TRÊS SERTÕES

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TRÊS SERTÕES


Esta publicação integra o Projeto Tríptico Sertanejo, aprovado no EDITAL PROAC Nº 04/2017 - PRODUÇÃO DE ESPETÁCULO INÉDITO E TEMPORADA DE DANÇA pela Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo


TRÊS SERTÕES


Vejo a chuva tão avara e, logo, flores raras rompem o ventre dos galhos do Sertão. Então, escondida no pó e no sol, havia vida! Milhares de vidas como são milhares as estrelas tecidas no negro veludo do céu. E tudo é festa como a alegria que resta nos olhos após a passagem de um circo. Sertão é rico: beatos iluminados, peregrinos ardendo de fé, algum fel de tristeza e um véu de tanta beleza bordado pela alegria dos meninos e a dureza dos velhos. Tudo isso eu vejo. Vejo também o mal, mas por não ser meu desejo, quero desver. O humano ser é o sal do sertão, ali a vida é. O desespero, a morte é só o não ser, um outro tempero.


O PODER CONTRA A FÉ O poder tem cem, duzentos, mil olhos perscrutadores E botas que se abatem sobre a fragilidade da inocência E pisam a esperança semeada para o futuro. Tem o aço do facão para rasgar o tempo presente Lampeja no espaço o rápido movimento E é vento cantante quando rompe o laço Que prende o corpo à vida E rasga a carne e corta a unidade sagrada Que nos unia. Eu via a cabeça ave que tomba E o sangue que perde seu movimento liquido no pó. Então, ser humano é corpo E sangue vivo é só uma mancha que suja o chão. Essa é a obra do poder, mas não é obra completa, definitiva. Sobra ainda Um resto de revolta e fé. A esperança cobra a volta. Eu vi cem, duzentos, mil olhos perscrutadores Que enxergavam tudo, menos o ventre fértil e repleto de fé Que paria crianças para o amanhã Homens voadores e ternos E mulheres meigas e destemidas. O poder tem olhos, armas e botas. Mas é só.


MAIS SOBRE A PESQUISA Mundo vasto e multifacetado, o sertão é uma paisagem extremamente complexa. “Sertão” é termo usado já por Pero Vaz de Caminha, denotando o extenso e desconhecido interior da colônia, longe do mar. Com o tempo, a nomenclatura demarcaria um espaço simbólico, mais que um lugar geográfico. “Povoado” era a região “ordenada pela Igreja Católica”, “sertão” era o local da falta e da ausência de ordem . Este território, desordenado e sobre o qual pouco se sabia, em breve seria explorado em razão de suas riquezas, sendo Piratininga, no atual Estado de São Paulo, um caso particularmente significativo : expedições capitaneadas por bandeirantes romperiam sertões adentro durante todo o período colonial, em busca de minérios, madeiras e escravos indígenas para as plantações da lavoura açucareira no litoral. Se a imagem dos bandeirantes, devidamente recomposta à moda romântica dos fins do século XIX, seria usada como um símbolo do espírito aventureiro e destemido dos exploradores paulistas, mais ao norte a paisagem sertaneja ficaria permanentemente marcada no imaginário do país pela guerra ou Campanha de Canudos, a investida do exército contra o populoso arraial baiano liderado por Antônio Conselheiro, entre 1896 e 1897, marcando as tensões do início da República. Meio século depois, já no governo de Getúlio Vargas, o sertão nordestino seria palco para o episódio protagonizado por bandos de cangaceiros contra coronéis que dominavam a região sob a lei das armas. Castigado pela seca, maltratado pela fome e massacrado pela violência, o sertanejo veria com fascínio aqueles que se armavam e se embrenhavam pelo sertão, abraçados à vida nômade e ao banditismo. O bando de Lampião, na década de 1930, é sem dúvida o mais emblemático caso, tendo sobrevivido no imaginário popular e exercido grande fascínio nas décadas seguintes.



A CIVILIZAÇÃO E SEUS AVESSOS: OSSATURAS DO SERTÃO



Mergulhar nos sertões significou ampliar a perspectiva que nós temos. Ampliar a perspectiva do sertão Traçar um arco geográfico mais amplo Quando pensamos no sertão, nosso olhar se direciona pra uma imagem bem característica, mas que não diz respeito à complexidade que esta imagem representa. Por isso traçamos um arco geográfico mais amplo, que percorre (os pampas ...), refletindo sobre três dobras dos sertões. Renata Santos Rente é doutoranda (...) Imaginário Representação estética Disposição para olhar esse sertão

Palavras chave: imagem / contraste / perspectiva / distância / atitude, gesto Fazer uma viagem, um lugar, um tempo, as distâncias, que paisagens estão no caminho. O sertão está em toda parte

Por que este imaginário do sertão é tão cristalizado e o que ele traz de indicação ideológica, e atravessa a história do Brasil. Por que a imagem do sertão remete à caatinga, à terra rachada? Quando pensamos sertão, não pensamos nas cores exuberantes das flores, dos rios, das quedas d’água? O termo sertão remete a muitas referências de localidade. O termo que remete ao período da colonização se refere à perspectiva de quem está vindo do litoral olhando para a esse interior desconhecido. Então praticamente todo o território brasileiro que se estendia para o interior era sertão. E essa representação do imaginário – bárbaro, selvagem, desconhecido – se alinhava à perspectiva do colonizador.


A força da associação do sertão com o nordeste pode ser diretamente relacionada à imagem do retirante fugindo da seca, e assim também quando pensamos na imagem do nordestino, ela é construída a partir dessa imagem do retirante, estereotipada. Há uma atitude em relação a esse olhar que é uma atitude de tipificar. Por que esse imaginário é tipificado e generalizado? Essa atitude se associa a uma estratégia perversa, construída a partir da geração de um discurso, propagado e consumido pelo sul e proncipalmente pelo sudeste de uma pretensa supremacia: o sul rico e o nordeste pobre; o sul civilizado e o nordeste selvagem; o progresso contra a barbárie.

Em Os Sertões, Euclides da Cunha sublinha essa atitude, quando descreve as diferenças entre o vaqueiro e o gaúcho.

Uma questão para pensar é quais vínculos estabelecemos nessa aproximação com o sertão: como nos posicionamos ao olhar? Conseguimos problematizar esse ponto de vista, considerando que a forma como tomamos contato é essa representação histórica em termos gerais A nossa aproximação com o sertão se enriquece muito se olhamos para nossa própria experiência, percebendo os vínculos que estabelecemos, o que atravessamos, como nossa experiência dialoga com isso. Apesar de o cenário de Grande sertão veredas estar localizado no norte de Minas e parte da Bahia, a ideia é esse sertão mais imagético e poético que não está localizado somente numa localidade específica. Mais interessante que fazer um levantamento daquilo que seria característico do sertão, em termos de costume, de cultura, de modo de vida, é pensar O que está em jogo quando falamos em sertão? Em suas


representações? Não é só um modo de vida, não é so uma cultura. Tem muitos valores implícitos e estereótipos que tem uma repercussão na vida das pessoas que vivem nesses lugares, uma repercussão no modo como esses lugares são apresentados pra sociedade, de como se desenvolvem políticas e de planejamento estatal, territorial.

Eu me aproximei do sertão a partir de uma discussão sobre a violência. Essa discussão sobre a violência é muito importante. O romance Grande Sertão Veredas passa por muitas coisas, mas basicamente teremos as viagens que Riobaldo fez pelo sertão ao lado de um monte de jagunços. Então, os jagunços são personagens muito fortes, e nos vários trabalhos que temos sobre o romance a discussão sobre a violência é muito importante. Qual é o significado da violência nessa história do sertão , nessa representação do sertão. Quando lembramos que esse termo remete à colonização, então é importante pensar que para que a conquista do território fosse efetiva, ela envolveu conflitos, guerras contra indígenas – por mais que a ideia de sertão traga ordinariamente uma imagem desértica, vazio, desconhecido – havia populações habitantes da terra. Então essa história do sertão começa com guerra. Com matança de povos indígenas, sua dizimação e sua expulsão mais para o interior do território: eis o primeiro sentido forte de violência. E, ainda que esses conflitos sejam mencionados na história canônica do Brasil, é importante pensar como essa violência praticada contra os índios aparece como um mal necessário. As tintas com que esses episódios são pintados na história são pálidas. Depois, o índio virará símbolo de identridade nacional: passada a colonização, o Brasil independente, o que acontecerá: o Brsail é o índio, o Brasil é o sertanejo... Pensar que esta violência está tanto na história efetiva quanto


no apagamento da história. Afinal, quando contarmos a história do Brasil, como iremos criar um símbolo nacional, positivo, para uma nação em construção, falando dessa violência e desse conflito. Então, é necessária uma sublimação desse conflito, para criar um outro imagináruio, pois aquele imaginário da guerra não é “bonito” para constar na história do país, não é positivo.

Foi a partir dessa ideia de apagamento que sugeri o título de nosso encontro: a civilização e seus avessos. Tudo aquilo que não aparece na história da civilização – obviamente está na história da civilização – mas na imagem positiva da civilização como desenvolvimento, como cultura, como benesses, sempre tem os avessos, e me parece que, na história do Brasil, o sertão, como um corpo que está dentro do corpo do país, parece que é o avesso desta imagem de progresso da civilização, que é para onde essa imagem da violência e da barbárie é recalcada, e jogada pra fora daquilo que se quer mostrar. Isso é talvez um mecanismo da nossa própria constituição subjetiva: aquilo que não queremos, geralmente projetamos para fora, para o outro: se tem qlgum problema, ou algo indesejadop, aquilo não está em nossa autoimagem, está fora de nós. Seguindo nessa perspectiva de contraste, acho interessante pensar como a ideia de sertão surguiu como oposião a litoral e à civilização, e da violência, como um núcleo que atravessa diversos momentois na hisrorua do Brasil. Cultura – folclore

Cultura – civilizada



CAMINHOS TROPEIROS


Caminhos tropeiros Jaelson Bitran Trindade é historiador, doutor em História Social e da Cultura, e trabalha desde 1970 na Superintendência do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional / Ministério da Cultura, sediada em São Paulo. Seus estudos e pesquisas têm como foco as artes, a arquitetura e as cidades. É autor do livro TROPEIROS (Editoração, S. Paulo, 1992) – estudo de uma atividade econômica inter-regional – a movimentação de manadas de mulas do Sul do Brasil em direção ao Sudeste para comércio; iniciado nos primeiros anos do século XVIII, tal atividade se estendeu por mais de 200 anos, estabelecendo o extenso eixo terrestre que interligou e impulsionou a ocupação interior dos atuais Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Uma intensa rede de caminhos se consolidou, a partir do século XVII, entre as fronteiras extremas do sul do Brasil e a região das minas de ouro descobertas em Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. Os animais de tração e carga – bois, cavalos e, sobretudo, mulas – eram indispensáveis na economia que se consolidava nos sertões do Brasil. Estes animais eram criados nos imensos campos do Paraná e do Rio Grande do Sul. Hoje nos parecem modestas essas distâncias geográficas, mas aqueles caminhos seriam constantemente transpassados por inúmeras tropas de bois, cavalos e mulas durante muito tempo, até quase meados do século XX, conduzidas por peões que ficaram conhecidos como TROPEIROS. O nome, de herança castelhana TROPERO, vem de tropa, e nomeia aquele que conduz as tropas de bovinos, eqüinos e muares. O tropeirismo foi uma atividade determinante que promoveu o povoamento de toda a imensidão dos campos existentes desde os limites atuais com o Uruguai e a Argentina, no extremo sul, até o Paraná, com desdobramentos para os campos situados no sul do Estado de São Paulo.


Uma grande área de campos, propícia à criação de gado, se estende desde a borda do estuário do Prata, na margem oposta à cidade de Buenos Aires, até a região sul do Estado de São Paulo, onde diminui progressivamente até terminar na cidade de Sorocaba. A maior parte desses campos aparece no Uruguai e no Rio Grande do Sul: aí se localiza a área menos acidentada e mais favorável a pecuária: a Campanha Gaúcha, ou Campos do Sul, a vasta planície denominada pampa. Pampa1 é um nome indígena, provavelmente quéchua, e significa região plana.

Esse território tornou-se um gigantesco celeiro de animais bovinos, cavalares e muares, celeiro fundamental para o funcionamento das regiões mineradoras – Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso, e das regiões açucareiras e cafeicultoras do sudeste do país.

A partir de 1732, quando os peões passaram a levar regularmente tropas de animais dos longínquos campos do sul até Sorocaba, o designativo tropeiro, usado com freqüência nas vacarias do Uruguai, se firmou para nomear aqueles homens habilidosos em escolher animais, negociar preços, compor um grupo capaz de lidar com as boiadas, cavalhadas e muladas e, além disso, enfrentar as difíceis e demoradas marchas pelos caminhos do sul, partindo dos Campos de Viamão em direção ao norte. A cidade de Sorocaba sediava a mais importante feira tropeira no século XIX. Ali os bois, cavalos e muares, principalmente, eram comercializados. Sorocaba se configurou como um grande centro de comercialização, e o Rio Grande do Sul, conhecido como a terra do muar, era renomado como um grande centro fonecedor. 1

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Avé-Lallemant2, percorrendo os campos do sul até o Paraná, em 1856-57, caracterizou seus habitantes como uma “CIVILIZAÇÃO DE CENTAUROS”, dando bem a ideia de uma relação entre o homem, e o espaço vivida sobre ginete, cavalo ou mula. Anos antes, o viajante Arsénne Isabelle, em 1835, anota em seu diário que os sul rio-grandenses e os paulistas, incluindo-se os habitantes da comarca de Curitiba, eram os melhores cavaleiros de todo o Império. Essa denominação, centauro, é freqüente entre todos os mestres de chula gaúcha com quem treinamos. Dizem que os peões de tropa e os peões galponeados no Rio Grande do Sul, por estarem todo o tempo montados em seus cavalos, são chamados de centauros. O imaginário ao redor do centauro é instigante.

Em relação aos centauros, Estes seres híbridos fabulosos, metade homem metade cavalo, aparecem consagrados em algumas mitologias da humanidade. Talvez a mais conhecida seja a mitologia grega, em que centauros habitavam as regiões da Arcádia (Peloponeso Central) e Tessália (sul da Macedônia). Não há consenso sobre a formação do mito, mas é provável que tenha sido inspirado em tribos selvagens das regiões mais agrestes da Grécia ou mesmo em cavalarias nômades da Ásia Central (hunos, turcos, citas, cimérios ou sarmátios). Seguramente esta mitologia se relaciona ao fascínio que os cavalos, viris e velozes, exercem sobre o ser humano desde a antigüidade. O cavalo ocupa um lugar proeminente inclusive nos ritos extáticos relacionadas às práticas xamânicas. Nos ritos dionisíacos, na Grécia, nos Vodus haitiano e africano, na 2 Ver Robert Avé-Lallemant, “Viagem pelo Sul do Brasil no ano de 1858”. Robert

Christian Avé-Lallemant, médico alemão, estabeleceu-se no Rio de Janeiro em 1836. Em Lübeck, cidade alemã onde nascera, teve contato com Alexander von Humboldt, que o convidou para participar da expedição Novara para o interior do Brasil. Avé-Lallemant abandonou a expedião no Rio de Janeiro e iniciou então, uma viagem pelo sul do Brasil, apoiada pessoalmente por D. Pedro II.


Umbanda brasileira, entre outros cultos, a inversão dos papéis entre cavalo e cavaleiro é observada de maneira muito intensa: o indivíduo é, em êxtase, cavalgado pelos deuses: chama-se “cavalo” ao indivíduo em transe, habitado por um espírito ancestral.

É este imaginário ao redor das mitologias dos centauros que nos inspiraram para transpor, para o espetáculo cênico, a dança praticada pelos tropeiros desde o século XVII. Os tropeiros passavam longo tempo sobre seus cavalos, principalmente durante as viagens tropeando os animais. Segundo os mestres de dança, quando apeavam, nos intervalos de descanso em ranchos e estâncias ao longo das estradas e dos rios, os peões praticavam algumas danças baseadas em sapateados. A catira e a chula gaúcha são danças composta por sapateados. A catira inclui o bater de palmas nos entremeios dos sapateios, que compõem com o todo da composição coreográfica. Já a chula gaúcha é marcada por sapateados de desafio executados ao longo de uma lança disposta no chão. A ação de sapatear possibilitava um modo de relaxar os músculos das pernas depois de viagens de muitos quilômetros. O sapateado percussivo a partir do bater das botas no chão e do som das esporas é acompanhado por uma sanfona (gaita).


O espetáculo TRÍPTICO SERTANEJO mergulha no vasto e multifacetado mundo dos sertões brasileiros, com a intenção de decifrar suas paisagens, sua gente e suas lendas para compor uma perspectiva de seu ideário e de suas mitologias. Tríptico Sertanejo acena para os cenários dos sertões bravios, com seus personagens inesperados que tensionam relações míticas, lendárias e estéticas. Cabeças cortadas, bois encantados, bandos festeiros, profetas, guerreiros, centauros: poderosos brasileiros tornados eternos por violeiros, sanfoneiros, poetas e por muitos cordelistas. Mundo vasto e multifacetado, o sertão é paisagem extremamente complexa. SERTÃO é termo usado já por Pero Vaz de Caminha, denotando o extenso e desconhecido interior da colônia, longe do mar. Com o tempo, a nomenclatura demarcaria um espaço simbólico, mais que um lugar geográfico. Povoado era a região ‘ordenada pela Igreja Católica’, sertão era o local da falta e da ausência de ordem. Inspirado naquilo que nos disse Guimarães Rosa: “O sertão não tem janelas nem portas” (...) O sertão está em toda parte”, o amplo arco geográfico que iremos enfrentar, que vai dos pampas gaúchos até o o semi-árido nordestino,


determina de maneira muito complexa a “terra ignota” a que chamamos sertão. O espetáculo organiza-se a partir de um tríptico, uma obra em três partes interconectadas. Um boi encantado conduz os espectadores pelas lendas femininas do cangaço, pelos espaços vazios do pós-guerra de Canudos e pelos virtuosos sapateados dos tropeiros, o baile dos centauros.


DRAMATURGIAS

SERTANEJAS


S



ESTUDO PARA EPIFANIA Trabalho solo de dança que questiona a sobrevivência, encontrando uma afirmação que faça o artista visível a uma sociedade que o inventa vazio de seus valores. Mártir de si mesmo, guerreiro de seus valores, o homem, particularmente o nordestino, encontra força para sobreviver entre o caos, a seca, a guerra, a fome, a fé. O corpo é sertão: Ser tão forte, Ser tão corajoso. Sertão está dentro de cada um de nós.


CABEÇAS DEGOLADAS




Arranchada nas estradas Tenho muito pra contar Tive corpo, tive lar Cheirando a bem me quer Tive um jeito bem formoso, Me chamavam de mulher A vida me pesou bruta Mas aqui não vou chorar Me restou da dura luta Dois olhos de enxergar Dentro, o chão de minha alma Fora, veredas de andar Restou fome de caminhos Pra além da serra e mar Restou faro, ouvido e boca Pra sentir, saber, gostar Mas pra que serve uma cabeça Sem dois pés pra caminhar Tenho fome das estradas de poeira, barro e chão Escuto cantiga do vento Escuto o zumbido do cão Só finda vida da gente se Deus leva pela mão


Já fui bonita Maria Do bando de lampião Fui Joana, Marielle Severina de João Fui beata, peregrina, Artista de profissão Hoje sou palavra solta Mas calar não calo não Som da Rabeca Mônica:: Eita, que o vento sopra diferente hoje. Canto Som da Rabeca Mônica:: parece até que o vento responde... parece até música de gente (cheira) que cheiro é esse? É cheiro de sussuarana. Não, é preá, onça, porco do mato, anta, lebre, cachorro galinha, cascavel, boi, estrume... mas estrume não anda! É cheiro de vento, de mato, de lágrima, de chuva, suor...que passarinho é esse que canta e não é cárcara, nem siriema, bem te vi, urubu! É Cheiro de sangue, barulho de coração grande e largo, tem cheiro de gente, só pode ser corpo de gente, só é mesmo gente que engana os ouvido com som assim. CORPO APARECE Mônica: Eu tinha um corpo. Corpo de mulher, ainda me lembro: Mas, então, foi “sus”! o facão, a mão e o braço, reluz o brilho do aço que desce, tora o osso e resta só o pescoço no alto do corpo. A cabeça no chão, no pó.


Me puseram aqui. O corpo está por aí, corpo de mulher andando no mundo sem olhos pra ver, sem voz pra gritar contra o desrespeito, o desejo indecente, a mão bruta, como se fosse puta de todos os homens. Eles judiam, dilaceram, machucam, descuidam e danam. Som da Rabeca Mônica: Corpo! Se achegue, me tira daqui, me pegue, me leve pra outras paragens que são meu sonho. Som da Rabeca Mônica: Tu vai querer ficar descabeçado pra sempre? Som da Rabeca Mônica: Como é que você pode viver assim? Sem uma cabeça a lhe dar um rumo? Som da Rabeca Mônica: Você é corpo formoso, de opinião... Você... é artista, é? Som da Rabeca Mônica: Ta bem. Você é um corpo solto. Tu quer viver solto. Tu é um corpo tocador, tu é de festa? Som da Rabeca Mônica: Corpo, seja quem tu seja, me empreste seus passos que eu alivio tua fome. Te dou direção e tu me dá rumo. Me ajuda a encontrar meu corpo. B.O. Mônica: por aqui... vem... segue minha voz. Aí não! (Corpo cai.) Corpooooo!!!!! Luz: CABEÇA PERTO DO CORAÇÃO E não é que tá vivo?! O coração bate como tambor de festa! Ô saudade dessa batida viva! CABEÇA PERTO DO ESTOMAGO


Aqui também ressoa! Estômago é um oco, um eco da fome, de muitas fomes. De alimento, poesia, justiça, respeito, amor. Isso é um buraco fundo, vazio de tantas ânsias, de tantos sonhos. Vazio de tantas coisas que nos tiraram. Mas lá dentro, uma voz que não cala, ainda ecoa. CABEÇA PERTO DO QUADRIL Nesses teus intestinos tão tudo tão socado... Tudo o que você engoliu, corpo: ódio, rancor, desejo não satisfeito, amor, imagens de guerra, desodorante, celebridade, dor, raiva, desespero, propaganda de cerveja e medo. Tudo o que você engoliu, misturado, socado e não cagou... Pera aí que vou lhe ajudar a se aliviar... Me leve mais pertinho. B.O. Luz: CABEÇA NA BUNDA Isso é lugar pra botar uma cabeça de respeito como a minha?!! Palavrões, grito, $&^#&%!%%!&^%#!^&$%#%!%^ #(%^!(%$^&*@%%$^%!%#& É gooooooooooooooolllllpe!!!! Ta se sentindo melhor? B.O. Luz: CABEÇA NA VAGINA Viche! Aqui é bom, lugar do mistério, do sagrado, onde morre a semente e nasce o ser vivo. Lugar do encontro do prazer do corpo e do sentido da alma. Mas quem é que respeita isso? Virou terra de ninguém, nem da dona é mais! Querem mandar e desmandar, botar e tirar o que quer que seja daqui! Ah, se boceta tivesse voz! Ah, se todas pudessem sair à praça e protestar e gritar! Milhões de bucetas na avenida Paulista, em frente ao Congresso Nacional gritando a uma só voz: Somos livres! A buceta é


livre! Meu ventre é livre! Ei corpo, tinha tanta coisa aí... Acho que eu preciso de aconchego, um pouco de colo.... B.O. Luz: CABEÇA NO COLO Som da Rabeca Corpo toca uma musica. MONICA: Estou pronta. A gente pode ir. B.O. Luz: CORPO INDO EMBORA COM CABEÇA (CANTO) Sou palavra feita ao vento Que se espalha pelo ar Mas sem ter um corpo perto Longe não posso chegar Me ajude oh seu corpo Pro meu corpo eu encontrar Eu so quero um bom futuro E ser livre pra buscar.






Cena – Cabeça Pedra Imagem de transição: cabeça de boi que passa como sonho. Cabeça F vê adormece, acorda: Imagem texto Marat-Sade (a cabeça ainda sente, os olhos ainda veem) Cabeça encima da pedra. Canta a melodia final. M- Está perdida? Calma, Calma, eu vou te ajudar. (Começa a tocar a cabeça). Fala o que você quer. Não estou entendendo. Ah já sei aquela maldita coceira (coca). F- (Grita) Nao!

M- Está assustada, eu já fui cabeça solta, sei bem como é. Eu vou te ajudar a achar o teu corpo. (Pega) F- Não quero!

M- Não quer encontrar seu corpo? Voltar a ser gente?

F- Gente é coisa custosa de ser. Quando cheguei nesse sertão de mundo, tudo já tava regrado, cada qual e cada coisa em seu lugar. Revoltei! Regra minha eu faço, lugar meu eu digo onde é, gritei! Levei um calaboca bem no meio das ventas! Mas, mesmo assim, afrontei! E corpo meu padeceu sova, gemeu debaixo de pau e foi ganhando medo de bala, de faca. Sumiu-se por esse mundo. M- E você ficou só... F - Foi até bom, fiquei aqui a sonhar. M- Sonhar com que? F- Com outro mundo onde a gente pode ser inteiro. Que ca-


beças fizeram o mundo desse jeito? Onde não se pode ser diferente? Onde poucas bocas mandam e muitos corpos dizem sim? Corpo meu fez bem em fugir! M- Como é que pode um corpo estar bem sem cabeça? Sem saber onde esta? Perdido? Sem rumo. F- Pelo menos ele marcha livre por este sertão. Dança a musica do vento, não tem ouvidos pra cumprir ordem, nem bom senso pra se conformar com o mundo. M- Olha, ideia interessante, mas não vai dar certo. Vou te levar pra passear. M- Olha.

F- Tanta coisa tem o mundo! Tanto corpo com cabeça! Tanta coisa pra inventar, tantas mãos pra fazer, tanto mundo bom pra imaginar e construir e no entanto... Só correm e se cansam no dia de hoje pela promessa de estar vivo amanhã! Prefiro ser cabeça sem corpo. Eu só quero sossego, não ter que correr, não ter que ter... (Desce para o Braço)

F- Quero seguir a marcha desse mundo, não. Todo mundo caminhando e rezando com medo de topar com precipício no próximo passo! Eu quero parar, pensar pra saber onde vou! Pés pra seguir essa marcha pra quê? Olhos pra não ver nenhum horizonte, pra quê? Pra que boca pra dizer só “sim senhor”? Imagem refletida F- Quero boca pra cantar e vontade pra ficar se eu quiser. Eu


imagino um corpo pedra, rio, riacho, vereda, cacto, pó. Quero meu canto. Por favor, me torne a voltar, aquele era meu lugar. Eu era feliz em ser apenas uma cabeça sobre uma pedra... pensando e sonhando com mundos por se fazer. Um dia desses meu corpo volta, marcado de tanta experiência, e se soprar coragem e sonho a gente se junta e sai pra aventurar um novo mundo. Por enquanto eu fico. HAMELET

M- Esta certo. Quem sou eu pra dizer o que tem que ser. Mas antes eu vim porque eu escutei o teu chamado, como era? F-

Eu não quero ser gente De gente já me cansei Corpo de gente sofre Por isso o meu lá deixei O carro que andava Parou pra trocar pneu A existência é um carro na oficina de deus



O BAILE DOS


CENTAUROS



Ouçam, os centauros vem! Seus cascos rugem, trovão que são, voam, vento que é sua substância. Trazem a ânsia, a dança, a força da terra! Ouçam os sons de guerra, eles vem, chegam como quem não teme, fortes como a ideia justa, eles vem! Cabelos, pelos ao vento, cascos escarvando o chão. São mil, mais de mil. Atrás deles as crianças riem, as mulheres amparam os velhos pais que gritam sua rouca alegria. A terra treme, tremem os olhos perscrutadores. Não há o que resista aos centauros e ao povo que ruge atrás deles. Crianças centauros, mulheres centauros, velhos centauros, eles vem! LUIS ALBERTO DE ABREU



Centauros são como ficaram conhecidos os peões dos sertões brasileiros, por serem estes grandes cavaleiros inseparáveis de seus cavalos. “O Baile dos Centauros” traz para a cena uma releitura das danças praticadas por tropeiros e bandeirantes, que desde o século XVI avançaram para os sertões do Brasil. Um trio de bailarinos mergulha nas dinâmicas rítmicas e espaciais destas danças e propõe uma recomposição de seus passos, com destaque para a CATIRA, dança observada nos sertões de São Paulo, Goiás e Mato Grosso (Sorocaba era o grande centro tropeiro do século XVIII), e a CHULA GAÚCHA, muito recorrente nos campos dos pampas gaúchos (registrada já no século XVI em Pelotas, Porto Alegre, Rio Grande e nos Campos de Viamão e de Vacaria).









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