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A sociedade do descarte
from IT HOME - 47
by ithome
No fim do ano passado, tive a oportunidade de conhecer mais a fundo a cultura oriental, mais especificamente a japonesa e a coreana. Estive por lá, convidado a palestrar sobre o tema “Design x Alma”, na Seoul Design Festival.
Falando em “alma”, por lá me deparei com a incrível técnica secular de restauro chamada Kintsugi, na qual as cerâmicas são reconstruídas a partir da colagem das peças quebradas, unificadas com fios de ouro; recriando a peça, aceitando seu passado e transformando-a para o futuro.
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O conhecimento mais profundo daquela técnica me marcou. Temos muito a aprender com a metáfora que esse processo inspira e o que ele representa. Assumir as cicatrizes do tempo, transformá-las em histórias únicas e repletas de beleza.
Filosoficamente, é um verdadeiro contraponto aos tempos atuais, onde impera a cultura do descarte! Pessoas, produtos, relações são facilmente descartadas. Tempos líquidos? Talvez...
No âmbito da arquitetura e da decoração, vemos edificações históricas sendo demolidas para dar lugar a novos empreendimentos, muitas vezes esteticamente guiados por um “copy and paste” de uma estética internacional, matando e anulando a história que ali esteve presente.
Aspectos construtivos no interior das casas também são igualmente descartados, desprezando-se totalmente as cicatrizes que as trouxeram até os dias atuais. Com quantos parkets de madeira, com quantas peças de mobiliário nos deparamos nas caçambas espalhadas pela cidade?
E ainda pior: muitas vezes, numa nova construção ou arranjo decorativo, a identidade e a biografia das pessoas e clientes não são consideradas e nem sempre são inseridas no novo projeto de arquitetura e interiores.
Aquela tradicional peça de família dá lugar a uma cadeira da moda; as fotos saem de cena para abrir espaço a acessórios tecnológicos. E, assim, perde-se a essência e as raízes sem se dar conta.
O mesmo ocorre no âmbito do design de produtos. Designers e indústria, muitas vezes, são guiados por um norte único e exclusivamente comercial.
Cada fábrica e cada indústria têm as suas (em geral árduas) histórias e cicatrizes que a tornaram o que são hoje. Como podemos dessa maneira chegar em uma indústria e propor algo que desconsidere totalmente tal (rica) história?
O mesmo ocorre com os designers de produtos. Cada qual têm a sua trajetória e as suas convicções, que a meu ver podem e devem ser traduzidas em novas criações.
Para concluir tais pensamentos, acredito que nós, criativos, devemos ser alquimistas de almas. Devemos ser cada vez mais responsáveis, como num passe de mágica, por mesclar a história de nossos clientes juntamente com as nossas. Uma intersecção de identidades e cicatrizes únicas, sendo traduzidas numa estética que com toda a certeza será também ela singular.
Afinal, cada um de nós temos marcas que nos trouxeram mais sabedoria e que nos tornaram o que somos hoje. Tal qual ocorre com as porcelanas oriundas do processo de Kintsugi, que transforma cada uma dessas cicatrizes numa estética única e atual, com a união feita por cordões de ouro.
Utilizemos as nossas canetas, mouses, pincéis, transformando-os em nossas ferramentas, que tal e qual os fios de ouro assumem o passado e a partir dele criam o futuro.
Dessa maneira, o design pode e deve tornar o mundo mais belo. E cada produto ou projeto, revelar-se uma plataforma contadora de histórias. Histórias que nos alimentam, espaços que se transformam em ninhos de acolhimento e humanidade.
Pedro Franco é um dos mais prestigiados designers brasileiros, premiado por suas criações globais que valorizam as raízes e matérias-primas do Brasil.