ANÁLISE COMPARATIVA DAS CIDADES
ISTAMBUL - LISBOA
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INSTITUTO SUPERIOR TÉCNICO
MESTRADO INTEGRADO EM ARQUITECTURA História da Cidade 2013 _ 2014
Análise Comparativa das Cidades ISTAMBUL - LISBOA
Profª. Ana Tostões Profª. Bárbara Coutinho Prof. João Vieira Caldas Isabel Barreto 67112
Joana Samúdio 67115
Sofia Ribeiro 68725
Nuno Rosado 76677 2
ÍNDICE Introdução
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Enquadramento geográfico
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ANÁLISE HISTÓRICA 07 Fundação da cidade _ Primeiras Ocupações
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Constantino
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Império Bizantino
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Declínio e Queda do Império Romano
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Império Otomano
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Séc. XX e Actualidade
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ANÁLISE DA FRENTE RIBEIRINHA
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SÍNTESE COMPARATIVA
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Conclusão
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Referências
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INTRODUÇÃO No âmbito da disciplina de História da Cidade, e enquadrado no programa da Disciplina de Projecto Final I, este trabalho visa desenvolver uma análise da cidade de Istambul, seguindo o método de 'urbanismo comparado' com a cidade de Lisboa. Esta análise comparativa deve-se ao facto de ambas se caracterizarem como cidades portuárias e se terem desenvolvido, ao longo do tempo, numa estreita relação com o rio. Desta forma, o trabalho tem como objectivo aprofundar os principais momentos da história de cada cidade, evidenciando os elementos determinantes e que mais impacto tiveram no desenvolvimento urbano. O trabalho foi desenvolvido em paralelo com as duas cidades, dando, naturalmente, maior destaque à cidade de Istambul, que era a desconhecida. Além disso, a informação é apresentada de forma cronológica, para facilitar a compreensão da evolução dos tempos. Quanto ao método de trabalho, foi realizado, em primeiro lugar, um levantamento cartográfico e bibliográfico, que possibilitou a leitura interpretativa do objecto em estudo. Com essa parte entendida, partiu-se para uma análise mais comparativa, na qual se identificaram os pontos-chave em comum com as duas. Posteriormente, foi investigado de forma mais pormenorizada o desenvolvimento do porto de cada cidade, uma vez que é a temática «em cima da mesa» a Projecto Final I, e que merecia algum aprofundamento. Como conclusão, conseguiu-se sintetizar toda a informação num esquema gráfico, apresentado no final do trabalho, que compara os principais acontecimentos de Lisboa e Istambul. 4
Fig. 1: Ortofotomapa da cidade de Istambul
Fig. 2: Ortofotomapa da cidade de Lisboa
ENQUADRAMENTO GEOGRÁFICO A cidade de Istambul está situada no noroeste da Turquia e goza de uma localização invulgar e privilegiada (fig. 1). Estende-se por dois continentes, a Europa e a Ásia, em que ocupa 5000 km2 e 2000 km2, respectivamente. O lado europeu e o lado asiático estão separados por um largo rio, o Bósforo, que faz a ligação entre o Mar Negro e os mares de Marmara e Mediterrânico. Além disso, Istambul subdivide-se também, no lado europeu, em duas regiões ou penínsulas situadas a Norte e a Sul do Corno de Ouro, o estreito que funciona como porto natural de Istambul. Estas duas penínsulas concentram os principais centros históricos da cidade, pois a fundação de Istambul (de início chamada Bizâncio) ocorreu na península a Sul, Sarayburnu, e uma das suas primeiras expansões deu-se para a península a Norte, Beyoglu.
Lisboa, tal como Istambul, é uma cidade com uma relação muito intensa e directa com a água. Desenvolveu-se na margem direita do rio Tejo, junto à sua foz. Mas em frente, na margem esquerda, situa-se a cidade de Almada que, embora pertença a um município diferente, Setúbal, tem com a capital uma relação semelhante à dos lados europeu e asiático de Istambul. Além disso, Lisboa é também conhecida pelas suas sete colinas, onde se situam os bairros históricos de Alfama, do Castelo e do Chiado, designadamente. E tal como sucedeu com Istambul, também aqui a topografia condicionou a morfologia urbana, dando lugar a ruas demasiado estreitas para a passagem de veículos, escadarias e espaços públicos em miradouro.
A confluência do Mar de Marmara, do Bósforo e do Corno de Ouro, que hoje constitui o centro geográfico de Istambul, foi, durante muitos séculos, um factor essencial à defesa da cidade e é, ainda hoje, uma das características proeminentes da sua paisagem. Outro aspecto que importa referir é a topografia de Istambul, porque influenciou o seu desenvolvimento urbano: a península histórica de Istambul (Sarayburnu) compreende sete colinas (cada uma delas, diz-se, encimada por uma mesquita imperial); os bairros de Galata e Pera, a norte do Corno de Ouro, também se ergueram sobre e em redor de uma colina, pelo que são frequentes as construções em terraço e as escadarias; finalmente, a parcela asiática também não foge à regra, descendo pela encosta de colinas até ao mar. 5
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ANÁLISE HISTÓRICA
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Fig. 3: Carta da Trácia Antiga, de 1585
Fig. 4: Representação da civilização fenícia
FUNDAÇÃO DA CIDADE _ PRIMEIRAS OCUPAÇÕES Os primeiros vestígios de ocupação humana da região de Istambul datam do 6º Milénio a.C., e respeitam aos trácios, um povo indo-europeu, que se instalou nos territórios das actuais Bulgária, Roménia, Grécia e Turquia, entre outras. A sua presença é mais notória no lado europeu de Istambul (fig. 3). No lado asiático, a ocupação foi feita pelos fenícios e os vestígios encontrados são ligeiramente mais recentes, datando do 1º Milénio a.C.. Não obstante a insuficiência da informação disponível, pensa-se que se trataria de um entreposto comercial. Também no caso de Lisboa, certos achados arqueológicos sugerem a presença dos fenícios a partir de 1200 a.C. (fig. 4). Pensa-se que teriam ocupado a zona do Castelo de S. Jorge e de Alfama, tendo sido descobertos vestígios seus sob a Sé de Lisboa, datados do século VIII a.C..
Entretanto, na península a Sul do Corno de Ouro, é, no século VII a.C., fundada uma colónia grega. A origem desta colónia, que se assinala como o primeiro tecido urbano documentado na região, confunde-se com a lenda. Diz-se que Bizas, rei de Megara, terá consultado o Oráculo de Delfos, com o intuito de identificar o local ideal para a fundação de uma nova cidade, e que o Oráculo lhe terá sugerido que procurasse o lado oposto à «cidade dos cegos». Com esta informação, Bizas atravessou o Mar de Marmara e desembarcou na costa asiática, numa povoação grega incaracterística, de nome Chalcedon. De lá, Bizas observou o Bósforo e reparou numa península da outra banda com a topografia e a localização ideais, nomeadamente para
efeitos defensivos. Ficou, na verdade, tão maravilhado com as características do local, que, estranhando a desinteressante escolha dos colonos de Chalcedon, logo considerou ser esta a «cidade dos cegos» de que o Oráculo lhe falara. Bizas partiu, de imediato, para a outra margem do Bósforo e fundou a cidade de Bizâncio em 658 a.C.. O seu desenvolvimento neste período seguiu os padrões habituais das ocupações gregas: uma acrópole no ponto mais elevado e a zona residencial descendo as encostas até ao rio (fig. 5). No caso de Lisboa, existe também uma lenda sobre a sua fundação pelo herói grego Ulisses, que, diz-se, aqui teria desembarcado no caminho para Ítaca. O nome grego da cidade, Olisipo, derivaria assim do nome dessa personagem mítica. Na realidade, pensa-se que os gregos terão estabelecido na foz do Tejo um entreposto comercial, mas que a sua presença terá sido abreviada pelo crescente poderio cartaginês na região.
Bizâncio não prosperou sob o domínio grego. A região foi, desde logo, muito cobiçada, e as guerras em que os gregos se envolveram recorrentemente com outros povos (persas, macedónios, romanos) não propiciaram o desenvolvimento da cidade. Bizâncio prosperou, sim, sob o domínio romano, que se iniciou no século II a.C.. A sua aliança com Roma proporcionou-lhe o reconhecimento como «cidade livre» e uma representação no 8
Fig. 5: Mapa de Bizâncio, de 1784
FUNDAÇÃO DA CIDADE _ PRIMEIRAS OCUPAÇÕES (cont.) Senado. No século seguinte, contudo, a cidade sofreu com a ruptura de certas alianças e a invasão de forças de partidos em conflito, que a sujeitaram a um cerco e à destruição parcial das muralhas (Muralhas de Severo, que delimitam a parte mais antiga da cidade) e de alguns monumentos. Seguiu-se a divisão do Império por Diocleciano em quatro regiões - duas a Ocidente e duas a Oriente -, e a emergência de Constantino, sucessor do primeiro, que conseguiu sobrepor-se às rivalidades e reunificálo de novo. Os romanos também chegam a Lisboa por volta do século II a.C., com a conquista de Olisipo. Ocupam uma estrutura urbana já existente, que se desenvolve em anfiteatro desde a colina do Castelo até cerca da actual Rua Augusta (fig. 6). No tempo de Diocleciano, Lisboa era já a capital da Lusitânia e contava com teatro, termas, torres, pedras votivas (S. Gens), numerosas praças e mercados, e, junto ao Tejo, uns estaleiros navais.
Fig. 6: Ocupação romana de Lisboa, Lissibona
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Fig. 7: Intervenções do Imperador Constantino
Fig. 8: Vestígios romanos em Lisboa
CONSTANTINO Constantino I, também conhecido como Constantino, o Grande, que reinou entre os anos 272 e 337 d.C., teve um papel decisivo no desenvolvimento urbano de Istambul. Depois de reunificar o Império, Constantino, atraído pelo Oriente, decidiu escolher Bizâncio para sua nova capital, porque ficava no centro geográfico de todo o Império Romano, tinha uma posição estratégica privilegiada e excelentes potencialidades portuárias. Em 330, oficializa a situação, e a cidade é rebatizada como Nova Roma. Mas já então é conhecida pelo nome que perduraria até ao século XX: Constantinopla, ou «Cidade de Constantino». Constantino dá início a um processo intenso de reconstrução (fig. 7). A cidade antiga é praticamente arrasada, mantendo-se apenas alguns vestígios do centro grego. Constantino aplica-lhe os padrões de urbanização romanos: a cidade desenvolve-se ao longo de duas vias principais, mais ou menos perpendiculares entre si (Norte-Sul e Este-Oeste), e a organização da malha urbana é relativamente regular. Com o processo terminado, Constantinopla passa a ocupar uma área quatro vezes maior do que a de Bizâncio. Espraia-se pelas sete colinas; divide-se em catorze distritos; tem avenidas largas, ladeadas de estátuas de imperadores romanos; a sua via principal - a Mese - de orientação Este-Oeste, une os vários fóruns da cidade, termina nas Muralhas de Constantino e exibe, no cruzamento com o outro eixo viário principal (Norte-Sul), um arco de quatro direcções, uma praça rectangular, uma biblioteca e dois templos; o antigo circo é convertido num monumento de homenagem ao Império
e o hipódromo é aumentado para acolher grandes corridas de quadrigas; é criada uma rede de abastecimento de água desenvolvida ao longo de diversos aquedutos e cisternas; e são construídas várias igrejas cristãs, mantendo-se, embora, a antiga acrópole com os seus templos pagãos.
A refundação da cidade ficará na História como um dos feitos mais duradouros de Constantino. De tal forma, que a cidade irá tornar-se o centro da cultura grega e cristã durante os séculos seguintes. Lisboa também viveu um período de alguma prosperidade sob o Império Romano, embora a uma escala inferior a Constantinopla. Pensa-se que a sua urbanização terá obedecido aos mesmos padrões, alinhando-se pelos típicos eixos viários Norte-Sul e Este-Oeste, que se cruzariam na zona da Sé, onde se situaria o Fórum. A cidade contava com umas Termas (na Rua da Prata), os Banhos dos Cássios e o Teatro Romano de Olisipo, na área da Sé (fig. 8).
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Fig. 9: Invasão Bárbara do Império Romano do Ocidente, no século IV
IMPÉRIO BIZANTINO Depois da morte de Constantino, a cidade foi crescendo em dimensões e importância económica e política, embora de uma forma descontínua que alternava momentos de prosperidade com momentos de decadência. Um dos momentos de prosperidade deveu-se ao neto de Teodósio, o Grande (o imperador que, no século IV, reconheceu o Cristianismo como religião oficial do Império). Com Teodósio II, Constantinopla ultrapassa os limites definidos pelas muralhas de Constantino e atinge a linha das novas muralhas, Muralhas de Teodósio, dotadas de 40 pés de altura e 16 de largura. Sabe-se que a cidade muralhada por Constantino era densamente habitada, mas sobre a porção acrescentada por Teodósio pouco se sabe. Julga-se que a área terá tido durante muito tempo uma ocupação escassa e desorganizada. Incluía um cemitério na sétima colina e três cisternas ao ar livre de grandes dimensões. Em 413, Constantinopla ocupava a mesma área que vem a ocupar no século XX. Na verdade, não se limitava ao espaço demarcado pelas muralhas, mas era uma conurbação, tal como a Istambul dos nossos dias: incluía o subúrbio de Hebdomon a oeste, o subúrbio de Sycae (Galata) a norte do Corno de Ouro e a cidade independente de Chalcedon no lado asiático. Em 476, Roma é invadida pelos bárbaros, provocando a Queda do Império Romano do Ocidente. Constantinopla, que gozava,
na altura, de uma relativa estabilidade, cresce então em glória e poder e torna-se a capital do Império Romano do Oriente, ou Império Bizantino, assumindo, em alguns períodos da Idade Média, a condição de maior metrópole do mundo.
Já Lisboa, integrada no Império Romano do Ocidente, é sucessivamente invadida e ocupada pelos alanos, suevos e visigodos, vivendo um período que se supõe de destruições e pilhagens (fig. 9). A cidade estagna, só vindo a recuperar importância e estabilidade uns séculos mais tarde, com os mouros.
No século VI, no tempo do imperador Justiniano, Constantinopla ronda os 300.000 habitantes. A sua vida, porém, é marcada por alguns conflitos externos e internos, nomeadamente, revoltas políticas. Uma delas, designada de «Nika», provoca grandes destruições, incluindo o incêndio da Igreja de Santa Sofia, na sequência do que o imperador procura recuperar a cidade como centro da civilização. Assim, logo 20 dias depois do incêndio, Justiniano ordena a reconstrução da Hagia Sophia, a uma escala monumental. Manda também construir uma «promenade» à beira-mar e 33 igrejas cristãs. Os séculos VIII e IX correspondem a um período de claro declínio, agravado pela peste de 747 e pelo terramoto de 869. A área habitada reduz-se consideravelmente, a maior parte dos edifícios de entretenimento, com excepção do Hipódromo, desapa11
Fig. 10: Carta de Constantinopla, no século VII, feita em 1786
IMPÉRIO BIZANTINO (cont.) recem, os banhos públicos degradam-se ou são reconvertidos e a vida pública divide-se entre as igrejas e os mercados. Constantinopla conhece, dois séculos mais tarde, novo período de expansão e prosperidade, graças à intensificação das relações comerciais com Veneza. A cidade ganha em cosmopolitismo, embora não se lhe identifique nenhum padrão de desenvolvimento urbano. Registam-se, neste período, a fundação de vastas e ricas abadias imperiais, mosteiros urbanos e orfanatos, e o crescimento das colónias latinas mercantis das margens do Corno de Ouro.
quência da invasão muçulmana, em 711, são recuperadas as defesas da cidade com o reforço das muralhas (construção da Cerca Moura, ou Cerca Velha), e Lisboa transforma-se de acordo com o modelo das aglomerações muçulmanas. A sua prosperidade e beleza fazem com que Lisboa se torne, neste período, um alvo cobiçado pela Reconquista Cristã, que ainda terá, contudo, de esperar uns séculos.
Seguiu-se, dois séculos mais tarde, um momento de expansão e alguma prosperidade, graças à intensificação das relações comerciais com Veneza. A cidade ganhou em cosmopolitismo, apesar de não se identificar nenhum padrão no desenvolvimento urbano. Detectam-se, no entanto, algumas tendências, nomeadamente, a fundação de vastas e ricas abadias imperiais, mosteiros urbanos e orfanatos, e o crescimento das colónias latinas mercantis nas margens do Corno de Ouro (fig. 10 e 13). Lisboa, entretanto, florescia sob o califado do Ocidente. Na se-
Fig. 11: Ocupação muçulmana de Lisboa
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Fig. 12: Hagia Sophia, reconstruída em 537
Fig. 13: Mapa esquemático de Constantinopla, no período Bizantino
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Fig. 14: Invasão de Constantinopla pela Quarta Cruzada, em 1204
Fig. 15: Conquista de Lisboa aos mouros, em 1147
DECLÍNIO E QUEDA DO IMPÉRIO ROMANO DO ORIENTE A situação de Constantinopla muda drasticamente no século XIII, mais concretamente, em 1203, com a chegada da Quarta Cruzada (fig. 14). Este exército, ironicamente cristão, saqueia, pilha e ocupa a metrópole, dispersando e destruindo a riqueza e a cultura acumuladas de vários séculos. Constantinopla tornase então a capital de um novo império, o Império Latino. Mas ao cabo de seis décadas é recuperada pelos gregos ortodoxos, chefiados por Miguel VIII Paleólogo, que reinstaura o Império Bizantino. No entanto, a cidade está tão enfraquecida, que não volta a ser a mesma, ressentindo-se, nomeadamente, da vulnerabilidade do seu sistema defensivo. Para ainda agravar mais o quadro, é atingida, no século XIV, pela Peste Negra, que lhe rouba mais de 100.000 habitantes, tornando o declínio da economia do estado irreversível. Entretanto, o império otomano, em clara expansão, avança pelo lado asiático e já tem estabelecida uma capital em Niceia. O objectivo é a ocupação da outra margem e a invasão de Constantinopla. Segue-se, por isso, um período de cercos sucessivos e de corte das linhas de abastecimento da cidade, cada vez mais isolada. Finalmente, com a morte do último imperador bizantino, Constantino XI, Mehmed II, o Conquistador, consegue quebrar as defesas da cidade, tomá-la e declará-la a nova capital do Império Otomano. Este acontecimento, ocorrido em 29 de Maio de 1453, é considerado pela maioria dos historiadores como o marco do fim da Idade Média.
Afonso Henriques no esforço de conquista da cidade aos mouros, embora pelo preço de muita pilhagem e destruição (fig. 15). As muralhas existentes foram desmanteladas e depois reconstruídas, em reforço das defesas da cidade contra o regresso dos muçulmanos.
Com o estabelecimento da corte em Lisboa, a cidade vive um período de desenvolvimento urbano, relacionado essencialmente com a implantação estratégica de certos edifícios (mosteiros, palácios, igrejas) capazes de «gerar» cidade à sua volta. A sociedade lisboeta é eclética: nela, cristãos, muçulmanos e judeus coabitam pacificamente. A expansão da cidade vai-se fazendo, como em Constantinopla sob Constantino e Teodósio, à sombra das muralhas. No caso de Lisboa, a Cerca Velha, do séc. XII, e a Cerca Fernandina, do séc. XIV (fig. 17). Cumpre ainda referir que o declínio e queda de Constantinopla coincidem, temporalmente, com o início da fase áurea de Lisboa movida pela grande empresa dos Descobrimentos.
Lisboa, ao contrário de Constantinopla, terá beneficiado da passagem dos Cruzados junto ao Tejo. Este exército auxiliou D. 14
Fig. 16: Gravura mais antiga de Constantinopla, do cart贸grafo Cristoforo Buondelmonti, de 1422
Fig. 17: Mapa das muralhas de Lisboa
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Fig. 18: Domínio do Império Otomano, em 1453
Fig. 19: Palácio Topkapi
IMPÉRIO OTOMANO CRESCIMENTO E APOGEU (1453 - 1683) Os primeiros anos do Império Otomano, sob Mehmed II, o Conquistador, foram caracterizados por um intenso período de reconstrução de Constantinopla. A cidade tinha de ser a imagem do império (fig. 18). Era também urgente reforçar-lhe as defesas, dado o seu acidentado historial. Mas sobretudo, Mehmed queria fazer da cidade um símbolo do seu poderio, da sua autoridade e das suas orientações políticas e culturais. A população aumentou e a sociedade tornou-se mais tolerante (juntando muçulmanos, cristãos, judeus e arménios), mas mais hierarquizada. Alguns monumentos foram reabilitados, outros construídos sobre velhas ruínas. Assim, o Palácio Topkapi (fig. 19) substituiu a antiga acrópole grega, e o Grande Bazar instalou-se no centro da península histórica. Criou-se uma rede de escolas, hospitais e balneários públicos, e procurou reabilitarse o melhor das civilizações que por ali tinham passado (romana, grega, bizantina). Apesar disso, os relatos existentes sobre as condições de vida na cidade apresentam fortes discrepâncias consoante a sua origem. Nos documentos oficiais, Constantinopla é descrita como uma cidade sem igual, onde se vivia e trabalhava confortavelmente, sob a tutela pacífica do Sultão. Na perspectiva da população, as condições seriam bem menos risonhas, sendo excessiva a hierarquização social. Fora das muralhas, as condições eram as mais degradadas. Em termos de organização urbana, a cidade apresentava nesta
altura uma malha orgânica sem aparentes princípios geométricos, em que o desenvolvimento era espontâneo, sem premeditação formal, funcional ou simbólica, nem qualquer consciência da cidade como um todo. O momento de maior glória do Império Otomano deu-se sob o Sultão Süleymaniye. Houve tentativas de expansão do território, tanto por terra como por mar, tanto pela Europa como pelo Norte de África. Houve, simultaneamente, uma crescente rivalidade ao nível das rotas marítimas, com Constantinopla a dominar ainda a rota Mar Negro—Mar Egeu—Mar Mediterrâneo, e Portugal a descobrir as rotas dos Oceanos Atlântico e Índico e do Mar Vermelho. O resultado desta disputa veio a reverter a favor de Lisboa, que entrou assim no seu apogeu com o sucesso dos Descobrimentos Portugueses (fig. 20). Nos séculos XV e XVI, sob o reinado de D. Manuel I, Lisboa vive grandes transformações sociais e económicas, que fazem dela a capital da Europa.
A nível urbano, Lisboa expande-se e monumentaliza-se. O seu coração desce a colina do Castelo e instala-se no Terreiro do Paço. Realizam-se inúmeros trabalhos de restauro por toda a cidade (também estes, como em Constantinopla, para melhorar a imagem do Estado) e a cidade expande-se extramuros, galgando a Cerca Fernandina e alongando-se pela margem do Tejo desde o Bairro Alto até Belém (fig. 21). Lisboa é considerada, nesta época, uma cidade rica, luxuosa, cosmopolita e exótica. 16
Fig. 20: Gravura da cidade de Lisboa, no tempo dos Descobrimentos
Fig. 21: Vista panorâmica da cidade de Lisboa, no sÊculo XVI
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Fig. 22: A cidade de Constantinopla, em 1739
Fig. 23: Gravura da cidade de Lisboa, nos finais do Séc. XVII
IMPÉRIO OTOMANO (cont.) Entretanto, em Constantinopla, e ainda sob os auspícios do Sultão Süleymaniye, entra em cena uma personagem importante para o desenvolvimento artístico da cidade: o arquitecto Mimar Sinan, também conhecido como o «Miguel Ângelo do Oriente». Mimar Sinan é o principal impulsionador do classicismo na arquitectura otomana, com influências persas, bizantinas e cristãs. Foram construídos, neste período, cerca de 300 edifícios, dentro dos quais se destacam, em primeiro lugar, os palácios e as mesquitas. Este momento de intensa construção urbana poderá ter sido provocado, também, pela destruição ocorrida uns anos antes, com o grande sismo de 1509, também chamado, correntemente, por «Pequeno Juízo Final». Este sismo teve uma magnitude tal, que destruiu mais de 2.000 casas e 100 mesquitas, e tirou a vida a mais de 10.000 pessoas. No entanto, a meados do século XVI e até ao século XVII, o pensamento alterou-se, e iniciou-se um período de estagnação, de forma a manter o que se tinha e não investir no que se poderia ter. Apesar disso, Constantinopla continuou a ser uma cidade muito procurada e a população chegou quase aos 30.000.000 de habitantes. Deixou, naturalmente, de ter resposta para o alojamento de tantas pessoas.
ESTAGNAÇÃO E REFORMA (1683 - 1822) O momento de estagnação referido estendeu-se ainda por muitos anos, e caracterizou-se, essencialmente, por um aumento de pressão, externa e interna, tanto das civilizações ocidentais, que começavam a ganhar poder e importância (com o Renasci-
mento), como de revoltas internas e descontentamento da população. O resultado reverteu-se numa alteração da visão estratégica da cidade, que deixou de ser expansiva, para se tornar mais defensiva. Além disso, para agravar a situação, a cidade foi assolada pelo grande sismo de 1766, com resultados desastrosos: 5.000 mortos, destruição de algumas mesquitas importantes e graves danos nas infraestruturas da cidade. Em paralelo, exactamente 11 anos antes, Lisboa sofreu também um grande sismo, o conhecido Terramoto de 1755. Antes disso, Lisboa vivia um período de alguma prosperidade, sob uma sucessão governamental muito diversificada. Em primeiro lugar, no século XVI, o domínio filipino provocou algumas transformações na cidade, das quais se assinalam as alterações feitas ao Terreiro do Paço e a construção do Torreão de Filipo Terzi (fig. 23). Em segundo lugar, no século XVII, D. Pedro II preocupou-se com o espaço público e a infraestruturação da cidade. E em terceiro e último lugar, D. João V e o ouro do Brasil construíram muitas e grandes obras, como o Aqueduto das Águas Livres e o Convento de Mafra, e definiram novas avenidas e ruas, como a ligação do Terreiro do Paço a Belém. Com o terramoto, Lisboa conheceu, de facto, o seu ponto mais baixo em termos urbanos. E só conseguiu reverter a situação sob o punho do Marquês de Pombal. Foi nesta altura que surgiram os planos pombalinos e que foi reconstruída a Baixa da cidade. 18
Fig. 24: Mapa de Constantinopla, em 1893
Fig. 25: Plano Geral de Ressano Garcia, em 1903
IMPÉRIO OTOMANO (cont.) A título de curiosidade, é interessante referir que Voltaire, o poeta francês, escreveu, por esta altura, dois poemas, um sobre o desastre de Constantinopla, o outro sobre o desastre de Lisboa.
do Passeio Público e a definição posterior da Avenida da Liberdade; introduzia-se a linha férrea e novos espaços públicos ajardinados; e havia, no geral, uma tentativa de ocidentalizar a cidade, à semelhança dos «planos haussmanianos» de Paris, de desenhar novas avenidas e novas redes de transporte.
DECLÍNIO E TENTATIVA DE MODERNIZAÇÃO (1822 - 1908) Com a entrada no século XIX, iniciou-se um processo de tentativa de modernização da cidade, segundo os padrões ocidentais. O crescimento da população continuava, devido à perda de território e ao êxodo resultante da mesma, e havia dificuldade em albergar tanta gente. Com isso, Constantinopla entrou no chamado Período Tanzimat (que significa reestruturação em árabe), caracterizado por um conjunto de esforços de reforma e reorganização do espaço urbano. Algumas das iniciativas deste período foram: a construção das pontes sobre o Corno de Ouro, a integração na rede ferroviária europeia (em 1880), a criação da primeira linha ferroviária subterrânea do mundo (em 1875), a abertura de praças e avenidas, o desenho de redes de distribuição de água, electricidade, telefones e eléctricos, a construção de academias e universidades modernas e a expansão da cidade, sobretudo no distrito de Galata e ao longo do Corno de Ouro. Ao mesmo tempo, em Lisboa, também se vivia um período de reforma urbana, com Ressano Garcia, e de modernização e industrialização, com Fontes Pereira de Melo. Colocava-se a questão da expansão da cidade para Norte, com o aparecimento
Apesar dessa tentativa de modernização, a diminuição e a perda de poder do Império Otomano no mundo, levou a um inevitável declínio da cidade de Constantinopla. O império perdia território em todas as frentes e não havia estabilidade administrativa. O crescimento desmesurado da população tinha levado à construção de habitação ilegal, maioritariamente em madeira, em zonas industriais (o Gecekondu, ou a favela turca), cuja falta de condições levara ao desencadeamento de sucessivos incêndios, impossíveis de controlar, que, no final do século XIX, já tinham ardido cerca de 1/5 de Constantinopla. A realidade é que, antes de entrar no século XX, a cidade era conhecida como o «Homem Doente da Europa».
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Excerto do Poema sobre o desastre de Constantinopla (Poème sur le tremblement de terre de Constantinople), Voltaire
(…) Ó infelizes mortais! Ó deplorável terra! Ó agregado horrendo que a todos os mortais encerra! Exercício eterno que inúteis dores mantém! Filósofos iludos que bradais «Tudo está bem»; Acorrei, contemplai estas ruínas malfadas, Estes escombros, estes despojos, estas cinzas desgraçadas, Estas mulheres, estes infantes uns nos outros amontoados Estes membros dispersos sob estes mármores quebrados Cem mil desafortunados que a terra devora, Os quais, sangrando, despedaçados, e palpitantes embora, Enterrados com seus tetos terminam sem assistência No horror dos tormentos sua lamentosa existência! Aos gritos balbuciados por suas vozes expirantes, Ao espectáculo medonhos de suas cinzas fumegantes, Direis vós: «Eis das eternas leis o cumprimento, Que de um Deus livre e bom requer o discernimento?» Direis vós, perante tal amontoado de vítimas: «Deus vingou-se, a morte deles é o preço de seus crimes?» Que crime, que falta cometeram estes infantes Sobre o seio materno esmagados e sangrantes? Lisboa, que não é mais, teve ela mais vícios Que Londres, que Paris, mergulhadas nas delícias? Lisboa está arruinada, e dança-se em Paris.(…)
Excerto do Poema sobre o desastre de Lisboa (Poème sur le desastre de Lisbonne), Voltaire
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Fig. 26: Kemal Atatürk
Fig. 27: Plano Director de Henri Prost, no lado europeu de Istambul, 1943
SÉC. XX E ACTUALIDADE INÍCIO DO SÉCULO XX _ FUNDAÇÃO DA REPÚBLICA Como já foi referido no capítulo anterior, os esforços de modernização da cidade não foram suficientes para evitar o declínio do regime imperial. Dessa forma, no início do século XX, assistiu-se à Revolução dos Jovens Turcos, que depuseram o sultão regente na época, e a uma crescente degradação da capital, devido a sucessivas e intermitentes guerras com países estrangeiros. A maior dessas guerras foi a I Guerra Mundial, em 1914, que levou à ocupação de Constantinopla por parte das tropas britânicas, francesas e italianas. O último sultão otomano, Mehmed VI, foi deposto e exilado em Novembro de 1922 e, em 1923, foi assinado o Tratado de Lausanne, no qual se instituiu a República da Turquia, sob a liderança de Kemal Atatürk, um revolucionário nacionalista (fig. 26). Subsequentemente, a sede do governo foi estabelecida em Ankara, uma cidade mais central da Turquia, por motivos estratégicos e simbólicos. Constantinopla, que, nesta altura, já detinha o nome definitivo de Istambul (que significava «cidade do Islão»), sofreu, consequentemente, um crescente descuramento. Em Lisboa, o início do século XX conheceu também alguma atribulação. Foram os últimos anos da monarquia portuguesa, seguindo-se-lhe a Implantação da República, em 1910.
CONCENTRADO VS ZONAMENTO (20’, 30’, 40’) Apesar disso, dez anos mais tarde, foi lançado um concurso para o planeamento urbano de Istambul, já que a modernização
da velha capital continuava a ser uma prioridade do novo regime. Como modelo, foram seguidos os vários exemplos que surgiram no mundo ocidental, na viragem para o século XX, frutos do processo de industrialização. E como o crescimento populacional se encontrava num período de alguma recessão, o plano centrou-se principalmente na modernização do tecido urbano, procurando, ao mesmo tempo, uma adequação do mesmo às novas necessidades sociais. De França, foram convidados à participação do concurso DonatAlfred Agache e Henri Prost (fig. 30). O último acabou por rejeitar o convite, por estar ocupado com o plano da área metropolitana de Paris. No entanto, foi novamente convidado em 1935, pelo próprio presidente de Istambul. E como conhecia bem a cidade, tendo-a visitado algumas vezes entre 1904 e 1911, aceitou imediatamente. O plano de Prost para Istambul (fig. 27) envolveu um período de 15 anos de planeamento, ao longo dos quais realizou diversos estudos. O Plano Director elaborado, o final, subdividia-se por dois planos separados e à escala 1:5.000: eram o «Old Istambul Plan» e o «Plano Galata-Pera». Devido ao decrescimento da população nos anos 30, à rápida expansão na periferia e aos diversos incêndios que assolaram a cidade, Istambul enfrentava problemas de circulação e áreas urbanas desqualificadas, sobretudo na parte antiga. Perante este cenário, Prost concluiu que o Plano Director de Istambul teria de seguir uma lógica de «CONCENTRAÇÃO urbana», dedicada quase exclusivamente à requalificação da zona histórica. Esta 21
Fig. 28: Plano Director Municipal de F. Folque, 1911
Fig. 29: Plano Director Municipal de Étienne de Groer, 1928-48
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Fig. 30: Henri Prost (1874 - 1969)
Fig. 31: Duarte Pacheco (1900-1943)
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Fig. 32: Adnan Menderes (1899 - 1961)
Fig. 33: António de Oliveira Salazar (1889 - 1970)
SÉC. XX E ACTUALIDADE (cont.) continuaria a ser um centro de aglomeração, mas medidas seriam tomadas para facilitar a circulação motorizada. As preocupações centrais de Prost foram, assim, a problemática do transporte, da higiene e da estética, e procurou transformar a estrutura da cidade existente de forma a melhorar as infraestruturas de transporte e implementar um sistema de espaços verdes. Como resultado, conseguiu criar novos centros urbanos (como a Inonu Esplanade - fig. 34), novas avenidas (como a Av. Atatürk - fig. 36) e novas praças (como a praça Fatih - fig. 38). Em paralelo, Lisboa vivia também uma fase de desenvolvimento urbano planeado, a começar com o Plano Director Municipal de Étienne de Groer (fig. 29), que se baseava numa lógica de ZONAMENTO da cidade e expansão a Norte, e a terminar com a figura de Duarte Pacheco (fig. 31), que teve um papel essencial ao planeamento de Lisboa inteira. Quanto a resultados concretos, enumeram-se o Instituto Superior Técnico (fig. 35), projectado pelo arquitecto Pardal Monteiro, como um novo centro urbano, o estudo para o prolongamento da Avenida da Liberdade (fig. 37), realizado por Cristino da Silva, como uma nova avenida, e o desenho da Praça do Areeiro (fig. 39), também de Cristino da Silva, como uma nova praça.
ANOS 50’, 60’, 70’ Quando chegou aos anos 50, Istambul teve uma grande explosão demográfica, chegando a ter um aumento de quase 9 milhões de pessoas. Consequentemente, o problema da construção ilegal, o Gecekondu, agravou. Em simultâneo, começavam a surgir duas linguagens arquitectónicas distintas, uma de cariz moderno e mais internacional, outra em conjugação com o novo regime político, de carácter ditatorial. Era uma arquitectura mais tradicional e de fundamentos nacionalistas. A ditadura, liderada por Adnan Menderes (fig. 32), dedicou-se, por muitos anos, à resolução dos problemas atrás referidos, relacionados com a habitação. É também de assinalar, neste período, uma intensificação das relações entre as duas margens do Bósforo, que se reflectiu, tanto no claro desenvolvimento urbano do lado asiático (principal local de proliferação do Gecekondu), como na construção da primeira ponte sobre o Bósforo, em 1973, que, na verdade, foi a primeira ponte a ligar dois continentes. Em Portugal, curiosamente, o regime político ditatorial coincidiu temporalmente com o de Istambul. Foi ele a ditadura militar de António de Oliveira Salazar (fig. 33), que durou quase 50 24
Fig. 34: Inonu Esplanade, de 1940
Fig. 35: Instituto Superior TĂŠcnico, de Pardal Monteiro, 1927 - 34
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Fig. 36: Construção da Av. Atatürk, 1941 - 42
Fig. 37: Estudos para o prolongamento da Av. Da Liberdade, de Cristino da Silva, 1933 - 36
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Fig. 38: Estudos para a Praรงa Fatih, por Henri Prost
Fig. 39: Praรงa do Areeiro, 1938 - 52
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Fig. 40: Suzer Plaza, de Gokkafes
Fig. 41: Complexo das Amoreiras, de Tomás Taveira, 1985
SÉC. XX E ACTUALIDADE (cont.) anos. Terminou, como se sabe, em 1974, com a Revolução do 25 de Abril.
de negócios também se deslocou, para Norte, para a zona das Avenidas Novas e da Praça de Espanha.
O período salazarista caracterizou-se por um intenso desenvolvimento da cidade de Lisboa, a vários níveis; em particular, no campo expansivo, em que Lisboa teve o seu grande «boom» de crescimento urbano. Perto dos últimos anos do regime, os problemas com a habitação sentidos em Istambul, também se fizeram sentir em Lisboa. Foi devido a isso que surgiram as operações SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local), lideradas pelo arquitecto Nuno Portas e extendendo-se apenas por dois anos (1974 – 76), que se dedicaram, principalmente, à construção de novos bairros de habitação social, em comunhão directa com as populações. São disso exemplo, entre muitos outros, o Bairro do Restelo, de Faria da Costa e o Bairro do Alto dos Moinhos, de Silva Dias.
Nos dias de hoje, ambas as cidades levantam o mesmo tipo de problemas e o mesmo tipo de questões urbanas. Alguns dos temas «em cima da mesa» são o tema da mobilidade e da circulação automóvel, e o tema da reformulação de zonas desqualificadas da cidade. Mas, enquanto em Istambul, apesar de existirem planos, estes ainda não foram postos em prática, em Lisboa, já se deu resposta a esse problema. Há o exemplo da EXPO 98’ (fig. 43), que ainda hoje é um símbolo de sucesso da requalificação de uma antiga área industrial num novo centro urbano.
ANOS 80’, 90’ E SÉC. XXI Os anos 80 de Istambul caracterizaram-se por um «boom» capitalista e pela introdução do pós-modernismo na arquitectura turca. É exemplo dessa arquitectura o edifício Suzer Plaza, de Gokkafes (fig. 40), localizado numa área mais a norte da cidade. Área essa que se tornou, nestes anos, o novo centro de negócios de Istambul. Em comparação, Lisboa também viveu a mesma fase capitalista, a mesma arquitectura pós-modernista, personificada no Complexo das Amoreiras, de Tomás Taveira (fig. 41). O centro
Fig. 42: Novo centro de negócios de Istambul, nos dias de hoje
Fig. 43: EXPO 98’
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ANÁLISE DA FRENTE RIBEIRINHA
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Fig. 44: Mapa esquemática de Constantinopla no século V d.C., com uma clara identificação dos portos da cidade
ISTAMBUL As primeiras referências a uma estrutura portuária em Istambul são do século IV, quando o imperador Constantino mandou construir as muralhas costeiras. Estas muralhas destinavam-se, tanto a garantir a defesa da cidade, como a organização dos portos. Os portos mais importantes da altura estavam localizados ao longo da margem do mar de Marmara, e contam-se, entre outros, o Porto de Theodosius, como porto militar, e o porto de Sophia, como porto comercial. Nas margens do Corno de Ouro, também existiam estruturas semelhantes, embora de menor escala: são elas o Porto Prosphorion e o Porto Neorion, ambos comerciais (fig. 44). Devido ao facto de a cidade ter sido, durante muitos séculos, cobiçada por povos estrangeiros, uma das grandes preocupações que os seus governantes tiveram, ao longo da sua história, foi o da modernização e reforço das muralhas. Essas intervenções consistiram essencialmente no aumento da sua dimensão, quer em altura quer em espessura, na construção de uma segunda linha de muralha, de torres, de portas, e de um sistema defensivo no Corno de Ouro. Sistema esse que era baseado numa corrente colocada à entrada do rio, ancorada de um lado ao outro das margens, cuja profundidade debaixo de água se ajustava e permitia impedir a passagem de barcos inimigos, destruindo-lhes o casco.
foram constantemente restaurados e conservados. Tendo em conta a dimensão e a topografia, e os poucos aterros a que o território foi submetido, as muralhas costeiras da cidade desenharam, quase até aos dias de hoje, a linha de costa da península histórica.
Já no século XIX, parte da muralha foi destruída para albergar a nova linha ferroviária, e todos os principais portos da península foram aterrados e deslocados para os subúrbios da cidade. Mais recentemente, a linha de costa do Corno de Ouro foi ruralizada e adornada de diversos pequenos palácios burgueses, cujos proprietários procuravam um ambiente mais salubre, longe do interior das muralhas.
Durante o período otomano, as muralhas foram, em parte, desvalorizadas, devido ao facto de o perigo de invasão vir de terra e não da água. Exceptuam-se os muros que confinam o palácio Topkapi que, para garantir a privacidade do pátio do palácio, 30
Fig. 45: Porto de Lisboa, no séc. XV
Fig. 46: «Les delices de l’Espagne et du Portugal», Juan de Colmenar, 1707
LISBOA Relativamente a Lisboa, o porto sempre foi uma referência para a cidade. Foi desenvolvido desde muito cedo na sua história, e na altura de D. Afonso Henriques, a cidade e o porto eram duas realidades idênticas. Ou seja, o porto era a cidade e a cidade era o porto.
Uns séculos depois, no séc. XIII, foram inovadas as maneiras de navegar e o porto de Lisboa tornou-se um centro de construção naval. Mas foi com o período dos Descobrimentos, e o reinado de D. João I, que Lisboa se tornou uma grande metrópole mundial, em que a cidade era toda ela um grande mercado. Reforçou-se também nesta época a segurança e a vigilância da entrada do estuário do Tejo (fig. 45 e 46). Com o terramoto de 1755, foram destruídas uma série de construções, entre elas o Palácio da Ribeira, onde residia o rei D. João II e onde se encontrava a Casa da Índia, e iniciou-se um processo de reconstrução e reedificação da cidade, influenciado, principalmente, pela vida comercial do porto. No século XIX, com a invenção da máquina a vapor, a modernização do porto tornou-se uma grande preocupação do Estado. Sucederam-se, logo, estudos e projectos para a área, que culminaram com a inauguração, a 31 de Outubro de 1887, pelo rei D. Luís I, das «Grandes Obras» do porto de Lisboa. Estas «Grandes Obras» tinham como objectivo a regularização e requalificação das margens Santa Apolónia - Alcântara e Alcântara - Torre de Belém. Para tal, foram propostos diversos estudos de algumas personalidades da época. Foram eles:
1 Custódio Vieira, que previa o arranjo urbanístico da frente ribeirinha em espaço ganho ao Tejo, através de aterros, onde se construiriam edifícios e uma rede viária. 2 Júlio de Oliveira Pimentel, que propôs a construção de um bairro inteiramente novo, com grandes estabelecimentos e habitações saudáveis de grandeza decorativa e boas distribuições internas. 3 Pierre Joseph Pézerat, que publicou um estudo descritivo de diversos projectos de embelezamento da cidade, e de várias intenções urbanísticas, entre as quais se assinala o deslocamento do porto de Lisboa para a margem sul do Tejo. 4 Thomé de Gamond, que apresentou algumas propostas, como a criação de um grande porto comercial, o alargamento territorial da cidade a partir dos terrenos conquistados ao Tejo, a construção da linha de caminhos-de-ferro de Lisboa a Sintra e a colocação de numerosos espaços verdes e novos bairros, cuja malha regular seria interrompida por avenidas diagonais em direcção ao rio. Em 1871, uma comissão composta essencialmente por engenheiros, realizou um estudo sobre como intervir em áreas ganhas ao mar. As obras empreendidas na sua sequência compreenderam a execução de aterros, docas de abrigo, muros exteriores de acostagem, e equipamentos portuários como guindastes, linhas férreas e armazéns.
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CIDADE DAS
CIDADE DAS
7 COLINAS
7 COLINAS
MURALHA DE CONSTANTINO SÉC. IV A.C.
CERCA VELHA SÉC. XII
MURALHA DE TEODÓSIO SÉC. V
CERCA FERNANDINA SÉC. XIV
APOGEU IMPÉRIO OTOMANO SÉC. XV E XVI
APOGEU DESCOBRIMENTOS SÉC. XV E XVI
TERRAMOTO 1766
TERRAMOTO 1755
TENTATIVA DE MODERNIZAÇÃO SÉC. XIX
MODERNIZAÇÃO SÉC. XIX
AEROPORTO 1924
AEROPORTO 1942
PONTE SOBRE O BÓSFORO 1973
PONTE SOBRE O TEJO 1966
ISTAMBUL
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SÍNTESE COMPARATIVA
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LISBOA 32
CONCLUSÃO Após a elaboração do trabalho, a análise comparativa entre as cidades de Lisboa e Istambul, permitiu destacar de forma evidente factores comuns a qualquer cidade ribeirinha. Ainda assim, conseguiu perceber-se que estas duas cidades partilham bem mais do que isso, pois em vários momentos da sua história são recordadas por motivos alheios à sua localização topográfica. Curiosamente, ambas são conhecidas pela sua imensa luz natural, ambas são associadas às suas sete colinas e ambas são descritas, nos seus momentos áureos de descobertas marítimas, como cidades cosmopolitas, exóticas e com um certo aroma a especiarias.
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'«De nosso mirante, para além da descida dos ciprestes dos pequenos campos, via-se o chifre de ouro. Istambul pousa lá em baixo, uma larga barra de sombra que projecta contra o céu apagado as silhuetas das grandes mesquitas. Quando há lua a tivemos duas vezes -, o mar, avistado mais ao longe, liga com um fio molhado os minaretes aos minaretes, ao longo de toda a ondulada crista de trevas.» LE CORBUSIER, Viagem ao Oriente, 1911
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