Profissão Dona de casa

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profiss達o dona de casa

profiss達o dona de casa

Isabella Mar達o Perassollo

Isabella Mar達o Perassollo


Copyright 2018 © by Isabella Marão Perassollo Título Profissão Dona de Casa Redação e edição de texto Isabella Marão Perassollo Produção editorial Isabella Marão Perassollo Revisão Isabella Marão Perassollo e Angelo Sottovia Aranha Projeto gráfico e diagramação Isabella Marão Perassollo Fotografia Isabella Marão Perassollo e acervos pessoais Ilustração Anna Satie

Sumário Arrumando a casa Lavando a roupa Maria Aparecida Flávia Vânia Cleonice Jennifer Tirando o pó Agradecimentos

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Arrumando a casa

O que é ser mulher no Brasil? Essa pergunta pode ter inúmeras respostas, dependendo da região em que se viva, da classe social da mulher e das condições com as quais se insere na sociedade. Dependem, também, de uma série de outros fatores. Mas, entre todas as respostas, há uma certeza: ser mulher no Brasil não é tarefa fácil. Toda mulher carrega nas costas o peso de não ser homem em uma sociedade machista. É complicado ter que alcançar realização profissional, boa formação acadêmica, demonstrar educação impecável, dirigir bem, agradar o marido, educar filhos, manter as unhas feitas, administrar a casa, cuidar da família, não parecer vulgar, caprichar no tempero da comida e ainda estar feliz nas redes sociais. Elencando assim, os afazeres e obrigações parecem tantos que não caberiam nas 24 horas do dia. E, nessa correria, em que momento a mulher se dedicaria a si mesma? Pois é, apesar das múltiplas funções, a mulher não só faz tudo isso como também muito mais. Se for dona de casa e mãe, então, aí é que ela faz ainda mais coisas, como se desafiasse o tempo cronológico que parece lutar contra ela no relógio de parede da cozinha. 6


A maioria das mulheres não liga muito para o que está na agenda colada na geladeira, quase sempre vai além. Elas são fortes. Elas lutam contra os imprevistos do dia a dia, que podem ser muitos, e conseguem equilibrar rotinas pesadas em suas vidas corridas. E quando ela trabalha fora? Ah! Aí ela se fortalece para enfrentar a dupla jornada que vai transformar aquelas horinhas de folga em mais trabalho pesado, só que dessa vez dentro de casa. O fato é que, mesmo tendo aberto seu espaço no mercado de trabalho e conquistado um emprego, o que já representa uma vitória, ela ainda é a principal responsável pelas atividades do lar. E tudo isso veio com o tempo e tem um porquê. A industrialização da produção foi um dos fatores que influenciaram para a criação do termo ‘’dona de casa’’, e foi o feminismo do século XX que contestou o patriarcalismo, sistema em que o homem ocupa as funções de liderança. Contestou também o papel das mulheres na sociedade, resituando-as em diferentes lugares. Com isso, quando a mulher sai de casa para entrar no mercado de trabalho, ela quebra não só estruturas econômicas, como estruturas sociais e familiares. Embora essas conquistas tenham sido muito significativas, muitas mulheres decidiram ir na contramão desse novo universo feminino e optaram por ficar em casa, e elas têm motivos especiais para isso, que merecem nossa atenção e um olhar mais profundo.

Todas essas mulheres, as que trabalham fora, as que optaram por ficar em casa e as que estão em casa contra sua vontade, todas elas merecem ser respeitadas. É importante entender suas razões, seus porquês. É preciso compreender como são suas vidas, como elas percebem o reconhecimento pelo seu trabalho, quais são suas ambições, a representação e a importância que cada uma tem na sociedade. É preciso saber do que elas mais reclamam e quais são suas relações com o trabalho. E esse é um dos objetivos deste livro-reportagem, com o qual se espera, por meio de perfis de mulheres reais, autênticas, compartilhar com leitoras e leitores rotinas e problemas também reais. Por meio desses perfis, é possível conhecer um pouco da realidade das donas de casa no Brasil, para que se consiga reduzir a invisibilidade dos trabalhos tão essenciais que todas elas realizam diariamente.

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Lavando a roupa Não é difícil alguém se deparar com a cena de uma criança fazendo birra para uma mãe desesperada, em um supermercado, por exemplo. Naquela situação, a mãe tenta conciliar a lista de compras, a comparação de preços, as validades e o controle do filho, que grita e incomoda todos os que estão por perto. E, não raramente, aquela mulher tem a nítida percepção de que está sendo friamente julgada, e reprovada, pela malcriação do filho. Cenas como essa, tão comuns, acabam demonstrando um pouco como funciona a nossa vida em sociedade. Aquela mãe, com certeza, já sabia que as chances do filho fazer escândalos em meio às gôndolas de salgadinhos eram grandes, mas teve motivos para não deixá-lo em casa enquanto completava a exaustiva tarefa de abastecer a despensa da cozinha. Talvez não tivesse com quem deixá-lo, tivesse medo de ser acusada de abandono de incapaz se acontecesse um acidente, talvez não confiasse no filho sozinho em casa ou simplesmente não fosse capaz de se separar dele. Se a cena é tão corriqueira, por que, então, devemos prestar atenção nas situações vividas pela dona de casa e mãe? 10


Em rápida pesquisa sobre o termo ‘’dona de casa’’, no Google Imagens, encontram-se fotos e desenhos de mulheres realizando diversas tarefas ao mesmo tempo, algumas sorrindo de forma romantizada, enquanto outras estão com semblantes exaustos. Essa é a forma estereotipada como a sociedade vê a mulher que exerce essa profissão tão importante. Na mídia, a dona de casa é retratada de forma negativa ou fútil. A maioria das notícias narradas com o termo ‘’dona de casa’’ são associadas à prática de crimes ou a dicas de culinária. A veiculação de notícias sobre esses crimes contra parceiros reforça a ideia da dominação masculina, já que mesmo quando a mulher é ouvida na mídia ela nunca é protagonista, nunca tem sua própria voz, está sempre em segundo plano, por trás de algum homem. A profissão de dona de casa pode ser associada a sua invisibilidade. Para as mulheres que trabalham no núcleo familiar não há diferença entre trabalhar e viver, tudo acontece simultâneamente. O serviço é interminável, executado diariamente e de forma repetitiva, e só é notado quando não é feito. Essa falta de reconhecimento se deve, sobretudo, ao fato de que o trabalho da dona de casa é feito em âmbito privado, e quase sempre ao lado, muito próximo das pessoas. Isso faz com que a atividade seja vista como natural e pertinente ao sexo feminino. Por ser tão efêmero, a dona de casa muitas vezes pode sentir grande dificuldade para se identificar com seu

trabalho, que demanda planejamento, uma ordem lógica nas diversas etapas do trabalho para que seja eficaz e ainda depende de uma grande capacidade para fazer tudo ao mesmo tempo. Assim, fala-se na figura da famosa “mulher mil e uma utilidades”, mas esquece-se de pensar que muitas têm a sensação de que têm pouca utilidade. Lidar com um trabalho ao mesmo tempo intelectual, manual e afetivo é extremamente pesado para quem é oprimida como cidadã e como mulher. Além da invisibilidade da profissão, as donas de casa têm que lidar, mesmo que não se deem conta disso, com a estagnação e a sensação errônea de que terem todo esse trabalho é natural, de que devem aceitar essa condição simplesmente por serem mulheres. Esse pensamento, no entanto, deve-se ao machismo que está incorporado em nossa sociedade. Para se perceber essa situação basta imaginar um almoço de domingo em família. Em geral, quem fica responsável pela preparação da comida, pela arrumação da mesa e limpeza da louça na família brasileira? A mulher. É muito comum nas casas brasileiras o pensamento de que a filha é quem tem a obrigação de lavar a louça do almoço, mesmo que ela tenha um irmão mais velho ou que esteja ocupada com alguma outra tarefa. Isso não tem nenhuma lógica, mas questionar essa condição natural da mulher – como dona de casa – não é algo fácil, já que implica questionar os alicerces econômicos. A opressão da mulher não é só cultural, nessa

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atitude há uma base material. Com o homem trabalhando em serviços externos e a mulher trabalhando em casa, a sociedade paga valores extremamente baixos pelo custo de produção do trabalho da família como um todo, já que o que se produz internamente não é pago com dinheiro. Dessa forma, o trabalho em casa torna-se uma atividade de extrema importância para a economia do país, como registra María Angeles Duran, em seu livro “A Dona de Casa’’ (1983). O trabalho da dona de casa não entra diretamente na lógica do capital, mas tem uma grande importância social. São as mulheres, em casa, que convertem o capital econômico em capital simbólico. Apesar do ritmo do trabalho doméstico não depender da dinâmica da economia, é por conta da dona de casa que os outros membros da casa têm condições para realizar trabalhos externos. Outro ponto importante é que, ao contrário do que muitos podem pensar, a dona de casa não enfrenta as mesmas condições que a empregada doméstica. Apesar de ambas realizarem tarefas dentro da casa, a dona de casa faz isso para a sua unidade familiar e não é remunerada, enquanto a empregada doméstica realiza as tarefas para obter uma remuneração. Um estudo da professora de economia e vicepresidente da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (Abet), Hildete Pereira de Melo, comprovou que a Economia do Cuidado, para a qual concorre o trabalho da 13

dona de casa, representou 11% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil, cerca de 634,3 bilhões de reais, apenas no ano de 2015. O estudo, que visa mensurar o quanto vale o trabalho doméstico não remunerado, ainda não está completo pela falta de dados precisos do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) sobre quais são os afazeres que compõem a Economia de Cuidado. Ainda há muita falta de clareza sobre o tópico e pouca vontade dos órgãos públicos para fornecer dados sobre a situação da dona de casa no Brasil. Ainda de acordo com dados do IBGE destacados neste estudo, 82% das atividades domésticas no Brasil são realizadas por mulheres, enquanto 40% das casas no país são chefiadas por mulheres, o que evidencia que a jornada dupla faz parte da realidade da maioria delas. No entanto, essa dupla jornada feminina é ignorada, já que para o cálculo da População Economicamente Ativa (PEA) consideram-se apenas as mulheres que trabalham fora de casa. São ignoradas as mulheres que só trabalham no núcleo familiar e também as que, além do serviço doméstico, têm outros trabalhos remunerados para complementar a renda familiar. Enquanto isso, a rotina de trabalho doméstico realizado pela dona de casa brasileira pode chegar a mais de 34 horas por semana, também de acordo com o IBGE. Apesar de tidas como representantes do sexo frágil, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) aponta


que as mulheres trabalham pelo menos o dobro que os homens no mundo. Quando se observa isso no cenário brasileiro, a diferença no tempo de dedicação à casa pode ser assustadora. No mercado de trabalho, as mulheres brasileiras dedicam em média 36 horas por semana, e os homens 43 horas. Mas, quando se analisa a dedicação aos afazeres domésticos, verifica-se que elas dedicam cerca de 26 horas 14 semanais a esses afazeres enquanto os homens dedicam apenas 11 horas. No total, elas trabalham 62 horas semanais, e eles 54 horas. Mas, não se pode esquecer que esses dados são estatísticos. Na vida real os dados podem ser muito mais opressivos para elas. Contudo, mesmo trabalhando mais do que os homens, a dona de casa ainda não tem seu trabalho reconhecido. E a falta de remuneração é um fator decisivo para que isso ocorra, o que a impede de conhecer seus direitos, como o da aposentadoria, por exemplo. A dona de casa tem direito à aposentadoria, mas deveria ser maior o empenho de todos para que o processo de aposentadoria fosse mais acessível e menos burocrático. Além disso, depende de dinheiro, e por serem dependentes financeiramente muitas não costumam ter o dinheiro necessário. Faltam-lhes, também, os conhecimentos mínimos para que alguém consiga reivindicar o direito à aposentadoria. Por isso, ao contrário do que muitos imaginam, os novos papéis da mulher conquistados com o feminismo –

que ganhou força na década de 1970 – não a isentam da dupla jornada de trabalho. Ao menos, o movimento feminista ajuda as mulheres a contestarem a estrutura opressiva familiar, a criticarem o patriarcalismo e o sistema capitalista, no que se refere ao papel social da mulher historicamente. Seguindo a estrutura familiar tradicional, as meninas sempre foram condicionadas a crescerem pensando na maternidade e em casamento, a aprenderem a cozinhar cedo, a assumirem responsabilidades e a brincarem com bonecas ao invés de carrinhos. Elas até estudavam menos por já estarem condicionadas a ficar dentro de casa. Afinal, uma dona de casa não precisa de muita instrução para realizar serviços domésticos e cuidar da educação dos filhos. Pierre Bourdieu afirma no livro “A Dominação Masculina’’ (1998) que essas variáveis se mantêm, mesmo com a mudança histórica da condição feminina por causa dos mecanismos e instituições tradicionais. Ou seja, a dominação masculina e a submissão feminina estão mais arraigadas no Estado do que na unidade doméstica, na casa de cada família, já que é mais interessante e barato para o Estado a existência de donas de casa na sociedade.

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Agentes transformadoras da sociedade O movimento feminista chama a atenção para a significação econômica e política da dona de casa, e aponta a mulher como o grande agente transformador da vida


cotidiana. É a partir da unidade doméstica que é possível mudar as linhas de poder. No entanto, a própria dona de casa não percebe esse poder que tem por estar ocupada demais satisfazendo seus familiares e deixando a sua satisfação pessoal para depois, e só se for possível. Mas, o que representa a família? A família é um grupo social organizado pela função de reprodução, pela descendência e pela divisão social do trabalho (DURHAM, 1983). Família é a organização que prepara os indivíduos para viverem em sociedade e tem os mais variados tipos. Cada uma depende da dinâmica própria dos indivíduos que a compõem e nessas atividades se encontra o trabalho da dona de casa. Já no ambiente familiar ocorre a divisão sexual precoce do trabalho. No caso de donas de casas casadas e sem trabalho remunerado, o marido se torna um sócio em uma troca definida socialmente. Nas famílias mais modernas, os papéis do homem e da mulher são mais questionados, mas ainda assim predomina a dominação masculina. Como se o aprendizado viesse pelo ar, imperceptivelmente, a mulher aprende que cabe a ela cuidar da agenda de telefones da família e entrar em contato com parentes, lidar com familiares doentes, prezar pela educação dos filhos, ser a responsável pelo cuidado da casa e ainda controlar o orçamento familiar. Também acaba sendo sua culpa, na maioria das vezes, quando algo dá errado com a unidade familiar, mas isso não significa que ela será merecedora de créditos quando tudo der certo.

Por serem condicionadas historicamente a naturalizar o trabalho doméstico por meio de estruturas objetivas, a mulher não tem como escolher se aceita ou não sua submissão. Por isso, o consentimento da dominada parece anular a responsabilidade do opressor e jogar mais uma vez a culpa no oprimido. Para os que estão em condição de superioridade, em função da dominação masculina, não é vantajoso estudar os papéis da família e da sociedade. Os primeiros estudos mais importantes sobre família começaram a ser feitos no fim da década de 1960, com o fortalecimento do feminismo e em decorrência das discussões sobre a questão da reprodução humana. O papel da mulher como reprodutora também leva a sociedade machista a lhe reservar apenas algumas funções no mundo do trabalho externo aos lares. A menstruação, a gravidez e a amamentação justificavam o confinamento da mulher em casa, de forma que ela ficava limitada a cuidar dos filhos e da casa. Com a industrialização, foram se desenhando duas novas esferas: a da unidade doméstica e a da unidade de produção. Pela divisão considerada natural, a mulher ficou responsável pelos papéis de esposa e de mãe, enquanto ao homem coube o de de provedor. A mulher sentia uma certa conformação, já que a força masculina sempre dispensou justificativas (BOURDIEU, 1998). O papel feminino na economia teve uma mudança significativa durante a Primeira Guerra Mundial, quando os maridos saíam de casa enquanto suas esposas ficavam

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responsáveis pela família. Isso transformou a mulher em consumidora, e o trabalho assalariado passou a ser mais aceito para elas por conta das necessidades do Estado. Conquistando mais espaço, o fato da mulher sair de casa para trabalhar representou um acontecimento que provocou mudanças na família marcada pelo patriarcado. Elas começaram, então, a sair de suas casas, a deixar seus filhos em creches e a ansiar por carreiras profissionais. Em função disso, passaram a buscar mais instrução educacional, a se inserir de forma mais significativa em instituições acadêmicas e a se empenhar para conseguir um bom lugar no mercado de trabalho. O modelo tradicional da família brasileira é hierárquico e patriarcal, mas aos poucos está se modificando. Com o maior número de divórcios e diferentes formas de relacionamento, a mulher passa a ganhar mais espaço no mercado de trabalho e na família. Mas a mulher, apesar de trabalhar fora de casa, continua ganhando menos. Além disso, seu ingresso no mercado de trabalho não fez com que as tarefas de casa passassem a ser melhor divididas, só concretizou a dupla jornada de trabalho. Essa situação demonstra quão grande é o peso da realidade socioeconômica na significação e no valor atribuído às funções e à condição feminina. O fato da mulher trabalhar fora pode representar muito além de uma necessidade econômica, porque essa mudança pode estar diretamente ligada à uma realização individual de uma mulher como cidadã.

Outro fator determinante é que a participação da mulher na produção social não depende apenas do mercado, mas também da sua posição na família e da classe social da qual faz parte. No entanto, a maternidade pode substituir a necessidade da mulher de ter um trabalho externo. Uma pesquisa realizada pela Catho em 2017 mostra que 28% das mulheres deixam o mercado de trabalho após a gravidez, enquanto apenas 5% dos homens largam seus empregos para cuidar dos filhos. Mas o número de pais que voltam ao mercado de trabalho em menos de seis meses é de 49%, enquanto 25% das mães voltam aos seus empregos num prazo entre 6 e 12 meses, depois de deixarem o mercado para darem à luz seus filhos. A maternidade e a profissão de dona de casa estão extremamente conectadas, mas não são necessariamente dependentes uma da outra. No entanto, a maior parte das atividades domésticas das donas de casa que são mães relacionam-se à criação dos filhos. O objetivo deste livro, “Profissão Dona de Casa’’, é estimular um debate sobre os porquês da invisibilidade e da falta de reconhecimento da profissão por meio de um pequeno recorte do grande cenário da dona de casa brasileira. Com perfis de mulheres que têm perspectivas diferentes sobre o que é ser dona de casa e o que é ser mãe, este livro ilustra uma atividade profissional presente no cotidiano de todos os brasileiros, mas que parece ser ignorada pela sociedade. A tentativa de provocar reflexões sobre a condição

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feminina é essencial, sobretudo em uma época em que ser dona de casa representa seguir no sentido contrário ao do novo modelo de mulher. Mostrar a vida dessas donas de casa que são personagens deste livro-reportagem é exemplificar o papel da mulher na sociedade com vivências reais, e tentar demonstrar como a histórica condição de inferioridade feminina interfere em suas vidas.

Foto: Isabella Marão

Maria Aparecida “Ser dona de casa não é uma opção, é meio que uma obrigação de todo mundo, não tem por onde escapar, a não ser que a pessoa tenha grana, tanto o homem quanto a mulher.’’

Nem um velório abala a alegria de Cida e seu sorriso convidativo. Conversamos quando ela acabara de sair de um, mas qualquer um que a visse puxando a cadeira para que me sentasse na mesa da sala diria que ela tinha acabado de voltar de uma conversa agradável com um vizinho embaixo de alguma árvore de seu prédio. Com um olhar de quem nas experiências difíceis da vida o amor sempre prevaleceu, Maria Aparecida Zamboni, de 66 anos, leva a sua vida como uma típica mãe de família 21

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e dona de casa em Bauru, no interior de São Paulo. Casada com Luís Zamboni há 39 anos, a mãe da jornalista Isabela, de 27 anos, da radialista e professora Clarissa, de 35 anos, e do Otávio, bancário de 34 anos, nunca foi educada para ser uma dona de casa ou mãe de família. Sua mãe, dona Irene, nunca a pressionou e nem seus quatro irmãos a serem chefes de um lar. A vocação para ser dona de casa veio naturalmente, assim como a vocação para a maternidade. Cida, ou Cidinha, mora com o marido em um condomínio da Vila Cardia, próximo ao centro da cidade. O capricho e o cuidado com o lar que ela cativa são vistos em cada detalhe do pequeno apartamento de dois quartos e um banheiro. Cida não se incomoda em morar no térreo do edifício, mas logo fez questão de colocar telas nas janelas para evitar o acúmulo de poeira e insetos que possam sujar sua casa, ou a roupa recém-lavada estendida no varal. Não que ela seja neurótica por limpeza, mas gosta de ter suas coisas em ordem. Não é à toa que o seu apelido no coral que comanda é Madre Superiora, assim como a personagem da novela mexicana Carinha de Anjo. É uma brincadeira entre os coralistas da Paróquia Sagrado Coração de Jesus, mas que a própria Cida admite ter um fundo de verdade. Afinal, são 14 anos de convivência quase diária, ninguém melhor que seus companheiros de canto para conhecer sua personalidade no trabalho. O coral surgiu depois da aposentadoria. Mas bem

antes do canto, Cida teve uma profissão não tão animadora. Ela gostava do trabalho como bancária, mas nada preenche seu coração como a maternidade e o seu amado coral. No fundo, ela sempre sentiu que tinha que viver a infância dos filhos com eles, caso contrário, iria se arrepender por perder pequenos momentos do crescimento das três crianças. Então, decidiu trabalhar até a época em que Clarissa nasceu, em 1982. Menos de dois anos depois, com o nascimento de Otávio, e por conta da pouquíssima diferença de idade entre os dois, ela não tinha nem ao menos tempo de pensar em voltar a trabalhar fora. Foi aí que Cida se tornou uma dona de casa e mãe em tempo integral. E ela não se arrepende. Conseguiu ver os primeiros passos de Clarissa, vibrou com as primeiras palavras balbuciadas por Otávio, ajudou a fazer cada trabalho da escola, foi em todas as reuniões de pais e mestres possíveis e nunca se ausentou da vida de seus filhos. ‘’Ser dona de casa é uma coisa, maternidade é outra. Tem que ser uma opção’’, diferencia. Ao longo de sua maternidade, viu muitas mulheres abandonarem empregos incríveis para acompanhar o crescimento dos filhos e serem julgadas por isso. Mas, para ela, muito além da gratificação de poder acompanhar este crescimento, vinha um trabalho bem mais complicado que em qualquer empresa multinacional. Ser mãe de uma criança que está na escola e ficar em casa o dia todo não é nada fácil. Você tem que ser professora, realizar tarefas, explicar, reexplicar, recortar

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revista, escutar abobrinhas em reuniões de pais, e às vezes até se tornar responsável pela realização dos deveres. ‘’Uma vez o Otávio falou pra mim que um menino foi com um tênis de um pé de uma cor e outro de outra na escola. Às vezes o pai nem olha na criança, e esse tipo de pai não vai na reunião, e se ia você percebia o tipo de pessoa, e isso afeta na criação da criança’’, reflete. Ela sentia que era como se tivesse tido filhos gêmeos, por conta da pequena diferença de idade entre Clarissa e Otávio. Ter que esperar Luís voltar do trabalho para poder tomar banho fazia parte do cotidiano da família Zamboni, já que não tinha como deixar os ‘’gêmeos’’ sozinhos nem durante um banho! Quando Luís chegava um pouco mais tarde, era sempre a mesma rotina: ele tomava o banho dele, Cida o dela e então todos jantavam. Apesar de não estar muito em casa, seu marido sempre procurou ser presente e ajudar nas tarefas domésticas e de pai. O mercado, por exemplo, sempre foi responsabilidade dele, algumas vezes Cida o acompanhava, mas era ele quem fazia as compras. Com mamadeiras, fraldas e também como motorista oficial dos filhos, Luís nunca decepcionou a esposa. Na casa em que moravam na época, no bairro Jardim Brasil, bem em frente à Universidade do Sagrado Coração e ao lado de onde futuramente seria o Bar do Herbie, Cida e Luís criaram os seus dois filhos. Ficaram lá por 22 anos, 15 destes juntos com o bar. Só saíram de lá porque o público do novo bar era muito barulhento. Quando Otávio e Clarissa já estavam um pouco

maiores, por volta dos quatro anos de idade, ela decidiu voltar a trabalhar ajudando o marido na papelaria que eles tinham. Lá ela fazia de tudo um pouco. Organizava, atendia os clientes, tirava cópias de plantas baixas com amoníaco, como nos mimeógrafos, e ainda cuidava da casa e dos filhos. Uma dupla jornada. Aí a vida de Cida mudou de novo. Ela engravidou do terceiro filho, e 7 anos depois de Otávio, no mesmo ano em que Fernando Collor de Mello assumiu a presidência do Brasil, veio a Isabela. Cida não hesitou em deixar de ajudar Luís na papelaria para cuidar da filha mais nova. Quando percebeu que estava grávida de Isabela, ela decidiu parar de trabalhar. Não só para poder cuidar das crianças, mas também por causa do amoníaco, que piorava os seus enjoos. E claro que ela queria acompanhar o crescimento de Isa assim como fez com Clarissa e Otávio. Para ela, não tem dinheiro no mundo que pagasse a alegria de estar com os filhos em momentos únicos. O dia a dia era normal. Os dois sempre acordavam cedo para realizar as tarefas e entravam no mesmo horário, à tarde, no colégio São José, quando Luís ia para o trabalho. E foi assim durante os primeiros 4 anos de Isabela, enquanto ela ainda tinha cabelos ralos e uma franjinha tímida jogada para o lado direito do rosto. Na época, Isa usava macacãozinhos combinados com camisetinhas de babados e meias de lacinhos, escolhidos com todo o amor que uma mãe poderia ter, Cida esteve ao lado dela. ‘’A Clarissa sempre foi estudiosa, o Otávio ganhou

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a Olimpíada de matemática pelo caderno, porque o dele era mais caprichado que o da menina, eles empataram e esse foi o desempate. Todo mundo achou que tinha sido a menina que tinha ganho, mas aí eles tiveram uma surpresa, foi o menino, e era o Otávio, meu filho, eu fiquei ‘’não acredito!’’’, disse toda orgulhosa de lembrar dos momentos das crianças na escola.’’ Toda orgulhosa, lembra das conquistas das filhas. ‘‘A Clarissa se não tirasse 10 chorava, passou em primeiro lugar em Rádio e TV na Unesp. A Isabela foi normal, nunca deu problema, nunca deixava de fazer tarefa, passou em décimo lugar em jornalismo, e ela gosta de ler.’’ Com seus três filhos estudando fora por meio período do dia, a mãe de Isa, Clarissa e Otávio decidiu voltar a trabalhar para se sentir parte do mundo exterior novamente. Afinal, foram mais quatro anos inteiramente dedicados a sua vida como mãe e dona de casa. Isto muda a rotina e a cabeça de qualquer mulher. Cida não sabia mais o que era estar em um ambiente de trabalho sem estar rodeada de serviços domésticos e sem passar o dia atendendo os filhos, ela precisava sair um pouco dessa sua realidade para viver uma nova vida. Então, ela e Luís voltaram a trabalhar juntos na papelaria. Com Otávio e Clarissa mais crescidinhos, eles ficavam durante um curto período em casa, e quando Cida saia do trabalho ia buscar Isabela na escolinha. E aquilo, de certa forma, preencheu outra parte do coração de Cida que estava um pouco esquecida: a parte dela mesma. Não que ela não lembrasse de sua própria existência

e não valorizasse seus esforços e trabalho, muito menos que só vivesse em função de sua casa e de sua família. É que ela talvez nem tivesse se dado conta de que parte dela tinha se esquecido de como era poder tirar um tempo para si no meio de um dia de semana sem ter por perto os filhos. Nem se lembrava de como era falar com pessoas diferentes sobre coisas que não eram nem relacionadas aos cuidados da casa ou à maternidade. Isto porque ser dona de casa é viver e respirar o seu ambiente de trabalho vinte e quatro horas por dia. Sem descanso, décimo terceiro e nem folgas aos feriados. ‘’Era mais exaustivo trabalhar em dois períodos, éramos em cinco, mas mesmo assim eu ia para a loja à tarde. E quando voltava para casa, tinha que lavar, passar, cozinhar, limpar’’, lembra Cida. “Como a loja era do meu marido, era mais tranquilo, mas era bom ir, porque a gente vai ficando longe do mundo lá fora, se ficar só dentro de casa. Já viu, né?’’, brinca. Voltar a trabalhar era mais do que apenas ajudar Luís na loja, era importante porque Cida ficava muito tempo presa dentro de casa cuidando das crianças e não vivia fora daquela realidade. Mais do que isso, quando os três pequenos iam para a escolinha, ela se via sozinha naquela casa grande com a árvore no quintal. No começo até que era bom. Finalmente um momento só para ela, em que podia ouvir o silêncio da casa e só o barulho da rua e das pessoas passando. Ela passava a tarde assistindo televisão e suas novelas favoritas até que,

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depois de pouco tempo, começou a se sentir sozinha. E Cida não é o tipo de mulher que gosta de ficar parada sem fazer nada. E assim foi por mais alguns anos. A rotina de Cida era acordar cedo, arrumar a casa, se preocupar com o almoço dos filhos e do marido, pensar no lanche das crianças, verificar se elas precisavam de ajuda com o dever de casa, pensar no que estava faltando na dispensa e mais um milhão de coisas que turbilhavam na sua cabeça, tudo ao mesmo tempo. Afinal, uma dona de casa sempre tem o que fazer, e quando ela termina uma tarefa, logo tinha que recomeçar tudo do zero. Quando Luís decidiu se aposentar e vendeu a loja, Maria Aparecida descobriu uma outra paixão além da família. O coral surgiu da vida cotidiana da dona de casa. Primeiro, as meninas cantaram no coral da escola, que era restrito apenas às crianças. Mas, como Cida e sua família são católicos, frequentam a Igreja semanalmente. Em uma dessas idas à missa o padre disse que iria montar um coral de casais. A ideia de poder participar do coral da Igreja logo já fez com o que os olhos de Cida brilhassem e seu coração pulsasse mais alto de alegria. Com um olhar extremamente empolgante e se remexendo na cadeira, ela conta que nem ao menos pensou na ideia de não participar da novidade proposta pelo padre. Luís não gostou muito da ideia, mas ela se jogou de cabeça e hoje é a diretora do coral.

Catorze anos atrás Luís até participou de um coral, paixão antiga e escondida de Cida, mas logo desistiu. A área dos cantos para missas representava a alma dela, mas não a dele. Com a participação no coral, Cida também enfrentou algumas dificuldades que conseguiu contornar com criatividade e dedicação. Na época em que ela ingressou, a primeira regente teve que sair do projeto por problemas financeiros. Ela não podia continuar com o coral de forma voluntária. Mas quem participa de um coral sabe como é difícil achar um regente que além de reger o coral também toque violão, como era o caso. Foi aí que Cidinha deu a ideia: e se todos os coralistas pagassem uma mensalidade para ajudar nos custos do projeto? Seria algo que caberia no bolso de todos e ajudaria o projeto a crescer cada vez mais. Entusiasmado com a ideia, o padre responsável decidiu dar o cargo de coordenadora do coral à ela. E com a sua ideia o coral foi seguindo suas atividades na Igreja. Quatro anos atrás, a regente engravidou e teve que se aposentar do cargo para exercer a maternidade. Então um novo regente, bem mais jovem, assumiu o cargo e as doações dos coralistas. ‘’Eles são jovens, não é fácil se manter, tem gente que critica a gente de pagar, se ele não for reger o coral, ele vai procurar outro trabalho e acho que é uma doação da mesma maneira’’, explica a dona de casa. A rotina do coral é como a de qualquer outro trabalho. Às quintas religiosamente acontecem os ensaios,

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para que os coralistas cantem mas missas no primeiro e quarto domingo de cada mês. Fora esse compromisso fixo, também há encontros de corais, cantadas de Natal, entre outras atividades que preenchem o tempo livre e os corações dos coralistas, que em geral são idosos. Como “madre superiora’’, Cida é responsável pela organização da pasta do regente, pesquisa de músicas, partituras para o mestre, organiza o datashow da missa e disciplinar todas as outras atividades e os membros do coral. ‘’Numa missa às vezes tem 12 músicas, não pode ser sempre a mesma, tem os períodos certos, tem que ter a ver com período litúrgico, eu que escolho os uniformes, as músicas.’’ Apesar de não cantar em toda celebração dominical, Cida, que já foi ministra da eucaristia, pratica a sua fé e não perde uma missa se quer. Exceto quando está em São Paulo, cuidando de sua netinha, filha de Clarissa. O coral não é apenas para preencher a rotina de Cida, ou para ocupar um espaço em sua mente, é para que ela consiga alcançar a felicidade com sua personalidade bem taurina. “Se eu ficasse em casa, sem o coral, não ia ser feliz, sou muito agitada, se não fosse o coral ia ta fazendo outra coisa.’’ Na época em que o coral não ocupava seu tempo, Cida se envolvia em outro projeto da Igreja, o “Amigos da Rua’’. Lá ela ficou por três anos, e ela era quem fazia os lanches e comandava a cozinha. Mas com a idade, o trabalho braçal da cozinha passou a ficar cansativo para as

suas pernas. Em sua concepção, ela não é o estereótipo da dona de casa, já que sempre trabalhou fora. Dentro do coral, a dona de casa também conseguiu explorar uma antiga paixão: o tricô. A técnica de entrelaçar fios passou a entrelaçar novas ideias para Cida. O tricô não é algo novo em sua vida. Sua mãe fazia quando era criança, e aí ela acabou pegando gosto desde pequenininha. Criativa, Cida aproveitou sua técnica para deixar o coral mais alegre. “Como tá no outubro rosa fizemos as rosinhas de crochê, rosa, pra ir de blusa branca e ir com a rosa na missa’’, disse enquanto me trazia uma rosinha de crochê com uma pérola bordada no meio. Mas mesmo com uma atitude simples e delicada para alegrar as missas, ela se deparou com o machismo. ‘’Chegou um senhor bem de idade e tava sem, eu perguntei pra ele, cadê sua rosa, ele disse eu não vou por, eu falei que era uniforme, não tem esse. Agora o nosso regente no domingo falou pega a minha e põe na cruz, e aí faz outra, aí agora tá lá na cruz. Ela vai fazer uma azul agora, pro mês de novembro.’’ A questão das rosas a deixou empolgada com um novo hobby. “Eu queria aprender crochê pra fazer tapete, é bem diferente do tricô, o crochê é mais fácil. Tem uma moça no youtube que ensina divinamente, ela ensina o passo a passo. O primeiro ficou tudo torto, agora tô aprendendo!’’, disse me trazendo orgulhosa os entrelaços que ela mesma fez para seu banheiro durante as suas noites livres. Agora ela estava orgulhosa de poder presentear Clarissa com um tapete novo.

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A filha, que agora mora em São Paulo, pediu para que a mãe encomendasse com uma amiga um tapete novo. Com esse pedido e sua nova vontade de aprender mais sobre crochê, Cida pensou: ‘’Eu vou fazer!’’. E ela fez. Uma semana após nossa primeira conversa ela levaria o crochê para a filha na capital, que ficou surpresa com a nova habilidade da mãe. Apesar da saudade, Cida não vai muito a São Paulo ver a neta e a filha, pela distância e por dificuldades de acomodação, já que Clarissa mora em uma edícula. Mas em Bauru mata as saudades pela tecnologia. Ela conversa com Clarissa todas as terças e quintas. Pelo celular, consegue ver a neta e adora quando ela a chama de vovó. E é bonito de se ver como a vovó fica animada conversando com a netinha pelo computador. Como qualquer noveleira fã das histórias da Globo, ela dedica suas noite aos dramas. ‘’A noite fico assistindo novela e faço o crochê’’, conta sobre sua rotina. Cida gosta de novelas divertidas, como as das sete, mas não deixa de assistir aos maiores sucessos da Globo para ficar por dentro das novidades novelísticas. Para ela, novela é diversão. ‘’Tem gente que faz tanta crítica à novela, mas eu falo gente é só pra se divertir, você pega as boas as ruins você joga no lixo. Eles falam umas coisas que você sabe que aquilo não é realidade, eu acho que é falta de conhecimento.’’ Na época da nossa primeira conversa, em outubro de 2017, a Globo exibia a novela “A Força do Querer’’, de Glória Perez. A trama trazia um personagem polêmico,

o transgênero Ivan, interpretado pela atriz Carol Duarte. Ivan trouxe para a televisão aberta, em horário nobre e para um público com pouco conhecimento sobre o assunto a discussão sobre identidade de gênero. Para Cida, os comentários maldosos a respeito do personagem eram infundados e não mereciam ser levados em consideração. ‘’Se a pessoa fala eu sou isso o problema é dela. Igual tavam dando pitaco na vida da Fernanda Lima porque ela mudou pros Estados Unidos. A vida é dela, ela faz o que ela quer, se ela tem grana, sorte a dela!’’, comentou sobre a apresentadora Global. Mas engana-se quem pensa que Cidinha sempre foi uma dona de casa. Quando criança ela não se interessava pelos afazeres domésticos e deixava tudo para a mãe, que até brigava com ela por não querer ir para o fogão. Sendo a única mulher e segunda filha de uma família com mais quatro irmãos, Cida nunca foi cobrada por ser mulher na casa dos pais. ‘’Quando a gente ia jantar assim na casa dos outros, minha mãe não lavava a louça porque ela cozinhava, ela ficava sentada’’, relembra. ‘’Aí eu e minhas cunhadas nos revezávamos entre nós pra lavar a louça, os homens não, eles faziam o churrasco, meu pai varria chão, mas a cozinha mesmo quem arrumava sempre eram as mulheres.’’ Com a maternidade, ela nunca forçou as suas filhas, Isabela e Clarissa, e o filho, Otávio, a aprenderem as tarefas do lar. Mas com o tempo Cida percebeu que talvez devesse ter ensinado. “Uma época morou ele e a Isabela, e ele se viravam,

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eles ligavam pra perguntar como faz isso. Chega um momento que o homem e a mulher viram dona de casa. Como você vai comer? Cuidar da sua roupa?’’ Com a fase adulta dos filhos, ficou mais difícil vê-los todos os dias. Então Isabela e Otávio, que ainda moram em Bauru, vão aos finais de semana almoçar na casa dos pais. Às vezes a filha leva Nicholas, seu marido, mas quem arruma a cozinha mesmo depois do almoço é Luís. “Eu que quero arrumar’’, demonstra interesse o marido. Durante um curto tempo, quando Clarissa tinha dois anos e Otávio apenas um, ela contou com o auxílio de uma empregada e ensinou para as crianças o valor da profissão de empregada doméstica. Mas por fim preferiu continuar com as tarefas domésticas sozinha. ‘’Se fazia mal feito eu achava ruim, então eu fazia devagar.’’ Mas naquela época Cida ainda passava roupa, hoje em dia, ela acha besteira. Nossa conversa foi interrompida com a excelente anfitriã me servindo um bolo diferente. Como ela mesma disse, gosta de inventar coisa na cozinha. O bolo, que inicialmente era feito de limão, virou um bolo de abacaxi com laranja. “Eu invento moda.’’ E também cozinha muito bem. “Tenho a impressão de que eu deveria ter feito gastronomia, mas na minha época não tinha esse curso, agora virou moda, eu devia ter feito, ou ido pro lado do artesanato.’’ Por coincidência do destino, Maria fez o curso de Ciências na Universidade do Sagrado Coração, local em que sua filha mais nova agora faz sua pós-graduação.

Na época em que fazia o curso, ela também trabalhava, mas nunca chegou a dar aula nem de ciências e nem de matemática, que sempre gostou. “Acho que não era pra ser professora, fiz achei que ia ser, mas aí casei, aí fui tomar conta de casa, e não me arrependo.’’ A maternidade foi a melhor escolha para ela. ‘’Sentia que precisava ficar com eles, acompanhar o crescimento. Não tinha a ideia de deixar eles com alguém. Igual minha filha, que trabalha de segunda, quarta, sexta e sábado, e meu genro trabalha todos os dias, mas quando ele trabalha ela tá em casa, então eles nunca deixaram a menina com ninguém, só em algo urgente ou as avós vão pra lá.’’ Para ela, quem mantém a organização de uma casa é a mulher. Na casa dela e de Luís ela é quem dá a última palavra em tudo. Tudo no apartamento é do jeito dela. Ao ser questionada se ser dona de casa é visto como algo desvalorizado pela sociedade e ela respondeu que a principal dificuldade da dona de casa para conseguir reconhecimento pelo seu trabalho é que ele é realizado dentro do núcleo familiar, por isso não é valorizado como outras profissões. “Só que pro médico chegar lá a mãe dele teve que ser dona de casa, sei lá eu, é como professor, se não passar por ele não vai ser nada. Se não tivesse a dona de casa, a mãe, pra orientar, cuidar, não chegaria. É a base, as pessoas não entendem como profissão’’, analisa. Cida ressaltou que muitas vezes a profissão dona de casa é confundida pela de empregada doméstica, e são coisas totalmente diferentes. Ser responsável pela família

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não é visto como profissão por ser visto como uma obrigação da mulher, da mãe, da irmã, da tia, ou da avó. ‘’O nosso governo não valoriza nem o povo brasileiro, quanto mais as donas de casa. Sinceramente não sei qual seria o caminho pra valorizar isso, tem gente que já critica, não valoriza mesmo. Não sei se é porque a mulher saiu pra trabalhar fora e os homens mais novos já têm este assunto, de fazer as coisas dentro de casa. Antigamente eles nem pensavam nisso, hoje já se preocupam.’’ Para ela, a conscientização deve estar presente na educação dos filhos, já que boa parte dela é de responsabilidade das próprias mães. “A gente pensa que os homens são machistas, mas muitas vezes as próprias mães são machistas e reproduzem isso dentro de casa na educação da criança, criam os meninos falando que tem que ser macho, os meninos tem que fazer a mesma coisa que as meninas!’’ E são pequenas atitudes que educam as crianças desde cedo. Na sua casa ela passava as roupas, mas o dono das peças era o responsável por guardá-las. Em situações da vida, ela lembra que o preconceito com a profissão está internalizado nelas mesmas. Todas as suas amigas também são donas de casa, mas algumas vezes elas mesmas depreciam a atividade. Sua rotina é assim. Acordar, se ocupar com as atividades da casa, atividades do coral, com os filhos à distância e com Luís, seu companheiro. Cida prefere nem pensar no dia em que a vida irá separá-la de Luís. No dia de nossa conversa ela tinha

acabado de voltar de um velório de uma amiga querida, que teve uma morte inesperada. Isso a fez lembrar de sua família. Ela sempre achou que o pai, fumante, iria morrer antes da mãe. Mas o futuro à Deus pertence e um AVC levou Irene embora antes. Do marido, Luís, ela não tem o que reclamar. Sempre que cozinha ele a elogia e nunca reclamou de sua comida. Seu casamento é tão equilibrados quanto o seu tempero. “A gente não briga, a gente combina.’’ Seus filhos também são fãs dos quitutes de Maria, tanto que vivem pedindo para que ela cozinhe para eles até hoje.

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E Luís entra na sala: “Conseguiu terminar?’’, pergunta. ‘’Tamo conversando!’’, brinca Cida. “Quando junta duas mulher, sai de baixo!’’ ‘’O bolo tava bom? se falar que tava ruim eu bato nocê!’’, diz Luís. E eu acreditei que ele iria mesmo se eu falasse que o bolo estava ruim.


Foto: Isabella Marão

Cida com a rosinha, que fez para a campanha de outubro rosa do coral.

Foto: Isabella Marão

Flávia

“Ser dona de casa é ser dona de tudo, menos da própria vida.”

Foto: Isabella Marão

Luís e Cida, uma história de amor que já completa 39 anos.

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A advogada e mãe Flávia Maria Gomes sentiu seu porto balançar quando sua filha, Lara, decidiu prestar vestibular longe de Bauru, cidade onde moram na cobertura de um edifício do bairro Jardim Infante Dom Henrique, zona nobre da cidade. Por gostar de dançar e ser bailarina profissional, Lara desde pequena teve uma vida agitada, mas sempre sob o olhar de sua mãe. Nunca morou sozinha. A adolescente de 17 anos é, representa e simboliza todo o universo de Flávia, de 45, mas nem imagina que cresceu em uma realidade confortável bem diferente da que sua mãe viveu quando criança. 40


Nascida em Piraju, cidade com pouco menos de 30 mil habitantes e conhecida por suas cachoeiras turísticas, Flávia começou a se virar sozinha aos 13 anos. Tão jovem, já teve que morar sozinha para estudar em Bauru. Sua mãe, dona de casa como tantas outras, não queria que a filha tivesse o mesmo futuro que ela e insistiu para que fosse morar em uma pensão, onde teria condições para estudar bastante. Para a mãe, a formação escolar daria um futuro diferente para a filha. Ela não concordava com o destino da maioria das garotas de Piraju. ‘’Chorei muito, sofri bastante, mas tinha que estudar. Meus pais queriam que eu fizesse faculdade, mas eu não queria, queria ser dona de casa’’, relembra enquanto mexe o chantily do café gelado que pediu para acompanhar nossa conversa. Aliás, esse café sempre a acompanha quando ela precisa relaxar. Assim, Flávia mudou-se para Bauru, mas um ano depois já teve que voltar para casa, com a morte de seu pai. A vida é cheia de imprevistos e não foi uma época fácil para ela, que se viu perdida com a partida do pai e ainda teve que voltar a conviver com a mãe, com quem nunca manteve relação muito amigável. A vida passou, os estudos em Bauru não foram concluídos e aos 19 anos ela se casou com o pai de Lara, realizando seus sonhos de até então. E ela relembra: “eu queria ser dona de casa. Sempre quis, desde criança. O que você quer ser quando crescer? Mãe! Dona de casa. Com 20 anos já quero ter um monte de filhos, era isso o que eu falava”. Contrariando a mãe, Flávia se sentiu realizada ao

engravidar e ter uma casa para cuidar. Para ela, o significado de felicidade era aquilo. Mas, o casamento não foi exatamente como seria nos sonhos de Flávia, nos quais ela formaria uma família feliz ao lado de seu marido e gerenciaria seu lar para acompanhar o crescimento dos filhos. Não demorou e a solução foi o divórcio. Com o fim do relacionamento com o pai de Lara, Flávia decidiu se reerguer a partir daquilo que seus pais sempre insistiram: os estudos. Morando sozinha com a filha, a mãe de Lara decidiu retomar o curso de Direito. Aos poucos, cuidando da casa, da filha, e da carreira, ela foi se reerguendo e conquistou seu lugar no mercado de trabalho. “Ser mãe é muito difícil, eu acho mais difícil do que ser dona de casa. É uma responsabilidade muito grande, a gente nunca sabe se está fazendo o certo ou o errado. A casa, se você fizer errado, dá para arrumar. Agora, a educação de um filho…’’, reflete a advogada. Depois de três cursos superiores, formada em Administração de Empresas, Ciências Contábeis e em Direito, Flávia vive uma rotina imprevisível e agitada como advogada criminalista. Além de administrar seu próprio escritório de advocacia em casa, ela é a única responsável pela organização do lar, mas sua rotina já passou por várias transformações. Antes do home office, ela também trabalhava em escritório próprio, mas só aparecia por lá em um período do dia. Ser mãe em tempo integral nunca lhe permitiu ter um emprego em que os horários não fossem flexíveis. Por

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isso, sempre foi dona de seu próprio negócio e procurou construir o seu espaço sozinha. Para ela, ter seu próprio território profissional significava dar uma qualidade de vida melhor para Lara. Foi pensando nela que ela decidiu construir tudo a partir do zero, sempre sozinha. Trabalhando em casa, Flávia se sente mais confortável para gerenciar suas tarefas como dona de casa, mãe e profissional. Por ser advogada criminalista, às vezes ela precisa receber alguns clientes em casa para reuniões, mas quando o cliente é desconhecido prefere reservar uma sala na OAB de Bauru e conversar sobre o caso lá. “É mais seguro e tranquilo para mim”, explica. Sua rotina é muito bem organizada quando ela pode. De manhã, é hora de cuidar da casa. É aí que ela lava e passa as roupas, cozinha, limpa e deixa tudo em ordem para, quando a filha chegar em casa, já estar tudo pronto. Na parte da tarde, a casa precisa estar em silêncio, para que ela possa estudar. Assim, ela esquematiza tudo pensando em como ajudar na rotina de Lara e no seu crescimento. ‘’Hoje em dia é em segurança, é em grana, é em conforto, é saúde, é em tudo isso que se tem que pensar para uma criança. Eu costumo falar que filho é como você fazer uma tatuagem no rosto. Gente do céu, nunca mais você vai ser a mesma pessoa, você vai ter que cuidar daquilo muito bem”, comenta. Para Flávia, arrumar a casa é mais do que uma obrigação como mãe, é uma satisfação pessoal. “Tenho mania de limpeza e arrumação’’, confessa. Até o seu cachorro, Teodoro, precisa andar na linha com a limpeza.

O pequeno lhasa apso de 5 anos foi acostumado a fazer xixi sentado no ralinho da churrasqueira, que fica na parte externa do apartamento, e vive com o pelo raspado, para não sujar a casa. Mas, em breve toda essa rotina será alterada pela nova vida da filha. Flávia já anda pensando nisso, em como será o seu cotidiano sem a presença de Lara e as obrigações de mãe que realiza todos os dias. “Eu gosto de ficar sozinha, mas daqui a pouco já estou sentindo falta’’, admite a mãe. “Este ano não consegui tirar férias, como vou fazer com ela prestando vestibular? É tudo eu. Tenho que levar, buscar, ela não sabe lavar uma roupa, um copo, como vai morar fora sozinha?’’. As perguntas são ditas mais como afirmações de preocupação do que como interjeições, já que Flávia sabe que Lara precisa de ajuda até para lavar uma louça na pia. Para dar um exemplo, conta que Lara não costuma andar de ônibus sozinha, e por isso fez seu primeiro cartão de estudante. A mãe pensou que com isso conseguiria estimular a filha a ter mais independência e a aprender a se virar sozinha pela cidade. A ideia era que ela saísse da escola e fosse direto para as aulas de Inglês, pegando um ônibus, mas a iniciativa da mãe não deu muito certo; cada dia Lara inventava uma desculpa diferente: “Primeiro não deu certo porque ela saiu mais cedo da aula, depois foi porque o sol estava muito forte e ela não poderia andar no sol por conta da pele muito branca, até que ela admitiu preferir que a mãe a fosse buscar. Não importava para Lara quanto tempo esperaria por Flávia,

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ela preferia esperar para ir de carro ao seu destino do que ir de ônibus. Por fim, Flávia sempre cede e acaba fazendo as vontades da filha, e com esse tipo de comportamento da mãe, Lara nem pensa em ser dona de casa, e muito menos aos 17 anos. Seus sonhos são muito diferentes dos de sua mãe quando tinha 17. Se a mãe não pede, ela evita ao máximo lavar qualquer louça acumulada na pia. “Ela lava, emburrada mas lava’’, explica Flávia, que admite que já foi como a filha quando era mais nova, mas que mudou completamente com as experiências de morar sozinha em um pensionato e, depois, de cuidar de sua própria casa. Ser dona de casa sempre foi um sonho para aquela garota de Piraju, mas a mulher que cresceu em Bauru percebeu que a vida não é feita só de sonhos. “Eu achava que dona de casa era uma profissão, remunerada e tudo mais, mas se eu não tivesse minha profissão o que eu faria hoje, divorciada? Como eu iria sobreviver? Por mais que você seja dona de casa é muito importante ter uma profissão também, tem que ter”, conclui Flávia, ao admitir que as diferenças entre a Flávia advogada e a Flávia dona de casa são muitas. “No meu trabalho, eu tomo conta de problemas dos outros mas sou remunerada para isso. Na minha casa, não sou remunerada para tomar conta dos problemas dos outros’’, explica. ‘’Se minha mãe chegar em casa, ela reclama da limpeza. Se a Lara chega e a comida não está pronta, ela reclama. Se a roupa não estiver passada, ela

também reclama. Nunca todos estão satisfeitos com o trabalho da gente, por mais que a gente tente, e é sempre porque eu sou muito chata’’, brinca a advogada. Apesar de sua mãe ainda morar em Piraju, Flávia ainda sente suas cobranças para que tenha sua vida, casa e rotina organizadas. Sendo filha única, ela julga a mãe como excelente dona de casa, até diz que tenta ser como ela, mas não consegue. Exercendo sua profissão como advogada criminalista, Flávia já viu vários casos de mulheres donas de casa que se submetem a agressões físicas e psicológicas por dependerem financeiramente de seus companheiros. “Elas não falam nada, se sujeitam a cada coisa, ninguém dá valor a essas mulheres. Então, eu me sinto privilegiada, porque eu lutei, venci, batalhei, sou muito agradecida por tudo o que aconteceu na minha vida. Até pelas coisas ruins’’, diz, com os olhos de quem relembra tudo o que já viveu, das coisas boas às ruins. Para ela, estar há sete anos morando na cobertura do edifício com o qual ela sempre sonhou, ter sua carreira consolidada, ver a filha crescendo bem e poder pensar em um futuro fora do país é uma conquista que ela deve aos seus esforços, a não ter desistido quando poderia ter fraquejado. “Eu luto pelas coisas que eu acredito’’, afirma a mulher que teve que lidar com estudar fora de casa quando criança, com a perda do pai muito jovem, com um divórcio conturbado e com a maternidade ainda no começo da vida adulta. Venceu, também, um câncer no intestino que quase transformou seu maior pesadelo em realidade: o medo de

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deixar Lara sozinha no mundo. Em 2013, Flávia descobriu que precisaria enfrentar mais uma batalha em sua vida para continuar sendo essa mulher forte e guerreira. Mas, mesmo sofrendo todas as consequências de um câncer, o protagonismo da sua doença – na cabeça de Flávia – sempre foi de Lara. O seu maior medo não era o de morrer. Seu maior receio decorria da possibilidade de deixar a sua filha, na época com 13 anos, sem a sua proteção e seu amor incondicional de mãe. Quando via a filha, Flávia colocava a sua supermáscara de supermãe e com um sorriso no rosto dizia que iria ficar tudo bem com ela, mesmo que ela soubesse que seu destino ainda era incerto. Ela conta que animava sua filha: “para com isso! eu não vou morrer, e se eu morrer, eu vou falar com você no sonho’’, dizia a mãe. “O pior é a gente não poder sentir o que tá sentindo. A dona de casa, a mãe, não tem o direito nem de ficar triste, porque a vida não é sua, sabe? A minha condição é o bem estar para ela, para a Lara’’, conta Flávia, relembrando dessa difícil fase que teve que enfrentar. ‘’Qual a função da dona de casa? Propaganda de margarina, deixar sua casa e seus filhos bem, educados. Passei por muita coisa difícil e continuei sorrindo, e falando que a vida é bela. Já passei necessidade, tive que vender carro, andar a pé, esconder carro pra não virem pegar, várias coisas que você nem imagina o que eu passei com 45 anos, muita coisa, muito mesmo, e ela também não sabe nada disso, eu acho que pequei por não contar

pra ela’’, reflete ao lembrar de Lara. Na época, foi necessária a retirada de 60% de seu intestino, mas ela sempre amenizou as informações sobre sua saúde para preservar Lara e não prejudicá-la nos estudos. Mesmo hoje, com a doença controlada e Flávia tomando 17 cápsulas por dia, sua filha ainda não tem noção de tudo o que a mãe já passou. Flávia contou com a ajuda de uma faxineira para limpar a casa e de sua mãe para ajudar nas tarefas diárias. Mas sua vida sempre foi solitária e, mesmo durante a doença, preferiu fazer a maior parte das coisas sozinha. ‘’Não gosto de incomodar os outros, vou incomodar quem? Não tenho irmão, pai, minha mãe pouco liga pra mim, moro em uma cidade distante, minha filha é a vida dela e é uma criança’’, conta a mãe de Lara. E ser dona de casa e mãe é isso, diz ela. É você ser responsável por todos e acabar esquecendo de si mesmo. É conviver com uma incerteza e um medo de errar, e “a única certeza nessa profissão é que jamais se sabe se acertou ou não. Você não tem hora pra nada que seja pra você, você não tem divertimento, você não tem nada pra você. O seu divertimento é cuidar das coisas dos outros e com prazer, mas sobre a sua vida, mesmo, você não tem controle’’, diz Flávia, com cara de quem estava ali falando em voz alta, pela primeira vez, sobre o que ela sabia ter vivido por toda vida. Como escorpiana convicta, diz não optar por nenhuma religião, mas tem muita fé em Deus. “Procuro rezar todos os dias sozinha em meu quarto, como manda

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o meu coração, mas não acredito nos homens. A gente que está na área de Direito vê muita mentira e consegue aprender a mentir’’, aponta. Flávia não teve muita sorte em seus relacionamentos. Além da vida ao lado de sua filha, ela prefere ser sozinha para evitar decepções e não depender de ninguém. Seu relacionamento conturbado com a mãe vem desde quando era criança. Mesmo antes de perder o pai, aos 14 anos, Flávia não tinha boa impressão de sua mãe, talvez pela instabilidade da relação entre seus pais. “Ele me assumiu, mas não assumiu minha mãe. Então, ele me levou e ela ficou, por isso ela tem uma raiva de mim, mas entendo perfeitamente”, conta. Para complementar sua ideia negativa sobre casamentos, ela casou-se com o pai de Lara, um político com quem ficou 9 anos. Nessa fase, Flávia sofreu com a diferença de idade entre eles, com os choques de ideias entre as famílias de cada um. O baque maior ocorreu quando ela foi traída e abandonada enquanto estava grávida de Lara. Foi então que, dois anos depois, ela juntou todas as suas forças para concluir o curso de Direito e conseguiu passar, na primeira prova que fez, na OAB. Com foco total nos estudos, como uma grande muralha ela se reergueu, pronta para começar vida nova ao lado de sua filha. Uma nova vida que ela decidiu conquistar com o esforço do seu trabalho e muita dedicação pela filha. Há quem pense que o momento de lazer da dona de casa é quando ela relaxa, sai um pouco, e faz as coisas que ela gosta. Mas, para a supermãe Flávia, até seu horário

de lazer é da filha. Ela gosta de ficar deitada relaxando enquanto a Netflix rola na tevê, mas isso é mais pelo medo de sair e sofrer com a reprovação de Lara. Às vezes, até rola uma vontade de ver as amigas, tomar uns drinks e, quem sabe, paquerar em algum barzinho, mas ela tem medo de sair e se sentir culpada, sentir que abandonou a filha. Mas, apesar de afirmar que se prende pela filha, ela sabe que parte da sua falta de ânimo para sair de casa vem dela mesma. Claro que a parte Lara é fundamental na hora da decisão, mas com a idade ela sente que foi ficando cada vez menos disposta a sair e a conhecer novas pessoas. Ela é amiga, mesmo, das irmãs da Lara. Pela diferença de idade com o ex-marido, as filhas dele, Fernanda e Melissa, têm quase a mesma idade que Flávia, tanto que às vezes elas saem juntas para colocar o papo em dia. Um dos filhos do ex, Pedro, tem por volta dos 25 anos e conversa mais com Lara, já é mais jovem. Mas Fernanda e Melissa estão na casa dos 30 anos e se entendem bem com Flávia. Para confirmar, ela conta que quando as duas retornaram de uma viagem à Espanha foram primeiro vê-la, e só depois foram rever seus pais. “E a gente briga tanto! Eu brigo tanto com elas. Hoje, por exemplo, saindo daqui vou pegar uma delas pra dar uns chacoalhões nelas. Nenhuma tem vocação para trabalhar’’, brinca. Suas idas ao café próximo de sua casa nem podem ser consideradas saídas de verdade, mas ela sente que fazem bem pra ela esses momentos de distração; “um pouco de cafeína gelada é sempre bom para animar o dia”, afirma.

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Eventualmente, pode ser que numa sexta-feira de manhã ela combine com as amigas, pelo WhatsApp, para sairem e todas se animem. Mas, o dia vai passando, chega o começo da tarde e, quando todas já fizeram várias coisas, o ânimo ainda está lá, mas um pouco mais apagado. “Quando chega o final da tarde, a promessa é sempre a mesma: Ai, amiga! Vou descansar um pouco e já vou. Mas aquele ‘já vou’, às vezes, representa um ‘já desisti’”, conta Flávia. “Vou sair para fazer o que? Prefiro ficar em casa mesmo. Com isso a gente adia uma nova vida, uma nova família, mas também adiamos novos problemas’’, reflete. Em seu tempo livre, Flávia gosta mesmo é de viajar, mas para isso depende da disponibilidade da filha. Em 2017, por exemplo, a viagem de férias não aconteceu porque Lara estava em época de prestar vestibular. Ao longo do ano, a bailarina também tem uma agenda complicada por conta da rotina de estudos e de trabalho. Contratada por duas companhias de dança, Lara viaja muito pelo Brasil e para fora para dançar. Para fazer os vestibulares, teve que pedir licença do trabalho. Apesar da filha querer seguir carreira como bailarina, Flávia incentivou-a a fazer uma faculdade antes de qualquer outra coisa. E ela optou por estudar Jornalismo, por mais que esse curso não fosse o ideal na visão de sua mãe, que acha que trabalhando como jornalista Lara não vai conseguir ter tudo o que ela está acostumada a ter. Flávia conta que Lara não tem muito contato com seu pai, que mora em Brasília, e que por isso só o vê duas

vezes por ano, para passar datas comemorativas junto com ele, e o contato fica por aí. Ela conta que o ex-marido é muito ocupado e, aos 70 anos, não tem mais idade para conseguir lidar com Lara. ‘’Eu me cobro muito. Será uma derrota pra mim se alguma coisa der errado com minha filha’’, admite Flávia, que sabe muito bem que toda a sua vida gira em torno de Lara. Seu maior medo vem da probabilidade de ter que se afastar de Lara, que está para entrar na faculdade. Ela teme o que possa acontecer com ela longe de casa, e também não gosta da ideia de serem reduzidas suas obrigações como dona de casa, já que a maior parte delas é diretamente relacionada ao bem-estar de Lara. ‘’Se eu pudesse, eu não deixaria’’, diz, com a certeza de uma mãe que não quer ver a filha partir, ‘’mas tenho que deixar, se não vou ser cobrada depois: ‘não fui uma grande jornalista porque minha mãe não me apoiou’. Ela nunca vai poder falar isso pra mim, entendeu?’’, argumenta Flávia. Falando sério, mas em tom de brincadeira, ela conta que mudaria toda a sua vida, caso fosse preciso, para deixar sua filha mais confortável. “Minha terapeuta fala que é, e ela é minha prioridade’’, garante. Mas, mesmo com toda essa dedicação, carinho e esforço, Flávia não se lembra da última vez em que escutou um agradecimento vindo da filha. “Magina, que escuto obrigado! A única palavra que eu escuto, por educação dela, é boa noite. Boa noite ela me dá, ela vai onde estou e me diz: ‘boa noite, mãe’’’, conta com os olhos brilhando ao lembrar dos momentos diários de carinho da filha.

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Quanto à educação de Lara, ela sempre fez questão de educá-la pensado numa boa educação, no mais correto. ‘’Bem ou mal, eu vou podando as amizades que eu não quero, sem falar pra ela’’, conta a mãe, que vive preocupada com as amizades da filha, “já que no ambiente dos bailarinos dizem que acontece bastante coisa ruim”, comenta. Como toda adolescente, a bailarina de Flávia está em uma fase da vida em que só interessa curtir e ser independente. O sonho de Lara é ter sua própria casa para receber seus amigos e Flávia conta que ela lhe pede mais liberdade, “para que ela possa cair e aprender a se levantar sozinha”. Mas quem disse que Flávia confia em todo esse desejo de liberdade? Como supermãe, fica preocupadíssima! Foi mesmo quando sua adolescente quis passar dez dias com as amigas no litoral, em Jurerê Internacional, que Flávia percebeu que a filha ainda era muito imatura, apesar de trabalhar desde muito jovem como bailarina. Para a bagagem, as amigas – que também são menores de idade – ganharam bebidas dos pais para curtirem as festas na praia, mas Flávia não deu nada disso para Lara. “Paguei o hotel, as refeições e todas as festas, foram oito festas. E ela falou que ela não tinha mãe, porque eu não tava dando whisky pra ela. Aí, eu falei: se isso é que é ser mãe, você realmente não tem! Vê se você acha uma lá’’, conta, ao relembrar aquele momento de dor. “Fiquei com vontade de bater nela naquele dia, mas não batí, porque ela é muito fofa’’, brincou a mãe coruja. Aquela cobrança, que Lara fez na brincadeira, ficou por meses ferindo o coração de mãe de Flávia, mas agora a

preocupação já é outra. Com Lara prestes a entrar na faculdade, Flávia não vai dormir bem enquanto não tiver certeza de que a filha se ajeitou, mas ela promete tentar. Quando puder confirmar que Lara está bem, a advogada quer se aposentar e viajar por aí, pela Europa, mais especificamente. Ela ainda não sabe se vai ter coragem de deixar Lara vivendo seus sonhos rebeldes por aqui enquanto se aventura pela Europa, mas de uma coisa ela tem certeza: pretende passar o resto de seus dias pertinho da filha. “Quero só ver se você vai cuidar de mim quando eu ficar velha, quero só ver!, é o que eu sempre falo pra ela”, conta rindo a mamãe Flávia, enquanto toma o último gole do café gelado pedido no começo da nossa conversa.

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Foto: Isabella Marão

Flávia em seu quarto, onde guarda as cinco sapatilhas que Lara ganhou em competições internacionais.

Foto: Acervo Pessoal

Vânia

“Ser dona de casa eu acho que é muito amor e responsabilidade.’’

Quem pega o elevador do prédio de cinco andares que fica perto do chafariz da avenida Presidente Kennedy, em São Caetano do Sul, e se depara com um monte de sacolas de supermercado no piso já sabe que se tratam das compras de Vânia, a síndica. Todos sabem que ela morre de medo de andar de elevador. Como o elevador ldo prédio é antigo e lento, Vânia Cristina Ultramani Mendes quase sempre consegue subir pelas escadas e chegar junto com suas compras no quarto andar. Mas, quando não consegue, os vizinhos já mandam o elevador de volta para o seu andar. É que ela, o marido e os dois filhos moram no 55

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prédio há cinco anos, e já se mudou para lá sendo síndica. Então, os moradores já conhecem um pouco suas manias. Na verdade, a história é mais longa do que essa; a família mudou-se de volta para o edifício após quinze anos longe do prédio, onde haviam vivido quatro anos. A mudança se deu pela vontade de morar em uma casa térrea, mais espaçosa, mas um pedido inusitado acabou mudando o destino da família. Como o síndico da época estava de mudança para o interior, ele decidiu procurar Vânia e pediu que ela voltasse ao prédio para ser a nova síndica. Com um filho pequeno em casa, a princípio ela recusou o convite, mas depois acabou aceitando pela insistência do antigo síndico: “Tem que ser você, não tem escolha!’’. Assim, sem ter planejado nada, a mãe de 46 anos tornou-se síndica do condomínio. E a tarefa não é fácil não. Tem que cuidar de toda a documentação do prédio. E ela observa: “sabe como que é, né? Prédio antigo, tem que passar por avaliações de engenheiro, bombeiro, eletricista, e tudo isso toma tempo. Por isso, sobra sempre para a dona de casa que-não-faz-nada-mesmo”. Aliás, Vânia acredita que a frase ‘’ela não faz nada mesmo’’ deve ser muito ouvida por toda dona de casa. Apesar de ser bem exaustivo e da responsabilidade que representa, ela gosta do trabalho; “só o desejo de ver tudo nos trilhos acaba compensando todo o esforço e as noites de sono perdidas”. O cansaço da rotina é tanto que, por conta da preocupação e da correria, ela até já emagreceu dois quilos, mas ela sente que seu trabalho é

necessário. Afinal, se ela não o fizer, quem vai fazer? Depois de toda a administração, que é burocrático, vem a parte boa da função de síndica, para quem adora decoração, como ela. Pintar as paredes, modernizar o elevador, deixar tudo bonitinho e arrumado. Mas, enganase quem pensa que Vânia tem esse trabalho todo pensando em, depois, curtir o apartamento. Ela só quer cumprir sua missão como síndica e depois voltar para o interior do estado. Na verdade, ela e sua família são de Araraquara, a cerca de 290 quilômetros de São Caetano do Sul. Seu marido é da região de São José do Rio Preto e também tem vontade de voltar para o interior do estado de São Paulo. Ele é autônomo e quase não fica em casa durante a semana, trabalha viajando pelas estradas do interior. ‘’Eu tenho vontade de voltar pro interior, pra voltar a ter proximidade com minha família, tenho vontade de, no domingo, ter aquilo de ir na casa de alguém, coisa que não tenho em São Caetano. Tenho esse lado mais família mesmo’’, conta a dona de casa que vive com saudades da Terra da Laranja. Para o casal, seria perfeito voltar a morar naquela região conhecida como morada do sol. O problema é que, depois de 23 anos de casamento, eles criaram raízes. Vânia tem muito trabalho como síndica e tem sua rotina, seu filho mais novo, Matheus, só tem 13 anos e frequenta escola em São Caetano, e Gabriel, de 22 anos, ainda precisa acertar sua carreira como jogador de futebol. “Estamos esperando as questões do prédio se

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resolverem, e meu filho decidir se vai continuar no futebol, para ir pro interior’’, conta. Mas seu apartamento, com histórias de 15 anos de vida, também acaba sendo um fator decisivo para a permanência da família Ultramendes no ABC paulista. Isso, talvez porque Vânia tem um grande zelo pelo imóvel, do qual cuida com carinho, como se fosse o terceiro filho que ela sempre quis ter. Por falar em filhos, a maternidade sempre foi muito presente na vida de Vânia. “Sempre tive vontade de ser mãe, meu sonho era ter três filhos, engravidei três vezes, mas um eu perdi’’, relembra. Ela é a filha do meio, nascida entre dois homens, e sempre gostou de brincar de boneca e de casinha, de ver vestido de noiva, fazer comida, e essas coisas infantis estereotipadas para o gênero feminino. “Eu acho que um pouco é reflexo do que vivi com minha mãe’’, reflete. Para sua felicidade, com seu marido ela conseguiu realizar esse sonho. Valdo e Vânia se conheceram em Araraquara mesmo, numa época em que ele trabalhava na cidade. O inusitado da história fica por conta da idade que Vânia tinha quando conheceu seu marido, apenas 15 anos, enquanto ele já tinha 25. ‘’Até meu filho fala: ‘Pai, hoje isso é pedofilia!’’’, brinca a mãe de Matheus e Gabriel. A diferença de idade não atrapalhou nada e o relacionamento foi sempre bom até o casamento. Vânia foi morar em São Caetano do Sul há 23 anos, na época em que a banda Mamonas Assassinas fazia sucesso com “Pelados em Santos’’. A mudança foi por conta do emprego do marido, que, então, trabalhava em São Paulo.

No começo, ele morava na casa de um tio na Rua Roma, e acabou se apegando à vida sulcaetanense. Ele fez boa propaganda da cidade para a garota do interior, disse que era tranquila para se trabalhar, e ela aceitou se mudar. Por lá ficaram e criaram os filhos. “A gente, que é do interior, quando vem pra São Paulo pensa que a cidade é um bicho papão’’, lembra-se, ao falar sobre seus primeiros anos na capital. No começo do casamento, Vânia foi morar em um condomínio com vários outros apartamentos, bem perto de onde seria construído o shopping da cidade, 16 anos depois. Na época, ela conseguiu uma transferência, da agência do banco em que trabalhava, em Araraquara, para uma agência na Rua Visconde de Inhaúma, em uma região muito agitada da cidade. Mas, ao se deparar com a cidade grande, Vânia ficou com medo, medo de ir trabalhar. “Você acha que tem ladrão a cada esquina’’, conta, lembrando da insegurança que sentia ao andar pelo centro comercial de São Caetano do Sul. Ante aquela insegurança que sentia, como o marido tinha um bom salário à época, os dois chegaram à conclusão de que não valia a pena ela continuar sendo bancária. Até porque, as operações bancárias ainda não eram informatizadas, como são hoje, e por isso os funcionários acabavam saindo muito tarde do serviço. “Meu marido tinha esse lado meio machista, dizia que ele tinha que trabalhar e que mulher devia cuidar da casa, e eu acho que deu até muito certo, na verdade’’, confessa a dona de casa. Assim, decidiu abandonar o

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emprego no banco e se dedicar exclusivamente ao seu lar. A ideia inicial era que a Vânia Dona de Casa fosse um jeito de ser temporário, mas aconteceu que, um ano depois do casamento, veio a primeira gravidez. Foi então que ela começou a colocar em prática tudo o que sempre viu sua mãe fazer; um bolo caseiro, cuidar do filho, arrumar a casa. Tudo o que ela sempre brincou quando criança acabou se tornando realidade, e até hoje ela agradece “por ter tido a oportunidade de não precisar trabalhar”. “E eu não me via trabalhando longe dos meninos’’, ela confessa. Diz que até tentou, quando Gabriel tinha uns quatro anos de idade, mas ele foi se desenvolvendo e se interessando por esportes, até que o futebol tomou toda a vida da mãe e do filho. “Levava pra lá, levava pra cá, eu não tinha muito tempo’’, conta. Quando ele começou nessa vida, ela ia em todos os lugares em que ele treinava para checar as condições e se faltava alguma coisa. Até o colchão da cama ela chegou a trocar. Tudo para o bem dele. “Coisa de mãe, lógico”, brinca Vânia. Mesmo quando pensa que poderia ter continuado com seu emprego no banco, e que já estaria quase se aposentando, Vânia não se arrepende de ter dedicado seu tempo aos filhos. “Foi bom poder ficar em casa, cuidar dos meus filhos. Sei que fui muito útil’’, admite. “Até hoje meu filho joga futebol, e se eu trabalhasse fora não teria condição de acompanhá-lo e apoiá-lo. Quando ele era pequeno eu andava com ele nos times em que ele treinava, e muitas vezes era longe, em lugares em que alguém precisa

levar e buscar’’, explica. No entanto, apesar de não trabalhar fora de casa e com a rotina agitada de mãe e dona de casa, ela sempre sentiu necessidade de fazer algo além. Hoje, o que a satisfaz pelo trabalho como síndica corresponde ao que fazia naquela época, quando era empreendedora. Vânia pegava, em consignação, roupas e bijuterias para vender a amigas e na porta da escola do filho. E Vânia é tão inquieta que não sossegou no primeiro filho. O desejo de ser mãe novamente falou mais alto e quando Gabriel tinha 10 anos ela engravidou de Matheus e começou tudo de novo. Para ela, sempre será essencial ficar perto dos filhos, ficar em casa para cuidar deles. Sua ideia é ajudar Matheus a encontrar um emprego quando ele estiver mais velho, daqui a uns dois ou três anos. Apesar de não ter feito faculdade, ela garante que não pretende voltar a trabalhar na área em que se formou, como técnica em contabilidade. Seu desejo é trabalhar com coisas mais leves, mas ainda não existe uma ideia definida em sua cabeça, mas ela sabe dos desafios que deverá enfrentar quando decidir voltar ao mercado de trabalho: ‘’Depois de tanto tempo sem trabalhar fora, fica até difícil voltar pro mercado, e ainda tem a questão da idade, que torna mais difícil ainda’’, lamenta Vânia. De certa forma, como síndica, ela ainda trabalha um pouco com a contabilidade, mas garante que sua personalidade mudou muito desde que fez o curso técnico profissionalizante quando mais jovem. Em meio à correria, já passaram por sua cabeça

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cursos de design, de decoração e até psicologia, mas ainda falta a vontade real de seguir em frente de forma definitiva. Ela sempre está muito envolvida com muita coisa. Como o marido fica fora a semana toda, cabe a ela levar e buscar o filho à escola, ao curso de Inglês e aos treinos de futebol, além de cuidar da casa e de resolver os problemas do prédio. “Não adianta, não tem folga. Às vezes penso em arrumar um emprego, mas em que momento vou poder trabalhar? Não tenho tempo para isso!’’, reflete a dona de casa. Além da vida corrida, a preocupação por deixar o filho sozinho em casa também pega no seu coração de mãe. Vânia brinca que se sente como uma galinha que protege os pintinhos debaixo da asa, porque não consegue desapegar do filho mais novo. Ela sabe que é comum mães deixarem seus filhos sozinhos em casa, mas o medo de acontecer alguma coisa com Matheus enquanto estiver fora a impede de fazer muitas coisas. Mas, já está conseguindo desapegar um pouco, pelos menos quando precisa ir rapidamente ao mercado perto de casa. Muitas vezes, até mesmo passeios que faria com seu marido foram cancelados por conta dessa vontade que tem de estar no controle e de saber que todo mundo está bem. Em um fim de semana, seu marido a convidou para um jantar romântico, e então seu filho mais velho prometeu chegar em casa a tempo para cuidar do mais novo. Só que o atraso do filho a fez desistir do jantar e a noite acabou em pizza em casa para os três. “Se estiver todo mundo bem, tá ótimo!’’, afirma fundo ao admitir que não se sentiu

culpada por não ter saído com o marido. Aos domingos, com certeza, os Ultramendes costumam ficar juntos. Jogar baralho e fazer um churrasco já virou tradição. Às vezes jogam só entre eles, e em outras com amigos. Em alguns feriados, os familiares de Vânia os convidam para visitá-los em Araraquara, e ela até se anima com a ideia, mas fica com dó do marido, que passa a semana toda nas estradas do interior e aos finais de semana gosta de ficar em casa. Ele sempre diz que poderia ir, mas Vânia diz que se sentiria culpada e por isso opta por fazer algum passeio na cidade mesmo. Ela considera esses momentos de diversão importantes por causa da rotina pesada que enfrentam. Todos os dias, às 7h00, ela leva o pequeno para a escola e depois vai para a academia. Fica lá até umas 9h00, dependendo da duração das aulas de ginástica, e só então começa seu trabalho. Primeiramente vai ao mercado e depois já parte para o açougue. Quando se dá conta, já está quase na hora do Matheus chegar da escola e ela tem que deixar o almoço pronto. Às vezes nem dá tempo de tomar um banho antes de ir para o fogão. A parte da tarde também é uma loucura. Ou ela sai para resolver problemas fora de casa, ou fica para organizar as finanças, lavar roupas, cozinhar e fazer a limpeza da casa. E como o trabalho de dona de casa é interminável, o dia rende até o anoitecer. Tem dias em que se obriga a ir dormir de madrugada, porque não consegue dar conta do trabalhos como mãe, dona de casa e síndica na luz do dia. “É cansativo, tem dia que você senta e desmaia, tem que

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perco o sono, mas eu gosto’’, avalia. Em casa, é ela quem faz a roda girar. Administra os estudos do mais novo, ajuda o filho com a carreira de jogador de futebol, agenda consultas médicas, faz as compras todas e leva os filhos onde é preciso, faz a comida e organiza as finanças. Sem ela, a casa dos Ultramendes corre o risco de virar um pequeno grande caos. E nessa rotina que ela adora, a cabeça de Vânia não para. Tanto, que combinamos de nos encontrar no terceiro dia do mês, mas ela já pensava em remarcar a entrevista comigo por ter a sensação de que tinha alguma conta para pagar naquele dia. Só que o pagamento deveria ser feito no quinto dia, e não no terceiro. Enfim, enquanto conversávamos, ela já assava um pão de queijo e preparava um café para o filho mais novo. “Mãe é assim, tem que cuidar bem”, brinca, lembrando que, aos poucos, ia conseguindo ter um pouco mais de tempo para si mesma. É que seu filho mais velho ganhou um carro e começou a dar as caronas que Matheus precisa. Só isso já alivia bastante para Vânia, que vive envolta na papelada relativa às questões do prédio que administra. Ela confessa que não queria, a princípio, que Gabriel ganhasse o carro. Para ela, dar muitas mordomias para os filhos faz com que eles pensem que tudo é muito fácil. “Não pode ser tão fácil, para mim foi difícil eu dou valor, por isso sempre o aconselhou a cuidar muito bem do seu carro’’, explica, ao lembrar-se de quando ganhou seu primeiro carro, um Uno, de seu marido. Recorda-se que quando foram vender aquele Uno, o comprador não

acreditou. “Eu encerava até o capô por dentro, e quando se abria o motor, parecia carro novo, eu tinha um zelo, um amor’’, conta satisfeita. Quanto à divisão de tarefas, ela diz que ainda está um pouco indefinida na casa. Lembra que um dia pediu para que o mais velho fizesse arroz, o que ela já havia ensinado várias vezes, mas ele ainda não sabia direito. E reclamou da situação: ‘’Não adianta, a gente ensina, mas filho só aprende o que quer’’. Na sua opinião, os filhos precisam saber pelo menos o básico, para poderem se virar sozinhos. “Até que arrumar a cama, esquentar comida e se virar sozinhos de vez em quando eles já sabem. O mais novo já sabe fazer ovo, esquentar sua comida e até fazer um excelente brigadeiro”, comemora como mãe toda orgulhosa. Já o mais velho é sempre mais cobrado pela mãe, e como ele sempre segue uma dieta, muitas vezes acaba fazendo sua própria comida. E Vânia odeia esperar que a louça seja lavada quando ele quiser. “Eu quero que faça a comida e já arrume a cozinha’’, afirma a inquieta dona de casa. Nos últimos anos, Vânia está praticando uma mudança que aprendeu na terapia: está treinando falar mais a palavra ‘’não’’. “Estou me policiando para isso, era um defeito meu não saber falar não. Tanto que fiquei doente, você acaba se sobrecarregando, o corpo não aguenta’’, explica, dizendo que também está começando a delegar funções em casa. Ela sente que essa tradição das múltiplas funções das mulheres em casa ela aprendeu desde criança. E analisa:

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“Não sei se é da época, não sei dizer se é machismo ou feminismo, o que seriam aquelas exigências, mas sei que sempre ficava claro que a mulher tem que fazer’’. Pensando na sua infância, se abala: “Eu não me lembro da minha mãe mandar meu irmão lavar louça, ou recolher a roupa do varal, isso ela só falava pra mim”. E raciocina: ‘’Eu já fui filha. Eu sei que a gente tem uma visão de que aquilo é pra mãe fazer, vira uma obrigação, mas não é por aí’’. Vânia conta que sua mãe sempre foi uma mulher incrível e uma dona de casa exemplar, mas não concorda com a ideia que norteia sua família, de que a mulher tem que ter a responsabilidade de fazer tudo. Sua mãe era uma Mulher Mil e Uma Utilidades. Até quando seu marido precisava de ajuda financeira, ela dava um jeito; ou fazia as unhas das amigas, ou pegava costuras para fazer em casa, vendia pães, enfim, se virava, como só uma boa dona de casa sabe fazer. “A gente acaba crescendo vendo aquilo e se influencia”, reflete. Assim, Vânia também fazia o que podia e do jeito que dava. Começou a trabalhar cedo, em loja de calçados, depois em loja de roupas e depois em um banco. Até hoje ela se vira como pode com essa rotina de dona de casa solitária, longe de seus familiares do interior, mas confessa que muita coisa ela faz “no automático”, atitude que não vê nas jovens de hoje em dia. “Hoje a moçada tropeça e não tira do chão’’, reflete. Vânia percebe claramente essa falta de iniciativa nas filhas de suas amigas e na namorada do filho. ‘’Acho que

as meninas hoje não estão preparadas como as da minha geração e as das anteriores, hoje as jovens têm um pouco de dificuldade para encarar os problemas’’, analisa. ‘’Não está bom, larga, desiste, troca, é a geração do quebrou e não conserta!’’, observa. Vânia comenta que seu apartamento não é novo, que já tem 15 anos de uso, mas destaca que tudo é bem conservado. Como era seu antigo Uno, tudo ali é usado com muito cuidado e guardado com muito amor. Sua cozinha planejada branca não sofre com o amarelamento que o tempo costuma provocar e ela não quer trocar o microondas branco por aquele que é de inox e que está na moda. Porém, reconhece que apesar das novas gerações descartarem mais coisas, elas também se modernizaram no sentido das pessoas serem mais colaborativas: “Hoje já é bem mais comum a divisão de tarefas entre marido e mulher”, aponta. Quando era criança, sua vida era bem diferente da de seu filho mais novo. Aos 13 anos, ela já assumia a responsabilidade de cuidar de três crianças, seu irmão mais novo e mais um casal de irmãos que confiavam a ela. E ela, como acontece hoje com tudo o que se propõe a fazer, deu conta. “Talvez essa responsabilidade para cuidar da casa e de filhos seja algo que aprendi muito cedo’’, pondera. Pensando nisso, ela observa que com essa vida “de quem começa a trabalhar cedo e se casa cedo”, ela nunca teve muito tempo para pensar em tecnologia. Sendo assim, Netflix, por exemplo, para ela é um mistério. Ela até sabe que existe e que fica lá na televisão da sala, mas usar é uma tarefa complicada. Com seu celular,

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acontece o mesmo. Apesar de adorar redes sociais e usar bastante o Whatsapp, ela tem dificuldade para usar alguns recursos do aparelho. “Esses dias, eu estava tentando imprimir uma dieta, mas não consegui’’, confessa. Mas, admite, talvez a pior parte nessa necessidade de usar o celular seja, com certeza, lembrar de colocá-lo para carregar a bateria. E ela brinca: “Não é que eu não goste de ficar ligada 24 horas por dia, é que não me incomodo por ficar um pouquinho offline”. Mas, quem não gosta nada dessa história de Vânia ficar desconectada é seu marido, que vive tentando falar com ela e raramente consegue. Para tentar resolver essa situação, ele a presenteou com um telefone mais moderno. E fez isso pensando que ela iria se empolgar, lembrar de usar o carregador e se lembrar de atender ligações. Só que para Vânia, “celular é tudo a mesma coisa. Funcionando, está ótimo!”. Do celular, o que ela gosta, mesmo, é de ler uma receita de vez em quando, de copiar alguma ideia de decoração e de ver dicas sobre cuidados com a casa. Mas isso, bem de vez em quando, porque ela sabe que não pode deixar um aparelhinho tão pequeno tomar muito tempo do seu dia. Para ela, bom mesmo é coar um bom café e chamar as vizinhas para bater um papo na cozinha. Um encontro bem tête-a-tête. “Às vezes, você escreve uma coisa com um sentido e a pessoa entende com outro, sou mais do ao vivo’’, diz Vânia. Ela acredita que a cozinha é o melhor lugar para conversar e bater um papo com as amigas.

Por estar bem ao lado da porta de entrada de apartamento, ela diz que a cozinha acaba sendo bem convidativa. “E com um café fresco sobre a mesa fica melhor ainda”, brinca. E se a cozinha acaba sendo o lugar onde a dona de casa mais trabalha, por quê não transformála em um espaço de lazer também? É na cozinha que Vânia sempre pede para os filhos lavarem a louça, é onde ela prepara o almoço da família, e onde toma um ar gostoso vindo da janela que dá para a rua. Na opinião de Vânia, nem toda dona de casa tem hábitos semelhantes. Ela, por exemplo, gosta muito de conversar, é daquelas que arruma assunto até mesmo na fila do banco. E, justamente por isso, por já ter conversado com muitas mulheres que vivem situações parecidas com a dela, ela acha que nem toda mãe sabe ser dona de casa, e que nem toda dona de casa consegue conciliar os afazeres domésticos com o acompanhamento dos filhos. E uma certeza ela tem: muitas acabam se cobrando demais. “A gente tem que se policiar. As pessoas se habituam a ver você fazer tudo e encaram a sobrecarga de trabalho como normal, pensam que você faz ‘no automático’’’, conta ela, ao admitir que também sofre com a canseira, como toda mulher. “Toda mãe sempre faz e acha que é normal’’, opina, ao mesmo tempo em que conta que uma de suas tias sempre a critica por sua mania de limpeza. Mas, nem com as críticas ela consegue deixar de ser detalhista. Uma força interior sempre a obriga a concluir os trabalhos domésticos, para só depois passar a cuidar do resto da vida, diz ela. E essa obrigação, muitas vezes, acaba

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comprometendo muito do seu tempo. Há até uma brincadeira relativa a essa mania que é compartilhada por toda a sua família; em função de uma parente que mantinha sua casa sempre limpíssima, apesar de morar em um sítio, quando alguém se dedica intensamente à limpeza todos a chamam de Catarina, são Catarinas todas as fanáticas por limpeza. Vânia reconhece que essas críticas, apesar de serem feitas em tom de brincadeira, a estimularam a se controlar melhor e a exercitar mais a negação. Ela teme ficar com manias como outra de suas tias do interior, que está com 74 anos e não para nem por um segundo de servir as visitas. “Ela nem senta para comer com os familiares, fica sempre na pia e não consegue nem bater um papo com os convidados. Eu acho até que ela não dobra mais, porque nunca senta”, brinca Vânia. Na verdade, quando chegar aos 70 ela pretende aprender a usar a Netflix e ficar descansando. Inclusive, sua intenção de aprender a dizer não a está ajudando a alcançar esse futuro distante. E já defende: “Mãe não é uma máquina que faz tudo, que se joga tudo lá dentro, não é uma Brastemp que lava e centrifuga. Não é por aí!’’. Dessa forma, nos últimos tempos, ela tem conseguido mostrar aos demais moradores de sua casa que nada é autolimpante e que o trabalho que ela faz não é obrigação só dela. No entanto, seu marido não entra muito nesse “exercício do dizer não”. Como ele passa a semana toda fora, Vânia vê seu serviço de casa como uma contrapartida. Como em uma sociedade, a parte dela é

cuidar da casa e dos filhos e a parte dele é ser o provedor financeiro da família. Mesmo assim, com essa clara divisão de funções, sempre que pode ele a ajuda também, principalmente quando a questão é cozinhar. Vânia não é muito fã de cozinhar. Ela diz satisfeita que não tem do que reclamar, porque ele sempre a agradece e a trata com muito carinho. A única reclamação que ouve é que ela é muito chata com limpeza, tanto que os três homens da casa vivem pedindo que ela relaxe, que deixe as coisas como estão. “Ninguém me cobra, mas eu me cobro’’, confessa a dona de casa que mantém sempre o aspirador ligado na tomada. “Ser dona de casa é bom”, pondera Vânia, reafirmando sempre que faz tudo por amor. Contudo, ela já não esconde que pretende continuar nessa função só até poder sair de casa tranquila para trabalhar. Ela assume que se não fosse pelos filhos já teria arrumado um emprego há muito tempo, e justifica porque o faria: “Quando você trabalha fora, trabalha muito menos do que alguém que trabalha em casa, o serviço de casa não tem fim e não se ganha nada no fim do mês”. Apesar da consciência que tem sobre a profissão de dona de casa, e de toda a cobrança que ela mesma se faz, Vânia não perde o bom-humor. Diz que não pode ser fotografada como está vestida, usando uma bermuda, uma blusa clara e o cabelo preso caindo nos olhos. É que ela estava lavando o tapete antes da minha chegada para a entrevista, e nem deu tempo de tomar um banho. “Sabe como é? Vida de dona de casa”, brinca enquanto nos despedimos.

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Foto: Acervo Pessoal

Vânia e o marido tomando um café e colocando o papo em dia, como ela gosta.

Foto: Acervo Pessoal

Cleonice

“Ser dona de casa é ser ativa 24 horas por dia.’’

Rotina, apenas rotina. O usual define toda estrutura familiar de Cleonice Silva Oliveira, e não poderia ser diferente. Afinal, só com muita disciplina ela poderia dar conta de ser gerente financeira, mãe de gêmeos, filha, irmã, esposa, dona de casa e, além de tudo, mulher. Mas, além de disciplinada, para dar conta dessa rotina também é preciso ser como a Cléo. Para ela, não é preciso muito para ter uma casa limpinha, filhos educados e um marido companheiro, basta conseguir se organizar. “Tudo é questão de adaptação”, garante. Sua capacidade para organizar a agenda facilita tanto sua rotina que Cléo decidiu compartilhar o que 73

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aprende com outras mulheres. Sua ideia era mostrar que dá, sim, para deixar a casa organizada e ao mesmo tempo ter uma vida, e que nem é preciso sofrer por ansiedade ou se desesperar quando o vidro da sala não está limpo. Foi aí que, há três anos, teve a ideia de criar, no Instagram, o De Casa Limpa. Naquela época, Cléo e seu marido estavam reformando a casa, vivendo em meio a sacos de cimento, cal e outros materiais de acabamento, quando surgiu a ideia de compartilhar como fazia para manter a casa organizada, nas redes sociais. E manter tudo organizado e limpo mesmo com os pedreiros e toda a sujeirada da reforma não foi fácil. Resultado? Mais de 70 mil seguidores no Instagram. Todo mundo queria ver como é possível uma casa ficar limpa apesar da reforma e com os pedreiros trabalhando. O sucesso na rede social foi tão grande, que ela teve que criar um blogue, uma página no Facebook e até um canal no YouTube. O DeCasaLimpa.com é um projeto independente, só dela. Cléo teve ajuda de uma pessoa com o layout do site e, às vezes, até aceita postagens de colaboradores, desde que agreguem valores positivos ao conteúdo de seu blogue. Aliás, não tem tido muito tempo para atualizá-lo, por conta da vida corrida. Mas, mesmo assim, a dona de casa já tem projetos para o futuro. A blogueira, que já ganhou lava-louças da Brastemp, parte da cozinha reformada, e até o prêmio “Mulheres em Ação’’ de sua cidade, conta que ainda vão acontecer muitas mudanças legais e parcerias até internacionais. ‘’Não esperava, fiquei muito feliz. Nada disso tira minha

simplicidade, eu morro de vergonha’’, confessa ela, que não gosta de ficar divulgando por aí que faz sucesso na internet, tanto que o pessoal que trabalha com ela só foi descobrir há pouco tempo esse lado B da gerente financeira. E essa outra Cléo encontra leitoras que vivem pedindo o seu segredo para conseguir lidar com o trabalho fora e dentro de casa, e a resposta sempre é a mesma: tenha uma rotina, menina! Dividir as tarefas e não deixar para fazer tudo de uma vez é o segredo para manter a casa limpa e organizada. “Eu ajudo muito elas no inbox. Elas perguntam se eu vou cobrar delas, se posso ir na casa delas’’, conta se divertindo com as perguntas que recebe no inbox das páginas. Cléo não tem nenhuma formação em marketing, mas aprendeu na raça que para cada rede social que cuida tem um jeitinho diferente de fazer conteúdo. É coisa que ela percebe por conta da sua curiosidade insaciável. Para ela, a mulher moderna tem que pensar em o que pode ser feito durante a semana, em pequenos intervalos, e em o que pode ser feito aos finais de semana. E, se puder envolver a família nessa rotina, melhor ainda! Aí vai mais uma dica essencial para o sucesso da casa limpa e organizada: não vale se matar para deixar tudo em ordem se você não tira um tempo para você mesma ter um momento de descanso, né? O blogue também já a ajudou em momentos mais difíceis da vida. Em dezembro de 2017, época em que o irmão de Cléo faleceu, ela ficou bem sumida do De Casa Limpa. As leitoras perceberam que tinha algo de errado ali,

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e passaram um carinho gostoso de se sentir em momentos de dificuldade que ajudou bastante a blogueira a conseguir se reerguer. Fora o carinho das anônimas, ela também já fez boas amizades virtuais que acabaram dando certo até na vida real, em que ela é dona de casa e gerente financeira. Trabalhando há 18 anos como gerente financeira em Mauá, cidade onde mora com os filhos e o marido, sua rotina é como a de qualquer mulher que trabalha fora e tem que cuidar da família quando chega em casa. A dupla jornada de Cléo começa logo cedo, bem antes do período comercial das 8h00 até as 17h00, em que ela atua profissionalmente. Por volta das 5h30 da manhã, ela já levanta e começa a organizar a casa. Todos os dias. Com um casal de gêmeos de 8 anos o trabalho como mãe é dobrado, então ela não pode bobear. A primeira tarefa do dia é lavar roupa, e se tem alguma coisa que ela já pode ir adiantando, ela faz. Limpar a sala de jantar, dar uma arrumada geral, colocar a louça na máquina de lavar, arrumar a cozinha. Por sorte, o marido entra mais tarde no serviço, às 10h00, então ele consegue ficar de olho nas crianças de manhã e dar o café da manhã. Se de manhã fica apertado ela deixa para a hora do almoço. Aliás, esse período do dia é uma das poucas coisas que não é responsabilidade de Cléo, que conta com a ajuda da mãe nessa tarefa diária. Depois de arrumar a roupa de cama dos gêmeos e pentear os cabelos, ela parte para o banheiro. Só para dar um tapa geral, tirar um pouco o pó. “Quando você foca você faz no piloto automático’’, explica. E quase sempre ela passa o seu amado rodinho

com espuma e água. ‘’Passo o rodinho com água para não levantar o pó, ao invés de varrer, é muito bom, você tira a sujeira e o pó junto’’, dá a dica. O restante fica para quando ela voltar, quase 18h30. Aí vem aquela rotina de sempre. Tomar um café reforçado com as crianças, ajudar na lição de casa e dar uma geral na casa. Mas, para dar um ar especial e fugir um pouco da rotina, um dia da semana é reservado para curtir os gêmeos. Eles mexem mais no celular para ver vídeos e conversam entre si, coisas que Cléo julga serem essenciais no convívio entre mãe e filhos. Por isso, para conseguir estar presente na vida dos filhos mesmo com a correria, Cléo também aposta em uma rotina. E está funcionando bem para ela e pros gêmeos. Toda terça-feira os três assistem a algum filme diferente, é o momento de ficarem juntos no dia. E todos os dias ela tenta pelo menos dedicar vinte minutos do seu dia para dar uma atenção especial aos dois. ‘’Foi uma coisa que eu coloquei, porque ter os filhos foi opção minha, eles não pediram pra vir ao mundo, eu e meu esposo planejamos, então eles não tem que sofrer’’, explica. Mas com essa era tecnológica pode ser difícil conseguir a atenção de duas crianças de oito anos e o desafio pode ser grande até mesmo para ela, que tem que responder os comentários das seguidoras. Mas ela deixa claro que tem hora de pegar no celular e hora de conversar, de mãe para filho. Afinal, ela sente que precisa saber do dia dos filhos, já que ela acredita que mesmo as coisas mais bobas têm uma relevância enorme para conhecer um

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pouco da personalidade dos pequenos. Uma tática que ela usa para se aproximar mais dos gêmeos é a de compartilhar com eles o que está assistindo e ver o que eles assistem, como se fosse uma troca. Os gêmeos também adoram ver os comentários que as pessoas deixam no blog, eles comentam com a mãe e se divertem. ‘’E o fato de ter a rotina organizada eu consigo dar mais para eles’’, conta. ‘’Se eu vou limpar a churrasqueira eu levo eles, tá todo mundo junto, de quinze em quinze dias. Para ’suprir’ essa ausência, é o que eu faço’’, revela um pouco das estratégias que usa para ficar cada vez mais próxima dos filhos. Cléo tenta estar sempre pertinho deles quando pode. É que ela acredita que mãe tem muito essa coisa de querer se culpar por ficar longe dos filhos. Se pudesse, Cléo ficaria em casa, não apenas como dona de casa, procuraria empreender para não ficar parada, mas adoraria poder acompanhar ainda mais de perto o crescimento dos filhos. Mas o trabalho como gerente financeira complementa a renda da família e é importante para poder dar uma vida confortável aos gêmeos. Às vezes a culpa pega quando eles pedem para que ela os acordem de manhã, mas ela logo os lembra de que o final de semana irá chegar e eles poderão aproveitar um tempinho a mais juntos. ‘’Eu não tenho que ter culpa, nao é só comigo que acontece isso, têm tantas outras mães que às vezes não têm essa percepção de fazer da mesma forma que eu’’, lamenta a dona de casa. Ela conta que até quando está no

trabalho procura estar presente no dia a dia dos filhos. ‘’Tem uma câmera aqui em casa então eu fico falando com eles’’, explica que conversa o tempo todo com eles, para mostrar que mesmo longe está presente. O tempo que passa mais longe dos filhos é quando eles estão na escola. Mas no dia a dia os casquinhos, apelido carinhoso que remete ao casco da tartaruga, estão o tempo todo com a presença da mãe. E quando eles estão juntos, sai de baixo! Na sextafeira, então, é só folia. Cléo coloca a musiquinha do dia que inicia o final de semana e pula com os filhos. ‘’Feriado tem a musiquinha da felicidade, eu coloco e a gente ama!’’ Mas mesmo tendo uma boa rotina e conseguindo ficar bastante tempo com os filhos, Cléo ainda quer ter seu próprio negócio para ter mais flexibilidade e mais tempo para as demandas dos gêmeos, que vão crescendo cada vez mais rápido. O blogue é um dos caminhos que ela encontrou para começar a empreender. Com um leque bem amplo de conteúdo, o canal digital acaba atraindo empresas que se oferecem para ajudá-la na empreitada. Ela espera em até seis meses começar a ter um retorno financeiro com o De Casa Limpa. Mas enquanto o sucesso como digital influencer ainda não está no seu ápice, ela vai se virando como pode para conquistar uma renda extra. Agora ela vende perfumes importados para amigas e em grupos de WhatsApp. Assim, ela consegue preencher todas as necessidades que sua vontade de se mexer demanda e ainda ganha um dinheiro

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extra para ajudar em casa. Mas fazer tudo isso não é fácil, demanda uma cabeça organizada e muita força de vontade. ‘’Eu sou a mulher brasileira, mil e uma utilidades’’, brinca. Para ela, ser dona de casa é ser uma mulher ativa 24 horas por dia, mas não esquecer de cuidar de si mesma. “Ser dona de casa é em primeiro lugar cuidar de si mesma, você estando bem consegue distribuir, amplificar esse cuidado pra sua casa, pra família e pra todos que estiverem ao seu redor’’, reflete. Ser dona de casa é algo que, para ela, está enraizado na cultura familiar. ‘’É basicamente o que somos ensinadas desde pequenininhas, você vai casar, crescer, ter filhos. Mas quando você trabalha fora, por mais que você tenha uma auxiliar que te ajude, você é a dona da casa. Tudo depende do seu aval, você é quem manda.’’ Em sua casa é assim mesmo que funciona. Cléo costuma ser a responsável pela limpeza sozinha. Já na organização, ela conta com a ajuda das crianças e do marido. Desde pequenos os gêmeos aprenderam que quando algo é tirado do lugar tem que ser guardado. Ela acredita que não teria como fazer tudo sozinha, por isso é importante a ajuda dos outros membros da casa, mesmo que seja uma pequena parte. ‘’Geralmente a culpa da casa não estar organizada é da mulher, aqui eu tiro essa coisa, não é assim! Todos moram na casa, então todos deveriam fazer o mínimo possível’’, afirma. Como mãe, ela acredita ser importante cobrar esse tipo de atitude dos filhos. Afinal, ela dá o exemplo,

então espera que eles sigam para que quando crescerem possam ter uma casa harmoniosa e não sejam vistos como bagunceiros. E o momento de juntar os brinquedos é importante para mostrar como a casa arrumada fica melhor e as coisas ficam mais fáceis de serem encontradas. ‘’O dia que eles não fazem eu vou lá e faço, mas eles sabem que o dever é de todo mundo que está dentro da casa, porque eu não moro sozinha’’, conta Cléo, que faz questão de conquistar a ajuda dos filhos na conversa, já que ela não acredita que no grito as coisas funcionam. Inclusive, na casa dos Silva Oliveira o grito é uma coisa que não existe, e quando existe, é visto com estranheza pelos olhos de oito aninhos dos gêmeos. Um exemplo é que uma vez o marido de Cléo estava em outro cômodo e gritou seu nome para chamá-la. Na hora as crianças vieram perguntar se os pais estavam brigando, já que para eles ouvir um tom de voz mais alto significa que alguém está bravo na relação. E essa forma de ensinar é que está dando resultado na criação dos gêmeos como ela sempre quis. Aprender a ter responsabilidades e cuidado com as próprias coisas é prepará-los para um futuro em que ela não estará e não poderá mais olhar para e por eles. Outra tática que a mãezona usa é dar exemplos com fotos. Como ela faz para ensinar as suas leitoras, ela ensina as crianças. Ela lembra que quando os dentinhos começaram a nascer e os gêmeos tinham preguiça de escovar os dentes, ela decidiu mostrar uma foto comparando um dente feio e um bonito para incentivar as crianças a começarem a ter

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mais cuidado com a saúde bucal. “Impressiona? Sim, mas tem que ser assim‘’, garante. E assim ela vai educando os filhos. Conforme a idade foi avançando, as responsabilidades das crianças foram ganhando mais força também. Enquanto Cléo passa o rodinho com água, eles tiram o tapete, ou então lavam um copo sujo, e assim vão entrando na organização da rotina da casa. Esse passinho de tartaruga com os casquinhos provou estar dando certo quando Cléo precisou fazer uma cirurgia em 2017 e ficar de repouso total durante 15 dias. Sua mãe ajudava fazendo o almoço, como de costume, as irmãs ajudavam como podiam na limpeza, enquanto os gêmeos e o marido eram quem conservavam a casa em ordem, do jeitinho que Cléo gosta, cuidando das coisas com bastante carinho. “Como não tem um manual correto para criar seu filho, cada um é cada um’’, e ela tenta fazer da melhor forma possível, assim como sua mãe fez com ela. Tomando cuidado para não deixar nada massante, mas plantar uma sementinha de responsabilidade nas crianças. Sua mãe sempre trabalhou fora como empregada doméstica, além disso, também era dona de casa em um lar com nove irmãos e um marido que era aposentado por invalidez. Depois de trabalhar o dia inteiro arrumando a casa de outras pessoas, a mãe de Cléo podia contar com a ajuda dos filhos para organizar a sua casa, que era sempre impecável. Por ser a caçula de todos os irmãos, Cléo acabava ajudando mais a mãe por estar sempre em casa e sempre

teve um carinho enorme pela mãe. Na parte da manhã a pequena Cléo ia na escola, pela tarde fazia a lição de casa e logo já começava a pegar as tarefas domésticas. Lavava louça, passava pano, arrumava a casa. “Eu via que ela chegava cansada, a rotina da mulher quando ela trabalha fora e cuida da casa não é fácil, então eu ajudava ela’’, relembra. A casa era simples, mas sempre muito bem cuidada por elas. Com o piso de vermelhão, aquele rústico que era comum ser visto em casas mais simples, dava um trabalhão ver o danado brilhando, mas ela encerava e ninguém ficava pisando para não ficar marcado. Ficava tudo impecável. A rotina de dona de casa sempre esteve tão presente na infância da gerente financeira que ela tem momentos de tarefas domésticas marcados na memória infantil. Uma delas tem justamente a ver com esse bendito piso de vermelhão. Curiosa desde sempre, Cléo sempre via a mãe com aquela enceradeira pesada deixando o chão lisinho e brilhando e tinha vontade de ajudar, de aprender. A mãe não deixava, tinha medo que a filha pudesse se machucar. Teimosa que só ela, Cléo decidiu usar a enceradeira sozinha e acabou cortando a tampa do dedão do pé. Mas mesmo com o dedo sangrando ficou feliz, porque de alguma forma ajudou a mãe. E era aquilo que ela queria. Ver tudo lindo, como ela aprendeu. A segunda memória de infância foi um pouco mais marcante fisicamente que a primeira. Sempre curiosa e querendo ajudar, Cléo decidiu que iria aprender a passar roupa. Mas isso com 7 anos de idade, na primeira série

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do ensino fundamental. Claro que a ideia não deu muito certo. A estriupulia rendeu uma marca do ferro que ela carrega até hoje no braço. E assim foi por toda sua infância com a mãe, várias aventuras de menina e responsabilidades de um adulto. Até a marca de sabão em pó e os produtos de limpeza que a mãe usava ela se lembra, porque sempre estava lá, ajudando nas compras do mercado. Mais velha, Cléo terminou o ensino médio e fez um primeiro ano de faculdade, em 1998. Ela demorou um pouco para começar por questões de oportunidades - me conta enquanto faz um sinal de dinheiro com as mãos mas ela, que sempre teve uma queda por números, não se encontrou no curso de biologia, que era o que dava para pagar. Trancou a faculdade e ficou esperando por alguma outra oportunidade de estudar ciências contábeis. Esse curso ela ainda não fez, mas depois de conhecer o marido em 2006, decidiu voltar a estudar, quando tinha 29 anos. Fez tecnólogo em gestão financeira e foi crescendo na profissão. Antes de ser contratada pela empresa em que trabalha agora, teve uma breve experiência como gerente de uma loja que não existe mais, mas que a ajudou a realizar suas conquistas e a abrir novas portas. Depois dos primeiros anos de casada e com a vida profissional se encaminhando, o desejo de ser mãe começou a bater forte. Foi aí que eles decidiram planejar o primeiro filho. Deu tão certo que Cléo já estava grávida dos gêmeos na sua formatura. Ela se lembra bem do dia e do enjoo que sentia por conta da gravidez.

O que ela não esperava é que não estava grávida de um bebê, mas sim de dois! Na família do marido isso é comum, sua sogra teve seu esposo, um outro filho e um casal de gêmeos, mas ela nunca imaginou que isso aconteceria com ela. Cléo só foi descobrir que esperava dois filhos com 3 meses de gravidez, porque não fez o primeiro ultrassom por conta de uma viagem do médico de confiança. Quando ela foi ao hospital realizar o primeiro ultrassom para descobrir o sexo do bebê, veio aquele susto ao descobrir que esperava um casal. ‘’Eu não estava preparada, como ia fazer pra cuidar de dois? No fim, na prática, você aprende um monte de coisa’’, relembra. Dois meses depois de sua formatura ela deu a luz e teve que enfrentar uma batalha além de ser mãe de gêmeos e da profissão como gerente financeira. Os gêmeos nasceram abaixo do peso, então tiveram que ficar internados por um tempo. Mas isso não a desanimou. Ela foi atrás, procurou, pesquisou, estudou e foi se aperfeiçoando nessa tarefa de ser mãe de dois enquanto pode. No começo não foi fácil, ela e o marido sofreram por meses com olheiras, cuidando das crianças e trabalhando. A rotina era pesada. Depois de trabalhar o dia todo, ela dava banho nas crianças, trocava a roupinha, dava a mamadeira e fazia eles dormirem. Mais tarde ela procurava manter a vida de esposa e ter um momento com o marido. Dormiam pouco, bem menos do que hoje, mas ela não reclama. ‘’Eu fico pensando em quem tem mais de dois de uma vez, um fica pensando no outro, né? Deus nunca dá aquilo que você não consegue né’’, reflete. Mas ela

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também teve uma ajuda primordial em todas as etapas da maternidade, sua mãe. ‘’Não fico sem minha mãe de jeito nenhum, Deus me livre guarde!’’ Tanto não fica sem que construiu uma casa para a mãe dentro do terreno de sua casa, o que facilita no dia a dia mas não deixa de dar a privacidade que a mãe merece. Por ser a caçula, acabou ficando com a mãe enquanto via os irmãos indo embora de casa. Por isso Cléo sempre brincava que quem casasse com ela teria que levar a sogra de presente. Dito e feito! E para ela é bom, já que a mãe sempre ajudou a cuidar dos gêmeos. Conforme as crianças foram crescendo, Cléo foi se adaptando e levando a família a uma nova rotina. Hoje Cléo sente que a casa funciona no seu horário. Se ela vai dormir cedo, todo mundo vai dormir cedo. Se ela vai dormir tarde, todo mundo vai dormir tarde com ela. Por isso e por vários outros motivos, ela acredita que todo o controle da casa está na mão da dona de casa, ela é quem dá a ordem final. ‘’Por mais que fale o homem é o chefe da casa, ele dá o dinheiro pra mulher, pra ela ir lá fazer a despesa.’’ Ela acredita que essa é uma cultura que foi criada há muitos anos e que precisa mudar, e que depende das mulheres ensinarem em casa seus filhos a mudarem, e ela faz o seu pouquinho na educação dos filhos em casa. ‘’Você não tem que chegar e impor, obrigar, com cuidado você consegue’’, tanto que em sua casa tudo funciona se ela não está, afinal, ela precisa criar os filhos a serem independentes na vida, estando com ela por perto ou não. Mas ela admite que mesmo com toda essa

organização e rotina esquematizada o trabalho doméstico ainda é muito cruel. Se ela mesma não se policiar, acaba trabalhando nas coisas na casa o dia inteiro. Mas, apesar da correria do dia a dia, ela nunca abandonou seus sonhos. A mania de organização acabou virando alvo de curiosidade, tanto que ela até resolveu fazer um curso de personal organizer e vive estudando sobre o assunto. Seus hobbys também estão bem vivos. Não dá para sair tanto como antigamente, mas sempre que rola um show do Vitor e Leo na cidade ela faz questão de comparecer, afinal, programas fora de casa é o que fortalece um relacionamento. Com ela mesma e com o maridão. Cléo não acha um pecado a dona de casa sentar e assistir uma novela, mas ela vê necessidade que ela também tire um tempinho para si. Fazer um curso sobre algo que ela tem curiosidade, assistir um documentário, ler um livro, pesquisar alguma coisa. Algo que a engrandeça e que até possa proporcionar uma renda própria. ‘’Dona de casa só fica em casa, mas ela faz um monte de coisa’’, comenta da rotina. ‘’Você sai pro seu trabalho, mas você sai feliz sabendo que logo você vai ter uma recompensa, você tem seu horário. Mas dentro de casa?’’, reflete. ‘’Eu lavo, passo, cozinho e muitas vezes falam mas ‘você só faz isso?’’, ri ao se lembrar de situações passadas. Para ela, o trabalho como dona de casa é muito mais pesado que qualquer outro. Além se sentir dores, indisposições, ficar nervosa, a dona de casa ainda tem que conviver com um trabalho incessante, repetível e pouco reconhecido. Apesar de estar ciente da falta de reconhecimento,

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Cléo conhece seus direitos como dona de casa, como o da aposentadoria. Só que desistiu logo de cara da ideia depois de ver toda a burocracia que é para conseguir. Desanimou. “Se a dona de casa não tem renda, ela vai pegar o dinheiro do marido pra poder pegar o ônibus pra ir atrás, e tem que pagar advogado e ela vai pagar com o que? Que renda que essa mulher tem?’’, questiona. A dona de casa acredita que essa independência financeira é fundamental para uma mulher, até pelo lado da sua vaidade e de poder ter uma liberdade em suas escolhas. ‘’Tem um monte de curso na internet mas ela não tem dinheiro pra investir, ela vai fazer como? Pedir pro marido é chato. O meu curso paguei com meu dinheiro, se não tivesse ia ficar só na vontade’’, conta sobre o curso de personal organizer que fez. Mas mesmo com todas essas dificuldades em ser mulher, Cléo está feliz com a vida como está agora. Claro que ela ainda quer melhorar muito, e o sonho de empreender está diretamente ligado a isso. Mas ela conquistou tudo aquilo que sempre sonhava desde criança. A maternidade foi a sua realização como mulher. Hoje não pretende mais ter filhos - já pensou se vem mais dois! ‘’A gente passa os perrengues da vida, muitas vezes não é do jeito que a gente queria, mas quando optamos por um filho, é uma das melhores realizações da minha vida’’, conta sobre a maternidade. A Cléo mãe hoje é uma mulher muito mais madura, que enxerga as coisas de uma forma diferente. Ajudou-a até mesmo a superar traumas, como o

medo de dirigir. Por necessidade, pelos filhos, superou o trauma de ter batido o carro e voltou a pegar na direção. “É superação, força, proteção, é um sentimento inexplicável. Você pode brigar com seu filho, mas ninguém mais pode não’’, define a maternidade. Essa paixão por ser mãe e dona de casa é tão marcante em sua personalidade que ela não consegue parar de reparar nos detalhes da casa nem durante a nossa conversa. ‘’Depois que a gente acabar nossa conversa vou passar um paninho na mesa que ficou com as digitais, porque eu prefiro tudo limpo’’, confessou.

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Foto: Acervo Pessoal

Cleonice com seu Prêmio Mulheres em Ação.

Foto: Isabella Marão

Jennifer

“Ser dona de casa é pura escravidão.’’

Jennifer Foizer Bezerra sempre foi do tipo independente. Criada para ser dona do seu próprio nariz, como muitos brasileiros ela sonha alcançar grande sucesso profissional como biomédica. Além disso, quer ter uma vida confortável ao lado da família. Só que já percebeu que a vida não é bem como uma novela das nove, não é mera ficção, e alguns obstáculos estão adiando seus sonhos de jovem de 27 anos. Ela prefere ser chamada de Jhenny, e decidiu sair da casa de seus pais em Itaquera, na zona leste de São Paulo, ainda muito menina. Naquele ano do trágico acidente com o avião da TAM, no aeroporto de Congonhas, em São 91

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Paulo, aos 16 anos, ela foi viver com seu melhor amigo e namorado. O plano parecia perfeito, mas as coisas não saíram exatamente como ela planejava. Ainda adolescente, enfrentou o desafio da maternidade. Com a cabeça erguida e muita ajuda dos pais, voltou para a casa deles e criou seu filho enquanto conciliava os estudos e seu primeiro emprego, numa lanchonete Mc Donalds. Naquela correria em que vivia, não demorou muito e o relacionamento com o pai da criança acabou não dando certo. Cada um seguiu o seu caminho. Apesar de tantas situações inesperadas, naquele tempo ela não tinha muito do que reclamar, conta Jhenny. Apesar de já ser mãe, seu salário na rede de fast-food era suficiente para pagar suas contas e as do filho. Até dava para fazer algumas viagens com ele em datas especiais e para comprar os brinquedos da moda. Mas, em termos de responsabilidade, a vida de Jhenny já era bem diferente. “Até falo que no caso do meu primeiro filho foi como se eu não tivesse sido mãe de verdade, porque eu tinha meus pais’’, confessa. Com os pais ajudando na criação de seu filho, ela teve a oportunidade de estudar, trabalhar e até podia sair para as baladas com as amigas aos finais de semana. Mas, lembra-se, não tinha o papel de dona de casa. Essa função era reservada a seus pais. Na época, ela raramente ajudava a cuidar do lar em que morava, sempre tinha tudo pronto e nunca foi cobrada para ser dona de casa. Seus pais insistiam que ela e sua irmã deveriam estudar e crescer na vida. E naquela casa em Itaquera todo mundo sempre

trabalhou, mas a divisão de tarefas entre os pais de Jhenny permitia que todos pudessem lutar pelos seus sonhos. O pai fazia tudo o que a mãe não fazia, e vice-e-versa. Quando sua mãe decidiu fazer um curso universitário, Jhenny viu que seu pai poderia fazer o serviço de casa melhor que sua mãe. E ao chegar a vez de Jhenny fazer faculdade, ela recebeu aquela ajuda da mamãe e do papai que sempre estiveram presentes na sua vida. Ela chegou a cursar três anos do curso de Ciências Biomédicas em uma faculdade particular, mas teve que abandonar o curso por questões financeiras em 2016. Apesar disso, a jovem sente muita falta da formação superior e pretende voltar a estudar para poder atuar em uma das 37 áreas da biomedicina. Seu sonho, mesmo, é cursar Medicina, mas nem tentou passar no vestibular para esse curso por acreditar que o sonho de ser médico é só para quem tem muito dinheiro. Então, viu nessa área dos bastidores da medicina uma forma de atuar profissionalmente na área de biológicas. O negócio de Jhenny sempre foi esse mesmo: estudar e trabalhar. Com tantos sonhos, nunca teve vontade de aprender as tarefas domésticas, mas um dia chegou a hora de formar sua família. Aí, ela teve que entender como funciona a vida de dona de casa ‘’na força’’, como ela mesma diz. Sem ter sido educada para ser dona de casa, ela vê o serviço doméstico como uma tortura. “Eu nunca quis arrumar um marido e ser dona de casa, foi um acidente que aconteceu, não foi minha escolha’’, explica.

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A falta de cuidado com a casa foi substituída por preocupações diárias com o bem-estar da família e do lar, responsabilidade que ela aprendeu a ter depois da sua segunda gravidez, em 2016. Dessa vez, quem a engravidou foi o namorado que conheceu no ano da Copa do Mundo no Brasil, por meio de um aplicativo de relacionamento. No começo do namoro, “ele teve que ser insistente” para conquistar seu coração, conta, dizendo que achava muito complicado assumir uma pessoa que já tinha dois filhos. Ainda mais que tinha que pensar em seu filho antes de assumir um novo relacionamento. E não foi fácil. O filho não se adaptou muito bem ao novo relacionamento da mãe, mas depois acabou gostando do padrasto e ficando amigo das crianças do novo namorado de Jhenny. Mas até hoje ela sente que o filho ainda sente falta da época em que eram só os dois. “Ele gosta do meu marido mas não aceita o fato de estar com meu marido, ele critica essa vida’’, lamenta. Ela acredita que a questão financeira é a que mais o mais velho sentir essa diferença. ‘’Meu salário era eu e ele. A gente saia, viajava, nunca estávamos em casa, minha mãe nunca me cobrou nada’’, lembra a dona de casa. Mas com o novo relacionamento, vieram novas responsabilidades. O susto foi grande quando os dois, que estavam começando a pagar o buffet do casamento, descobriram que estavam esperando um filho. Com a notícia de um novo filho, Jhenny já sabia que a parte financeira iria apertar, então eles decidiram adiar o casamento e foram morar juntos na casa da sogra.

Por ter sido criada como uma mulher independente, ela nunca teve o sonho do casamento perfeito, mas quando começou a pesquisar e a pensar que aquilo iria acontecer com ela, acabou despertando em si essa vontade. Mas essa ideia romântica ficou congelada após o nascimento do filho mais novo, que acabou mudando um pouco a forma de ver o mundo da mãe. ‘’Principalmente essa questão de peso da responsabilidade mudou’’, comenta, ‘’eu tive que amadurecer de forma diferente, você se sente mais pressionado, é mais difícil.’’ E tudo ficou ainda mais difícil quando Jhenny perdeu seu emprego no hospital veterinário em que trabalhava, no Tatuapé. Ela, grávida e com um filho já para criar, ficou desesperada quando foi demitida por justa causa dias antes de sair de licença maternidade. Foi procurar seus direitos na justiça, mas o resultado só saiu depois de quase dois anos e muita burocracia. “Você fica com uma justa causa na carteira, com bebê em casa, sem nenhum centavo na carteira. Foi muito difícil, morar com minha sogra’’, lembra do momento de dificuldade e de como foi complicado procurar um outro emprego mais tarde tendo uma justa causa na carteira de trabalho. Mesmo com as dificuldades, ela procurou contornar as situações complicadas da vida e continuar com um sorriso no rosto. Quando saiu o FGTS, ela deu entrada em um aluguel para ela, o marido e os filhos, o que melhorou um pouco sua qualidade de vida. Mas ela afirma que se não tivesse sido demitida teria voltado a trabalhar normalmente logo depois da gravidez, para ter mais independência

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financeira e ajudar nas finanças da casa. Casa esta é que é dos dois. É que nessa ‘’ajuntação’’ eles se consideram marido e mulher, afinal, dividem um lar e criam os filhos juntos. A nova casa é em Mauá, cidade do namorado e bem longe dos pais dela que estão em Itaquera, mas é herdada de uma avó dele, então ajuda a família a economizar no aluguel. ‘’Mesmo que o gasto não seja tanto, você cria na sua cabeça’’, explica Jhenny. ‘’Você vai comprar uma calça para você e não compra, porque você poderia ir ao mercado e comprar besteira para as crianças comerem. Você perde completamente sua vida.’’ O marido trabalha como autônomo, por isso não tem horários muito bem definidos, o que Jhenny detesta! É que quando ele está em casa estraga totalmente a sua rotina. Ele não tem uma hora certa para acordar, e ela já fica irritada por ter que esperar ele sair da cama para começar a fazer as suas obrigações como dona de casa. “Se eu fosse outra deitava lá e ficava com ele, mas não consigo, eu deito e penso na louça que tenho que lavar, não consigo me desapegar’’, confessa. Essa falta de desapego se deve principalmente ao fato dela ser responsável por fazer a casa girar. Quem trabalha fora é ele, mas todo o dinheiro que entra vai parar na conta de Jhenny, é ela quem administra as finanças da casa. Por isso, ela sabe como pode ser complicado acabar deixar qualquer detalhe passar. “Ser mãe solteira é mais fácil do que ter marido em casa’’, confessa a jovem. Aos 27 anos, Jhenny vê o ofício de dona de casa

como uma tarefa exaustiva e pouco recompensadora. ‘’É um serviço que você não tem hora para nada, o serviço nunca está feito, e você não tem um pingo de consideração’’, reclama sobre os últimos meses em que está atuando somente como dona de casa. Mas não faz muito tempo que ela é exclusivamente dona de casa. Depois do nascimento do filho e do incidente com o antigo emprego no hospital veterinário, Jhenny conseguiu uma vaga num call center na Lapa, na zona oeste de São Paulo. Lá ela ficou entre dezembro de 2017 e abril de 2018, mas a distância de quase 30km entre o emprego e sua casa em Mauá foi um fator complicado no emprego. Ela levava cerca de duas horas para ir e duas horas para voltar do call center. Apesar de poder deixar o filho mais velho sozinho em casa e ter conseguido uma vaga na creche para o filho de dois anos, ela sempre tinha que voltar para levá-lo ao médico, e ficava complicado continuar na empresa que não aceitava os atestados médicos. Além disso, o pequeno cobrava uma atenção mais especial da mãe, e sentia a falta dela quando não estava em casa. E ela também. Morria de dó no coração quando tinha que deixar o filho em casa para ir trabalhar. O mais velho, mais independente, já conseguia se arrumar para a escola sozinho e não cobrava tanta atenção da mãe. Com a esposa trabalhando, o marido de Jhenny passou a sentir um pouco mais na pele como o serviço de casa pode ser complicado, e parou um pouco com as cobranças que sempre fazia à esposa. Mas como o salário do marido sendo o mais alto

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da casa, ela decidiu dar prioridade ao emprego dele e pediu demissão do call center. Então, a independência financeira de Jhenny e sua vontade de guardar dinheiro para poder voltar ao curso de biomedicina teve que esperar mais um pouquinho, por conta das dificuldades da maternidade. “Mas não que isso seja suficiente para amargar completamente minha vida’’, diz a dona de casa, ‘’mas sei que posso contar com isso, se eu quiser voltar eu volto e meu marido me apoia, mas é difícil.’’ Ela ainda quer voltar a trabalhar, mas com as férias de julho da creche as coisas ficam mais complicadas. Ela não teria com quem deixar o filho, então a ideia é procurar algum serviço mais perto de casa quando as aulas voltarem. Mas o que não vai acontecer é Jhenny ficar parada em casa. ‘’Eu tive filho muito cedo, quando meu filho mais velho começou a não precisar tanto de mim eu engravidei de novo’’, conta sobre o momento de pausa nos seus sonhos pessoais, ‘’então vou esperar meu filho crescer mais um pouquinho e vou voltar.’’ Por enquanto, as coisas não estão do jeito que ela gostaria que estivessem. E para uma ariana que adora ter tudo sob seu controle, isso é bem irritante. “Não nasci para ser dona de casa, eu odeio ser dona de casa. Vai ter uma época da minha vida que vou comprar tudo descartável, para não ter mais que lavar louça!’’, brinca falando sobre algo que faz parte da sua rotina como mãe e dona de casa. De manhã as atividades da casa começam cedo. Às 7h00 o mais novo entra na creche, de lá só sai no final

da tarde, às 17h00. Então começam as arrumações das crianças, da casa, as roupas são lavadas, o café da manhã é servido e a louça do jantar é lavada. Depois disso tudo ela já precisa ajudar o mais velho a fazer a lição de casa, que será entregue pela tarde enquanto ele estiver na escola. O mais velho não depende muito mais da mãe. Aos 9 anos, aprendeu a ter mais responsabilidade desde cedo. Jhenny acredita que isso é porque ele sempre conviveu muito com adultos enquanto morava na casa dos avós. ‘’Meu filho é bem tranquilo, fica o dia inteiro no celular, do mesmo jeito que não me ajuda não me atrapalha em casa’’, diz a mãe. Hoje ele arruma sua própria cama e cuida dos gatos de casa que foram adotados, mas a mãe sempre tem que lembrá-lo de trocar a areia dos animais e às vezes, depois de cansar de tanto pedir, acaba fazendo ela mesma algo que é de responsabilidade do filho. Aos finais de semana o trabalho com o filho mais velho também é quase nulo. Ele alterna os dias de folga entre a casa do pai e a dos avós, em Itaquera. Já o filho mais novo, de dois anos, ainda não tem nenhuma responsabilidade dentro da casa dos Foizer. Ela já pensou em tentar ensiná-lo a guardar seus próprios brinquedos em casa, já que sabe que na creche ele é bem organizado com as coisas, mas fica com dó e acaba fazendo ela mesma o serviço que deveria ser do filho. “Acho que é por uma questão minha, porque eu talvez não saiba me impor, de chegar e mandar ele fazer e ter a paciência de esperar ele fazer. Aí eu acabo fazendo’’, confessa. Mas nem todas as tarefas do cotidiano de uma

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dona de casa são chatas para ela. Cozinhar é uma das coisas que ela mais gosta de fazer e vive recebendo elogios pelas paneladas de comida que faz para a família. Ela até já fez comida para vender e deu certo! Mas teve que parar por falta de dinheiro para investir no negócio. É que se não tiver dinheiro para fazer o negócio direito, ela prefere nem fazer. Com o serviço de casa não tem uma regra ou tabela colada na geladeira. É tudo conforme a necessidade surge. Mas a todo momento ela sente que o dia inteiro precisa fazer as mesmas tarefas, repetidamente. “Acho que o principal exemplo é lavar louça, você lava a louça, aí você almoça, aí você acabou de lavar louça, e ela tá toda ali de novo para ser lavada. Quantas vezes por dia você lava uma louça?’’, questiona a dona de casa. Toda essa repetição faz com que ela sinta que o trabalho doméstico tira um pouco da sua essência como mulher. “A principal questão da dona de casa é você deixar o seu eu, você não é mais dona do seu ser’’, reclama Jhenny, ‘’você tem as suas questões em casa, e se sobrar um tempo você vai cuidar dos seus interesses, se não esquece.’’ Mas isso não significa que ela não goste de limpar e deixar sua casa em ordem. O problema é ter que fazer isso todos os dias. Quando ela estava trabalhando tinha que fazer tudo antes de sair para o trabalho e, com receio de atrasar as coisas da casa, acabava se deixando em segundo plano logo no começo do dia. E o tempo que ela tira para si mesma é nenhum. Até a leitura, que é algo que Jhenny adora fazer, acaba ficando em segundo plano. O cansaço e o desânimo com a

vida de dona de casa é tanto que ela até já chegou ao ponto de não querer mais levantar da cama. A solidão do dia a dia também é um grande desafio para quem tinha um grande círculo de amizades e saia sempre à noite. ‘’Eu acho que dona de casa é muito carente, a maioria fica presa dentro de casa, por isso quando começa a falar, fala!’’, brinca. Cuidar de si mesma também é algo que não faz parte da rotina de Jhenny. Ela quase não faz mais as unhas, coisa que sempre gostou, porque sabe que dali a pouco vai ter que lavar a louça e o trabalho da manicura terá sido em vão. “Eu tenho essa vontade de me cuidar, mas no momento, eu vou me arrumar para ficar em casa? É desperdício de tempo e dinheiro’’, conta desanimada. O que ela mais costuma fazer para sair da rotina é levar as crianças na pracinha que tem perto de casa para tomar um sorvete. Jhenny conta também que gosta de ir ao mercado para desestressar um pouco das atividades do dia a dia. Com o marido os passeios são bem mais raros. “Sair com marido depois que você é mãe? Nunca mais na sua vida, esquece isso’’, desabafa. Ela sente falta desse contato mais próximo de início de relacionamento, mas sempre que o marido sugere fazer alguma coisa sem os filhos ela não quer e prefere ficar com as crianças. Com o novo estilo de vida, várias amizades foram sumindo. ‘’As pessoas trabalham, saem, vão em barzinho onde você não tem nem tempo e nem dinheiro para fazer essas coisas’’, lamenta. Fora esses fatores, deixar os filhos em casa não é

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algo que agrada seu coração de mãe. Ela conversa bastante com as amigas pelas redes sociais, principalmente aquelas que vivem uma vida parecida com a dela. Mas no dia a dia mesmo ela conta com o apoio da sogra, que já mora com os outros dois filhos do marido, mas prefere ficar em casa com eles. O marido também é um ponto que dificulta um pouco as saídas de Jhenny com as amigas. “Meu marido é pior que as crianças’’, brinca ao falar dos amigos do marido que sempre o chamam para sair. Ela não se incomoda, porque sabe que também tem essa liberdade. Mas sabe como é, liberdade de mãe sempre vai ser mais limitada que a de pai. Apesar de se conformar, ela sente falta do marido em atividades relacionadas aos filhos e reclama da ausência dele em alguns momentos da criação do seu filho com ele, e também dos outros dois que moram com a sogra. “Não chega a ser aquela questão de paternidade’’, explica. No serviço de casa ele até ajuda, mas ela prefere fazer do jeito dela e na hora que ela quer. Fora isso, ela detesta ter que ficar pedindo ajuda, prefere ir lá e fazer, bem mais fácil. Na casa da sogra de Jhenny a forma de criar os filhos são bem diferentes da que ela aprendeu com seus pais, e talvez por isso o marido não tenha a visão de que o homem também tem a responsabilidade de cuidar da casa. Ela não concorda com essa ideia de que a mulher é que tem que ser a responsável por tudo, para ela, os filhos devem ser criados de outra forma. Longe da família e próxima de pessoas com uma 103

criação bem diferente da sua, ela sente falta de ter um apoio mais intenso no dia a dia. Quando morava com os pais, ela sentia que tinha com quem contar caso acontecesse algo com os filhos. Agora, morando longe dos pais, ela se sente mais sozinha. Por mais que seja casada, ela não sente que o marido é um apoio com o qual ela pode contar caso aconteça alguma coisa. ‘’Tudo é minha obrigação e zero do resto’’, confessa Jhenny. O resto da casa até a agradecem por tudo que ela faz, mas ela ainda sente que o peso de tudo fica em suas costas. Até sua mãe, quando vai visitá-la, reclama com a filha se alguma coisa está fora do lugar. Por isso ela acha que acaba se cobrando tanto. A dona de casa, em sua visão, tem o seu trabalho visto como uma obrigação da mulher e mãe da casa. Se a mulher está em casa, é obrigação dela cuidar. “Você não faz por você’’, defende. Ela enxerga a questão da mulher como a responsável pelas tarefas do lar como algo vindo de geração. “Nossas mães e avós eram criadas para casar, de colocar a comida no prato e servir o marido, hoje não, fomos criadas para o mundo’’, explica. Sua mãe às vezes dá a entender que ficou um pouco decepcionada com o caminho que a vida da filha está seguindo, mas para Jhenny isso é uma questão de valorização da dona de casa. “Nós como dona de casa não nos valorizamos, eu acho que a maioria não é dona de casa porque quer’’, comenta, ‘’ou é porque teve filho ou por não conseguir 104


emprego’’, conclui seu pensamento. Ela valoriza tudo o que faz dentro de casa. Sabe que sem ela, seu marido não consegue nem comprar pão na padaria sozinho. É a ela quem todos da casa recorrem. Até nas decisões do trabalho dele ela opina e decide algumas coisas. Mas ser dona de casa não é algo que ela recomenda. Jhenny sente falta de ter uma liberdade, mas sabe que se voltar a trabalhar não vai estar 100% completa por deixar os filhos e a casa sem seu cuidado 24 horas por dia. “Sempre vai ter um pouquinho de culpa na consciência’’, confessa. Mas ela pretende passar por cima disso e conseguir conquistar seus sonhos, Seus planos para o futuro são muitos. Sua prioridade é fazer com que seus filhos sejam homens completamente independentes. Ela sabe que isso será um desafio como mãe, até por ter que encarar ficar longe deles quando toda essa independência chegar. Mas quer que eles construam tudo o que ela ainda não construiu, e que não dependam dela para nada. Para a Jennifer, como mulher, a principal meta é voltar a trabalhar e conseguir concluir seu curso de biomedicina. Arranjar um emprego na área é tudo o que ela mais sonha para conseguir conquistar sua felicidade. Mas ela sabe que para conquistar tudo isso precisa de apoio e muita força de vontade. “Quando você é dona de casa fica muito cômodo, você quer sair mas fica colocando obstáculos. É uma questão de comodismo’’, admite. “Por mais que eu não goste é cômodo ficar em casa, vira algo que faz parte de você’’, fala sobre a dificuldade de sair da

zona de conforto e conquistar seus objetivos. Os sonhos de Jennifer para a sua vida são grandes, tão grandes que para ela eles só podem caber em sua cidade natal, São Paulo. Como a ariana que é, precisa viver em um lugar com agitação e que pode oferecer grandes oportunidades. Afinal, sonhar é para quem quer voar alto.

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Tirando o pó

Foto: Acervo Pessoal

Jhenny carrega no rosto o sorriso de quem ainda tem muitos sonhos para conquistar.

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Entrar em contato com a rotina de uma dona de casa pode até impressionar, sobretudo quem nunca parou para pensar como é complicada a vida de uma mulher nessa função social. Muitos que cruzam com aquela mulher que está todo dia na fila do açougue nem imaginam como seja seu dia a dia. No entanto, perceber a realidade das que dedicam suas vidas à família, sempre com dupla jornada de trabalho, é essencial para que se abram os olhos para uma situação comum no país. A dona de casa no Brasil enfrenta todos os dias um trabalho pesado e extremamente importante, mas muito desvalorizado e nem mesmo remunerado. Essa condição, não se pode negar, influencia diretamente a vaidade feminina e a percepção que ela tem de sua independência. Na realidade, grande parte das mulheres que trabalham e suam em casa já fez trabalhos remunerados anteriormente, e as razões que as fizeram deixar seus empregos são muitas. Vão desde a vontade de acompanhar de perto o crescimento dos filhos, a falta de oportunidades no mercado de trabalho, até ao fato do salário pago às mulheres não compensar sua ausência do lar. Em geral, as mulheres que enfrentam duplas 108


jornadas estão em seus empregos por questões financeiras, a maioria delas, embora a realização pessoal também as motive. O que poucos chegam a observar, é que essas mulheres, ao contrário de homens assalariados, não têm direito de aproveitar feriados e finais de semana para descansar. Não adianta sonharem, sempre haverá alguma tarefa doméstica para ser feita nas horas vagas. Em casa, elas encontram um serviço repetitivo e uma cobrança de si mesmas para que tudo esteja nos conformes. Em casos de doenças, não há atestados médicos que justifiquem o fato de ficarem acamadas. Se não tiverem como fazer muita coisa com o corpo, só com a mente estarão deixando a casa funcionando a todo vapor. Porém, ser dona de casa não é para egoístas, é para quem se preocupa demais com os outros, talvez até mais do que consigo mesma. Apesar de serem as responsáveis por diversas tarefas importantes da vida familiar e econômica, as donas de casa ainda são obrigadas a ouvir que não fazem nada o dia inteiro. Há quem defenda que ainda mais tarefas devam ser atribuídas a ela. No final das contas, tudo isso é muito desgastante e as leva à exaustão. Por meio dos perfis das mulheres entrevistadas para a produção deste livro-reportagem, nota-se desde a paixão pelo serviço doméstico até o problema da anulação da própria personalidade de algumas delas em prol do bemestar da família. Tem-se a percepção, também, de que toda dona de casa conhece a ideia de que o serviço doméstico é naturalmente destinado à mulher da casa. Tanto que

quando homens cumprem alguma atividade doméstica são dignos de honrarias. Quando é a mulher, há elogios, mas são mais rasos. Afinal, o que há de surpreendente em uma mulher estar cuidando da casa? Talvez por isso boa parte delas contem com a ajuda das mães, que são sempre figuras importantes em suas vidas. As mães influenciam e ajudam as filhas. Não raramente, prepara refeições, cuidam de crianças quando a filha quer sair com o marido, ensinam a cozinhar ou mostram às meninas, desde pequenas, o que representa ser responsável pelo lar. Mas, ao mesmo tempo, também são as principais críticas dos trabalhos domésticos feitos pelas filhas. Nesse cenário brasileiro, os maridos têm papéis secundários em casa. Caso eles estejam em casa, por desemprego ou por tempo livre, costumam atrapalhar a rotina. Alguns são mais proativos e participam ativamente da divisão de tarefas. Outros, e muitos, só ajudam mesmo quando as esposas não podem dar total atenção para as tarefas ou porque são trabalhos que os agradem. Mas, quase sempre, a regra parece ser esperar que a dona de casa delegue as tarefas. Já os filhos costumam ter mais responsabilidades. Ajudam a mãe no mercado, guardam seus brinquedos, arrumam suas camas e até arriscam fazer alguma coisa na cozinha. Esse comportamento mais colaborativo talvez decorra da atitude de uma geração de mulheres que questionam comportamentos antigos, e decidem ensinar seus filhos a crescerem em uma sociedade mais justa, com uma divisão de tarefas mais igualitária.

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Essas mães mostram que ser dona de casa não implica se excluir da sociedade. O problema está em serem todas mulheres, com ou sem filhos, lidando com o serviço doméstico sozinhas, na maior parte do tempo. Mas isso, de forma alguma, não pode ser confundido com falta de sonhos ou de expectativas e planos. Na verdade, a nova sociedade que estão ajudando a surgir será muito mais justa com as mulheres. Mas, para que essa mudança ocorra, os homens deverão sair em busca da igualdade entre os gêneros. Deverão utar e unir-se às mulheres para que se conquistem novos papéis sociais para todos. Mas muito mais que isso, o trabalho da dona de casa deve ser redistruibuído através de políticas públicas. E é importante que essa iniciativa venha do governo. Caso contrário, o compromisso com a divisão de tarefas cairá sobre a família, o que joga mais uma vez a responsabilidade no colo da mulher.

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Agradecimentos Foi em uma conversa entre mãe e filha que percebi a necessidade de se falar sobre isso. Minha mãe, dona de casa há 23 anos, decidiu largar seu emprego em São Caetano do Sul para cuidar de mim. Aos 20, ela assumiu uma responsabilidade que eu, aos 22, jamais conseguiria assumir. Solange é mãe, esposa, filha, irmã e dona de casa. Sempre fez de tudo por sua família e nos colocou acima de toda e qualquer prioridade pessoal que ela pudesse ter. Tudo com o apoio do meu pai, é claro. Mas assumir a responsabilidade de ser dona de casa e mãe aos 20 anos, casar grávida, lidar com os complexos problemas da vida e não ter uma graduação a faz enfrentar muitos preconceitos, que ela encara de cabeça em pé sempre que dizem para ela “mas você não faz nada mesmo!’’. E isso me fez perceber a urgência do tema e a falta de reconhecimento da profissão. Decidi me envolver com as donas de casa para entender a cabeça dessas mulheres e suas rotinas. Percebi que elas são complexas e únicas, mas todas têm como único objetivo ver sua família bem. Dedico esse livro a minha mãe, minha inspiração. Ao meu pai, Márcio, que sempre me apoiou em todas as minhas decisões, é um pai incrível e está comigo até o 112


fim. A minha avó, Ana Isabel, que me mostra todos os dias do que uma mulher é capaz. Aos meus avôs, Lauro, Izabel e Lourenço, que estão em meu coração. A minha irmã, Stephanie, que aguenta minhas lamúrias. A minha tia, Regina, que sempre cuidou de mim. Aos meus amigos, que me ajudaram no desenvolvimento do livro. Ao meu orientador, Angelo, que me ajudou com o projeto. E a todas as donas de casa do Brasil, que constroem a nossa sociedade e inspiraram minha narrativa. Precisamos falar sobre essas mulheres, sobre como é exaustiva essa profissão invisível, sobre como sua independência pode ser anulada, da importância do papel da mulher na sociedade brasileira e do machismo na divisão de tarefas dentro do núcleo familiar. Só assim conseguiremos alcançar a visibilidade da profissão dona de casa.

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