Revista X

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EDITORIAL

O

que define a nossa identidade? Um construído de recortes coletivos, uma mistura entre o meio, as vozes de fora e essência de cada individualidade. Seria simples, se não complexo, se y não quisesse se impor sobre x, se não envolvesse uma estrutura verticalizada, dicotômica: tudo aquilo que foge ao padrão é visto como errado, um desvio. Pois nosso foco é o desvio. É o número x de identidades, sendo a incógnita definida por aquilo que quisermos ser, pela negação ao molde, ao enquadramento daquilo que se impõe como normal. É o x genético de todos, é o x inclusivo, plural, diverso, desviante, com todas as belezas que essa diversidade e desvio podem conter. Estado, religião, ciência. Moldes identitários a partir dos quais também somos definidos. Identidades que vêm de fora. Nos são embutidas sem necessariamente contemplarem quem somos. Definir não deve ser sinônimo de alienar, de hierarquizar, de oprimir. As minorias têm voz. Seus espaços tem voz e cada vez mais se impõem diante dos meios que sempre lhes tentaram calar. A X veio para que essas vozes ecoem. Para que o lado tolerante das novas gerações se manifestem. É para quem se propõe aberto à desconstrução, ao diálogo, a ouvir o outro e encará-lo não mais como o outro que foge ao padrão, mas como um, um desvio que agrega, que completa. X Redação

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x

Índice seções

6

Trending Topics Padrão de beleza

22

Crônica

60

Opinião

62

Não Leia os Comentários

73

Indicações Culturais

76

Glossário

Expediente 4

FAAC/UNESP Bauru, 2015 Jornalismo

48 ensaio

Visibilidade trans

Bancada evangélica

Coordenação:

Caroline Braga Jaqueline Schiavoni Ihanna Barbosa Mauro Ventura Isabela Romitelli Jonas Lírio Redação: Camila Pasin Laura Fontana

Lígia Morais Marina Spada Nathália Rocha William Orima

Diagramação: William Orima Marina Spada Ihanna Barbosa Ensaio fotográfico: Nathália Rocha Isabela Romitelli Jonas Lírio Lígia Morais

Camila Pasin Caroline Braga Laura Fontana

revista-x@gmail.com


11 14

Além do pas de deux

sexualidade

I want to break free

condição da cidade democrática

44

expressão

18 24 28 34

gênero

X, y e o limbo Vamos dar a meia volta, volta e meia vamos dar

comportamento identidade

Os negros não são tendência

64 68

No fundo do copo A chegada do gael

Entrevista A periferia tem voz

Encontre a @revista-x nas redes sociais:

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TRENDING TOPICS

A DA BELEZA

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Como os padrões de beleza da sociedade vêm sendo questionados e como a representatividade é mais exigida do que nunca na mídia tradicional


“Quando a gente reconhece a beleza no nosso natural, percebe que o que é mostrado na mídia é ofensivo e talvez até agressivo.”

IHANNA BARBOSA e JONAS LÍRIO

Foi só mais um dia na praia para Izabel Goulart, modelo

Em situações como essa, fica visível que a sociedade não

há 14 anos que já desfilou nas passarelas de Paris e foi capa

vai mais aceitar passivamente o padrão de mulher branca, ma-

de revistas como a Vogue Brasil, até que o site da revista Ma-

gra com traços finos e de cabelo lisos imposto pelos meios de

rie Claire colocou suas fotos no ar com a seguinte chamada:

comunicação. Durante muitos anos, revistas e programas de

‘Izabel Goulart se despede do Rio de Janeiro e mostra cor-

televisão ditaram a definição de beleza, que cada vez mais se

po perfeito’. Outro dia, durante o especial Teleton no SBT, o

distancia do corpo real da mulher e do homem. Essa pressão

apresentador Silvio Santos perguntou a Julia Olliver, a Pata

pelo corpo ideal às vezes vem até disfarçada em preocupação

do remake de “Chiquititas”, sobre seu futuro, que respondeu

com a saúde. “Além de ser uma intromissão imperdoável na

que quer continuar sendo atriz. “Mas com esse cabelo?”, inda-

vida alheia, não conheço outros ‘grupos’ que estejam subme-

gou Silvio, fazendo menção ao cabelo crespo da menina.

tidos à patrulha da ‘vida saudável’ como os gordos. Ninguém

Nos dois casos, a repercussão na mídia foi enorme. No

critica um magro por se alimentar mal, usar suplementos sem

primeiro, os leitores do site questionaram a revista por classi-

prescrição médica, dormir pouco ou ser estressado simples-

ficar uma modelo excessivamente magra como tendo o corpo

mente por olhar pro seu tipo físico”, diz Carol Caran, dona

perfeito, forçando a publicação a alterar o título da nota para

do blog MaGGníficas, que trata de autoestima e amor próprio

“Izabel Goulart se despede do Rio de Janeiro e fãs elogiam:

para mulheres de todos os perfis.

‘corpo perfeito’”, se isentando da declaração. Já no segundo,

A mesma pressão fazia parte da vida de pessoas que não

Julia Olliver foi ao instagram responder ao patrão: “Nada do

têm cabelo liso, mas que se submetiam a tratamentos quími-

que me falarem por essa vida afora vai me fazer mudar meu

cos para se sentirem mais belas e aceitas e que, aos poucos,

caráter, esse sim é mais importante que o meu cabelo”, finali-

estão se libertando dessas imposições com apoio de movi-

zando com #AmoMeuCabelo.

mentos, como o ‘Faça Amor, Não Faça Chapinha’, que exalta

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a beleza do cabelo afro. “Recebemos depoimentos diariamen-

A padronização de um tipo de beleza pode anular essas

te, dezenas. São mulheres que querem parar de alisar, que

diversidades e características culturais, que acabam não sen-

pararam, que nunca alisaram, homens que querem deixar o

do representadas na grande mídia. “É importante você não ter

crespo crescer, pessoas de dreads, carecas, tranças, etc”, conta

vergonha das suas raízes culturais, e é isso que o racismo faz:

Amanda Bomfim, uma das coordenadoras da página no Face-

oprime de tal forma que venda o povo da beleza de sua cultu-

book, que já tem quase 150 mil curtidas.

ra”, continua Amanda, que também ressalta a importância da

Toda essa pressão pode trazer danos reais às pessoas.

representatividade para uma criança. “Imagine uma criança

Não são raras as histórias de meninas que foram parar no

negra que quer ser artista. Ver na TV uma ou várias pessoas

hospital depois de forçarem vômito para emagrecer ou de ga-

parecidas com ela, que carregam a mesma cultura e não escon-

rotos que exageram nas doses de suplemento para ficar mais

dem isso, é uma inspiração. Ah, e isso vale para qualquer área:

“sarados”. O problema é que muita gente não percebe que o

medicina, engenharia, advocacia. A TV é o melhor exemplo jus-

mundo sempre foi diversificado: o que é lindo aqui pode ser

tamente pelo seu alcance”.

feio do outro lado do planeta. Para Carol, “a sociedade de for-

Lembra da Julia Olliver? Ela é umas das poucas atrizes

ma geral enaltece e superestima as pessoas que têm um ‘corpo

negras na televisão e representa milhares de crianças que tam-

perfeito’, valorizando todo tipo de sacrifício nessa busca. Mas

bém sonham em ser atrizes, cantoras ou apresentadoras. Ouvir

o próprio conceito de perfeição estética é efêmero, como é um

uma piada racista, motivada pelo cabelo crespo de uma criança

disparate condicionar a felicidade em si à aparência ou vigor

e vinda de um dos mais importantes apresentadores do país, co-

físico, que fatalmente, começam a declinar com o tempo”.

labora para a legitimação da ditadura da beleza e causa grande

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impacto na formação da identidade de um indivíduo, ainda mais

Facebook e liberou a foto sem retoques, recebendo centenas de

de uma criança. A blogueira Carol Caran relembra que, quando

elogios e mensagens de apoio.

menor, acreditava que apenas mulheres magras tinham proprie-

Com ataques dos dois lados - o anônimo e o famoso -,

dade para falar sobre moda - afinal, só elas estampam a capa das

mais cedo ou mais tarde as coisas vão mudar. Seja você do jei-

revistas desse tema, não é? Katarina Mendes, que também faz

to que for, ver-se representado na mídia ajuda no processo de

parte do movimento ‘Faça Amor, Não Faça Chapinha’, afirma:

aceitação pessoal da própria imagem e faz um bem danado.

“Quando a gente reconhece a beleza no nosso natural, percebe

Mesmo causando certa desconfiança, até a visibilidade oportu-

que o que é mostrado na mídia é ofensivo e talvez até agressivo.

nista (a daquela revista que adora fazer uma ou duas matérias

É um ato de resistência você assumir o seu cabelo diferente dos

com modelos que não se encaixam em algum padrão e depois

padrões impostos e representados pela mídia”.

gritar aos quatro ventos o quão inclusiva e “pra frente” é, mas

Mas, aos poucos, a pressão pelo corpo perfeito começa

que nunca inclui essas modelos em editoriais de moda ou em

a perder força. Não só anônimos sofrem com os padrões exi-

qualquer outra matéria) ajuda na representatividade. Agora,

gidos pela sociedade, algumas celebridades - às vezes massa-

mais do que torcer pela derrubada da ditadura da beleza, as

cradas por deixarem umas gordurinhas à mostra - já lutam

pessoas lutam pelo dia em que diferentes corpos sejam o co-

contra tais exigências de beleza. Em 2014, a cantora Preta Gil

mum nas revistas, na TV e no dia a dia. É hora de derrubar a

ficou escandalizada quando viu a foto de capa de uma revista.

ditadura e entrar na democracia da beleza. X

Na foto em questão, Preta estava mais branca e mais magra e, segundo ela mesma, nem se reconhecia. A própria artista foi ao

entre no site pra votar no

TT da próxima edição

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ALÉM DO PAS DE DEUX*

Foto: Luis Carlos Piva Juniorr

EXPRESSÃO

Foto: Leandro Peron

As chuteiras trocadas pelas sapatilhas, os campos de futebol pelos palcos, os uniformes pelos figurinos. O equilíbrio perfeito entre a força e a leveza, os movimentos perfeitamente executados que os fazem parecer flutuar. Quem foi que disse que dança clássica é coisa só de mulher? ISABELA ROMITELLI

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mente o que aconteceu com Leandro Peron, 28, hoje professor de dança premiado em diversos festivais nacionais e internacionais. “Danço desde que me entendo por gente. Sempre participei de show de calouros e das peças de teatro na escola onde estudava, tudo que era relacionado a arte eu estava no meio. Mas foi aos 14 anos que procurei a primeira escola de dança e, por incrível que pareça, foi meu pai que me levou e assistiu a minha primeira aula de ballet”.

OS INCENTIVOS (OU FALTA DELES) O fato de haver menos meninos que meninas no mundo da dança faz com que haja mais incentivos e reconhe-

Foto: Stephen A’Court

cimento para eles neste meio. Muitas das companhias de

Pas de deux: do francês “passo de dois” trecho do ballet dançado por um bailarino e uma bailarina. Para a bailarina, dançar com um parceiro significa mais impulsão e condução para tomar posições que ela nunca seria capaz sozinha. Já para o bailarino, ter uma parceira significa estender sua linha e mostrar sua força. O pas de deux, por muitas vezes, pode dar a impressão de que o homem está dançando menos que do que a mulher, servindo apenas como um apoio, o que está longe de ser verdade.

O desejo de dançar é quase que intrínseco e a paixão pela arte os chama cedo para a sala de ensaios e, nesse momento, o apoio e incentivo dos pais é essencial. Foi exata-

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Foto: Leandro Peron

o chamado


dança chegam a oferecer bolsas de estudos e incentivos financeiros para atrair mais homens para seu corpo de baile. “Desde que comecei a dançar notei que os homens têm mais oportunidades do que as mulheres, pois a concorrência não é muita. Hoje em dia a concorrência aumentou, mas ainda sim é mais fácil para os homens do que para as mulheres” explica Luis Carlos Piva Junior, 22, bailarino profissional. No Brasil, entretanto, a dança ainda não é tão valorizada como deveria ser, o que leva muitos bailarinos a procurar oportunidades no exterior, onde há maiores salários e incentivos ao ballet clássico,

como aconteceu

com Luis Piva, que após passagens por países como Cuba,

Foto: Leandro Peron

Nova Zelândia e Singapura, hoje mora na Alemanha.

A INICIAÇÃO Apesar do pouco incentivo que há no país, hoje a procura dos meninos por escolas de dança aumentou, como observa Peron. “Hoje a procura por meninos é maior, pois a mídia tem explorando isso. Antigamente a iniciação na dança acontecia entre os 17 e 18 anos, idade em há mais independência. Hoje já é possível encontrar meninos de 8 e 9 anos em escolas de ballet”. Mais do que uma atividade física, a dança é uma filosofia de vida, colaborando para a construção de princípios e valores Foto: Stephen A’Court

éticos, por isso a importância de se atrair meninos cada vez mais jovens para a prática. Viver da dança é viver a dança. X veja os bailarinos dançando no site

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EXPRESSÃO

CONDIÇÃO DA CIDADE DEMOCRÁTICA

CAMILA PASIN e LAURA FONTANA FOTOS CAMILA PASIN

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O QUE É O ESPAÇO PÚBLICO?

ção, urbanismo e meio ambiente defende um ponto de vista

A pergunta pode parecer básica demais. Mas às vezes é

que pode explicar os motivos pelos quais os espaços públicos

preciso repensar o óbvio, já que, atualmente, um dos principais

não são ocupados em sua totalidade em cidades de médio e

obstáculos para a convivência em harmonia no espaço públi-

grande porte: ”É preciso produzir espaços públicos, com tudo

co é a divergência do que ele representa para cada pessoa. Por

o que possa haver de público nisso. Não se quer apenas que se-

definição, espaço público é aquele que é de uso comum e posse

jam acessíveis fisicamente, mas que sejam lugares de encontro,

coletiva (pertence ao poder público). No entanto, existem os

de tolerância, de mistura de raças, credos, rendas, agradáveis,

que são totalmente livres (como os espaços de circulação, laz-

seguros, de fruição cultural e, principalmente, um lugar onde a

er e recreação ou, até mesmo, locais de preservação) e os que,

cidadania possa se manifestar, onde o exercício da pólis possa

mesmo públicos, possuem uma certa restrição ao acesso, com

acontecer. É isso que faz a cidade ser cidade: o encontro”.

horários de entrada e saída, traje e regras de conduta, mas que continuam sendo de acesso a todos. É o caso das igrejas,

Sociedade e seu bem público

museus, hospitais, bibliotecas e edifícios do poder público.

E como fazer com que as praças e outros lugares públicos se tornem pontos de encontro para os cidadãos? São várias

A concepção do espaço público no

as iniciativas que podem transformar esses espaços vazios em

contexto urbano

ambientes de vivência. Iniciativas que devem ser promovidas

Apesar das dificuldades em diferenciar os espaços públi-

tanto pelo poder público, quanto pelo meio privado e pelos pró-

cos daqueles que são privados, os ambientes livres e de circu-

prios cidadãos. Empenhado em atuar no contexto de inserção

lação aberta continuam a ser uma característica fundamental

das pessoas no espaço público, André Garcia Alvez coordena a

das cidades e é por isso que deveriam ser concebidos a partir da

Cia. Será o Benedito?! e o projeto Boa Praça. Ambos do Rio de

visão dos planejadores urbanos juntamente com a opinião dos

Janeiro, os coletivos realizam atividades culturais mensais em

atores sociais: os ambulantes, os vizinhos, os jovens, idosos, as

praças da cidade, como apresentações de teatro de rua, circo,

crianças, enfim, toda a comunidade.

entre outras ações para pessoas de todas as idades.

Bauru, cidade do interior de São Paulo, por exemplo, soma

São propostas como a de André que comprovam a im-

um número razoável de parques, praças, quadras esportivas e

portância da participação da sociedade civil nas definições do

áreas de lazer, como o Parque Vitória Régia, o Parque do Caste-

uso daquilo que é de todos e a necessidade de inversão do

lo e o Horto Florestal. Por outro lado, o acesso dos moradores

modelo de convivência atual em espaços que são julgados

a tais ambientes acaba sendo limitado, e o hábito de frequentar

públicos. Não é por falta de regras ou normas que os espa-

os ambientes públicos não faz parte do cotidiano de boa parte

ços de convívio comum não estão sendo gerados ou não es-

das pessoas. Por quê? Talvez porque não se consolidaram como

tão sendo aproveitados pelas pessoas, mas é porque ainda

ambientes de encontro.

se tem a ideia de que “privado” é melhor. São privatizados

Paula Santoro, arquiteta e urbanista, assistente técnica do

os serviços públicos, a manutenção das praças, a segurança

Ministério Público do Estado de São Paulo nos temas habita-

das ruas, o desenvolvimento urbano. E aí a praça vira play-

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ground e os cidadãos tendem a se reunir em locais em que

é para quem vive nela e, não para quem vive dela”, como diz

haja necessariamente algum tipo de consumo, seja em bares

André. Por isso a importância dos coletivos e projetos que têm

e restaurantes, ou - e principalmente - nos shoppings. Isso

como propósito ações que estimulem a proximidade entre o

faz com que se perca o estímulo a ações criativas e saudáveis

cidadão e a sua cidade como um todo.

de relações sociais e, até mesmo, pessoais. Além disso, a própria sociedade e a mídia fomentam uma

CIDADE: PLATAFORMA DA arte

cultura do medo na relação com o ambiente público. É co-

Para além da contemplação e do entretenimento, a

mum a associação do espaço público com a violência, o assé-

arte pode ser uma eficaz ferramenta de ressignificação do

dio - no caso das mulheres -, e até com o medo do diferente.

espaço urbano e reflexão sobre a cidade. É esta a premissa

Dessa forma, o cidadão acaba tendo como opção de lazer a

defendida por artistas e cidadãos que se organizaram para

televisão, a internet e os ambientes físicos de consumo. E a

pensar, promover e recriar a paisagem urbana mudando

televisão, controlada por grupos privados com interesse no

não somente a arquitetura das cidades mas afetando os

estímulo do consumismo desenfreado, contribui para fortale-

sujeitos que nela habitam. Apesar da intensa mobilização

cer essa cultura do medo em se tratando do ambiente público.

coletiva ou individual para levar cultura livre às cidades,

Sendo assim, é essencial que se tome a ideia de que “a cidade

a ocupação do espaço urbano com arte é um movimento

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recente no Brasil. Isto explica parte das tensões estabele-

as pessoas na rua, ressignificando os espaços e criando um

cidas entre o poder público e os coletivos urbanos. Mas é

ambiente onde a juventude pudesse se expressar”, afirma

enfrentando processos de privatização do espaço público

Gabriel. E a partir daí, os espaços públicos de SP viraram

que surgem, emblemáticas, algumas iniciativas de ocupar

palco de grandes mudanças na história do país.

os ambientes das cidades.

Um dos eventos que deixou sua marca foi o “Existe

Gabriel Pansardi Ruiz, formado em jornalismo, tra-

amor em SP”, um evento manifesto criado para aproximar

balha com produção cultural e gestão de redes dentro do

as pessoas no espaço público. “Nas redes sociais o evento

Fora do Eixo, rede de coletivos constituída por mais de

bombou e os coletivos começaram a fazer reuniões aber-

200 pontos espalhados por todo o país. Para Gabriel, a rua

tas na praça Roosevelt, reunindo mais de 15 mil pessoas”,

deve cumprir uma papel de palco, atingindo as pessoas que

conta Gabriel Ruiz.

por ela passam. Durante entrevista, o produtor relembra o

É a força dos coletivos urbanos lutando para rejeitar

contexto histórico de 2011, ano em que o ativismo fez com

a projeção de estigmas, o medo e a violência em espa-

que os movimentos sociais e os grupos de coletivos cultu-

ços de convivência coletiva, provando que são capazes

rais de SP começassem a se apropriar de ações mais festi-

de produzir o verdadeiro encontro nas praças espalha-

vas para mobilizar mais gente: “Nos juntamos para reunir

das pelas cidades. x

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GÊNERO

X, Y e o limbo

LÍGIA MORAIS e NATHÁLIA ROCHA

Quando a sociedade limita o gênero a apenas duas letras, aquelxs que não se enquadram se tornam invisíveis

A existência delxs por si só é uma transgressão. Estar restritx ao corpo em que nasceu e àquilo que se espera dele. E ter a coragem de assumir essa identidade. De ir contra as prédefinições daquilo que se entende por masculino e feminino. Ser transexual é um questionamento de padrões. É lidar com a limitação que a sociedade tem da ideia de gênero, presa a apenas duas letras - x e y. Pessoas trans, então, são colocadas em um limbo, não são vistas como o gênero segundo o qual se identificam e representam uma agressão às ideias fixas que se tem de homem e mulher. A transfobia é um preconceito que vai além da ofensa. Faz com que seus alvos, diante de família,

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amigos e Estado, sejam invisíveis.


ILUSTRAÇÕES Tailor

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Pelo direito básico de existir A divisão binária dos banheiros não é suficiente. Perto das salas de engenharia da Unesp, Ariel conta, ao sentar em um dos bancos, que não gosta de passar muito tempo na faculdade. “Uma das coisas mais básicas, que é o banheiro, eu não vou aqui”. Ariel se identifica como mulher, como mulher trans. Mas ainda é grande o receio de não ser respeitada ao entrar num banheiro feminino. Assim como também o é o preconceito dentro do campus. Os universitários não têm a cabeça tão aberta quanto se imagina. Em janeiro desse ano, ela tomou coragem e saiu de casa, pela primeira vez, com roupas femininas. Pelos colegas, sempre foi chamada de Ariel - o seu nome de verdade, mas que não consta nos documentos. Também foi nesse ano que pediu para os professores incluírem seu nome social na chamada. Nenhuma dessas foi uma mudança rápida e fácil. A faculdade ainda não é um ambiente em que se sinta confortável. Nas salas de Ciência da Computação, ainda são comuns atitudes machistas. E essa ainda é uma área essencialmente machista, daí o medo do futuro, do preconceito no mercado de trabalho. Antes da mudança no corpo e, principalmente, antes da burocrática mudança dos registros, o foco de Ariel é a formação profissional. Nesse processo, entra a falta de representatividade no ambiente universitário. Na faculdade, faltam pessoas trans. Pessoas que não tenham medo de assumir a transgeneridade. “Faltam LGBTs”.

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O ser e o ser visto “No ambiente de faculdade eu me sentia um ser estranho no meio de um monte de gente igual e totalmente alheia a inexistência de pessoas trans naquele ambiente”. Existir é uma conquista. Existir socialmente faz parte de uma outra etapa. É o diálogo e o conflito entre a identificação individual e a construção coletiva dessa identidade. Tailor largou a faculdade. Não aguentou ser tratado

“Eu sou aquilo que eu sinto ser, se eu me sinto homem então eu sou um.”

como uma mulher, como uma identidade que não existe, uma imposição. Tailor é um homem trans. “Eu sou aquilo que eu sinto ser, se eu me sinto homem então eu sou um. O que não significa que a sociedade vai me perceber como

endócrinos e nenhum soube me dar uma dieta hormonal di-

um, porque pra ela eu sou aquilo que eu nasci independen-

reitinho. Psicólogos também. A maioria não sabe te tratar.

te do que eu acho ou sinto que sou, sou apenas o que o meu

Agora a gente tem que ir pra capital fazer tratamento e isso

corpo e rosto aparentam”.

leva tempo”.

A invisibilidade é estrutural. As pessoas não entendem

A construção da identidade se dá por um diálogo entre

o que é ser trans, a questão não é discutida nos espaços pú-

a forma segundo a qual nos identificamos e o modo como

blicos. “O Estado não tem nenhum programa de educação

a sociedade nos vê. A aparência, nesse caso, se torna um

sobre um assunto tão necessário, contribui [para a desin-

fator importante no processo de construção pessoal. Os

formação] por toda a burocracia que existe para se conse-

longos cabelos ruivos, unhas feitas, maquiagem. Detalhes

guir coisas simples como um documento que reflita quem

que fazem parte daquilo que Luna é e da forma como quer

você é, para conseguir se hormonizar e fazer cirurgias. Fal-

ser vista. Não é à toa que o seu processo de mudança tenha

ta um ambiente escolar que nos acolha, faltam ambientes

se iniciado pelo nome e aparência. Com 15 anos, já tomava

de trabalho que estejam dispostos a nos contratar”. Tailor

hormônios femininos escondida dos pais.

se sente invisível.

A sociedade não sabe como lidar. A família não entendia, as pessoas não entendiam e a própria Luna não sabia

Felicidade é direito, não luxo

como se definir. A representatividade de que precisava veio

O Estado não entende. Ou não quer entender. Luna

com a mídia. “Eu comecei a me descobrir com a transparên-

vai se soltando ao longo da conversa. Se permite dar risada

cia das pessoas trans na televisão. Até então eu não sabia o

quando trata de questões mais leves. Fica séria, no entanto,

que era, o que eu sentia. Eu pensava que eu era homosse-

ao falar que dificuldade que as mulheres trans têm no país é

xual. Dai foi por essa transparência que a TV deu - Ariadna

ainda pior no interior. “Em questão de interior para pessoas

[mulher trans e ex-participante do BBB] -, que eu comecei

trans, eu acho uma coisa pra nós péssima. Eu já fui em dois

a me descobrir uma pessoa trans”. X

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CRテ年ICA

Corda Bamba A ficテァテ」o de um nome

22


D

XY

e olhos fechados, eu vejo uma corda bamba. Os traços imaginários ora parecem bem reais, mergulhados em uma luz que quase cega. Soam tambores, compondo angústia a cada nova batida. A respiração fica ofegante assim que a sola do pé

encosta na corda e sente sua agudeza. Revela-se o primeiro passo, devagar. Os olhos abrem e uma sala de espera se fabrica. As paredes creme aumentam o tédio dos que aguardam a vez no cartório, sustentando a revolução dos marcadores do relógio. Penso em Denise ali, sentada reclamando do tempo que perdera. Com um livro nos braços é provável que tenha ficado impaciente e andado repetidas vezes da poltrona cinza até o fim da sala. Denise é mulher. Denise é mulher trans e, na semana passada, viera alterar aquele estigma que tanto a cansa: seu nome. De braços cruzados a imagino bem ali, exausta pela demora. Atrás dela, um pouco distante, um homem de grossas lentes e camisa engomada, ladea-

do por edifícios de papéis. É ele que deve tê-la atendido. Denise, poética como é, certamente o viu assim, de cabelos brancos representando o tão burocrático Estado – e todo o seu privilégio cisgênero. Uma pequena figura que lhe nega o direito de ser, que define, decide e divide homens e mulheres. É Denise, na verdade, quem está na corda bamba. Sou parte do cistema, tenho privilégios. Meu nome me resume e minha autoidentificação está garantida. E Denise, que a cada passo na corda precisa implorar por seu reconhecimento? O registro nos seus documentos não lhe representa, mas a um indivíduo imaginário que só habita o papel “oficial”. E, por desventura, a Denise real não existe como cidadã, apenas por uma teimosia identificatória do Estado. É sim uma ferida. O ressoar dos carimbos se iguala ao dos tambores, e Denise ainda está lá em cima, na corda bamba armada pelo cistema. Está à mercê daquele homem que tem a autoridade para permitir a mudança – para “permitir” a coincidência de seu nome com sua identidade de gênero autopercebida. Com passos lentos, Denise dá início ao processo, que sabe estar a milhas de um final. Um final sem situações de constrangimento e cansativas explicações, sem patologização, sem a cidadania precária dos “nomes sociais”. Um fim em que tenha direito ao reconhecimento integral de sua identidade de gênero, que tenha visibilidade legal, que Denise seja definitiva – na vida e no papel. Respiro fundo. Quantas vezes terão ainda de rodar aqueles ponteiros pra chegar o fim da corda? Quando é que Denise finalmente atravessará para o outro lado? X

LÍGIA MORAIS ILUSTRAÇÃO

LETÍCIA MISSURINI

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D

MOS

A VOLTA

VA

V A T O L

VAMOS

EI

AM R A D A R

GÊNERO

EM A EI

Hoje é o aniversário de uma criança e você precisa comprar um presente. Você vai até um shopping, entra numa loja

O gênero que tu me destes era binário e se quebrou. O discurso que tu tinhas era falho e se acabou.

de brinquedos e é recebido com a pergunta: “é pra menino ou pra menina?”. Idade, gosto e preferência não importam. As linhas sociais que definem as características femininas e masculinas não são nada tênues na nossa sociedade. Para Larissa Pelúcio, professora de Antropologia e pesquisadora da UNESP Bauru, “o mundo está mais binário do que já foi”. O modo como a sociedade enxerga a identidade de gênero na infância é refletido no comportamento do atendente

CAROLINE BRAGA

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da loja de brinquedos: ele te leva para um setor específico,

e WILLIAM ORIMA

pré-determinado, compartimentalizado - como as ideias. Ou

Ilustração

a criança é feminina e age de tal modo, usa roupas cor de rosa

MARIANA WANG

e brinca de bonecas ou é masculina, usa azul e brinca com car-


rinhos. Atualmente são poucos os pais que ousam criar seus

tem uma comprovação empírica ou que “ciência” é essa, como

filhos e filhas sem reproduzir os padrões binários de gênero.

se ciência fosse arauto da verdade.

Há alguns anos o exame de ultrassom ainda não existia

Contudo, segundo a Organização Mundial de Saúde

e o sexo biológico do bebê era revelado apenas no parto. Por

(OMS), sexo se refere a características fisiológicas, enquanto

esse motivo, os enxovais eram feitos com cores neutras - ama-

gênero se refere a identidade, comportamentos e atividades

relo ou verde, por exemplo - e os produtos infantis não eram

socialmente atribuídas a homens e mulheres. Não existe, por-

tão delimitados. Quando tinha cerca de sete anos, conta Laris-

tanto, uma linha da ciência que defina quais são comporta-

sa, a revista infantil que mais gostava, Recreio, era também a

mentos típicos do “sexo masculino” ou do “sexo feminino”.

revista preferida de seu irmão. E não havia Recreio de menina

No entanto não se cria um filho sozinho. Por mais que a fa-

e Recreio de menino, as atividades que vinham propostas ali

mília seja o espaço primário de sociabilidade e refute esses

não tinham marca de gênero.

padrões, a criança não ficará confinada ao espaço doméstico

Trabalhar com marcas de gênero binárias baseadas em

durante sua formação e diversos outros discursos e informa-

fatores biológicos - masculino como o portador de pênis e fe-

ções serão captados por ela. Na escola, por exemplo, a criança

minino como a portadora de vagina - é um discurso muito li-

entrará em contato com visões binárias de gênero.

near, que não exige grandes exercícios intelectuais, tampouco

Para a pesquisadora, isso problematiza ainda mais a si-

malabarismos reflexivos. Para a professora, é muito mais fácil

tuação: “Uma criança de três anos sabe exatamente o que é

dizer que “foi sempre assim”, que “o cérebro masculino é des-

de menino e o que é de menina, a gramática de gênero já está

se jeito, o feminino daquele” ou que “isso está aprovado pela

perfeita. Não é incomum que [a criança] já hierarquize, saiba

ciência”, sem questionar quais são as fontes, se isso realmente

que o lugar do feminino não é o melhor lugar”.

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“quero que minha filha tenha ambas experiências, possa se divertir como um ser humano em vez de ter sua forma de diversão definida pelo seu gênero, pelo seu sexo.”

Na linguística é ainda muito difícil fugir do masculino ge-

é uma menina, no entanto, não pretende que fatores fisio-

neralizante, homem em referência à humanidade, por exem-

lógicos afetem a identidade de gênero de sua filha. “Talvez

plo, ou do feminino depreciativo, “mulherzinha” dirigido a

seja difícil para os meus pais ou os pais do meu namorado,

um menino é tomado como uma ofensa.

porque eles mesmos nos ensinaram a ser assim, me ensi-

Para Larissa, os pais que decidem enfrentar o padrão

naram a brincar de casinha ao invés de empinar pipa, mas

binário estabelecido pela sociedade estão entrando em uma

quero que minha filha tenha ambas experiências, possa se

guerrilha. Vão “lutar contra um grande exército, com armas

divertir como um ser humano em vez de ter sua forma de

criativas, armas afetivas, que são as que podem mobilizar. É

diversão definida pelo seu gênero, pelo seu sexo [biológi-

um esforço pedagógico que deve ter coerência”, diz. A guer-

co]”, diz Gabriela.

rilha é inclusive linguística, devido às cargas de valor que

Sexo biológico não define gênero. Gênero não define

são atribuídas às palavras de gênero masculino e feminino.

sexualidade. Sexualidade não define caráter. O que realmen-

“Todxs” funciona na escrita, não na fala e, por isso, é preciso

te importa é manter o tema em pauta, continuar a descons-

policiamento: falar “todos e todas” a fim de não reiterar pa-

truir a questão dos gêneros sem se apegar às convenções so-

drões binários na criança.

ciais vigentes. Nós não pretendemos ditar como você deve

Grávida de nove meses, a universitária Gabriela Pyles aceitou travar essa batalha. Biologicamente seu bebê

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criar seus filhos e filhas. Apenas pedimos que mantenha este assunto na roda. E vamos todos e todas cirandar. X


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Identidade

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Os negros não são tendência Criticar a apropriação cultural é entender que a cultura do negro não é mercadoria IHANNA BARBOSA, LÍGIA MORAIS e NATHÁLIA ROCHA FOTOS IHANNA BARBOSA

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Uma marca de roupa publica em suas redes sociais a foto

Então, não é apenas usar um turbante, dreads, black

de uma modelo branca vestida de Iemanjá, rainha do mar se-

power e praticar capoeira, é silenciar uma luta histórica, anular

gundo a cultura africana. O rap de Iggy Azalea - australiana e

a identidade negra e continuar restringido seu espaço na cultu-

branca - tem os tons dos negros de quem emprestou o estilo

ra e na sociedade. A falta de consciência que aquele elemento

e o sucesso que muitas rappers negras não alcançam. Sob a

cultural é um símbolo de luta travada diariamente contra o ra-

aceitação branca, black powers, turbantes e dreads são estam-

cismo, enfraquece e prejudica a afirmação da identidade negra,

pados em capas de revista como a tendência para a próxima

deixando de lado sua função de uso e apenas atribuindo a ela,

estação. Pouco a pouco, elementos da cultura negra são in-

um valor comercial. O professor Juarez fala de um “processo

corporados ao senso comum, caem no gosto da elite e da in-

de destruição da identidade negra”, ao retirar o debate político

dústria branca, sem que com isso os negros tenham a mesma

dos instrumentos da cultura afrodescendente e, dessa forma,

ascensão. Essa é uma das faces daquilo que se chama de apro-

silenciar mais uma vez a voz do negro na sociedade, desapro-

priação cultural. “As pessoas querem a cultura negra, querem

priando-o da sua própria identidade.

o negro, mas não querem o produtor dessa cultura, nem o negro nem a mulher negra”, resumiu o professor Juarez Xavier,

A fala é negra

pesquisador da Unesp e militante do movimento negro.

Um por um foram chegando pra completar a sala va-

O processo de apropriação envolve a perda de significa-

zia. Completavam os assentos ao redor da mesa e também

do das narrativas do negro. Elementos de sua cultura, religião,

o discurso – aquele do qual a universidade peca pela falta.

crenças e estética são inseridos nos discursos e contextos de

Final da tarde e da semana. Às sextas o Coletivo Negro Kim-

aceitação branca de forma superficial, sem o conhecimento ou

pa se reúne, no departamento de comunicação da Unesp

respeito à origem desses fatores. A crítica a esse fenômeno é

Bauru. Os que passam pela frente da sala, muitos professo-

devida ao esvaziamento de sentido de símbolos criados para

res, olham com curiosidade a reunião. Mas só olham, pois é

dar voz a um povo e sua cultura, símbolos de luta que se tor-

branca a maioria do departamento. A conversa do Coletivo,

nam apenas elementos comerciais. Segundo Juarez, na cultura

antes de entrar em questões organizativas, começa pautada

negra, ética e estética estão ligadas. As vestimentas, as crenças,

pela apropriação cultural.

as danças, os símbolos religiosos, o modo de agir, a forma de se

– O difícil de falar de apropriação é que não tem como

posicionar diante do mundo e de opressões, estão todos ligados

parar a cultura – na ponta direita da mesa, Vinícius Mar-

por uma ética, um ideal. São componentes cotidianos que têm

tins começa pela apropriação constante do rap pelos bran-

uma carga simbólica muito grande dentro da cultura do negro.

cos. – Não tem como frear esse processo. E o problema é

O professor destacou, ainda, a função da cultura afro-

que as coisas que o branco faz são vistas como melhores do

descentente, ressaltando seu significado enquanto símbolo

que as do negro.

de luta. “A cultura negra tem uma função de uso, que é con-

De chinelo e bombeta, Pedro Borges foi um dos idealiza-

tribuir para a organização política dos negros para lutarem

dores do Coletivo Kimpa, o primeiro coletivo negro da Unesp

contra o racismo”.

Bauru. Ele segue a fala:

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“Assumir a tua negritude é correr risco.

Você se expor enquanto negro na sociedade brasileira é assumir risco pela própria vida. É memória: luto e resisto por todos aqueles que perderam a vida por conta do ódio racial. - Pedro Borges

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“O turbante é isso: uma forma de tentar me empoderar. Eu vejo que é algo relacionado a resistência, questão de solidão de certa forma... - Agnes Sofia

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– E a apropriação cultural está em tudo, desde o futebol até a estética. O grande problema é o consumo. O problema é que as produções se tornam mercadorias. Maracatu, capoeira, hip hop, samba, rock, blues. São modos de expressão. Os dois militantes denunciam que, quando os brancos consomem esse produto apenas como diversão, re-

exemplo, não sofreria preconceito apenas por usar dread. Sofreria por ser mulher, negra e por estar usando dread. Agnes ainda lembra dos tererês que usava quando criança. E lembra dos apelidos e do preconceito. - Eles dariam apelidos, falariam as mesmas coisas pra uma menina branca de tererês?

almente só consomem a mercadoria. A história e o significado se perdem. A conversa se estende e Pedro continua:

Grande parte da problemática da apropriação cultural e

– Esses modos são resistência cultural, têm que ser.

o esvaziamento do debate político está em desconectar a vida

Manter a sua identidade é um jeito de resistir. Quando você

e a história do negro dos seus instrumentos culturais. O pro-

se identifica, quando você vê quem você é, você consegue ser

fessor Juarez Xavier afirma que “aí tem um sério problema

livre. E como é que eu vou ser livre se não posso ser quem

político, você dasapropria a questão política e enfraquece a

eu sou? Se eu tenho vergonha da minha pele? A partir do

luta contra o racismo”. Como militante, intelectual e negro, o

momento que você se identifica enquanto negro, e aí você

professor se sente na obrigação de denunciar o uso irrespon-

resiste, você tá sendo livre, tá ligado?

sável, vazio e superficial da cultura afrodescendente, o que ele

A Agnes Guimarães entra na sala, procurando um lu-

intitula de “uma apropriação criminosa da história do negro”.

gar para sentar. O Coletivo não para. Continua a conver-

A apropriação cultural como obstáculo para o avanço do

sa falando do branco, que deve entender seu lugar como

debate político e social contra o racismo, ainda contribui para

opressor e entender o protagonismo dos negros. Letícia de

manter o negro fora das esferas de poder. Apesar de ser maioria

Maceno toma a vez da fala:

na população brasileira, o negro continua à margem da socieda-

– Não adianta dizer que entende a questão da apropria-

de, não ocupando espaços como nas universidades, nos meios de

ção pra consciência ficar mais tranquila, e continuar se apro-

comunicação e nas decisões políticas, como ilustra o professor

priando. Acho que isso não adianta nada, na real. Se os bran-

Juarez “A figura do negro, mais que conceitual, ela é expropriada

cos sabem da apropriação e continuam colocando dreads,

do ponto de vista econômico, político, social e cultural e implica

tenho todo o direito de me sentir ofendida – e o movimento

a maior apropriação cultural do negro, que é da vida”.

negro também. Se o branco entender mesmo, entender que

E ainda há uma abordagem mais perversa da apropriação

tem privilégios, não vai fazer e acabou. A apropriação é uma

cultural, segundo Juarez, feita pelo sistema, que usa o artista,

afronta sim. Entender não te dá passe livre.

homem e a mulher negra, como vitrine. Ele passa a ser um

Viram-se, então, para a Agnes e perguntam se quer co-

inocente útil dentro da indústria cultural. A perversidade está

mentar. Ela se posiciona como os outros, contra a apropriação.

no fato do artista negro ter o seu discurso político esvaziado

– Entender o problema não melhora como as pessoas

para que sua ascensão social seja aceita, para que ele se sinta

veem no exterior a diferença entre uma branca e uma negra

parte da elite. O problema, como afirma o professor Juarez, é

de dreads. Comigo, os preconceitos se acumulam. Eu, por

que eles não são aceitos e “nunca serão”. X

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A PERIFERIA TEM VOZ

Camila Pinheiro

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Integrante da Frente Feminina de Hip Hop de Bauru, mulher, negra. Camila Pinheiro veio da periferia e carrega os estereótipos e preconceitos da sociedade na pele: negra é sensualizada, mulher é desacreditada, fã de hip hop é marginal com mau gosto musical. Camila levanta sua voz contra o que a sociedade lhe impõe. Mulher negra é guerreira e hip hop é expressão cultural da periferia (lugar de orgulho, nunca de vergonha). A cultura afro ajudou a construir a Identidade do Brasil e, hoje, está presente nos cabelos, na linguagem, nas roupas, na Semana de Hip Hop em Bauru e em cada projeto desenvolvido pelos coletivos nas periferias. É sobre isso que a Camila Pinheiro conversou com a gente.


Identidade

CAMILA PASIN, CAROLINE BRAGA,

IHANNA BARBOSA e ISABELA ROMITELLI FOTOS WILLIAM ORIMA

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CAMILA PASIN: Camila, como é a influência da cultu-

com as mulatas e tal. A mulher negra é uma mulher que luta

ra afro no Brasil? De uma maneira geral.

e que busca, cada dia mais espaço em todos os segmentos da

Acho que posso falar um pouco mais da minha vivência. A

sociedade, com liderança.

gente vive num país onde a maioria, mais de 60% da população, é considerada negra ou parda, então a gente percebe que

ISABELA: A gente vê que é um problema maior, não só

existe uma contribuição em todos os sentidos. A gente sabe

no Brasil também, né? Mesmo no Oscar desse ano, não

que a nossa cultura é formada pela matriz afro, a indígena,

teve nenhum indicado negro. A presença dos negros

com contribuição dos portugueses também, mas eu acho que

nos últimos anos foram fazendo papel de escravo. Teve

é assim: na cultura do povo existe a contribuição da cultura

o “Selma”, sobre o Martin Luther King, esse ano, que

afro. Eu acho que tá em todos os espaços.

não foi indicado. Então é muito pouco mesmo. Exatamente.

ISABELA: E aqui em Bauru? Você acha que tem bastante representação de formas culturais...

IHANNA: E ainda tem gente que tem dificuldade em

Afro? Olha, eu posso dizer pelo Movimento Hip Hop. Eu sei

falar “eu sou negra”. Você acha que a falta de repre-

que existe a presença, mas eu acho que a representatividade

sentação tem a ver com isso?

não é muito grande. Eu sei que existem alguns coletivos de

Eu acredito que ainda existem negros que não se assumem.

matriz afro, como a capoeira, o maracatu. Mas aqui a questão

Pode ser realmente que essa seja a palavra, se assumir como

da religião afro ainda é vista de uma forma não muito posi-

negro. Até por uma questão que no Brasil, que viveu a escra-

tiva, a gente não tem tanto conhecimento. Mas a gente tem

vatura, o negro e tudo que é relacionado a ele, até hoje tem

samba, a gente tem o hip hop, e são todos de matriz afro.

resquícios disso, é considerado algo não belo. Meio que tentaram apagar a identidade do negro. Até a questão da própria

PASIN: Como você acha que é a presença do negro na

palavra: ser chamado de negro ou negra; às vezes algumas

televisão? Você acha que os artistas negros ainda tem

pessoas tentam minimizar a nomenclatura: “ai, você é more-

um papel menos importante?

na”, “você é mulata” e outros tipos de adjetivos, pra apagar

A questão da representatividade do negro na mídia é pou-

essa identidade que a gente tem. E a gente tem uma impor-

quíssima. Toda vez que existe uma atriz negra protagonista

tância muito grande na construção do nosso país. Não só no

de novela, sempre faz menção à objeto sexual. A mulher, prin-

Brasil, mas eu acho que uma contribuição mundial. A África é

cipalmente a mulher negra, ainda é muito explorada nesse

o berço da humanidade.

sentido. A gente percebe nas novelas, por exemplo “Da Cor do Pecado”, sempre tem essa conotação sexual, no “Sexo e as

PASIN: E um dos primeiros passos na aceitação de si

Negas” também. Eu assisti poucas vezes “Sexo e as Negas” e

como negro, eu acredito que seja a aceitação do pró-

percebi que não me representa, porque a mulher negra não

prio cabelo, né?

é só objeto sexual e ela não tem visibilidade só no Carnaval,

Sim. Eu não diria que é o mais importante, porque eu acho

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que a transformação é interna e quando você se aceita inter-

ele é. Por isso que eu digo que a transformação é interna pri-

namente, você acaba descobrindo que o exterior vai servir

meiro, depois ela se exterioriza, porque muitas pessoas hoje

também como uma maneira de resistência. O cabelo afro é

acham que o cabelo afro tá na moda, a questão do turbante tá

um grito de resistência, sim! Contra os padrões, contra os pre-

na moda. Então é uma coisa que aparentemente tá em alta,

conceitos. Porque é exatamente como a gente falou, tudo que

mas a pessoa que não tem a transformação interna, não se

é tido de negro: o cabelo crespo é considerado um cabelo que

assume como realmente é, em relação à sua negritude, em re-

não é bom. Como se o único tratamento que existisse para

lação à sua ancestralidade. Então muitas pessoas realmente

o cabelo crespo é o alisamento. Isso é uma das questões im-

deixaram o cabelo crespo, depois resolveram alisar por conta

portante, pelo menos pra mim como mulher negra, assumir

da pressão da mídia mesmo.

meu cabelo natural e usar ele das maneiras diversas pra que a sociedade veja. Eu não preciso me esconder mais, não preciso

ISABELA: Dentro do universo do hip hop, além da

ter que lutar contra minha natureza.

questão do cabelo o estilo é muito importante, né? Na Frente Feminina de Hip Hop, a gente começou a refletir a

PASIN: Como foi pra você essa aceitação?

respeito do estilo: antigamente, as mulheres que estavam inse-

Na minha adolescência, eu via que as pessoas tinham mais

ridas no movimento usavam calças largas, jaquetões, porque

preconceito em relação ao cabelo do que à própria cor da pele.

era uma maneira delas se sentirem aceitas e iguais aos homens.

E como adolescente, você quer ser aceita e eu fiz alisamento

Hoje a gente reflete que não, que a mulher pode participar do

no cabelo, até que eu vi que meu cabelo estava muito agredido

movimento e não perder sua feminilidade. Eu, por exemplo, eu

em relação à química e resolvi aceitar ele da maneira como

não danço, eu não grafito, eu não faço discotecagem e eu não

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canto rap, mas eu participo do movimento de uma outra maneira: na questão da organização, da divulgação e até na disseminação de algumas pautas que existem dentro do Hip Hop, que são pautas sociais também. Porque eu acredito que o movimento hip hop é um movimento não apenas cultural, mas um movimento social. Eu acho que estilo é indiferente hoje, em relação ao hip hop. Eu acho que o mais importante é a atitude, é você estar ali presente, participando das reuniões, podendo se organizar.

IHANNA: E você falou da Frente Feminina de Hip Hop. Você percebeu se a forma como a mulher é tratada no hip hop mudou de uns anos pra cá? Você acha que, em nível nacional, há mais mulher se envolvendo com hip hop? Ah, sim. Eu conheço alguns coletivos, conheço algumas mulheres que cantam, conheço um coletivo de grafite feminino, mas eu ainda acho que é pioneirismo dentro do movimento. Mas a mulher tem buscado conquistar seu espaço, não só dentro do Hip Hop, mas acho na sociedade geral. Porque quando a gente começa a problematizar algumas coisas dentro do movimento, a gente percebe que são reflexos da sociedade. Em alguns eventos, a gente percebe que pra mina é muito mais difícil chegar, pegar um microfone, subir lá no palco e falar. Por que? Porque ela sempre é muito mais reprimida. A gente fala bastante sobre feminismo lá também, acaba sendo uma pauta quase que natural em um coletivo de mulheres, né? Por exemplo, em qualquer festival de hip hop, não só aqui em Bauru, mas em nível nacional, são cinco atrações, por exemplo, e às vezes, dessas cinco nenhuma é uma mina pra tá representando ali no palco, sabe? Então a gente questiona isso, a gente procura pautar esse tipo de coisa e questionar algumas posições dentro do próprio movimento mesmo, da mesma forma que a gente questiona dentro da própria sociedade.

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PASIN: Então você acha que ainda tem resistência da

percebe que quando o rap tá na mídia, quando toca no rádio,

inserção da mulher negra no hip hop? Na sociedade?

por exemplo, é um programa voltado especificamente para o

Acho que a gente pode falar de uma maneira geral em relação

[público do] rap e hip hop. É o caso do “Manos e Minas”. Aqui

à mulher. Porque o hip hop essencialmente é um movimento

em Bauru tem um programa na [rádio] 107 chamado “A hora

negro, tendo como pauta a questão do negro, mas a questão

do Ding”, que é de um amigo meu. É uma hora voltada só pro

da mulher, no geral, ainda tem resistência. Na nossa cidade,

hip hop. Então, a gente vê que houve uma melhora, mas a

graças a Deus, a gente foi sempre muito bem aceita e artistas

música, o hip hop, ainda não tem uma repercussão tão grande

daqui, pelo o que eu tenho conhecimento, não tiveram muitas

dentro da mídia. A gente percebe que tem uma aceitação en-

dificuldades. Mas a gente sabe que no geral vai ter uma piadi-

tre aspas, ainda é visto com preconceito

nha. A mulher pode subir no palco e dar um show, arregaçar, e depois de tudo que ela fez o cara fala: “puxa, e é mulher,

IHANNA: Mas não é bom manter mais local? Porque

hein?”. Tipo assim, a gente percebe que existe um preconcei-

daí vai sempre falar da periferia, da sua vivência.

to ainda em relação ao gênero dentro do movimento, mas o

Já que você colocou isso em pauta, o rap ele é oriundo da pe-

importante é que a gente luta pra que esse racismo possa ser

riferia, então se você for na periferia é isso que vai estar to-

desconstruído; algumas coisas que são colocadas dentro da

cando. Agora, é importante que todos saibam, é importante

sociedade e refletem dentro do movimento como uma coisa

que a mensagem seja levada também, né? E quando a gente

natural, pra que a gente possa desconstruir isso. Eu, infeliz-

olha com preconceito, a gente acaba criando alguns estereó-

mente, assumo que utilizei alguns discursos, por exemplo,

tipos que não condizem com a realidade: que rap é só música

“poxa, essa mina com esse shortinho curtinho”, sabe?

de marginal, que o rap só faz apologia à droga. Por isso que às vezes é importante a pessoa parar pra pensar e observar,

PASIN: É inconsciente às vezes, né?

analisar um pouco a mensagem que está sendo passada. O

ISABELA: É uma coisa tão intrincada na sociedade.

rap hoje, infelizmente, é inspirado na realidade que é vivida

Exatamente, é algo enraizado dentro da sociedade, né?

pela periferia, existe sim a violência, mas existe também outras coisas interessantes que retratam a realidade do que a

IHANNA: Alguns grupos de rap estão voltando ago-

gente vive. Então, se a gente fechar os olhos pra isso e falar só

ra com mais força. O RZO voltou ano passado, o Ra-

sobre paisagem e florzinhas e tal, a gente não vai estar sendo

cionais voltou a lançar álbum. Você acha que o rap tá

coerente com aquilo que a gente vive. Ninguém fala sobre a

sendo mais aceito agora na sociedade? Você acha que

mensagem de resistência que é passada dentro da música, que

ele ajuda a combater o preconceito?

mostra uma realidade sofrida, mas que ele [da periferia] pre-

Olha, a questão da aceitação eu vejo que sim, mas é um pouco

cisa ser guerreiro, que ele tem força, que ele consegue vencer

incoerente porque, por exemplo, em relação à mídia a gente

e que ele não precisa aceitar o que o sistema coloca pra ele.

vê poucos grupos de rap nacionais. O Racionais, por exemplo,

A gente pode vencer e superar isso de uma maneira digna,

não está na mídia, porque eles optaram por isso, mas a gente

como guerreiros que somos. Em relação ao rap, tem muitas

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“E porque é importante também fazer com que a cultura hip hop chegue não só nas periferias, mas em outros âmbitos da sociedade? Para que acabe esse preconceito! A gente precisa falar pra quem realmente precisa ouvir.” meninas que mandam super bem e falam sobre o machismo,

lacionados à minha pessoa. Então, não há interesse nenhum

falam sobre questões polêmicas, em relação ao aborto, à vio-

da sociedade de um modo geral, da mídia, de fazer com que

lência doméstica, mensagens que precisam ser passadas, que

a nossa voz seja ecoada. Muito pelo contrário, nos é podado

precisam ser disseminadas.

sempre e sempre colocando estereótipo, fazendo com que a nossa voz cale.

PASIN: E pelo menos, ao meu ver, atualmente o rap é um dos estilos musicais ou cultural que faz mais crí-

PASIN: Aqui em Bauru é muito forte, né? Como é nas

ticas, né? Acho que é a voz de pessoas que são margi-

outras cidades do interior e até na capital?

nalizadas. Até o funk acho que é uma forma de mani-

O interessante é que muito se ia até a capital, se informava a

festação, que às vezes não é compreendida. Mas são

respeito do hip hop, e hoje a gente é referência em relação ao

essas manifestações que mais trazem crítica, porque o

movimento. E o principal objetivo nosso é ecoar aqui na nossa

que tá na mídia é o que? É o pobre que não pode nada.

cidade e ecoar na região também, porque apesar de cidades

E as músicas sempre tem conteúdo.

diferentes, a gente tem sempre o mesmo objetivo e procura

Isso. Mas se a gente for parar pra analisar, eu acho que não há

disseminar as mesmas coisas. A gente sabe que tem outras

interesse em relação à grande mídia, em relação à sociedade

cidades aqui na região que também são fortes em relação ao

em geral de dar voz à periferia, né? E é exatamente por isso

movimento hip hop e a gente procura sempre tá fortalecendo

que a gente observa em relação ao rap nacional, que é uma

isso, porque quanto mais o interior se fortalecer, mais disse-

linguagem, uma música, que traz crítica à sociedade, que fala

minação a gente vai poder ter. É claro que eles [a capital] tem

sobre política, que fala sobre resistência, que tem uma repre-

um pioneirismo que a gente não pode negar, mas que a gente

sentatividade em relação à minha pessoa, como mulher negra

tá fazendo barulho aqui a gente tá, né? Tem até uma frase

e periférica, entendeu? Porque fala da realidade na qual eu

que a gente acabou construindo que é “o interior tem voz”. E

estou inserida, na qual eu vivo, os preconceitos que são re-

tem uma rapper que faz parte da frente nacional de hip hop, a

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pior, até mais sórdido, eu acho. Muito comumente a gente vê as pessoas se escondendo através daquela frase: “é minha opinião e você tem que respeitar”. Não! Se a pessoa está sendo racista com o que ela tá dizendo, ela tem que pagar. Frases que a gente ouve em relação ao cabelo: “pô, você não lava o seu cabelo?”, “nossa, posso tocar no seu cabelo?”, “porque você não penteia o seu cabelo?”. O hip-hop ajuda a combater isso, primeiro porque ele te dá essa elucidação que não é um comentariozinho inocente. Acho que ela [a pessoa] realmente está sendo racista e que nós não precisamos nos fazer de vítima, porque muita gente fala que o negro gosta de se fazer de vítima, mas não! O Sara [Donato] que é de São Carlos. Tem uma música que ela fala a respeito do sotaque, né? Que um cara de uma gravadora falou “olha, gostei muito do seu trabalho, mas você vai ter que mudar o seu sotaque, esse ‘porta’ meio arrastado não vai ficar legal”. E ela fez uma música muito interessante a respeito disso, que ela não ia negar as raízes dela, que ela veio de lá [São Carlos] e ela se orgulha. Isso que é legal no hip hop, você se

que a gente luta é para que menos pessoas sejam vitimizadas pelo preconceito. Eu não quero me fazer de vítima, mas eu quero evitar que outras pessoas sejam vítimas desse preconceito. E por que é importante também fazer com que a cultura hip hop chegue não só nas periferias, mas em outros âmbitos da sociedade? Para que acabe esse preconceito! Então assim, a gente precisa falar pra quem realmente precisa ouvir.

orgulhar da onde você veio, entendeu?

ISABELA: Acho que esse trabalho que vocês fazem é importante até para colaborar com a desconstrução do racismo, né? Apesar de muita gente falar que não existe racismo no Brasil, a gente sabe que existe, né? Sim, sim. É mais notório do que nunca. O racismo no nosso país é gritante, né? Isso precisa ser falado. Porque hoje o que acontece na nossa sociedade, em qualquer tipo de preconceito, seja racial, seja em relação a gênero ou ao social, ele não é bem visto. Porque hoje, o que tá em pauta? É você aceitar a pessoa como ela é. Quando a gente vê uma pessoa que é racista, que tem preconceito, ela não é bem vista. Então, hoje, o que acontece? As pessoas querem tá bem na fita. Então o racismo é colocado de maneira mais velada e, às vezes, isso acaba até sendo

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IHANNA: Você acha a internet importante pra disseminar a cultura hip hop? Pra que chegue em mais gente? Acho que tem uma importância muito grande sim, porque é um canal que as pessoas têm acesso, onde a gente pode fazer blog e mostrar um pouquinho do que está acontecendo na nossa cidade para uma pessoa que, de repente está ali, numa outra cidade vizinha e possa pensar: “interessante esse projeto, eu posso fazer um projeto parecido”. Ou até a maneira de contactar as pessoas [de forma] mais simples, mais fácil, mais...

IHANNA: Mais direta. Mais direta, exatamente!

ISABELA: E acho que mesmo para expor atitudes que as pessoas acham que são inocentes. Como aquela questão do meme que surgiu: “o nego viaja”, “o nego nunca perde uma”. Tipo, as pessoas fazendo piadas, só que não é uma piada isso. Aí a gente volta a falar em como as pessoas se justificam: “ah, eu falo nego pra qualquer outra pessoa”. Como se eles estivessem generalizando, mas não, a foto que está lá é a nossa foto, é a minha imagem que está sendo exposta, que está sendo alvo de piadas. Então são esses tipos de questões que precisam estar sempre em pauta. Dentro do movimento hip hop, olha que interessante, você não vai falar só de música ou de dança, mas vai falar de política também, vai falar de preconceito! X

leia o texto na íntegra no site ouça também a entrevista completa

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SEXUALIdade

I WANT TO BREAK FREE As escolhas e as escolhas da liberdade sexual, livre de qualquer preconceito

Em matéria de sexo, todo mundo opina um pouco. Se colocarmos o tema “liberdade” na mesma mesa, então, aí é que todos têm opinião formada. E uma melhor que a outra. Quem nunca sentou numa mesa de bar, e colocou assuntos sexuais em pauta, escancarou um pouco suas preferências e

MARINA RUFO SPADA

ideologias? E é exatamente nessas conversas que melhor se

Ilustração LETÍCIA MISSURINI

vê a tendência a limitar a liberdade sexual e de criar rótulos. Às vezes numa competição para ver quem é mais mente aberta, às vezes num esforço em parecer mais santo. Engana-se quem pensa que liberdade sexual é só o direito de se definir hetero, homo, bi. Essa liberdade vai além, vai ao direito individual de decidir de que forma guiar sua sexualidade. “Liberdade sexual é se permitir experimentar os impulsos do desejo, sem sentir-se culpado ou dependente dessa sensação”. A definição partiu do estudante de medicina da PUC-SP, José Guilherme de Oliveira. Ele relembra que em seu processo

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de formação dentro de casa, o assunto era constantemente re-

timidade para o casamento o ajudará a ser feliz com sua famí-

lacionado a algo negativo ou a uma prática que levasse a doenças

lia”. Uma boa parte das pessoas se perguntaria se não é um

e até mesmo ao uso de drogas. Cazuza, Fred Mercury e Renato

exagero, e Samara confirma tais indagações. Mas ela também

Russo eram sempre os escolhidos para carregar o rótulo do mau

diz que nem todos consideram assim e muitos apoiam a deci-

exercício da liberdade sexual. “As formas que fogem ao modelo

são e até admiram, mesmo não tendo feito a mesma escolha.

heterossexual entre dois parceiros são encaradas com estranha-

No dia 15 de novembro do ano passado, o Vaticano emi-

mento. Mas há uma corrente de maior liberdade e essas pessoas

tiu oficialmente o comunicado da excomunhão do Padre Beto.

dão coragem para os demais permitirem se conhecer”, explica.

Roberto Francisco Daniel foi parar nos noticiários após dar

No quase extremo oposto do país está a estudante da Uni-

declarações consideradas polêmicas durante suas celebra-

versidade Estadual da Paraíba, Samara Cunha. Ela é batiza-

ções em Bauru, principalmente defendendo a união entre ca-

da e praticante da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Úl-

sais gays e por recusar-se a pedir desculpas. Procurado por

timos Dias – os mórmons, religião que tem a castidade como

essa reportagem, Padre Beto refletiu sobre a liberdade sexu-

um princípio a ser seguido até o matrimônio. “Acreditamos

al e a respeito do peso do celibato na escolha do sacerdócio.

que a relação sexual é reservada ao casamento e que a casti-

Ele afirmou ter sido parte de uma geração - do final da

dade nos beneficia em vez de restringir”. Na página na web

década de 1970 – em que não se ponderou muito sobre a se-

da Igreja, diz-se que “seguir o plano de Deus de reservar a in-

xualidade individual perante o sacerdócio, e que o idealismo

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por uma sociedade mais justa através da prática religiosa

individual, Padre Beto afirmou que há limites equilibrados

acabou por falar mais alto. Arriscou dizer que a Pastoral da

em dois lados: na estrutura da vida sexual de dois parcei-

Juventude da época tratava o tema da sexualidade de forma

ros, o que define a liberdade sexual é o respeito e o con-

mais livre. Padre Beto pontuou, ainda, que a Igreja Católica

sentimento de ambos. No caso dos jovens que seguem uma

nunca falou e ainda não fala com clareza sobre a temática da

vida de castidade é preciso perceber até que ponto não é

sexualidade individual dos padres durante o processo de for-

uma fuga. Se a escolha da castidade não vem do medo, por

mação. Sendo assim, raramente os padres de sua época pa-

exemplo, de assumir a homossexualidade. “Há jovens ho-

ravam um momento para refletir sobre o assunto. A clássica

mossexuais que entram num ‘grupo de namoro santo’, co-

pergunta “por que padre não casa” – para não dizer outra

nhecem uma menina – por exemplo – e escolhem manter a

coisa - vive a ecoar por aí e a resposta oficial sempre esbarra

castidade. Mas muitas vezes isso é uma opressão a real con-

nos fundamentos espirituais. Sobre isso, no entanto, ele é ta-

dição. Ou ainda há jovens que pertencem a religiões que

xativo ao afirmar serem os motivos puramente econômicos.

lhe põem um cabresto.” Padre Beto conclui que o limite da

as pessoas tendem a olhar com preconceito todas as decisões que não sejam iguais às suas. “Se os padres não se casam, não precisa de um investimento

liberdade sexual está na noção do por que daquela escolha.

em família, não há risco de reivindicação de bens pelos filhos

Não é difícil encontrar quem acredite que como a ju-

etc. O padre é sozinho. É um caso patrimonial”, afirmou.

ventude anda desregrada, perdida, livre, leve e solta. Como

José Guilherme não é mórmon, Samara não esco-

também não é difícil conhecer jovens rotulados pelo “esco-

lheu a vida sexual enquanto solteira e nenhum dos dois

lhi esperar”. Em conversas de mesas de bar ou num debate

optou pela vida religiosa. Mas ambos concordam que,

sério, ajudar na construção de preconceitos por decisões

tanto as suas opções quanto as diferentes delas, sofrem

diferentes da nossa é um erro fácil de ser cometido. Nin-

preconceitos. “Esse juízo de que não é “natural” [a casti-

guém precisa nascer um Santo Agostinho e viver dos dois

dade] pode nos fazer a olhar aquela situação como força-

extremos para poder entender todos os lados, nem estudar

da, mas não sabemos o que passa na cabeça de cada um”,

a obra completa de Freud para falar sobre todos os ângu-

diz ele. Para Samara, as pessoas tendem a olhar com pre-

los da liberdade sexual. Como tudo o que envolve a liber-

conceito todas as decisões que não sejam iguais às suas.

dade, o mais importante é procurar e querer saber o por-

Sobre a liberdade da escolha dos rumos da vida sexual

quê dos outros – mesmo que ele seja diferente do nosso. X

46


47


ENSAIO FOTOGRテ:ICO

48


O EU E OS OUTROS

A coragem comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. A coragem comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. A coragem comeu meus cartões de visita. A coragem veio e comeu todos os papéis onde eu escrevi meu nome. Comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. A coragem comeu metros e metros de gravatas. A coragem comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos. A coragem comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos. A coragem comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo de mim. FOTOS CAMILA PASIN

49


As pessoas acham que eu pareço “honesto”, mas eu não sou “honesto”. Eu gosto de festa, gosto de brincar. TSUKASA

Mesmo sendo tímida, sou muito corajosa. Quis me assumir logo de cara porque não estava aguentando. Queria resolver logo, não pensei nas consequências e fui logo agindo. Passei por diversas fases, a da aceitação e todas as outras. LUNA

50


Tudo acontece porque eu sou uma pessoa mais quieta e as pessoas acham que sou meio metido, introspectivo demais. Acho que uma coisa que me define ĂŠ estar sempre mudando. THALES

51


Vamos começar que não existe cabelo ruim, né? Toda vez que alguém vê um cabelo afro: “o que você fez no seu cabelo?”. Miga, eu nasci. LUANA

Acho que as pessoas olham pra mim e devem achar que sou drogas, sexo e rock’n’roll, mas na verdade sou tranquila e passo a maior parte do meu tempo vendo seriados e jogando The Sims. Deveríamos tentar conhecer antes de julgar, e sei que é difícil porque todo mundo faz isso. ANNA

52


53


Algumas pessoas acham legal, outras que eu deveria cortar meu cabelo. Já ouvi comentários que relacionavam uma falta de seriedade com relação ao corte de cabelo que eu tenho, sendo que um pré requisito para alguém ser sério, responsável é uma aparência “cuidada”. FELIPE

54


Me deixem em paz. A menina chegou, pegou no meu cabelo e disse ‘nossa, mas o seu cabelo até que é bom’. Eu falo que eu sou meio relaxada, na verdade, porque eu não tenho um estilo meio certo...eu acho que sou meio despojada. LETÍCIA

55


Minha identidade é minha realidade, pois não tento transparecer nada que não sou. ISABELA

56


Eu valorizo meu cabelo, gosto dele assim e gosto de ter liberdade pra adequar ele ao meu gosto. Não é moda, não é algo transitório e faz parte da minha identidade. DU 57


58


Normalmente, quando alguem não me conhece, sou interpretada como uma menina metida, mimada, fria. E não acho que sou assim. Eu não preciso me forçar a agir ou me portar de formas para evitar que tenham uma visão de alguém que eu não sou. BELLE

galeria completa no site

59


OPINIÃO

A FÉ MOVE MONTANHAS 60


E

m uma sociedade ideal, teríamos uma demo-

não necessariamente são sinônimos. Que se for para ensi-

cracia plena, a participação popular efetiva, mi-

nar a pescar em vez de dar o peixe, que as varas atendam as

norias talvez não mais reconhecidas como tal,

necessidades e limitações de cada um. Em uma sociedade

por saberem que seu direito de ir e vir é tão assegurado

ideal, a ideia de estado laico não seria apenas uma teoria,

como o de qualquer outra categoria. Uma realidade em

época de repressão não seria tratada com saudosismo, os

que ocorre um feminicídio a cada uma hora e meia, uma

interesses econômicos não teriam privilégios sobre o bem

morte LGBT a cada vinte e oito horas, e uma por aborto

estar dos cidadãos.

clandestino a cada dois dias seria estudo de caso, tema

Falando sobre cidadania, a utopia nos permite imagi-

de discussões acadêmicas sobre uma época em que rei-

nar uma coletividade em que os gêneros não se limitariam

nava um pensamento tão obscurantista quanto aquele

a x ou y de forma tão certa quanto 1 + 1 = 2. O pensamento

cultivado na Idade Média.

não seria limitado, de modo que entenderia que a felici-

Imagine essa sociedade em que a política não fosse a

dade dos indivíduos também não deve sê-lo. Também não

extensão de vontades individuais, que dialogasse com os

haveria hierarquia entre cores. Entre credos. Entre nada.

cidadãos em direção a uma evolução mútua, que enten-

Restaria o respeito. A aceitação. O diálogo.

desse e respeitasse a crença de cada um, que aceitasse que

Em uma sociedade ideal, não teríamos o Congresso

a fé pode mover montanhas desde que elas não sejam um

mais conservador desde a época da ditadura de 1964. Nos

obstáculo aos direitos do próximo. Pense que louco seria

recusaríamos a aceitar fundamentalistas, liberalistas e sau-

se o caminhar cronológico significasse, também, um ca-

dosistas do militarismo como o espelho da sociedade. Do

minhar em direção à garantia dos direitos de todos, que as

alto de sua ignorância, um misto de militar e líder religio-

pessoas usassem melhor suas panelas e brados em favor

so não ousaria insinuar que há mulheres que merecem ser

de melhorias para todos.

estupradas. Em rede nacional. Impune. Mas 2014 não nos

O umbigo de cada um deixaria de ser o centro do universo. As pessoas entenderiam que direitos iguais e justiça

trouxe uma sociedade ideal. Ainda não. Quem sabe a fé, da próxima vez, não falhe. X

NATHÁLIA ROCHA Ilustração LETÍCIA MISSURINI

61


Ah, internet! Que lugar maravilhoso para se estar (só que nem sempre). O acesso da rede, agora difundido em várias camadas sociais, entre pessoas com diferentes graus de instrução e ideologias, propicia o surgimento de grandes pérolas. Seja em vídeos no Youtube ou em páginas de grandes portais no Facebook, os trolls dos comentários sempre terão algo a dizer, mesma que ninguém queira ouvir e que não seja nem um pouco relacionado ao tem. O anonimato da internet faz com que as pessoas confundam liberdade de expr essão com liberdade de falar merda, sem assumir as consequências. As seções de comentários são open de machismo, homofobia, transfobia, loucura e pura ignorância. Os comentários aqui reproduzidos não representam a opinião da revista ou de sua equipe. Ainda quer ler os comentários? Depois não diga que nós não avisamos! Postado por caroline braga e isabela romitelli

62

*as frases foram retiradas de comentários reAis feitos em portais e redes sociais


Nテグ leia mais comentテ。rios no site

63


COMPORTAMENTO

no FUNDO do C O P O A cultura do uso excessivo do álcool é comum entre jovens universitários. Mas o que os motiva? Marina Spada e William Orima

64


Para muitos jovens, entrar na universidade é a chave

um que tem o hábito de beber: “porque é divertido”, “me sinto

para uma realidade completamente nova e, portanto, desco-

mais sociável”, “fico mais feliz, relaxado”, “esqueço meus pro-

nhecida. Nem só de estudos vive o jovem universitário, afinal.

blemas”.

Um mundo de experiências se revela do momento em que pisamos pela primeira vez no campus até quando recebemos,

SolÚVEl em álcool

finalmente, o diploma.

O psiquiatra e professor da PUC-SP, Carlos Von Krakauer

E entre ditas experiências, não são poucos aqueles apre-

Hüben, orientou uma pesquisa de iniciação científica no cam-

sentados aos copos pela primeira vez. Desde o trote, experi-

pus da Faculdade de Medicina, em Sorocaba, justamente para

ência que funciona como um ritual de passagem contempo-

entender qual é o papel do álcool na vida dos estudantes. Fo-

râneo, os estudantes costumam passar por situações em que

ram aplicados questionários com mais de 160 perguntas para

uma série de fatores podem os estimular a beber: a pressão

uma turma de futuros médicos durante os seis anos de forma-

social exercida pelos colegas, o primeiro momento de autono-

ção. O doutor relatou algumas surpresas, dentre elas o fato

mia frente à autoridade dos pais, a vontade de se destacar en-

de que a maioria chegava relativamente sem experiência com

tre os demais, de ser provar capaz. Nesse cenário, a cultura do

drogas - de todo tipo, inclusive álcool. Os sustos foram aumen-

uso excessivo do álcool atinge seu ápice com o binge drinking.

tando à medida que os alunos adquiriam mais conhecimentos

O termo em inglês descreve o ato de intencionalmente beber

sobre biologia: “No 3º ano, houve aumento significativo da

muito em um curto período de tempo e é reconhecido mun-

procura de drogas. Uma surpresa porque o conhecimento dos

dialmente como um problema de saúde público.

riscos e malefícios não era acompanhado pelo comportamen-

Por que se comportar dessa forma? As respostas costumam ser bem simples e podem ser reconhecidas por qualquer

to saudável. Eles já haviam passado por Farmacologia e Anatomia Patológica”, conta Dr. Hüben.

65


Os alunos estavam cursando o 5º ano de Medicina, já bei-

lo, a Unifesp. No final do ano de 2013, foi realizado o Simpósio

rando a Residência, quando a pesquisa indicou um crescimen-

Internacional sobre Abuso de Álcool: Prevenção, Intervenção

to exponencial e o surgimento de drogas pesadas. “Seguimos

e Políticas Públicas. O conteúdo das palestras encontra-se dis-

sem decifrar o enigma. Os alunos já tinham visto overdose e

ponibilizado gratuitamente no site da instituição. Em uma das

psicose no pronto-socorro, já tinham visto demências alcoóli-

explanações disponíveis, o Professor Kypros Kypri, da School of

cas e infartos por cocaína em indivíduos de 20 e poucos anos,

Medicine and Public Health da Universidade de Newscastle na

já tinham discutido isso com professores mas, mesmo assim,

Austrália, traz dados sobre o consumo de álcool por jovens uni-

tinham comportamento de um risco absurdo”. O professor e a

versitários, destacando a diferença abismal entre a ingestão da

equipe passaram, então, a tentar entender os motivos do que

população comum e dos estudantes na faixa dos vinte anos.

classificou como um “fenômeno”. “É muito hormônio”, avalia Dr Hüben, “a idade, sua corres-

Culpa

pondente onipotência e a certeza de invulnerabilidade: o pesso-

Embora devesse ser constantemente discutida, a pau-

al, especialmente os meninos, tende a correr riscos absurdos por

ta da cultura do álcool só ganhou fôlego entre os jovens

ter certeza que o que acontece com os outros (de ruim) não vai

recentemente, devido aos acontecimentos do dia 28 de

acontecer com eles”. Novidades que não podem ser compartilha-

fevereiro deste ano. Durante uma competição em uma

das e insegurança são os primeiros pontos a serem observados,

festa, o estudante do campus da Unesp em Bauru, Hum-

e também a perda dos laços de amizade. A fantasia da socializa-

berto Moura Fonseca, 23, desmaiou depois de consumir

ção e do álcool como uma “ferramenta” para tímidos também é

uma quantidade descomunal de vodca. A organização da

apontada pelo médico: “Existe uma brincadeira na área psiquiá-

festa não estava preparada para esse tipo de emergência

trica que diz que o nosso superego é solúvel em álcool”.

e Humberto faleceu à caminho do pronto-socorro. Outros

O psiquiatra diz que a cultura do àlcool é atrelada à vida universitária e que a facilidade do acesso e o preço baixo das

três estudantes que participaram da competição acabaram internados em estado grave, mas sobreviveram.

bebidas servem como um “empurrãozinho”. Ele chama aten-

Foi assim que a atenção dos grandes veículos midiáticos

ção para a diferença entre as estatísticas ligadas ao álcool,

se voltou para a tragédia, já anunciada. Não houve sensibili-

como acidentes de trânsito e homicídios, em países cuja a pu-

dade e muitos projetaram a culpa na própria vítima. Vítima,

nição é rígida e as estatísticas brasileiras: “Tenho certeza que,

sim. Em um contexto onde aquele que bebe mais é o melhor,

se um dia for feita uma contabilidade honesta, sem viés polí-

a morte de um estudante pelo uso abusivo do álcool não é uma

tico ou de interesses econômicos, não vai fazer sentido proibir

fatalidade, mas sim o resultado de uma cultura torpe. Não foi

o crack, a heroína, ou qualquer outra droga e deixar o álcool

o primeiro caso e provavelmente não será o último, mas sur-

em prateleiras de supermercados.”

preendeu e nos assustou e, por um instante, nos motivou a

O uso de drogas e o consumo de bebidas alcóolicas é mo-

pensar sobre o assunto. X

nitorado pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas, o CEBRID, uma organização da Universidade Federal de São Pau-

66

assista aos depoimentos no site


A primeira vez que bebi foi com amigas, aos treze anos, em festas de aniversários. Quem não bebia era tachado de chato, excluído ou considerado infantil e os que mais bebiam eram considerados mais engraçados. Passar mal de tanto beber não é e nunca foi prazeroso, e beber até perder a noção também não. É incômodo pensar o tanto que já bebi para me adaptar socialmente. Fernanda Cotez Redivo, 18 anos Não bebo porque o álcool se acumula mais rápido no meu corpo e poucos goles já me fazem passar mal. O sabor também não me agrada. Não me sinto pressionada a beber, todos os meus amigos respeitam isso. Carol Sayuri, 21 anos Eu gosto do efeito e do prazer de ficar embriagada, são poucas as bebidas que tomo pelo sabor. Nunca me senti pressionada e a primeira vez que bebi foi com uma amiga. Jacqueline Vieira, 21 anos Bebo ocasionalmente; não gosto muito do sabor mas gosto de ficar feliz. A primeira vez que bebi foi em uma festa universitária e nunca me senti pressionada. Meus colegas não insistem quando não quero beber. Emily Kitaguchi, 21 anos Eu não bebo porque não sinto necessidade nem do gosto do álcool nem do efeito e também por uma questão de saúde. Sou a única da família que não bebe e não conheço muitas pessoas que fizeram a mesma escolha que eu, então me senti pressionada inúmeras vezes. Marina Spada, 20 anos Não tenho o hábito de beber, mas nas ocasiões em que bebo, o faço em grande escala. Não por gostar dos sabores, mas por acreditar que o álcool age como um “lubrificante social”. A primeira vez que bebi foi por pressão indireta, já que todos meus amigos bebiam. William Orima, 20 anos

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comportamento

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A chegada do Gael Relato s de parto huma n i z ado LAURA FONTANA

ilustração MARINA WANG

Sempre sonhei em ser mãe e sempre quis fazer parto normal. Desde que me descobri gestando este ser iluminado, tive a certeza de que ele chegaria ao mundo desta forma! E foi assim que eu e o Douglas começamos a nos informar a respeito do parto humanizado, pesquisando muito, lendo diversas matérias, relatos e assistindo a vídeos. Com três semanas de gestação fomos ao obstetra e conseguimos ver apenas o saco gestacional se formando. O médico nos informou que a data prevista para o parto seria dia cinco de outubro e nos disse: ‘o bebê pode nascer até duas semanas antes, ou duas semanas depois, mas eu nunca deixo passar, eu sempre tiro antes’. Saímos do consultório receosos. Com apenas três semanas de gestação, como se pode afirmar que será necessário tirar o meu bebê?!” - Juliana Foz, mãe do Gael

Desde que o Gael nasceu, todos os dias eu penso no parto. Sinto saudades do cheiro de vérnix, de sentir pela primeira vez aquele corpinho quente e molhado recém saído de mim, do gosto do café descafeinado que tomei assim que pari e, principalmente, saudades da dor. Será possível sentir saudades de uma dor? Te garanto que é…Quanto ao nascimento da Clara, eu não sinto saudades do frio do centro cirúrgico, nem do barulho dos instrumentos, nem dos meus olhos que insistiam em procurar o monitor cardíaco, nem dos meus dentes rangendo e muito menos das minhas mãos atadas assim que ela chegou ao mundo. Sempre penso: ‘como pude fazer isso com você, minha filha? Como pude fazer isso com nós?’ - Januária Peres, mãe da Clara e do Gael

69


Juliana e Januária são mães de dois meninos lindos cha-

cesariana, e mesmo na rede pública o número de cesarianas

mados Gael. Mas elas tem muito mais em comum que a esco-

chega quase ao triplo do recomendado pela OMS (Organiza-

lha do nome forte e emancipador de seu filhos. Ambas enfren-

ção Mundial da Saúde). E neste contexto, o parto humanizado

taram um sistema que prega a intervenção cirúrgica na hora

surge como possibilidade de desconstrução de uma realidade

do parto e decidiram humanizar a chegada de um novo ser ao

tão injusta com as mulheres.

mundo. As mães acreditaram na possibilidade de receberem

A humanização do nascimento não se caracteriza como

seus filhos com carinho e se colocaram como protagonistas do

novo método ou como um tipo de conhecimento específico.

nascimento de seus bebês. Mas será que o parto humanizado

Também não significa que o parto com intervenção médica não

pode ser a realidade de todas as mães?

possa ser humanizado - não se pode negar o recurso cirúrgico

No Brasil, 52% dos nascimentos são realizados de forma

para resgatar vidas que se apresentam em risco. O parto huma-

cirúrgica e hospitalar. A cesariana como método de nasci-

nizado seria a busca pelo resgate do suporte social, emocional,

mento está arraigada no imaginário de muitas mulheres bra-

afetivo e espiritual na hora do nascimento dos bebês. Por isso, a

sileiras como um método seguro, limpo, moderno e indolor,

necessidade da presença do profissional humanizado acompa-

embora a realidade não seja bem essa. Se a mulher optar por

nhando as dimensões subjetivas de sua paciente e encararando

uma cesariana, ela será prontamente atendida. Mas se ela

o nascimento como um momento único, rodeado de medos,

quiser um parto normal (e pesquisas indicam que a grande

expectativas e sonhos. É o que acredita Valentina Kasin, doula,

maioria das brasileiras desejam um parto normal no início da

educadora perinatal e mãe de dois filhos: “ Na minha visão de

gestação), ela precisa lutar ferrenhamente contra o sistema e

doula, complementando tudo que diz a ‘teoria’ sobre o assunto,

praticamente se formar em obstetrícia para conseguir desviar

a palavra chave para parto humanizado é respeito. Respeito ao

de tantos mitos que envolvem o assunto. Para exemplificar,

protagonismo da mulher, para que ela seja restituída ao seu lu-

na rede privada cerca de 80 a 100% dos nascimentos são por

gar de direito: dona do seu corpo e decisões”.

70


A tarefa de humanizar o nascimento se dá através de

não farmacológicos, como a massagem ou banho quente, para

um processo demorado, já que está envolvido com a própria

aliviar a dor. Pela lei, a parturiente também tem direito a co-

estrutura que sustenta a sociedade ocidental. Atualmente,

mer e beber durante o trabalho de parto e ainda se movimen-

optar pelo parto humanizado, seja ele hospitalar ou domi-

tar durante as contrações. Outra recente conquista é o plano

ciliar, exige uma série de recursos que não estão ao alcance

de parto, por meio do qual a gestante será orientada durante

de todas as futuras mães. Os profissionais humanizados são

o pré-natal. O plano será feito em conjunto com o médico, que

minoria e oferecer uma assistência individualizada e suporte

vai informar as mães sobre as suas escolhas.

emocional às mulheres exige tempo e muitos esforços, mas as perspectivas estão melhorando.

Apesar das leis estarem em vigor, mulheres ainda têm dificuldades em conseguir partos respeitosos com o mínimo

Recentemente, o Ministério da Saúde, a ANS (Agência

de interferência médica tanto na rede pública como na pri-

Nacional de Saúde Suplementar) e o Hospital Israelita Albert

vada e ainda existe pouca informação disponível às futuras

Einstein anunciaram uma lista de 28 maternidades seleciona-

mães, mas cada vez mais fica evidente que a banalização do

das para participar do projeto de incentivo ao parto adequa-

nascimento não é o caminho a ser seguido. Todos sabemos

do. Desse total, 23 são da rede particular e cinco pertencentes

da importância da tecnologia para salvar a vida de pessoas

ao SUS (Sistema Único de Saúde). Um dos objetivos do proje-

que estão em risco, por outro lado, não há porque se artifi-

to é reduzir o número de cesáreas no país. Além disso, novas

cializar um evento tão humano quanto o nascimento de uma

medidas foram estabelecidas na rede pública de saúde do Es-

criança. Intervir no nascimento para encurtar tempo ou por

tado de São Paulo. Os médicos da rede pública terão de justifi-

interesses econômicos são erros graves que devem ser evita-

car o uso de alguns procedimentos invasivos durante o parto.

dos. Atitudes como essas, que retiram da mulher o protago-

O projeto também estabelece que a gestante tenha direito à

nismo do parto, não podem ser toleradas em uma sociedade

anestesia durante o parto normal e escolha também métodos

que lute para ser mais justa e fraterna. X

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72


indicações culturais

SÉRIES

Transparent De Jill Soloway

Jonas Lírio

Com Jeffrey Tambor, Gaby Hoffman, Jay Duplass De protagonistas de filmes ganhadores do Oscar a vilões de novelas brasileiras, o movimento LGBT nunca se viu tão representado na cultura como é hoje em dia. Só que se uma parte desse grupo, aquele “T” ali no final, é deixado de lado até pelo próprio movimento, que dirá ser destaque de alguma produção mainstream. “Transparent”, seriado da Amazon (sim, o site de vendas agora produz conteúdo audiovisual) que saiu em 2014, coloca a transgeneridade e a transexualidade em evidência e discute a sexualidade humana como nenhuma outra produção com visibilidade se propôs a fazer. A série, que já ganhou até Globo de Ouro, acompanha a vida de um pai de família (até então, Mort) que decide assumir a personalidade que sempre escondeu do mundo: Maura. Além de mostrar a transição de “homem” para “mulher” pelo qual a protagonista passa, as consequências da revelação para seus três filhos (Sarah, Josh e Ali) e a vida intima dos próprios também são abordadas. O diferencial de Transparent é que a série não se limita a falar apenas de sexualidade. Problemas familiares, amorosos e financeiros – todos tratados com leveza e delicadeza – fazem parte da vida de qualquer pessoa, inclusive as da família Pfefferman. Pode parecer confuso, mas é exatamente isso que a série quer passar: a vida de todo mundo é assim, inclusive

Fresh Off the Boat

FOTO: REPRODUÇÃO

Assista também:

a de quem não se encaixa em padrões estabelecidos há tanto tempo.

De Nahnatchka Khan

Black-ish

De Kenya Barris

73


EPRODUÇÃO

FOTO: R

Praia do Futuro Drama, 2014 Dirigido por Karim Aïnouz Com Wagner Moura, Clemans Schick Depois de um episódio traumático na Praia do Futuro, o brasileiro Donato e o alemão Konrad se apaixonam e decidem viver juntos. Donato abandona tudo e volta à Alemanha com Konrad. Lá, confuso e livre, sua jornada por amor logo se transforma em uma profunda busca pela própria identidade.

Assista também:

DEAR WHITE PEOPLE Comédia, Drama, 2014

FILMES wILLIAM oRIMA

pride

Drama, Comédia, 2014

LIVROS

Marina spada

LEITE DERRAMADO Chico Buarque, 2009 Quarto romance do escritor brasileiro Chico Buarque, Leite Derramado desfia um monólogo de um velho homem num leito de hospital. Sob o efeito de remédios, ele narra sua existência desde seus antepassados até seu atual descendente, tudo isso usando de pano de fundo uma sociedade brasileira manchada por preconceitos de classe e de raça, de machismo, oportunismo e pela marca de uma “elite pobre”.

Leia também:

o retrato de dorian grey

Oscar Wilde, 1890

RODUÇÃO FOTO: REP

74

orlando

Vírginia Wolf, 1928


FOTO: JOSÉ DE HOLANDA

ÁLBUNS

Convoque seu Buda

laura fontana

Criolo, 2014

ENCARNADO Juçara Marçal, 2014 Vida e morte se entrelaçam no universo em formação de

trabalho. São criações afiadas e que arranham os ouvidos, caso

Encarnado. O disco é o primeiro trabalho solo da cantora Juça-

de E o Quico? – de Itamar Assumpção, e Não Tenha Ódio No

ra Marçal. Carioca, integrante do trio Metá Metá e do grupo vo-

Verão – do baiano Tom Zé. A cultura afro-brasileira também

cal Vésper, ela acumula mais de 20 anos de carreira e há tempos

é relembrada, com referências ao candomblé. Neste álbum te-

arrebata ouvintes pela sua voz pouco polida e pouco hesitante.

mos a faixa Odyoya - que significa uma referência a Iemanjá, a

Os arranjos de Encarnado são construídos quase totalmente a

mãe das águas - além de Canção Pra Ninar Oxum, que reveren-

partir das guitarras de Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, com a

cia o orixá dos rios com a canção mais delicada e doce de todo

rabeca de Thomas Rohrer, além de participações pontuais de

o álbum. Com certeza a letra mais forte e bela é a da faixa Ci-

um sax (tocado por Thiago França) e um cavaco (também de

randa do Aborto, canção que ilustra um aborto clandestino e os

Rodrigo Campos) - nada de baixo ou bateria. Pontuado pela

estragos feitos no corpo e na alma de uma mulher. O que está

aura de retrospecto, o disco possui tom de insanidade ditado

em jogo em “Encarnado” é a canção. Coincidentemente, aquela

por Juçara que berra e morde o texto, acompanhando a lâmina

que diziam que acabou. Independente, as notas do subsolo do

da guitarra. As letras vendem um tipo de dor que nem todas

disco nos lembram que já estarmos morrendo, mas queremos

as pessoas estão dispostas a ouvir. Tendo na inaugural Velho

morrer só em breve. “Encarnado” é o verdadeiro antídoto con-

Amarelo, faixa assinada por Rodrigo Campos, o princípio de

tra quem quer nos matar antes. X

composição para o restante da obra, Juçara visita um conjunto de temas que encontra na morte o principal suplemento do

mais indicações no site

75


GLOSSÁRIO

glossário

afro

Plus size

Tudo que remete a descendência do negro,

Plus size é o nome que foi dado pelos norte

uma palavra que congrega uma séria de movi-

-americanos para modelos de roupas acima

mentos. Afro é beleza, afro é som, afro é cultu-

do padrão comercial convencional. Portanto,

ra, afro é tudo.

qualquer roupa com numeração acima do número 44.

cross.dresser Indivíduo que veste roupas e/ou acessórios do

tran.se.xu.aL

sexo oposto podendo ser ou não homossexual.

Indivíduo que possui uma identidade de gêne-

Esses indivíduos não utilizam desta faceta no

ro diferente daquele designado pelo sexo bio-

seu dia a dia, não fazem alterações hormonais

lógico, tendo o desejo de ser aceito como sendo

e nem modificam o corpo por meio de cirur-

do sexo oposto. Os homens e a mulheres trans

gias estéticas.

apresentam uma sensação de impropriedade de seu próprio sexo anatômico e desejam fazer

drag queen

uma transição de seu sexo de nascimento para

Indivíduos do sexo biológico masculino que se

o sexo oposto por meio da cirurgia de redesig-

travestem com vestimentas exageradas para

nação de gênero.

apresentações performáticas representando personagens, muitas vezes cômicos. O artista

trans.gê.ne.ro

performático pode ser homossexual ou não.

Todos os indivíduos que não se enquadram nas designações binárias (masculino/femi-

et.ni.a

nino) estabelecidas socialmente. Pessoas que

É um conjunto humano que possui diversas

intercambiam entre os gêneros, podendo ser

afinidades culturais e tem certas característi-

este trânsito permanente ou transitório. Al-

cas físicas em comum. O termo é usado para

guns transexuais não se consideram transgê-

substituir a idéia de raça e ampliar a noção da

neros pelo fato de aceitarem as condições bi-

relação de cultura e o que antes era chamado

nárias heteronormativas.

de identidade racial.

tra.ves.ti.li.da.de

76

in.ter.se.xu.a.li.da.de

Pessoa que apresenta sua identidade de gêne-

Pessoas que nascem com características físi-

ro oposta ao sexo designado no nascimento,

cas visíveis, ou não, dos dois sexos. O intersex

mas que não almeja se submeter à cirurgia de

pode ser homossexual, heterossexual, bisse-

redesignação de gênero. Podem se identificar

xual ou assexual.

como homo, hétero ou bissexuais.


77


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