições a quem condena.[Isaac Pipano]
review
Sede de Sangue
Park Chan-wook, 2009
C
onhecido por sua Trilogia da Vingança [que inclui o sucesso Oldboy, 2003], Park Chan-wook conseguiu expressão internacional e capitaneou o boom do cinema sul-coreano na última década, apresentando excelente qualidade técnica, boa variedade de títulos e ótimos resultados em festivais. Premiado pela crítica no Festival de Cannes, Sede de Sangue, seu último lançamento, não foge da temática de sangue e violência, do humor negro e do exagero estético que caracterizam sua obra e o aproximam do cinema de horror: trata-se de um filme de vampiro. Sang-hyeon [Song Kang-ho, o mais popular ator coreano] é um padre católico que, após ser o único sobrevivente de um experimento com uma doença, recebe sangue e transforma-se, por desventura, em um vampiro. A partir daí, a fantástica estória narrada seria uma trajetória de perda da fé, um abandono consentido dela. Cedendo às exigências das necessidades carnais de sua nova condição [é amplo o folclore sobre vampiros, mas são recorrentes as referências à sua força incomum e à sua necessidade de sangue. O que os levaria ao mal, portanto, seria uma necessidade e não uma propensão], Sang-hyeon se envolve com Tae-ju [Kim Ok-vin], jovem irmã de criação e esposa de um amigo de infância. A intensidade da relação dos dois é explicitada entre as cenas de sexo [ponto alto do filme] e crueldade e a difícil relação de Sang-hyeon com sua sina, sua fé e seu amor. Com uma eternidade que é também maldição. O mérito de Park, um diretor acostumado a experimentar com as linguagens e possibilidades narrativas, estaria em fugir dos lugares comuns. As dúvidas e angústias das personagens se refletem em suas inter-relações, como se ele inserisse um elemento fantástico numa narrativa naturalista [como a referência à Teresa Ranquin, de Zola, que o diretor destacou em entrevistas]. A sede de sangue da personagem aumenta e os suprimentos do hospital onde voluntaria tornam-se insuficientes para si e sua amada, que em cena épica é vertida em vampira. Aliás, é a sede dela, mais intensa que a dele, que os conduzirá ao destino maldito. Uma resposta necessária à fé que lhe restava diante da face manifesta da crueldade.[Cesare Rodrigues]
93
D
94
o ponto de vista narrativo, Up – Altas Aventuras apresenta fortes semelhanças com seu antecessor da Pixar em parceria com os estúdios Disney, Wall-E. Ambos investem, nos primeiros trinta minutos, numa concisão de diálogos, num percurso de exploração e construção dos personagens que se faz a partir da exuberância da imagem e do som arrefecendo o poder da palavra dita. Se em Wall-E um silêncio etéreo perfazia o caminho do pequeno robô isolado entre os escombros de um planeta Terra devastado, em Up é a sinfonia do mais clássico cinema norte-americano que edifica a trajetória de Carl Fredricksen e sua esposa Ellie. Ainda jovens, casam-se com o sonho de aventurarem-se pela América do Sul qual o ídolo Charles Muntz. Porém, ao sonho impõem-se antes a vida e seus sortilégios: as dificuldades irrompem a cada ano, fazendo com que as economias acumuladas sejam revertidas na reforma da casa, em gastos médicos ou na compra de uma nova gravata. Assim, estilhaçam-se junto com os novos cofres os velhos planos, soterrando as perspectivas num processo que, sem perceber, chega ao fim. Ellie morre e Carl, velho rabugento, parecido com Clint Eastwood em Gran Torino, assiste a imposição de uma vida que já não lhe cabe, enquanto um complexo residencial é construído, restando ser abatida apenas a sua casa em meio ao canteiro de obras. Apegado à casa que, mais do que abrigo físico, é o lar de sua própria memória, Carl lançase pelos céus içando-a através de milhares de balões de hélio coloridos. Tendo em seu horizonte a possibilidade de levar a imagem da mulher ao paraíso que durante a vida perseguiu-os como esperança fugidia, Carl descobre ter consigo um companheiro, o jovem escoteiro mirim Russel, sujeitinho responsável por quebrar a cortina de enfado e rancor do velho. Daí que Up transforma-se numa história insólita, na qual surgem personagens exóticos – como o cão falante -, quiprocós e reviravoltas aproximando-a do que há de mais genuíno e imprevisível, como devem ser as fábulas infantis. Para os adultos, por sua vez, Up rememora a inocência de Frank Capra num longínquo A Felicidade Não se Compra, sugerindo que seja retirada a poeira dos velhos sonhos - pois a vida é uma alta aventura, irrefreá-vel. [Isaac Pipano]
Up, Pete Docter, 2009
Vivências Detonadas
review atlas
Polônia por Isaac Pipano
Sentado ao lado do ministro e cineasta Joseph Goebbels, Hitler gargalha euforicamente ao assistir a um de seus soldados, ilhado no alto de um campanário, abater sozinho 300 homens do exército oponente com um rifle. Utilizada ideologicamente para edificar a soberania da nação alemã, a epopéia do herói ariano é substituída pela face de uma jovem judia, a própria dona do cinema onde se realiza a sessão, até então protegida de sua própria origem pela falsa cidadania francesa e o nome Emmanuelle Mimieux. Única sobrevivente – menos por benevolência do que puro sadismo – do extermínio que apagou o sobrenome de sua família, Shosanna Dreyfus tem sua vingança: incendiar o cinema e com ele os mais altos dirigentes do Partido nazista, numa virada histórica que encerraria ali a Guerra alastrada por toda a Europa. A cena, do último filme de Quentin Tarantino, Bastardos Inglórios [leia a resenha na página 83], dentre muitos de seus significados e interpretações, resgata uma das faces mais po-
rio nuclear “a mais forte de todas as armas”, mas o próprio cinema; Stalin, por sua vez, via o cinema como “um grande meio de propaganda em massa”. Como grande meio de propaganda de massa, o cinema no regime socialista serviu como ferramenta para a afirmação identitária de países ocupados, como a Polônia, que no decurso de sua história, a freqüência com que o cinema colide com a política faz tornar indissociáveis seus laços. Forjando à bala na longeva linha histórica o marco zero da Segunda Guerra Mundial, em 1939, no dia 1º de setembro, as tropas alemãs abriram fogo contra o forte de Westerplatte, em Danzig. Numa estratégia ambiciosa, que entre outras coisas visava o restabelecimento das fronteiras pré-Tratado de Versalhes, responsável por descampar zonas militares e econômicas estratégi-
tentes do cinema do pós-Guerra e o vislumbre daquela época ao vinculá-lo ao poder. Em suma, o cinema era usado como instrumento de dominação política na macro-esfera social. Líderes emblemáticos vaticinaram alto logro no seu emprego para a construção do imaginário coletivo de seu povo. Para Lênin, “a mais importante das artes”; para o italiano Mussolini, não era o pode-
cas para a Alemanha como penalização pelos conflitos da Grande Guerra, a invasão da Polônia baseou-se nas ofensivas relâmpagos, as blitzkrieg, e devastou grande parte do território. Das menos afetadas [num contexto onde menos, no entanto, não quer dizer pouco], a cidade de Lodz se
95
96
converteria em sede para a criação da Escola Nacional de Cinema, em 1948, adquirindo importante estatuto cultural, por muito tempo restrito às outras duas maiores cidades do país - Varsóvia e Cracóvia. Se a priori a instauração da Escola em Lodz seria apenas transitória – de acordo com o programa de reconstrução da capital Varsóvia, completamente destruída, a sede se posporia lá -, o êxito de sua presença na cidade se impôs à transferência: teatros, cinemas e estúdios foram construídos de modo que em seu entorno reuniram-se técnicos, atores e diretores antes dispersos num êxodo pela Europa. Assim, a Escola de Cinema de Lodz se edificaria como centro disseminador da cultura de uma Polônia dominada pelo regime comunista, o qual pregava a difusão de uma identidade exterior aos seus próprios habitantes. O controle soviético impunha aos cineastas modelos de representação revestidos ideologicamente pelas normas do Partido. Até mesmo em Lodz, cuja consolidação da escola seria seminal para a formação teórica e prática dos cineastas, a censura entremetia-se na elaboração de roteiros e inviabiliza projetos que se contrapunham ao regime ou demonstravam orientação distinta do programa artístico imposto pelo Realismo Socialista: sinteticamente, um projeto estético do Estado responsável por subordinar todos os meandros da produção cultural da União Soviética e as demais zonas territoriais sob seu comando. Baseado no dogmatismo da teoria da reflexão cuja premissa resultava na apropriação do mundo enquanto objeto artístico, o Socrealism – outra denominação para o programa através da aglutinação - propunha a utilização da classe trabalhadora como ilustração no embate contra a tirania capitalista; a união da classe cunhava os preceitos
[O cineasta Andrzej Wajda, com um quadro de Stálin ao fundo]
filiados à idéia de que a uma sociedade em progresso, o trabalho constituise como motor. Assim, a projeção de um cinema tendencioso resultava em obras que se afastavam essencialmente da doutrina pregada, pois à captação da essência da realidade entranhava-se uma carga ideológica matizando esses filmes da mesma coloração fantasiosa e doutrinária das obras patrióticas do início do século. A morte de Stalín, em 1955, e decorrente diminuição na repressão, permitiu que novas tendências e programas estéticos fossem a embate na arena cinematográfica polonesa: diretores imbuídos do mesmo zeitgeist das vanguardas cinematográficas espalhadas pelo mundo sob o nome de Escola Polonesa de Cinema e os agitadores políticos, organizados em torno da produção de filmes de formação ideológica. Motivados por debilidades técnicas similares - inexistência de estúdios e aparelhagem técnica adequada, escassez de recursos, ausência de atores profissionais -, na urgência em se voltar para as camadas baixas e a sociedade que se delineava nos destroços da Guerra, os poloneses encontraram no neorealismo italiano uma fonte referencial primorosa para a consolidação de um programa estético debruçado na compreensão do próprio tempo. Oposta à corrente predecessora, o cinema do meio do século pungia o real através de personagens nada consagrados. Vivências detonadas, cotidianidade e pobreza eram alçadas à condição de uma arte que se desenraizava do epicentro social. O passado recente e os complexos deixados de herança pela Guerra estão marcados na história da Polônia a partir de 1957 [estendendo-se até os dias de hoje], em torno de 30 obras configuradas sobre o conjunto de predicados lançados pela Escola Polonesa de Cinema. Em sín-
tese, os diretores voltaram-se às atrocidades da Guerra e os tabus gerados por meio de uma narrativa convencionada segundo simbologias, apoiada em metáforas e referenciando clássicos literários românticos, a fim de eliminar o revestimento mitológico com o qual o socialismo realista havia proposto o cinema. Aqui, no entanto, a busca pela nacionalidade dá-se num movimento que emana das classes operárias, e não que se impõe a elas enquanto mitificação. A investida da Escola de Cinema Polonês não foi longe; a ela sobreveio uma tendência, imposta pelo secretário Wladyslaw Gomulka, de retorno ao filme épico, e o cinema polonês avizinha-se do star system hollywoodiano, o que ideologicamente, no embate da bipolarização mundial, soa no mínimo paradoxal. Em contrapartida aos predicados políticos e ideológicos com os quais se empregou o cinema na vigência do regime socialista na Polônia, de uma ponta à outra do cordão – como instrumento de dominação pelo Estado ou de afirmação identitária pelos movimentos correntes –, o mercado, no entanto, foi quem melhor absorveu essa demanda, eminentemente o próprio cinema hollywoodiano e sua indústria. De certa forma, por um sentido totalizante – e inadvertidamente recolhido no discurso da esquerda – de que o próprio povo, ou a massa sobre a qual se edificam os discursos sociais, por vezes está mais interessado em ser cúmplice a delatar o criminoso. No encontro com a realidade escancarada e saturada pela reincidência temática, o cinema, parodiando a lógica industrial e do entretenimento de seu arquiinimigo, nos níveis técnicos e estéticos, tornou-se estratagema para os poloneses se esconderem de seu próprio passado: o incêndio se apaga, não sem deixar marcas e cicatrizes.
97
colaboraram nesta edição: .gustavo padovani
.marcos silva
.fernando de paulo
.felipe teram
.thiago venanzoni
.rafael de luna
convidados 98
editores .cesare rodrigues
revistaprojecoes.com.br
.felipe arra
.isaac pipano .diego morales é o criador do logo da revista e ilustra a capa desta edição
imagens não creditadas: Google Images e Flickr ilustrações dos versos da capa/contra-capa: diego sato planejamento gráfico e diagramação: isaac pipano
pessoal
99
100