Páginas do Patrimônio Cultural: Proteção do Conjunto Educacional do Centro

Page 1

Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza Renato Freire Susana Caramelo



Prefeitura Municipal de Fortaleza Roberto Cláudio Rodrigues Bezerra Prefeito de Fortaleza Gaudêncio Gonçalves de Lucena Vice-Prefeito de Fortaleza Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza Francisco Geraldo de Magela Lima Filho Secretário Paola Braga de Medeiros Secretária-Executiva Nilde Ferreira Assessora Especial de Políticas Culturais Inácio Carvalho Assessor de Planejamento Vitor Studart Assessor Jurídico Paula Neves Assessora de Comunicação Germana Vitoriano Coordenadora de Ação Cultural Rejane Reinaldo Coordenadora de Criação e Fomento Jober Pinto Coordenador de Patrimônio Histórico e Cultural Rosanne Bezerra Coordenadora Administrativo Financeiro Cláudia Pires Diretora da Vila das Artes

Instituto de Estudos, Pesquisas e Projetos da UECE - IEPRO Plácido Aderaldo Castelo Neto Diretor Presidente Luiz Carlos Mendes Dodt Diretor de Operações Thiago Barbosa Brito Gerência de Contratos e Convênios/Assessoria Jurídica Helano Monteiro Sousa Gerência de Organização e Sistemas Thaynnara Praxedes dos Santos Gerência Financeira Ana Paula Barbosa Moura Gerência de Cursos Adriana Sampaio Lima Sousa Gerência de Prestação de Contas Henrique Helder Mendes Abreu Presidente da Comissão Permanente de Licitação Maria do Socorro Ferreira Leite Gerência Administrativa

Universidade Estadual do Ceará José Jackson Coelho Sampaio Reitor Hidelbrando dos Santos Soares Vice-Reitor Erasmo Miessa Ruiz Editora da UECE Conselho Editorial Antônio Luciano Pontes Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes Emanuel Ângelo da Rocha Fragoso Francisco Horácio da Silva Frota Francisco Josênio Camelo Parente Gisafran Nazareno Mota Jucá José Ferreira Nunes Liduina Farias Almeida da Costa Lucili Grangeiro Cortez Luiz Cruz Lima Manfredo Ramos Marcelo Gurgel Carlos da Silva Marcony Silva Cunha Maria do Socorro Ferreira Osterne Maria Salete Bessa Jorge Silvia Maria Nóbrega-Therrien Conselho Consultivo Antônio Torres Montenegro (UFPE) Eliane P. Zamith Brito (FGV) Homero Santiago (USP) Ieda Maria Alves (USP) Manuel Domingos Neto (UFF) Maria do Socorro Silva Aragão (UFC) Maria Lírida Callou de Araújo e Mendonça (UNIFOR) Pierre Salama (Universidade de Paris VIII) Romeu Gomes (FIOCRUZ) Túlio Batista Franco (UFF)

Herbênia Gurgel Diretora da Biblioteca Dolor Barreira Pedro Domingues Diretor do Teatro São José Universidade Estadual do Ceará


Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza – SECULTFOR Copyright © 2015 (VENDA PROIBIDA) Todos os direitos desta edição são reservados à Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza – SECULTFOR. Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e/ou gravada, por qualquer meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem autorização, por escrito, da supracitada secretaria. Autores dos Textos Renato Freire Susana Caramelo FICHA TÉCNICA Gestão do Convênio 34/2013 – Regularização Patrimonial Alênio Carlos Noronha Alencar Neysia Aguiar de Aquino Viviane Lopes da Silva Revisão Técnica Adson Rodrigo Silva Pinheiro Juliana Guerreiro de Carvalho Rocha Leuda Maria Sizino Sousa Maria das Graças Almeida Martins Marilde Silva Jorge Projeto Gráco e Diagramação Henrique Hadrian Souza Revisão de Texto Paulo Tadeu Sampaio de Oliveira Luiz Carlos Mendes Dodt Coordenação Editorial Luiz Falcão Capa Leandro Ferreira

CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO Bibliotecária responsável: Vanessa Cavalcante Lima – CRB 3/1166 F 866 p Freire, Renato. Páginas do Patrimônio Cultural: Proteção do Conjunto Educacional do Centro / Renato Freire, Susana Caramelo; Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza organizadora. – Fortaleza: EdUECE, 2015. 60 p. ISBN: 978-85-7826-291-4 1. Patrimônio Cultural – Fortaleza. 2. Centros educacionais – História. 3. Infraestrutura urbana. I. Título. CDD: 710


Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza Renato Freire Susana Caramelo

1. Edição



SUMÁRIO Palavra da SECULTFOR Francisco Geraldo de Magela Lima Filho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 Palavra do IEPRO Plácido Aderaldo Castelo Neto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 Uma carta de afeto à Cidade Adson Rodrigo Silva Pinheiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10 Quatro lugares para o Patrimônio Escolar de Fortaleza . . . . . . . . . . . . . . 12 Um olhar sobre o conjunto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 Colégio da Imaculada Conceição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 Igreja do Pequeno Grande . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40 Escola Jesus Maria José . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44 Escola Estadual Justiniano de Serpa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47 Papel do cidadão na preservação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52 Referências bibliográcas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58



PALAVRA DA SECULTFOR Denir uma cidade talvez só não seja mais difícil que experimentá-la em seu cotidiano. Qualquer que seja esta cidade. Fortaleza não seria diferente. Atestar o que é, como se comporta, porque se assume como tal é um desao tão complexo como viver Fortaleza. Para mim, estamos todos diante de um mistério. Daí, ser necessário e urgente desaar Fortaleza em suas imprecisões e seus silêncios. Basta lembrar, por exemplo, que, enquanto nos preparamos para comemorar em 2016 nossos 290 anos, há quem reivindique que o nosso marco zero original data de 1604. Quer se opte pelo século XVII ou pelo século XVIII, fato é que um de nossos traços mais evidentes é uma ideia de patrimônio histórico esgarçada. Ao nos inventarmos, nos culpamos por um passado que imaginamos ter tido, o que só fragiliza nosso presente e nosso futuro. Denitivamente, não sabemos lidar com o tempo. Somos Fortaleza por uma fortaleza que já não temos, ao passo que olhamos desconados para uma catedral recente assentada onde a antiga ainda deveria estar. Por essas e outras, iniciativas que provoquem e estimulem nossos apegos e nossos afetos são imprescindíveis. A seguir, temos o resultado de um longo e pioneiro esforço interessado em nos ajudar a compreender daquilo de que somos feitos. Numa primeira experiência de tombamento em conjunto, nos deparamos com uma região da cidade, no limiar do Centro e uma primeira Aldeota, que diz muito de nós e assim dever permanecer.

Magela Lima Secretário Municipal de Cultura de Fortaleza

PÁGINAS DO PATRIMÔNIO CULTURAL PROTEÇÃO DO CONJUNTO EDUCACIONAL DO CENTRO

7



PALAVRA DO IEPRO Histórias de vida, pessoas e instituições são escritas de várias formas. Medir o quão signicativo, quando se avalia os reexos na vida dos outros, percebe-se a relevância. Pensando neste sentido, dentre os recentes Projetos que o Instituto de Estudos, Pesquisas e Projetos da UECE - IEPRO executou, tem-se a certeza que o Convênio celebrado com a Secretaria de Cultura de Fortaleza para a Proteção ao Patrimônio Cultural foi vestido de pleno êxito e signicado. Durante meses, arquitetos, historiadores, bolsistas de Graduação e da Pós-Graduação zeram um criterioso levantamento ao encontro dos detalhes mais simbólicos do conjunto escolar formado pelo Colégio da Imaculada Conceição, Igreja do Pequeno Grande, Escola Jesus Maria José e Escola Estadual Justiniano de Serpa. Entrevistando e fotografando fez-se o registro da fenomenal identidade cultural destes espaços conrmando-se a sua relevância nos mais diferentes aspectos. Este trabalho representa também o epicentro e início da caminhada de Proteção ao Patrimônio Cultural de Fortaleza. Marco para outros Conjuntos, já estabelecidos no mosaico fortalezense. Assim, o mapa da preservação e da não descaracterização cará denido, passo fundamental para o enquadramento legal do tombamento. Identidade, sentidos e signicados. Passado, presente e futuro, construção de Histórias de Vida, ação protagonista de entes que reconhecem legados e imortalizam, para gerações futuras, a maior das heranças, a herança da preservação da sua História.

Prof. Plácido Castelo Neto Diretor Presidente do Instituto de Estudos, Pesquisas e Projetos da UECE

PÁGINAS DO PATRIMÔNIO CULTURAL PROTEÇÃO DO CONJUNTO EDUCACIONAL DO CENTRO

9


UMA CARTA DE AFETO À CIDADE É pertinente reetir que o Patrimônio Cultural, os bens culturais, tem muito a ensinar sobre a cidade e sobre seus habitantes. Suas lições estão presentes na luta diária contra o esquecimento, num esforço cotidiano de se fazer ser lembrado na vida corriqueira da cidade. Esses são pensamentos surgidos a partir do olhar sobre as marcas presentes em cada edicação, nas paredes com rugas expressivas como as de um ancião, ou nos ornamentos devorados pelo tempo, que convidam constantemente o passante para um vislumbre nas imagens que essas marcas podem revelar. Uma apreciação, mesmo que rápida, dos vestígios e das pistas que zeram e fazem os bens culturais importantes para a urbe, ou por suas histórias da presença humana de vários tempos, ou por estarem enroupados pelos afetos e pela imaginação dos viventes de Fortaleza. Seria, então, papel dos lugares conhecidos como Patrimônio Cultural muitas vezes patenteados como “bem tombado”, falar com a cidade e sobre a cidade a respeito das culturas e dos valores desta sociedade? Seríamos pacientes e compreensivos naquilo que esses espaços têm para nos contar? Prestamos atenção aos locais em que passamos e vivemos em nosso cotidiano? Envoltos com as histórias e memórias, acessíveis a alguns desses lugares, serão contados minimamente nestes pequenos textos a biograa de alguns bens culturais, advindos de uma pesquisa. E pesquisar é conhecer, descobrir e redescobrir os sentidos das coisas a nossa volta. É selecionar, descrever, informar e mudar percepções individuais. É redescobrir, no tempo, a cidade. É também deixar muita coisa para se pensar... É nessa aventura, por meio do estudo de um bem patrimonial de Fortaleza, que o leitor está convidado a mover os olhos para ter um momento de redescoberta, de reexão com sua cidade. Com esta convicção, este texto fala de algumas das mais representativas escolas fortalezenses que marcaram a educação do século XX. 10 PÁGINAS DO PATRIMÔNIO CULTURAL

PROTEÇÃO DO CONJUNTO EDUCACIONAL DO CENTRO


Nos arrabaldes da praça chamada Figueira de Melo, situada na Avenida Santos Dumont, na cidade de Fortaleza, percorrendo as memórias das instituições de ensino como a do Colégio da Imaculada Conceição com a Igreja do Pequeno Grande, da Escola Jesus Maria José, e da Escola Estadual Justiniano de Serpa nos voltaremos para as narrativas sobre o ensino público e privado em nossa cidade. Lá, em meio a especíco conjunto de edicações, teremos nosso primeiro encontro de simpatia e apreço com o nosso passado, sempre irrequieto e presente, em instituições como essas, rememoradas ora pela arquitetura elegante, ora por fazer parte do cotidiano de todos os cidadãos que mantiveram e que mantêm uma relação de vida com o lugar. Conexões diretas e indiretas entre o eu e a cidade. É assim o Patrimônio Cultural, vivo e presente na cidade. Deixa-se aqui uma declarada carta de afeto por meio da qual espera-se motivar os observadores a pensar, reetir e contribuir para a preservação e a difusão das memórias destes lugares que apreciamos. Só nos resta advertir que o trabalho não está acabado. Esperamos gerar novos diálogos, rumo a uma contribuição atenta do espectador em preparar futuras interlocuções após o seu experimento com as tantas memórias e as muitas ausências registradas nessa obra. Então, deseja-se bons diálogos e uma boa jornada de leitura com essas páginas sobre a relevância do Patrimônio Cultural ora apresentado.

Adson Rodrigo Silva Pinheiro Gerente da Célula de Gestão em Pesquisa e Educação Patrimonial

PÁGINAS DO PATRIMÔNIO CULTURAL 11 PROTEÇÃO DO CONJUNTO EDUCACIONAL DO CENTRO


QUATRO LUGARES PARA O PATRIMÔNIO ESCOLAR DE FORTALEZA “O historiador pode dedicar dez páginas a um só dia e comprimir dez anos em duas linhas” (Paul Veyne)

Em 1879 um vereador propôs na sessão da Câmara a mudança do nome da Praça dos Educandos para a Praça Senador Figueira de Melo como forma de homenagear o recém-falecido Jerônimo Martiniano Figueira de Melo, homem de muito prestígio nos meios políticos da época. Seu currículo é extenso, mas basta dizer que em 1873 assumiu por decreto o posto de Ministro do Supremo Tribunal do Império. Apesar da importância desse político, a Praça foi sendo renomeada no decorrer do tempo: talvez devido ao uso das estudantes do Colégio da Imaculada Conceição passou a chamar-se durante algum tempo como Praça do Colégio, em 1890 voltou a chamar-se Praça dos Educandos e só em 1932 retomaram o nome que cou até hoje: Praça Figueira de Melo. Toda essa movimentação em torno do seu nome a partir de meados do século XIX já nos mostra a importância que aquele espaço ganhou para a cidade nesse período. Renomear é dar notoriedade. Essas várias mudanças remetem à uma disputa por essa notoriedade. Então, se até para escolher um nome para esse lugar houveram tantas possibilidades e talvez até disputas, ao tentarmos privilegiar um só uso talvez também não seja diferente. Qual utilização desse espaço sintetizaria melhor a sua história? Antes de criar qualquer discórdia sobre isso, queríamos chamar a atenção para um uso comum entre boa parte das suas denominações: a educação. Não se sabe se a homenagem feita ao Senador Figueira de Melo tinha esse mesmo objetivo, mas um elemento da sua trajetória pode nos levar também a questão da educação. Apesar de ter nascido no Ceará, mais precisamente na cidade de Sobral em 1809, ele fez parte da primeira turma de bacharéis da Faculdade de Direito de Olinda em 1832. 12 QUATRO LUGARES PARA O PATRIMÔNIO ESCOLAR DE FORTALEZA


A necessidade de ter que mudar de Estado para continuar os estudos não parece ser hoje algo tão frequente, apesar de ainda ser necessário em alguns casos. Atualmente Fortaleza já possui estrutura de ensino nos diversos níveis. A própria educação é um direito garantido por lei. Mas na época da vida estudantil desse personagem esse era o único caminho para a universidade. Não existia nenhuma outra opção. A Faculdade de Direito, a primeira a ser fundada aqui no Ceará, surgiu em 1903 e a própria Universidade Federal do Ceará em 1954. Uma parte da história desse personagem também passa pela educação. Com um pouco de imaginação podemos reunir todos os nomes dados a essa praça diante da questão educação. Podemos, também, argumentar que a mudança da Escola Normal D. Pedro II para o centro dessa praça em 1923 fortaleceria ainda mais o nosso argumento. Essa escola existe até hoje, mas agora é conhecida com o nome de Escola Estadual Justiniano de Serpa. Já temos um uso privilegiado, mas e agora como escolher os personagens dessa história? São várias as pessoas, de ontem e de hoje, que viveram e vivem o cotidiano desses lugares atravessados pela educação, mas quais mereceriam estar na escrita de um pedaço da história da cidade de Fortaleza? Escolher escrever mais sobre isso ou menos sobre aquilo é um dilema. Escolher gera muitas dúvidas. Com alguma imaginação podemos dizer que a escritora Rachel de Queiroz, por exemplo, respondeu essas perguntas escrevendo um livro de cção chamado “As três Marias” que tem como cenário o próprio lugar em que ela estudou: o Colégio da Imaculada Conceição. Ela não mereceria também estar aqui? Por que não inserir como personagem também o escritor Rodolfo Teólo? Ele foi professor da Escola Normal, a atual escola Justiniano de Serpa. Será que ele não mereceria também estar sendo lembrado aqui? E o professor Milton Dias que apesar de ensinar no Liceu morou ali em frente à praça? Dizem que ele foi o responsável de ter trazido o famoso escritor existencialista Jean-Paul Sartre para dar umas voltas em Fortaleza. Ele é também muito lembrado devido as suas crônicas publicadas nos jornais sobre a cidade de Fortaleza. Não mereciam todos estarem aqui? QUATRO LUGARES PARA O PATRIMÔNIO ESCOLAR DE FORTALEZA 13


Este trabalho vai além da homenagem. Aborda a história desses bens culturais ao redor da Praça Figueira de Melo como um documento para se reetir sobre a invenção de Fortaleza em uma cidade priorizando as práticas daquele espaço voltadas para a educação. Neste contexto, a existência do Colégio da Imaculada Conceição com a Igreja do Pequeno Grande anexada ao seu lado, a Escola Jesus Maria José e a Escola Justiniano de Serpa serão os quatro lugares privilegiados para se visualizar o Patrimônio Escolar da cidade de Fortaleza. Cada momento de inauguração desses quatro lugares mostram uma cidade de Fortaleza diferente. Assim, de uma homenagem a uma pessoa só a ser relembrada e cultuada, aborda-se uma reexão da apropriação daqueles espaços no decorrer de três posições temporais: meados do século XIX; a passagem do século XIX para o XX; e o início da década de 1920. Destaque-se que, antes de ser um dado feito e acabado, o Patrimônio Cultural de Fortaleza será interpretado como uma construção histórica. A primeira posição temporal a ser abordada é a de meados do século XIX, época da construção do hospital do Outeiro que viria depois a se transformar no Colégio da Imaculada Conceição. A vila de Fortaleza possuía no início desse século uma população em torno de 9 mil habitantes. Na sua paisagem emergiam apenas 81 residências cobertas de telha, destas 5 eram construções sólidas de pedra e cal. Porém, já constava na paisagem da vila "um conjunto de signos do poder instituído colonial” que a distinguia como “centro administrativo a capitania: fortaleza, casa do Senado, pelourinho, casa de morada do capitão-mor e do governador do Ceará" 1. 14 QUATRO LUGARES PARA O PATRIMÔNIO ESCOLAR DE FORTALEZA

1. VIEIRA JR., Antonio Otaviano. Entre o futuro e o passado: aspectos urbanos de Fortaleza (1799-1850). Fortaleza: Museu do Ceará, 2005, p. 9-18.


2. VIEIRA JR., Antonio Otaviano, idem.

Apesar dessas referências, foram antes os encantos naturais do que a infraestrutura urbana que garantiram o posto de capital para a vila de Fortaleza em 1799. A disputa com Aracati, Aquiraz, Icó e Sobral para esse posto foi vencida ao se enfatizar a sua posição na porção média do litoral da Capitania, a enseada dilatada, a capacidade de incorporação da produção econômica das vilas vizinhas e a relativa aproximação com fontes de água doce. Eram esses elementos da natureza, que mediante a ação do homem, levariam a um possível desenvolvimento da vila. Natureza e progresso não pareciam tão distantes um do outro quanto hoje. Porém, boa parte dessas qualidades naturais só foram ser exploradas depois de meados do século XIX. Por exemplo, a enseada privilegiada só começou a ser mais utilizada como porto a partir de 1860 com a construção do "farol de luz xa" na ponta do Mucuripe 2. Apesar da conrmação do seu posto de capital, muito gradualmente Fortaleza foise inventando como cidade, tentando nesse seu caminho encontrar soluções para os seus problemas. Uma dessas soluções foi a criação do hospital do Outeiro (1855) como uma medida para enfrentar uma possível epidemia de cólera, doença intestinal que rapidamente leva a desidratação. As noções de higiene nesse tempo não eram as mesmas da atualidade. Sabe-se hoje que essa doença se prolifera através da contaminação da água e dos alimentos causada por condições sanitárias ruins. Não existia na vila de Fortaleza um sistema de distribuição de água através de encanamentos e muito menos um sistema de esgoto. QUATRO LUGARES PARA O PATRIMÔNIO ESCOLAR DE FORTALEZA 15


Considerar esse espaço como lugar apropriado para se construir um hospital nos dá uma pista de como era a paisagem dessa região da cidade. O próprio presidente da província do Ceará armava a adequação para esse uso armando que “quasi que ahi não se encontão senão pequenas cazas de palha, e sendo esse bairro muito populozo e quasi todo habitado por pessôas nimiamente pobres”3. Nesse momento a teoria mais aceita sobre a origem das doenças armava que elas teriam origem nos miasmas. Era essa a denominação da idealização de um conjunto de odores provenientes da matéria orgânica em decomposição presentes no solo e nos lençóis freáticos infectados. Para evitar esse perigo posicionar os locais dos doentes era uma questão estratégica. Um lugar próprio para abrigar um hospital necessitava de uma certa distância da cidade. Era preciso afastá-la do que era considerado “perigoso”. Cruzando-se a armação desse administrador com essa teoria em voga na época, tem-se a pista de como esse lugar era considerado fora da região central. O temor da doença não se conrmou, pelo menos nesse ano e logo atribuiu-se outro uso ao prédio, funcionando já em 1857 como Colégio dos Educandos. Este estabelecimento era destinado para os meninos pobres aprenderem algum ofício e terem acesso as primeiras letras, através do exercício generalizante da escrita, da leitura, da gramática e da aritmética. Além disso existiam aulas que hoje poderiam ser consideradas como prossionalizantes. Elas eram direcionadas para a alfaiataria, a mercenária, a sapataria, a funilaria e os alunos ainda possuíam aulas de música. Na concepção desse estabelecimento era previsto atender o número máximo de 40 alunos, porém, constavam matriculados 67 em 1865. Além da lotação, o seu funcionamento era marcado pela inconstância das aulas, a falta de livros para o ensino da escrita, a escassez de materiais para as ocinas funcionarem com regularidade e a ausência de reparos no edifício. 16 QUATRO LUGARES PARA O PATRIMÔNIO ESCOLAR DE FORTALEZA

3. RELATÓRIO DO P R E S I D E N T E D A PROVÍNCIA, 1856, p. 13.


Todo esse cenário precário tinha como causa uma série de fatores, mas podemos 4. SAVIANI, Derneval. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2013, p. 129.

destacar o problema que trouxe o Ato Adicional de 1834. Esta lei desobrigou o poder central do Império de cuidar das escolas primárias e secundárias ao transferir esta competência para os governos das províncias tornando uma responsabilidade concorrente. Essa omissão não ajudou no desenvolvimento da educação como um todo e gerou críticas constantes ao governo imperial sobre o número reduzido dos estabelecimentos, a falta de preparo dos responsáveis no geral, a remuneração ruim que não incentivava os professores a se dedicarem, a falta de instalações físicas adequadas à prática do ensino “e a ausência de scalização por parte das autoridades do ensino, o que tornava frequente nos relatórios a demanda pela implementação de um serviço de inspeção das escolas”4. É na nossa segunda posição temporal em que a rede de ensino público irá começar a ter suas primeiras construções e aquele pedaço da cidade transformar-se em uma parte do centro. Nesse nal do século XIX a cidade de Fortaleza torna-se palco de um acelerado crescimento demográco, somando-se em torno de 48 mil pessoas ao se consolidar como um centro coletor e exportador de mercadorias. Tal mudança de vila para uma cidade mais ligada aos uxos econômicos internacionais ocorreu principalmente devido a Guerra da Secessão nos Estados Unidos (1861-1865) que diminuiu a exportação do algodão desse país para a Europa. O Nordeste “não-açucareiro” foi pressionado a se voltar para esse produto tornando comum o seu cultivo pelo interior do Ceará. Assim a cultura do algodão somou-se à tradicional produção pecuária, colaborando para a intensicação da economia. QUATRO LUGARES PARA O PATRIMÔNIO ESCOLAR DE FORTALEZA 17


O conceito de Belle Époque sintetiza esse momento de euforia no progresso econômico que marcou não só Fortaleza, mas o mundo ocidental devido uma nova fase da Revolução Industrial promovida principalmente pela Inglaterra. As descobertas de novos usos do carvão e do ferro como matéria prima somadas com a invenção do aço, do petróleo e da eletricidade permitiram a construção de novas máquinas, de ferramentas, dos trilhos e de novos tipos de edicações5. A nova fase da industrialização gerou aumento da produção devido à essa diversicação das fontes de energia, da ampliação das redes ferroviárias e do advento do navio a vapor como meio de transporte. Essas invenções não só geraram um novo impulso na interligação dos mercados, como também foram acompanhadas nas mudanças na forma de se comunicar com a invenção do telégrafo, da fotograa e do cinematógrafo. A Belle Époque representaria a euforia com essas mudanças impulsionando uma crença no progresso como sinônimo do avanço tecnológico, do aumento da produção industrial e da urbanização das cidades. A cidade de Fortaleza pretendia se reinventar nesse período, através do alinhamento a esse modelo europeu de modernização urbana patrocinado por suas elites políticas, econômicas e intelectuais. Era preciso civilizar a cidade tendo a Inglaterra como o modelo econômico e a França como o modelo cultural. Devido essa necessidade por mudanças na organização urbana da cidade o papel do arquiteto-urbanista ganhou bastante prestígio. São eles os responsáveis por tornar real esses valores imaginados. O plano urbanístico de Silva Paulet foi o responsável por imaginar a cidade de Fortaleza como um xadrez dividido em quadrados. Cinquenta anos depois, o engenheiro Adolfo Herbster foi contratado para redimensionar esse plano urbanístico entre as décadas de 1870-80. No papel ele aumentou a extensão do centro da cidade e idealizou a expansão das periferias continuando a orientação idealizada no sentido mar-interior. O Centro para os 18 QUATRO LUGARES PARA O PATRIMÔNIO ESCOLAR DE FORTALEZA

5. PONTE, Sebastião Rogério. A Belle Époque e m F o r t a l e z a : remodelação e controle. In.: SOUSA, Simone; GONÇALVES, Adelaide (Orgs.). Uma nova história do Ceará. 4ª ed. rev. – Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2007.


6. DANTAS, Elza Alves. As letras da lei x as leis das letras: exame de capacidade prossional e a instrução pública na província do Ceará (1856-1888). Dissertação (mestrado em História Social) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza (CE), 2010, p. 9.

privilegiados era o quadrilátero tendo como limites de um lado o mar e a atual avenida Duque de Caxias, de outro lado a depressão do riacho Pajeú e as proximidades da praça José de Alencar. Apesar da euforia, dos planos e idealizações, o progresso da Belle Époque cou representado apenas em algumas construções: a instalação da ferrovia de Baturité (1873), o início de implementação de um sistema de iluminação a gás, a criação do Theatro José de Alencar e do Mercado de Ferro. Outro investimento realizado foi no embelezamento de praças, como a de José de Alencar, a criação do Passeio Público e de alguns jardins. Destaca-se ainda a construção do novo cemitério, o São João Batista, afastando para a periferia os mortos e as doenças da região mais valorizada da cidade. Foi nesse período também que garantiram o alargamento de algumas avenidas e que se iniciaram as obras de terraplenagem que garantiram um trânsito melhor entre a Igreja da Sé e a praça do Colégio da Imaculada Conceição. Anteriormente um dos problemas recorrentes nessa região eram os atolamentos causados pelo areal. Dependendo das condições, muitas vezes até uma carroça era impossibilitada de passar. Mesmo assim anseios civilizatórios vigentes possuíam no seu discurso um caráter generalizante em que o ambiente educacional teria um papel importante na difusão das ideias e dos hábitos urbanos. Anteriormente, o ensino primário no século XIX era marcado fortemente pela inuência religiosa e moral, "a ideia de que a formação do espírito era preferível à formação intelectual era amplamente difundida e repetida pelos professores primários em seus exames"6. Não possuía uma uniformidade nacional, cada província regularizava o seu ensino. Era comum entre as escolas a divisão por sexo, e suprimiam alguns conteúdos para o ensino feminino, a m de acrescentar aula de costura e outros ensinamentos para a atuação doméstica. Assim, a educação para as mulheres era direcionada para o QUATRO LUGARES PARA O PATRIMÔNIO ESCOLAR DE FORTALEZA 19


casamento e a reclusão no lar. O espaço físico das escolas existentes ainda era precário. Era comum a presença na mesma sala de alunos de diferentes idades e fases de aprendizagem, sem contar que o ambiente de ensino era um quarto na casa do professor ou uma sala em um prédio qualquer. Nesse cenário de necessidade de instituições escolares rma-se um contrato entre o presidente da província João de Sousa Melo e Alvim e o Bispo D. Luís para o prédio do extinto Colégio dos Educandos passar para as mãos das Filhas de São Vicente de Paulo, servindo como nova sede do Colégio da Imaculada Conceição, que anteriormente era chamado Colégio das Órfãs e funcionava na Rua Formosa (atual Barão de Aratanha). Esse contrato encontrava-se na série de ações que marcaram uma mudança na organização da Igreja. Apesar do Ceará ter se emancipado politicamente de Pernambuco em 1799, em termos eclesiásticos continuou dependente da Diocese de Olinda até 1854, quando o Imperador decretou a criação da Diocese do Ceará. A partir disso, chegavam em 1864 em Fortaleza os padres Lazaristas, para comandar o Seminário da Prainha, objetivando aprimorar a formação dos seminaristas. Enquanto que em 1865 garantiu-se a vinda da Europa de um grupo de Irmãs de Caridade, as Filhas de São Vicente de Paulo. Essa instituição religiosa foi fundada na França no século XVII e se difundiu por vários países. As primeiras devotas chegam ao Brasil em meados do século XIX para atuar em Minas Gerais. Por aqui foram as irmãs de caridade Margarida Bazet, Luiza Gagné, Marie, Cassin, Gonçalves, Rouchy e Andrade7 que caram responsáveis pelo desenvolvimento do catolicismo através da formação de boas mães de família e da caridade com as órfãs. O preceito da caridade deveria não só unir as Irmãs com as alunas, as internas e as órfãs, mas servir de modelo de comportamento fora dos muros. 20 QUATRO LUGARES PARA O PATRIMÔNIO ESCOLAR DE FORTALEZA

7. Existe aqui um ruído entre algumas fontes quanto ao nome e a quantidade das irmãs. Talvez a irmã Andrade também fosse chamada de Lecorre. O certo é que com exceção da Irmã Gonçalves, as restantes possuem origem francesa.


8. TEIXEIRA, Monsenhor Vicente Pinto. Relatório enviado à Arquidiocese acerca da saída da administração da Escola Jesus Maria José. Fortaleza, 1918. 9. MANOEL, Ivan Aparecido. Igreja e educação feminina (1859-1919): uma face do conservadorismo. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996, p. 32.

A origem francesa das irmãs logo chamou a atenção da elite fortalezense e garantiu alunas para a nova instituição educacional, enquanto que os rapazes teriam ao seu dispor o Colégio Cearense do Sagrado Coração (1913). O público anteriormente atendido, os meninos pobres, tinham que se mudar ou para a Companhia de Aprendizes Marinheiros ou para a Escola Jesus Maria José (1905). Esta instituição destinava aos meninos carentes, lhos de operários, uma educação básica, voltada para o trabalho, mas conciliada à educação cristã. A Escola Jesus Maria José possuía uma funcionalidade similar ao Externato São Vicente de Paulo, aberto em 8 de setembro de 1884, também fundado pela Igreja católica, mas destinado às moças pobres. Em 1918, a matrícula na Escola Jesus Maria José “é de 321 alumnos e a frequencia regula de 200 a 249. Os alumnos aprendem a ler, escrever e contar: principios rudimentares de arithmetica, historia do Brasil, corographia, grammatica portugueza e instrucções religiosas".8 A divisão de sexos fazia parte dos preceitos da Igreja que exigia o atendimento ao que ela considerava como leis naturais, a mulher merecia uma educação inferior à do homem e “nunca uma educação juntamente com ele, a co-educação (a escola mista). Essa diferenciação na educação dos dois sexos era considerada fundamental para a garantia da estabilidade moral e social”.9 Devido a necessidade de melhor acomodar as alunas, e também pela grande quantidade de éis que a antiga Capela de Nossa Senhora da Conceição precisava comportar, as irmãs resolveram erigir outro templo, maior e melhor equipado. Assim, em 27 de novembro de 1896, sob a administração da Irmã Gagné, é lançada a pedra fundamental da nova Capela do Pequeno Grande, assentada pelo Capelão do Colégio, Padre Pedro Augusto Chevallier. Sua construção foi interrompida no ano seguinte e a sua conclusão só ocorreu em 1903. Inserida nos anos iniciais da República, esse templo religioso reete muito da tentativa da Igreja de reaver parte de sua inuência, chamando a atenção dos éis quanto a QUATRO LUGARES PARA O PATRIMÔNIO ESCOLAR DE FORTALEZA 21


importância e necessidade daquela construção, como um meio para armação da fé e religiosidade na Fortaleza que se desenvolvia. Apesar do advento da República e os anseios de secularização do ensino, a construção desses locais rearmou a posição hierárquica da Igreja na sociedade fortalezense e garantiu-se a propagação dos seus valores através do ensino voltado mais para a Cidade de Deus do que a Cidade dos Homens. Mais do que uma sobrevivência, a própria “expansão da rede escolar católica por todo o país, entre 1859-1959, só se tornou possível pela aliança entre a Igreja conservadora e a oligarquia, com a complacência do Estado”.10 Nessa posição temporal observa-se como esses quatros lugares, para o patrimônio escolar de Fortaleza, estão ligados também a própria história política, pois envolvem as tensões e as estratégias de manutenção da posição de poder da Igreja Católica em torno do período da implementação do estado republicano, calcado nas ideias positivistas baseadas em princípios da liberdade e da laicidade. Já na terceira posição temporal, observa-se que é no início da segunda década do século XX, que a cidade de Fortaleza começa a se concretizar como espaço privilegiado de circulação, priorizando gradativamente o funcionalismo, ao invés dos critérios de embelezamento. A cidade se expandia espacialmente, e medidas de modernização visaram adequá-la aos novos meios de transporte, com ênfase nas obras de calçamento das ruas. A instalação dos bondes à tração (1880), posteriormente elétricos (1913-47), visava a pontualidade e interação entre os diferentes ambientes. “As primeiras linhas que receberam o bonde foram: Estação, Fernandes Vieira, Praia, Via-Férrea, Matadouro, Alagadiço, Mororó, Praça dos Coelhos, Benca e Outeiro”.11 Pontos importantes, que cavam nos extremos estavam agora ligados com o centro da cidade. Em paralelo a isso, os ônibus são instalados de forma estruturada como transporte público a partir de 1920 e os automóveis já se apresentam, em número signicante, a partir de 1910. 22 QUATRO LUGARES PARA O PATRIMÔNIO ESCOLAR DE FORTALEZA

10. MANOEL, Ivan Aparecido. Idem. p. 17.

11. SAMPAIO, Jorge Henrique Maia. Para não perder o bonde: Fortaleza e o transporte da Light nos anos 1913 1947. Dissertação (Mestrado em História Social) - Universidade Federal do Ceará, 2010, p. 13.


Com a agilidade da mobilidade cria-se a possibilidade de morar-se mais longe. Assim, a distância deixa de ser uma diculdade para quem morasse perto da linha do bonde. O Centro da cidade, comercial, área de troca, compra, negócios, foi deixando de ser um local de moradia, pois agora existia a possibilidade de deslocamento "rápido". Podia-se percorrer a cidade em um menor tempo, dando uma sensação que seus próprios espaços estavam menores. A cidade de Fortaleza se expandia, seja porque as pessoas não tinham mais como morar no Centro devido à valorização dos terrenos, quanto pelas elites que preferiam lugares mais remotos e que concentravam outros símbolos de riqueza. Assim, as elites deslocam-se para morar em locais mais afastados (Jacarecanga, Benca e posteriormente a Aldeota), ampliando assim a área a ser urbanizada. O bairro do Outeiro começa a perder a sua referência e a Praça Figueira de Melo vai se tornando um lugar de passagem entre o Centro e a Aldeota. A partir desse período a centralidade de interesses econômicos na Aldeota será tão forte que acabará fazendo desaparecer a própria referência ao bairro do Outeiro. Na terceira posição temporal desse trabalho, observa-se que a história do espaço ao redor da Praça Figueira de Melo é um valioso documento para a história do desenvolvimento urbano da cidade e a sua expansão rumo ao lado Leste. Tudo isso, por passar do lugar periférico e dos miasmas indesejáveis em meados do século XIX; depois por compor parte do Centro a partir do m do século XIX; e por tornar-se espaço privilegiado de circulação, a partir da década de 1910, com o advento de novos meios de transporte. Esse novo horizonte técnico que se estabelecia na cidade também estava presente nas concepções de educação da Escola Normal que se pautavam prioritariamente na alfabetização e na prossionalização. Desde 1837 discutia-se a sua implementação em Fortaleza, mas sua concretização só aconteceu no nal do século XIX. QUATRO LUGARES PARA O PATRIMÔNIO ESCOLAR DE FORTALEZA 23


A Escola Normal funcionou inicialmente em prédio próprio, na Rua Liberato Barroso, esquina com a Rua 24 de Maio, e depois sua nova sede foi parcialmente inaugurada na Praça Figueira de Melo no nal do ano de 1923, sendo concluída, conforme o projeto inicial, apenas em 1934. A partir dos parâmetros da reforma de 1922, o prédio deveria representar a própria noção de destaque que a educação teria na política daquele período. Ao efetuar essa mudança buscava-se o efeito de tornar palpável o processo de renovação educacional. A grade curricular da Escola Normal era desenvolvida em 4 anos, disposta nas seguintes disciplinas: “Língua nacional, francês, algebra e geometria, geograaphia geral e chorograa do Brasil, história pátria, história da civilização e instrucção cívida, physica e chimica, anatomia e psycologia experimental, pedagogia e didática. Aulas: desenho natural, musica e canto, gynnastica, trabalhos manuais, economia doméstica”12.

Observa-se, nos conteúdos a serem ensinados, uma modelagem cívica para difundir os conceitos de progresso e evolução social; a utilização do termo língua nacional como parte dos preceitos nacionalistas defendidos pelo Estado republicano naquele momento e a utilização de disciplinas direcionadas ao público feminino como forma de fortalecer o argumento da família como base da sociedade. Os temas estudados acima correspondiam ao que viria ser ensinado nas escolas primárias para as crianças. Essa aproximação do conteúdo do curso com o público do ensino, as crianças, faz parte do método da Escola Nova. A criança agora era vista através de etapas de desenvolvimento com os seus respectivos potenciais humanos. Só a partir desse momento difunde-se, por exemplo, a necessidade de divisão por idade e por nível de aprendizagem. 24 QUATRO LUGARES PARA O PATRIMÔNIO ESCOLAR DE FORTALEZA

12. ALVES, Raquel da Silva. Mães da pátria o ensino primário no Ceará na década de 1920. Dissertação (mestrado em História Social) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza (CE), 2009, p. 42.


13. ALMEIDA, Jane Maria Fernandes de. O ensino Normal no Ceará no Governo Justiniano de Serpa (1922-1924). In: Anais da IV Jornada Internacional de Políticas Públicas, São Luís (MA). Neoliberalismo e lutas sociais: perspectivas para as políticas públicas. Disponível em <http://www.joinpp.ufm a.br/jornadas/joinppIV/ %C3ndice%20de%20aut or.htm#LETRAJ>. Acesso em: 11/06/2015.

Constata-se que a década de 1920 foi um marco em função da Reforma do Ensino de 1922, em que se intensicou um processo de mudanças baseadas em ideias de cunho técnico-cientíco. Figuras como Lourenço Filho e Newton Craveiro caram na memória como seus empreendedores. A necessidade era de adequar o ensino à um país que estava se industrializando. A formação dos indivíduos seria uma das engrenagens para o progresso. No processo de generalização da preparação da mão-de-obra amplia-se as condições de formação técnico-pedagógica para aumentar o número de professores. Priorizou-se o ensino primário, pois “ler, escrever e contar era [considerado] o suciente para a maioria, do que ampliar a educação secundária para apenas a minoria”13. Apesar da proposta progressista de ensino baseada no laicismo e no apelo ao patriotismo, o Estado ainda utilizava o discurso moral da caridade e do amor ao próximo. A própria educação moral-cristã só não poderia afetar a carga horária da grade curricular, sendo praticada em outros horários. Apesar de notarmos acima, uma certa continuidade no discurso sobre o papel da mulher no lar, a Reforma de 1922 incentivou uma maior inserção dela no espaço público. Associa-se a possibilidade da formação de uma intelectualidade feminina responsável pelo avanço da pátria à essa idealização mais tradicional. A mulher deveria ser a mãe da pátria, que as crianças honrariam através da aprendizagem dos conteúdos, e a trabalhadora da educação em prol do futuro da nação. Portanto, ser uma normalista signicava a garantia de poder trabalhar fora de casa e possuir uma maior independência nanceira. Através dessas três posições temporais, ver-se que os bens estudados podem, além de contar sobre a invenção de Fortaleza como cidade, indicam elementos importantes para compreender-se a história das práticas pedagógicas. Nesse processo, apesar dos discursos universalizantes pretenderem uma maior abrangência numérica das instituições de ensino, observa-se como os esforços civilizatórios operavam processos de distinção ainda muito seletivos. QUATRO LUGARES PARA O PATRIMÔNIO ESCOLAR DE FORTALEZA 25


A universalização desse discurso distinguia quem e há quem se objetiva essa valorização através do ensino. Ao mesmo tempo que se cria a solução, o alfabetizado, colocando-os dentro do processo civilizatório, produz-se os de fora (exemplo: as línguas de matrizes linguísticas de ascendência indígena e africana) em um problema a ser resolvido: o analfabeto. Nesse processo de positivação saltase de 88,76% de analfabetos em 1872 para cerca de 80% da população que não dominava ainda a leitura e a escrita no início da década de 1920. O espaço para a educação tornava-se o lugar privilegiado da transição da sociedade do arcaico para o moderno, do mundo bárbaro ao civilizado, rumo a formação de uma sociedade brasileira.

26 QUATRO LUGARES PARA O PATRIMÔNIO ESCOLAR DE FORTALEZA


UM OLHAR SOBRE O CONJUNTO

14. O Tombamento é denido na Lei Municipal do Patrimônio, Lei nº 9347, de 11 de março de 2008.

A cidade é um protagonista vivo e dinâmico. Ao percorrer as suas ruas, habitar os seus edifícios, cuidar dos seus jardins, o cidadão dá um novo fôlego e cria um uxo vital que anima a urbe e a faz evoluir de forma orgânica. Cada lugar conta uma história, guarda segredos e cria memórias. Um edifício fala sobre aqueles que o habitam, sobre as mudanças sociais, culturais e até econômicas que ocorreram nas suas vidas. Em cada cômodo aparecem vestígios que revelam a convivência de todos aqueles que por lá passaram e continuam a passar. Contudo, estes locais que fazem parte do cotidiano do cidadão apressado, e são na sua maioria, desconhecidos. Falta-lhes o tempo e disponibilidade para “ouvir” o que têm a dizer. Porque não nos permitimos dialogar com a cidade? A descoberta urbana nasce de um olhar mais atento e contemplativo, de alguém que se apaixona e compartilha com os lugares as suas memórias e os seus sonhos. Uma cidade é fruto de diversas temporalidades e ritmos, é palco de acontecimentos históricos e berço de valores coletivos, a serem preservados. Ao fazer-se um Tombamento14, procura-se resguardar os valores culturais, que contam a história de um lugar e de um povo, fundamentando a importância de um bem. Preservando-se o Patrimônio, permite-se observar o passado, reinventando a sua narrativa no contato com o presente, abrindo às gerações futuras a possibilidade de dialogar diretamente com alguns dos intervenientes materiais da história. Contudo, numa cidade nunca se está só. Tal como acontece com as pessoas, os espaços relacionam-se com a sua vizinhança criando interdependências. UM OLHAR SOBRE O CONJUNTO 27


Projetando um edifício o arquiteto cria impacto no seu entorno, devendo por isso minimizar qualquer perturbação negativa e valorizar as imediações. Neste sentido, quando se quer preservar um edifício, é necessário resguardar uma ambiência favorável na vizinhança estabelecendo uma Poligonal de Entorno15, que procura assegurar o progresso urbano (ajustando a cidade às necessidades contemporâneas), sem desvirtuar o patrimônio cultural que queremos conservar e desfrutar em segurança. Proposta para Poligonal de Entorno Zona sob inuência da Poligonal do Paço Municipal Imóveis em Estudo Colégio da Imaculada Conceição Escola Jesus Maria José Igreja do Pequeno Grande Escola Justiniano de Serpa

Poligonal de entorno. Grasmo de Isabelly Campos, 2015 28 UM OLHAR SOBRE O CONJUNTO

15. A Poligonal de Entorno é denida na Lei do Patrimônio, Lei nº 9347, de 11 de março de 2008.


Inicia-se assim uma jornada, que procura mergulhar na intimidade de um conjunto urbano, desvendando as suas histórias e memórias, olhando com curiosidade uma parte da cidade cuja dinâmica é, em grande parte, reexo da vivência destes edifícios por mais de um século. Projetados e construídos em épocas distintas, os imóveis apresentam diferentes linguagens arquitetônicas mantendo inalteradas as relações urbanas que criaram, perpetuando as suas singularidades e evidenciando a identidade de cada instituição. Imóveis do Conjunto Colégio da Imaculada Conceição Escola Jesus Maria José Igreja do Pequeno Grande Escola Justiniano de Serpa

Implantação dos imóveis do conjunto. Grasmo de Isabelly Campos, 2015 UM OLHAR SOBRE O CONJUNTO 29


Passeando pela vizinhança, ainda hoje o cidadão encontra inúmeros imóveis do nal do século XIX e início do século XX que apresentam elevado interesse patrimonial, pois conservam as particularidades da sua construção original, contando cativantes histórias sobre a cidade e os seus habitantes. É, no entanto, com tristeza que se depara igualmente com presença de imóveis vazios e em visível processo de degradação. Localizados ao redor da Praça Figueira de Melo, os edifícios do conjunto em estudo, partilham a ambiência acolhedora deste espaço arborizado, que merece de todos nós cuidados e atenção. O percurso pela redondeza é agradável. Algumas ruas e imóveis possuem arborização, presenteando o pedestre com sombra e amenizando o impacto ambiental do transito de veículos motorizados. Como é o caso da Avenida D. Manuel.

1 30 UM OLHAR SOBRE O CONJUNTO

Imagem 1 Praça Figueira de Melo, com Escola Estadual Justiniano de Serpa (à direita) e Colégio da Imaculada Conceição (à esquerda). Fotograa de Kiko Silva, Prefeitura de Fortaleza, 2015.


Na área do entorno sobressai ainda a presença do riacho Pajeú, um dos polos embrionários da cidade que constituiu paralelamente, por algum tempo, uma barreira geográca que dicultava o acesso a esta região limítrofe. O Bosque Pajeú (junto ao Paço Municipal), e o Parque Pajeú (entre a Rua Pinto Madeira e Avenida D. Manuel), desenvolvem-se em redor de trechos, não canalizados, do riacho Pajeú. Ambos agregam uma quantidade considerável de árvores, contribuindo para o amenizar da temperatura e a poluição atmosférica, além de representarem um importante mecanismo de regulação da água da chuva, devido à sua extensa área não pavimentada.

Imagem 2 Parque Pajeú, junto à Avenida D. Manuel. Fotograa de Kiko Silva, Prefeitura de Fortaleza, 2015.

2 UM OLHAR SOBRE O CONJUNTO 31


Olhando as fachadas e soluções construtivas, desvenda-se a mensagem guardada por cada edifício e a diversidade que exibem. O conjunto, tal como outros imóveis encontrados pelo Centro Histórico de Fortaleza, reete algumas das abordagens ecléticas da Belle Époque. Tentativas de aproximação à arquitetura europeia e seu estilo de vida, elitizando a construção na procura do progresso cultural e artístico, assim como, no intuito de demonstrar poder, riqueza e inuência. Com este propósito, durante as primeiras décadas do século XX, o ecletismo tornouse o estilo arquitetônico em voga. Conciliando referências dos diversos gêneros que o precederam, com as inovações tecnológicas que surgiam na época, proprietários e projetistas passam a dispor de uma multiplicidade de recursos estilísticos, inexistente até então. Levando à edicação de obras díspares e impactantes.

3 32 UM OLHAR SOBRE O CONJUNTO

4

Imagens 3 e 4 B o s q u e P a j e ú . Fotograas de Kiko Silva, Prefeitura de Fortaleza, 2015.


COLÉGIO DA IMACULADA CONCEIÇÃO

Imagem 5 Perspectiva do Colégio d a I m a c u l a d a Conceição, publicada em 1914, no Álbum Histórico do Seminário Episcopal do Ceará.

O edifício onde se encontra hoje o Colégio da Imaculada Conceição foi, conforme referido anteriormente, construído para a instalação de um Hospital. Uma vez que se demonstrou mais urgente a necessidade de estabelecimentos vocacionados ao ensino, a remodelação do edifício deu lugar à orientação escolar, abrigando, num primeiro momento, a Casa dos Educandos e posteriormente o Colégio da Imaculada Conceição. Ao longo dos anos, o edifício recebeu um novo pavimento, novos acabamentos e ornamentações.

5 COLÉGIO DA IMACULADA CONCEIÇÃO 33


6

Construíram-se vários anexos que complementavam as necessidades funcionais da Instituição e inclusive muro. Ocupando toda a quadra, os edifícios conseguiram manter uma relação harmônica que preservou espaços descobertos e jardins, proporcionando um melhor enquadramento paisagístico, maior ventilação e iluminação natural nas salas. Voltado à Praça Figueira de Melo, o edifício principal tem uma composição de inuência neoclássica, que introduz elementos de simetria, escala, proporção e forma referenciados na arquitetura clássica (greco-romana). No entanto, o caráter eclético é evidenciado pela introdução de elementos decorativos com distintas inuências, que relatam a jornada do edifício ao longo do tempo e a forma como incorporou as reformas a que foi sujeito, amadurecendo as suas particularidades. 34 COLÉGIO DA IMACULADA CONCEIÇÃO

Imagem 6 Colégio da Imaculada Conceição, fachada voltada para a Praça Figueiras de Melo e Avenida Santos Dumont. Fotograa de Kiko Silva, Prefeitura de Fortaleza, 2015.


Imagem 7 Capela de N. Sra. de Lourdes. Fotograa de João Paulo Mendonça, 2015.

Imagem 8 Fachada do Colégio da Imaculada Conceição, voltada à Rua Costa Barros. Fotograa de Susana Caramelo, 2015.

7

8

As alas laterais do edifício prolongam-se até a rua, destacando duas capelas. Para o passeante que se aproxima elas parecem idênticas, no entanto, foram concebidas com propósitos diferentes. A Nascente, a Capela de Jesus do Horto das Oliveiras, tem acesso restrito às Irmãs da Congregação e o seu interior apresenta uma decoração simples, onde a luz que banha o espaço é ltrada por vitrais coloridos. A Poente, existia a Capela de Nossa Senhora da Conceição, onde decorriam as celebrações litúrgicas do Colégio até à edicação da Igreja do Pequeno Grande (que lhe ca contígua). Posteriormente, o espaço foi adaptado, dando lugar à Capela de Nossa Senhora de Lourdes, que recria o ambiente de uma gruta, em alusão à aparição de Nossa Senhora de Lourdes, em França. O Colégio é inteiramente envolvido por muros altos, que lhe conferem mais segurança e privacidade. No entanto, junto à rua Costa Barros um outro edifício se destaca, captando a atenção do transeunte. Construído em meados do século XX, com linguagem moderna e díspar, este bloco grava no observador, uma visão singular do Colégio, evidenciando, no eixo central da fachada, um nicho de grandes dimensões com a imagem do Sagrado Coração de Maria. COLÉGIO DA IMACULADA CONCEIÇÃO 35


O acesso principal ao Colégio da Imaculada Conceição é feito mediante um espaço externo, murado onde o visitante é convidado a abandonar o ambiente vertiginoso da urbe e aliciado a abraçar uma postura mais tranquila e contemplativa. O impacto visual do estacionamento é minorado pela existência de plantas e algumas esculturas, sobressaindo no centro da fachada um pórtico coroado pela imagem da Padroeira, que nos acolhe e instiga a entrar. 36 COLÉGIO DA IMACULADA CONCEIÇÃO

9

Imagem 9 Atrio do acesso principal do Colégio. Fotograa de Kiko Silva, Prefeitura de Fortaleza, 2015.

9a

Imagem 9a Coroamento do pórtico de acesso ao Colégio. Fotograa de Susana Caramelo, 2015.


Entrando-se neste edifício antigo vislumbra-se relatos do passado e se é impelido a explorar os diferentes ambientes, no desejo de desvendar um pouco mais das memórias da instituição. A história do lugar, as memórias daqueles que por ali passaram, viveram, estudaram e trabalharam estão latentes neste espaço sóbrio, com tetos altos e pisos de ladrilho hidráulico policromado. Elegantes portas ornadas com bandeiras de vidro colorido dão acessos a diversas salas que conservam peças antigas de mobiliário, fotos, obras de arte e documentos pretéritos. 10 Os valores relativos à identidade da instituição

ganham plena densidade num espaço embrionário de Museu onde se reúne uma miscelânea de objetos que relatam o passado do Colégio.

Imagem 10 Átrio de entrada do Colégio. Fotograa de Susana Caramelo, 2015 Imagem 11 Núcleo museológico do Colégio. Fotograa de Isabelly Campos, 2015.

11 COLÉGIO DA IMACULADA CONCEIÇÃO 37


12

O pátio central causa impacto no visitante. Apesar da sua escadaria imponente (que conduz ao andar superior e é o cenário eleito para muitas fotos de grupo), este espaço quadrangular, profusamente ajardinado e envolto por galerias cobertas, sugere uma atmosfera de recolhimento. Tal como nos claustros dos mosteiros medievais, além de proporcionar acesso às restantes áreas, este local permite a introspecção e instiga ao diálogo interno. 38 COLÉGIO DA IMACULADA CONCEIÇÃO

Imagem 12 Pátio central do Colégio. Fotograa de João Paulo Mendonça, 2015.


Momentaneamente, a tranquilidade dá lugar ao burburinho das crianças, que correm alegremente desfrutando do recreio. Os recintos comunicam entre si, pátios e jardins permitem a articulação dos diversos edifícios e enquadram áreas de circulação, lazer, esporte e jardins. Deambulando pelos corredores e jardins, encontra-se um acesso direto à Igreja do Pequeno Grande, cujo projeto foi da responsabilidade das Irmãs de Caridade e que encontra-se hoje sob os cuidados da direção do Colégio. 13

Imagem 13 Jardim da congregação. Fotograa de Susana Caramelo, 2015. Imagens 14 e 15 Jardim do Colégio. Fotograa de Susana Caramelo, 2015.

14 15 COLÉGIO DA IMACULADA CONCEIÇÃO 39


IGREJA DO PEQUENO GRANDE A Igreja do Pequeno Grande, destaca-se em relação aos edifícios da vizinhança. A sua silhueta peculiar constitui uma referência visual para todo o conjunto e é reconhecível desde diferentes pontos do entorno. O projeto do templo demonstra uma clara inuência europeia que transparece, não só, pela presença de uma acentuada inclinação na coberta, revestida com placas de ardósia (solução comum na Europa central, por evitar o acúmulo de neve), como também na profusão de elementos decorativos com reminiscência gótica. O Gótico foi um estilo arquitetônico que teve lugar na Europa, entre os séculos XII e XV, 16 introduzindo nos edifícios maior leveza e verticalidade, vitrais e janelas mais amplas. Por oposição ao estilo românico, vigente até então, que era caracterizado por estruturas maciças, poucos vãos e espaços fracamente iluminados. Com as tendências revivalistas do século XIX, um sentimento nostálgico pela arte medieval fez ressurgir o interesse por este tipo de construção, originando o Neogótico, que se espalhou além oceanos. 40 IGREJA DO PEQUENO GRANDE

Imagem 16 Igreja do Pequeno Grande, na conuência da Avenida Santos Dumont com a Rua Coronel Ferraz. Fotograa de Susana Caramelo, 2015.


A construção amplia, no entanto, o âmbito da inuência europeia incorporando explicitamente os avanços tecnológicos da Revolução Industrial e em especial da arquitetura de ferro, enquadrando o templo numa vertente da arquitetura eclética, onde vários estilos arquitetônicos coexistem e se complementam. A par de outros edifícios como o Theatro José de Alencar e o antigo Mercado do Ferro (atualmente dividido entre o Mercado dos Pinhões e o Mercado da Aerolândia), a introdução de uma estrutura metálica aparente e estilizada, no interior do templo, torna-o percursor e peculiar. A Igreja está recuada em relação à rua e envolta por uma pequena área externa murada, voltando-se para a Praça Figueira de Melo e Escola Estadual Justiniano de Serpa.

Imagem 17 Vista geral do interior da Igreja, junto à entrada do templo. Fotograa de Susana Caramelo, 2015.

A fachada apresenta simetria e equilíbrio, evidenciando, ao centro, a torre sineira e em especial a imagem da Padroeira, localizada sobre o portal de entrada. As inúmeras ornamentações são realçadas a branco, notabilizando o conjunto.

17 IGREJA DO PEQUENO GRANDE 41


As fachadas laterais, voltadas a nascente e poente, criam uma ilusão de verticalidade, através da repetição de elementos e da introdução de remates superiores em forma piramidal, que impelem o olhar do observador para o céu, remetendo ao simbolismo sagrado da ligação com Deus. O edifício relata também as intenções de projeto. O manifesto desejo de construir uma capela com maiores dimensões, acabou por originar a construção de uma Igreja que acarretava novas funcionalidades. A sacristia e respectivas salas de apoio, que estavam previstas, foram colocadas num edifício adjacente, por trás da capela-mor, enquanto que os confessionários passaram a localizar-se de cada lado do acesso principal, vedando as duas portas laterais da fachada. Ao entrar na Igreja, tem-se a percepção global do seu espaço. A estrutura metálica, de origem belga, sobressai, deixando de ser um mero elemento estrutural, como acontecia tradicionalmente, assumindo um papel fundamental na caracterização do espaço. Olhando no sentido da entrada, a atenção do visitante é captada pelo coro alto que está localizado sobre o acesso principal; apresenta um interessante guarda corpo de ferro pintado e é suportado por grandes cantoneiras metálicas semelhantes aos arcos de ferro que suportam a coberta. 42 IGREJA DO PEQUENO GRANDE

18

Imagem 18 Vista do coro-alto e interior da igreja, desde a capela-mor. Fotograa de Amanda Máximo, 2015.


O forro da nave acompanha a inclinação da coberta e tem várias pinturas de santos. Junto dos arcos metálicos existem esculturas sacras, fabricadas na França, adornadas por decorações de inspiração neogótica, que alternam com as portas laterais, coroadas por vitrais circulares.

Imagem 19 Pormenor de parede lateral, na nave da Igreja, destacando ao centro rosácea de vitral sobre portal, ladeados por mísulas com imagens sacras. Fotograa de Kiko Silva, Prefeitura de Fortaleza, 2015.

Desde a antiguidade, a luz desempenha um papel fundamental na caracterização de templos pois simboliza a relação com o sagrado. Na Igreja do Pequeno Grande, ela vai sendo ltrada por vitrais coloridos, que criam um ambiente imaculado. Na capela-mor, a presença da luz é multiplicada por grandes planos de vitral, com cenas litúrgicas, que enaltecem e enfatizam o altar, notável peça de madeira entalhada, coroada pela Imagem de Nossa Senhora da Medalha Milagrosa, que segue o estilo neogótico formando coerente conjunto com o púlpito e confessionários.

Imagem 20 Vista do altar-mor, ao centro. Fotograa de Kiko Silva, Prefeitura de Fortaleza, 2015. Imagem 21 Vista do púlpito, à direita do altar-mor. Fotograa de Kiko Silva, Prefeitura de Fortaleza, 2015. Imagens 22 Foto do confessionário. Fotograa de Kiko Silva, Prefeitura de Fortaleza, 2015.

19

20

21

22

IGREJA DO PEQUENO GRANDE 43


ESCOLA JESUS MARIA JOSÉ Esta Escola nasceu por iniciativa de Dom Joaquim José Vieira (segundo Bispo do Ceará) e foi inaugurada em 1905, mantendo-se em funcionamento até à década de 1920, sob a direção das Irmãs de Caridade da Congregação de São Vicente de Paulo. Após o fechamento da Escola, o edifício passou por diversas reformas e 23 abrigou diferentes atividades, entre elas: Casa Paroquial; Cine Paroquial; sede da Associação O Berço do Pobre; Auditório da Rádio Assunção Cearense; instalação do jornal “O Nordeste”; instalação da Escola de Nossa Senhora Aparecida; sede da empresa Marcosa. O seu projeto seguia uma vertente eclética, ostentando inuências arquitetônicas de origem diversa. A ala central destinava-se a espaços administrativos e auditório, enquanto que, nas laterais se localizavam as salas de aula. O acesso ao imóvel era feito pela rua Coronel Ferraz, mediante uma área externa murada, que atualmente dá lugar a um estacionamento desordenado. 44 ESCOLA JESUS MARIA JOSÉ

Imagem 23 Fotograa da Escola Jesus Maria José, ainda com o muro que resguardava o acesso ao edifício e o trilho do bonde que passava em frente da escola. ARQUIVO NIREZ. [RuaCelFerraz002pb]. [s/ data]. 1 fotograa.


24

A implantação do edifício destaca as alas laterais, criando um recuo frontal que promove o enquadramento Imagem 24 Escola Jesus Maria José. cenográco da entrada, enfatizando a presença Fotograa de Kiko Silva, sobrelevada do portal decorado e encimado pela Prefeitura de Fortaleza, 2015. imagem da Sagrada Família.

25

Imagem 25 Internamente o edifício apresentava belos acabamentos, Portal de acesso ao edifício da Escola Jesus pisos de ladrilho hidráulico coloridos e tetos com painéis de Maria José. Fotograa de gesso em relevo. No momento presente, os seus interiores Kiko Silva, Prefeitura de estão bastante danicados, mas conservam ainda muitos Fortaleza, 2015.

aspetos originais que merecem a devida apreciação.

Imagem 26 Pátio circunscrito por Todas as salas se comunicavam através de uma galeria galeria coberta, de a c e s s o à s s a l a s . coberta que circunda um pátio ajardinado, favorecendo Fotograa de Kiko Silva, não só a ventilação e iluminação dos espaços, mas Prefeitura de Fortaleza, 2015. também a comunicação e convivência.

26 ESCOLA JESUS MARIA JOSÉ 45


Depois de inúmeras reformas, a escola perdeu sua simetria. A ala lateral direita foi alterada e descaracterizada, destruindo parte da varanda e um novo bloco anexo foi construído nos fundos do terreno. Contudo, o espaço guarda ainda hoje, nos seus pilares de ferro, a mensagem que consubstancia o legado do seu idealizador: “D. Joaquim José Vieira Bispo do Ceará. Aos meninos desvalidos de sua diocese". Atualmente, o espaço não tem qualquer tipo de uso, encontrando-se em avançado estado de degradação e aguardando urgente obras de restauro e reabilitação que lhe devolvam a dignidade e o esplendor de outros tempos.

27 46 ESCOLA JESUS MARIA JOSÉ

Imagem 27 Inscrição nos pilares existentes na galeria que envolve o pátio da escola. Fotograa de Susana Caramelo, 2015.


ESCOLA ESTADUAL JUSTINIANO DE SERPA Completa-se o olhar sobre o conjunto educacional em estudo, explorando um pouco mais a Escola Estadual Justiniano de Serpa, localizada bem no centro da Praça Figueira de Melo.

Imagem 28 Escola Justiniano de Serpa, voltada a Praça Figueira de Melo. Fotograa de Susana Caramelo, 2015.

O edifício que alojou a Escola Normal até 1958, foi inaugurado com o nome de Escola Normal Pedro II. Todavia, ao longo do tempo a escola recebeu várias outras denominações: Escola Normal Justiniano de Serpa, em 28 1939; Instituto de Educação do Estado do Ceará, em 1947; Instituto de Educação Justiniano de Serpa, em 1952; Colégio Estadual de Fortaleza, em 1960; Escola Estadual Justiniano de Serpa, desde 1961. O projeto, da autoria do engenheiro José Gonçalves Justa, segue inuência da arquitetura europeia de linguagem eclética, tal como se verica com outros deste conjunto. Nele se incorporam elementos arquitetônicos comuns a outras edicações de grande porte construídas naquele período, com plantas simétricas, escadarias centrais e esquadrias amplas. ESCOLA ESTADUAL JUSTINIANO DE SERPA 47


A fachada principal está integrada no jardim da Praça Figueira de Melo, voltada ao Colégio da Imaculada Conceição e à Igreja do Pequeno Grande. O acesso ao edifício é feito por meio de uma escadaria central, ladeada por dois torreões. Sobre a porta, destacam-se os dizeres “Colégio Estadual Justiniano de Serpa”, o brasão do Estado do Ceará e, sobre eles, um relógio embutido, que por anos tentou evitar os atrasos em alunos e professores. Ingressando no pavimento nobre, encontra-se espaços amplos, com tetos altos, de madeira pintada, e pisos de madeira ou ladrilho hidráulico colorido.

29 48 ESCOLA ESTADUAL JUSTINIANO DE SERPA

Imagem 29 Fachada da Escola Justiniano de Serpa. Fotograa de Susana Caramelo, 2015.


O átrio de recepção apresenta monumentabilidade e distinção. A atenção do visitante prende-se no padrão de pintura decorativa, nas portas altas com bandeiras de ferro trabalhado, nas fotograas antigas e, principalmente, na inscrição que sublinha os ideais da Escola: “Somente pela Educação do Povo. Manteremos o Brasil Unido. Forte e Livre.” As salas de aula são grandes e pensadas para beneciar o ensino, com quadros escolares em paredes distintas, para que, consoante as necessidades, o mobiliário possa ser rotacionado, aproveitando melhor a iluminação natural.

Imagem 30 Átrio de entrada da Escola. Fotograa de Kiko Silva, Prefeitura de Fortaleza, 2015.

Imagem 31 Espaço museológico da Escola. Fotograa de Kiko Silva, Prefeitura de Fortaleza, 2015.

30

31

Na ala central do edifício, algumas salas foram transformadas em espaço museológico, para educação patrimonial e perpetuação das memórias da instituição, expondo cartazes com referências históricas, documentos, trajes, troféus e peças de mobiliário antigas. Uma delas conserva ainda uma monumental divisória de madeira, com painel superior de vidro colorido, que separa a sala dos professores e confere nobreza aos espaços. No piso inferior, as salas cam ligeiramente enterradas, sendo o acesso facilitado por alguns degraus. Os seus acabamentos são mais simples e as janelas têm menor dimensão. ESCOLA ESTADUAL JUSTINIANO DE SERPA 49


O acesso às diferentes salas do edifício é feito através de corredores avarandados que circundam uma espécie de pátio, conferindo maior visibilidade ao conjunto e convergindo para uma área central, onde a piscina, bem azul e reluzente nos fala de uma história mais contemporânea.

32 50 ESCOLA ESTADUAL JUSTINIANO DE SERPA

Imagem 32 Pátio central da Escola Estadual Justiniano de Serp a . Fotogra a de Amanda Máximo, 2015.


Fotos antigas, do arquivo do pesquisador Nirez, complementam este trabalho sobre o imóvel, mostrando a existência de um outro volume edicado que “fechava” a fachada sul da escola, delimitando o pátio em relação à praça (uma vez que o espaço não era murado como acontece atualmente). Um novo edifício foi inaugurado em 1967, para albergar novos espaços pedagógicos e áreas complementares. No entanto, este demonstra um escasso diálogo com o projeto original da Escola e os valores por ela preconizados.

Imagem 33 Pormenor de vista aérea onde se observa o edifício que foi demolido na Escola Estadual Justiniano de Serpa. ARQUIVO NIREZ. [Aérea1954pb001]. [1954]. 1 fotograa.

33 ESCOLA ESTADUAL JUSTINIANO DE SERPA 51


PAPEL DO CIDADÃO NA PRESERVAÇÃO O que seria o Patrimônio Cultural? Ao tentar-se responder essa pergunta podería-se colocar em um sistema de busca virtual a palavra cultura, tendo como alvo uma parte da área da cidade de Fortaleza. Como resultado teríam-se muitos pontos localizando vários estabelecimentos. Observa-se-ia alguns desses pontos indicam locais que normalmente são considerados como culturais: bibliotecas, livrarias, o centro cultural Cuca Barra, o Museu da Imagem e do Som, a Secretaria de Cultura, mas também conseguia-se ver outros estabelecimentos relacionados à música, como casas de shows, outros ainda relacionados à religião, como templos religiosos, e outros ainda voltados mais especicamente para a história, como o Marco Zero de Fortaleza. Essa amplitude de locais possuem importância na vida da cidade e falam sobre a sua cultura. Porém, até o momento, foram selecionados 33 bens culturais pela Prefeitura de Fortaleza para serem tombados como o patrimônio da cidade16. Fazer essa comparação numérica é uma simplicação, mas nos ajudará aqui a pensar sobre o patrimônio cultural. A relação entre os lugares reconhecidos como culturais de forma mais geral e o instrumento ocial de reconhecimento de um patrimônio – o tombamento, necessita de uma reexão constante. Porém, essa comparação ajuda a mostrar algo evidente: existe um processo de seleção para que algo considerado como Cultural, Histórico ou Artístico passe a ser considerado como Patrimônio de forma ocial. Mas, como fazer essa seleção? Como decidir quais desses locais são culturais? E desses locais quais poderão se tornar um patrimônio? 52 PAPEL DO CIDADÃO NA PRESERVAÇÃO

16. Lista dos bens tombados pela Prefeitura de Fortaleza: http://www.fortaleza.ce. gov.br/cultura/patrimoni o-historico-e-cultural.


Uma das formas possíveis de se suscitar uma discussão sobre como escolher o Patrimônio Cultural seria através do conceito de memória. Todos esses bens do mapa e da lista dada a ler pelo mecanismo de busca fazem parte da memória dos habitantes de Fortaleza? Questionando-se se a Escola Estadual Justiniano de Serpa, ou o Colégio Imaculada fazem parte da memória dos estudantes que estão lá todo dia talvez seja algo sem sentido, já que a memória pessoal se liga aos locais por onde se passa e aos grupos que neles convivem. Como por exemplo: o cinema que foi pela primeira vez com a família, ou o local da primeira vez que se saiu com os amigos. Esses espaços cam marcados na memória também, devido as emoções. O lugar onde se vai diariamente pode ser bom ou ruim, mas em algum momento pode causar emoções que fará lembrar desse espaço por um bom tempo. E para as pessoas que não usufruem desse espaço todos os dias? Como os locais a serem patrimonializados podem fazer parte da memória deles? Sabe-se que a memória compartilhada não funciona igual a memória individual. As maneiras ociais de se falar dessas lembranças individuais muitas vezes utilizam uma gura de linguagem: a metonímia. Através de uma experiência na escola pode-se falar da experiência na escola como um todo. Outra forma possível de se problematizar o conceito de Patrimônio Cultural é através da conceituação de identidade. Mesmo sem se ter vivido em determinado local pode-se considerá-lo como parte da identidade. Os colégios tombados mostram o seu potencial de referência cultural quando fomentam possíveis identicações. Por exemplo, nas entrevistas que se fez com as alunas, ex-alunas, funcionárias e professoras nota-se que uma frase se repetia: "um parente meu estudou aqui" ou “um parente meu trabalhou aqui”. A experiência passada por pessoas próximas ajuda a dizer da importância daquele lugar para os outros. PAPEL DO CIDADÃO NA PRESERVAÇÃO 53


A memória nos situa no tempo, enquanto que a identidade nos situa no espaço17, essas duas coordenadas balizam a existência e podem ajudar a questionar uma concepção de patrimônio que se confunde apenas com a herança do passado. Muito dessa antiga concepção de patrimônio deve-se a própria história do órgão federal responsável pela administração dessa política: o atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Sabe-se que desde sua criação em 1937 até a década de 1970 os bens culturais escolhidos para serem tombados pelo IPHAN eram apenas aqueles considerados como monumentos e obras de arte que possuíam um excepcional valor histórico e artístico reconhecidos em âmbito nacional. A mudança nessa concepção deve-se também à mudança do perl das pessoas responsáveis por essa escolha. Os arquitetos, que eram a maioria, passaram a dialogar com pessoas de outras atividades como prossionais do design, da indústria e da informática. Até os anos 1970 a escolha desses bens culturais era vista como uma tarefa técnica e legitimava os testemunhos da história ocial representada por uma elite branca de origem portuguesa. Essa concepção começou a ser questionada e colocaram em destaque que existiam elementos sociais e políticos para a decisão do que era considerado como patrimônio cultural brasileiro. Por que não incluir as manifestações de outros grupos (índio, negro, outras classes sociais) no que era considerado patrimônio? Atualmente ao falar-se de patrimônio lida-se, antes de tudo com pertencimento à essa memória e identidade fabricadas, cujos conteúdos e laços de afeto são refeitos incessantemente por nossas ações no tempo presente, o que torna o patrimônio cultural “cada vez mais reivindicado e menos herdado”18. Os laços de posse e de pertencimento com os bens culturais merecem um pouco de mais atenção. Tome-se emprestada aqui a sugestão de Ulpiano Meneses para 54 PAPEL DO CIDADÃO NA PRESERVAÇÃO

17. MENESES, Ulpiano. O campo do patrimônio cultural: uma revisão de premissas. Anais do I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural. Ouro Preto: Iphan, 2009. D i s p o n í v e l e m : <http://www.iphan.gov. br/baixaFcdAnexo.do?i d=3306>. 18. NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos. O campo do patrimônio cultural e a história: itinerários conceituais e práticas de preservação. Antíteses (Londrina), v. 7, 2014.


19. MENESES, Ulpiano. Idem, p. 54. 20. MENESES, Ulpiano. Idem, p. 54.

abordar essa questão através da visita de dois personagens à uma Igreja19. O primeiro personagem seria uma velhinha que praticamente habita aquele lugar devido as suas visitas constantes e o segundo é o turista que está ali de passagem, fora do seu cotidiano. Para a velhinha a sua vida se desenrola ali. Suas preces podem ser direcionadas aos seus parentes pedindo-lhes saúde. O passar das várias horas reetindo transformou aquele espaço em algo familiar. Consegue falar de tantas experiências passadas ali que se torna difícil contar uma história com começo, meio e m. Já o comportamento do turista é diferente: ocorre mais através da contemplação do que pela vivência. Ao observar aquela Igreja suas comparações são através de referências mais visuais: aquela imagem lembra algo que viu na televisão. Ambas as formas de fruição do espaço podem ser interessantes para as políticas do patrimônio, porém, seria perverso pedir-se para a velhinha deixar de ter o seu espaço cotidiano, onde expressa a sua fé para dar lugar apenas à uma vivência passageira direcionada à um pertencimento mais pontual. O importante em observar, a partir desse exemplo, é a atribuição de uma qualidade à determinado prédio. Os edifícios não possuem valor por si só, é preciso pelo menos que alguém diga “isso é um patrimônio”, é preciso de um ato de atribuição. Muitas das tensões sobre a política para o patrimônio cultural nascem ao fazer-se a pergunta: Quem cria esse valor? Tanto a resposta à pergunta quanto quem faz a atribuição é uma escolha política. Ulpiano Meneses20, novamente, nos chama atenção na mudança de foco contida no artigo 216 da Constituição de 1988 que diz: "Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira [...]". PAPEL DO CIDADÃO NA PRESERVAÇÃO 55


Enquanto a legislação anterior, o Decreto-Lei 25/1937, arma em seu artigo primeiro que: "Constitui o patrimônio artístico e histórico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográco, bibliográco ou artístico".

No segundo texto o Estado é o sujeito responsável pelo patrimônio, composto apenas de bens tombados. Enquanto que na Constituição de 1988 a sociedade e seus diversos segmentos foram colocados no texto como aqueles capazes de decidirem a matriz do valor cultural do patrimônio. A concepção do que era o patrimônio confundia-se com os conceitos criados através do tempo pelas práticas de conservação dos órgãos estatais responsáveis, porém, após uma ampliação dos signicados, dos sujeitos e das práticas de preservação envolvidas nos processos de patrimonialização, alargou-se também a sua denição para além dos marcos ociais e da proteção da pedra e da cal. Não se pode falar que existe apenas um conceito de patrimônio. Assim correndo-se o risco de simplicar as suas diversas denições, o conceito de patrimônio cultural evidencia os processos pelos quais se valorizam as mais diversas práticas e objetos culturais, atribuindo outros valores (identitários, históricos, memoriais, artísticos, etc) para além das atividades econômicas, tornando-as alvos de uma proteção e exposição diferenciadas21. Conclui-se que existe uma história do que é considerado patrimônio que determina a sua própria denição. Mesmo o instrumento ocial do Tombamento modicou-se no decorrer do tempo. Antes a intenção de proteger apenas o espaço físico do prédio, privilegiando a sua fachada, agora como podemos observar na Lei municipal nº 9347, de 11 de março de 2008, existe toda uma preocupação relacionada à própria forma de se gerenciar determinada parte da cidade. Uma política de patrimonialização bem gerida encontra reconhecimento 56 PAPEL DO CIDADÃO NA PRESERVAÇÃO

21. OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Cultura é patrimônio: um guia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008.


não apenas nas pastas culturais e educacionais, mas também em amplas e diversas esferas da gestão da cidade. Decidir se um bem é ou não um Patrimônio Cultural parece ser mais uma escolha política. Visto por esse ângulo, a efetivação de uma política de patrimônio democrática, só aparenta ter um efeito prático e satisfatório, quando a capacidade de diálogo entre os envolvidos no processo é motivada cotidianamente. Portanto, responder à pergunta do que precisa ser preservado é um direito decidido no campo político. Rearmar o direito de resposta à essas perguntas por setores mais amplos da população é garantir o direito à memória e a cidadania.

PAPEL DO CIDADÃO NA PRESERVAÇÃO 57


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Jane Maria Fernandes de. O ensino Normal no Ceará no Governo Justiniano de Serpa (1922-1924). In.: Anais da IV Jornada Internacional de Políticas Públicas, São Luís (MA). Neoliberalismo e lutas sociais: perspectivas para as políticas públicas. Disponível em <http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinppIV/%C3ndice%20de%20autor.htm#LETRAJ>. Acesso em: 11/06/2015. ALVES, Raquel da Silva. Mães da pátria o ensino primário no Ceará na década de 1920. Dissertação (mestrado em História Social) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza (CE), 2009. BARROSO, Francisco de Andrade. – 1997 – Igrejas do Ceará: Crônicas Histórico-Descritivas. v. 1. Fortaleza: Ed. do autor, 1997, p. 386. BENEVOLO, Leonardo. História da Arquitetura Moderna. 4ª Edição. São Paulo: Perspetiva, 2009. CAMPOS, Gerardo José. Colégio da Imaculada Conceição: do gênese ao apocalipse. Fortaleza: Tipogresso, 1999. CARVALHO NETO, Antônio Carlos; FERREIRA NETO, Napoleão; DUARTE JÚNIOR, Romeu. 150 anos de arquitetura metálica no Ceará. Primeira edição. Fortaleza: Expressão: 2006. CASTRO, José Liberal de. Arquitetura do ferro no Ceará. In: Revista do Instituto do Ceará. Ano CVI, 1992, p. 130-182. ______________________. Arquitetura Eclética no Ceará. In: FABRIS, Annateresa. Ecletismo na Arquitetura Brasileira. São Paulo: Nobel; Editora da Universidade de São Paulo, 1987. 58 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


DANTAS, Elza Alves. As letras da lei x as leis das letras: exame de capacidade prossional e a instrução pública na província do Ceará (1856-1888). Dissertação (mestrado em História Social) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza (CE), 2010. GUATARRI, Félix. Restauração da paisagem urbana. In.: ARANTES, Antonio Augusto (Org.). Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional n° 24. Cidadania. Rio de Janeiro, IPHAN/Deprom, 1996. MANOEL, Ivan Aparecido. Igreja e educação feminina (1859-1919). Uma face do conservadorismo. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1996. MENESES, Ulpiano. O campo do patrimônio cultural: uma revisão de premissas. Anais do I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural. Ouro Preto: Iphan, 2009. Disponível em: <http://www.iphan.gov.br/baixaFcdAnexo.do?id=3306>. NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos. O campo do patrimônio cultural e a história: itinerários conceituais e práticas de preservação. Antíteses (Londrina), v. 7, 2014. OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Cultura é patrimônio: um guia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. PONTE, Sebastião Rogério. A Belle Époque em Fortaleza: remodelação e controle. In.: SOUSA, Simone; GONÇALVES, Adelaide (Orgs.). Uma nova história do Ceará. 4ª ed. rev. – Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2007. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DA PROVÍNCIA, 1856. RELATÓRIO DO PRESIDENTE DA PROVÍNCIA, 1865. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 59


SAMPAIO, Jorge Henrique Maia. Para não perder o bonde: Fortaleza e o transporte da Light nos anos 1913-1947. Dissertação (Mestrado em História Social) - Universidade Federal do Ceará, 2010. SANTIAGO, Zilsa Maria Pinto. Arquitetura e instrução pública: a reforma de 1922, concepção de espaços e formação de grupos escolares. Tese – Universidade Federal do Ceará. Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em educação brasileira, Fortaleza, 2011. SAVIANI, Derneval. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2013. SECRETARIA DE CULTURA DE FORTALEZA, Instrução de Tombamento Municipal do Conjunto: Colégio da Imaculada Conceição, Igreja do Pequeno Grande, Escola Jesus, Maria e José e Escola Estadual Justiniano de Serpa. Fortaleza, junho de 2015. TEIXEIRA, Monsenhor Vicente Pinto. Relatório enviado à Arquidiocese acerca da saída da administração da Escola Jesus Maria José. Fortaleza, 1918. VIEIRA JR., Antonio Otaviano. Entre o futuro e o passado: aspectos urbanos de Fortaleza (1799-1850). Fortaleza: Museu do Ceará, 2005.

60 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



ISBN: 978-85-7826-291-4

9 788 578 26 291 4


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.