Clastres, pierre a sociedade contra o estado (copérnico e os selvagens)

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A sociedade contra

0

Estado

pesquisas de antropologia politica


Copernico e os selvagens*

On disoit

a Socrates

que quefqu'un ne s'estoit aucunement amende

en son voyage: Je croy bien, dit-if, if s 'estoit emporte avecques soy.

Montaigne

Pode-se questionar seriamente a proposito do poder? Urn fragmento de [Jara aUm do bem e do maf [1886] come'ra assim: "Se e verdade que em todas as epocas, desde que os horn ens existem, houve tambem grupos humanos (associa'roes sexuais, comunidades,

tribos, na'r0es,

igrejas, estados) e sempre urn grande numero de horn ens obedecendo a urn pequeno numero de chefes; se, conseqiientemente,

a obediencia

e aquilo que foi por mais tempo melhor exercido e cultivado entre os horn ens, temos 0 direito de presumir que em regra geral cada urn de nos possui em si mesmo a necessidade inata de obedecer, como uma especie de consciencia fOrmal que ordena: "Faras is so sem discutir; privar-te-as

daquilo sem reclamar; em suma, e urn 'tu faras"'. Pouco

preocupado,

como sempre, com 0 verdadeiro

sarcasmos,!'lietzsche,

entre tanto, isola

e com 0 falso em seus

a sua maneira

e circunscreve

~xatamente urn campo de reflexao que, outrora confiado apenas ao pensamento

especulativo, se encontra ha cerca de duas decadas sub-

metido aos esfor'ros de uma pesquisa de voca'rao propriamente tifica. Queremos

aludir ao espa'r0 do politico,

coloca a sua questao: temas novos, em antropologia dos cada vez mais numerosos.

cien-

em cujo centro 0 poder

Que a etnologia

social, de estuso se tenha inte-

ressado tardiamente pela dimensao politica das sociedades arcaica~ entretanto 0 seu objeto preferencial - eis 0 que, alias, nao e estranho

a propria

problemcitica

do poder, como tentaremos

demonstrar:

e


antes ~m indicio de urn modo esp~~tan~o, inerente a nossa cultura e

lado,

portanto

interrogar

muito tradicional,

~e -;preender-

como elas se tecem em outras culturas. Mas lacunas se preenchem;

as.rela~oes 0

poHti~~s- tal

atraso se recupera e as

existe agora uma quantidade

suficiente

de

0 autor

volta-se para ~s ciencias da cultura e da historia, a fim de

- se~ao que, por seu tamanho, e a mais importante da sua

investiga~ao - "as formas 'arcaicas' do poder polftico nas sociedades _~umanas". As reflexoes que se seguem encontraram

textos e descri~oes para que se possa falar de uma antropologia

mais particularmente

poHtica, mensurar

ao poder entre os selvagens.

ÂŁo~e~,sobre

seus resultados

e refletir sobre a natureza

su~~ origens, enfim, sobre ~s transforma~oes

do

o leque

que-~ his-

seu impulso

na leitura dessas paginas consagradas,

das sociedades

consideradas

dir-se-a,

e impressionante;

sufi-

aberto em todo caso para tirar do leito~exigente

qual-

toria lhe impoe segundo os tipos de sociedade onde ele se exerce.

cientemente

Projeto ambicioso, mas tarefa necessaria realizada pela notavel obra

quer duvida eventual quanto ao carater exaustivo da ~mostragem,

Essai sur Iefondement du pouyoir politique

de J~EI~~~~~pierr,~ (Ensaio sobre

0

fundamento

do poder politico].'

Trata-se

de urn

esfor~o muito digno de interesse a medida que em primeiro encontra-se

lugar

reunida e explorada uma massa de informa~oes relativa

nao so as sociedades human as, mas tambem as especies animais sociais, e ainda porque

-_

autor e urn filosofo cuja reflexao se exerce ..... _--sobre os dados fornecidos pelas modernas disciplinas que saD a 0

mamente,

questao do poder politico e, muito legiti-

Lapierre se pergunta

antes de tudo se esse fa to humano

na Africa, nas tres

Americas, na Oceania, Siberia etc. Em suma, uma coleta quase completa, pela sua variedade mundo "primitivo" com

0

horizonte

geografica

e tipologica,

podia oferecer de diferen~as

nao-arcaico,

sobre

0

seriedade que requer

0

que

0

em compara~ao

0

alcance do debate e a

exame de sua conduta.

imaginar que essas dezenas de .sociedades "arcaicas" so

possuem em comum a simples determina~ao ~ina~ao

daquilo

qual se desenha a figura do

poder poHtico em nossa cultura. Isso prova

E facil

"sociologia animal" e a e~ologia. Esta em causa aqui:

que a analise se faz sobre exemplos tornados

ja

negativa - como

0

de seu arcaismo, deter-

indica Lapierre - estabelecida

pela au-

responde a uma necessidade vital, ~e e1~_se desenvolve a partir de urn

~encia de escrita e pela economia dita de subsistencia. As sociedades

enraizamento biologico, se, em outros term os,

arcaicas

_.

0 poder

~ncontra

0

seu

lugar de nascimento e a sua razao de ser na natureza e nao na cultura . ..•..

-..

".

-.-

"""~-~""'''----.-.

-

nenhuma

podem

entao

diferir

que tornaria desinteressantes

recentes trabalhos

introduzir

animal, discussao

alias, se bem que se possa prever-Ihe "0 exame critico dos conhecimentos

0

resultado, a resposta eclara:

adquiridos sobre,os fenomenos

sociais~I}_tr~os anim!iis e especialmente sobre ;;gula~lo

nada academica

0 seu

processo de auto-

social nos m6strou ,a aus~ncia de qualquer forma, mesmo

~mbrio~arilll...9~ p-().E~~po.Hti.co ... " (p. 222). Tendo desbravado

esse

campo e assegurado que a pesquisa nao precisara esfor~ar-se por esse

que Lapierre,

I.

J ean- William

Lapierre, Essai sur Iefondement

de la Faculte des Lettres d'Aix-en-Provence,

du pouvoir politique (Publications

Editions Ophrys, 1968)

entre a~ unidades que a compoem,

mais ou menos aceitando

pela antropologia

anglo-saxonia

cinco grandes tipos "partindo que quase nao apresentam, politico"

a fim de pere e por isso

as classicas classifica~oes e.ara a Africa, percebe

das sociedades

poder politico e mais desenvolvido priamente

si. De fato,

todos os selvagens. Cumpre portanto

urn minimo de ordem nessa multiplicidade

mitir a compara~ao propostas

entre

se assemelha a outra e estamos longe da triste repeti~ao

Ora, ao termo de uma discussao paciente e erudita sobre os mais de biologia

profundamente

arcaicas nas quais

0

para chegar final mente aquelas

ou mesmo nao apresentam,

(p. 229). Ordenam-se

poder pro-

entao as culturas primi-

tivas em uma tipologia base ad a em suma na ~aior ou menor "quantidade" de poder polftico que cad a uma delas oferece a observas:ao,


. i

'lfJ ~,'

,.

I

y

, -, -'

'}.

.

\

/

~l .I. '

~uant~dade essa que pode tender a zero, " ... certos agrupamentos

dessa conceps:ao que exprime com bastante fidelidade

humanos,

pesquisa etnol6gica: a saber, a certeza jamais posta em duvida de que

em condis:oes de vida determinadas

que lhes permitiam

0

espfrito da

subsistir em pequenas 'sociedades fechadas', puderam prescindir de

o poder politico se da somente emuma relas:ao que se resolve, defini-

poder politico" (p. 525).

.tivamente, numa relas:ao de coers:ao. De sorte que sobre esse ponto,

~~flitamos sobre

0 pr6prio

principio dessa classificas:ao. Qual e

entre Nietzsche, Max Weber (0 poder de Estado como monop6lio do

~ seu criterio? Como se define aquilo que, presente em maior ou

uso legitimo da violencia) ou a etnologia contempocanea,

menor quantidade, permite a designas:ao de tallugar a tal sociedade?

tesco e mais pr6ximo do que parece e as linguagens pouco se diferem

Ou, em outros termos,

a partir de urn mesmo fundo: a verdade e

0

que se entende, mesmo a titulo provis6rio,

por poder politico? A questao e, vamos admiti-Io, de importancia, ja -que, no intervalo

que se supoe separar

sociedades

sem poder e

0

violencia e nao se pode pensar no poder sem

0

seu predicado, a vio-

lencia. Talvez seja efetivamente assim, caso em que a etnologia nao e culpada de aceitar sem discussao

cia e 0 fundamento do poder. Ora, seguindo as minuciosas analises de

pre. Mas ~ necessario precisamente

Lapierre, nao se tern a impressao de assistir a uma ruptura, a uma

seu proprio terreno -

descontinuidade,

coers:ao ou violencia, nao se pode falar de poder.

a urn salto radical que, arrancando

os -grupos huem sociedade

civil. Pode-se dizer entao que, entre as sociedades de sinal las de sinal -, a passagem e progressiva, quantidade?

+ e aque-

continua e da ordem da

Se~assim e, a pr6pria possibilidade

de classificar socie-

paren-

ser do poder consistem na

.sociedades com poder, deveriam simultane-amente ter lugar a essen-

manos de sua estagnas:ao pre-politica, os transformasse

0

o que

0

0

que

0

Ocidente pensa desde sem-

assegurar-se

disso e verificar no

das sociedades arcaicas - se, quando nao ha

ocorre com os indios da America? Sabe-se, por urn lado,

que com exces:ao das altas culturas do Mexico, da America Central e dos Andes todas as sociedades indigenas SaDarcaicas: elas ignoram a escrita e "subsistem"

do ponto de vista economico.

Por outro lado,

dades desaparece, pois entre os dois extremos - sociedades com Esta-

-todas, ou quase todas, SaDdirigidas por lideres, por chefes e, caracte-

do e sociedades sem poder - figurara a infinidade

ristica decisiva digna de chamar a atencrao, nenhum desses caciques

mediarios,

de graus inter-

fazendo, no maximo, de cada sociedade particular

uma

classe do sistema .. E alias ao que chegaria todo pr2jeto taxonomico desse tipo,

a medida

que se aprimora

arcaicas e que se desvendam

0

conhecimento

das sociedades

melhor as suas diferens:as. Por con-

possui "poder".

Encontramo-nos

entao confrontados

com urn enor-

me conjunto de sociedades nas quais os detentores do que alhures se chamaria poder SaDde fato destituidos de poder, ~I1~~?politico

se de-

termina como campo fora de toda coercrao e de toda violencia, fora

seguinte, tanto num caso como no outro, na hip6tese da desconti-

de toda subordinas:ao hierarquica,-onde,

nuidade entre nao-poder e poder ou naquela da continuidade,_parece

uma relas:ao de comando-obediencia.Eis

em uma palavra, nao se da a grande

diferencra do

claro que nenhuma classificas:ao das sociedades empiricas ~os possa

mundo indigena e 0 que per mite falar das tribos american as como uni-

esclarecer sobre a natureza do poder politic~ ou sobre as circunstan-

verso homogeneo,

~ias do seu surgimento, e que

movimentam.

0

enigma persiste em seu misterio.

"0 poder se realiza numa relas:ao social caracteristica: comando-

apesar da extrema variedade de culturas que ai se

Entao, conforme

0

criterio adotado por Lapierre"

0

Novo Mundo estaria e~ sua -quase totalidade no camp~-p;e-politfoo,

obediencia." (p. 44) Dai resulta de saida que as sociedades onde nao se

isto e, no ultimo grupo de sua tipologia, aquele que-reune as socie-

observa essa relas:ao essencial SaDsociedades sem poder. Voltaremos

dades onde

a isso. 0 que convem ressaltar primeiramente

caso, uma vez que exemplos americanos assinalam a classificacrao em

e ~ tradicionalismo

"0

poder politico tende a zero". No entanto, nao e esse

0


questao, isto e, que ha sociedades indigenas incluidas em todos os

politico sempre e em qualquer lugar. De sorte que se abre uma alter-

tipos e qu~ poucas dentre elas pertencem justamente ao ultimo tipo,

~~'tiva:-oti.oconceito

que devena normal mente agrupa-las

ele pensa, e~~;~~~'~~~~ssario

todas. Existe ai urn certo mal-

entendido, pois das duas uma: ou se encontram em certas sociedades chefias nao-impotentes,

isto e, chefes que, ao darem uma ordem,

veem-na ser executada, ou isso nao existe. A experiencia terreno, as monografias

dos pesquisadores

direta do

e as mais anti gas cronicas

nao deixam duvida nenhuma sobre isso: se existe alguma coisa completamente estranha a urn indio, e a idei;de ~eo6edec.!r,-exceto

em circunstancias

expedi~ao guerreira.

~omo e que, nesse caso, os iroqueses figuram

~prime~~_~p~2~.~_~~~ 9rande

das realezas afric~nas? ~ode-se aproxima~~

Conselho d~Liga dos Iroqueses de "urn Estado ainda ~~

~e.ll~~~.!p...a~j~~I~rll.mente constituido"? ao funcionamentoda

Pois se

"0 politico

(p. 44), entao nao se pode dizer

que os cinqiienta sachems que compunham

dona-lo

antes ~e interrogar

0

ou transforma-lo.

Mas e conveniente

sobre a atitude mental que permite que essa concep~ao seja elabora:... ,

~d~. E;emvlsta -;;ssinalar

0

disso,

0

proprio vocabulario

Grande Conselho iro-

da etnologia pode nos

caminho.

Consideremos

primeiramente

os criterios do arcafsmo:, ~usen-

cia de escri~~_e economia de subsistencia. Nadaha que dizer sobre 0 pri;~i;~;-'pois s~ tr;t~- d~-~Illdado de fato: uma sociedade conhece a escrita ou nao a conhece. A pertinencia do segundo parece em comfragilidade permanente

sociedade global" (p. 4 I) e se "exercer urn poder

e decidir para todo urn agrupamento"

e e necessario aban-

<? que.e

pensa~ao menos assegurada.

conc~;;;

que

que ele de conta do nao-poder no

lugar onde se encontra; ou entao e inadequado,

dar uma ordem ou de-;;-

muito especiais como em;:;;a

a realidade

classico de pocier e adequado

de fato "subsistir"?

E viver

na

do equilibrio entre necessidades alimentares

e meios de satisfaze-las. Vma sociedade com economia de subsistencia e entao a que alimenta seus membros apenas com necessario

,

encontrando-se

assim

a merce do ""---~--~._ ..

0

estritamente

menor acidente natural

ques formassem urn Estado: a Liga nao era uma sociedade global, mas

(seca, inunda~ao etc.), ja que a diminui~ao dos recursos se traduziria

1:una~lia..!?.ÂŁ~J~?liti~~_~e cinco sociedade~ globais.qu~ eramas cinco.Jri-

mecanicamente

~os i~o..<I!:l~s~s. A questao do poder entre os iroqueses deve entao se

outros termos, as sociedades arcaicas nao vivem, mas ~o..})revivem,

pela impossibilidade

de alimentar

todos. Ou, em

colocar, nao no plano da Liga, mas no das tribos: e nesse nfvel nao ha

sua existencia e urn combate interminavel

duvida, os sachems nao eram seguramente

saC>incapa{es de produ{ir excedentes, por carencia tecnologica e, alem

mais poderosos

que

0

resto dos chefes indigenas. As tipologias britanicas das sociedades

diss~curtUr-aL

africanas saD talvez pertinentes

primitiva,

para

0

continente

negro; elas nlio

podem servir de modelo para a America, pois - repitamo-lo o sachem iroques e

0

lider do menor bando nomade, nao existe dife-

ren~a de natureza. Indiquemos quesa suscita, com razao,

0

todavia que, se a confedera~ao

iro-

interesse dos especialistas, houve alhures

ensaios, menDs notaveis porque descontinuos, os Tupi-Guarani

_ entre

de Iigas tribais entre

contra a fome, pois elas

N ada de mais tenaz que essa visao da sociedade

e ao mesmo tempo nada de mais falso. Se pudemos

centemente falar de grupos de ca~adores-coletores as "primeiras

sociedades

de abunclancia'',2

;gric~it~res'ineoHticos"?3 essa questao de importancia somente

Nao podemos

0

re-

paleoHticos como que nao seria dos

nos estender

aqui sobre

decisiva para a etnologia.

Indicamos

que urn born numero

dessas sociedades

arcaicas

"com

do Brasil e do Paraguai, entre outros.

As observa~oes

precedentes

saD uma tentativa de colocar em

questao a forma tradicional da problematica

do poder: nao nos e evi-

<!:~t~_~1:1:_.c~:r.~~().~_~ubordina~aoco~stituem

a

esse;ci~do poder

2.

Marshall Sahlins, "La Premiere societe d'abondance"

[A primeira sociedade da

abundancia]. Les Temps Modernes, out. 1968. 3. Sobre os problemas que apresentam uma definis;ao do neolitico, cf. cap.

I I,

infra.


economia de subsistencia", na America do SuI por exemplo, produzia uma quantidade de excedente alimentar muitas vezes equivafente massa necessaria ao consumo anual da comunidade: produ9ao capaz, portanto, de satisfazer duplamente as necessidades, ou de alimentar uma popula9ao duas vezes mais numerosa. Isso, evidentemente, nao significa que as sociedades arcaicas nao sejam arcaicas; trata-se simplesmente de enfatizar a vaidade "cienti'fica" do conceito de economia de subsistencia que traduz muito mais as atitudes e habitos dos observadores ocidentais diante das sociedades primitivas que a realidade economica sobre a qual repousam essas culturas. Em todo 0 caso, nao e pelo fata de que sua economia fosse de subsistencia que as sociedades arcaicas"sobreviveram em estado de extrema subdesenvolvimento ate hoje"路 (p. 225). Parece-nos mesmo que, nesse sentido, e antes 0 p~oletariado europeu do seculo XIX, iletrado e subalimentado, que se deveria qualificar de arcaico. Na realidade, a. i~eia_d~.t:col}omiade subsistencia provern do campo ideologico do ["" Ocidente modemo, e de forma alguma do arsenal conceptual de uma -' cien~i~~Eip~~~doxal ver a etnologia, ela propria, vitima de uma mistifica9ao tao grosseira, e tanto mais temivel quanta contribuiu '\'\ para orientar a estrategia das na90es industriais com rela9ao ao mundo dito subdesenvolvido. Mas tudo isso, poder-se-a retrucar, tern pouco a ver com 0 problema do pod~r politico. Ao contrario: a mesma perspectiva que faz falar dos primitivos como "homens vivendo penosamente em economia de subsistencia, em estado de subdesenvolvimento tecnico ... " (p. 319) determina tamhem 0 sentido e 0 valor do discurso familiar sobre 0 politico e 0 poder. Familiar porque sempre 0 encontro entre 0 Ocidente e os selvagens serviu para repetir sobre eles 0 mesrno discurso. Como testemunho, citemos por exemplo 0 que diziam os primeiros descobridores do Brasi~ a respeito dos indios r, / ~~P..~: "g~~e.sse.rn fe, sem lei, se.I?r~i". Seus mburuvicha, seus chefes, nao possuiam com efeito nenhum "poder". 0 que haveria de 路~i~~~tranho, para pessoas saidas de ;ociedades onde a autoridade

a

culminava nas monarquias absolutas da Fran9a, de Portugal ou da Espanha? Tratava-se de barbaros que nao viviam em sociedade policiada. A inquietude e a irrita9ao de se encontrar em presen9a do anormal desapareciam, ao contrario, no Mexico de Montezuma ou no Peru dos Incas. Ali os conquistadores respiravam ~m ar habitual, 'para eles 0 mais tonico dos ares, 0 das hierarquias, da coer9ao, em uma palavra, do verdadeiro pod~r. Ora, observa-se uma notave! continuidade entre este discurso sem nuan9as, ingenuo, se!vagem, como se poderia dizer, e aque!e dos .:'~biosou pesquisadores modernos. 0 julgamento e 0 mesmo se enunci~~o em termos mais deIi~ados, e encontramos sob a pena de Lapierr~ numerosas express5es conformes a percep9ao mais corrente do poder politico nas sociedades primitivas. Exemplos: "Os 'chefes' trobriandeses ou tikopias nao detem uma potencia social e urn poder economico muito desenvolvidos, contrastando com urn poder propriarnente politico deveras embrionario?" (p. 284). Ou entao: "N enhum povo nHotapade elevar~~~ivel das organiza90es politicas centraIizadas dos grandes reinos 'hantos" (p. 365). E ainda: "A sociedade lobi naofti capa{ de se proporcionar uma organiza9ao politica" (p. 435, nota 134).4 Que significa de fato esse tipo de vocabulario onde os termos "embrionario", "nascente", "pouco desenvolvido" aparecem com freqiiencia? Nao se trata certamente de comprar briga com 0 autor, pois ~!beI11osbel!?que essa lingllagem e a da pr6pria antropologia. Tentamos aceitar ~e poderia chamar de arqueologia dessa linguagem e do saber que se acredita surja da! e perguntamo-nos: ? Clue essa linguagem diz exatamente e a partir de que lugar diz ela 0 que diz? Constatamos que a ideia de~conomia de subsistencia gostaria de ser urn julgamento de fato, mas envolve ao mesmo tempo urn julgamento de valor sobre as sociedades assim quaIificadas: avalia9ao qu;destr6i imediatamente a objetividade em que ela pretende fixar-se. 0 mesmo preconceito - pois afinal trata-se disso - perverte

s;

'~'luiloq~~路


e levaao fracasso 0 esfor90 para julgar 0 poder poHtico nessas mesmas sociedades. 0 modelo ao qual ele se refere e a unidade que 0 mede sao constituidos a priori pela ideia que a civiliza9ao ocidental desenvolveu e formou do poder. Nossa cultura, desde as suas origens, pensa 0 e.oder P2!itico e.T termos de ~ela~oeshierarq~~~~as ~ .:.~~ritari~~de <:"~1!lando-obediencia.Toda forma, real ou possivel, . de poder e portanto redutivel a essa rela9ao privilegiada que exprime a priori a sua essencia. ~e a redu9ao nao e possivel, e que nos e~<:9ntramos aquem do politico: a falta da rela9ao comando-ob~diencia i~plica ip~~fact~-~falta de poder poHtico. Por isso, existem nao 56 sociedades s~~do, mas tambem sociedades s~~ poder. Ter-se-a desde ha muito reconhecido 0 adversario sempre vivaz, 0 obstaculo permanentemente presente na pesquisa antropol6gica, o_etnocentris-

'!!-~.que mediatiza todo olhar sobre as diferens:as para identifica-las e \ )

!

) \ \ ) \.

finalmente aboli-Ias. Ha uma especie deritual etnol6gico que consiste em denunciar co;-~igor os ri~~os de~sa atitude: a inten9ao ~ iouvc1vel;mas nem sempre impede que os etnologos, mais ou menDs tranqiiilamente ou mais ou menos distraidamente, sucumbam diante dele. Sem duvida 0 etnocentrismo, como frisa muito justamente !:-~ierr_e, e a coisa melhor distribuida do mundo: toda cultura e, poder-se-ia dizer, por defini9ao etnocentrica em sua rela9ao narcisista consigo mesma. Entretanto, uma diferen9a consideravel separa o etnoc~~tris~??cidental do seu homologo "primitivo"; 0 selvagem de qualquer tribo indigena ou australiana julga que a sua cultura e superior a todas as outras sem se preocupar em exercer sobre elas urn discurso cientifico, enquanto a etnologia pretende situar-se de chofre no elemento da universalidade sem se dar conta de que permanece sob muitos aspectos solidamente instalada em sua particularidade, e que 0 seu pseudodiscurso cientifico se deteriora rapidamente em verdadeira ideologia. (Isso reduz sua justa dimensao algumas melifluas afirma90es sobre a civiliza9ao ocidental como 0 unico lugar capaz de produzir etn610gos.) Decidir que algumas culturas sac desprovidas de poder politico por nao oferecerem nada de seme-

a

,---------------

( ,./ ) ,

lhante ao que a nossa apresenta nao e uma proposi9ao cientifica: ~ntes denota-se ai, no fim das contas, uma certa pobreza do ccnceito. Q_~!n_()centrismo nao e portanto urn entrave superficial .a reflexao e as suas implica90es tern mais conseqiiencias do que se poderia crer. Ele nao pode deixar subsistir as diferen9as (cada uma por si) em sua neutralidade, mas quer compreende-las como diferen9as determinadas a partir do que e mais familiar, 0 p()der tal como ele eexperimentado e pensado na cultura ocidental. 0 evolucionis~~:-velho compadre do etnocentrismo, nao esta longe. A atitude nesse nivel e dupla: primeiramente recensear as sociedades segundo a maior ou menor proximidade que 0 seu tipo de poder mantem com o nosso; em seguida afirmar expIicitamente (como outrora) ou implicitamente (como agora) uma continuidade entre todas essas diversas formas de poder. Por ter, ~p6s Robert Lowie, abandon ado ;o~-o-i~g~;:;~~sas d~utrinas de Morgan ou Engels, a antropologia nao pode mais (ao menos quanto a questao do politico) exprimir-se em termos socio16gicos. Mas como de outra parte e muito forte a tenta9ao de continuar a pensar segundo 0 mesmo esquema, recorre-se a lJ1etaforas bio16gicas. Dai 0 vocabulario acima levantado: embrio~ario, n~~~;;;re;pouco desenvolvido etc. Ha apenas meio seculo, 0 modelo perfeito que todas as culturas tentavam realizar, atraves da hist6ria, era 0 adulto ocidental sao de espirito e letrado (talvez doutor em ciencias fisicas). Isso sem duvida se pensa ainda, mas em todo caso nao se diz mais. Entretanto, se a linguagem mudou, 0 discurso permaneceu 0 mesmo. Pois ~_que e urn poder embrionario senao 0 que poderia e deveria desenyolyer-se ate 0 estado adulto? Equal e esse estado adulto do qual se descobrem, aqui e ali, as premissas embrionarias? It, nao ha duvida, 0 poder com 0 qual 0 etn610go esta acostumado, 0 da cultura que produz etn610gos, 0 Ocidente. f por que esses fetos culturais do poder estao sempre destinados a perecer? Por que as sociedades que os concebem abortam regular mente? Essa fraqueza congenita prende-se evidentemente ao seu arcaismo, ao seu 3ubdesenvolvimento, ao fato de nao serem 0 Ocidente. As sociedades


arcaicas seriam assim axolotles sociologicas

incapazes de ascender,

o biologismo

da expressao nao e senao a mascara furtiva da muitas vezes partilhada

realmente

pela

etnologia, ou ao menos por muitos dos seus praticantes, de que a his-_ t.oria tem_umsentido

unico, de que as sociedades

sem poder sac a

dades, ja que nao sac sociedades polfticas. Em suma, terfamos de decretar que

0

poder politico nao

E entao

elas a imagem do que e necessario ser. E nao so

politico e pensavel? Se a antropologia

sociedades

0

nosso sistema de

melhor, mas chega-se mesmo a atribuir as

arcaicas uma certeza analoga. Pois dizer que "nenhum

visto que

0

direito

e aniquila-

Entretanto, nada impede que

se suponha que a etnologia so se coloca os prohiemas que ela pode resolver.

0

e pensavel,

e apreendido.

do no ate mesmo em que

imagern daquilo que nao somos mais e de que a nossa cultura e para ,. poder e considerado

se nao se procura dizer

justamente isto: que as sociedades arcaicas nao sac verdadeiras socie-

sem ajuda exterior, ao estado adulto normal. ~elha conviclfao ocidental,

em lugar nenhum. Alias e de se perguntar

necessario perguntar-se:

em que condic;oes

vacila,

e porque

0

poder

esta no fundo

de urn impasse, e cumpre portanto mudar de rota. 0 caminho onde ela se perde e

0

mais facil, aquele que se pode to mar cegamente, aquele

povo nilota pode e1evar-se ao nivel de organizalfao poHtica central i-

que e indicado pelo nosso pr6prio mundo cultural, nao enquanto ele

zada dos grandes reinos bantos",

se desdobra no universal, mas enquanto se revel a tao particular como

c~p~z_<iese proporcionar do ~~~~r

ou que "a sociedade lobi nao foi

uma organizalfao poHtica", e em urn senti-

urn esforlfo da parte desses povos para se darem urn ver-

~ad~!,-~pl:!derpolitico. Que sentido teria dizer que os indios Sioux nao conseguiram

realizar

0

que os ~stecas alcanlfaram, ou que os

~~~~!:-oforam incapazes de se elevar ao nivel politico dos Incas? A arqueologia da linguagem antropologica

nos conduziria, e sem ter de

qualquer

e renunciar,

outro. A condilfao

conceplfao exotica do mundo

asceticamente, digamos, a

arcaico, conceplfao que, em ultima

analise, determina macilfamente

0

discurso pretensamente

cientffico

sobre este mundo. A condilfao sera nesse caso, a decisao de levar enfim a serio

0

homem das sociedades primitivas,

aspectos e em todas as suas dimensoes;

sob todos os seus

inclusive sob

0

angulo do

cavar muito urn solo no fim das contas bastante arido, a descobrir urn

poHtico, mesmo e sobretudo se este se realiza nas sociedades arcaicas

parentesco secreta da ideologia com a etnologia, esta ultima, se nao

~<:>~egalfao

, tomarmos cuidado, destinada a debater-se no mesmo pantano lama-

considerada

antropologia

e no mundo

ocidental.

E necessario

aceitar a

ideia ~_eque a negalfao nao significa urn nada, e de que, quando

0

espelho nao nos devolve a nossa imagem, isso nao prova que nao haja

cento que a sociologia e psicologia.

ยง. e9~s~~el urna

do que ele

politica? Poder-se-ia

duvidar, se

a torrente sempre crescente da literatura consagrada

ao

problema do poder. 0 que sobretudo chama a atenlfao e constatar-se

'j>- ai a dissolulfao gradual do politico ql.!e, na falta de descobri-Io onde se esperava en~~ntra-Io, se cre perceber em todos os niveis das sociedades arcaicas. Tudo cai-desde entao no campo do politico, todos os

nada que ohservar. De maneira mais simples: assim como a nossa cultura acabou por reconhecer que

0

homem primitivo nao e uma crian-

lfa, mas, individual mente, urn adulto, assim ela progredira

urn pouco

se Ihe reconhecer uma maturidade coletiva equivalente. Os povos sem escrita nao sac entao menos adultos sociedades letradas. Sua hist6ria e tao profunda

que as

quanto a nossa e, a

(grupos de parentesco, classes de idade, unida-

, nao ser por racismo, nao ha por que julga-Ios incapazes de refletir

des de produlf80 etc.) que constituem uma sociedade sac investidos,

sobre a sua propria experiencia e de dar a seus problemas as solulfoes

com ou sem motivo, de uma significalfao politica, a qual acaba por

apropriadas.

abranger todo

tentar em enunciar que, nas sociedades onde nao se ohserva a relaC;ao

s~1:)grupo;~~nidades

0

espalfo do social e perder conseqiientemente

especificidade. ~ois, se

0 politico

a sua

existe em toda a parte, ele nao existe

E

exatamente

de comando-obediencia

por isso que nao nos poderiamos

(isto

e, nas

con-

sociedades sem poder politico),


a vida do gropo como projeto coletivo se mantem atraves do controle social imediato, imediatamente qualificado de apolitico. a q~e pr~cisamente s~--~~tendepor isso? Qual e 0 referente politico que permite, por oposi<;ao, falar de apolitico? Mas, precisamente, af nao existe 0 politico uma vez que se trata de sociedades sem poder: como entao podemos falar de apolitico? au bem 0 politico esta presente, mesmo nessas sociedades, ou bem a expressao de controle social imediato apolitico e em si contraditoria e de qualquer modo tautologica: 0 que ela nos ensina efetivamente sobre as sociedades as quais e aplicada? E, que rigor possui, por exemplo, a explica<;aode Lowie de que nas sociedades sem poder politico existe "urn poder " nao-oficial da opiniao publica"? Diziamos nos, se tudo e politico, nada e politico; mas, se em alguma parte existe 0 apolitico, e que alhures existe politico! No maximo, uma sociedade apolitica nao teria mesmo mais seu lugar na esfera da cultura, mas deveria ser colocada junto das sociedades animais regidas pelas relaeroesnaturais de dominaerao-submissao. Talvez esteja af a dificuldade da reflexao classica sobre 0 poder: t~e.~~~el_pensar 0 apolitico sem 0 politico, 0 controle social imediato sem amedia<;ao, em uma palavra, a sociedade sem 0 poder. a \ obstaculo epistemologico que a "politicolo-gia"-nao~o~be ~~o-moI mento ultrapassar, nos acreditamos te-Io descoberto no etnocentrismo cultural do pensamento ocidental, ele mesmo ligado a uma visao , exotica das sociedades nao-ocidentais. Se nos obstinamos em refletir •...... sobre 0 poder a partir da certeza de que a sua forma verdadeira se

l

°

encontra realizada na nossa cultura, se persistimos em fazer dessa forma a medida de todas as outras, ate mesmo 0 seu telos, entao seguramente renunciamos a coerencia do discurso, e deixamos a ciencia degradar-se em opiniao. A ciencia do homem talvez nao seja necessaria. Mas desde que queiramos constitui-la e articular 0 discurso etnol6gico, entao con.vArnmostrarmos urn pouco de respeito as culturas arcaicas e nos interrogarmos sobre a validade de categorias como aque1asde ec~~o~i~d~ subsistencia ou de contrale social imediato.

Ao nao efetuar esse trabalho critico, arriscamo-nos primeiramente a deixar escapar 0 real sociol6gico e, em seguida a descaminhu a propria descri<;aoempfrica: chegamos assim, segundo as sociedades.ou segundo a fantasia de seus observadores, a encontrar 0 politico em "\ todo lugar ou a nao encontra-Io em parte alguma. a exemplo evocado acima, das sociedades indigenas da America, ilustra perfeitamente, assim 0 cremos, ~ impossibilidade que existe .de falar de sociedades sem poder politico. Nao e aqui 0 lugar de definir 0 estatuto do politico nesse tipo de culturas. ~imitar-nosem()s_~recusar a evidencia etnocentrista de que 0 limite do poder e a .~oer<;ao,alem ou aquem do qual nada mais haveria; que 9 p~der :~!s~e de fato (nao so na America, mas em muitas outras culturas primitivas) totalmente separado da violencia e exterior a toda hierar_.ql1i<l; que, em conseqiiencia, ~odas'as sociedades, arcaicas ou nao, s~o politicas, mesmo se 0 politico se diz em multiplos sentidos, mesmo se ~s~ ~entido nao e imediatamente decifrilVele se ~evemos desvendar o enigma de urn poder "impotente". Isso nos leva a dizer que: I] Nao se pode repartir as sociedades em dois grupos: sociedades <:ompoder e sociedades s~mpoder. Julgamos ao contrario (em conformidade com os dados da etnografia) que 0 poder politicO lfniversal, imanente ao social (quer 0 social seja determinado pelos "la<;05de sangue" ou pelas classes sociais), mas que ele se realiza de dois modos principais: poder coercitivo, poder nao-coercitivo. 2] 9 poder politico como coer<;ao(ou como relaeraode comando-obediencia) nao e 0 modelo do poder verdadeiro, mas simplesmente urn casoparticular, uma realizaeraoconcreta do poder politico em certas culturas, tal como a ocidental (mas ela nao e a unica, naturalmente). Nao existe portanto nenhuma razao cientifica para privilegiar essa modalidade de poder a fim de fazer dela 0 ponto de referencia e 0 principio de explica<;aode outras modalidades diferentes. 3] Mesmo nas sociedades ~Ilde a instituieraopolitica esta ausente, (por exemplo, onde nao existem chefes), mesmo a{ 0 politico esta presente, mesmo ai se coloca a questao do poder: nao no sentido en-

e


ganoso que incitaria a querer dar conta de uma ausencia impossivel, mas ao contrario n,osentido de que, talvez misteriosamente, alguma coisa existe na a;;;i';cia. Se 0 poder poli#co nao uma necessidade Trierente a natureza human;' isto e, ao homem como ser natural (e nisso Nietzsche se engana), em troca ele ~ uma necessidade inerente !_"i~~~~ÂŁiaI. Podemos pensar 0 politico sem a violencia, mas nao podemos pens<ir 0 social sem 0 politico; em outros term os, nao ha ;ociedades sem poder. E por isso que, de certa maneira, poderiamos retomar por nossa conta a f6rmula de Bertrand de ]ouvenel, "A autoridade nos parece ter sido a criadora do n6 social", e simultaneamente subscrever integralmente a critica que the faz Lapi~rre. Pois se, como n6s 0 pensamos, 0 politico esta no pr6prio coraeraodo social, isso nao certamente no sentido em que encarado por De ]ouvenel, para quem 0 campo do politico se reduz aparentemente ao "ascendente pessoal" de fortes personalidades. Nao se poderia ser mais ingenuamente (trata-se realmente de ingenuidade?) etnocentrista. As obs-e~oes precedentes abrem a perspectiva para se situar a tese d~uja exposieraose apresenta na quarta parte da obra: "9 p()der politico pro cede da inovaeraosocial" (p. 529) e ainda: '~O p'ode!_p~iticb ~e-desenvolve proporcionalmente a importancia da inovaerao social, a intensidade do seu ritmo, a amplitude do seu . alcance" (p. 621). A demonstraerao, apoiada sobre numerosos exemplos, parece-nos rigorosa e convincente e nao podemos senao afirmar a nossa concordilncia com as amllises e as conclusoes do autor. Com uma restrieraoentretanto: e que 0 poder politico do qual se trata aqui, aquele que procede da inovaeraosocial, e 0 poder que, de nossa parte, denominamos coercitivo. Queremos dizer com isso que a tese de Lapi~~reconcerne as sociedades onde se observa a relaeraode comando-obediencia, mas nao as outras: que, por exemplo, nao se pode evidentemente falar das sociedades illdigenas como sociedades onde 0 poder politico proceda da inovaeraosocial. Em outros termos, a inovaeraosocial e talvez 0 fundamento do poder coercitivo, mas certamente nao e 0 fundamento do poder nao-coercitivo, a menos que se

e

e

!

-

.-~

e

decida (0 que e impossive!) que so existe poder coercitivo. 0 alcance da tese de Lapierre e limitado a certo tipo de sociedade, a uma modalidade particular do poder politico, ja que significa implicitamente que, onde nao ha inovaeraosocial, nao existe poder politico. Ela nos da entretanto urn ensinamento precioso: a saber, que 0 poder politico como coereraoou como violencia e a marca das sociedades hist6ricas, fsto e, das sociedades que trazem em si a causa da inovaerao, da ~udanera, da historicidade. E assim, poderiamos dispor as diversas soc{edaclessegundo urn novo eixo: as sociedades com poder politico nao-coercitivo sao a~'sociedades sem historia, as sociedades com poder politico coercitivo sao as sociedacles historicas. Disposierao bem diferente daquela implicada pela reflexao atual sobre 0 poder, que identifica sociedades sem poder e sociedades sem historia. E, pois, da coereraoe nao do politico que a inovas:ao e 0 fundamento. Dai resulta que 0 trabalho de Lapierre s6 realiza a metade do programa, uma vez que ele l1aorespondeu questao do fundamento. do poder nao-coercitivo. Questao que se enuncia brevemente, e de f~~ma mais-virulenta: por que existe poder politico? Por que existe .f poder politico em lugar de nada? Nao pretendemos dar a resposta, quisemos apenas dizer por que as respostas anteriores nao sao satisfat6rias e em que condieroesuma boa resposta e possivel. E em suma definir a tare fa de uma antropologia politica geral, e nao mais regional, tare fa que se detalha em duas grandes interrogas:oes: I] 0 que 0 poder politico? Isto 0 que a sociedade? 2] Como e por que se passa do poder politico nao-coercitivo ao poder politico coercitivo? Isto e: 0 que e a historia? Nos nos limitaremos a constatar que Marx e Engels, apesar de sua grande cultura etnologica, jamais dirigiram sua reflexao para esse caminho, se e que formularam cIaramente a questao. Lapier~e observa que "a verdade do marxismo e que nao existiria poder politico se nao houvesse conflitos entre as forerassociais". E sem duvida uma verdade, mas valida somente para as sociedades onde foreras sociais estao em conflito. Que nao se possa compreender 0 poder

a

.J

e

e:

e


como violencia (e sua forma ultima:

0

Estado centralizado) sem

0

conflito social, e indiscutivel. Mas, e quando se trata de~~~~~~des ~m conflitol~~!~~.~nde reina 0 "comunis~?primitivo"? E pode o marxismo dar conta (caso em que ele seria com efeito uma teoria universal da sociedade e da historia e portanto da antropologia) dessa passagem da nao-historia a historicidade e da nao-coers:ao a violencia? '?~.~i~i?primeiro motor do movimento historico? Tal:. ~e~_conviesse procura-lo precisamente no que, nas sociedades arcaicas, seAi~simula ao nosso qlh;,tr, no politicomesmo. Dever-se-ia . '~ entaoii~vert,ila id~iaAe Dtfl"]{he.i~(;~ ref~~~~~-l~' corretamente) para qu~Jiro po~e~ politico supunha a diferencias:ao social: nao seria o pode~p~!~~~9_que constitui a diferens:a absoluta da so~iedade? ;' N~o"t;riamos at ~9.~adical enquanto raiz do social, ~ ruptura / I'.

~n_a!!~~Ld~..~odo.IIloviJ:nentoe de toda historia, original como matrizde todas as diferens:as?

0

desdobramento

E da~~!~!~? ~~p~rnicana que se trata. Nesse sentido e que, ate 0 presente, e sob alguns aspectos, ~ologiadeixou as cultura~. ~.!!1itiv~girareIIl_em torno da civilizas:aoocidental, e, poder-se-ia dizer, em urn movimento centripeto. 9~e uIIla m~d,ans:acompleta de P"c:~~p.~~~i~~!.~~j,~}}~cessaria (na medida em que se tenha realmente de enunciar sobre as sociedades arcaicas urn discurso adequado a seu ser e nao ao ser da nossa) eo que nos parece demonstrar com riqueza a antropologia poHtica. Ela se choca com urn limite, menos os das sociedades- primitivas do qu'e-~queieque ela"traz em si mesma, a propria li.tp.itas:aodo. Qcidente q~e ela traz ainda gravada em si. Para

I ;scap~r a atras:ao de sua terra nat~l e se elev~r ~ v~rdadeira liberdade ! de pensamento, para se desvencllhar da eVldencla natural onde ela

lI continua

a debater-se, a reflexao sobre 0 poder d,eve operar a con--J versio lChelioc~ntrica":ela ganharia talvez a melhor compreensao do ~ndo outros e, em conseqtiencia, do nosso. 0 caminho de sua conversao the e de resto indicado por urn pensamento da nossa epoca -9..~~~.lev!~~rio 0 dos selvagens: a ~bra' de Claude Levi\,.Strau~snos prova a retidao da diligencia pela amplitude (talvez ainda

d~~

insuspeita) de suas conquistas e nos obriga a ir mais 10nge.J temp9 de buscarmos outro sol e de nos pormos em movimento. . Lapierre comes:a seu trabalho denunciando, just~mente, uma pretensao comum as ciencias human as, que acreditam assegurar 0 seu estatuto cientifico rompendo toda ligas:aocom 0 que elas chamam de filosofia. E, de fato, nao ha necessidade de tal referencia para descrever cuias ou sistemas de parentesco. Mas trata-se de outra coisa, e e de temer que, sob 0 nome de filosofia, seja simplesmente 0 proprio pensamento que procura-se fazer sair. Seria entao 0 caso de dizer que ciencia e pensamento se excluem mutuamente, e que a ciencia se edifica a partir do nao-pensado, ou mesmo do antipensamento? As sandices, ora enfraquecidas, ora decididas, que os miIitantes da "ciencia" proferem de todos os lados parecem estar de acordo com isso. Mas e preciso nesse caso saber reconhecer a que conduz essa frenetica vocas:aoao antipensamento: sob a capa da "ciencia", das banalidades epigonais ou de empreendimentos menos ingenuos, ela leva diretamente ao obscurantismo. Ruminas:ao triste que afasta de todo saber e de toda alegria: se menos fatigante descer que subir, 0 pensamento no entanto nao pensa lealmente senao contra a corrente?

e


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