La Sereníssima

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LA SERENÍSSIMA Ivan Lacerda



LA SERENÍSSIMA Baú das Letras

1º Edição

Ivan Lacerda

São Paulo, 2010


Projeto Gráfico e Capa: Ivan Lacerda Fotos: Ivan Lacerda Foto Capa: Máscara de Ama90 Revisão: Camila Camargo Diagramação eletrônica e direção de arte: Ivan Lacerda Cavalcanti 1º Edição Dezembro/2010

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Cavalcanti, Ivan Lacerda Registro na Biblioteca Nacional com o ISBN nº 978-85-902370-2-0 Título: LA SERENÍSSIMA CGC editora: 08736442801902 Assunto: 869-3B Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida – por qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. – nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem a expressa autorização da editora. Os infratores serão punidos pela Lei nº 9.610/98. NOTA: Esta é uma obra de ficção. Os vários personagens verídicos que permeiam a trama embora inseridos no contexto histórico são tratados de forma ficcional numa mescla de fantasia e realidade. Texto fixado conforme as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº. 54, de 1995). Informações ou solicitação de exemplares poderão ser feitos através do site:

www.ivanlacerda.com.br Impresso no Brasil / Printed in Brazil


Dedico esse livro a todos os portadores de Transtorno Obsessivo Compulsivo.

Como diria um grande amigo meu: “Fácil, fácil não é não!”



“Le silence éternel de ces espaces infinis m’effraie” Blaise Pascal



Caro leitor, Estive em “La Sereníssima”, como também é conhecida Veneza, em setembro de 2007. Agenda apertada, devido a compromissos empresariais na Itália. Da mesma maneira que muitos turistas fazem, eu visitei suas histórias em apenas um dia. Peguei o trem na Stazione Centrale F. S. em Milão e desci na Estação Santa Lucia. Engraçado, mas ao chegar a esse lugar tão mágico, talvez esperasse ver os famosos personagens que circularam em séculos passados pelas vielas e construções antigas. Confesso que fiquei um pouco decepcionado ao ver os turistas ávidos por comprar produtos falsificados nas mãos dos “camelôs exilados africanos” e caminhando como se estivessem na Rua 25 de Março em São Paulo. Tentei não me contaminar com essa primeira impressão e de imediato passei a observar essas mesmas pessoas e o que as trouxeram até esse lugar. Aliás, pensei o que me motivou a estar em Veneza. Lembrei de inúmeros filmes que assisti, ou livros tendo essa cidade como cenário. Decidi viver o meu transe Veneziano e se tinha apenas algumas horas para percorrer as suas ruas tão inusitadas, deveria aproveitar da melhor maneira possível. Como uma antena parabólica, pronto pra captar qualquer sinal, queria aproveitar cada segundo e procurar gravar na memória cada rosto, cada cena e as possíveis histórias de tragédia, comédia ou amor que estavam sendo contadas naquele exato dia. Com minha máquina fotográfica captava essas cenas e paisagens da cidade. Depois de alguns anos, dando de cara com tantas coincidências que forçosamente me tele-transportavam para Veneza, resolvi contar essa história de amor que eu imaginei ver nesse único dia ensolarado que estive em “La Sereníssima”. Espero que gostem, um grande abraço. Ivan Lacerda Abril/10



La Sereníssima

CAPÍTULO 1

Santa Lúcia Por mim, melhor seria se o trem que peguei em Milão tivesse descarrilado. Quem sabe algum terrorista sentado ao meu lado, com os dedos ávidos e prontos pra disparar uma bomba amarrada a sua cintura teria sido a melhor solução. Se soubesse no que essa viagem dos meus sonhos a Veneza me reservaria, teria quebrado o enorme vidro ao meu lado e me atirado de cabeça sobre a Ponte Della Libertá. Seria uma chegada triunfal a “La Sereníssima”. Talvez até fosse notícia no Jornal Nacional com a voz suave de Fátima Bernardes em close, depois de uma troca de câmera: “Morre na Itália o ator Miro Cavallieri”. Fico aqui pensando tantas possibilidades para evitar o fatídico encontro. Uma “nona” italiana, daquelas que não consegue segurar os flatos fragorosos e com sua habitual dificuldade de locomoção, teria fatalmente consumido preciosos minutos no embarque em algumas das inúmeras estações no percurso. Ou o vacilo 12


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do condutor, pegando um destino diferente. Quem sabe tivesse me levado pra Monza. Era final de semana de Grande Prêmio de Fórmula 1. Penso que teria sido a melhor escolha ter ido ver a vitória de Fernando Alonso na McLaren, pelo menos estaria vivo. Mas nada disso aconteceu. Para minha surpresa e decepção, desci na estação de Santa Lucia exatamente no horário programado e impresso no bilhete. Coisa de país de primeiro mundo. Aliás, a estação tinha que ter esse nome. Poderia ser Santa Luzia, Luiza, Lurdes, Ludmila, quantos anos lutando para esquecer essa mulher e mau piso na cidade dos meus devaneios e já sou forçado a pensar naquela maldita. Admito que fiquei muito impressionado com a primeira imagem de Veneza. O trem chegando ao destino final, como se fosse um ski, abrindo caminho no meio da água esverdeada. Estava ansioso para ver a primeira gôndola de minha vida ou uma autêntica máscara veneziana. Nada contra aquelas que costumava usar nas minhas apresentações teatrais, que por falta de verba e de patrocínio, tinham sido todas confeccionadas nos arredores do Saara por mão de obra escrava vindas da Bolívia. Mas como a vida imita a arte, não podia me gabar, eu também nos palcos do Rio de Janeiro e das principais cidades do país, era um engodo, não o Miro, mas um mero ator tupiniquim fingindo ser um aventureiro como Giácomo Casanova, um músico como Vivaldi ou na pele de um clássico de Shakespeare. Ainda na estação que fingi esquecer o nome, decidi garantir o bilhete de volta a Milão. Tinha voo marcado para Calcutah para aproveitar a última semana de repouso antes de retornar ao Brasil, concluir o meu tratamento e finalmente encarar a cirurgia tantas vezes postergada. Pacientemente esperei na fila. Penso que antes eu tivesse passado direto e ido sem escalas ao Hotel Gardena. Optei passar o final de semana em Veneza nesse hotel por me lembrar das flores da gardênia. A mesma cantada por Waldick Soriano. Quantas 13



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e quantas vezes eu sonhei sussurrando no ouvido de Lucia após fazermos amor. “Perfume de gardênia, tem em tua boca. Eu vivo embriagado na luz do teu olhar...”. Mas sempre foi apenas pura imaginação de um cérebro aneurismático. Nunca sequer pude de fato provar se a boca de Lucia tinha mesmo o perfume de gardênia, o cheiro dos canais de Veneza ou sei lá que gosto. Aqueles lábios delicadamente finos deviam ser vorazes. Lembro de quantas vezes, ainda solteiro, sozinho em meu apartamento, após uma dose de vinho, dancei colado a um cabo de vassoura imaginando ser a cintura fina de Lucia. No auge da piração acariciava a piaçava pensando serem seus cabelos pretos e lisos daquela amaldiçoada. Mergulhando na minha paranóia, tentando uma afinação que nunca tive, cantava Joana francesa tentando imitar a voz inconfundível do meu ídolo Chico: “... geme de prazer e de pavor, já é madrugada, acorda, acorda, acorda...” Se pudesse voltar o tempo, teria invertido a ordem da viagem. Sairia do Rio de Janeiro direto para Calcutah, depois para Andaluzia e por último, finalizando em grande estilo as minhas tão sonhadas férias em Veneza. Se não fosse a minha mania de que tudo tem que ser na ordem correta não estaria nesse exato instante com apenas 30 segundos de vida, estirado e me debatendo em plena Praça da Estação de Santa Lucia com o coração implorando para seguir batendo, cercado de uma platéia que não comprou ingresso. Será que meu último ato teria que ser com entrada franca? A culpa é toda do meu pai. O que deu na cabeça dele, de homenageá-lo e me batizar de Altamiro Vasconcellos Cavallieri. Tanta opção de nome tinha que começar logo com a letra A? Desde criança vivi sobre o estigma do AVC, meu avô morreu de AVC, meu pai idem. E eu, a contra gosto, estava indo pelo mesmo caminho. Minha chance de sobreviver dependia do sucesso da cirurgia. Por via das dúvidas preferi aproveitar os dias que 15


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antecederia a operação viajando pelas cidades dos meus sonhos. Claro, sobre ordens peremptórias de Bruno, meu amigo e médico particular, aconselhando a me cuidar e saborear (o que pra mim seriam os últimos dias de minha vida) com muita moderação. Seus olhos com a fronte tesa e o indicador apontado para o meu nariz recomendando disciplina e cuidado com a saúde, parecia até a frase obrigatória de final de comercial de bebida. Após a morte de minha esposa Valéria, cai em uma terrível depressão. Faltava nos ensaios. Vivia inventando desculpas para não aparecer nas entrevistas, nos eventos de divulgação dos espetáculos, recusando os convites dos amigos para assistir as suas estreias ou ainda, jantar fora. Aposentei de vez a camisa do meu Botafogo. Nunca mais fui ao Maracanã ver os espetaculares jogos da estrela solitária. Acho que até o meu clube do coração queria me sugerir algo. Isolei-me do mundo como um ermitão. Não atendia as ligações. Nem as mensagens na secretária eu verificava. Aliás, desliguei da tomada, pois a voz da gravação ainda era de Val, nunca fui afeito a tecnologia, só ela sabia mexer naquele treco. Sentia-me culpado por não ter lhe dado a devida atenção, justamente quando mais precisou de mim. Sofri anos a fio a sua ausência. Só me reergui quando decidi ensinar as crianças e depois, envolto de coragem, voltar aos palcos. Só que vivia sempre atormentado entre o fantasma do Pai do Príncipe Dinamarquês Hamlet, da saudade de Valéria e da permanente assombração de Lucia. No auge da minha aflição, cheguei a tomar quase uma garrafa do Red Label envelhecido mais de uma década. Bebia de talagada implorando para que a bomba relógio do meu cérebro por fim fosse detonada. Não contente, visitei a adega tirei a rolha do Melchior que Bruno trouxe diretamente da vinícola Concha Y Toro e acendi um dos baseados que guardava para presentear o elenco em comemoração a estreia de Romeu e Julieta no Rio de Janeiro. O resultado foi uma súbita hipertensão. 16


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Só me lembro acordando no hospital e vendo a cara de poucos amigos de Bruno, dizendo que se desejava morrer existem métodos mais baratos e muito mais eficazes. Por exemplo, comprando um bilhete unitário na Central do Brasil e me atirando na frente de uma composição lotada. Maldita hora que avistei Lucia na Estação Santa Lucia em Veneza com os braços enroscados no de um homem magro vestindo um blazer de lã marrom claro sobre uma camisa pólo também marrom, só que num tom mais escuro, calça bege, sapato de camurça cinza e um boné também de camurça da mesma cor. Tinha uma barba branca rala e bengala numa das mãos. Tantos lugares nesse mundo e por incrível coincidência, daqueles que mais parecem roteiros de cinema, encontro a mulher da minha vida, na cidade dos nossos sonhos, aquela que sempre imaginei sendo a de nossa lua de mel, com um único detalhe que não me agradava em nada, é que nos meus devaneios Lucia não estava abraçada a outro homem. A fila para comprar o bilhete de volta poderia ter andado mais devagar, pra que tantos guichês? Eu poderia não ter resistido a minha compulsão por contar as pastilhas do mosaico colorido na parede acima da bilheteria. Na verdade, até comecei a

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contá-las, mas como a fila andou rápido só consegui chegar aos mil novecentos e cinquenta e quatro. Com o passar dos anos, para amenizar a ansiedade, aperfeiçoei a técnica de contagem de azulejos do meu antigo banheiro de infância, multiplicando pela quantidade de pastilhas. O engraçado é que parei justamente no ano do meu nascimento e de Lúcia. Até isso éramos iguais. Com a diferença de apenas alguns dias. Apesar de ela ter nascido nos últimos dias de março e eu no primeiro de abril. Só mesmo sendo muito azarado para ser um legítimo AVC, Botafoguense fanático, viver sobre a sombra do transtorno obsessivo compulsivo e ainda nascer justamente no dia da mentira. Lucia estava como sempre sonhei nesses últimos vinte e cinco anos, simplesmente linda. Se estivéssemos casados, estaríamos comemorando as Bodas de Prata e Veneza seria o cenário perfeito. Seus cabelos continuavam longos, lisos e pretos. Usava grandes óculos escuros com armação também preta que escondiam as sobrancelhas e lhe dava um charme ainda maior. Os lábios finos pintados com um batom claro. A bermuda até os joelhos permitiam ver a pele bronzeada pelo sol das praias do Mediterrâneo, fazendo com que imaginasse todo o restante. Ah! Quantas vezes imaginei minhas mãos percorrendo suas coxas grossas subindo pelo vão da saia e se aconchegando no meio de suas pernas, sentindo o relevo e a textura de sua calcinha. Horas e mais horas perdidas, sentado isolado na bacia do banheiro. Agora Lucia era uma mulher feita, na verdade, uma senhora. A blusinha branca com um decote canoa ressaltava o fino colar de ouro. Será que ela usava o colar que lhe dei na última vez em que nos vimos no aeroporto do Galeão, antes de nossa estréia no Municipal? Não sei se foi o reflexo do brilho do sol direto no pingente de ouro das máscaras de tragédia e comédia que simbolizam nossa profissão, ou o meu olfato de caçador que sentiu o perfume de gardênia por perto. Mas algo fez com que parasse 18


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a contagem das pastilhas do mosaico colorido e olhasse para o pátio da estação em direção a Igreja de Santa Maria de Nazareth. Com o mesmo nome de minha mãe essa seria a primeira igreja que entraria em Veneza. Será que foi minha mãe que me induziu a olhar nessa direção? Será que ela sabia da presença de Lucia e queria que eu a visse? Não se engana o coração de mãe. Ela sabia do meu amor por Lucia desde o primeiro dia que a encontrei no pátio da escola. Desde criança Lucia já tinha o seu charme todo particular. No meio de tantas meninas ansiosas correndo de um lado para o outro, meus olhos e coração ficaram paralisados por aquela garota de mochila rosa nas costas, rabo de cavalo e vestindo saia branca plissada. Mamãe notou o meu inédito olhar apaixonado e não interrompeu o meu transe. Esperou que eu voltasse à consciência após perdê-la de vista no meio das outras crianças. Acho que dessa vez, foi realmente Dona Nazareth que me fez reencontrá-la. Será que Mamãe a mando de São Pedro veio me buscar e utilizou o meu amor por Lucia para detonar a bomba instalada sorrateiramente nas profundezas do meu cérebro de transtornado compulsivo?

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CAPÍTULO 2

Andaluzia A viagem as três cidades dos meus sonhos respeitavam uma ordem determinada pelo meu sintoma de transtorno obsessivo compulsivo. Começaria pela região turística de Andaluzia na Espanha. Apesar de minha primeira viagem frustrada a Espanha, devo admitir que qualquer lugar desse país é um verdadeiro bálsamo para os olhos e espírito. Escolhi Andaluzia, pois recordei de uma das primeiras citações de Lucia descrevendo em detalhes as maravilhas da região antes de mais uma fuga repentina de minha vida. Dessa vez ela foi obrigada a deixar Madrid e acompanhar os pais que fugiam do regime sanguinário e fascista de Francisco Franco, só não sabia ao certo em quais das províncias ela fixaria residência. Vai ver que nem ela sabia. Ou se soubesse não me disse para proteger a sua família, ou talvez inconscientemente quisesse me deixar uma vaga pista do seu paradeiro. Apesar de fazer tudo para esquecer Lucia, mais uma vez me vi 20


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confirmando a passagem para a Espanha, dessa vez para a única região que tem Lucia no nome. Quem sabe influenciado pelo clima e pelas praias do Mediterrâneo ou pelo flamenco, a dança preferida da mais bela bailarina que já vi na vida e nos palcos. Pensando bem, acho que decidi Andaluzia, pela frase milhares de vezes repetidas pelo meu combalido cérebro: Onde anda Lucia? A família de Lucia saiu às pressas do Brasil na madrugada de 01 de abril de 1964. Justamente no dia do meu aniversário de 10 anos. No dia em que tinha decidido me declarar para o meu amor platônico. O plano era dar a ela o primeiro pedaço do bolo de chocolate com morango e com calda de leite condensado, feito por Dona Nazareth, com fatias milimetricamente cortadas, e em seguida, exorcizando as minhas aflições, pedi-la em namoro na frente de todos os convidados. Mas o golpe militar e a fuga repentina dos pais de Lucia acabaram com a minha estratégia minuciosamente planejada. Éramos muito crianças para entender o que estava acontecendo no país naquela época. Pelo que mamãe contou a coisa já estava complicada desde o comício na Central do Brasil encabeçado por Brizola e Goulart. E por acaso alguém me perguntou se eu estava interessado nesse tal de golpe militar? Ou será que essa dupla de políticos não sabiam que fazendo esse comício, os pais do amor da minha vida seriam obrigados a fugir do país na calada da noite. Meu coração estava em pedaços pela possibilidade de nunca mais poder ver Lucia, ficar sem notícias ou sentir o seu perfume. Acho que essa data foi crucial para que o tic tac do relógio instalado no meu cérebro começasse a contar. Tenho pra mim que ali foi disparado o cronômetro e a contagem regressiva de minha vida. Ao notar que Lucia não estava entre os presentes em minha festa, e o pior, ao saber da possibilidade de nunca mais vê-la, tive uma crise compulsiva e fiquei imobilizado passando a assoprar sem parar durante toda a festa a língua de sogra colo21


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rida. Vai ver que essa oxigenação forçada do cérebro foi propícia para que se instalasse o meu aneurisma. Fiquei anos sem receber nenhuma notícia do meu amor platônico. Os boatos eram que todos se exilaram na Espanha. O pai de Lucia, um italiano de Nápoles que trabalhava na embaixada da Itália, perto do Largo da Misericórdia, no centro do Rio de Janeiro. Diziam a boca pequena que ele fazia parte da Gomorra, a máfia napolitana. A mãe do meu amor era de Madrid. Estava grávida e prestes a dar a luz. As más línguas diziam que o filho nem era do italiano, mas de seu motorista que acompanhava sua mulher pra cima e pra baixo no carro de luxo do consulado. Inventavam essas coisas só porque a família estava distante. Pra mim pouco importava, não sabia o que era máfia, ditadura, Ato Institucional Nº 1, traição ou consulado, nem onde ficava essa tal de Madrid na Espanha. Meu mundo era limitado às ruas do Leblon, andar de bicicleta na praia, avistar o morro Dois Irmãos, passear na Lagoa Rodrigo de Freitas com meus pais, estudar no Colégio Santo Agostinho. Se bem que havia outro mundo. O imaginário, onde só havia dois habitantes. Lucia e eu. A primeira carta chegou e eu já estava com dezesseis anos. Lucia parabenizava a conquista do tricampeonato do México, ela fazia questão de mostrar que acompanhava os ídolos do nosso Botafogo, Jairzinho, Gerson, Paulo Cezar Caju e Zagallo como técnico do maior esquadrão futebolístico de todos os tempos. Lucia deve ter se lembrado de sua infância e quando íamos com meu pai ver os treinos do Fogão. Ver Nilton Santos e Garrincha desfilando no Maracanã. O título da copa do mundo foi apenas um pretexto da minha paixão infantil para refazer a conexão com o Brasil e em especial com meu coração da estrela solitária. Amaldiçoo até hoje a chegada dessa carta. Passado a crise de abstinência de Lucia, até que passei a ter uma vida normal. É fato que tinha algumas crises compulsivas, tipo dar cem voltas de 22


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bicicleta em torno do Mercury Monterey vermelho do meu finado pai, modelo 1960, com capota branca e emoldurada por frisos cromados e estofamento da cor do veículo. Ele ficava apreensivo com a possibilidade de um risco na pintura. Mas preferia não interromper o meu surto, pois aí sim, de um simples arranhão, poderia se transformar num farol, retrovisor ou vidro quebrado. Ficar passando com a miniatura do Mercury no ladrilho da garagem exatamente por cima das ondas que imitavam a calçada de Copacabana. Escovava os dentes de acordo com o dia. Apenas uma vez no primeiro dia do mês e trinta ou trinta e uma vezes no último dia do mês. Não conseguia urinar enquanto não contasse os azulejos do banheiro, só me alimentava de acordo com a cor da comida, primeiro o arroz, depois o feijão, em seguida a carne, batata e por fim o tomate ou alface. Só atravessava a rua depois de passar a quantidade de carros correspondentes a minha idade, se me machucava e fosse possível passar a língua, eu ficava me lambendo até que a boca secasse. Às vezes começava a me coçar com tanta frequência que chegava a me ferir. Passei pela fase da higiene, com a lavagem excessiva das mãos, gastava tanto sabão que meu pai dizia que teria que se tornar sócio da Gessy. Se copiasse algo errado do quadro negro ou errava alguma lição da escola, chegava a fazer buracos nos cadernos de tanto apagar seguidamente, mesmo depois de ter acertado a questão. Tinha um medo persistente e absurdo de doenças, ou de que algo terrível pudesse acontecer com Lucia ou com minha mãe, entre outras manias, que se fossem descritas não teriam fim. De fato, havia se confirmado a suspeita de que Lucia estivesse mesmo vivendo em Madrid. A breve carta escrita com uma mistura de espanhol com português dizia que estavam todos bem e que não via à hora de poder regressar ao Brasil. Que tinha saudades dos amigos da escola e dos passeios na Lagoa e da imagem do Cristo Redentor. Saudades de quando costumá23


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vamos passear pela orla no carrão vermelho do meu finado pai. No banco de trás ia apenas eu e Lucia de mãos dadas, será que era disso que ela se referia? Dizia ainda que a única coisa boa da Europa era dançar o flamenco. Estava inclusive sendo cotada para participar de um Festival de Flamenco em Andaluzia para jovens. Como bem sabia o meu pai, não se deve mexer com um transtornado. É melhor deixá-lo quieto no seu canto. A maldita carta de Lucia só fez agravar o meu quadro. Meu coração estava em paz. Já havia inclusive pensado na possibilidade de abrigar um novo amor com uma ruivinha da escola. Enquanto estava trancado no banheiro contando os azulejos e os furos do ralo já tinha ejaculado centenas de vezes em homenagem a essa nova paixão, imaginando como seriam os pêlos de suas partes íntimas. Desde que o meu pau deu algum sinal de vida e prazer, passei a me masturbar como um tarado. Se o tempo estava fechado e ameaçava chover eu tinha que caprichar numa para o sol voltar a brilhar. Se a nota era vermelha tinha que ir ao banheiro antes da próxima prova para garantir uma nota azul. Se o Botafogo perdesse por um gol era sinal de que tinha que bater uma com a mão esquerda. Se ganhasse de três, tinha que bater três com a direita. De manhã, à tarde e a noite. Se não o fizesse alguém morreria, temia que fosse Jairzinho ou Garrincha, não me perdoaria. Até então Lucia nunca tinha sido contemplada com uma possante jorrada de esperma do AVC. Talvez inconscientemente quisesse preservá-la desse meu transtorno de perversão compulsivo. Acontece que com a chegada daquela maldita correspondência, fui obrigado a aliviar a ansiedade e imaginei dançando flamenco com minha amada no palco do Teatro Municipal. Num daqueles rodopios, ao fazer o tal do espacate lateral no ar, eu me encaixava nela, na frente de uma platéia boquiaberta. Sinto a sensação do gozo até hoje. O primeiro orgasmo dedicado a amada nunca se esquece. 24


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Penso comigo que foi por causa da primeira carta de Lucia que peguei a mania de toda vez que passava em frente à caixa de correios eu abria para ver se tinha algo pra mim. Fazia isso de tal forma, que chegava a abrir a todo instante. Passaram-se anos, a tecnologia mudou e sem perceber continuava fazendo o mesmo no computador para ver se chegou email. Vai ver que Lucia era igual a mim, avessa à tecnologia. Minha alegria era indescritível sempre que abria a caixa de Correios e avistava a carta com o selo da Espanha. Fato raro é verdade, mas de um êxtase sem tamanho. Durante pelo menos cinco anos trocamos correspondências. Sentia que seus interesses mudavam. Os meus continuavam os mesmos. Casar, ter filhos e viver o resto de minha vida, ou pelo menos, enquanto o aneurisma deixar, ao lado dessa incrível mulher. Sinto que ela exercia um fascínio que chegava a ser também compulsivo. Um amor platônico quase doentio. Mas a paixão é uma loucura, uma viagem de ida sem a certeza do bilhete de volta, já dizia o poeta. Ansiava pelo retorno da família de Lucia ao Brasil. Mas a ditadura persistia caçando jornalistas, esquerdistas, estudantes revolucionários e qualquer desavisado que estive na hora e no lugar errado. Pelo andar da carruagem, eles dificilmente regressariam ao Rio de Janeiro. Assim que fiz dezoito anos pedi ao meu pai que me desse de presente uma viagem a Espanha. Com o pretexto de estudar espanhol desejava convencê-lo. Na verdade, queria ver Lucia. Depois de várias crises compulsivas, colocar em risco a sua relíquia vermelha da garagem e a certeza de que só iria melhorar se concedesse o meu desejo, ganhei o direito de passar três semanas em Madrid para um curso intensivo. Minha mãe me acompanhou na viagem e foi testemunha de uma de minhas piores crises. Estava ansioso por me encontrar com Lucia. Imaginava como ela estaria agora, ao invés de menina inocente, uma verdadeira mulher. Inúmeras vezes pedi uma foto, mas por 25


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questões de segurança ela não podia enviar. Para minha decepção descobri que o endereço que usava nas cartas era falso. Não tinha nenhuma Lucia naquele local. A sensação de ser enganado me fez ficar a manhã inteira incessantemente abrindo e fechando a caixa de correspondência do endereço mencionado nas cartas de Lúcia. Chamei tanto a atenção dos vizinhos que mesmo após chamarem a polícia, continuei abrindo e fechando a caixa de correio. Dona Nazareth convenceu os oficiais de que eu não queria roubar nada, que estava passando por uma colapso nervoso, e que em breve, acalmaria e voltaria ao normal. A viagem a Espanha foi uma tremenda decepção. Voltei ao Brasil certo de que acabaria com a minha virgindade, nem que fosse a um puteiro, encarar aquelas velhas com varizes e estrias até nas tetas caídas. Esqueceria de uma vez por todas de Lucia, aquela miserável. Quem sabe a ruivazinha ainda gostasse de mim. Quem sabe ela sendo diferente e renegada no colégio, não se importasse com as minhas crises compulsivas e resolvesse ficar comigo. E assim aconteceu. Engatei um namoro com Valéria. Vivemos juntos a nossa primeira noite de amor meio sem jeito no banco traseiro do Mercury de meu pai. Descobrimos juntos os prazeres do sexo real. Matei a curiosidade quanto à cor dos seus pêlos pubianos. Pensei que sobre influência do estofado do carro eles eram realmente ainda mais rubros. Vivia uma relativa calmaria. Crises espaçadas, menos visitas ao banheiro para me aliviar. Entrei na faculdade de Direito. Nem bem cursei o primeiro semestre e desisti. O motivo, a carta de Lucia dizendo que tinha concluído o curso de flamenco, e estava excursionando pelas províncias de Andaluzia. Tinha uma agenda cheia de shows na França, Portugal, Itália e Alemanha. Que talvez viesse a América do Sul no inverno, passando primeiro em Buenos Aires e depois São Paulo. Finalizou a carta com um: “Quem sabe nos encontramos na terra da garoa”. Larguei tudo. Terminei às pressas o namoro com 26


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Valéria e segui pra São Paulo com uma mão na frente e outra atrás. Meu pai quis me deserdar. Jurou que não me daria um puto sequer, que se estava jogando no lixo o diploma de advogado, então eu teria que me virar sozinho na terra da garoa. Perambulei pelas ruas, bares, casas de espetáculos, até que me enturmei com um grupo de teatro. Tomei gosto pela coisa. Primeiro participando das montagens de peças, literalmente com a mão na massa. Construindo desde os cenários, passando pela iluminação, figurinos e sonoplastia. Depois que começou a entrar uma grana, participei de cursos de ator. Sinto-me honrado por ter trabalhado com Plínio Marcos, para tantos “O Maldito” mas para mim, “O Bendito”, o homem que me ensinou a ver a vida de uma maneira mais simples, clara e objetiva. Se é que isso era possível para um portador de transtorno obsessivo. Ainda novato, atuei com grandes atores e atrizes. Eu e Plínio fizemos amizade rapidamente. Vai ver que ele se afeiçoou a mim por sermos canhotos e sofrer com essa dificuldade, e também por torcermos por times que só levam ferro. Nos butecos, Plínio me chamava de Carioca, mas foi Walderez, sua esposa, uma das melhores e mais perseguidas atrizes desse país que sugeriu Miro Vasconcellos como sendo meu nome artístico. Ela dizia que sem nome composto ninguém fica famoso. Que só mesmo Pelé e o Papa pra serem conhecidos mundialmente. Durante os quatro anos em que estive em São Paulo conheci muita mulher. Saí com algumas, inclusive uma Lucia que trombei na Estação da Luz, mas a legítima Lucia eu não cheguei a encontrar. Novamente ela fugiu de mim e não tinha notícias daquela ordinária. Na verdade, queria esquecê-la. Agradeci por ter me dado a dica de vir até a “terra da garoa”, pois lá me encontrei profissionalmente.

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Caro leitor/editor, Buscando me aproximar dos leitores e também dos editores, decidi publicar parte de minhas obras. Esse livro está com projeto gráfico finalizado. Incluindo capa, material publicitário. Obviamente que ainda é possível fazer ajustes necessários e também uma revisão ortográfica mais aprofundada. Caso deseje ter acesso à obra completa, gentileza entrar em contato. http://www.facebook.com/ivan.lacerda http://ivanlacerda.wordpress.com/ www.twitter.com/ivanlacerda Home page: www.ivanlacerda.com.br

Livro: Presente que ninguém esquece.


Obras do autor Publicações Sobretudo - 1997 - Poesias - Parte da renda revertida para AACD — Associação de Assistência à Criança Deficiente, entidade que há mais de meio século trata, educa e reabilita, trazendo ao convívio social crianças portadoras de deficiência física. Passando tudo a limpo - 2002 - Romance - Empresário que teve uma origem muito humilde, educado com rigor e a disciplina de uma família religiosa, mas que com o passar dos anos e a ascensão financeira deixou tudo em segundo plano. Após vários anos trabalhando no limite da sua capacidade física sofre um ataque cardíaco, passando 15 dias em estado de coma. Justamente nesse período e com a ajuda do seu anjo da guarda faz uma retrospectiva de sua vida, passando tudo a limpo, voltando aos fatos que de uma forma ou de outra foram marcantes em sua vida. Os filhos bastardos do presidente - 2000 - Romance - Capitão, Jornalista recém aposentado, fundador de um grande jornal, pesquisou por mais de quarenta anos, toda a trajetória política de um Presidente da República bonachão, corrupto e sem caráter. Durante a campanha para o Palácio do Planalto, o político acaba tendo casos com inúmeras mulheres em todo o Brasil. No dia 1 de abril de 1960 nascem quatro crianças, um filho legítimo e três provenientes desses casos amorosos. Os jovens, sem saber que são irmãos, acabam se esbarrando e influenciando um a vida do outro com suas atitudes, durante todo o transcorrer da história. Companheira Solidão - 2008 - Romance – Através de uma narração envolvente, o livro conta a trajetória de Natan Castro, um famoso economista que no auge de sua carreira profissional,


se vê solitário e questionando se realmente é uma pessoa feliz. Ao avaliar a sua vida, uma questão lhe atormenta, percebe que nunca sorriu que não teve amigos nem um grande amor. Que a sua única companheira durante toda a vida foi a solidão. O livro nos força a refletir sobre o que um ser humano precisa de fato para ser feliz. Quantas pessoas estão nessa mesma situação, de ter tudo o que desejam na vida e ao mesmo tempo, sentirem-se totalmente isoladas. Poesias In Twittivas - 2009 - Poesia – O primeiro livro de poesias baseado na “Era Twitter”. Ou seja, utilizando o limite de até 140 caracteres em cada poesia. Como a ferramenta Twitter é gratuita o autor decidiu tornar o livro também gratuito disponibilizando para downloads no site do autor www.ivanlacerda.com.br Loucos Por Ti Corinthians - 2010 - Livro com crônicas narradas por São Jorge em homenagem ao primeiro centenário do Sport Club Corinthians Paulista. Com imagens de Ivan Lacerda e ILustrações de Vitor Lima e Ton Ferreira. Quintal de casa - 2010 - Livro com imagens, reflexões e poesias, em comemoração ao Ano Internacional da Biodiversidade. Inéditos: A Dois passos do paraíso, Eu sei que você está lendo. Home page: www.ivanlacerda.com.br

Livro: Presente que ninguém esquece.


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