CADERNO DE TEXTOS
Salvador 2015
APRESENTAÇÃO As bandeiras de luta do movimento estudantil da saúde estão pautadas na implementação e expansão do Sistema Único de Saúde. O Movimento Estudantil de saúde formado por diretórios, centros acadêmicos e coletivos surgiu pautado pela necessidade de discussão da formação acadêmica e das questões de saúde da população brasileira, sobretudo nos aspectos sociopolíticos e econômicos, superando uma abordagem simplesmente tecnicista do profissional de saúde. O encontro de estudantes de saúde de Salvador é uma iniciativa da Frente Estudantil pela Saúde. Ela atua promovendo ações e discussões sobre a situação da saúde na cidade do Salvador. Além da discussão ampla que se mostra necessária no âmbito da saúde, a articulação entre líderes comunitários, sindicatos e movimentos sociais se apresenta de fundamental importância para a luta pela saúde pública de qualidade. A Frente Estudantil Pela Saúde surgiu em 2013, quando estudantes da área de saúde, interessados em participar da XII Conferência Municipal de Saúde de Salvador, se organizaram e interviram, colocando pautas de defesa da saúde pública, que foram deliberadas naquele contexto. Desde então, esse coletivo vem se reunindo e propondo ações e discussões junto à população, em especial à comunidade de estudantil de Salvador, Bahia.
Atenção Primária em Saúde enquanto instrumento de Luta pela transformação da Sociedade Thiago Cherem Morelli - Residente de medicina de família e comunidade O debate sobre a formação dos profissionais médicos sempre esteve bastante presente no meio acadêmico. O Movimento Estudantil teve papel central em vários momentos, buscando modificar a base curricular dos cursos de Medicina, como forma de aproximar a formação das necessidades do povo, em um movimento claramente contra hegemônico. Porém, uma das grandes dificuldades diante de tantos projetos distintos é saber qual modelo de atenção à saúde que devemos defender e como isso interfere no modelo de formação que queremos. Muitas vezes os estudantes se organizam, ocupam os espaços dentro da Universidade, mostram-se insatisfeitos com a sua formação, mas não sabem qual caminho seguir. Um dos fatores que dificultam o estudo sobre Educação Médica é a falta de bibliografia com o “nosso jeito de ver saúde”. A principal referência utilizada por esse texto foi a tese de Doutorado em Educação do Professor Luiz Roberto Agea Cutolo. Assim, pretendemos auxiliar e instrumentalizar os estudantes sobre o debate com relação ao tema formação médica, com uma ênfase especial para o papel da Atenção Primária em Saúde nesse processo. Os termos Atenção Primária e Atenção Básica serão utilizados nesse texto enquanto sinônimos. Os currículos médicos pós Diretrizes Curriculares Nacionais Para iniciar a construção do modelo de currículo que defendemos, é sempre importante fazer uma análise do atual currículo das faculdades de Medicina, que tipo de profissionais elas estão formando e a que interesses essa formação serve. Um primeiro “mito” que precisa ser esclarecido é que o processo de Reformas Curriculares dos cursos de Medicina a partir das Diretrizes Curriculares Nacionais, apesar de apresentar avanços, não modificou o paradigma da formação dos Estudantes de
Medicina. Ou seja, continuamos com um Modelo Biomédico de currículo e de atenção à saúde.
O Modelo Biomédico Em 1910, Abraham Flexner, publica um relatório a partir de uma pesquisa sobre o ensino da Medicina, que ficou conhecido como “Relatório Flexner”. Dentre os apontamentos para a formação médica, ele propunha que o ensino deveria ser feito sob um pensamento cartesiano, sendo o corpo humano considerado uma máquina que pode ser analisada através de suas peças; a doença é o mau funcionamento dos mecanismos biológicos; e o papel do médico é consertar um defeito no funcionamento dessa máquina (CAPRA). O Relatório é dividido em duas partes: a primeira parte, o autor traz o debate principalmente com justificativas para a utilização de laboratórios e hospitais, nos ciclos básico e clínico, respectivamente. Nos capítulos em que aborda o ciclo básico, chamado de laboratorial, discorre sobre os dois primeiros anos do curso médico, com as disciplinas de anatomia, histologia, embriologia, fisiologia e bioquímica (primeiro ano). No segundo ano, farmacologia, patologia, bacteriologia e diagnóstico físico (FLEXNER). O enfoque biologicista não é mais predominante apenas, passa e ser único e com a concepção que a Educação Médica deve estar dissociada das preocupações sociais, pensando que os médicos não têm controle sobre esses elementos. Segundo Cutolo: “Nos primeiros dois anos, o diagnóstico relaciona-se com a utilização das salas de autópsia e experimentos, reproduzindo as doenças em laboratório. Estes seriam potenciais articuladores entre as disciplinas de funções e estrutura normais (anatomia, fisiologia, histologia) e a clínica desenvolvida nos hospitais. Entende-se que os achados de autópsia e as doenças reproduzidas de forma experimental dariam a... “... oportunidade de comparar os achados laboratoriais com os sintomas apresentados pelos pacientes assistidos no hospital” (FLEXNER, 1910, p. 66,). Quanto ao Ciclo clínico, segundo Flexner, ele deve ser desenvolvido essencialmente dentro do hospital (como um “laboratório”). Esse ciclo clínico - hospitalar inicia-se no terceiro ano com as disciplinas de obstetrícia, doenças
infecciosas, clínica médica, pediatria, cirurgia, microscopia clínica e patologia. No quarto deveriam ser estudadas as disciplinas de cirurgia e especialidades médicas. Quinto e sexto ano: internato hospitalar. O ensino centrado no hospital é exposto com exaustão pelo autor, onde ele apresenta as características estruturais, como número de leitos ideal, ventilação, iluminação e instalações (CUTOLO). Essa ênfase à formação hospitalocêntrica, demandava a construção de um local específico para o seu desenvolvimento: o Hospital Universitário. Um ambiente cada vez mais próximo da concepção de um “laboratório de investigação biomédica e clínica, e tornando-se, a principal instituição de transmissão do conhecimento médico”. Segundo Cutolo: Este segundo ciclo do curso teria como propósito claro o estudo das doenças com suas implicações clínicas. “O estudo da medicina deve ser centrado na doença de forma individual e concreta” (FLEXNER). A atividade relativa ao doente, propriamente dita, possui duas possibilidades. Uma primeira é junto aos leitos de enfermaria, investigando através de anamnese e exame físico os doentes institucionalizados. Uma segunda é de volta aos laboratórios, examinando materiais como líquidos, secreções, excreções e tecidos com objetivo de complementação diagnóstica. O objeto de estudo passa a ser os sistemas e os órgãos isolados do corpo deste indivíduo, e não mais o indivíduo, favorecendo a disseminação das especialidades. Toda essa nova concepção de Educação Médica, apresentava um claro objetivo: o desenvolvimento da indústria da doença, com o seu "complexo médico-industrial" e a ênfase da tecnologia médica diagnóstica e terapêutica (exames complementares e medicamentos). O modelo Biomédico “entra” com grande força dentro das faculdades de medicina dos EUA, gerando inclusive o fechamento de diversas faculdades que não se adequavam aquele padrão de formação. Ao final da década de 40 do século XX, os estudantes de Medicina não tinham quase nenhum contato com professores médicos que exerciam a “clínica geral”, e sua formação era completamente realizada dentro de um hospital. Assim, a formação estava mais distante do contato com
as enfermidades que os indivíduos apresentavam em sua vida cotidiana. Enquanto mais de dois terços das queixas dos pacientes envolvem enfermidades mais prevalentes e menos graves, que não chegam ao atendimento hospitalar, os estudantes tinham contato com doenças graves e mais raras, durante seus estágios na graduação (CAPRA). A prevalência das doenças passava a ter uma visão distorcida dentro dos hospitais universitários, com uma experiência reduzida dos problemas comuns em saúde, estudados distantes da comunidade, onde o contexto social do paciente era praticamente ignorado. Os estudantes, assim, se concentram apenas nos aspectos biológicos das doenças, considerando o Hospital o ambiente ideal para a prática da medicina especializada e orientada pelo complexo médico industrial (hospitais, indústria farmacêutica, de exames complementares, altamente especializado).
Um novo caminho, com um antigo conceito Mesmo com a visão reducionista do adoecimento enquanto uma anormalidade apenas biológica e com seu tratamento dirigido a isso, diversas lacunas nesse processo não ficaram estabelecidas. Por exemplo, embora a medicina contribuísse para a eliminação de certas doenças, muitos pacientes ainda não se sentiam saudáveis, ou, mesmo com um tratamento bem sucedido, aquilo não restabelecia necessariamente a saúde do paciente. Estudos epidemiológicos começaram a demonstrar que a influência da assistência médica foi muito pequena na diminuição das doenças infecciosas, e que este processo estava muito mais relacionado com a melhora da qualidade de vida da população, quando as principais doenças infecciosas declinaram muito antes da descoberta dos antibióticos ou vacinas. Com essa concepção de Medicina era impossível explicar, por exemplo, o aumento da incidência de câncer, diabetes, hipertensão, sem discorrer sobre as mudanças no padrão alimentar das pessoas, aumento do estresse, poluição ambiental, agrotóxicos, sedentarismo... Da mesma forma, o profissional formado, buscando apenas a intervenção biológica no tratamento das doenças, sentia a impotência de exigir que seu paciente realizasse exercício físico diário, quando sua carga de trabalho diária era extenuante.
O Modelo Biomédico apresentava para os estudantes um modelo de medicina totalmente insuficiente para a assistência de saúde da população, apesar dele tentar “esconder” essas contradições dentro dos muros dos hospitais, distante das comunidades. Trazia um conceito de saúde muito interessante ao modelo de sociedade de exploração, com o objetivo central de “consertar” o paciente, para que ele voltasse ao ciclo de exploração em seu trabalho, não modificando as causas reais do seu adoecimento. O objetivo não era curar o paciente, mas permitir que minimamente ele se mantivesse apto a continuar no mercado de trabalho. Não se busca mais a cura, porque ela envolve modificações estruturais da sociedade e não permite os crescentes lucros do complexo médico industrial. Ou seja, o paciente com Lesões por Esforços Repetitivos e Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (LER/Dort) vai ser manejado para o alívio da sua dor, mas a compreensão que ele só vai obter a cura com a mudança no seu processo de trabalho (o que envolve a interrupção da exploração), não é mais visualizada por esse estudante ou profissional da saúde, com essa formação biomédica. E essas contradições não se limitavam ao campo dos profissionais da saúde. A própria população sentia que apesar dos grandes avanços na ciência médica, ainda se observava uma profunda crise na assistência à saúde. Diante disso, um antigo conceito de saúde, hegemônico em boa parte do século XIX, retorna ao debate: a Determinação Social do Processo Saúde Doença. Esse conceito foi a base do debate do Movimento pela Reforma Sanitária, que nasceu da luta contra a Ditadura Militar, e que buscava a democratização da saúde, em seu conceito mais amplo. A compreensão desse movimento era de que Saúde era muito mais do que ausência de doença, e que estava relacionada ao acesso a moradia, a terra, a alimentação de qualidade, a educação, emprego, lazer, acesso aos serviços de saúde... Que “saúde define-se no contexto histórico de determinada sociedade e num dado momento de seu desenvolvimento, devendo ser conquistada pela população em suas lutas cotidianas” (8a Conferência Nacional de Saúde).
Segundo Albuquerque: “Essa é a essência da determinação social da saúde e da doença: a forma como se organiza a produção de vida em sociedade determina diferentes formas de viver, adoecer e morrer para diferentes grupos sociais”. Um cuidado importante é o de diferenciar esse conceito do de “Determinantes Sociais”, que esconde a verdadeira associação entre o modelo de sociedade em que vivemos e o modo como às pessoas adoecem. Os estudos de determinantes sociais, pautados na epidemiologia tradicional, se limitam a identificar relações entre variáveis sociais e eventos de morbimortalidade, com uma visão bastante higienista-preventivista, que não propõe mudanças estruturais no modelo de exploração. A partir do avanço do Movimento pela Reforma Sanitária, e o questionamento do papel dos profissionais da saúde, associado a essas contradições, o modelo de formação dos estudantes de Medicina passa a ser questionado com mais força. Com a criação da Associação Brasileira de Educação médica (ABEM), em 1963, alguns professores de Medicina passaram a ampliar o debate e reconceituar o modelo de educação médica. Os próprios estudantes de Medicina, antes mesmo da criação da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), em 1986, já questionavam a formação médica e o papel que a medicina exercia. A partir do Encontro Científico dos Estudantes de Medicina (ECEM) em 1976, em Maceió, os estudantes de Medicina passam a discutir Determinação Social do Processo Saúde Doença, a estrutura do Sistema de Saúde e a formação com mais consistência e importância (BALLAROTTI). Com a criação em 1991 da Comissão Interinstitucional Nacional de Avaliação do Ensino Médico (CINAEM), diversas entidades passaram a debater os rumos da Educação Médica no país, com o objetivo de preparar as mudanças na formação médica. Em 2001, são criadas as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina. Porém, mesmo com os processos de Reformas Curriculares, a Escola Médica continua pautada no ensino hospitalar, biologiscista, fragmentado, utilizando metodologia de ensino verticalizada, com grande ênfase nas especialidades,medicalização e utilização de exames complementares. Ou seja, o problema metodológico da formação
não pode ser central nesse debate. A concepção hegemônica biomédica, mesmo questionada, permanece intocada (CUTOLO). Pensar Educação Médica dissociada do debate do Sistema de Saúde e do modelo de Sociedade, sem contemplar o conceito de Determinação Social do Processo Saúde Doença, só vai produzir reducionismos reformistas.
A Atenção Primária em Saúde enquanto instrumento contra hegemônico Diante dessa análise do paradigma biomédico e da transformação do modelo de Educação Médica, um debate bastante central é o papel da Atenção Básica no processo de formação dos estudantes de Medicina e de transformação da Sociedade. É importante ressaltar que o conceito de Atenção Básica defendido aqui difere substancialmente das propostas de políticas governamentais (ditadas e financiadas pelo Banco Mundial), como “cesta básica” de saúde para a população. Essa análise Governamental parte de pressupostos econômicos, com objetivo de redução de custos com assistência médica, e não visando a qualidade de atendimento. Eles atuam em uma perspectiva focalizada, entendendo a Atenção Básica como um plano de saúde de baixa complexidade, dedicada a população pobre, no sentindo de minimizar a exclusão social e econômicas decorrentes da expansão do capitalismo. A Atenção Primária defendida aqui, pensando na estruturação de um sistema de saúde púbico, é à base desse sistema (não só enquanto porta de entrada, mas como eixo central). Quando é colocada como instrumento contra-hegemônico na luta pela saúde e pela transformação da Sociedade, podemos analisar sob duas perspectivas:
A Luta contra o complexo médico industrial A primeira delas é a defesa da Atenção Primária como forma de se contrapor ao fortalecimento do complexo médico industrial. O modelo de atenção defendido tem como direcionamentos uma clínica resolutiva e próxima da realidade dos problemas de saúde da população. O processo de diagnóstico difere daquele de outros níveis de atenção, sendo a frequência de testes diagnósticos e a prescrição de medicamentos definitivamente menores (STARFIELD).
O Hospital é o ambiente onde os pacientes são obrigados a tomar medicamentos, onde os médicos solicitam muitos exames e onde o paciente não tem autonomia. A atenção subespecializada, devido ao enfoque fisiopatológico, falta de vínculo e atribuição de queixas a enfermidades que não estão presentes, gera solicitação de exames excessivos, diagnósticos e tratamentos inadequados e ansiedade aos pacientes. O valor da espera observada na Atenção Básica é maior para definir tanto os problemas apresentados, quanto para definir alternativas de tratamento. Por exemplo, um paciente chega a Unidade Básica de Saúde com uma queixa de odinofagia (dor de garganta). O profissional responsável examina o paciente e não encontrando sinais de infecção bacteriana, orienta o paciente a retornar caso não ocorra melhora do quadro. Em uma emergência, ou mesmo em um ambulatório de especialidades, a chance de esse paciente sair com a prescrição de um antibiótico, mesmo se tratando de um caso viral, é consideravelmente maior. Essa lógica de formação e de fortalecimento da indústria farmacêutica e de exames complementares tem gerado a expansão de diagnósticos, com a invasão do que é considerado doença para o que antes era considerado normal (STARFIELD). Os fatores de riscos estão sendo considerados como doenças, sendo a medicalização de estados pré-doença e de fatores de riscos se torna cada vez mais comum, com a expansão do comércio de medicamentos para pessoas antes consideradas saudáveis. Com uma visão “viciada” dos seus pacientes, o médico especialista acaba sempre pensando nas doenças mais raras e na forma de descartá-las solicitando uma série de exames complementares (boa parte deles desnecessários). Eles apresentam uma responsabilidade aumentada com as patologias de sua especialidade. E é isso que é passado para os estudantes, com um currículo repetitivo e que segue critérios de relevância adotados por esses especialistas. Da mesma forma, é a formação desses médicos que abastece o sistema privado de saúde e assim, o mercado da doença. Assim, para o complexo médico industrial, o modelo biomédico de formação é extremamente interessante, e lutar pela atenção básica de qualidade é lutar contra o complexo médico
industrial. O que não significa que não precisamos de bons especialistas e que o Sistema de Saúde que defendemos não precisaria de Hospitais com estrutura adequada. Mas, colocamos o papel central aqui da Atenção Básica, como forma de contrapor o que está colocado enquanto modelo de assistência à saúde hoje. Para a formação, Cutolo defende que a presença de superespecialistas nas escolas médicas seja algo necessário, embora o seu campo de atuação devesse ser prioritário nos programas de residência médica.
Proximidade com o Povo A segunda perspectiva de concepção de Atenção Básica, parte desse espaço como cenário privilegiado para compreender a Determinação Social do Processo Saúde Doença. O ensino e a prática hospitalares criam um “muro”, que dificulta a visualização das diferenças de classe e suas consequentes contradições relativas à saúde e doença. No ambiente hospitalar, os pacientes apresentam patologias graves, com risco de vida, o que passa a impressão de que a intervenção biológica, com medicamentos e exames, seja suficiente. O ensino dentro de um Hospital Terciário, distante da realidade social da população, esconde a relação do modelo de sociedade com o processo de adoecimento dos indivíduos. O ensino extra-hospitalar deve ser uma experiência sólida, prolongada e iniciada desde o início do curso. Deve ser a base do currículo para possibilitar o aprendizado do paciente enquanto indivíduo inserido em uma sociedade. Segundo Cutolo: “A comunidade pode ser o centro da atividade do ponto de vista clínico; pode ser um grande “laboratório” de pesquisas, mas, sobretudo, deve possibilitar uma visão mais clara do complexo sistema do processo saúde-doença e permitir reflexões e mudanças dentro de seu meio.”
O estudante de Medicina e o Médico militantes Diante dessas análises, chegamos ao ponto de apresentar um novo direcionamento: o estudante de Medicina e o Médico militando pela transformação da sociedade dentro do ambiente de Atenção Básica. A Determinação Social do Processo Saúde Doença vai estar presente em qualquer atendimento em saúde, porém na Atenção Básica, como apresentado até agora, esses elementos ficam evidentes e atingem uma expressão maior. E não
apenas ficam mais evidentes para o profissional, mas também para o próprio paciente. E essa poderosa arma de transformação social pode e deve ser utilizada. O estudante de Medicina/Médico deve considerar a determinação para além do diagnóstico. Deve utilizar esse conceito para executar ações que incidam sobre o processo de adoecimento das pessoas. Vários estudos têm demonstrado a importância política, social, ideológica e econômica dos médicos. Assim, esse profissional deve apontar ao paciente o caminho para a construção de uma sociedade mais saudável e menos desigual do ponto de vista material. Precisamos de uma formação que leve o Médico a abandonar sua posição histórica de curadorpreventivista ou de “ser neutro” e passar a ter uma postura crítica e de liderança, coordenando transformações sociais (CAPELLO). Outra compreensão é que tanto essa intervenção, quanto a nossa compreensão de Atenção Básica não serão possíveis de serem aplicadas diante de uma realidade de precarização e privatização desse modelo. Não é possível esperar a postura transformadora de um profissional que trabalha para atender a demanda reprimida daquela população, sem o apoio multiprofissional, sem condições básicas para realizar seu papel... Como um profissional vai realizar esse tipo de atuação, se, trabalhando dentro de uma Organização Social ou de uma Fundação Estatal de Direito Privado ele corre seriamente o risco de perder o emprego? Por isso a importância de nos posicionarmos criticamente contra os projetos de precarização e privatização desse modelo de atenção à saúde. É necessário também estimular projetos de inserção dos estudantes na rede básica, desde o início do curso, porém não apenas isso. Esses estudantes devem receber supervisão adequada, receber assistência estudantil, ter uma estrutura que permita o atendimento adequado para a população e que possibilite de forma satisfatória a parte pedagógica. Devem também conhecer verdadeiramente a realidade daquela comunidade, através de visitas domiciliares, participação e intervenção nos conselhos comunitários e conselhos locais de saúde.
Experiências de internato rural, sob essa perspectiva, devem ser estimuladas. Ou seja, além de visualizar a relação do modelo de Sociedade com a forma como as pessoas adoecem, esse profissional deve intervir, construir vínculos duradouros, demonstrar essa relação para os seus pacientes e mobilizar esse indivíduo para promover mudanças sociais. O Médico deve indicar ao seu paciente algo que podemos chamar de “Prescrição Revolucionária”, ou seja, empoderar o indivíduo sobre seu processo de adoecimento, estimulando e construindo um processo de mudança. Portanto não se pretende dar à escola médica e ao modelo de atenção um papel de poder que modifique a estrutura econômica da sociedade, mas entender a contribuição que eles têm no processo de transformação desta realidade (CUTOLO).
A SAÚDE E A CENTRALIDADE DA LUTA POR UMA CONSTITUINTE EXCLUSIVA E SOBERANA DO SISTEMA POLÍTICO BRASILEIRO Por Hugo Fanton Durante a segunda metade da década de 1970 e nos anos 1980, o movimento da Reforma Sanitária Brasileira conformou um campo de forças sociais mobilizadas em torno de um programa democratizante dos serviços de saúde no Brasil, tendo como princípio norteador a saúde enquanto um direito, a ser efetivado de forma radicalmente diferente do modelo médico assistencial privatista então vigente. Tratava-se de uma transformação social que pressupunha a alteração das relações de poder na área da saúde, pela articulação entre entidades sindicais e comunitárias, formação partidária e disputa por cargos legislativos e em instituições públicas, combinados com a conformação do campo da Saúde Coletiva como produção acadêmica crítica relacionada ao saber científico na área e pela construção de saberes em experiências de Educação Popular.
A articulação desse conjunto amplo e diversificado de práticas políticas e sociais ganhou expressão pública nacional em 1986, na 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), cujo documento final consolida os pressupostos construídos para nortear a política nacional de saúde, na medida em que fossem assegurados constitucionalmente. Adotou-se um conceito ampliado de saúde, não mais em referência restrita à assistência médica, mas relacionado a todos os seus determinantes, tais como trabalho, alimentação, habitação e transporte. Reivindica-se a saúde enquanto direito universal e igualitário, dever do Estado, a ser efetivado por uma rede regionalizada, que constituiria um sistema único, gratuito, de natureza pública, sob controle social e com financiamento autônomo. Nesse mesmo período, um conjunto mais amplo de movimentos sociais e sindicais brasileiros reivindicavam a instalação de uma Constituinte Exclusiva e Soberana no país, uma Assembleia formada por representantes eleitos com a finalidade exclusiva de elaborar a nova Constituição, a partir da soberania popular. No entanto, não houve força política suficiente para isso, prevalecendo a tese das forças conservadoras, e foi instalada uma Constituinte Congressual, ou seja, os parlamentares eleitos em novembro de 1986 acumulariam as funções de congressistas e constituintes, mantendo-se subordinados à vontade das forças armadas, do poder judiciário e do poder executivo. Tal subordinação pode ser exemplificada por fenômenos como a participação dos “senadores biônicos”, indicados pelos militares desde o “pacote de abril”, que compunham um terço do Senado e garantiam às forças armadas uma bancada maior no Congresso, além da articulação do “Centrão”, que barganhava suas posições com o Executivo em troca de cargos, concessões de rádio e televisão e outras benesses. Apesar disso, a formulação consistente de uma proposta para a saúde, resultante da articulação política historicamente consolidada pelo movimento sanitário, garantiu seu êxito na elaboração do Capítulo da Ordem Social, que institui o modelo de seguridade social como “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à
assistência social”. O texto aprovado na Constituição aproximouse bastante do proposto pelo movimento, obrigando o Estado brasileiro a estender universalmente a atenção à saúde e integrar as estruturas governamentais na sua efetivação enquanto um direito. No entanto, os limites impostos ao texto aprovado, tais como ausência de percentual mínimo de investimento na saúde pública condizente com sua expansão universalizante, bem como a não regulação do setor privado e da sua relação com o setor público, indicam uma correlação de forças desfavorável ao movimento popular naquela conjuntura. E para além disso, permite-nos entender como a forma de organização do Sistema Político Brasileiro influenciou diretamente no esvaziamento do conteúdo democratizante da Reforma Sanitária nas décadas subsequentes. De maneira mais geral, o vazio institucional e a ausência de um marco regulatório referente às relações entre o público e o privado no Sistema Único de Saúde garante a ausência de controle público sobre o setor privado. Este não só segue existindo como é dependente dos recursos públicos, por mecanismos como o acesso a financiamentos de Fundos Públicos; permanentes renúncias fiscais; venda de planos de saúde ao funcionalismo; isenções tributárias; dupla porta de entrada em hospitais públicos (que permite atendimento diferenciado nos hospitais públicos a clientes de planos de saúde); renúncia fiscal de pessoas físicas e jurídicas nas declarações de imposto; e o não ressarcimento do Estado pelo atendimento dos clientes da iniciativa privada na rede pública. No momento imediatamente posterior à promulgação da Constituição, ainda nos Governos Sarney e Collor, as discussões do movimento sanitário sobre a proposta de Lei Orgânica da Saúde alertavam para a ameaça de sua submissão ao fisiologismo político que caracterizavam as relações entre os três poderes. A consolidação de um presidencialismo sustentado em coalizões multipartidárias, que até hoje representam majoritariamente as diferentes frações de classe da burguesia, garantiu a ampliação da assistência médica supletiva e a implantação distorcida do SUS. Na época, falava-se em um “drama estratégico” para a Reforma Sanitária, na medida em que a definição das políticas de saúde
estava subordinada às relações entre empresariado do setor e autoridades do Estado, levando à centralização decisória e controle burocrático das ações, municipalização discriminatória e sub-financiamento. Em continuidade, nos períodos Itamar e FHC houve a chamada “implosão” do conceito de Seguridade Social e persistência do foco restrito da saúde na assistência médica. A criação de fundos de estabilização fiscal permitiu a desvinculação das receitas da União que constitucionalmente deveriam ser voltadas para políticas sociais. Para além disso, o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), proposto pelo Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE) nos anos 1995-2002, dá bases para a transferência da gestão de serviços públicos às Organizações Sociais da Saúde (OSS), “entidades públicas não-estatais, submetidas a contratos de gestão”, constituídas como pessoas jurídicas de direito privado. Essa agenda, que era preconizada pelo Banco Mundial, garantiu mais um mecanismo de canalização dos interesses privados para o interior de um sistema supostamente público, agora na organização da rede de atenção básica. É parte do mesmo Plano a criação das agências reguladoras, dentre elas a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), prevista na lei 9.656/98, controlada pelos próprios empresários de operadoras de planos de saúde a serem por ela reguladas e fiscalizadas. É expressão desse controle o acúmulo das dívidas em bilhões de reais referentes ao necessário ressarcimento do SUS pelas empresas que utilizam serviços do setor público no atendimento de seus clientes. Também a Agência de Vigilância Sanitária tem se tornado refém do agronegócio em sua atribuição de fiscalizar o uso indiscriminado de agrotóxicos e a produção de sementes transgênicas. Cabe destacar ainda os espaços de participação e controle sociais, como os conselhos e conferências, previstos constitucionalmente em 1988 e garantidos por legislação específica. Apesar de tal configuração legal proporcionar a incorporação de grupos sociais antes alijados dos processos decisórios na gestão do sistema de saúde, não foi superado o maniqueísmo das relações da sociedade com o Sistema Político, o
que torna esses espaços meros rituais de legitimação de políticas e decisões que permanecem centralizadas nos órgãos administrativos e nos gabinetes. Durante os governos Lula e Dilma, toda essa estrutura institucional, legal e técnico administrativa do sistema de saúde permanece inalterada, ainda que as políticas de saúde tenham se somado às das demais áreas na melhoria da qualidade de vida da população brasileira vivida nos últimos 12 anos. Ressalta-se que a conquista da saúde como um direito e a construção do SUS desde 1988 proporcionou a extensão da rede de serviços básicos e ambulatoriais para um conjunto bastante amplo da população, redução de taxas de mortalidade infantil e materna e ampliação da cobertura vacinal, por exemplo. No entanto, os limites aqui descritos à concretização da Reforma Sanitária remontam diretamente à manutenção do controle do Sistema Político Brasileiro pelas classes dominantes de maneira geral, e das frações da burguesia que atuam no setor saúde. Se concebermos o Sistema Político de maneira ampla, levando em conta o Sistema Eleitoral e partidário, bem como os espaços e processos de democracia participativa e direta, podemos estabelecer relações entre as atuais características da organização do sistema de Saúde no Brasil acima listadas e nosso Sistema Político. A configuração legal, normativa e administrativa da saúde advinda das disputas políticas enfrentadas desde 1988 resultam, de maneira geral, da combinação entre o conjunto de regras que organizam os diferentes espaços de exercício do poder e a atuação nesses espaços pelas diferentes forças sociais e políticas que compõem a nossa sociedade. Esta atuação é desigual, na medida em que o conjunto de regras beneficia determinado grupo social, no caso, as diferentes frações da burguesia. A possibilidade de financiamento empresarial de campanha, os processos de definição de candidaturas no interior dos partidos, os diferentes mecanismos que favorecem quem já ocupa espaços de poder, a dissociação entre disputa política e compromisso programático, a falta de transparência e participação social na Justiça Eleitoral e no Sistema Judiciário como um todo, a imunidade parlamentar, votação secreta, proporcionalidade dos votos, enfim, o conjunto
articulado de regras existentes favorecem as classes dominantes nos processos eleitorais, que por sua vez determinam a legislação e a institucionalidade das mais diversas áreas, dentre elas a saúde. Se tomarmos novamente como exemplo as relações entre a ANS e as operadoras de planos de saúde, as doações de campanha permitem a composição de uma das maiores bancadas no parlamento, para atuarem em combinação com um sistema regulatório que age independentemente de um marco de referência. A agência que deveria regular é tomada por interesses particulares das empresas do setor, sem que sua legitimidade política se assente em critérios democráticos. Pelo contrário, seus integrantes possuem competência “delegada”, definida por critérios em nada transparentes. Nesse sentido, a estrutura jurídico-política que privilegia os detentores do poder econômico vai além das normas eleitorais e da composição partidária, fazendo referência ao burocratismo que caracteriza o Estado burguês, ou seja, à hierarquização das tarefas do Estado de acordo com critérios formalizados de competência. Isto explica tanto o papel de agências reguladoras e sua centralidade na concretização da política, como o esvaziamento dos ditos espaços de participação popular. Os Conselhos e as Conferências, a quem legalmente cabe a definição e execução de políticas na área, são simplesmente ignorados pelo Sistema Político como um todo. Em suma: a sociedade fica de fora. Ou, mais precisamente, ficam excluídas as forças sociais comprometidas com a democratização da saúde no Brasil, que representam 98% da população: o povo brasileiro. Relembremos que a Reforma Sanitária remonta a uma transformação social que pressupunha a alteração das relações de poder. Se os movimentos sociais permanecem em luta por uma saúde concebida enquanto “trabalho em condições dignas com amplo conhecimento e controle dos trabalhadores sobre o processo e o ambiente de trabalho”, além de garantia de alimentação, “moradia higiênica e digna; educação e informação plenas; qualidade adequada do meio ambiente; transporte seguro e acessível; repouso, lazer e
segurança”, é preciso colocar a questão do poder no centro do debate! Levantar a bandeira da Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político Brasileiro significa precisamente isso: participar ativamente da discussão da forma de se fazer política e exercer o poder no Brasil, que hoje é profundamente desigual, em favorecimento da burguesia. Para enfrentar o fisiologismo, a corrupção, o sucateamento, a precariedade nas relações trabalhistas, enfim, as questões todas aqui já listadas e tantas outras que perpassam a efetivação do direito à saúde no Brasil, é fundamental recolocar na ordem do dia a necessidade de alterar o sistema de poder para realizar as mudanças estruturais! É isso, precisamente, que a luta por uma Constituinte Exclusiva e Soberana por meio de um Plebiscito Popular nos permite. Envolver-se na construção do Plebiscito abre ao movimento sanitário a possibilidade de resgatar suas origens, desprendendo-se dos gabinetes de universidades, dos consultórios e de órgãos administrativos, para construir força social em torno de um Projeto Popular para a saúde. Já em 1988 Sérgio Arouca afirmava que a Reforma Sanitária escrita na Constituição nada representaria se não ganhasse o espaço da comunidade, do lar, da fábrica, das escolas e ali efetivamente produzisse as transformações para “o bem estar da população e para a construção de uma sociedade democrática, justa e independente”. Esse desafio permanece atual e deve ser enfrentado, ainda que muitas vezes não seja fácil vislumbrar as possibilidades de construção de uma alternativa de poder. Nos anos 1970, em uma conjuntura ainda mais adversa, o recémformado movimento sanitário não se furtou desse dever. Pelo contrário, apostou na construção dessa possibilidade a partir da unidade permanente entre as forças populares, tanto programática quanto no terreno das lutas, estimulando experiências organizativas de base e sua articulação em torno de um programa amplo, nacional, democrático e popular. O Plebiscito Popular, enquanto instrumento político e ferramenta pedagógica, possibilita que nos envolvamos exatamente em um processo com essas características. Na medida em que qualquer pessoa, independente de sexo, raça,
etnia, idade ou religião pode se envolver, organizando grupos em bairros, escolas, igrejas, sindicatos, está colocada a tarefa de realizar trabalho de base, formação política e de ouvir as pessoas acerca de que saúde queremos e qual sistema político a torna possível. Só assim se enfrenta os grupos que hoje operam o sistema. É assim que sairemos da condição de meros espectadores para promover rupturas e protagonizar a conquista de um Projeto Popular para a Saúde.
AÇÕES PARA A SAÚDE DA POPULAÇÃO NEGRA EXIGEM PENSAMENTO ESTRATÉGICO Por Bruno C. Dias, da ABRASCO. Os passos estão sendo dados, mas é preciso estratégia. Essa é a opinião de pesquisadores e movimentos sociais sobre os cinco anos da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), que mesmo em que pese os avanços alcançados, exigem engajamento em todas as esferas da Federação para a aplicação real da transversalidade da política, visando o direito à saúde como um todo, seja para negros, negras, pardas, brancos, jovens, idosos e crianças. Às vésperas do dia da Consciência Negra, o Ministério da Saúde divulga boas notícias. O módulo de educação à distância específico para a aplicação da PNSIPN, lançado em 22 de outubro, já conta com 2,4 mil profissionais de saúde inscritos e 11 trabalhadores já obtiveram seus certificados. Os números são acima das expectativas, segundo as secretarias de Gestão Estratégica e Participativa (SGEP) e de Gestão do Trabalho e de Educação na Saúde (SGTES), responsáveis pelo programa de treinamento em parceria com a Universidade Aberta do SUS (UNASUS). Outro ponto destacado foi o volume de propostas encaminhadas para aprovação pelo edital n.21/2014, voltado para Saúde da População Negra e lançado no final de agosto pelo MS em parceria com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Do total de 89 trabalhos inscritos, 12 trazem temas voltados à ‘Política Nacional de Saúde Integral da População Negra’; cinco querem discutir o ‘Racismo Institucional’; 44 abordam ‘Situações de risco, agravos e incapacidades’; 26 falam sobre ‘Estratégias de promoção da saúde e qualidade de vida para a população negra’ e outros dois tratam do ‘Racismo no Brasil’. Os resultados serão divulgados a partir de 21 de novembro. CNS: A temática também esteve em pauta na última reunião do Conselho Nacional de Saúde, nos dias 6 e 7 de novembro.
Maria Zenó Soares da Silva, Conselheira do CNS e representante da Federação Nacional das Associações de Pessoas com Doença Falciforme (FENAFAL), e Maria Inês da Silva Barbosa, doutora em Saúde Pública pela USP e consultora nacional da Organização Pan-americana da Saúde (OPAS/OMS), apresentaram aos demais conselheiros aspectos relacionados à luta contra a doença falciforme e contra o racismo institucional. O debate contou também com João Paulo Baccara, coordenador geral de Sangue e Hemoderivados do Ministério da Saúde, onde está alocada a política voltada para doenças falciforme. Para Maria Zenó Soares, o debate sobre a saúde da população negra não pode estar preso a ritos de calendário. “Apesar de já ter sido pactuada, ainda falta participação dos estados e dos municípios em assumirem essa questão e colocar pessoas que tenham o compromisso de enfrentar e combater o racismo à frente das ações”. Maria Zenó Soares. Maria destaca que o racismo é tão grave quanto a fisiopatologia da patologia genética mais comum no país e que atinge a cerca de 40 mil brasileiros. “O mais triste é a sociedade em geral não saber nada sobre a doença e, ao chegar nos serviços de saúde, os funcionários não acreditarem no relato da dor”, reforçou ela. A doença falciforme é termo genérico para um grupo de desordens genéticas cuja característica principal é a herança do gene da hemoglobina S (gene ßs – beta S), que, em determinadas circunstâncias, faz as hemácias adquirirem o formato de foice. A forma mais comum e grave da doença é a homozigótica SS, que é denominada anemia falciforme ou depranocitose (Hb SS). Em 2014, 136 pessoas, a maioria mulheres negras, morreram devido à doença. “A invisibilidade é tão grande que esse fato sequer é comentado nos meios de comunicação”, denuncia Maria Zenó. Segundo a ativista, o Ministério acenou com a possibilidade de liberar o transplante de medula óssea como protocolo de tratamento para os acometidos pela anemia falciforme. Já Maria Inês da Silva Barbosa apresentou o estudo Mapeamento como instrumento de gestão: territorialização da política de saúde integral da população negra, no qual levantou quais municípios brasileiros têm alta potencialidade para a
implementação imediata da PNSIPN a partir de diversos critérios, como a existência de secretaria/coordenadoria ou alguma unidade de promoção da diversidade racial e participação em demais programas e políticas públicas do setor saúde, cultura e educação. O objetivo é propor instrumentos para aproximar e potencializar as ações e envolver os gestores. “Temos diversas ações, mas a implementação da PNSIPN não está ocorrendo primeiramente pela falta de compreensão do que é uma política transversal”, aponta Maria Inês. Segundo a pesquisadora, políticas nacionais transversais têm de entrar para o conjunto das ações do Ministério como um todo. Cita o caso dos Mais Médicos, principal política hoje desenvolvida pelo Ministério e que, justamente por atender principalmente a população negra e pobre do país, deveria estar “completa afinação para pensar o perfil epidemiológico da população negra e pensar o perfil daqui a três anos”, completou. Academia e gestão: A mesma avaliação é compartilhada por Luis Eduardo Batista, pesquisador do Instituto de Saúde, da Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo (IS/SES-SP) e vicecoordenador da Comissão de Ciências Sociais e Humanas em Saúde da Abrasco e que no último Congresso Brasileiro coordenou o eixo racismo, homofobia e outras formas de discriminação social: repercussões na saúde. “Sabe-se que aproximadamente 13 Estados têm um coordenador da Política, mas se desconhece quantos municípios têm uma área técnica ou um responsável pela sua implementação. Não se conhece que ações, intervenções e propostas são realizadas por estes gestores. Logo, não sabemos como esta sua implementação”, frisou. Batista destacou ainda a necessidade de avançar na formação dos profissionais para a temática Saúde da População Negra, tanto nos cursos de graduação quanto na educação permanente. “As doenças prevalentes na população negra, como a hipertensão arterial, merecem um pouco mais de atenção, pois há evidencias científicas, mas não são comprovadas, não se dá condições à população e aos profissionais darem melhor direcionamento as necessidades deste grupo populacionalracismo institucional”, destacou ele, afirmando que é fundamental
uma melhor afinação entre academia e gestão para alcançar um novo patamar social. “Para avançar na implementação da PNSIPN, é necessário avançar na visão estratégica sobre a política e a gestão em saúde como um todo. Nosso questionamento deve apontar para o debate sobre o direito universal à saúde e sobre as formas de sairmos da teoria para o cotidiano da vida das pessoas. Isso exige um componente ético de todos, sejam gestores, acadêmicos ou trabalhadores. Devemos prezar pela equidade, o que leva a compreensão da vulnerabilidade e o enfrentamento às discriminações históricas e as relações de poder inscritas socialmente em nosso país.” Luis Eduardo Batista. Maria Inês acredita que só uma vontade política desracializante profunda, que compreenda e encare o racismo como um componente da determinação social em saúde e torne esta e outras políticas transversais de fato integrantes da Saúde Pública brasileira pode trazer melhorias para a saúde das populações. “Há uma linguagem para dentro da PNSIPN que não conversa com as demais e isso tem de acabar. Senão, o combate ao racismo institucional acaba virando apenas um slogan”.
A LUTA ANTIMANICOMIAL E O DIREITO À CIDADE Por Nabil Bonduki*, publicado na Carta Capital Em cidades como São Paulo, agimos de forma excludente com as pessoas em sofrimento psíquico. Um exemplo são as ações higienistas contra usuários de drogas Domingo 18 de maio é o Dia Nacional da Luta Antimanicomial. Trabalhadores da saúde mental, usuários e familiares sairão às ruas por todo o País defendendo uma sociedade com direito à liberdade, igualdade e justiça social, promovendo o cuidado das pessoas em sofrimento psíquico em meio aberto, no seu território, na sua comunidade. E isso é possível com o investimento em serviços e políticas públicas inclusivas e comunitárias, que respeitem a autonomia, direito a liberdade e diferenças regionais. Em cidades como São Paulo somos confrontados diariamente com as diferenças. Quando a diferença é vista como ameaça acaba nos remetendo ao medo que nos leva ao impulso de querer isolar tal sentimento e assim agir de forma excludente. No cuidado das pessoas em sofrimento psíquico isto é frequente. Podemos observar práticas como esta nas ações cotidianas do Estado, quando por exemplo, ele trata da questão do consumo de drogas, com um claro e fracassado objetivo de higienização. Vemos medidas inaceitáveis como a operação “dor e sofrimento”, dos então governador Geraldo Alckmin e prefeito Gilberto Kassab, que submeteu em janeiro de 2012 usuários de craque a humilhação, violência e criminalização. Mas quando nos libertamos do medo, podemos perceber o que há de familiar, entender, nos sentir humanos e então transformar essa realidade. O programa “de braços abertos”, iniciado em janeiro deste ano pela Prefeitura Municipal de São Paulo, que oferece moradia, trabalho e atendimento de saúde ruma neste horizonte, e já colhe frutos. Hoje, de acordo com as equipes de acompanhamento 86% dos participantes conseguem manter frequência regular nas frentes de trabalho, demonstrando
que lidar com situações de vulnerabilidade exige grande esforço e necessidade de articulação inter setorial e inter secretarial. Outro desafio que se faz presente para que um atendimento humanizado seja possível é a implantação efetiva da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Uma diretriz do Ministério da Saúde que busca “(…) consolidar um modelo de atenção aberto e de base comunitária.A proposta é garantir a livre circulação das pessoas com problemas mentais pelos serviços, pela comunidade e pela cidade. A RAPS estabelece os pontos de atenção para o atendimento de pessoas com problemas mentais, incluindo os efeitos nocivos do uso de crack, álcool e outras drogas. A Rede integra o Sistema Único de Saúde (SUS). A Rede é composta por serviços e equipamentos variados, tais como: os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS); os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT); os Centros de Convivência e Cultura, as Unidade de Acolhimento (UAs), e os leitos de atenção integral (em Hospitais Gerais, nos CAPS III). Faz parte dessa política o programa de Volta para Casa, que oferece bolsas para pacientes egressos de longas internações em hospitais psiquiátricos. As informações completas estão na Portaria do GM Nº 3.088“. O que significa a articulação entre a União, o Estado e o município, hoje nula quanto ao Estado. A realidade hoje ainda é de exclusão da população em situação de rua, negra e indígena, pobre e periférica; de criminalização da juventude e movimentos sociais; do desrespeito às orientações sexuais e às mulheres e da exploração e abuso sexual de crianças e adolescentes, que gera sofrimento e consequências adoecedoras. Avançamos, mas a luta continua em busca de uma saúde integral, que contemple cultura, moradia, trabalho e o direito à cidade.
PORQUE TODOS NÓS PRECISAMOS DO SUS E SEM ABERTURA DO CAPITAL ESTRANGEIRO NA SAÚDE Isabela Soares Santos* | Publicado pelo Informe ENSP Semana passada, soubemos de uma grave e péssima notícia sobre o não veto da presidenta à Medida Provisória n.º 656, de dezembro de 2014 (para o Projeto de Lei n.º 18, de 2014), que muda a vida dos brasileiros e nossa perspectiva de uma sociedade mais solidária. Explico: grave porque é inconstitucional e péssima porque afeta o direito que cada cidadão tem à saúde, além de nossa perspectiva para o futuro de nossos filhos e netos. Mas o que a redação do Projeto de Lei n.º 18 traz? Ele altera o texto da Lei Orgânica da Saúde, a famosa LOS nº 8.080 de 1990, ao autorizar a “abertura ao capital estrangeiro na oferta de serviços de saúde”. Mais que oferta de serviços, o texto ainda versa que “É permitida a participação direta ou indireta, inclusive controle, de empresas ou de capital estrangeiro na assistência à saúde”, ou seja, não estamos mais falando somente em oferta de serviços e sim a respeito da assistência que envolve outras coisas. E delimita essa abertura para a oferta e assistência em alguns casos; entre eles, pasmem, “instalar, operacionalizar ou explorar: a) hospital geral, inclusive filantrópico, hospital especializado, policlínica, clínica geral e clínica especializada; e b) ações e pesquisas de planejamento familiar”. Qualquer pessoa que já tenha utilizado o SUS em algum dos estabelecimentos citados já compreendeu que a abertura é para, praticamente, tudo. Essa MP é uma violação à nossa Constituição Federal – documento de maior hierarquia jurídica do país que deve ser respeitado nas diretrizes para o sistema de saúde brasileiro. Isso é grave. É grave também o fato do governo e do Congresso Nacional não terem considerado as recomendações da nota feita pelo movimento das entidades da Reforma Sanitária acerca do assunto (consulte a carta aqui).
Enquanto a Constituição Federal veta o capital estrangeiro, a MP abre para o capital internacional na saúde. Portanto, é inconstitucional! E representa as forças que intencionam que o SUS sirva ao melhor lucro do setor privado e ao capital internacional – o qual é privado. Mas por que precisamos de um sistema público? Cito alguns exemplos. Em primeiro lugar, o SUS pode ser usado por todos os brasileiros. Qualquer pessoa que precise utilizar um serviço de saúde pode ser atendida pelo SUS simplesmente por ser uma pessoa; não precisa pagar por ele na hora do uso. A essa condição denominamos Direito Universal à Saúde. Trata-se de um direito de cidadania. Isso não ocorre com os planos de saúde, nem com os médicos, laboratórios e hospitais privados sem atendimento do SUS, pois nesses é necessário pagar para usar, seja por intermédio do plano ou pagando diretamente pelo próprio bolso – nesses casos, é estabelecido o direito de consumidor. O uso do SUS por todos pode ter diversos problemas. Realmente tais problemas existem, mas ainda é para todos. O direito de cidadania estende-se a todas as pessoas, principalmente nas sociedades preocupadas com o bem-estar geral, cuja organização é determinada com base em valores de solidariedade, os quais fundamentam serviços de interesse público, coletivo. Já o uso do serviço de saúde mediante o pagamento, baseado no direito de consumo, ocorre se a pessoa tiver como pagar; do contrário, não poderá usar. Nesse caso, é cada um por si, de modo a prevalecer o valor da liberdade individual. Isso acontece nos mercados privados. Na prática, todos os sistemas de saúde do mundo têm mistura de público e privado. Em minha opinião, o mais importante a compreender em cada sistema, e sobretudo no nosso, é se aquilo que é de interesse de todos (interesse público) consegue prevalecer sobre o interesse de alguns (interesse privado). Assim, por mais problemas que o SUS apresente e por mais imbricado que esteja com o setor privado, ele ainda é um sistema de saúde de interesse público para os mais de 200 milhões de brasileiros (algum outro país desse tamanho tem
sistema público para todos?). Portanto, o SUS é nosso e precisa ser melhorado. Mas por que precisamos de um sistema público de saúde e por que é tão difícil melhorar o SUS? Além dos motivos aqui já discutidos, precisamos de um sistema público por diversos outros motivos. Um deles é viabilizar a organização e a gestão do sistema. Imaginem como seria organizar a atenção à saúde em mais de 5 mil municípios, mais de 44 mil postos e centros de saúde, cerca de 41 mil policlínicas e clínicas especializadas, 20 mil estabelecimentos de serviços de apoio à diagnose e terapia (SADT), além dos mais de 6 mil hospitais e mil prontos-socorros, para mais de 200 milhões de brasileiros ? Outro motivo é ter escala econômica. Alguns indivíduos necessitam gastos com saúde muito maiores que outros, de modo que é preciso diluir esses gastos, de forma que a viabilidade econômica é maior em uma população maior. Isso é reforçado dentro de um contexto em que os custos com saúde são cada vez maiores em razão do desenvolvimento tecnológico – que no setor de saúde incorpora novas tecnologias sem se desfazer das antigas –, bem como devido a diversas mudanças, como envelhecimento populacional, aumento das doenças crônicas, aceleração da urbanização não planejada, gentrificação, crescimento dos modos de vida pouco saudáveis, quando a diluição dos gastos com saúde se faz cada vez mais necessária. Um sistema de saúde público também é fundamental para existir e serem estabelecidas regras mínimas de segurança e qualidade dos serviços realizados e, ainda, de recursos físicos e humanos que oferecem os serviços. Isso não pode ser previsto por cada empresa de saúde, seja um estabelecimento ou empresa de plano privado; tem de ser realizado por entidade que represente o interesse coletivo e público, e não o interesse privado do lucro. Então, só é possível ser realizado pelo Estado. Além disso, um sistema público de saúde também é importante por questões relacionadas ao desenvolvimento econômico do país. Interessa a todos um bom sistema público de saúde na intenção de garantir uma população saudável e com qualidade de vida. Atualmente, alguns países já atentam para a
necessidade de prover sustentabilidade às políticas sociais, de modo a garantir o acesso da população aos serviços de educação, saúde, previdência, saneamento e assistência social, para que as sociedades possam se desenvolver inclusive economicamente como forma de enfrentamento da pobreza, geração de emprego e produção de riqueza. O setor privado é um problema? Como essa mudança no setor de saúde pode nos afetar tanto se ficamos sabendo, todos os dias, de tantas notícias a respeito dos diversos problemas do SUS e dos planos de saúde? Pode atrapalhar a melhora do SUS? Pode piorar nosso sistema de saúde em sua totalidade? O SUS já melhorou muito desde que foi implantado. É possível constatar isso facilmente ao compararmos a situação atual com a de 30 anos atrás, pois não eram todos os brasileiros que podiam ser atendidos, sem mencionar a importante melhora geral dos indicadores de saúde dos brasileiros. Contudo, o SUS continuar sempre melhorando não interessa a todos (e temos de fazer muitos enfrentamentos para mudar essa situação). Em primeiro lugar, pelo motivo mais óbvio, isto é, se o SUS for muito bom, o setor privado não terá muitos clientes, e, portanto, os empresários do setor privado não conseguirão acumular tanta riqueza. Carlos Ocké-Reis mostrou, em 2013, em um trabalho publicado, que o faturamento das empresas de planos de saúde vem aumentando de forma espantosa. Em segundo lugar, há muitos enfretamentos a serem feitos, pois, desde a aprovação em 1988 da “Saúde como direito de todos e dever do Estado” na Constituição Federal, e também que “A saúde é livre à iniciativa privada”, o SUS tem de competir com o mercado privado de saúde, porém em situação de desvantagem. Apresentamos, a seguir, alguns exemplos extraídos do documento Manifesto do Cebes em defesa do Direito Universal à Saúde, Saúde é direito e não negócio (leia aqui a íntegra do documento): – 53% de todo o gasto com saúde no Brasil é privado (dados de 2010); enquanto entre as 10 maiores economias do mundo, só na Índia o gasto privado em saúde é maior que no Brasil (BANCO MUNDIAL: 07/02/2014);
– 25,3% dos brasileiros (mais de 49 milhões de pessoas) são clientes de planos privados de saúde (ANS: 20/04/2014); – As empresas de planos privados de saúde faturaram R$ 95,417 bilhões em 2012, 12,7% mais que em 2011 (ANS:23/04/2014); – As despesas do Ministério da Saúde foram de R$ 62,621 bilhões em 2011, R$ 22,036 bilhões a menos que o faturamento do setor suplementar, o Ministério, porém, destina-se a todos os brasileiros, e os planos a um quarto da população; – As empresas de planos privados de saúde têm forte poder econômico e financeiro e gastam bilhões de reais em publicidade. Como exemplo, em 2011, os planos de saúde eram o primeiro na lista de desejos de 90% dos brasileiros (SCHELLER, 2011: 28/11/2013). Ao mesmo tempo, desde os anos 1970, os sindicatos defendem o acesso mais amplo dos trabalhadores aos planos privados de saúde; – Todos os principais fornecedores de equipamentos, medicamentos e insumos biomédicos são privados; – O Brasil é, atualmente, o quarto maior mercado de produtos farmacêuticos de todo o mundo, e o SUS é comprador de uma grossa fatia desse mercado (INTERFARMA, 2013, apud SILVA, 2014, p. 56); – Os prestadores privados de serviços de saúde são responsáveis por grande parte dos leitos de internação hospitalar do SUS, e ainda há vários programas públicos de apoio financeiro a essas entidades (por exemplo, o BNDES Saúde – Atendimento SUS, BNDES: 22/04/2014, e o PRO SANTA CASA do Estado de São Paulo, SÃO PAULO: 23/04/2014); – Os gestores privados de saúde vêm sendo fortalecidos pela contratação de OSCIP e OS, permitidos pela Lei Federal n. 9.790/1999, sendo crescente sua atuação na gestão de hospitais, centros de saúde, UPAs e unidades de saúde da família;
– Em 2012, o Programa “Aqui tem Farmácia Popular” contava com 25 mil farmácias em 3.730 municípios, 12,953 milhões de pessoas (SILVA, 2014, p. 152 e 153). Para exemplificar, a remuneração do Programa às Farmácias Privadas foi superior em 254,9%, em média, ao preço de aquisição praticado pela SMS do Rio de Janeiro (SILVA, 2014, p. 231); – Em 11 anos, a proporção do financiamento federal relativa ao financiamento total do SUS caiu de 58,4% para apenas 45,4%; – A isenção do imposto de renda dos gastos com saúde privada é enorme – representava R$ 15,8 bilhões em 2011, o equivalente a 22,5% de todo o gasto federal em saúde (OCKÉ-REIS, 2013, p. 4) –, e a metade dessa isenção era relativa às despesas com planos de saúde (R$ 7,7 bi); – Os gastos só do governo federal com assistência privada à saúde para os servidores públicos e familiares equivalem a 5% do valor total do orçamento do Ministério da Saúde (SANTOS, FERREIRA e SANTOS, 2014); – 66% dos equipamentos de diagnóstico e terapia encontram-se sob controle do setor privado, e 62% dos leitos hospitalares existentes no Brasil eram privados em 2014 (DATASUS: 18/05/14). Esses são exemplos de importantes resultados de ações de competição que o SUS tem de fazer com o setor privado, em situação desfavorável. São situações como essas que precisamos enfrentar. Por exemplo, só o fato de as pessoas terem desconto no imposto de renda para pagar assistência privada à saúde já é um forte desmotivador para que justamente a população mais formadora de opinião tenha planos e deixe de lutar pelo SUS. Que futuro esperamos com isso? Até quando aceitaremos isso, cara pálida? A meu ver, estamos diante de um grande desafio, tanto individual de posicionamento na sociedade como ser político e, ao mesmo tempo, de estabelecimento de canais de diálogo com a
população que sejam mais efetivos, a fim de fazer valer os valores de uma sociedade solidária. Enquanto propagam-se teses de cataclismos no mundo, no Brasil, estamos preocupados vivendo adiantados tempos de escassez que surgem por outros motivos. Assim, optei por energizar minha atuação no movimento social e seguir na torcida para que a escassez de governantes comprometidos com a população e os valores de solidariedade se reverta. É preciso discutir e agir tanto no que diz respeito ao caminho que o SUS seguirá quanto à escassez de recursos hídricos (que nos colocará em situação de revisão da hierarquia social brasileira herdada da época da escravidão). Enfim, mais que nunca, é hora de as pessoas e instituições fazerem pressão por um Brasil melhor, como é possível ser. A começar esclarecendo a população de que os planos privados são um estelionato. A grande parte das pessoas que tem plano o tem vinculado ao emprego. Quando se aposentarem, seus orçamentos diminuirão, sua necessidade de serviços de saúde e seus gastos com saúde aumentarão e, provavelmente, não conseguirão mais pagar por esses planos. A única saída para nós e nossos filhos é um SUS melhor. Ao mesmo tempo, é hora de reunir o pensamento progressista de esquerda, independentemente do partido ao qual as pessoas pertençam, e se inspirar nos movimentos que estão ocorrendo na Grécia e na Espanha, para, de fato, avançarmos nas políticas sociais. * – Isabela Soares Santos é Pesquisadora do Daps/Ensp, vicepresidente do Cebes e coordenadora do PDTSP/VPPLR/Fiocruz.