SUJEITO
ENSAIO FOTOGRÁFICO Marginalizados pela sociedade e acolhidos pela rua, P7
FILHAS DO PRAZER
Retratos da mais antiga das profissões na cidade de Bauru, P9
ENTREVISTA
A história de um ex-usuário de drogas e a sua recuperação, P10
BAURU ÀS
MARGENS
SUJEITO
FEVEREIRO I 2014 I P2
Sujeito. Como substantivo, designa o indivíduo, pessoa de quem se omite ou desconhece o nome. Como verbo, é estar subordinado a determinadas situações. Todos os dias, muitos sofrem as consequências da marginalizacao social. Ao longo da história, muitos foram os motivos encontrados para excluir o próximo e também variaram as formas de se relacionar com essas pessoas. A partir do iluminismo, por exemplo, a pessoa irracional foi excluída e começou a ser encarcerada. Sofreram com essa prática os deficientes físicos e mentais, as prostitutas,
as mães solteiras, ladrões, opositores ao governo, entre muitos outros. Quatro séculos depois, em 2014, a ciência já evoluiu a ponto de tratar a maioria das dificuldades mentais e físicas dos seres humanos sem ser necessária a exclusão e encarceramento. Apesar dos avanços médicos, ainda persiste a cultura da segregação dos doentes físicos e mentais. As prostitutas, hoje em dia, lutam por uma regulamentação na sua profissão, mas continuam socialmente marginalizadas. Muitos são os que vivem às margens da sociedade, e poucos os que questionam o por quê disso e refletem sobre o
destino dessas pessoas. Há quem diga que os marginalizados são aqueles que não contribuem com modo de produção do sistema capitalista. Ciganos, drogados, prostitutas, doentes mentais, catadores de lixo e moradores de rua são exemplos de improdutividade, pelo menos aos olhos da maioria das pessoas. Sujeito procura reportar histórias daqueles que compõem a sociedade e contribuem para seu equilíbrio, mesmo sem serem notados e auxiliados por políticas públicas efetivas. Nossa missão é valorizar a face real daquela sombra enxergada pela mulltidão. p
“EU VENDO SONHOS”
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Lixo OU SOBREVIVÊNCIA?
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Isabela Romitelli e Nathália Rocha
HERÓIS DA SARJETA
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NO OLHO DA RUA
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Gabriela Lima e Keytyane Medeiros Camila Pasin e Nathália Rocha
DIZEM QUE SOU LOUCO
Laura Fontana, Lígia Morais e Mariana Caires
DAMAS DE ALUGUEL
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ENY CEZARINO
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ASAS DE CERA
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BRUNO, 27
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INVISÍVEL
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ARCABOUÇOS
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Caroline Braga, Marina Spada e William Orima Lígia Morais
Camila Pasin e Laura Fontana Camila Pasin e Laura Fontana
Gabriela Lima
Keytyane Medeiros
ILUSTRAÇÃO DA CAPA Matheus Scarlatti Belucio
REPORTAGEM EN TREVISTA FOTOGRAFIA EXPEDIENTE JORNALISMO
Reitor: Júlio Cézar Durigan Diretor da Faac: Nilson Ghirardello Coordenador do Curso: Francisco Rolfsen Belda Chefe do Departamento de Comunicação Social: Juarez Tadeu de Paula Xavier Orientadores: Ângelo Sottovia Aranha, Tássia Caroline Zanini, Francisco Rolfsen Belda
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DIAGRAMAÇÃO Isabela Romitelli, Lígia Morais e William Orima
Suplemento
produzido pelos alunos do 4º termo do curso de Comunicação Social: Jornalismo do período diurno da UNESP
Equipe: Camila Pasin, Caroline Braga, Gabriela Lima, Isabela Romitelli, Keytyane Medeiros, Laura Fontana, Lígia Morais, Mariana Caires, Marina Spada, Nathália Rocha e William Orima
Avenida Engenheiro Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01, Vargem Limpa, Bauru - SP Fone: (14) 31036000 Ramal: 6063
SUJEITO
P3 I FEVEREIRO I 2014 Foto: Keytyane Medeiros
“eu vendo sonhos” Marginalizados, trabalhadores informais de Bauru são discriminados por seus ofícios
Art. 1º - O comércio ambulante é toda e qualquer forma de atividade lucrativa exercida por conta própria e de terceiros, em que não se opere na forma e nos usos do comércio localizado, ainda que com este tenha ou venha a ter ligações ou intercorrência caracterizando-se, nesta última hipótese, pela improvisação de vendas ou negócios, que se realizem fora do estabelecimento com que tenha concessão. Lei nº 179 18 de Maio de 1972
-GL, KM Vender. Comprar. Trocar dinheiro por algo que se deseja. A atividade de venda pode ser considerada uma das mais antigas do mundo. A história do comércio no Brasil começou com os vendedores ambulantes que desciam as ruelas das cidades litorâneas para vender objetos manufaturados, jóias, especiarias e tecidos. Os vendedores tinham vários codinomes, dentre eles Barateiro, Canastreiro, Gringo e Caneludo. Um vendedor precisava ter a eloquência de um orador, agilidade na hora das contas e ter a simpatia para conquistar a clientela. O comércio brasileiro se aprimorou e a população tem uma enorme variedade de produtos para comprar, e pode escolher também de quem. De Beirut à Bauru Uma volta no centro de Bauru, pela manhã de segundafeira, e já se observa várias barraquinhas com artesanatos, vendedores ambulantes e, lógico, pessoas querendo comprar. O que vários consumidores não sabem são as histórias por trás daqueles que sempre oferecem um desconto quando você pede uma pechincha. Com um pouco mais de um minuto de conversa entre a equipe e Seu Samir, a feição das repórteres foi de espanto - o vendedor de bolsas, brincos, anéis e enfeites de cabelo trabalha há 40 anos na praça Rui Barbosa e o seu trajeto até chegar no centro de Bauru foi longo.
Samir veio de Beirut, no Líbano, quando tinha 20 anos, para trabalhar como feirante. Na conversa informal com Seu Samir, ele foi categórico: nunca mais voltou ao Líbano e gosta do que faz. Tem a ajuda da sua esposa na venda dos objetos e com o trabalho conseguiu conquistar muitas coisas, dentre elas, auxiliar no pagamento da mensalidade do curso de medicina do neto. O libanês é mais um dos trabalhadores informais, aqueles que não têm vínculo com nenhuma empresa e que optam por seguir esse caminho em virtude dos tributos incidentes sobre o comércio formal serem muito altos. Seu Samir conta como conseguir o alvará, documento que aprova o direito de trabalhar na praça foi fácil. Como trabalha há tempos no mesmo lugar, mesmo antes da praça ser fundada, a prefeitura não dificultou o processo e, atualmente, os fiscais passam sem incomodar o seu trabalho. Diferentemente de Seu Samir, que nunca tira férias, aqueles vendedores que ainda não têm o alvará de licenciamento podem se complicar - a fiscalização pode notificá-los e obrigá-los a sair do local de venda. O Art. 1º da Lei 179 é claro. É necessário ter a concessão para fazer o trabalho, mas por que, ainda, muitos trabalhadores informais não a tem? Como o trabalho alternativo não tem renda fixa e o sucesso das vendas depende dos consumidores, o vendedor alternativo sem o alvará não paga os tributos exigidos pela lei. Um deles é o imposto de renda sobre o lucro (Tributo Federal) e o outro, o imposto sobre a mercadoria conseguida, o ICMS (Tributo Estadual). Com alvará, ou não, os vendedores estão por toda a parte. Vendem os mais inusitados produtos e surpreendem repórteres com histórias inusitadas. Preconceito nas ruas É segunda-feira de manhã e o Seu Antônio já está em sua banquinha de vinis e re-
vistas pornô antigas, a todo vapor. Há 23 anos, talvez seu espaço fosse um pouco mais movimentado. Àquela época, muito mais pessoas ouviam e tinham aparelhos de fita cassete ou vitrolas. Mas ele não se importa com isso. Apesar de o trabalho informal não ter algumas garantias, como plano de saúde ou férias remuneradas, o Seu Antônio gosta muito do que faz. “É melhor trabalhar como autônomo, porque não tenho patrão, faço meu horário, ganho até mais do que antes”, garante.
“Tem gente
que acha que toda pessoa que trabalha na rua é bandido” Antes de chegar à Bauru, Seu Antônio morava em Niterói, no Rio de Janeiro, e trabalhava como empregado em uma firma. Chegou até a visitar a Alemanha, numa viagem de negócios. Falava inglês e “tem cultura”, como ele mesmo diz. Por isso, ele fica tão chateado quando as pessoas não entendem o trabalho que ele tem e, inclusive, já o denunciaram para a polícia, mas não houve razão para maiores alardes, pois ele possui alvará de funcionamento concedido pela prefei-
tura municipal. Segundo ele, “tem gente que acha que toda pessoa que trabalha na rua é bandido, faz coisa errada”. Além desse, existem outros tipos de preconceito com os trabalhadores ambulantes ou que tiram da rua o seu sustento. Ao andar pelas ruas do centro de Bauru, observamos que os vendedores normalmente são pessoas mais idosas, como o senhor Clodoaldo, vendedor de goiabas, ou negros, como o Décio, artesão que vende quadros pintados em azulejos brancos. Dessa maneira, a maior parte desses trabalhadores se configura pelas minorias brasileiras e carregam consigo o signo da marginalização social. Para Seu Antônio, “o preconceito maior que existe é esse aqui, a cabeça branca [aponta para o cabelo]. Se alguém me maltratar porque eu sou velhinho, não leva a nada. Governo não dá apoio pra velhinho, você entra num ônibus e você é empurrado, xingado. Ninguém faz nada”. Apesar de tudo isso, Seu Antônio diz que não trocaria seu trabalho por nada - “exceto, talvez, por uma aposentadoria gorda”. E se alguém lhe pergunta a razão, ele prontamente responde: “eu trabalho com cultura popular. Eu vendo sonhos”. p Foto: Keytyane Medeiros
De cabelos brancos, Seu Antônio vende de tudo: de LPs a revistas pornô
SUJEITO
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lixo OU sobrevivência? Coletores sentem-se desvalorizados por seu trabalho
Foto: Camila Pasin
A faxineira parece pretender proteger-se: se não olha para ninguém, evita olhares cegados, evita perceber que não é notada. Não vê que não a viram. Fernando Braga Costa Homens Invisíveis
- CP, NR Cerca de 200 toneladas de lixo por mês. Um índice de apenas 2,5% de reaproveitamento por parte dos cidadãos. Quem cuida desse serviço? A pequena taxa de reciclagem é um dos indícios de que nem sempre se reconhece o trabalho dos responsáveis pela limpeza do município de Bauru. As empresas são conhecidas, o estado das ruas, sobretudo quando sujas, é avaliado pelos moradores. O que se deixa de lado são os profissionais que diariamente contribuem para o cuidado com a cidade. Uma greve dos catadores, de apenas uma semana, e a cidade tropeçaria em lixo. O cidadão bauruense, Henrique Nunes (30), reconhece a importância dos profissionais de limpeza, mas admite que nem sempre os moradores da cidade fazem sua parte. “Para ajudar, a respeito de sucata, é bom separar tudo, plástico com plástico, metal com metal. Mas, no dia-a-dia, a gente acaba esquecendo”, observa Henrique. Eliude Alves (52) trabalha há quatro anos na Empresa Municipal de Desenvolvimento Urbano e Rural de Bauru (Emdurb), responsável pelo serviço de coleta de lixo na
Isabel trabalha há 30 anos com coleta de reciclavéis cidade. Ela dedica oito horas de seu dia varrendo a cidade e tem consciência da importância do serviço que presta. Procura, então, fazer sua parte para cuidar da cidade, evitando jogar lixo na rua. Cuidado que, segundo ela, nem todos têm. “Eu acho que o povo é muito porco, joga lixo na cara da gente. As pessoas tinham que parar de jogar lixo na rua. É falta de respeito com a gente e com o meio ambiente também”, lamenta Eliude. Ao coletor cabe percorrer diferentes localidades, despejando sacos de lixo em latões ou caminhões especiais, trabalho que demanda esforço físico. Além disso, devem transportar entulhos de construçõeslocais apropria-
dos, e coletar lixo hospitalar, o que é muito arriscado. Mas há mais gente envolvida no processo. Coletores informais também contribuem para a limpeza da cidade, com um trabalho igualmente desgastante, mas sem a estabilidade proporcionada por um contrato de trabalho. “O horário de eu sair daqui é no máximo umas 20h. Então, antes de eu descer, levo o carrinho para baixo, pego a vassoura, pego um saco, deixo tudo limpinho. Se o lixeiro não levar, eu deixo o saco ali amarrado, daí por todo lugar que eu cato, vou mantendo limpeza”. Essa é a rotina de Maria Aparecida Angelo (53), que trabalha há seis anos como coletora de recicláveis Foto: Camila Pasin
Eliude, que trabalha há mais de 4 anos na Emdurb
no centro da cidade de Bauru. Maria também já trabalhou como empregada doméstica e descreve as dificuldades de sua ocupação atual, como a rivalidade entre os coletores e a instabilidade financeira. “Tem semana que tá bom, tem semana que tá fraco. Muitos passam e me humilham, me xingam por causa dos materiais, porque às vezes eles querem o material para eles e eu não quero ceder porque o lugar é meu. Encontro muitas dificuldades, eles judiam muito da gente, eles pisam na gente”, conta a coletora. Isabel Fernandes (57) divide seu tempo entre a coleta de recicláveis e o trabalho como doméstica e, assim como Maria, descreve o seu dia-a-dia: “Eu já tenho minhas lojas para pegar. Faço meu contrato com elas e renovo todo ano. Eu tiro mais do papelão do que se eu for trabalhar na casa dos outros.”. Ambas descrevem o desgaste físico e a humilhação que sofrem por parte dos moradores mas, apesar de tudo, com bom-humor e muita certeza, afirmam que gostam do que fazem e não trocariam isso por nada. “Muita gente passa bonitinha aqui de salto alto e fala ‘Olha quanto lixo!’, eu viro e falo ‘Lixo não, minha filha, é reciclável’. Se achar ruim, achou. Eu estou tirando meu dinheiro com caráter, vergonha na cara”, finaliza, orgulhosa, a coletora Isabel. p
SUJEITO
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heróis da sarjeta
O grande desafio não é tirá-los da rua, mas tirar a rua deles Foto: Isabela Romitelli
Todos esses pobres seres vivos tristes vivem do cisco, do que cai nas sarjetas, dos ratos, dos magros gatos dos telhados, são os heróis da utilidade, os que apanham o inútil para viver, os inconscientes aplicadores à vida das cidades daquele axioma de Lavoisier; nada se perde na natureza. João do Rio A Alma Encantadora das Ruas
- IR, NR Dia chuvoso em Bauru. Ruas alagadas, pessoas sobre ônibus perdidos em meio às águas. As ruas da cidade param por algumas horas. Cidadãos comuns às vezes têm a opção de esperar até que a chuva passe. Enquanto isso, correm aqueles que não têm um teto. Para eles, a rua não pára. É sua moradia, seu abrigo, e sua sobrevivência. De acordo com pesquisa realizada pela Secretária do Bem Estar Social, cerca de 80 pessoas vivem em situação de miséria no município. Isso sem contar aqueles que migram de uma região para outra. Dentre as razões que levam um cidadão às ruas, as mais comuns são as perdas familiares, as desilusões amorosas e o envolvimento com drogas. Uma vez no asfalto e diante de suas dificuldades, esses indivíduos ainda enfrentam o descaso daqueles que passam e não só deixam de ajudá-los, mas, muitas vezes, os destratam. “A pior parte é a humilhação. Ficar sujo, fedendo, pedindo as coisas. Olhar na cara das pessoas e elas não falarem nem ‘bom dia’. Você vai chegando e fecham a porta, te tratam como um presidiário”, desabafou Carlos Roberto, 51. Em Bauru, algumas entidades oferecem abrigo e alimentação a pessoas em situação de rua, como o Centro POP e o Centro Espírita de Amor e Caridade (CEAC). No CEAC, além do serviço de pernoite, há atendimento àqueles que buscam sair da rua, a chamada “casa de passagem”, em que os indivíduos recebem apoio psicológico, fazem atividades
Foto: Isabela Romitelli
Os moradores da “casa de passagem” produzem arte como forma de terapia
terapêuticas e seguem uma rotina de reinserção social e, ao final, são encaminhados para oportunidades de emprego. Apesar dos serviços de assistência, muitos se recusam a aceitar ajuda e preferem continuar vivendo daquilo que conseguem na rua. Fica claro o contraste entre aqueles que procuram auxílio do CEAC, os quais descrevem o centro e sua equipe como os únicos que lhes ofereceram uma oportunidade, e os cidadãos que preferem continuar onde estão. “Você vai no albergue e fica tipo em uma cadeia, é tratado de uma forma diferente. Na
INFORMAÇÕES Até o final de 2009 foram servidas 12.702 refeições, 9.816 lanches, ministradas 5.988 medicações e doadas
4.030
peças de roupas.
Nos 63 anos de funcionamento o CEAC registrou aproximadamente 750.000 pernoites.
rua eu estou melhor. No albergue hoje em dia tem guarda, tem polícia, eu prefiro a rua”, afirma Morador de Rua, que preferiu assim ser identificado. Essa visão negativa talvez explique o fato de o albergue, que oferece vinte vagas, nunca ter atingido sua capacidade máxima. “A gente vê a rua como
algo muito fácil. Enquanto os usuários encontrarem na rua tudo o que eles tinham dentro de casa, eles não vão ter porque sair. Enquanto a sociedade indiretamente sustentar um morador de rua, ele não vai voltar para um lugar onde ele tem regras para seguir. Essa falsa liberdade que a rua dá para a pessoa talvez seja o ponto mais difícil a ser trabalhado”, explica Francine. Apesar da observação da as-
sistente social, moradores e
ex-moradores de rua concordam quanto à dureza da mendicância. A violência, os dias passados sem alimento, o descaso dos moradores da cidade, os vícios nos quais muitos entram e mesmo as mudanças climáticas. A rua é abrigo e, ao mesmo tempo, um desafio a ser superado. “A vida no trecho é uma vida sofrida. São muitas portadas na cara, muitos ‘nãos’ que leva. É sofrido, mas a pessoa tem que saber viver”, relata Márcio Lucindo, 32, residente do CEAC. p
Dorme Sujo Duilio Ferronato Dash Editora R$ 35,00
SUJEITO
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DA
olho rua
P7 I FEVEREIRO I 2014
SUJEITO
De rua em rua, a rua em que se passa é aquela que se abraça e do tempo se embriaga. Na viela onde me deito, o outro estaciona e a moça manda um beijo. De noite o trem não anda, o louco perde a grana e o ponto desencanta. Sem paz ou guerra a rua brilha conforme a lua sem escolher seu dono. p
SUJEITO
FEVEREIRO I 2014 I P8 Foto: Luiz Alfredo/O Cruzeiro
Internas do Hospital Colônia reunidas no pátio
Dizem que sou LOUCO A luta contra os hospitais psiquiátricos também passa por Bauru
Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida. Machado de Assis O Alienista - LF, LM, MC
A Bastilha da razão humana toma forma na Casa Verde, hospital psiquiátrico de O Alienista, de Machado de Assis. O conto questiona o cientificismo do século XIX e leva um dos próprios personagens à dúvida: “Se tantos homens em quem supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o alienista?”. Do espetáculo à doença, a loucura já foi tratada de diferentes formas pela sociedade. Desde a Idade Clássica, as políticas do Grande Enclausuramento começaram a destinar os loucos a hospícios apenas para tirá-los de perto da sociedade. No período do iluminismo, os loucos eram tidos como irracionais. Marginalizá -lo socialmente ainda era a alternativa mais comum. No fim do século XVIII, o louco passa a ser visto como alienado e é nesse contexto que surge a pesquisa em psiquiatria. Com o tempo, a proposta do hospital passa de hospedaria a local de tratamento médico. É o começo da medicina mental. Com nomes importantes como Michel Foucault e Philippe Pinel, a psiquiatria foi se desenvolvendo e o louco ganhou alternativas para se reinserir na sociedade. Apesar dos avanços em pesquisas, elas eram praticamente INFORMAÇÕES
Centro de Atenção Psicossocial (CAPS I) Rua Monsenhor Claro, nº 6-99 Fone: (14) 3227-5022
ignoradas pelas políticas públicas brasileiras. O maior exemplo de violência contra a loucura no Brasil foi o Hospital Colônia, em Barbacena (MG), retratada pela jornalista Daniela Arbex, em “Holocausto Brasileiro”. Naquele local morriam todos os dias pessoas que não tinham direito a privacidade, a tratamento médico e sequer à vida. A reforma psiquiátrica se instaura contra os grandes e ineficazes hospitais psiquiátricos. Seu grande agitador, o italiano Francisco Besaglia lutou para que em 1973 se instalasse na Itália a Lei 180 (Lei Francisco Besaglia), que extinguiu hospitais psiquiátricos no país. Em contato com o horror do Colônia, em julho de 1979, Besaglia convocou a imprensa para denunciar: “Estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum presenciei tragédia como esta”. Besaglia incentivou a luta antimanicomial brasileira, que teve impulso também com os grandes congressos de trabalhadores da saúde mental. Bauru, 1987: Por uma sociedade sem manicômios Sujeitos da diferença. É assim que o Prof. Dr. Osvaldo Gradella Jr. define os que foram excluídos, pelo sistema capitalista, das relações sociais. Ele explica que a organização do modo de produção capitalista cria um grande grupo de marginalizados, incluídos aí os sujeitos da loucura. “Quem não produz, é excluído de alguma forma”, completa ele quando se refere à criação de instituições para abrigar os marginalizados. Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS ad) Rua Antônio Alves, 17-58 Fone: (14) 3227-3287
No Brasil do final da década de 1970, a fundação do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental passa a denunciar as péssimas condições, a violência e os grande gastos dos manicômios. Nos anos 80, começam a surgir novas formas de atenção à saúde mental, fora dos hospitais. A 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, aprovou diretrizes que propunham mudanças no sistema de saúde brasileiro. Gradella retoma, então, o 18 de maio, em Bauru de 1987. O II Encontro dos Trabalhadores da Saúde Mental reuniu
“Estive hoje
num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum presenciei tragédia como esta” não só os próprios técnicos, mas também os chamados sujeitos da loucura e seus familiares. Unidos, levantaram a bandeira “Por Uma Sociedade Sem Manicômios” e chamaram a atenção não só dos bauruenses nas passeatas pela cidade, mas do país inteiro. O Encontro tornou pública a Carta de Bauru , um manifesto contra a mercantilização da doença e a favor de uma sociedade sem manicômios. Para ressocializar Um mecanismo inovador de reintegração foi a criação dos Centros de Atenção Psicosocial (CAPS). O primeiro centro surgiu em 1986, em São Paulo, e pode ser considerado um dispositivo de atenção à Saúde Mental com a possibiCentro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPS i) Rua Vírgilio Malta, 16-57 Fone: (14) 3227-2574
lidade de organizar uma rede substitutiva ao Hospital Psiquiátrico. O tratamento no CAPS busca preservar o vínculo social ao acolher as pessoas com transtornos mentais graves tais como psicoses e neuroses persistentes. Por meio do acompanhamento interdisciplinar e da articulação com recursos sociais e culturais, o centro busca preservar e fortalecer os laços sociais do usuário em seu território. O Brasil conta atualmente com 1.620 centros de Atenção Psicossocial. Em Bauru, há três CAPS coordenados pela Secretaria de Saúde Mental. As equipes incluem médicos psiquiatras, enfermeiros, psicólogos e outros profissionais de saúde e os atendimentos são feitos no período diurno (para evitar internações).O atendimento no CAPS requer uma avaliação na Unidade Básica de Saúde ou em outros serviços que justifiquem a necessidade de atenção especializada. Outros programas O poder público oferece o Saúde da Família, com quase 32 mil equipes em todo o país, as Casas de Acolhimento Transitório (CATs), os Consultórios de Rua e as Comunidades Terapêuticas. Outra alternativa é o programa De Volta Para Casa, que dá auxílio financeiro mensal de R$ 320 a pacientes que receberam alta hospitalar após um histórico de internação. O programa foi criado pelo governo federal em 2003 e beneficia mais de 3,7 mil brasileiros em 614 municípios. p Holocausto Brasileiro Daniela Arbex
Geração Editorial R$ 31,90
SUJEITO
P9 I FEVEREIRO I 2014
damas de aluguel
Em 50 anos , as transformações do meretrício em Bauru Ardentes filhas do prazer, dizei-me! Vossos sonhos quais são, depois da orgia? Antero de Quental Metempsicose
- CB, MS, WO “Isto é um palácio. Não sabia que em Bauru existiam áreas palacianas”, disse Jânio Quadros ao adentrar pela primeira vez no salão que, assim como o restante da casa, estava decorado com rosas. Eram as flores preferidas da Dona e combinavam perfeitamente com a atmosfera
luxuosa da Casa. Celebridades bebiam, homens de negócio jogavam e políticos influentes desfrutavam da companhia de suas garotas; era uma típica noite no Eny’s Bar. Quando a prefeitura de Bauru removeu os meretrícios do Centro da cidade, Eny renegou a nova área demarcada na periferia e decidiu investir na construção estratégica de um bordel próximo à entrada principal da cidade. Inicialmente, contava com 20 suítes, cozinha, bar, salão, além de apartamento privati-
vo da dona. No auge, o bordel mais famoso do Brasil chegou a ter 40 quartos, 28 funcionários e 70 inquilinas - Eny tornara-se uma celebridade. Longe dos holofotes, o contador da cafetina desviava os rendimentos do estabelecimento, dando início à queda do império de Eny. As dívidas somadas à ascensão dos motéis fizeram-na sucumbir. Eny Cezarino faleceu pobre, esquecida em um leito de hospital; afastada de seus tempos de ouro. Foto: Luiz A. Teixeira
O salão estava sempre decorado com rosas. Dona Eny apreciava as flores Sentada à sombra de um motel à beira da Rodovia Marechal Rondon, Shantala aguarda os clientes da tarde com outras cinco prostitutas. Hoje, dona de alguns pontos de prostituição em Bauru, saiu de São Paulo aos 22 anos - já prostituta. “Eu gosto dessa vida”, disse com naturalidade, “não me imagino fazendo outra coisa”. Fazendo de quinze a vinte programas, um dia bom lhe chega render 600 reais. Até 20.000 em um mês. “Não gosto de bagunça no meu ponto”, disse Shantala depois de perguntada se há rivalidades entre outras prostitutas e suas meninas. Naquele local, ela “cuida” de quinze a vinte. É dona da casa em que
mora e aluga quartos em outra casa para que suas garotas tenham uma vida normal; “para comer, dormir, tomar banho, não para trabalhar”. A cafetina comenta que o movimento é constante em qualquer período do dia. Naquela tarde de terça-feira, cinco horas, três carros pararam e duas meninas saíram com clientes. Sobre seus frequentadores, respondeu “brancos, pretos, ricos, pobres…”. E acrescentou que a maioria procura travestis. Shantala é dona da boate Suave Veneno, um dos prostíbulos mais famosos de Bauru - em funcionamento há aproximadamente oito anos. Seu império sexual vai
bem, mas concorda que a regularização da profissão seria bem-vinda: “É um trabalho como qualquer outro”. Ela não tem planos de voltar para São Paulo, gosta da calma do interior e já tenciona abrir um bar em Botucatu - além dos programas, contaria com shows e eventos. Apesar da calmaria, há programas que acabam sendo problemáticos; alguns clientes recusam-se a pagar, outros abandonam as garotas em lugares afastados. Shantala terminou a conversa comentando que adora dias de chuva. Nestes, a clientela aumenta muito, atraída pela discrição de um vidro abafado. Aparentemente, “são bons tempos para ser prostituta”. p Foto: Willliam Orima
“Eu gosto dessa vida”, disse Shantala, com naturalidade. “Não me imagino fazendo outra coisa”
ENY CEZARINO
Quando completou 29 anos, no dia 23 de abril de 1946, Eny já tinha decidido que conquistaria poder e dinheiro, mas pensava num futuro diferente do imaginado pelos pais. Ao invés de um rico casamento, economizaria para abrir seu próprio bordel, ali mesmo na cidade em que trabalhava. Em 1941, Eny fugira de casa para a prostituição, no dia seguinte ao 23 de abril daquele ano. Pela Rua Aimorés, Avenida João Luís Alves, Rua Botafogo, pelo porto de Paranaguá. Eny atraiu a atenção dos homens passando por pensões paulistanas, cariocas e gaúchas. Famosa no avesso da sociedade brasileira, Eny chegou a Bauru já depois da instalação da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, linha que levava e trazia grandes políticos e personalidades para os bordéis bauruenses. Em 1947, Dona Eny abriu finalmente sua primeira pensão. A casa sempre cheia, não só de pessoas, mas também de posições políticas, continuava a faturar. Era zona eleitoral da cidade. Ao lado de Eny, o amigo Nicolinha, dono do Diário de Bauru, e Maurício, grande amor que durou 22 anos, até a morte dele, em 1973. Dez anos antes, a casa noturna tinha se mudado do Centro para a entrada principal da cidade. Depois do sol, era lá que existia “o mais belo buquê de mulheres”, como dizia Jânio Quadros. O grande bordel brasileiro dos anos 50 e 60 foi vendido em 1983. Eny não podia mais competir com a mudança de costumes e o crescimento dos motéis na cidade. E foi em 1997, que já adoecida e endividada, Eny Cezarino viveria o seu último 23 de abril. p Eny e o Grande Bordel Brasileiro Lucius de Mello Editora Objetiva R$ 39,90
SUJEITO
FEVEREIRO I 2014 I P10 Foto: Camila Pasin
asas de cera
Não há dinheiro que afaste das drogas se não mudar o foco, o interesse pela vida As drogas me deram asas para voar, depois me tiraram o céu. John Lennon
- CP, LF “Entre pela rua Peru, quadra 2”. Eis o recado escrito na fachada da Comunidade Terapêutica Vida & Paz. A entidade funciona sem fins lucrativos e atende a todos os tipos de pessoas de diferentes credos, sem discriminação social ou racial. Oferece uma nova vida aos que necessitam de ajuda contra a dependência química. Fundada no ano 2000 como igreja, passou a ser casa de recuperação de dependentes químicos pouco tempo mais tarde. No entanto, a questão espiritual manteve a comunidade presa às origens: como filosofia, a instituição acredita que a libertação e a cura das drogas não dependem exclusivamente de uma internação, conscientização sobre seu vício e luta espontânea contra os prazeres que os en-
BRUNO, 27 Como se deu seu primeiro contato com as drogas? Foi aos 12 anos de idade com o cigarro, na balada. Comecei fumando cigarro, e as companhias foram ajudando a aparecer as drogas e a bebida. Até que despertou a vontade de conhecer mais. Fiquei na maconha por quatro anos, mas parei de fumar, porque não gostava mais. Fiquei um bom tempo sem usar nada, só bebendo e fumando cigarro. Depois, mudei de Bauru, fui pra Três Lagoas no Mato Grosso do Sul. Lá eu conheci a cocaína. Usei minha primeira vez com 16 anos. E, a partir de então, fui usando, usando, até o dia em que me envolvi com o tráfico de drogas. Fui me aprofundando cada vez mais no tráfico lá, usando também, constantemente. Até que eu parei na cadeia. Fui preso por tráfico de drogas. E vim aqui para a clínica por mandato do juiz. Hoje, já faz um ano que estou recuperado,
torpecentes proporcionam. É necessária uma mudança na mente para que o usuário cure suas doenças espirituais e para que o caminho rumo à autodestruição seja revertido. Leandro (22) se envolveu com cocaína e álcool quando tinha 14 anos. Há dois meses na Comunidade Vida & Paz, reconhece a importância do tratamento espiritual. “Eu realmente acho que tem que buscar ajuda do céu. Tem que pedir pra Deus porque se você ficar na vida que estava, é buraco, não é vida. Lá fora, a bandeja é cheia, as oportunidades vêm de fartura e, se você for buscar força no homem, você entra aqui num dia e sai no outro”, comenta. O pastor Carlos Hosken (42), responsável por ministrar os cultos e cuidar da organização geral da instituição, nos recebeu na comunidade. Ele explicou como funciona o ingresso e a rotina na casa de reabilitação. Com muito contando com o tempo que eu fiquei no cárcere e aqui. Graças a Deus, hoje eu estou limpo! Como é o tratamento? O tratamento aqui é muito eficaz, tanto na parte espiritual quanto na parte de terapias, a ocupacional. A parte espiritual aqui é o estudo da Bíblia. E tem as terapias do dia-a-dia, que vão desde a limpeza da casa até fazer tapete, manutenção da casa, aulas de pintura, aulas com psicólogo… Então tem várias atividades que fazem ocupar a nossa mente e, com isso, deixando de lado os pensamentos negativos. Isso é muito bom! Tem também esportes, academia, futebol. E, à noite, o estudo da palavra. Como as amizades o influenciaram em seu ingresso no mundo das drogas? Quando você está no meio de pessoas que fazem o uso das drogas, você fala “pô, só eu que não to?”, então você vai querer conhecer, se envolve, deixa rolar e, sem perceber, você já está na pior. E aconte-
“O álcool e as drogas disputam espaço com o amor e a paz” trabalho, dedicação e amor, os internos são submetidos a uma rotina disciplinada e composta por atividades e estudos, de 7 a 18 meses. Como uma família, os ex -usuários devem zelar pelos cuidados domésticos do lar. Todas as horas do dia devem ser ocupadas para que as lembranças da droga sejam, aos poucos, apagadas. O uso de drogas é um problema social que afeta toda a família de quem é dependente. O desequilíbrio começa da mesma forma que todos os problemas começam: pela falta de informação e de prevenção, além da questão das influências. Segundo o pastor Carlos, é fundamental que as famílias e o próprio usuário adquiram informações sobre a dependência química e sobre os per-
calços a serem enfrentados ao optarem por uma internação. “O álcool e as drogas disputam espaço com o amor e a paz, que deveriam ser os protagonistas do lar”, comenta Carlos. Feliz com o tratamento e se sentindo na responsabilidade de ajudar aqueles que estão passando pela situação que já enfrentou, Leandro conta sobre os problemas que a droga implanta entre o usuário e sua família: “Muitos aqui vêm porque nem a família os quer dentro de casa. A gente abandona a família por causa da droga. Só droga, droga, droga. Tudo que você tem não basta. Eu mesmo, era pra ter conquistado tanta coisa e perdi tudo. Ainda bem que eu vim pra cá cedo, vim na hora. Depois que eu ficasse velho, o que eu ia buscar?!”, relata.p
Comunidade Terapêutica Vida & Paz - Rua México, quadra 8. Bairro Jardim Terra Branca.
Telefone: (14) 3276-1615 Reuniões semanais abertas: Quartas às 19h30, e domingos às 20h.
ce naturalmente. Pra você não está acontecendo nada, mas você está cego e as coisas estão indo. Está indo pro caminho da perdição e nem está vendo, essa é a verdade.
Não deixar se levar por influência nenhuma. O que não é uma tarefa fácil, com o mundo em que as crianças estão crescendo hoje. Acho que o funk é uma das coisas que mais leva as pessoas a isso, porque não tem foco, não tem pensamento mais pra frente. Eu mesmo não pensava em faculdade e nada disso. Então, a própria música e as amizades podem influenciar muito. Mas não foi falta de oportunidade não, foi falta de vontade. É a opção que cada um faz e segue. Independente das circunstâncias que tudo aconteceu, sempre trabalhei, já fui funcionário da TV Unesp, como acessor do professor Antonio Carlos de Jesus, que faleceu recentemente.Quer dizer, eu tive uma vida social legal, só que eu também achava legal vender droga… Isso aí é coisa que vem de muito cedo. Hoje eu tenho uma filha, a Beatriz de um ano e dois meses, então já penso com outra cabeça. Se, quando era mais jovem aconteceu isso comigo, imagina hoje, com tantas coisas que o mundo tem. p
Como está sua saúde, depois de deixar as drogas? Ah, um respirar bem melhor! Porque eu fumava também, era um maço de cigarro por dia. Hoje eu já não fumo mais, não uso mais drogas, então já dá um outro gás. Quando você usava drogas, você sentia alguma forma de repressão social? Não. Tanto é que muitas pessoas que consumiam a droga, que compravam cocaína de mim eram de classe social alta. Dentista, advogado compravam de mim, por exemplo. Várias pessoas de classes diferentes compravam. Você tem alguma coisa a dizer às pessoas que passaram pela mesma situação e têm a possibilidade de procurar ajuda logo no começo?
INFORMAÇÕES
SUJEITO
CRÔNICA
P11 I FEVEREIRO I 2014 - GL Era no segundo colegial e na lista de livros que a escola dava para os alunos lerem estava um que me suscitou a curiosidade: “Homens invisíveis: relato de uma humilhação social”, de Fernando Braga da Costa. O título tão destoante dos outros romances de vestibular que éramos acostumados a ler, me fez pensar que tipo de leitura seria aquela que o professor de literatura mandara ler e, embora a prova deste livro fosse uma das últimas, comecei a lê-lo logo que comprei. Este foi o meu primeiro contato com as pessoas que ficam à margem da sociedade, através das páginas de um livro. A história foi resultado do mestrado do autor, que investigou como os garis, profissão não valorizada e de menor
status perante a sociedade, vivem e como a população os vê (ou não). Daquele livro em diante, passei a observar cada vez que passava na frente de um gari, vendedor ambulante ou prostituta e como simplesmente passava, sem realmente enxergá-los como seres humanos e pessoas que tem um valor para a sociedade. Minha imaginação sobre prezar pela limpeza da cidade de São Paulo e milhões de pessoas passando por mim sem conseguir me olhar nos olhos, ou então, ser alvo de um olhar de “dó” por ter uma incumbência tão “baixa” na sociedade foi perturbadora. Como uma menina do segundo colegial, que se julgava justa e honesta, que estudava em um colégio particular para passar no vestibular pudera ser acometida pela patologia
da indiferença perante as pessoas? Guardei o livro e anos depois fui estudar jornalismo. Era no segundo ano da faculdade e um colega de classe apareceu com uma camiseta curiosa – Um quadrado sendo observado por algumas pessoas, exceto uma, que estava excluída ao lado sem que ninguém a percebesse. Pronto. Aquilo foi o suficiente para recobrar a memória de todo sentimento que tive quando li aquele livro. Dois objetos tão simples com uma reflexão tão profunda sobre “pessoas simples” que têm as experiências mais diferentes. Não que um suplemento como esse possa legitimar tudo o que estas pessoas fazem, mas pode ser o estopim, aquele mesmo que tive no segundo colegial, para despertar a atenção de outros. p Foto: Giovanna Diniz
OPINIÃO
ARCABOUÇOS - KM A recente atuação do Departamento de Narcóticos (Denarc) de São Paulo reacende uma discussão importante sobre o comportamento da mídia. A ação realizada no dia 23 de janeiro denotou o despreparo, não apenas do governo estadual, como dos grandes veículos de comunicação em suas coberturas, em lidar com usuários de drogas da região da Cracolândia. Além da violência física e moral praticada pelos agentes do Estado, a mídia também não ajudou a desconstruir o imaginário comum sobre os dependentes químicos e moradores de rua. Grande parte da mídia conservadora estava tentando elucidar os supostos propósitos políticos da ação. No entanto, a atuação capenga, partidária e desumana da mídia foi uma
das coisas que mais chocou. Poucos veículos entrevistaram os dependentes químicos para saber o que tinham achado da atuação do Denarc ou para falar do programa municipal. E também não ajudaram a desmistificar a ideia de que todo usuário é bandido ou que todo morador de rua é usuário. Parecia ter lugar para ambos no saco de mediocridade e preconceito destilado por veículos como Folha de São Paulo, Estadão e G1. Da mesma forma, camelôs e pessoas que sofrem de distúrbios psiquiátricos são constantemente ignorados ou só aparecem na mídia quando os valoresnotícia imperam (valores como morte, desastre ou desvio moral de conduta). Nesse ponto, chega a ser engraçado como o nosso país e a nossa mídia parecem estar alocados no lado
oriental do planeta. No Afeganistão é bastante comum que crimes de cunho moral como fugir de casa, por exemplo, sejam puníveis com prisão. Da mesma maneira, grande parte da mídia ainda é muito resistente quando se fala em regulamentar o trabalho das prostitutas embora já existam projetos de lei que criminalizam a cafetinagem e solicitam a regulamentação de casas de prostituição. Agora, como discutir a descriminalização das prostitutas e ao mesmo tempo exigir a prisão dos homens que as exploram, se os estereótipos traçados pela mídia são arcabouços quase intocáveis? Quando os programas de fim de tarde, com um público mais familiar, não conseguem abordar mais do que preconceitos sobre estas pessoas já marginalizadas em nossa sociedade? Essa
sociedade que se crê branca, classe média e meritrocrática e que é completamente diferente disto mas é constantemente manipulada pelos padrões dos barões da mídia. Esses mesmos barões que creem que só pelo esforço contínuo é que se consegue dignidade humana, e para quem esses doentes, loucos e bardeneiros só existem nessas condições precárias por preguiça ou mau caráter. O papel da mídia deveria ser demonstrar que igualdade de direitos não significa igualdade de oportunidades e por isso estas pessoas marginalizadas não são “más” ou preguiçosas. Nesse sentido, a mídia tem cometido erros crassos. Enquanto a mídia continuar ditando o certo e o errado e se colocando acima das leis e dos programas de assistência social, o país será vítima de equívocos e mazelas. E as vítimas preencherão, eventualmente, algumas notas de rodapé noticiando sua briga, a agressão sofrida ou a morte prematura por hipotermia nas ruas. p