Ivan Martínez
Até o fundo do poço Ivan Martínez
O livro-reportagem “Até o fundo do poço: entrando e sobrevivendo no mundo das drogas” procura contar a história de cinco usuários de diferentes tipos de entorpecentes. Os perfis possuem em comum o fato de seus protagonistas terem escondido o uso de drogas ilícitas de suas famílias e boa parte de seus amigos. Além disso, todos mantiveram durante certo tempo, ou ainda mantém, uma rotina de vida aparentemente normal e regrada. Dados estatísticos de pesquisas recentes sobre o uso de drogas no Brasil e a opinião de especialistas com experiência no tratamento de dependentes estão no texto em meio às histórias. O objetivo da obra é levar o leitor à reflexão sobre a questão das drogas ilícitas, bem como dar uma noção da dependência na sociedade e de como o problema pode afetá-la.
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Até o do poço: entrando e sobrevivendo no mundo das drogas
Curioso e fascinante o modo como o estudante Ivan Martínez descreveu as consequências do uso das drogas na vida dos seus entrevistados. A fim de mostrar que elas não atingem apenas determinada classe social, ele fez questão de contextualizar a vida de cada um dos personagens, que, em alguns casos, vieram de famílias estruturadas e com bom poder aquisitivo, mas recorreram às mais baratas e perigosas drogas. São cinco histórias diferentes – dentre tantas outras que podem ser encontradas no mundo diariamente – que ajudarão o leitor a entender os fatores que levam alguém a se render a um dos piores males existentes e, mais importante, o que podem fazer para superá-lo e recomeçar a vida. Felipe Guerra Atua em Jornalismo e é produtor de TV
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Dedico este livro a todos que contribuíram para o meu êxito nesse projeto, em especial à minha família, à amiga Eliane Freire e aos meus grandes companheiros do 4º Jornalismo Matutino de 2010. 4 Até o fundo do poço
Ivan Martínez Vargas de Souza
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SUMÁRIO Histórias que ensinam.....................................................................9 Introdução..............................................................................................11 Muito além dos limites...................................................................17 Pedras, grades e esperança........................................................43 Da desilusão à esperança: um caminho de fé..............63 Consciência dos males, certeza dos prazeres...........87 Quando o maior desafio está dentro de casa..........107 Ensaio fotográfico.........................................................................119 Posfácio......................................................................................................131 Agradecimento...................................................................................135 REFERÊNCIA BIBLIOGRáFICA...........................................................138
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Até o fundo do poço Autor: Ivan Martínez Orientação: Eliane Freire de Oliveira Revisão: Maria Eunice de Ascenção Ramos Projeto Gráfico e Diagramação: Paulo Donizetti da Silva Foto da capa: Flávio Pereira Fotos: Flávio Pereira Ivan Martínez Thiago Leon
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Histórias que ensinam “A vida é um dom”. Independentemente da linha filosófica ou teológica a que se adira, como também da classe social a que se pertença, essa é uma afirmação que encontra concordância entre a maioria das pessoas. Para mim, como sacerdote católico, mais do que uma mera afirmação, trata-se de uma verdade que ecoa fundo e rege as relações humanas. É com esse olhar que procuro sempre compreender as diversas manifestações da vida. Nas histórias que compõem este livro, escrito por Ivan Martínez com tanto esmero e sensibilidade, tive o prazer de encontrar exatamente a preocupação do autor em apresentar a vida como um dom que precisa ser cuidado. As drogas são, por outro lado, o que leva as pessoas a perderem a capacidade de vê-la deste modo. Nos meus mais de seis anos de padre, tive a oportunidade de atender e acompanhar muitos casos, tanto de pessoas – jovens em sua maioria – que vieram em busca de ajuda, ou porque não têm apoio da família, ou porque já estão numa situação limite, quanto de pais e mães que já esgotaram todas as suas forças e possibilidades na luta por resgatar seus filhos do mundo das drogas. O que há de comum em todos esses casos, como nas histórias aqui narradas, é o sofrimento, que não poupa ninguém. Sofre a pessoa que usa drogas, sofrem as pessoas que estão próximas dela, sobretudo, a família. Outro fator comum é que nenhum usuário, quando inicia a sua experiência com drogas, reflete sobre a possibilidade se tornar um dependente, e quando se torna não consegue admitir facilmente que o é, enquanto não experimenta de tudo, perde tudo e não vê mais saída. Durante muito tempo se procurou sustentar, talvez como forma de autodefesa da própria sociedade, a tese de que o problema das drogas deriva e está diretamente relacionado às classes mais pobres, à falta de acesso à educação, à desestruturação familiar, entre outros fatores que atingiram estado crônico na atual conjuntura social. Mas, hoje, essa é uma tese que já não se sustenta mais. Pois não é mais possível demarcar fronteiras quando Até o fundo do poço 9
o assunto é drogas. Elas estão em todo lugar. Vivemos numa realidade em que se pode chegar à terrível, mas verdadeira constatação de que em quase, senão em todas, as famílias há um caso de envolvimento com drogas. Ter um sobrenome de tradição ou morar num condomínio de luxo há muito deixou de ser sinônimo de segurança ou isenção das drogas. Outra constatação, mais grave ainda, é a de que esse é um mal patrocinado pelo crime organizado, que, longe de ser punido, é muitas vezes aliado a setores do poder público. “Até o fundo do Poço: entrando e sobrevivendo no mundo das drogas” não é um livro de tragédias humanas. Antes, é a proclamação da esperança. Esperança de que é possível fazer alguma coisa para mudar essa história. É também um alerta, sobretudo às famílias, para que diante dessa realidade saibam ter perseverança e serenidade. Quanto ao autor, ao narrar cada história, descrevendo com propriedade e cuidadosa técnica os personagens e as suas situações, consegue despertar no leitor um misto de sentimentos que vão da raiva à compaixão, ao mesmo tempo que o incita a ler da primeira à última página sem se cansar. Aproveite a leitura. Vale a pena!
JAIME LEMES Padre do Instituto Missionário São José Assessor da Pastoral da Comunicação da Diocese de Taubaté Vigário da Paróquia do Menino Jesus Estudante de Jornalismo 10 Até o fundo do poço
Introdução Dentre as características do Jornalismo que mais me atraem, sem dúvida alguma, está a preocupação com os problemas sociais e a vontade de combater a injustiça. Desde o início da faculdade sabia que meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) teria uma temática social. Apesar de ter ponderado sobre a escolha de vários temas, o atual foi um dos primeiros que idealizei. Isso porque havia me interessado o fato de existirem poucos projetos experimentais que tratassem de como os usuários de drogas escondem seu uso da sociedade no início do consumo. O objetivo deste trabalho é mostrar, por meio de exemplos, o que pode levar ao uso de drogas, como se dá a progressão do consumo e quais as suas consequências para o usuário, para sua família e para a sociedade. Muitos são os que afirmam que têm o controle sobre suas vontades e seus atos quando descobertos, porém pouquíssimos admitem o vício. E quando percebem que suas vidas giram em torno do entorpecente, não conseguem parar por conta própria. Ao atingirem uma situação crítica e extrema, o “fundo do poço”, clamam por ajuda, apegam-se à religião ou cometem o suicídio. Neste livro, busco contar de maneira fiel a história de cinco pessoas que, por motivos distintos, se envolveram com as drogas. Os nomes dos personagens que aparecem sem sobrenome são fictícios e a localização dos personagens é genérica para preservar a identidade dos mesmos. Os relatos dos protagonistas e de pessoas que convivem com eles é o que dá o tom da narrativa dos capítulos, independentes entre si. No primeiro capítulo, o leitor vai conhecer Bruna, uma mulher da classe alta que na adolescência descobriu o que é a cocaína. Durante mais de 15 anos ela progrediu no uso da droga e chegou ao vício do crack sem que seus familiares e parte dos amigos soubessem, provando que o uso da droga não encontra barreiras sociais e econômicas. Em seguida, vem a história de Paulo, um rapaz que, pelo sucesso, pelo Até o fundo do poço 11
prazer e pela popularidade que as drogas lhe prometiam, achou que poderia experimentar de tudo. Da universidade à prisão em poucos anos, ele luta hoje para poder superar a dependência e criar a filha recém-nascida. A história de Anderson, narrada no terceiro capítulo, mostra até onde pode chegar o usuário em sua depressão, como ele admite que precisa de ajuda e como funciona um dos maiores projetos de reabilitação de dependentes químicos ligados à religião no país. Beatriz, a personagem do quarto capítulo, é o retrato do jovem que escolhe se envolver com as drogas. Como muitos universitários brasileiros, ela busca no consumo dos mais variados tipos de drogas encontrar o prazer mais intenso e irrestrito. A diferença dela para a maioria dos que decidem consumir entorpecentes é que Beatriz é estudante de Medicina e tem plena noção dos males que a escolha pode lhe causar. A última história mostra a saga de Henrique, que por mais de duas décadas fez uso de cocaína e por anos lutou para vencer o vício. Hoje, ele dedica a vida ao tratamento de quem passa pelas dificuldades do tratamento da dependência e enfrenta o maior desafio de sua vida, ajudar um familiar a sair do mundo das drogas. Este trabalho não pretende discutir toda a questão do uso de drogas, mas quer, sim, que o leitor reflita sobre o tema de uma maneira diferente da que está acostumado a ver, sem preconceitos. Faço votos de que os interessados pelo assunto aproveitem a leitura!
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Muito além dos limites Dia frio de inverno. Ela entra em uma sala bem mobiliada e agradavelmente arejada. Embora esteja um tempo chuvoso, a temperatura dentro do cômodo é agradável. A mulher senta-se num sofá confortável e de estofado macio. É jovem, de aspecto estarrecedor. Quem olhar para ela, percebe sua idade pela cor e pelo aspecto dos cabelos. Negros e bem lisos. É alta, e tem curvas bem delineadas. Entretanto, quem vê Bruna pela primeira vez pode pensar que está diante de uma mulher feia, o que é um equívoco. Essa primeira impressão pode acontecer porque seu rosto passa as sensações de cansaço e de desânimo, e, embora ela sorria com certa frequência, de tristeza imensa. Um olhar mais atento para o rosto de Bruna permite que se percebam olhos cansados e fundos dentro de profundas e grandes olheiras. Mas, numa conversa mais demorada, quase que instintivamente o espectador passa a observar mais detalhes daquele rosto. Aspectos e nuances que provavelmente assustam, pois dão a impressão nítida de se estar diante de uma beleza escondida. Seu nariz é bem feminino, fino e arrebitado; seus lábios nem finos nem carnudos, mas equilibradamente bonitos; suas sobrancelhas bem delineadas e esteticamente belas. Tudo isso harmoniza um rosto de formato angular e queixo fino. Ao final dessa análise automática do olhar, percebe-se na moça uma beleza cansada, exausta de sofrimento, de angústia e ao mesmo tempo esperançosa. *** Belo Horizonte, década de 1990. A família de Bruna é bem sucedida e faz parte da classe média alta da capital mineira. Dentre seus irmãos, não é mentira dizer que ela é a mais mimada. Desde muito pequena, a menina viveu uma realidade bastante confortável. Filha de uma família pertencente à classe média alta da capital Até o fundo do poço 17
mineira, sempre estudou em escola particular e era cheia de atividades extracurriculares. Era uma boa aluna e sempre se destacava dos demais por sua beleza e sua inteligência. Atleta, treinava regularmente natação e participou de uma série de competições durante a infância e boa parte da adolescência. Mas não era apenas boa aluna e atleta. Bruna era também bailarina. As aulas e apresentações de balé fizeram parte de sua rotina desde a infância, e, ao chegar na adolescência, mostrava-se uma das bailarinas de maior destaque em sua academia. Considerava-se uma menina feliz. Precoce, aos 15 anos começou a namorar um rapaz mais velho. Bruno era um adolescente rebelde, altamente popular entre os jovens do bairro nobre de Belo Horizonte em que ela vivia. Vestia-se à moda da época, usava jaqueta de couro e gostava de dirigir sua moto de modo que todos os vizinhos percebessem que estava passando pela rua. — Lógico que minha mãe não aprovou o relacionamento. Ela tinha medo pela diferença de idade entre a gente e pelo jeito rebelde dele. Mas, mesmo assim, eu brigava pra sair com ele. O relacionamento começou mesmo com a relutância da família da moça. Mas sua mãe era rígida com o horário: às 9 horas da noite, Bruna já deveria estar em casa. E o rapaz obedecia às ordens sem questionamentos, o que levantou as suspeitas da menina. Ela tinha medo de que seu popular namorado a trocasse por outra menina mais velha e que pudesse ficar mais tempo com ele. Mais do que isso, tinha sérias desconfianças de que o rapaz só obedecia ao horário imposto porque tinha uma amante, o que era reforçado pelo hábito do rapaz de andar com a moto de maneira estridente pela vizinhança. — Toda vez que ele me deixava em casa, eu ouvia a moto passeando por aí, e ficava achando que ele tinha outra. Mas os amigos dele, que já estavam fazendo amizade comigo, contaram que não era traição, mas sim droga. Ele cheirava cocaína, mas não queria que eu o visse usando droga. Descoberto o segredo, a Bruna adolescente ficou bem mais tranquila por saber que não estava sendo traída. O fato de o namorado estar usando 18 Até o fundo do poço
cocaína não a assustou, mas sim, fez crescer o sentimento de admiração dela para com o parceiro, e, ainda mais, fez com que ela quisesse experimentar a droga. — Abri o jogo, contei que já sabia que ele tava usando e disse que eu queria que me desse para experimentar. Ele não quis, brigou comigo, disse que ele estava naquela, mas não queria que eu entrasse. Eu fiquei brava. E, ele querendo ou não, eu ia usar. Diferente dos demais jovens e adolescentes da época, que geralmente iniciavam o consumo de drogas pela maconha, Bruna não sentia vontade de fumar baseados, mas sim de cheirar cocaína. Como já havia feito amizade com os amigos de seu namorado, que também usavam drogas, ela pediu a eles uma dose do entorpecente. Também se negaram a deixá-la ter contato com a droga. — Eu queria, mas nunca tinha visto, nunca tinha tido contato com nenhum tipo de droga, nem mesmo contato visual. A primeira experiência da moça com a droga aconteceu numa festa, pouco tempo depois de ela ter descoberto que o namorado cheirava cocaína. Num churrasco com a turma de amigos dele, todos mais velhos do que ela, Bruna percebeu que boa parte da turma intercalava momentos de dança eufórica com momentos em que se reuniam em um quarto na casa em que acontecia a festa. Ela, prevendo o que seria, pediu para entrar. O namorado e os amigos não quiseram deixar, mas, sempre com o espírito rebelde, a menina acabou entrando e viu a turma cheirando cocaína em cima de uma mesa. — Vi todos eles cheirando e pedi para me ensinarem a cheirar, ganhei pela insistência. Cheirei muito e de uma vez só. E adorei. Talvez o fato de transgredir as regras da sociedade, somado à vontade de ser aceita e respeitada no grupo em que vivia, tenha contribuído para que Bruna tenha decidido experimentar a cocaína. Psicólogos e sociólogos seguem diferentes linhas de pensamento para explicar o porquê do uso de drogas na juventude. Mas todos concordam que o fato de que jovens em idade adolescente sejam mais rebeldes e tenham tendência a gostar de deAté o fundo do poço 19
safios e do perigo contribui para esse processo. É aí que residem muitos dos perigos da adolescência, ressalta a psicóloga Cláudia Fabiana de Jesus, que trabalha com a reabilitação de viciados. Alguns ainda afirmam que a falta de informações precisas sobre o perigo do uso de drogas seja um dos fatores que contribuem para o início do uso. Mas, por conta de um instinto rebelde, é fato que alguns jovens se sentem desafiados com o discurso de que as drogas viciam e são letais. Alguns, mesmo tendo acesso a informações detalhadas do impacto que drogas ilícitas podem ter na saúde, se sentem compelidos a provar seus efeitos. Tendo iniciado direto pelo uso da cocaína, Bruna enturmou-se no grupo de amigos que usava drogas, e, a partir da primeira vez, fez com que o entorpecente se tornasse uma diversão a mais em sua vida. Além da cocaína, passou a fumar maconha em festas, e, por diversas vezes, usou as duas drogas ao mesmo tempo. Apesar do uso, ela manteve com considerável sucesso sua rotina de vida. Suas notas caíram, mas, nada que a fizesse , apesar de sempre ter passado de ano, a família não desconfiou de nada. — Meu namorado continuava sendo contra, mas eu usava drogas, e, sinceramente, isso não atrapalhava minha vida. Na adolescência, nunca pensei em ficar viciada, ou mesmo em morrer. Durante todo o colegial, Bruna viu a popularidade e a fama crescer, juntamente com as festas, que passaram a ser uma rotina em sua vida. Pouco a pouco, o uso das drogas transgredia os finais de semana e as festas para invadir outros locais, como a escola. Ao terminar o colégio, Bruna estava mais popular e baladeira do que nunca. A essa altura, já usava droga junto com o namorado, que acabou aceitando o fato de a menina cheirar cocaína. Mas as brigas dos dois eram cada vez mais constantes. Com a popularidade em alta, Bruna começou a sair com os amigos mais velhos do namorado mais do que o próprio rapaz, o que era motivo de conflito entre os dois. Aos 17 anos, Bruna fumava maconha e tabaco, além de continuar cheirando cocaína com a turma de amigos. 20 Até o fundo do poço
— Nessa época eu descobri que estava grávida. Eu estava muito louca, estava cheirando até mais que meu namorado, eu convivia mais com os amigos dele do que ele. Terminamos quando eu engravidei. Grávida. O baque serviu para que ela diminuísse o vício de fumar e de cheirar cocaína durante o restante da gestação, em prol da saúde do bebê. A prova de que não era uma viciada, pensava, era justamente conseguir ficar meses sem cheirar cocaína. Mas a ida às baladas com os amigos continuou. — E, nas festas, vez ou outra eu fumava maconha, mesmo estando grávida. Muito pouco e de vez em quando, mas fumava. Ao contar para a família que estava grávida, Bruna ouviu da mãe: — A única coisa de que eu tenho pena é do pai que você escolheu para o seu filho. A mãe ouvia boatos de que o pai do filho de Bruna estava usando drogas, o que a levava a reprovar o relacionamento da filha com o rapaz. Mesmo com as desconfianças com relação ao genro, ela nunca perguntou à filha se ela usava drogas, e, mesmo se tivesse perguntado, é provável que ouvisse uma negativa. Mesmo grávida, Bruna arranjou um emprego como funcionária no Tribunal de Justiça do Estado, como secretária, sem prestar concurso. A mãe arranjara o serviço para que ela pudesse se sustentar. Com as novas responsabilidades, teve de desistir de fazer balé. Logo ao entrar no Tribunal, no ano de 1997, ela percebeu que lá também havia pessoas, inclusive do alto escalão, que usavam drogas. Fez amizade com eles. Durante essa época, Bruna se relacionou com dois homens, ambos já haviam usado drogas, fumavam maconha. Namorou por dois anos com um, mas terminou o relacionamento por estar apaixonada por outro. Namorou e casou com o segundo. O casamento de Bruna foi na Igreja Católica, quando tinha 21 anos. Sua filha tinha quatro. A noiva realizou o sonho que milhares de mulheres têm de casar de branco. Decidiu que pararia de usar drogas por um tempo pelo menos. E o fez. Até o fundo do poço 21
A cerimônia dos sonhos talvez até tenha acontecido, mas o “felizes para sempre” Bruna não viveu. Seu casamento dos sonhos não durou muito tempo e o seu príncipe encantado sumiu magicamente com a rotina da convivência. Do relacionamento, nasceram duas filhas. Durante os quase quatro anos que ficou casada, ela decidira que não usaria drogas, mas em festas fumava maconha e, ocasionalmente, cheirava cocaína. Ganhando bem, decidiu que investiria num curso superior. Foi fazer jornalismo numa faculdade particular de elite da capital mineira. Fez dois anos e parou, por não ter gostado do curso. O marido de Bruna não trabalhava. Ficava em casa a maior parte do tempo. O fato de ter de trabalhar para sustentar a casa a deixava furiosa e era um dos motivos pelos quais o casal mais brigava. No final do casamento, ela estava trabalhando de dia no Tribunal e de noite como gerente de uma boate. Com os dois salários, tinha uma renda mensal boa, mas aí Bruna voltou a usar cocaína. — Voltei a ter contato com a droga na boate. Muito contato. Cheirava demais, e olha que eu trabalhava na vara de tóxicos no Tribunal. Mas a droga até então nunca me atrapalhou na rotina do trabalho. Embora faltasse algumas vezes, ela levava atestados médicos falsos para justificar suas ausências. Sua rotina era entrar às 12h no tribunal, sair às 18h, e às 19h entrava na boate, ficando lá até as 4h30 ou 5h. Naturalmente, chegava em casa e dormia. Cansada de ter de sustentar a casa, ela arranjou emprego para o marido, que passou a trabalhar como segurança na boate. — Na boate e nas noitadas, eu usava muita droga, mas não precisava comprar a droga para usar. Sempre tive acesso fácil à cocaína, à maconha, não cheguei a vender nada da minha casa para comprar droga. Nem festa eu fazia em casa com minhas filhas dentro para usar drogas. Eu usava nas baladas e sabia que deveria estar limpa de manhã. Dava uma descansada e ao meio-dia ia trabalhar. Até então eu acreditava que a droga não atrapalhava a minha rotina. Mas é fato que, apesar de não se sentir afetada pelo uso das drogas, 22 Até o fundo do poço
trabalhando à tarde e à noite e dormindo até tarde, Bruna não participava da vida das filhas. Sequer nos finais de semana tinha contato com elas. — No tempo que tinha nos finais de semana para ficar com minhas filhas eu não ficava. Mandava uma pra casa do pai, as outras pra casa da empregada ou pra casa da minha mãe. O emprego como promoter de boate não durou muito. A casa noturna na qual o casal trabalhava fechou, e a gastança com festas somada ao desemprego do homem da casa resultou em problemas financeiros e numa crise conjugal que, em 2005, culminou com a separação do casal. No dia 18 de fevereiro de 2006, uma das bandas de rock mais famosas do mundo visitou o Brasil com o intuito de fazer o maior show de sua carreira e um dos maiores da história do rock: os Rolling Stones, que, com mais de 40 anos de carreira, influenciaram gerações de jovens nos anos 70 e se tornaram ícones e símbolos da época de ouro do rock. Embalados pela filosofia do liberalismo de todo tipo, os Stones compunham suas músicas num meio farto de sexo e de drogas dos mais diversos tipos. Dentre seus álbuns mais famosos, produzidos no ápice da fama da banda, no início dos anos 1970, está Sticky Fingers, que contém músicas que fazem alusão ao uso de drogas. Anos antes, os Beatles também embarcaram na onda das drogas, transparecendo isso em músicas como Lucy in the Sky with Diamonds (título que forma a sigla do LSD, droga de grande popularidade na época). Em 1972, os Stones lançaram o álbum Exile on Main St., um de seus mais venerados discos, resultado de meses de trabalho que os membros da banda passaram em uma mansão no sudeste da França sob o efeito de drogas e em meio a orgias. O tempo passou e a banda mudou. Ao desembarcar no Brasil para fazer um show gratuito na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, os Stones passavam por outra fase. Mas esse espírito jovem, rebelde e sem regras das décadas de 1960 e 1970 foi bem absorvido por milhares de jovens brasileiros. Um grupo deles era formado por Bruna e seus amigos, que saíram de Belo Horizonte direto para o Rio, em excursão. Ainda no dia anterior ao show, a recém-separada Bruna e seus comAté o fundo do poço 23
panheiros de balada acamparam na praia para garantir a melhor vista. Embalados pela música e pelo LSD, ela e os amigos garantiram o lugar para o show, acordados. Bruna já havia experimentado o ácido lisérgico, chamado de “doce”, e a droga se tornou uma de suas preferidas, depois da cocaína. — Depois que eu usei cocaína tudo o que aparecia na minha frente eu queria usar. Tudo menos o crack, porque eu achava o crack o fim. Substância alucinógena potente, o LSD, tão popular nas décadas de 1960 e 1970, voltou a angariar usuários com a massificação das festas open air, chamadas também de festas rave, festivais de música eletrônica ao ar livre com duração de mais de 12 horas. Geralmente, os usuários do “doce” permanecem ligados tendo alucinações por um longo período de tempo, que pode chegar às 12 horas. Geralmente, as doses de “doce” são vendidas por traficantes pequenos, os dealers, que são, em sua maioria, jovens pertencentes às classes média e alta da sociedade, não raro universitários. A droga é consumida por meio de pequenos quadrados de papelão embebidos na substância e que são chupados pelos usuários. Por causa do efeito prolongado da substância, Bruna tomava o cuidado de usá-la em ocasiões específicas: — Gostava muito de doce. Mas usava quando sabia que podia ficar uns dois dias fora de casa, porque o efeito era forte. A sensação que eu tinha era que eu saia de mim, tinha alucinações loucas. No dia anterior ao show dos Stones, ela e os amigos iniciaram a maratona para ficar acordados até a hora do espetáculo com ácido. Bruna permaneceu sob o efeito da droga por mais de 24 horas, dividindo os papelotes de LSD em quatro e tomando um quarto de dose por vez. — Nunca tomei cinco ou seis de uma vez. Tomava um, dois. No show dos Stones eu tomava mais para ficar acordada também. Mas acho que há uma diferença muito grande do LSD atual para o de antigamente. Antigamente, se você tomasse um inteiro ficava muitas horas alucinado. Quase ninguém tomava, passava mal mesmo se fizesse isso. De ir para o hospital. Hoje em dia acho que é mais anfetamina, sei lá. A onda não é mais a 24 Até o fundo do poço
mesma de antigamente. Hoje eu vejo pessoas que vão às raves e tomam ecstasy também e uns três, quatro, cinco doces. Na minha época, se você tomasse um ou dois doces inteiros, você ia para o hospital com princípio de overdose. Já próximo do horário do show, ela intensificou a dose da droga. O resultado foi a amnésia. — Eu estava tão alucinada que não sei distinguir o que foi realidade e o que foi imaginação. Lembro até certo ponto o que aconteceu no show, lembro do pessoal indo embora depois do show e de que nessa hora eu queria nadar e fui pro mar junto com um amigo. Lembra também que parou em rodas de várias pessoas desconhecidas para conversar, depois de ter entrado no mar. Nas conversas, fumava maconha e ria muito. Não sabe como foi dormir, sabe apenas que acordou com muito frio, às 9h, na praia de Copacabana, numa cadeira de praia com várias blusas até o pescoço. Duas moças e um homem com uma criança, que haviam trabalhado como ambulantes no show, a acordaram. Do show em si ela não se lembra de quase nada. Depois dessa aventura, Bruna ainda decidiu ficar no Rio de Janeiro um tempo, ao menos até o carnaval. Durante essa estada na capital fluminense, sua mãe contou-lhe que, por conta de uma portaria contra o nepotismo no serviço público, ela seria demitida do Tribunal. O resultado foi um instantâneo desespero. Tinha consciência de que, apenas com o ensino médio, não conseguiria um emprego no qual ganhasse o suficiente para sustentar as filhas e o padrão desregulado de vida que estava tendo até então. Em busca de um emprego, Bruna conseguiu trabalho na área que mais gostava de atuar. Conversou com um amigo que produzia bandas de música no sul de Minas e ele a convidou para trabalhar na produtora como secretária. Os dois viajavam por toda a região sul do estado, desde Alfenas e Três Corações até Itajubá. — Eu já tinha perdido o emprego, estava separada e triste. Nesse meio de música, da noite, de bandas, rola droga demais. Então eu ficava 24 hoAté o fundo do poço 25
ras, dias e dias só na cocaína. Cheirava demais, pouco eu nem cheirava, não gostava de cheirar pouco. E não sentia nenhum efeito colateral da droga. Não tive nem depressão, só sono. Eu inclusive comia bem, cheguei a cheirar e comer... Cheirava e fazia tudo, era uma coisa normal já. Meu organismo já havia se habituado. A produtora, bem como o emprego de Bruna, durou pouco. E quando voltou para Belo Horizonte, ela não conseguiu arrumar emprego. Fez curso de estética corporal e facial na capital para ver se conseguia algo na área, mas nada. Nessa época, em junho de 2006, três americanos amigos do irmão de Bruna, que estava morando nos EUA, vieram morar na casa dela. Para a moça, a vinda deles foi uma maravilha. Ela saía todo dia, sem precisar gastar dinheiro e sua mãe passou a sustentá-la durante algum tempo, sempre reclamando da boemia da filha. E foi justamente nesse período de curtição diária que Bruna começou a pensar em parar de usar drogas. — Queria parar com a vida porque tinha filhos pra criar. Achava que não dava pra ficar vivendo só de festas. Não estava dando lucro algum. Por esses tempos, eu ainda perdi um amigo que foi enforcado na própria casa. Essas coisas me levaram a pensar que aquela vida não era pra mim. E foi aí que ela percebeu que, apesar de conseguir manter as aparências, sem que ninguém fora do seu círculo de amizades mais íntimo descobrisse que estava usando drogas, não estava conseguindo ficar sem cheirar cocaína por muito tempo. Quando decidia ficar sem usar por um tempo, ficava mal humorada e depressiva. O fato de querer parar de cheirar cocaína e não conseguir, somado ao desemprego e a boemia constante, fizeram com que Bruna repensasse seu plano de vida. Para ela, a vida de festas infinitas representava o fracasso de sua vida. A saída que ela encontrou foi sair da capital mineira, porque ali ela conseguia entrar em festas sem precisar pagar, além de ter acesso fácil e gratuito à cocaína. A ideia prosperou quando Roberta, uma amiga de Bruna que vivia ilegalmente em Portugal, fez uma visita ao Brasil no final de 2006 e a con26 Até o fundo do poço
vidou para que trabalhassem juntas em um salão de beleza que a imigrante estava montando na Europa. Bruna aceitou de pronto. Com tudo combinado, as duas decidiram fazer uma viagem de despedida do Brasil. Mesmo passando por apertos financeiros, a mineira decidiu que antes queria conhecer Florianópolis, cidade para onde, pouco antes, haviam partido seus hóspedes americanos. — A ideia era não gastar nada com hospedagem, ficar junto com os americanos. Assim poderíamos gastar mais dinheiro com as drogas na nossa despedida dessa vida. Mas o problema veio um dia antes da viagem. Roberta teve problemas com seu passaporte na justiça e cancelou sua viagem para Floripa. — Mesmo assim, eu fui para a viagem. Estava decidida a me despedir da vida de festas e de cocaína em grande estilo. Fui tratada como rainha pelos meus amigos americanos. Ao chegar a Florianópolis, Bruna se deparou com a Lagoa da Conceição, um dos pontos turísticos mais visitados da região. Achou o lugar maravilhoso. Quando já estava há alguns dias na cidade, recebeu uma ligação telefônica de Roberta, na qual a amiga dizia ter tido “problemas com o passaporte”, o que impedia a concretização do projeto das duas de trabalharem juntas na Europa. — Fiquei desesperada, mas por pouco tempo, porque eu estava maravilhada com as belezas de Floripa. Decidi ir morar lá mesmo, acreditava que em lugar nenhum do mundo eu teria lagoa, mar e montanha tão perto. Estava no paraíso. Pensava comigo: “Nossa, isso vai ser o melhor para os meus filhos também!” Eu queria parar de usar as drogas, queria ser mais mãe. Havia perdido o emprego e o marido, estava recomeçando do zero. Quando seu plano ainda era ir morar em Portugal, a moça havia esquematizado onde as filhas ficariam. Uma com a mãe, outras duas com sogra e o ex-marido, até que ela se estabilizasse. Em Florianópolis, já começou a pensar em como poderia trazer os filhos para morar com ela. — Fui vendo escolas pra matricular a criançada. Eu achava a qualidade de vida da cidade maravilhosa. Arranjei uma moça que queira fazer uma Até o fundo do poço 27
sociedade em um salão de beleza e fechei negócio com ela. Logo que começou sua mudança para a cidade, Bruna viu que não seria fácil encontrar um lugar para alugar. Ela estava com pouco dinheiro e havia vendido muitas coisas da casa para conseguir viajar. Também gastou muito dinheiro com drogas na sua suposta despedida do vício. Bruna decidiu procurar um imóvel para morar justamente em dezembro, numa época de temporada alta do turismo em Florianópolis. Mais do que isso, a mineira resolveu carregar as malas e a filha caçula para a cidade sem mesmo ter encontrado onde morar. Carregava sua bagagem e a filha a tiracolo pelas ruas em busca de um lugar em que pudesse dormir. Numa noite sem sucesso nessa empreitada, desesperou-se e entrou em um bar, implorando ao dono um lugar para tomar banho e dormir. O proprietário do boteco se sensibilizou com a situação dela e ofereceu a sua própria casa por uma noite. Ela aceitou e foi. Ao chegar à casa do homem, viu que se tratava de um barraco na periferia da cidade. — Eu nunca tinha entrado numa casa tão feia na vida. Também desconhecia que naquela cidade, que parecia o paraíso, tivesse uma periferia tão pobre. No dia seguinte teve mais sorte e conseguiu uma casa para alugar por R$ 400 mensais. Montou a sociedade com uma desconhecida que conhecera ao procurar emprego. O combinado entre as duas era que Bruna pagaria parte do aluguel do salão e atenderia clientes. — Tinha clientela, estava indo tudo bem, mas num feriado a minha sócia me roubou. Sumiu tudo. O salão tava vazio, roubou inclusive o dono do imóvel. Nessa época, ela já morava há quase um ano e meio na cidade. Já havia trazido as duas filhas mais novas e, por todo esse período, não estava mais cheirando cocaína, mas fumava maconha ocasionalmente. — Depois que fui roubada, meu ex-cunhado foi para Floripa, ele usava muita droga e era muito amigo meu. Ele chegou e já perguntou onde tinha droga para comprar, precisava usar urgentemente. Eu disse que não sabia onde achar, ele saiu para procurar e voltou com a cocaína. Usamos juntos. 28 Até o fundo do poço
Era muito pouco, ele pagou R$ 30 na dose. Eu cheirei tudo de uma vez e não gostei, porque estava acostumada a cheirar muito. Pouco, apenas despertava minha vontade. A estada do ex-cunhado foi longa o suficiente para que o rapaz começasse a criar amizade com traficantes e a comprar droga pelo preço mais barato. — Mas a cocaína de lá é muito mais forte. Eu cheirava e percebia que estava ficando com Síndrome do Pânico. Tinha medo de tudo, até da minha própria sombra, passava mal, achava que ia morrer. Fiquei apavorada, meu coração disparava. Bruna usava a droga sempre quando as filhas estavam dormindo, à noite. Apesar disso, a filha mais velha que morava com ela, então com 12 anos, estava grande o suficiente para perceber que a mãe fumava maconha. — Quando minha filha reclamou do cheiro da maconha e do fato de eu fumar, eu disse a ela que não havia problema. Bruna comparou-se a um homem que as filha sempre viam bêbado e caído numa praia próximo à casa delas. A mãe argumentava com a filha: — Você já me viu assim, caída e bêbada por aí, brigando com todo mundo? Melhor fumar maconha do que beber, minha filha. É melhor eu fumar, porque daí eu fico tranquila. Assim, a menina se convenceu de que a maconha era melhor do que o álcool. Ao ponto de recomendar à mãe um cigarro da droga quando Bruna estava nervosa. Com a cocaína, voltou também o velho espírito boêmio da mineira, que retomou a ida a festas, mesmo sem ter emprego fixo. Numa balada, conheceu um rapaz do Rio Grande do Sul, ficou com ele, e, pouco depois, descobriu que estava novamente grávida. — Tive um rolo com ele, super rápido, e engravidei. Fiquei apavorada quando descobri. Primeiro, porque não estava dando conta nem de mim com minhas filhas em casa. Como eu ia contar pra minha família que eu estava grávida? Fora isso, nessa época eu estava louca, usava muita droga e tinha consciência plena disso. Eu queria tirar o bebê de qualquer jeito. Até o fundo do poço 29
O modo que arranjei foi usar o triplo de droga que costumava usar, para perder o bebê. Não tinha a coragem de tomar remédios abortivos, mas achava que usando drogas eu abortaria. E usou. Muitas drogas e em doses cada vez maiores. Tomou “doce” (LSD), cheirou cocaína, fumou maconha. Até chá de cogumelo ingeriu, mesmo com medo de morrer. O resultado desse coquetel explosivo foi o nascimento prematuro e problemático do bebê, com seis meses de gestação e pesando pouco mais de 600g. — Foi praticamente um aborto, mas ela sobreviveu, com problemas terríveis. Teve paradas respiratórias e uma infecção generalizada assim que nasceu, mas sobreviveu, ficou na UTI Neonatal, na incubadora. Ao ver a frágil criança, Bruna se arrependeu. Teve ressaca moral. Pediu perdão a Deus e se apegou a todas as religiões que viu pela frente, desde a Igreja Católica até evangélicas de inúmeras orientações. — O meio que eu via como possível para me tirar daquela vida era Deus. Admiti que era viciada naquele momento, em Floripa. Percebi que não conseguia parar. Eu ficava louca, travadona de droga e amarrava o terço nas mãos, começava a rezar sob o efeito da cocaína. Abria uma bíblia e começava a ler. Xingava a Deus. Cobrava Dele o fato de eu não conseguir parar de usar droga. Sem emprego e com mais uma filha para criar, ela viu-se em apertos financeiros sérios. Mas não queria pedir ajuda à mãe, que, assim como as filhas e boa parte dos amigos não-usuários de drogas, sequer desconfiava do uso contínuo, diário e constante que Bruna fazia das substâncias. O bebê recém-nascido ficou quatro meses no Hospital Universitário de Florianópolis. Lá, Bruna aproveitou o hotel para mães que tiveram filhos prematuros para aliviar sua crise financeira. Nesse tempo, ela parou de usar drogas e mandou a filha mais velha para ficar com a avó, em dezembro. A intenção da mãe era enviar as duas meninas, mas a menor era muito nova para embarcar sem responsável e acabou ficando na capital catarinense, morando junto com a mãe no hospital. Para sustentar a filha, Bruna, que sempre fora orgulhosa e patricinha, 30 Até o fundo do poço
passou a fazer lanches naturais e a vendê-los na praia. Quando a mãe ligava perguntando como estava, respondia que estava bem. — Tinha dia que eu dizia que estava tudo ótimo, mas na realidade não tinha nem R$ 0,50 para comprar um pão para minha filha comer. Estava passando fome. Quando a filha teve alta da UTI Neonatal do hospital, a mãe de Bruna foi para Florianópolis visitá-la e descobriu a situação precária da filha. Ajudou-a alugando um apartamento para ela, perto do centro. Logo no início do ano letivo, em 2008, a filha mais velha voltou de Minas Gerais para estudar. Bruna sempre fora bonita. Chamava a atenção por sua beleza. Ainda que maltratada pelo uso contínuo – e certamente abusivo – de drogas, esteticamente continuava sendo uma bela mulher. Provavelmente, isso a ajudou a arranjar um emprego numa loja da franquia Chilli Beans. A rede de lojas produz óculos de sol e tem como o público-alvo de seus produtos jovens da elite. Os produtos são caros. Em média, um óculos da marca custa cerca de R$ 130. A rede divulga seu nome patrocinando e apoiando festas e festivais de música eletrônica, desde raves e PVTs (abreviatura de private, rave de pequeno porte) até festivais maiores. Muitas dessas lojas funcionam como pontos de vendas de ingressos para essas festas. O centro da cidade, onde ficava a loja na qual Bruna arranjou o emprego, concentra boa parte das favelas da cidade, o que reacendeu o vício na garota. — Eu andava uns três quarteirões e já estava em uma boca. Mais três quarteirões e estava em outra. O antro da venda de drogas era ali onde eu estava. Não deu outra, passei a usar de novo, assim que minha mãe voltou para Minas. O resultado foi, novamente, o desemprego. Bruna tinha vergonha da situação em que se encontrava. Mais do que isso, queria dar às filhas uma boa condição de vida, ao menos semelhante àquela que havia tido na infância. Precisava ganhar dinheiro a todo custo. O modo que encontrou foi vender o próprio corpo. Virou garota de programa. Começou entre junho Até o fundo do poço 31
e julho de 2008. Estava revoltada porque nos empregos que conseguia, passava o dia inteiro trabalhando e ganhava no máximo cerca de R$ 500. Havia uma boate a dois quarteirões de onde estava morando, uma das boates de prostituição de luxo mais famosas da região. Um dia, com a filha menor chorando de fome e sem ter o que dar para o bebê, decidiu que ganharia dinheiro, muito dinheiro. Foi até a boate e conversou com o gerente. Chorou muito enquanto falava: queria saber como era trabalhar ali, mesmo sem nunca ter se prostituído, queria tentar. Ao saber o quanto poderia ganhar perguntou de imediato. — Quando posso começar? — Hoje, venha à noite para ver como é. Se você achar que dá, fica. Foi ver como era e achou que não era nada de mais. — Era uma boate super chique, inclusive. O programa mais barato era R$ 500. Além disso, as garotas ganhavam comissão das bebidas que faziam o cliente tomar – diz Bruna, que chegou a tirar R$ 1.000 em um dia. Mas, no ambiente, a droga era comum e Bruna passou a usar junto com as outras garotas de programa. Em casa, para a filha maior, ela dizia que havia arranjado um emprego muito bom, trabalharia com eventos. — Para minhas filhas o trabalho era ótimo. Tudo o que precisavam, eu dava. Sabia que ganhava bem, mas não tinha noção de quanto. Tudo o que ganhava também gastava. A média de rendimento era R$ 300 por noite. Desses, havia dias em que cerca de R$ 200 ficava na boate com o gasto em cocaína. — Nessa orgia, eu conheci um rapaz que acabou virando meu amigo. Certa vez, me abri pra ele e disse: “Olha onde eu estou. Vim para cá para melhorar de vida, estou fazendo programa e cheirando cocaína. Em vez de melhorar, eu estou é piorando cada vez mais. Eu quero e preciso sair dessa vida”. A vida de garota de programa, apesar de lhe render uma vida confortável, dava a ela uma sensação de vergonha de si própria. Bruna estava 32 Até o fundo do poço
infeliz com o rumo de sua vida, estava triste. Depressiva, ela começou a faltar ao trabalho, pois não queria mais levar o estilo de vida que estava tendo. Ao abrir-se com o novo amigo, o rapaz a aconselhou a sair da boate, juntar um dinheiro e voltar a fazer sanduíches naturais para vender nas praias da cidade. O rapaz inclusive propôs que os dois montassem o negócio juntos. Bruna mais uma vez não pensou duas vezes. Aceitou a proposta e montou o negócio com o amigo. Os dois procuraram um dono de uma barraca de praia que fornecia sanduíches a outros comerciantes da região e fizeram uma parceria com o homem. Bruna saiu do apartamento alugado no centro e foi morar com amigo e as filhas na Lagoa da Conceição. Teve início aí um relacionamento. — Mas eu não amava ele, servia mesmo era como uma muleta pra mim. Primeiro porque não usava drogas e me impedia de usar. Depois, porque era apaixonado por mim e pela minha filha; e em terceiro lugar, porque eu não precisava fazer nada, ele fazia tudo por mim, tanto sentimentalmente como materialmente. Eu gostava muito dele, mas não amava. Só depois eu enxerguei isso. De início, o novo empreendimento do casal fez sucesso. Conseguiram fazer uma clientela fixa rapidamente e o rapaz investiu dinheiro na compra de equipamentos para aumentar a produção e expandir os negócios. Tudo ia bem. Mas, em janeiro de 2009, fortes chuvas castigaram boa parte do estado de Santa Catarina, causando enchentes que devastaram algumas cidades. Ao todo, 135 pessoas morreram vitimadas pelos alagamentos no estado e outras 78 mil ficaram desalojadas ou desabrigadas. O prejuízo material estimado para o turismo do estado foi de R$ 120 milhões. — Muita gente perdeu tudo, as barracas foram destruídas. Perdemos tudo, perdemos toda a produção. Aí voltei para as drogas. Mas não tinha dinheiro para comprar cocaína, estava falida. Fui à boca quase sem dinheiro no bolso ver o que poderia arranjar. Ao ver o desespero da moça em conseguir droga, um traficante da Até o fundo do poço 33
favela iniciou uma conversa com ela: — Pó é muito caro mina, é ruim demais. Usa pedra, vira! — E como é que faz isso? – perguntou Bruna. Ali mesmo, na boca de fumo, o traficante a convidou para entrar em seu barraco. Ele a ensinou como usar o crack e serviu para ela uma pedra. Bruna fumou. E nunca mais usou outra droga. Achou o crack “maravilhoso” e passou a ter “nojo” da cocaína, que lhe causava tantos efeitos colaterais. — Senti a melhor sensação do planeta. Não tive paranoia nenhuma, nem medo ou pânico que estava tendo com a cocaína. O crack não só substituiu como superou todas as sensações que já tinha tido usando cocaína. Fora que o custo-benefício era muito maior. Bruna tinha medo de morrer com a cocaína, pois passava mal toda vez que usava a droga. Nas primeiras vezes com o crack, a moça achava que “ficava normal, mas elétrica”. Começou a usar só crack, quase todos os dias. Para o namorado, ela tinha o vício em cocaína. Mais uma vez, ela escondeu de todos ao seu redor o que estava acontecendo. Arranjava pretextos para sair de casa e usar a droga. Saía e não voltava, com a droga perdia a noção. — É uma onda. Se você der um tiro, um teco com a cocaína, acaba e dá uma hora de ansiedade para querer mais. Deita na cama e fica revirando de um lado para outro. Não consegue pensar em mais nada além de conseguir mais droga. O corpo e a mente necessitam daquilo urgentemente. Com o crack, não parava a fissura, porque você não para de fumar, quer fumar continuamente. De início, eu achei bem melhor. O crack – por ser mais barato do que a cocaína – é uma das drogas mais utilizadas por pessoas das classes média baixa e baixa da população. De fato, sabe-se que a maioria dos usuários da droga é pobre. Entretanto, assim como Bruna, algumas pessoas da classe média viciadas em drogas como a cocaína encontram no crack uma opção mais barata de sustento do vício. A droga, inclusive, tem uma ação mais rápida e intensa que ou34 Até o fundo do poço
tros entorpecentes estimulantes. Estima-se que do momento em que se fuma, há um intervalo de menos de 20 segundos para que o usuário passe a sentir os efeitos estimulantes da droga. Bruna andava com quem tinha crack, geralmente traficantes de favelas, ‘noias’ e mendigos. Até então, ela usava drogas na companhia de amigos pertencentes a classes sociais elevadas ou em baladas. A partir do crack, passou a conviver com moradores e frequentadores de favelas, da periferia da cidade. — Os usuários favelados de crack me achavam o máximo. Eu só andava bonita, de salto, maquiagem e arrumada. Sempre andei assim. Para sustentar o vício, eu comecei a vender bolsas e coisas caras que eu tinha. E como o dinheiro rendia, era bastante, dava para convertê-lo em muita droga, quantidades que pouquíssimos ali compravam. As pessoas compravam R$ 10 ou R$ 5 de droga, eu comprava R$ 100, e bancava todo mundo. Então, quando eu ficava sem, todos os que tinham a droga queriam me dar. Eu era a rainha da pedra. Mas rapidamente o uso contínuo da droga intercalou as sensações boas do uso do crack com a degradação do corpo da moça. Bruna chegou a ficar cinco dias sem tomar banho, andando por ruas de favelas, sem comer nada, só fumando crack. Chegou até a tomar banho em mar poluído. Além disso, passando a maior parte do tempo na ‘noia’, passou a viver uma rotina que jamais havia experimentado. Uma das coisas que a marcou foi ver uma briga de casal em que a mulher jogou com força uma pedra na cabeça do marido, quase matando o homem. — Eu estava no meio deles, dormia lá. Estava numa realidade que não era minha. Mas achava ao mesmo tempo bom, porque, pela primeira vez na vida, estava convivendo de fato com pessoas que viviam em um mundo paralelo. Um mundo que ninguém enxerga. São pessoas excluídas da sociedade, ninguém vê e nem quer ver. Quando você está nessa situação, as pessoas passam do seu lado e ninguém olha para você. Várias vezes eu estava na rua fumando pedra e passavam pela rua, do meu lado, pessoas que eu conhecia e nem me viam, nem olhavam para mim. Eu achava ótiAté o fundo do poço 35
mo porque ninguém estava me reconhecendo, mas percebia o que vive quem passa por isso no dia-a-dia: indiferença, descaso, nojo. Quando voltava para casa, Bruna se via no espelho e via refletida uma imagem que nem de longe lembrava a bela mulher que fora. Estava suja, imunda, magra, com olheiras fundas que pareciam emoldurar seus olhos. O namorado tentava, em vão, tirá-la do vício. Para ele, a namorada era viciada em cocaína, ele não sabia que Bruna estava usando crack. Quando a moça resolveu contar que usava a substância, estava desesperada por ver o estado de dependência a que estava chegando com o uso da droga. Disse ao parceiro que queria voltar para a capital mineira. E voltou, com as filhas e o namorado. A mãe, que até então de nada sabia, ficou feliz pela volta da filha, até encontrá-la num estado deplorável. — Eu estava pele e osso. A desculpa que dei para minha família foi a de que eu estava doente, que estava com um problema nos pulmões, que me debilitava. Meu namorado me acobertava. Eu o ameacei para que ele mentisse junto comigo e o proibi de contar à minha família tudo o que estava acontecendo. A mãe acreditou e alugou uma casa para a família da filha. O padrinho de Bruna montou a casa para ela. Nessa volta para sua cidade natal, Bruna quis se afastar de todas as pessoas com as quais havia convivido a vida inteira. — Porque eu sabia que as pessoas com quem tive amizade a vida inteira abominavam o crack. Aquilo era coisa de gente da favela, da periferia. E eu do jeito que estava também tinha vergonha de aparecer na frente deles. Cheguei a pesar 46 kg, meu peso normal era 60 kg. Comecei a querer cheirar cocaína para voltar ao costume anterior, mas não conseguia. Tinha que ir à favela porque não podia aparecer na casa dos meus amigos como eu estava. Na favela, a vontade mesmo era de fumar pedra. Mas eu não tinha onde usar. Em casa eu não podia usar, na rua perto do bairro era difícil, poderia passar alguém conhecido e na casa dos meus amigos eu poderia usar cocaína, tomar doce ou fumar um ‘beck’, crack não. Comecei a ficar na favela, favela brava mesmo, tipo a cracolândia de Belo Horizonte. 36 Até o fundo do poço
Ficava uns cinco dias direto lá. Na mesma fossa que eu estava em Florianópolis eu fiquei em BH. Mas, em Minas, o risco de morrer que eu estava correndo era bem maior, e eu tinha consciência disso. Eu cheguei a ficar em um lote abandonado escondida fumando pedra por dias. Fiquei em becos escuros, sempre escondida nos lugares mais horríveis, para não ter possibilidade de ter gente conhecida por perto. Presenciei tiroteio, presenciei assassinatos, fiquei no meio de quem estava foragido da polícia. Não me importava, desde que tivesse pedra para eu poder fumar. Mas ao chegar em casa, Bruna sentia-se muito mal. Mais do que fisicamente, moralmente. Sabia que os erros que estava cometendo e que tinha cometido durante toda a vida eram grandes e tinha vontade de mudar, de acabar com aquilo. Arrependia-se de ter começado a usar drogas. A ressaca moral tomava conta dela. Ela tomava um banho, mas não se sentia limpa, sentia culpa, nojo. O choro vinha de maneira intensa, longa e compulsiva e a deixava deitada na cama por dias e noites. Parava de chorar quando o sono vinha. E quando acordava já se sentia tomada por uma vontade de fumar crack. E novamente sabia onde ir. E não parava. De março de 2009, quando voltou para Belo Horizonte, até decidir que precisava abrir o jogo com a família, se passaram cerca de três meses. Aí, Bruna contou para a mãe o porquê das fugas repentinas de casa. Ela chegava ao ponto de ficar um dia em casa e uma semana fora. O namorado, já empregado, sustentava o vício de Bruna e disse a ela que estava no limite de suas forças, não aguentava mais. Na conversa que teve com a mão, ela contou que cheirava cocaína continuamente desde os 15 anos e que já havia usado uma série de outras drogas. Disse quase tudo, mas, mais uma vez, omitiu o uso do crack. — Pedi para me internarem sob o pretexto de que eu era viciada em cocaína, sem contar que eu estava na fissura mesmo pela pedra. Aquele pedido foi o fim para a minha família. Foi um choque para minha mãe, para o meu pai, para a família inteira, nunca houve um caso assim. A mãe então lhe disse: — Sempre achei você louca mesmo. Pelo menos agora, Deus me deu Até o fundo do poço 37
uma resposta do porquê. Eu estava achando que você tinha um problema mental, que não era normal. Bruna se internou numa clínica com orientação religiosa católica e terminou o namoro. Ficou lá menos de cinco meses. Brigava muito com as pessoas, sentia muita vontade de usar droga novamente. Tinha crises de abstinência, com dores no corpo e pesadelos. Sentia vontade de usar crack. Das outras drogas, nem ao menos se lembrava. Mas quando a mineira saiu da clínica, encontrou um cenário diferente dentro de casa. Sua mãe passara a frequentar o Amor Exigente, um programa voltado aos pais de usuários e que recomenda rigidez no tratamento dos adictos. Quando saiu da clínica, Bruna esperava encontrar uma festa para ela. Não foi o que achou. Não conseguiu administrar as exigências da mãe. Confrontava a mãe. Brigava bastante, mas não adiantava, a cobrança de disciplina era irredutível. Como forma de tratamento, Bruna passou então a frequentar um grupo de Alcoólicos Anônimos, mesmo sem nunca ter tido problemas com a bebida. Achava que era um grupo mais sério do que o grupo dos Narcóticos Anônimos, que frequentara por um curto período de tempo. Mas se demorasse dez minutos a mais do que o usual nas reuniões, Bruna encontrava a mãe desolada em casa. “Filha, não faz mais isso comigo não, desse jeito você vai me matar aos poucos”, implorava. Bruna via que a mãe sentia emoções de frustração e de angústia bem semelhantes às que ela sentia quando acordava e sabia que ia usar drogas. Sensações que ocasionavam uma série de distúrbios físicos, como vômito e dor de barriga. Para impedir que a filha usasse drogas, a mãe de Bruna a proibiu de sair de casa para qualquer outra coisa que não fosse reunião dos AA. Com a liberdade podada, Bruna se sentiu novamente como se fosse a adolescente de 15 anos que tinha hora para voltar para casa. “Ou você segue as regras da minha casa, ou você vai embora daqui”, sentenciava a mãe ao ouvir reclamações da filha. E ela saiu. Pegou as malas e largou a filha na casa da mãe. O amigo, 38 Até o fundo do poço
com o qual ela já tivera vários relacionamentos relâmpagos, relutou em deixá-la morar em sua casa, mas acabou consentindo. Os dois eram amigos desde a escola, e, sempre que estavam solteiros, ficavam juntos. O rapaz morava em casa com os pais e um irmão, que já havia sido preso anteriormente por tráfico de drogas. Ciente da passagem de Bruna por uma clínica de reabilitação de viciados, o amigo achava que a mineira era viciada em cocaína, mas desconhecia o vício dela em crack. Quando Bruna chegou a casa viu que o tal irmão de seu amigo estava debilitado pelo uso do crack. – A família estava desestruturada. Pensei na hora: “Onde eu vim parar?” Com o vício tão perto, Bruna não resistiu. Esperava todos dormirem, ia para os fundos da casa, onde ficava o quarto do irmão do amigo e usava junto com ele. O amigo, que rapidamente havia sido promovido à categoria de namorado, de início, não percebeu. Para continuar a usar o crack sem que ninguém percebesse, Bruna elaborou um plano. Mentia para o namorado dizendo que ia à casa da mãe e ia para a favela usar a droga. Depois, arranjava um modo de tomar um banho na casa da mãe, a título de visita, e voltava para a casa do namorado. Mesmo sem manter contato com a família de Bruna, o rapaz percebeu o uso de drogas da namorada pelo físico da moça, que voltara a definhar de maneira rápida com o uso contínuo do crack. Ao perceber isso, ele deixou bem claro: — Você tem que sair da minha casa agora. Eu gosto muito de você, mas não tem como a gente ficar junto assim. Com esse ultimato, a moça resolveu novamente tentar o tratamento. Entrou para uma outra clínica. Mas antes, resolveu abrir o jogo com a família, contou tudo sobre seu vício e se internou. — Eu sabia que estava morrendo. Pensava na minha mãe, nos meus filhos. Eu me vi como o irmão do meu namorado, que, pelo menos pela aparência, não tinha jeito mais. Ela entrou na clínica e lá prosperou de maneira rápida. Aprendeu a cozinhar e, numa espécie de laborterapia, passou a fazer doce de leite para Até o fundo do poço 39
vender. Em pouco tempo, passou a coordenar certas atividades, ganhando responsabilidades. Não teve crise de abstinência nesse período, embora tenha tido vontade de usar o crack. Aos 31 anos de idade, Bruna quer mudar pra melhor. Sonha em superar as dificuldades impostas pelo vício crônico, em controlar sua doença e em criar suas filhas de um modo mais decente. Seu maior desejo é fazer parte dos cerca de 10% de usuários de drogas que procuram tratamento para deixar o vício que conseguem efetivamente deixar de usar drogas.
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Pedras, grades e esperança Ele precisava de dinheiro, urgentemente! Sentia que sua vida dependia daquilo, não podia mais esperar. Andava pela rua alucinado, tentando pensar em um modo de conseguir alguma grana rapidamente, ainda que fosse uma quantia pequena. Entrou numa loja quase correndo, e, na mesma velocidade com que aceleravam as batidas de seu coração pegou a primeira coisa que viu pela frente e fugiu. Assim que saiu da loja, ouviu os gritos de “pega ladrão”. Para seu azar, e para a sorte do dono da loja, uma viatura da polícia militar passava naquele exato momento no local, e, ao ouvir os gritos das pessoas, imediatamente iniciou a perseguição, que foi rápida e eficaz. O delinquente foi preso, e a mercadoria foi devolvida ao dono. Essa foi a primeira prisão de Paulo, aos 18 anos. *** Paulo sempre fora um bom aluno, católico, coroinha da igreja. Caçula de três filhos, era membro de uma família da classe média. O pai era operário de uma indústria e sustentava a casa. A mãe tinha formação universitária, mas deixou de exercer sua profissão para se dedicar a cuidar da casa e dos três filhos. A renda da família sempre fora suficiente para que Paulo pudesse estudar em escola particular. O estudo era coisa que seus pais achavam importante, “investir na formação dos filhos é retorno garantido”, diziam. Na escola, Paulo era aplicado, mas tímido. Aos 13 anos, já estava na puberdade, sentia atração pelas colegas de sala e percebera que, para chamar a atenção delas, não podia ser CDF, ou melhor, era melhor que fosse rebelde. Isso o influenciou a fazer amizades com um grupo de amigos mais descolado e ousado. Eram rapazes de diversas idades, cheios de estilo, que faziam sucesso com as meninas da escola por adotarem o estilo bad boy. Matavam aula constantemente, andavam de skate, vestiam calças e camisetas largas com estampas grandes, usavam bonés e falavam quase um dialeto do português, de tantas gírias incorporadas ao vocabulário. Até o fundo do poço 43
Pouco a pouco, o rapaz foi adotando aquele estilo, e passou a matar aulas com certa frequência para ir com os novos amigos à pista de skate de um bairro de classe alta da cidade. Lá ele podia ficar com as meninas que quisesse com facilidade. Nessas saídas clandestinas da escola, muitos dos jovens rapazes fumavam maconha, o que, segundo eles, deixava-os mais relaxados e dispostos. Numa dessas saídas Paulo resolveu provar um baseado. Pediu a um dos amigos, fumou e depois voltou à aula. Gostou imensamente da experiência. Não sentiu mal-estar nem tampouco viciado por ter usado a maconha. Muito pelo contrário, se sentia bem, relaxado, desestressado e feliz, sensações diferentes daquelas que propagandas antidrogas veiculadas na TV mostravam. Passou a considerá-las uma mentira e adotou o hábito de fumar maconha quase que diariamente. Sua vida havia mudado. De bom aluno tímido a membro de um grupo de jovens rebeldes, ele conquistou mais meninas, arranjou mais amigos, ficou mais popular e se sentia bem mais feliz. Por outro lado suas notas diminuíram, mas não o suficiente para que ele se preocupasse. Talvez por isso, achou que era lucrativo não apenas manter, como intensificar a sua participação no grupo. Ali, pouco a pouco, os jovens passaram a usar outros tipos de droga, bem mais potentes e perigosas do que a cannabis, como cocaína e crack. Paulo experimentava as drogas sempre que aparecia alguma novidade. Da cocaína gostou o suficiente para dar um “tiro” vez ou outra. Cheirou também cola de sapateiro três vezes, mas achou o efeito “meio esquisito” e deixou a substância de lado. Ao terminar o ensino médio, aos 17 anos e sem nunca ter repetido uma matéria, Paulo experimentava todas as drogas que lhe oferecessem. Tinha a certeza de que não se viciara em nada. Na busca por sensações novas e prazer ilimitado como estilo de vida, ele conheceu o crack, uma das drogas mais potentes e prejudiciais à saúde que se pode encontrar no país. O crack consiste em um composto bruto da cocaína antes de se tornar pó. É uma droga fácil e barata de produzir por ser derivada da sobra do processo de refino da cocaína. Geralmente, a substância é vendida a um preço bem inferior ao de outras drogas e é encontrada em forma de pe44 Até o fundo do poço
quenas pedras, que são fumadas e fazem efeito no organismo de maneira rápida. No momento em que a fumaça da substância é inalada, demora cerca de 12 segundos para atingir o sistema nervoso central do usuário, provocando efeitos de euforia e agitação. O sucesso do entorpecente no Brasil não é recente. Há cinco anos, o Ministério da Saúde estimava que cerca de 380 mil pessoas usavam o crack cotidianamente. Em seu último levantamento, realizado em 2010, o órgão aumentou esse número para 600 mil. O crescimento, considerado alto pelo ministério, motivou o lançamento de uma campanha publicitária nacional de prevenção ao uso da droga em dezembro de 2009. Com spots em rádios, comerciais na TV e divulgação em mídias sociais, o alvo das propagandas contra o uso do crack foram os jovens entre 15 e 29 anos, faixa etária que concentra a maior parte dos usuários da droga. Apesar de não ter conhecimento sobre os efeitos do crack, Paulo já tinha contato indireto com a droga. Na época em que completou seus 18 anos, costumava usar o tempo livre para andar com os amigos mais velhos da vizinhança, que usavam droga. O principal divertimento da turma era ir a bares frequentados por universitários. O objetivo do grupo era, quase sempre, flertar com mulheres e, principalmente, beber álcool até passar mal. Na volta desses passeios era comum que os amigos da turma fumassem pedras de crack. A exceção era Paulo. Mesmo tendo a curiosidade de saber qual era o efeito da substância, o rapaz tinha medo do mal que a droga poderia causar à sua saúde. Não via como errado usar a droga, mas achava que os amigos ficavam alterados demais sob o efeito da pedra. Se experimentasse, pensava, poderia ficar daquele jeito estranho, tinha medo do que poderia acontecer. Mas em um desses dias de farra, ele e os amigos foram a um boteco no centro da cidade com o objetivo de paquerar. Voltaram novamente bêbados de madrugada, e como já era o costume, decidiram fumar crack no caminho até o bairro onde moravam. Ali, depois de ter recusado por várias vezes a oportunidade de experimentar a droga, Paulo sentiu a curiosidade bater mais forte. Até o fundo do poço 45
— Me dá um pouco desse negócio aí que eu quero fumar – pediu ao amigo, que estava acendendo a pedra. Da primeira vez em que fumou o crack não gostou da sensação, apesar de ter adorado a velocidade com que fazia efeito. — Eu achei aquela loucura meio ruim, eu ficava meio antissocial e sem vontade de conversar com ninguém quando usava. Ficava com vontade só de ficar fumando aquilo ali. Por ter achado os efeitos da pedra ruins, Paulo continuou usando a cocaína esporadicamente durante um tempo. Só foi usar o crack novamente três meses depois da primeira experiência. E sua vida continuava numa rotina acelerada e próspera. Arranjou um emprego bom como auxiliar administrativo em uma fábrica multinacional. Também passou no vestibular para Administração de Empresas numa faculdade privada da cidade. Com seu relativo sucesso, gabava para si mesmo de ser capaz de manter o controle sobre uso de qualquer tipo de droga. Não era viciado, e jamais seria. Até mesmo conseguia manter uma boa aparência sem que ninguém soubesse que ele usava drogas vez ou outra. Estava feliz e conseguia levar a vida sem problemas. — Eu sabia que existia o risco do vício, mas, como toda a turma de adolescentes que estava na minha situação, eu tinha a certeza de que era bobagem, mentira – relata Paulo. Na faculdade, Paulo fez amizade rapidamente com a “turma do fundão”. Acostumado a levar a vida de estudante como uma brincadeira e a vida acadêmica em segundo plano, ele sentiu que seria difícil manter o sucesso da sua rotina, mas decidiu tentar levar a velha rotina enquanto desse para passar de ano e trabalhar. Paulo estava feliz com o emprego que conseguira porque, além de ser simples para ele, tinha afinidade com a área em que atuaria ao se formar na faculdade e tinha uma boa probabilidade de efetivação. Além disso, o salário inicial era alto, e, como não precisava pagar a faculdade, sobrava dinheiro para comprar maconha e ir às festas que quisesse. Feliz com o que estava recebendo, Paulo gastava e esbanjava o dinheiro 46 Até o fundo do poço
em festas e drogas. Inicialmente, a farra tinha data marcada para acontecer, era sempre aos fins de semana, mas depois foi tomando também os horários de aula. Mas antes mesmo disso, ele já faltava com certa frequência às aulas na faculdade. Como saia do trabalho às 17h30 e antes de ir à faculdade ia para casa, tinha pouco tempo para chegar antes do início das aulas, às 19h. Esse ritmo acelerado e frenético de vida, associado às noitadas e noites mal dormidas, resultou em um desempenho ruim no curso. Faltava com frequência às aulas e sentia-se sempre cansado. Aos poucos, ele foi se afastando dos amigos da faculdade e dos compromissos da graduação. Apesar de conversar com a maioria dos colegas de faculdade, dizia que seus “verdadeiros amigos” não eram os da universidade, mas sim aqueles com quem saía para badalar e fumar maconha. — Na universidade, eu tinha vários amigos de ir pra balada, pro bar. A gente se reunia direto no bar que tinha perto do campus. Mas eu não ficava muito com eles porque tinha a minha turminha do bairro, que usava droga direto. De vez em quando a galera saía de uma aula mais cedo e eu ia pro bar com eles, mas, como eu usava droga, queria sair de lá logo para ir ficar louco com os amigos da rua de casa. Nesse período, para aliviar o estresse da rotina, dentre as ações que ele mais fazia diariamente estava fumar maconha. O hábito era para ele uma válvula de escape que evitava o sentimento de preocupação e o deixava bem humorado e mais relaxado. E a ação começava logo pela manhã, quando, depois de acordar, acendia o baseado. Fumava sempre, antes de jogar bola, antes de ir namorar, estudar ou ir se encontrar com os amigos. — A maconha pra mim era hábito, não deixava de ser um vício, mas não me incomodava, eu levava a vida até melhor com a maconha. Já o uso da cocaína variava. Como era cara, Paulo usava a droga apenas em ocasiões mais festivas e comemorativas, como festas e churrascos entre amigos. Quanto ao crack, três meses depois de tê-lo consumido pela primeira vez, o medo de Paulo com relação aos efeitos da substância desapareceu e deu origem à certeza de que a droga, apesar de mais forte que Até o fundo do poço 47
todas as que já havia experimentado, não lhe fizera mal. Mesmo com a ajuda da maconha, o sentimento de cansaço ao final do dia era forte, precisava tomar algo mais sempre. E a prioridade em sua vida eram as baladas. — Eu queria sair, estava nesse mundo de balada, de festa, estava começando a pegar a mulherada. Estava gostando, e, na faculdade, os professores começaram a passar muitos trabalhos para se reunir com o pessoal da sala e fazer em grupos. Esses grupos geralmente se reuniam nos finais de semana. Eu não fazia os trabalhos nem ia às reuniões dos grupos, queria me divertir nos meus finais de semana, sem trabalho. E isso contava muitos pontos na nota. Aí, ao invés de eu ir fazer trabalho, eu saía pra gandaia. O resultado da rotina pesada e da prioridade às festas apareceu quando ele, para ter mais ânimo e tempo para sustentar seus gostos, decidiu trancar a matrícula da graduação. — Não desisti por conta das drogas, nem porque não gostava. Era muita correria conciliar a rotina de trabalho com as aulas e com a gandaia. Eu chegava em casa, tomava banho e ia pra aula. “Sou muito novo, tenho mais é que curtir” era o pensamento dominante na turma com a qual andava e usado por Paulo para justificar a saída da faculdade. Apesar de não terem gostado da decisão do filho, os pais de Paulo não o obrigaram a continuar o curso. Tendo mais tempo para descanso, seria natural que, depois de desistir dos estudos, o rapaz descansasse mais tempo. Mas longe disso, a rotina de festas, churrascos, partidas de futebol e bares aumentou. Quase na mesma velocidade, crescia também o consumo de drogas de Paulo. A maconha não era considerada por ele como droga mais, era como o cigarro dos fumantes. Junto com os baseados, ele e seus amigos também fumavam pedras de crack para alternar as sensações relaxantes e estimulantes. Como a maioria dos usuários que usam drogas continuamente, também acreditava ter domínio sobre a sua vontade de usar o crack. Inicialmente, ele usava apenas nos fins de semana, mas rapidamente foi aumentando a quantidade de droga consumida e diminuindo o intervalo entre 48 Até o fundo do poço
as vezes que usava. Em 2003, o contrato de Paulo, de um ano, terminou e não foi renovado. Desempregado e sem ter poupado o dinheiro que ganhava, seu alívio foi arranjar um novo emprego rápido. Foi contratado por uma fábrica de automóveis com um salário equivalente ao que ganhava no emprego anterior. No novo serviço Paulo mostrou-se menos eficiente. Com a evolução do uso do crack, ele, juntamente com boa parte de sua turma de amigos, passou a fumar pedra quase que diariamente. Provavelmente, nessa época eles já tinham desenvolvido a tolerância à droga e precisavam consumir doses cada vez maiores da droga para sentir os mesmos efeitos de antes. Vivendo boa parte dos seus dias sob o efeito do crack e da maconha, Paulo começou a faltar ao serviço da fábrica e foi demitido antes de completar um ano de serviço. — Eu comecei a perceber que estava tomando um rumo errado quando perdi o emprego por causa da droga. Perdi até namorada, porque não estava mais conseguindo dar atenção pra ela. Aí sim, saquei que tava mal. E dessa vez o desemprego pesou ainda mais, pois além de não ter dinheiro guardado, Paulo não conseguia ficar nenhum dia sem usar drogas e precisava financiar o vício. É errado dizer que Paulo não conseguira parar de usar drogas, pois até aquela época ele jamais havia tentado parar, pois achava que a vida rendia mais e era melhor quando era vista sob o efeito dos entorpecentes. E nesse período, ele estava apenas começando a sentir algumas das consequências do uso contínuo e intenso. Mas o rapaz não ficou desempregado por muito tempo. Logo que voltou procurar emprego, conseguiu uma vaga numa outra indústria, para trabalhar como operário. Tinha que entrar às 6h na fábrica. Para isso, acordava diariamente às 4h, e sabia que não conseguiria conciliar o trabalho com as festas. A desculpa que dava para si próprio para não tentar parar com as drogas era a de que precisava fumar crack para conseguir se manter acordado no serviço. Até o fundo do poço 49
E realmente conseguiu inicialmente, mas o desgaste da saúde veio rápido, como uma consequência do uso de drogas, de noites mal dormidas e de uma má alimentação. — Eu ficava varado de droga a noite toda. Ia pro trabalho podre. Não dormia quase nada e ficava muito cansado. Ao invés de parar de fumar pedra, pedi demissão do trabalho dizendo que eles me exploravam muito. Dessa vez não foi fácil conseguir emprego novamente. Em parte porque ele não queria mais trabalhar e em parte porque não conseguia ficar muito tempo em um mesmo trabalho. Tinha vontade apenas de fumar crack. Sem emprego, sem energia, sem namorada, sem dinheiro e usando cada vez mais droga Paulo se deu conta, em 2005, de que não tinha mais controle sobre si próprio. A família até então nem desconfiava do rumo tomado pelo seu salário, mas passara a desconfiar da rotina do rapaz. E da desconfiança à certeza passou-se pouco tempo. Isso porque, para conseguir dinheiro para sustentar o vício, ele começou a roubar objetos da própria casa para convertê-los em porções de crack. Quando chegou a esse ponto e a família descobrira o seu problema, Paulo quis parar de usar droga, mas não conseguia. Frequentou um grupo de Narcóticos Anônimos durante cinco meses, mas não progrediu na intenção de deixar o vício. A mãe chegou a pedir que ele se internasse, mesmo sem saber qual era a droga que o filho consumia, mas Paulo refutava essa ideia. Chegou à conclusão de que o ambiente no qual vivia facilitava o uso. Precisava sair da cidade se quisesse sobreviver sem o crack. A solução encontrada foi fugir de onde tinha acesso fácil à droga. Resolveu morar durante um tempo na casa de parentes em Minas Gerais. — Queria ver se eu conseguia ficar limpo se ficasse longe do lugar em que usava droga. Fui morar com um primo em uma pequena cidade do sul de Minas. E lá, no pacato município rural, com população menor que 20 mil habitantes, conseguiu arranjar um serviço e começou a namorar uma menina que conhecera na cidade. 50 Até o fundo do poço
— Estava conseguindo ficar de boa, tranquilo. Mas eu fiquei sabendo que tinha gente vendendo droga em uma cidade vizinha. Fui lá pra comprar um “beck”. Quando estava voltando com a droga, foi abordado pela polícia, que o revistou e encontrou a porção da droga. Foi liberado pela polícia, mas mesmo sem ter sido preso, o episódio foi o suficiente para que a notícia do feito se espalhasse. — Fiquei bem queimado na cidade. O povo lá não me aceitava mais, o pessoal me olhava mal na rua, então resolvi voltar pra casa. Larguei o emprego novo e a namorada nova. Voltou com um sentimento de fracasso para casa. Estava mal por ter falhado na tentativa de levar uma vida normal, sem drogas. Os resultados dessa tristeza foram a revolta e a vontade de se afundar no crack. Tinha voltado para casa sem trabalho, sem dinheiro e a família recusava-se a sustentar seu vício. Começou a roubar pessoas e lojas para conseguir dinheiro suficiente para fumar pedra. — Eu fazia de tudo para conseguir mais droga. Furtei lojas e pessoas no começo, depois arranjei uma arma e comecei a assaltar com uns amigos, “noias” também. Paulo, que sempre fora criado em uma família cristã rígida sentia-se mal por estar assaltando, achava-se desonesto, e só conseguia praticar os crimes sob o efeito das drogas. Essa perda total de senso crítico é uma das características da dependência, fortemente presente em viciados no crack. Os efeitos de prazer e euforia que a droga tem sobre os usuários duram, em média cinco minutos por pedra fumada, e, quando passam, dão lugar às sensações de medo, depressão e angústia. Esses sentimentos fazem com que surja a fissura, necessidade que o usuário sente de fumar mais crack. Sob o efeito da droga, escondia-se no meio de matagais, em casas abandonadas, ficava recluso. — Nessas horas eu só pensava em como conseguir mais droga. Para comprar crack, vendi minhas roupas, a bicicleta, o celular, tudo o que era meu. Até o fundo do poço 51
Quando o prazer da droga acabava e a fissura do crack dava trégua, Paulo sentia-se mal, arrependido por ser um viciado, achava que não tinha mais recuperação e tinha vontade de morar nas ruas, entregue ao crack. No dia 23 de dezembro de 2006 as ruas do centro da cidade estavam lotadas de consumidores que, com a proximidade do Natal, faziam as compras de presentes de última hora. O clima geral é de euforia, pressa e, ao mesmo tempo, satisfação e realização ao encontrar o presente desejado. No meio de uma multidão de compradores de todas as idades e tipos Paulo foi preso por furto. Em seu julgamento, foi condenado a cinco anos e quatro meses de prisão. Desses, cumpriu apenas um ano e dois meses na cadeia. Como era réu primário e apresentava um bom comportamento na penitenciária, ele conseguiu progressão da pena. A prisão serviria como uma espécie de reabilitação do indivíduo para o convívio em sociedade. Sendo viciado em drogas, era de se esperar que Paulo obtivesse um tratamento para sua dependência química ao mesmo tempo em que cumpria a condenação pelo crime cometido. Ele não teve a assistência, mas teve acesso a drogas dentro da prisão. Conseguia facilmente comprar maconha e cocaína dentro da cadeia, fato inadmissível em qualquer regime que se propõe a reabilitar infratores. - Na penitenciária é fácil conseguir maconha e cocaína, só não tem pedra à venda, o resto você acha, mesmo que seja meio caro. Paulo não conseguia comprar crack dentro da cadeia porque a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) proíbe o uso. Isso porque a organização acreditaria que seus membros ficariam mais rebeldes e agressivos sob seu efeito, resultado da fissura que têm depois de consumirem a droga. — A maconha até há pouco eu usava sim, e a cocaína às vezes quando dava vontade. Mas eu não ligo para a cocaína, não sou viciado nela, não tenho problemas com ela. Se eu usar hoje, posso não usar por semanas ou meses, não me faz falta, diferente da maconha e do crack. Sou viciado em maconha, mas acho que ela não para minha vida como a pedra. 52 Até o fundo do poço
Paulo foi solto da prisão em 2007 e voltou para a casa dos pais. Disse aos familiares que estava recuperado, não contou que usara drogas na prisão e voltou a procurar emprego para reconquistar a confiança dos familiares. Não queria voltar mais ao crack. Decidira que fumaria apenas maconha. Ocasionalmente, também cheirava cocaína, principalmente em festas, churrascos com amigos e após partidas de futebol. - Nessas ocasiões eu dava um tiro ou dois só para ficar mais alegre. Normal, mas nessas aí, uma vez, quando eu já estava bêbado, resolvi usar o crack de novo. Usei e voltei tudo de novo. Fiquei um ano de dois meses na rua, mas fui preso de novo por furto. Voltou às ruas, a fumar crack. Na cadeia, aprendera que não deveria tirar nada de dentro de sua casa, mas sim deveria colocar as coisas para que sua família pudesse viver melhor. Parou então de roubar as coisas em casa para aplicar os ensinamentos. A alternativa foi aumentar os assaltos a lojas e a pessoas para conseguir dinheiro ou mercadorias e comprar droga. Em março de 2008, estava sem dinheiro para conseguir drogas e havia conseguido uma arma, que usava para assaltar lojas. Um dia, quando estava “noiado”, furtou uma loja do centro da cidade. Tentara levar um desodorante cujo preço não ultrapassava os R$ 3. Se não estivesse sob o efeito do crack, provavelmente teria percebido que estava em meio a estabelecimentos abarrotados de produtos de toda sorte e tinha tentado roubar um dos que tinha o menor valor. — Eu já estava devendo três anos de prisão, peguei mais um ano pelo furto e por ter efetuado pagamentos com cheques clonados, que havia conseguido com um estelionatário. De volta à prisão, além de se comportar bem, converteu-se à religião evangélica, forte em presídios. E foi nessa estada na prisão que conheceu Sofia, uma adolescente morena, de cerca de 1,60 de altura, de rosto e nariz redondos. Ela visitava o tio, que cumpria pena por tráfico de drogas junto com Paulo. Ao vê-la, sentiu-se atraído pela menina e pediu ao companheiro de prisão que os apresentasse. Até o fundo do poço 53
— Eu falei pra ele armar ela pra mim. Como ele me curtia e a gente se dava bem, ele nos apresentou. Começou a se corresponder com e fazer ligações para a menina, e assim começou um relacionamento. Queria ter visitas íntimas com a moça, mas não podia pelo fato de ela ser menor de idade. Em outubro de 2008, por ter apresentado bom comportamento na prisão, ele teve indulto por conta de um feriado prolongado e ficou com a menina. O namoro começou oficialmente aí. — Eu a amava muito e via que ela também tinha o mesmo sentimento por mim. Mas para dar certo, para eu poder casar, eu precisava parar com os vícios. Parou de fumar maconha e de cheirar cocaína nessa época. Em março de 2009 saiu da cadeia novamente. Mas ao voltar para a casa dos pais católicos, o filho evangélico carregou consigo a namorada. Os pais consentiram que os dois morassem juntos. O pai da menina arrumou um serviço para Paulo em uma construtora, como auxiliar administrativo, função na qual havia começado a trabalhar anos atrás. Meses depois, com a vontade de guardar dinheiro para se casar com a namorada, Paulo arranjou um emprego que pagava um pouco melhor em um supermercado, como repositor de loja. Mais dedicado, dessa vez Paulo conseguiu permanecer longe das drogas e se esmerou no trabalho para ser promovido. Não tinha crise de abstinência pois estava motivado para se casar, e a namorada também exigia que ele se mantivesse afastado das drogas. — No meu trabalho o chefe gostava bastante de mim, dizia que eu tinha futuro. Nesse tempo, minha namorada engravidou e decidi que era a hora de me mudar da casa dos meus pais. Paulo estava de casamento marcado e estava pagando a cerimônia. Pela primeira vez na vida, estava planejando seu futuro. Seu pai ia dar um apartamento em um bairro de classe média baixa para que os dois morassem com o bebê. Estava feliz e achava que tinha encontrado a cura para o vício. Mas em um dia, em julho de 2009, com a mulher grávida de três 54 Até o fundo do poço
meses e depois de ter passado oito meses sem usar drogas decidiu tomar cerveja com os amigos para se divertir. Acabou por usar crack novamente junto com uma turma. Depois de usar a droga, sentiu depressão, um grande sentimento de tristeza e um arrependimento por ter novamente usado a droga. Foi a tristeza mais forte que sentiu na vida. — Eu não acreditava que eu tinha usado de novo. O arrependimento e a tristeza eram muito grandes. Pensei: “pronto, já perdi tudo o que eu conquistei de novo, eu não tenho jeito mais”. Não voltou para casa, ficou quase uma semana na rua. Perdeu o emprego por faltar. Abandonou a namorada, que juntou suas coisas e voltou para casa da mãe. Ao chegar em casa, Paulo encontrou a família desolada e revoltada com suas atitudes. Voltou de novo para as ruas, só passava em casa para suprir as necessidades mais básicas do organismo, depois de ter passado dias sem se alimentar ou tomar banho. — Alguma coisa eu tinha que fazer para usar e, no dia 27 de agosto, acabei roubando de novo. Fui preso em flagrante por furtar uma residência junto com uma galera drogada. Eu estava levando uma TV na rua, de madrugada, quando a viatura da polícia me parou. Eu estava muito louco, o policial percebeu que estava roubando. Na terceira vez em que foi preso também não demorou muito para sair do regime fechado para o aberto na cadeia. Hoje em dia, ele trabalha na cadeia, estuda se quiser e sai cinco vezes por ano da prisão (em datas comemorativas e feriados religiosos). Nas duas primeiras vezes em que foi preso, Paulo passou pelo Centro de Detenção Provisória (CDP) e foi condenado sempre a regime semiaberto. E ele credita a Deus o fato de sempre conseguir uma pena branda e alcançar rapidamente a liberdade. Ao todo, somando suas passagens anteriores pelo cárcere com o período atual, ele passou dois anos na penitenciária. Nesse tempo, conheceu bastante gente na prisão e dividiu celas moldadas para doze presos carregadas com trinta detentos. Atualmente, partilha o mesmo espaço com gente que cometeu homicídio e com traficantes Até o fundo do poço 55
de drogas. Fez amizade com muitos presos e aprendeu como funciona a estrutura do crime organizado nas ruas e dentro dos presídios. Para ele, a sociedade não está preparada para combater o tráfico. — Só são presos os traficantes menores. Conheci vários, muitos, alguns que já morreram, outros que foram presos e que ao serem libertados estão aí, de carro novo. Alguns se converteram e pararam de vender. Mas os mais inteligentes não usam, vendem para enriquecer. Montam negócios de fachada ou mesmo montam lojas para diversificar os negócios. Tem traficante que tem concessionária de carro, que tem boate. Dos traficantes com quem convive na prisão, a maioria também usa drogas. São pessoas pobres, que, por não conseguirem dinheiro para financiar o vício, passaram a traficar. E geralmente esses são os que mais se arriscam a morrer. — Quem usa droga e entra no tráfico só se afunda, fica devendo cada vez mais dinheiro para os traficantes maiores. É uma árvore hierárquica, se você atrapalha o menor, pode atrapalhar o maior, que se sente prejudicado e manda matar todos. É tudo interligado, capital com interior. E no presídio o crime e as contravenções também acontecem. É fácil, por exemplo, ter acesso a telefones dentro da prisão. — Os próprios funcionários põem para dentro. É caro, mas fácil. Eu consigo, vivo usando. No CDP custa R$ 2 mil pra conseguir um celular, tem que pagar por depósito. Onde estou agora é mais barato, com R$ 500 você compra. Além do dinheiro, o cigarro vira moeda de troca na prisão. Cada maço custa três reais, por exemplo. Se for comprar uma droga que custa R$ 20 a grama, você pode pagar em maço de cigarros. E a fiscalização do que os presos fazem no regime fechado é quase nula. Paulo conta que a prisão, nesse espaço, é território dos presos. — A mulherada leva a droga nas visitas e depois que já tá lá dentro o pessoal vende. Os carcereiros veem os presos usando, mas não falam nada. Sabem que se falarem ou se entrarem na cadeia para apreender a droga podem morrer lá dentro ou ocasionar uma rebelião. Na colônia é diferente, se o policial pegar você usando você vai para o regime fechado 56 Até o fundo do poço
de novo. Hoje, a poucos meses de deixar a prisão, ele acredita que vai conseguir deixar o vício. O que reforça essa esperança na própria recuperação é a determinação que tem de não usar drogas dentro da prisão, nem nos indultos que recebe. - Em todas as saidinhas de indulto eu precisava usar algo. Ou maconha, ou cocaína, ou mesmo o crack. Hoje eu estou melhor, desde o Dia das Mães, quando vi minha filhinha, de dois meses, pela primeira vez, decidi me dedicar a cuidar dela, não usei nada, nem maconha, nem álcool. Se fosse viciado, sairia direto para a droga, sei como é, a gente não pensa na família, não pensa em filhos, não pensa em nada além da droga. Já fui assim, acho que não sou mais. Mesmo com vontade de usar, Paulo se negou a aproveitar as oportunidades de se drogar. Em uma de suas últimas saídas temporárias de feriado, amigos o chamaram para um churrasco. — Pô, vamos comemorar lá meu, tomar uma cervejinha, droga não, só cerveja mesmo. Mas ele não foi, percebeu com a experiência que não pode dar oportunidades ao vício. No pouco tempo fora da cadeia que teve nos últimos três indultos, ficou com a filha, acordando e dormindo perto dela. No último Dia dos Pais batizou o bebê. — Não senti nem vontade de beber ou de fumar nada. Isso é realmente uma grande mudança na minha vida, nunca me aconteceu isso. Eu preciso parar pela minha filha, ela merece. Vou ficar mais um ano na cadeia e só depois posso progredir para o regime aberto. Quando isso acontecer, não vou poder vacilar. Quando sair da prisão, Paulo quer arrumar um serviço novo, criar a filha, fazer um curso de capacitação profissional e alugar uma casa. Sua intenção é casar e retomar tudo o que estava encaminhado antes da recaída. Sonha em conseguir pagar uma escola de qualidade para a filha e quer que a menina tenha, no futuro, a responsabilidade de não se envolver com as drogas. Até o fundo do poço 57
Se tudo der certo em sua vida, quer ter mais um filho, dessa vez um menino. Mas para isso quer ganhar dinheiro suficiente para sustentar uma família. E já sabe que conversa terá com a filha quando ela crescer. — Vou contar a minha história para minha filha. Até mesmo porque ela vai me visitar na cadeia, vai saber que quando era bebê me visitava. Vou procurar passar essa história para ela pôr na cabecinha que o negócio é feio mesmo, que não compensa. Eu me arrependo muito hoje, não tanto do que eu fiz, mas sim do que perdi por ter usado drogas. Paulo consegue ver a que ponto chegou, admite seus vícios e sabe que a luta para se recuperar não é fácil. — Muitos eu acho que entram como eu, achando que não vão ficar viciados porque têm o controle da situação. Mas não é assim, um abismo chama outro abismo, sempre. Acho que conseguir me libertar e nunca mais usar drogas é possível. Não digo que nunca mais vou recair, mas vou perseverar todos os dias da minha vida para resistir. E ao analisar sua história, ele não justifica o vício. Diz ter chegado ao “fundo do poço” depois de ter perdido três empregos, ser preso três vezes e ter o primeiro filho sem ter estrutura alguma para formar uma família, e analisa sua história quase que friamente. Hoje admite ter se viciado ainda antes da maioridade, com a maconha. — O baseado me atrapalhava, embora eu sempre pensasse que não. Acho que o que destrói mesmo é o crack, mas não existe droga que não vicia. Vira rotina, vira hábito e você não consegue parar depois. Da turma de amigos que o acompanhavam nas farras regadas a crack, maconha e álcool, Paulo, mesmo estando preso, mantém contato. Todos eles se viciaram em drogas: um morreu em confronto com a polícia, outro foi executado por não pagar dívidas com o tráfico, alguns foram vítimas de overdoses e alguns ainda andam pelas ruas viciados. Poucos pararam. — Tenho um amigo que só parou depois de engravidar uma menina. Tomou jeito para cuidar do bebê, como eu pretendo fazer. Até crack ele usou, mas conseguiu parar com a ajuda da religião. Mas a maioria conti58 Até o fundo do poço
nua mais ou menos na mesma, uns morreram. Um está preso, como eu. Só um usa droga sem que ninguém saiba, não se viciou. Durante o auge da sua vida nas drogas, apesar de ter a maioria dos amigos viciados em crack, ele também tinha amigos “caretas”, que não usavam nenhum tipo de droga. Ao comparar a vida que eles levam atualmente com a vida dos amigos drogados, Paulo sente um forte arrependimento, e por vezes, chora.
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Da desilusão à esperança: um caminho de fé Esguio e com quase 1,80 de altura, João tem o rosto angular, pele morena e traços bem masculinos. Seus olhos castanhos, redondos e serenos parecem ser despretensiosos e, de certo modo, satisfeitos. O rapaz tem as mãos calejadas pelo trabalho braçal. Seus músculos não são definidos como os trabalhados arduamente em academias de ginástica, mas são exercitados pela força do trabalho diário e deixam transparecer uma imagem de saúde. Ele não pode ser considerado um galã, nem tampouco aparenta ser vaidoso. As roupas que mais usa são desbotadas e velhas. Uma camiseta esportiva desgastada, uma bermuda sem estampas e chinelos de dedo ou tênis surrados são peças que formam, quase sempre, o seu vestuário do dia-a-dia. À primeira vista, quem o vir pensará estar diante de um homem rústico e sério, entretanto, basta que ele comece a falar para que essa imagem caia por terra. Educado e gentil, ele passa, na voz grave e na fala devagar e firme, uma impressão de certeza. Entre seus assuntos prediletos, está falar da Bíblia, da religião Católica e de seus projetos de vida para o futuro. Ao conversar sobre os temas que mais gosta, assume uma postura de devoção e dedicação. Quase em tom professoral, tem prazer em dizer que pretende dedicar a vida a Deus, a religião e ao projeto divino que está reservado para sua vida. Mas nem sempre foi assim. Durante os períodos da infância e da adolescência, João não costumava frequentar nenhuma igreja. Nascido em Piracicaba, cidade do interior de São Paulo com pouco mais de 350 mil habitantes, é de uma família católica de classe baixa. O pai, coveiro do cemitério municipal, e a mãe, dona-de-casa, tiveram dez filhos. Ele é o caçula dos homens e tem uma irmã mais nova, Jasmin. Os dois foram os últimos a nascer e vieram anos depois dos irmãos mais velhos. A diferença de idade entre o filho mais velho e Jasmin é de 31 anos. Até o fundo do poço 63
A infância do rapaz foi marcada pela ausência quase total de regras e normas de convivência. Com o marido trabalhando e os afazeres domésticos para dar conta, a mãe, que já tinha mais de 40 anos, não impunha aos filhos horários fixos para dormir, nem para estudar ou ficar na rua brincando. Além disso, preocupava-se bastante com a saúde do marido, que, para ela, bebia demais. Com total liberdade para fazer o que quisesse, o João criança sempre escolhia brincar ao invés de estudar. Mesmo indo à escola, não criou o hábito de prestar atenção às aulas nem de fazer as tarefas. O reflexo dessa autonomia que tinha surgia nas notas das provas que fazia. Desde o início de sua vida escolar, fora um bom aluno e seus pais só perceberam que precisavam exigir disciplina do menino quando ele repetiu a terceira série do ensino fundamental. O pai, sempre sério, não tinha intimidade com os filhos e raramente dava palpites na criação deles. Passava o dia trabalhando, e diariamente, após o expediente, reunia-se com os amigos para beber nos bares da cidade e chegava à casa quase sempre bêbado. Nas vezes em que não ia aos botecos, juntava os amigos dentro de casa para tocar sanfona e beber. A mãe de João não gostava, brigava, mas como o marido não era agressivo e não machucava ninguém, acostumou-se com o fato. O alcoolismo do pai se manteve por anos sem grande oposição da família. Mas conforme os filhos mais velhos foram se mudando, a família começou a passar por dificuldades financeiras. A metade dos filhos que trabalhava passou, aos poucos, a se mudar e o pai teve problemas para sustentar a outra metade dos filhos e manter, ao mesmo tempo, seus gastos em bares. Nessa época, o filho mais velho da família entrara no seminário e ofereceu ajuda para tratar a dependência do pai. Em 1995, o homem aceitou e foi se tratar na Fazenda Esperança, um projeto da Igreja Católica que estava começando. O menino estava prestes a completar 10 anos quando o pai se internou na clínica para sair um ano depois. Nesse tempo, a família passou por dificuldades financeiras e João não visitou o pai nenhuma vez. 64 Até o fundo do poço
Quando o pai voltou para casa, o filho estava na pré-adolescência e revoltava-se com o tratamento dado à irmã mais nova. Para ele, todos na família davam mais atenção a ela, deixando-o de lado. — Quando meu pai voltou, eu não tinha saudades. Não senti a falta dele até porque ele também dava mais atenção à minha irmã e eu estava revoltado com essa situação. Dos membros da família, sua mãe era a pessoa com quem sempre se deu melhor. Era para ela que pedia conselhos e contava seus segredos. Mas com o pai João não tinha intimidade. — Meu pai não tinha o costume de perguntar pra mim se eu estava bem, como tinha sido o meu dia. Nada disso, nunca recebi conselhos dele. Sentia falta disso e percebia a diferença quando via meus irmãos mais velhos e casados cuidando dos filhos. Eu tenho dois sobrinhos da minha idade e eles receberam mais carinho e atenção dos pais do que eu. Inconformado com o tratamento que recebia do pai, assumiu uma postura mais rebelde durante a adolescência. Suas atitudes contestadoras diante da autoridade do pai fizeram com que as brigas se tornassem cada vez mais frequentes. Cobrava dele um tratamento melhor e mais atenção. Mesmo assim, não considera que tenha sido um adolescente dos mais rebeldes. Na escola, sentiu as consequências da falta de disciplina para o estudo que teve durante a infância. Ia à escola regularmente, mas não era bom aluno, não conseguia ter atenção nas aulas. Conseguia tirar as notas suficientes para passar de ano, mas ia mal em algumas matérias. Por ter estudado sempre em escolas públicas pouco exigentes, não repetiu o ano nenhuma vez. Na época do colegial, começou a flertar com garotas. Inexperiente e até mesmo um pouco tímido, teve seus primeiros conselhos amorosos e sexuais com a turma da escola. Tinha mais liberdade de falar de sexo com os amigos da escola do que com a mãe. Não se sentia confortável para falar de assuntos sexuais com ela, e a mãe também nunca tomou a iniciativa de perguntar sobre a vida sexual do filho. A confiança nos colegas surgiu porque João manteve sempre a mesma turma de amigos desde quando Até o fundo do poço 65
frequentava a creche. Aos 17 anos, conheceu no colégio Diane, a menina que viria a ser, pouco tempo depois, sua primeira namorada. Quando estava prestes a se formar e a atingir a maioridade, a turma com quem andava há anos começou a se dispersar. Uns amigos conheceram a maconha e iniciaram o hábito de fumar baseados de vez em quando. O rapaz não fumava e não via motivo para se afastar deles. Outros amigos, mais “certinhos”, optaram por afastar-se dos que usavam drogas ou se converteram à religião evangélica, sem se envolver com substâncias ilícitas. Ele manteve a forte amizade com a turma mais rebelde dos amigos e até tinha certa curiosidade de conhecer os efeitos tão famosos da erva. A vontade se concretizou rapidamente. No dia em que fumou um “beck” pela primeira vez, estava em sua casa. Era domingo, dia da semana em que toda a família dele se reunia na casa dos pais para almoçar. Todos os irmãos iam passar o dia com os pais. Logo depois do almoço, estava assistindo a um jogo de futebol com os irmãos, quando chegou um dos amigos e disse: — Meu irmão me deu um negócio e eu quero te mostrar. — O que é? – perguntou João curioso. O rapaz mostrou um pequeno saco plástico contendo uma porção de maconha. João identificou rapidamente e se assustou com o que viu. — O que é isso, meu? Você tá louco, se alguém vê isso aqui a gente tá ferrado. Mas o amigo disse: — Vamos fumar pra ver como é? — Tá, vamos lá fumar pra ver como é, mas não aqui. Os dois saíram da casa, embrenharam-se em um matagal próximo a casa e enrolaram a maconha para fazer o baseado. — Enrolamos errado, nem sabíamos como fazia, ficou um pastelzão, mas fumamos assim mesmo. Deu um negócio que conforme a gente falava ia ficando um eco na cabeça. Uma sensação estranha, a gente ficava na paz. Eu gostei muito, mas me assustei com o jeito que fiquei depois. Meus 66 Até o fundo do poço
olhos ficaram vermelhos, fiquei com medo. A brisa foi boa, mas tinha pavor de voltar para casa e alguém perceber o que eu tinha feito. Demorei mais de duas horas pra voltar. Quando chegou, o temor de ser descoberto era tanto que qualquer um que prestasse mais atenção no seu comportamento perceberia que algo estava errado. — Eu olhei pros meus irmãos meio cabreiro. Achava que eles iam desconfiar, mas eles acabaram não descobrindo. No dia seguinte pegou R$ 5 com a mãe e foi buscar mais droga. Chamou o amigo para fumarem juntos porque tinha gostado da sensação. Depois de ter intensificado o fumo dos cigarros de maconha, João se tornou mais hábil em fumar e superou rapidamente o medo que tivera de que a droga pudesse ter algum efeito colateral em seu organismo. Com quase um mês de uso contínuo sem que os pais e irmãos mais velhos sequer descobrissem, ele achou que poderia, aos poucos, ir aumentando as doses ingeridas para sentir mais profundamente os efeitos da droga. Estava convicto de que não haveria problemas em fumar maconha, mas, ao mesmo tempo, não queria que ninguém, além dos amigos com os quais “puxava um beck”, soubesse do seu novo hábito. Nem mesmo Diana, pois a namorada não usava drogas e, se contasse a ela, sabia que a menina o censuraria. — Mas eu fumei maconha pouco tempo só. Um dia, fumei tanto com meu amigo que fiquei muito ruim. E tinha que ir pra casa da minha namorada, tinha um encontro marcado. Depois de ter usado a maconha e deixado passar pouco do seu efeito, foi para casa tomar um banho e se arrumar para encontrar Diana. Ainda se sentia mal, mole demais, relaxado demais. Mas não queria chegar atrasado ao encontro já marcado. Antes de entrar no banho, olhou-se no espelho e viu que seus olhos estavam vermelhos e sentiu medo de que alguém da famíla o visse naquele estado e percebesse que estava se drogando. — Tomei um banho de água gelada e bem longo para tentar curar a leseira. Mas estava tão ruim que saí do banheiro e deixei uma porção da maAté o fundo do poço 67
conha que ainda não tinha fumado no banheiro. Meu irmão encontrou. Viu e o chamou. Quando olhou para João viu os olhos vermelhos, o nervosismo do irmão e percebeu seu estado. Deu bronca nele e chamou a mãe e os irmãos que estavam em casa. Contou o que viu. — Na hora não eram conselhos, eram xingamentos mesmo. Fui chorando para o quarto, não pude mais ir pra casa da namorada. Ali caiu a minha ficha. Eu falei pra mim mesmo: “olha o que eu estou fazendo, estou usando drogas”. Dali pra frente decidiu não usar mais. Nunca tivera, até aquele dia, orientações familiares acerca do mal que o consumo de drogas poderia causar à sua saúde. Essa abordagem agressiva, típica de algumas famílias mais tradicionais, raramente é a mais recomendada por especialistas como forma de coibir o consumo de drogas. Mas, inicialmente, as broncas obtiveram o efeito desejado, pois ele realmente parou de fumar maconha. Porém, decidiu substituir o baseado pelo tabaco, também sem que a família soubesse. Pouco antes de se formar, João se alistou no Exército para ser fuzileiro, e, ao completar 18 anos, foi convocado para servir nas Forças Armadas. No quartel, diariamente acordava cedo e tinha que arrumar a cama, tomar banho, fazer a barba, vestir a farda, calçar coturnos bem engraxados, praticar exercícios. Tudo deveria ser feito rigorosamente no mesmo horário e de modo impecável. Além desses compromissos, ainda tinha que ficar de plantão nas madrugadas na guarita do quartel. O soldado João está apenas na metade do turno que lhe cabia, mas suas pálpebras insistem em pesar. No expediente monótono, a única batalha que travava era contra o sono, e, aparentemente, ele estava perdendo. — Ei, acorda aí brother, se alguém te pega dormindo vai se ferrar, se liga. — Opa, já acordei, é que estou com muito sono, a gente não tem nada para fazer aqui, é muito chato esse plantão. — Quer curtir o plantão sem dormir? Tenho uma coisa para te oferecer então, se liga nisso aqui, olha – diz o soldado enquanto mostra um 68 Até o fundo do poço
saquinho branco e mostra ao colega. — O que é isso? Cocaína? — É, vamos dá uns tiros com isso aqui que você vai ver, não vai sentir sono e vai ficar agitadão sem esforço, até amanhã. Achou que seria interessante usar a droga porque teria que ficar a noite toda acordado. Entrara no plantão às 20h e só sairia do posto de guarda às 8h. Tinha muito tempo pela frente. Sentia curiosidade de saber que sensação teria ao cheirar a cocaína. — Lembro que ele esticou uma carreira grande lá e eu cheirei tudo. Não dormi, mas também não senti nada de mais. Não sei se não teve efeito nenhum ou se a droga me fez sentir normal, como se não tivesse tomado nada. Só me lembro de ter fumado bastante cigarro naquela noite. Por não ter achado nada de mais na sensação que teve, João decidiu não aceitar mais a droga. Estava servindo o Exército há pouco tempo como fuzileiro e achava imprudente cheirar cocaína dentro do quartel, alguém poderia ver, e além disso, a droga podia lhe fazer mal. Avaliou que não compensava, preferia continuar fumando porque, além de gostar do tabaco, era uma droga legal que poderia usar sempre, ainda que sem o conhecimento dos pais. No final de seu período nas Forças Armadas, depois de ter servido por nove meses a corporação, conseguiu um emprego formal. No dia 9 de novembro começou a trabalhar numa loja de autopeças em um horário alternativo até o fim do período de suas atividades militares. Depois que fosse dispensado do quartel, ele seria contratado imediatamente. No serviço, em um dos primeiros dias de expediente, João viu alguns dos funcionários da loja com papelotes, imediatamente identificados por ele como doses de cocaína. Tímido, tentou puxar conversa com os mecânicos para sondar se a intuição estava correta. A resposta de um deles foi direta: — A gente usa cocaína. E é bom pra gente ir trabalhar mais esperto. – Foi o que ouviu como resposta. — Quer também? Até o fundo do poço 69
— Não, obrigado. Estava há meses sem usar a droga e sem sentir falta, por isso negou por diversas vezes as ofertas de “tiros” gratuitos dos colegas de trabalho. Mas como os pedidos foram se tornando mais insistentes, avaliou que, como não corria o risco de se viciar, poderia cheirar a cocaína vez ou outra com os rapazes para se enturmar e criar amizade com eles. Pensando dessa maneira, não demorou muito para que o recém-contratado aceitasse usar a droga pela segunda vez na vida. — Eu aceitei, não sabia nenhuma das consequências da cocaína, e por isso também não tinha medo algum de morrer. A primeira vez que usou a droga no serviço foi completamente diferente da vez em que usou no quartel para ficar acordado. João sentiu que o coração acelerava. — Não sei porque senti o efeito nessa vez. Talvez a droga fosse mais forte, senti o coração batendo forte e a garganta travada. Era perto da hora do almoço e , quando foram buscar comida para os funcionários e me deixaram um pouco só, achei que fosse morrer. Estava com dificuldades até para engolir a minha saliva, não estava gostando da sensação. Naquela hora eu fiquei com medo de ter uma overdose. Apesar de não ter gostado novamente dos efeitos obtidos com o uso da droga, a atitude de João teve o efeito desejado. Os mecânicos do trabalho passaram a ser mais simpáticos com ele e iniciou-se ali uma amizade. Tanto que, na mesma semana combinaram de sair juntos no sábado para tomar cerveja depois do expediente. No dia combinado, a turma da qual passara a fazer parte decidiu ir tomar cerveja em um posto de gasolina próximo ao serviço. Lá, depois de já terem bebido o suficiente para se sentirem eufóricos, ofereceram-lhe novamente cocaína, prontamente aceita. — Ali a sensação foi diferente, foi gostosa. Naquele momento eu me apaixonei pela droga. Senti o efeito do álcool com a cocaína e fiquei feliz, estando com os amigos o sentimento foi melhor ainda. Eu e um amigo montamos em uma moto e fomos fazer um passeio radical. 70 Até o fundo do poço
A aventura durou horas e terminou por volta de meia noite e meia. Ao voltar para casa já sem o efeito da cocaína, ficou em dúvida sobre o quão perigoso poderia ser o que havia feito. Dessa vez, por ter gostado de cheirar, achou que podia se viciar. — Mas pensei também por outro lado. Como foi gostoso, decidi continuar a usar até o dia em que por acaso a sensação não fosse boa. A partir daquele dia, toda vez que tinha a oportunidade de cheirar cocaína aproveitava. No último dia de João no quartel, logo depois da solenidade de formatura dos soldados, os recém-dispensados do serviço militar fizeram uma festa. Feliz por poder aumentar sua carga horária de trabalho na oficina, gastou o salário com cocaína suficiente para agitar um batalhão de soldados. — Depois de pegar o diploma na formatura, a gente fez a festa e eu paguei droga pra todo mundo que quisesse. A galera me adorou. Ali eu me apaixonei de vez pela droga. Inicialmente ele ganhava cocaína de graça dos colegas do trabalho. Mas depois que passou a ser um dos usuários mais ativos da oficina, João passou a ter de pagar pela droga. Um dia, os amigos que não queriam buscar a droga na boca de fumo mandaram o funcionário mais novo da casa. — Pediam para eu ir comprar a droga e trazer para a galera. Eu nunca tinha comprado droga, não sabia como se pedia e estava com medo. Mas fui mesmo assim. A turma da oficina costumava buscar o pó com um traficante que morava a poucas quadras da oficina. João chegou lá apavorado. — O cara tinha a maior pinta de malandro. Senti que eu era um marginal naquela hora, mas não estava achando ruim não. Quando o cara me deu a droga, senti a sensação mais gostosa da minha vida. “Puxa vida, eu estou no mundo do crime.” Saí com jeito de malandro pra ninguém pensar que eu era um “bocó” inexperiente. Antes mesmo de usar a droga comprada, estava eufórico com o que fizera. Chegou ao trabalho e, assim que repartiu a porção de cocaína para os amigos, trancou-se no banheiro. Até o fundo do poço 71
— Usei tudo muito rápido. A partir dali ninguém precisava me mandar buscar droga na boca. Eu ia sozinho e gastava meu dinheiro comprando o pó, não só para mim, mas para a turma toda. Nessa rotina de trabalho, o uso de drogas foi aumentando rapidamente. Em poucos meses, o rapaz passou a cheirar cocaína quase que diariamente em busca da sensação de agitação e prazer da droga. Quando entrou no serviço, não tinha carteira assinada. Ficou durante os seis primeiros meses de trabalho cumprindo expediente de maneira informal e recebendo R$ 260 mensais Com o uso contínuo, o dinheiro do rapaz, que já era pouco, foi insuficiente para manter o consumo desenfreado. O resultado foi o surgimento de dívidas com o tráfico. Na vida pessoal, a família não percebia nada de errado com João porque o rapaz passava pouco tempo em casa. Já a namorada estranhava seu comportamento e não entendia como o parceiro gastava o salário tão rápido. Após o período de experiência de seis meses, o salário de João aumentou e ele pôde saldar parte de suas dívidas. Tentou também reduzir a quantidade de cocaína que usava por dia, mas não obteve sucesso. Foi aí que percebeu que estava viciado. Achava que estava cheirando demais, mas como ainda não sentia efeitos negativos à saúde, não viu problemas no vício e decidiu que iria apenas dosá-lo. Em junho de 2006, o Brasil parava para assistir à Seleção Brasileira de Futebol disputar a Copa do Mundo, realizada na Alemanha. João, diferentemente do restante da população, não estava preocupado com o desempenho dos países no campeonato. Estava bem mais interessado em aproveitar as folgas em dias de jogo para cheirar cocaína. Em um desses dias, estava voltando da casa de Diana quando encontrou uma turma de amigos. Parou para conversar com eles, usar a droga, e de relance, ver uma partida da Copa na TV. Usaram droga a tarde inteira. Quando já era quase noite, chegou um conhecido dos rapazes. O homem, alto, estava magrérrimo, com aparência exausta e vestindo roupas surradas e sujas. 72 Até o fundo do poço
— Estava mais louco do que todo mundo. Estava sujo, imundo, parecia um mendigo. O homem estava fumando crack. Era a primeira vez que João via a tão famosa e comentada pedra. — Da primeira vez que vi maconha usei, na primeira vez que vi a cocaína usei. Perguntei o que era, já curioso. O maltrapilho, fumando compulsivamente, respondeu: — Isso daqui é o crack, mano. Mas não queira saber qual que é a loucura disso aqui não, porque isso aqui não presta. — Como assim? Como que é “o pega”? — Dez vezes mais louco que é o da cocaína. Isso aqui é loucura. Na hora, João sentiu aumentar ainda mais a vontade de usar pra ficar “loucão”. Mas aí ouviu o conselho do viciado: — Isso aqui é o fundo do poço velho – disse desesperado, ao mesmo tempo em que começava a chorar desesperadamente na frente de todos. Olha a situação em que estou. Não tenho onde morar por causa do crack. Enquanto eu estava na cocaína estava bom, mas um dia conheci isso aqui e perdi minha família, perdi tudo. Agora não paro mais de usar, vou até o fim – e acendeu o cachimbo, queimando a pedra de crack. — Aí fiquei em transe, desisti de provar na hora. Depois surgiram várias oportunidades de usar, mas eu não queria porque lembrava daquele cara. Se alguém tivesse falado assim da cocaína pra mim, eu não teria usado. No mesmo ano, recebeu de Diana a notícia de que a moça estava grávida dele. O rapaz se desesperou, pois sabia que não tinha condições nem de sustentar a si mesmo, e não se achava preparado para assumir a responsabilidade. Mas, como não queria pedir à namorada que abortasse, a saída foi assumir a criança. A família da moça era tão tradicional quanto a dele, e, ao saber da novidade fez pressão para que os dois transformassem o namoro de quase três anos em casamento. João recusou, alegando não ter dinheiro suficiente para formar uma família e dizendo que era muito jovem para se casar. Os Até o fundo do poço 73
dois não oficializaram a união, mas foram morar juntos. Mas como o rapaz não tinha dinheiro para equipar uma casa, o casal ganhou quase tudo das famílias. — Pela primeira vez na vida me senti querido na família. Eles me arranjaram casa pra morar, deram os móveis, os eletrodomésticos, deram tudo. Eu pagaria apenas o aluguel. Iniciei a vida de casado convencido a parar de usar drogas para ser um bom pai para o nenê que nasceria. Durante toda a gestação, João conseguiu reduzir o uso da droga, mas não parou, nem contou para Diana que estava diariamente sob o efeito do pó. No início de 2007, a esposa de João deu à luz um menino saudável. Com a criança ainda recém-nascida, João sucumbiu à responsabilidade. Cheirava cocaína durante o dia inteiro, durante e depois do expediente de serviço, e já não sentia mais falta da família. Foi aí que, pela primeira vez em anos de relacionamento, Diana começou a desconfiar do fato de o pai de seu filho passar cada vez mais tempo no serviço, mas ganhar cada vez menos dinheiro. Percebia também que João chegava cada dia mais alterado do trabalho. Em pouco tempo, a mulher conseguiu interpretar os fatos e descobriu que o marido era um usuário de drogas. Ela conversou com o parceiro e o aconselhou a procurar um tratamento. Foi até um dos irmãos de João, que é padre, e conseguiu uma vaga para ele numa clínica de reabilitação de dependentes químicos. João em princípio concordou em se internar, mas não queria de fato, pois acreditava que poderia parar de usar a cocaína com força de vontade própria. — Sob o efeito das drogas, eu pensava que ela me queria longe para me trair. Além disso, eu dizia para mim mesmo que não queria ficar longe do bebê, que não havia completado nem um ano de vida. Tudo era desculpa, queria ficar perto de onde tinha cocaína. A dois dias da data de se internar, João fugiu e não apareceu na hora marcada. Ficou cheirando cocaína na rua, e quando retornou ao lar, ainda sob o efeito da droga, encontrou Diana chorando desoladamente e teve a 74 Até o fundo do poço
certeza de que ela só queria ver-se livre para traí-lo com outro homem. Os dois brigaram e ele decidiu sair de casa. — Eu queria mesmo um lugar pra poder usar droga em paz, sem problemas. Morando com a Diana e o bebê, eu me preocupava em chegar depois que o efeito da cocaína estava passando, não queria que ela me visse drogado. Também não queria que o meu filho crescesse vendo o pai louco daquele jeito. No mesmo dia da briga se arrependeu. Percebeu nesse dia que a droga estava definitivamente atrapalhando sua vida. Ao chegar à casa dos pais, falou para a mãe que iria ao interior de Minas Gerais passar uns dias na casa de parentes em uma cidade com menos de 20 mil habitantes. Antes de viajar, precisava pedir a licença no serviço, mas antes que pudesse pedi-la foi demitido. O dono do estabelecimento, que tinha conhecimento de que seus funcionários eram viciados, percebera que eles roubavam mercadorias da loja para revender e conseguir dinheiro para comprar droga. — Ele gostava muito de mim, mas quando descobriu que a gente roubava a loja demitiu todo mundo. Falou que eu precisava de ajuda, de internação, e que quando me curasse teria um lugar ali. Desolado, com a relação amorosa por um fio, sem emprego e com um filho para criar, João recorreu à fuga e foi passar um tempo com os parentes mineiros. — Viajei para uma cidade rural para esfriar a cabeça e porque não tinha droga no local. Lá eu refleti bastante sobre o que estava fazendo e percebi que precisava de ajuda. Não senti crise de abstinência, mas chorei de saudades do meu filho. Voltei disposto a parar de usar drogas, mas sem me internar nem entrar em grupos de ajuda. Achava que eu podia parar sozinho, bastava querer. Ficou 10 dias na cidade, na companhia de avós, tios e primos. Quando voltou, apesar de Diana tê-lo aceitado de volta, a relação dos dois não era igual a de antes. Ela não confiava nele e fazia questão de deixar isso claro. Assim que retornou da viagem, começou a trabalhar com autopeças Até o fundo do poço 75
prestando serviços para nove lojas. Ganhando dinheiro, reconquistou parte da confiança da amada e estava conseguindo se manter afastado do vício. Sem usar drogas, João percebeu que o trabalho e o dinheiro rendiam mais. Ele cobrava cerca de R$ 30 por 40 minutos de serviço e estava conseguindo mais dinheiro do que jamais ganhara. Mas um dia, ao encontrar amigos usuários de drogas durante o horário de almoço, enquanto comia em um restaurante, teve uma recaída. Combinou de sair com eles depois do expediente e só voltou para casa no dia seguinte. — Quando voltei, minha mulher jogou na minha cara que eu era um “noia”, que eu não queria me recuperar. Isso foi me revoltando, como ela podia me dizer isso, se dizia que me amava? Mesmo assim, ficamos juntos mais três meses, eu tentando me abrir com ela, dizendo que ia parar, mas não conseguia. A crise na relação se agravava cada vez que João se drogava. Com todo o dinheiro que ganhava gasto em drogas, Diana teve de recorrer aos pais para ter o que dar de comer ao filho. Ela via que a relação não tinha futuro e acabou por sair com outro homem. Mas se arrependeu depois. Com a consciência pesada, achou que seria justo contar para João o que a levara a cometer o adultério. — Ela veio falar comigo chorando, contou que tinha saído com outro cara. Aquilo foi o fim, a gota d’água pra mim. Ela estava arrependida, mas eu saí da casa no mesmo dia. Nos separamos. João viu naquele momento mais um motivo para usar as drogas. Revoltou-se com a mulher, achava que a maior prova de amor que ela poderia dar era ajudar a superar a dependência. Para ele, o problema das drogas não justificava a traição. Para mostrar a Diana que sua atitude piorara a situação, decidiu intensificar o uso de drogas. — Eu não percebia o mal que fazia à minha mulher e ao meu filho pequeno. Pelo contrário, saí de cabeça erguida. Não percebia que essa atitude também me fazia mal. Na casa dos pais, esperava encontrar uma família revoltada com suas atitudes, sabia que iriam brigar. Mas seus pais, desolados com a situação 76 Até o fundo do poço
que João passava, foram buscar formas de ajudá-lo. Apegados à religião Católica, aconselharam-se com o filho padre e decidiram mudar a forma de lidar com as circunstâncias. Passaram a aconselhá-lo e a tentar fazer com que admitisse que precisava de ajuda para vencer o vício. Apesar de ter surpreendido o filho, essa mudança de atitude não teve efeitos práticos inicialmente. — Na casa da minha mãe eu usei muita droga mesmo. Ficava uns cinco, seis dias fora de casa. Quando eu usava droga, meus pais me davam conselhos, falavam pra eu parar com aquela vida, mas não adiantava. Em maio de 2008, o rapaz sentiu os primeiros efeitos colaterais do uso contínuo da cocaína. Havia usado várias doses da substância numa festa, uma quantidade ainda maior do que a de costume. — Cheirei muito e passei mal, quase tive overdose. Decidi voltar para casa de moto, mas estava drogado e deixei a moto na rua com a chave no contato. Um de seus irmãos chegou em casa logo em seguida e se assustou ao encontrar a moto na rua. Guardou-a rapidamente na garagem e foi ver o que acontecera com João. Ao entrar na residência, encontrou-o vomitando e o levou para o hospital. — Eu não lembro de nada, só sabia que estava passando mal. Estava começando a ter overdose, e por sorte recebi o atendimento a tempo. Depois disso, fiquei com medo de morrer. O medo o fez dar ouvidos aos conselhos da família. João reduziu drasticamente o uso da cocaína, ganhou peso e conseguiu um emprego fixo em uma metalúrgica na função de soldador. Com a renda que entrava, comprou um carro, e seis meses depois de ter um princípio de overdose, começou a pagar pensão para o filho. Depois de ter começado a enviar a pensão, Diana voltou a confiar nele e deixou-o passar fins de semana com a criança. Quando estava com o filho não usava droga, não queria que o menino o visse alterado. A ex-esposa percebia, porém, que João não havia parado de cheirar cocaína e o aconselhava a parar. Mas o rapaz acreditava estar curado porAté o fundo do poço 77
que havia conseguido se restabelecer na vida. Ganhava bem novamente e usava cocaína recreativamente. Os finais de semana com o filho serviam de estimulante para que ele se mantivesse afastado do pó por um tempo. Ele só parou de usar a droga quando descobriu que a firma onde estava trabalhando faria exames antidoping nos operários. A partir daí, João conseguiu cortar o uso. Com os efeitos da crise econômica, entretanto, a empresa fez um corte de funcionários e João, que ainda não era efetivo, foi demitido. Decidiu então montar uma loja de autopeças junto com o amigo de um irmão. Dois meses depois de terem iniciado o negócio, foi almoçar em um restaurante e conheceu a dona do local, Thaís. Interessou-se por ela e percebeu que o sentimento era mútuo. Passou a ir diariamente ao estabelecimento. Em pouco tempo, João criou coragem e chamou a mulher para sair. Foram a um rodeio e iniciaram ali um relacionamento. Desde o princípio da relação, decidiu ser franco e contou à moça sua história como dependente químico. Thaís se emocionou, chorou. Não queria sofrer ao se relacionar com um usuário de drogas, mas se ele quisesse realmente se manter limpo, estava disposta a ajudar. Com um mês de relacionamento, depois de ter sido apresentado à família dela, João foi a um show de música sertaneja e encontrou traficantes conhecidos ali. Eles ofereceram cocaína e o rapaz relutou, mas não resistiu. Antes do fim do show procurou o traficante, comprou pó e usou dentro do banheiro. — Eu cheirei tanto que meu nariz ficou branco. Quando voltei, Thaís percebeu imediatamente. Brigou comigo e fomos embora. Thaís contou para a família de João sobre a recaída e prometeu ajudá-lo. Mas João brigou com a nova namorada e voltou a usar cocaína com frequência. — Afundei de novo e parei de pagar a pensão do meu filho. Comecei também a dar bolo na Thaís, inventava desculpas para não vê-la e ela percebeu que era pra usar drogas. Quis me internar e brigamos. Depois de uma briga acalorada com a namorada, João comprou uma 78 Até o fundo do poço
dose grande de cocaína e usou dentro do quarto durante a noite toda. Às 5h, quando não aguentava mais cheirar, decidiu se matar. Queria morrer porque estava arrependido de ter voltado a usar droga e sabia que estava fazendo mal à família e à namorada. Achava que não era digno de viver. Pegou dois cintos de calça, amarrou na beliche do quarto, jogou óleo no chão, e amarrou as mãos. Tentou se enforcar. Escreveu uma carta para família pedindo perdão e se largou. Quando estava asfixiando se arrependeu da atitude. — Um filme passou na minha cabeça. Vi uma série de coisas, sabia que meu filho iria crescer sem o pai e que sofreria por isso. Pensei no sofrimento da minha família e decidiu lutar pela vida. Consegui me desvencilhar da própria armadilha. Desesperado, ligou para o irmão padre. — Ele atendeu ao telefone e me disse que eu estava demorando pra ligar. Perguntou se eu queria realmente ajuda, não precisei pedir. Disse só que queria. Decidiu se internar. Comunicou à família e à namorada que se internaria por um ano. Também vendeu sua parte na loja para o sócio, que não sabia que João era usuário, mas percebera algo errado nele graças às constantes faltas ao negócio. Despediu-se de Diana e do filho e deu o dinheiro resultante da venda para eles. Faltando pouco tempo para se internar, Thaís pediu a ele que não fosse, queria cuidar dele. Ele refutou a ideia e brigou com a namorada. Para se redimir, a moça organizou uma festa surpresa de despedida, com a presença dos familiares do casal e de amigos de João. Ali ele sentiu-se amado pelos seus familiares e pela namorada. Também sentiu culpa por ter chegado àquele ponto de dependência. Dois dias antes do dia de partir, os dois iam para um motel, mas ele resolveu despedir-se das drogas. Gastou mais de R$ 600 com cocaína e cheirou a noite toda. Ao chegar a casa sob o efeito do entorpecente, mentiu para os pais e disse ter visto assombração no carro. Como estava claramente alterado, a mãe percebeu que o filho estava drogado. Até o fundo do poço 79
Em 29 de agosto de 2009, João foi para a Fazenda da Esperança, mesmo lugar onde o pai se internara há 14 anos, sem se despedir da namorada e na intenção de ficar três meses internado, apenas o tempo necessário para a sua desintoxicação. Desde o início, não aceitava a ideia de ficar todo período recomendado de tratamento, um ano. Para ele, era algo desnecessário. A Fazenda da Esperança é uma obra social de vertente católica criada para auxiliar na recuperação de dependentes químicos. O projeto surgiu na cidade de Guaratinguetá, no Vale do Paraíba, em 1983, pela iniciativa do leigo Nelson Rosendo, que, ao receber conselhos de seu pároco, frei Hans Stapel, decidiu por em prática o que acreditava ser os princípios do evangelho. Aproximou-se de uma boca de fumo e criou uma amizade com os usuários de droga, tentando recuperá-los do vício. Pouco tempo depois, com o aluguel de uma casa mantida pelo dinheiro de jovens em recuperação e de Rosendo, teve início o que hoje é a obra social da Fazenda. Como a maioria dos locais disponíveis para atendimento de dependentes ligados a entidades religiosas, as Fazendas não podem ser consideradas clínicas por não tratarem seus pacientes com medicação psiquiátrica, e sim comunidades terapêuticas, baseadas principalmente na espiritualidade e na laborterapia para a recuperação do dependente. Em mais de 25 anos de existência, o projeto aumentou de tamanho. Recebeu reconhecimento na mídia e financiamento do Estado. Com o apoio de Hans, da Igreja Católica e com o financiamento dos próprios dependentes, que pagam mensalmente um salário mínimo para a obra, a Fazenda criou 68 diferentes comunidades espalhadas pelo Brasil e fora do país. Atendendo a mais de 2500 dependentes, há unidades na Alemanha, Argentina, Filipinas, Paraguai, Guatemala, México, Moçambique e Rússia. Quanto à metodologia de tratamento, o projeto baseia suas atividades junto aos viciados no trabalho em três temas principais: o convívio em família entre os dependentes, com a prática do respeito ao próximo, o trabalho como fonte de auto-estima e de sustento financeiro e a espiritualidade, com moral e princípios, obtidos por meio do estudo dos preceitos 80 Até o fundo do poço
católicos e que, segundo o projeto, visam a uma mudança de comportamento dos internos. Esses princípios são desenvolvidos desde o início do tratamento, que é dividido em três fases. Na primeira, a triagem, o adicto é acolhido e recebe orientações dos internos em fase mais avançada de tratamento. Nesse período realizam atividades de agricultura e jardinagem. Na segunda fase, passam a realizar atividades mais complexas, assumem trabalhos na produção agropecuária ou em máquinas de produção de garrafas para envase de produtos de limpeza. Esses produtos são vendidos e a renda é revertida para a própria Fazenda. O objetivo dessa etapa é que o dependente se sinta útil e apto a assumir responsabilidades na vida. No último período da internação, eles assumem tarefas de monitoramento de atividades de outros internos. Para isso, passam por um período de formação de líderes que os capacitam para conduzir um grupo de beneficiários. Inicialmente, já no projeto, foi difícil para João aceitar que havia chegado ao ponto de precisar de uma internação. Chorava diariamente de arrependimento por estar naquela situação e por sentir saudades da família. Aos poucos, porém, ao receber conselhos de não sentir culpa nem remorso pelo que havia acontecido no passado, adaptou-se ao ambiente e superou a baixa auto-estima. Mesmo assim, ainda estava decidido a permanecer apenas o período da triagem na Fazenda. Três meses depois de ter entrado na clínica, João receberia sua primeira visita. Seria o primeiro contato com seus familiares desde o dia em que havia se internado. E ele queria aproveitar a visita para deixar a clínica e voltar para o convívio social. Em pouco tempo de internação, conseguiu fortalecer a fé na religião católica e, com isso, acreditava que em um trimestre estaria pronto para sair. Decidido, mandava cartas à família contando o desejo de não permanecer um ano no local. Os familiares aceitaram, tanto que, na visita, vieram apenas quatro pessoas no carro. A quinta vaga era de João. Nesse tempo, ele ligou uma vez para a família. Isso porque o contato Até o fundo do poço 81
entre eles se dava quase sempre por cartas. Mas, quando chegou o dia da visita e a família veio buscá-lo, João mudara de opinião. Não voltou. Disse que havia mudado de ideia e que ficaria todo o tempo recomendado de tratamento. Queria completar o seu ano dentro da Fazenda. — Está gostoso aqui. Descobri várias coisas na minha vida, que me sentia rejeitado porque tinha ciúmes da minha irmã, que era um cara meio estourado. Na Fazenda, João foi orientado a trabalhar os pontos fracos de sua personalidade. O tratamento fez resultado, pois ele não brigou com ninguém dentro da clínica. Sua evolução foi rápida. Geralmente, os internos são convidados a fazer a formação apenas após os primeiros seis meses de internação. João foi uma exceção, realizou a atividade a partir do quinto mês de reabilitação. Foi ao Mato Grosso estudar a bíblia e se formar líder. Sentia-se útil, estava feliz. — Achava que eu era católico, mas não sabia nem o que era Finados. No projeto aprendi um monte de coisas. Pude perceber muita coisa: o amor de Deus por mim foi a principal delas. Quando voltou da formação, no fim de fevereiro de 2010, foi designado a coordenar as atividades de um grupo de internos com menos tempo de reabilitação. — Pensei que não ia conseguir liderar o pessoal. Eu não conseguia nem me coordenar antes, como ia coordenar um monte de adictos? Logo no primeiro mês de coordenação, enfrentou o desafio de lidar com um interno rebelde. Ao apresentar as regras da casa ao seu novo colega, João ouviu dele: — Você não manda em mim, é um coordenador de papel. Vai para o inferno. Isso fez a raiva subir a cabeça de João. — Eu comecei a medir na hora pra ver onde eu acertaria o primeiro soco. Mas daí, quando estava me preparando pra brigar, pensei melhor e 82 Até o fundo do poço
percebi que não ia adiantar nada. Além do mais, era uma prova a ser enfrentada. Não era isso que Deus esperava de mim. Não posso pagar o mal com o mal. Não fiz nada, fui para o meu quarto. Mas a raiva estava ali. João chorou com a ira que tinha daquela atitude do interno. Não acreditava que tinha conseguido não agredir o rapaz. Como sempre tivera o espírito rebelde, tinha certeza de que não conseguiria se o fato tivesse acontecido antes da internação. Provavelmente teria aceitado a provocação e partido para a briga. — Naquele momento eu percebi uma grande mudança em mim. Segurei a vontade de apertar a cabeça dele na parede. Agora eu queria a paz, e o sucesso na atividade de coordenador. E já sabia o que devia fazer. No dia seguinte, arrumou a cama e lavou os pratos do rapaz. No final da tarde, o interno lhe perguntou: — Eu sei que foi você que arrumou a minha cama e lavou a minha louça na hora do almoço. Por quê? — Por nada cara, é que eu gosto de você. — Tá me tirando, mano?! — respondeu o outro, dando as costas. Depois de umas horas o rapaz voltou, pediu desculpas por tê-lo provocado, e, a partir dali os dois criaram uma amizade. Com o sucesso de seu tratamento, João foi convidado a, depois de terminar seu período de internação, continuar no projeto como um missionário, um voluntário que se dedica a auxiliar na implantação e manutenção de outras Fazendas no Brasil e no mundo. Ele aceitou, e para isso desistiu de namorar e escreveu uma carta terminando o relacionamento com Thaís, mas a namorada não quis terminar. Perto de concluir seu tempo de internação, foi convidado para ir à Alemanha no final de setembro. Topou e escreveu para a família contando o desejo de ficar um ano na Fazenda na Alemanha. Os pais não aceitaram, nem Thaís. Mas ele não queria mais voltar para casa, não sentia mais saudades da família. — Poxa vida, como eu não tenho vontade de ir embora mais? Não me imagino arrumando as minhas coisas e voltando para a casa. Quero Até o fundo do poço 83
ajudar, dar de graça aquilo que eu recebi de graça. Sei que é Deus que está me chamando, e eu vou! Na última visita que faria antes do fim do internato de João, sua família disse que precisa dele. Seus pais não aceitavam que ele continuasse na obra. Mas ao ver a determinação de João, não tiveram escolha. Um dos padres da Fazenda falou com sua mãe e ela acabou aceitando. — Antes de entrar eu usava drogas até na frente da minha mãe. Hoje por causa da minha vida na Fazenda, aprendi a respeitar, a ter força de vontade, a viver. Fico impressionado com a grandeza dessa obra aqui. Eu sei como era quando começou e vejo o quanto cresceu, quero trabalhar aqui. Hoje existem muitas Fazendas em todo o país e até no exterior. E muitas vão abrir ainda. Precisa é de gente pra trabalhar, pra coordenar. Quem sabe eu não sou um deles? Estou nas mãos de Deus. Estou seguindo o caminho Dele. João fez pela primeira vez na vida um planejamento de carreira. Sabe o que espera de si próprio e em quanto tempo. Quer se dedicar ao projeto, ajudar no tratamento de outros dependentes e ganhar dinheiro suficiente para sustentar o filho. Mesmo sem morar com o menino, quer participar da sua educação para evitar que o erro de cair no mundo das drogas possa se repetir.
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Consciência dos males, certeza dos prazeres Bonita, Beatriz tem um rosto proporcional e simétrico. Seu nariz é levemente arrebitado e os dentes brancos, grandes e bem alinhados. O belo sorriso dá charme à boca nem muito grande nem muito pequena. Os lábios, pintados pelo batom, seduzem. Seus olhos, castanho-claros, grandes e redondos transmitem jovialidade e estão em harmonia com as sobrancelhas levemente finas e bem feitas. Os cabelos, de propósito estão levemente ondulados nas pontas e formam uma franja jovial na testa da moça. Ao natural, são lisos e claros. A tonalidade loira atual é acentuada por luzes e a pele é clara, mas dourada pelo sol. A jovem menina sabe que tem um corpo belo e também proporcional. Cintura fina, quadril um pouco mais largo do que a cintura, pernas torneadas e seios fartos, mas não exagerados. Veste calça jeans bem ajustada ao corpo e uma blusinha com um discreto decote à mostra. Usa brincos e um relógio. A maquiagem no rosto é feita apenas para o trabalho ou para festas, e em geral é leve e pensada para ressaltar o rosto angelical. A voz, macia e tranquila, contrasta com o andar e com a fala moleca, de quem gesticula bastante e gosta de se expressar com gírias, intercalando um ou outro palavrão. Calmamente, ela se prepara para começar os estudos para uma prova importante. Pega suas anotações e seus livros, marca as páginas que contém a matéria que precisa saber e deixa tudo pronto. O assunto é denso, clínica cirúrgica. Depois de ter tudo à mão, pega um dos itens mais importantes para ela: um cigarro. Acende e fuma até acabá-lo, sem pressa, degustando. O cheiro que passa a vigorar com a fumaça é diferente daquele dos cigarros e dos charutos de tabaco. Adocicado e bem mais forte, é o odor típico da queima do THC, ou tetraidrocanabinol, principal substância psicoativa da maconha. Ao terminar o baseado, a estudante de Medicina Beatriz se sente calma e preparada para entender o conteúdo e Até o fundo do poço 87
tirar uma boa nota na avaliação. E não é apenas em vésperas de exames importantes que a estudante usa a maconha, mas diariamente. É um hábito que a acompanha há anos e que, salvo para aqueles que já a viram fumar, é desconhecido. Filha de um casal formado por um médico e uma professora, ela pertence a uma família tradicional de uma das maiores cidades do Vale do Paraíba, no interior de São Paulo. O pai, pediatra e médico legista, sempre foi um homem protetor com os quatro filhos, mas esse sentimento era redobrado para com Beatriz, pelo fato de ela ser a única filha e a caçula. — Meu pai sempre foi ciumento e até sufocador, desde criança ouvi muito “não pode”. Os outros irmãos, mais velhos que ela em dois, 10 e 17 anos, respectivamente, recebiam dos pais a função de zelar pela menina. Quando entrou na puberdade, por exemplo, Beatriz, que chamava a atenção dos meninos por onde passava, quis sair sozinha com as amigas, mas o pai só autorizou se um dos irmãos a levasse e ficasse junto dela. Obrigados a acompanhar a irmã mais nova, os irmãos de Beatriz não se sentiram contrariados. Pelo contrário, estabeleceram uma boa relação com a irmã e acabaram por estimular o desenvolvimento precoce da menina, ensinando-a a se comportar como adolescente. O irmão mais velho, Ricardo, tinha o perfil mais liberal e alternativo. Surfista desde os 15 anos, começou a fumar maconha nessa época escondido dos pais. Quando o pai pegou-o consumindo a droga dentro de casa, deu-lhe uma surra. O castigo não teve o efeito desejado, pois o filho não parou nem de fumar a erva com os amigos, nem de trazê-la para casa. Apenas tomou mais cuidado para que os pais não o vissem usando. — Mas meu pai o pegou várias vezes fumando ao longo da adolescência, e sempre batia nele, deixava de castigo, dava sermão. De nada adiantou e o velho acabou acostumando. O segundo irmão mais velho, por sua vez, quis experimentar maconha, mas passou mal da primeira vez que usou, sentiu náuseas e vomitou. Estava em uma festa e voltou imediatamente para casa. Quando chegou, 88 Até o fundo do poço
contou ao pai que havia fumado um baseado e que estava se sentindo mal, achava que ia morrer. Mesmo com a experiência traumatizante e com a bronca que recebeu dos pais, o menino voltou a consumir a cannabis e, aos 32 anos, ainda consome a droga ocasionalmente. Do mesmo modo, o irmão mais novo de Beatriz, hoje com 25 anos, começou a usar a droga no início da adolescência, aos 13 anos. — Foi o que deu mais problema para meus pais. Fumava dentro de casa e meu pai sempre acabava pegando ele. Iam à missa e quando voltavam, encontravam-no fumando. Minha mãe queria interná-lo, estava apavorada com a ideia de ter um dependente químico na família. O irmão progrediu rapidamente o uso, e em menos de um ano estava consumindo a droga diariamente. Os pais descobriram o fato logo no início, mas mesmo com castigos não conseguiram frear o uso do filho, que passou a fingir que não usava mais a droga para tranquilizar os pais. Nessa época, Beatriz tinha 12 anos e cursava o Ensino Fundamental em uma escola tradicional da cidade. Bonita e inteligente, percebia que não precisava prestar muita atenção à matéria para ir bem nas provas e aproveitava as aulas se divertindo com a turma “do fundão”. Por andar com o grupo mais bagunceiro, ficou popular na turma. Além disso, sempre estava dentre as meninas mais desejadas pelos garotos da sala. Durante anos, ela conviveu com a mesma turma, que reunia os mais extrovertidos, ousados e rebeldes alunos da sala. E um a um, os integrantes desse grupo foram descobrindo os poderes do álcool sobre o corpo. E Beatriz está entre os que começaram a beber primeiro. Aos 14 anos, o irmão mais novo fez questão de oferecer à menina o primeiro porre de pinga com um claro objetivo: — Vou te dar um porre pra você passar mal mesmo, pra você aprender como é. A menina estava na 8ª série na escola e não ficou assustada nem sentiu medo de ficar bêbada. Pelo contrário, sentia-se protegida, sabia que tinha sempre algum dos irmãos, mais experientes que ela, a quem recorrer caso se sentisse mal. Além disso, adorou a sensação da bebida. Até o fundo do poço 89
Em pouco tempo, a turma da escola inteira aderiu ao hábito de ir aos churrascos e às festas promovidas com o intuito de beber. E ao chegar ao Ensino Médio, prestes a completar 15 anos, Beatriz, junto com todo o grupo de amigos, já havia se embriagado por diversas vezes. — O que eu fazia muito era beber sempre, muito, mas não cerveja. Eu tomava vodka, caipirinha. Comecei tomando essas coisas junto com a galera. Apesar de ilegal, essa situação não é difícil de ser encontrada. Segundo estudo feito pelo Centro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em 2010, um em cada três estudantes do ensino médio privado já se embriagou pelo menos uma vez nos últimos 30 dias antes do levantamento. A pesquisa entrevistou 5226 alunos dos ensinos Fundamental e Médio. Entre 15 e 18 anos de idade, o estudo concluiu que 7% dos meninos e 5% das meninas têm o hábito de ficar bêbados de três a cinco vezes ao mês. Pouco tempo depois de criarem o costume de beber, os mais ousados da turma decidiram experimentar maconha. Gostaram e passaram a oferecer aos demais sempre que a consumiam. Para o presidente do Conselho Municipal de Políticas Sobre Drogas de Taubaté, Orlando Benedito de Lima, os pais e a escola devem atuar antes que o jovem comece a usar drogas. — Se a criança, o jovem que está entrando na adolescência tomar consciência do perigo que é a droga e tiver medo de se tornar um viciado, provavelmente não vai usar. A curiosidade os leva até as drogas, e aí pode vir a dependência. Não tem como saber se vou me viciar se usar drogas, mas vale a pena pagar para ver? Vale a pena arriscar jogar a vida no lixo? É essa reflexão que acho que temos que levar aos jovens. Mas, para a psicóloga Cláudia Fabiana de Jesus, essa técnica não evita necessariamente o envolvimento do jovem com as drogas. Para ela, a tática do pavor pode estimular nos adolescentes a vontade de provar a substância pelo desafio que ela representa. A abordagem mais adequada, segundo a especialista, é a da conscientização do jovem sobre o que são as 90 Até o fundo do poço
drogas, quais seus efeitos e reais riscos. Nem Beatriz nem os membros de sua turma tinham medo dos efeitos nocivos que as drogas poderiam causar à saúde. Nenhum deles via problema no uso desde que fosse prazeroso. — Convivi com a turma que fumava maconha e sempre estava no meio deles, bebendo e fazendo churrasco, mas eu nunca quis experimentar por não ter a curiosidade de saber como é. Quando tive vontade, usei. A primeira vez que Beatriz quis experimentar a droga foi aos 15 anos, com uma das melhores e mais antigas amigas, que fumava há meses. Ela e seus amigos estavam reunidos num sítio, jogando truco e brincando. A festa havia começado há algum tempo, suficiente para que todos ali já estivessem bêbados. Quando o grupo de amigos “maconheiros” começou a fazer os baseados para fumar, Beatriz pediu para experimentar, queria saber qual era a sensação. — Todos os meus amigos já fumavam e eu não. Demorei muito para começar. Sempre saía muito com o meu irmão que fumava também, ia para todos os lugares que ele ia, mas não tinha fumado ainda. Experimentei e adorei a sensação, me diverti à beça. Outra amiga minha experimentou junto comigo, mas não gostou, passou mal, detestou de primeira, por isso acho que cada caso é diferente. Conforme o senso comum difundido pelos amigos de Beatriz, uma pessoa que nunca fumou maconha deve fumar mais de uma vez se quiser realmente saber qual o efeito da substância, porque na primeira vez sente uma sensação mais fraca. — Mas em mim bateu o barato logo de primeira, me diverti bastante. Foi uma sensação boa, gostei. E como em casa sempre tive os exemplos dos meus irmãos que usavam, não via mais como um problema, não me sentia mal. Eu via mais como um estilo de vida. Depois de ter experimentado, Beatriz passou a usar a droga sempre que a oportunidade que tinha coincidia com a sua vontade, o que inicialmente era esporádico. — No começo eu fumava só às vezes. A segunda vez demorou para Até o fundo do poço 91
vir, fumei depois de uns seis ou sete meses. Depois foi diminuindo o tempo entre uma vez e outra. Fumei na escola, com os amigos. Se tinha, eu fumava; se estava onde tinha o que fumar, eu ia. Mas conforme foi consumindo seus “becks”, pegou gosto pela substância. Não tinha medo algum de que o consumo pudesse lhe fazer mal, seu único receio era de que o pai descobrisse. Por isso, tomava um cuidado especial para não chegar em casa sob o efeito da maconha e nem levar para lá seus baseados. Aos poucos, com o aumento gradativo do uso, Beatriz foi descobrindo os limites de quanto poderia fumar. Entendeu, por exemplo, que depois de beber muito, não convinha fumar a erva, porque passava mal. — A gente aprende a não usar quando está bêbada, porque senão dá “PT” (sigla para perda total, significa passar mal). No começo só fumava com amigos ou com os irmãos, porque tinha mais confiança. Não queria fumar com desconhecidos. Não queria que ninguém ficasse comentando. A maconha deixou de ser classificada pela moça como droga de vez quando ela se formou no Ensino Médio. Não tivera problemas de notas baixas por conta da erva. Incorporou a maconha à sua rotina de vida, deixando de se preocupar tanto em fumar escondida. E o pai começou a desconfiar. — Eu acho que ele percebia, mas fingia que não estava vendo. Sempre fazia piadinha, durante muito tempo. Ficava perguntando de brincadeira se eu fumava para sondar. Ela não confirmava, mas também não negava, deixava em aberto. Até então nunca havia tido uma conversa séria com ele sobre as drogas. Beatriz tinha a ideia de que o entorpecente não atrapalhava a sua vida, mas sim contribuía para deixá-la mais interessante. A partir daí, experimentou outras drogas. — Eu abri bem mais esse leque de drogas quando eu fiz cursinho pré-vestibular e, principalmente, depois que eu entrei na faculdade. Até então eu só pegava maconha com meus amigos. Na faculdade, passei a comprar. A neurocientista Nora Volkow, do Instituto Nacional sobre Abuso de 92 Até o fundo do poço
Drogas dos Estados Unidos, ao visitar o Brasil em março de 2010, deu declarações contra a descriminalização e a banalização do uso da maconha. Em entrevistas à revista Veja e ao jornal Folha de S. Paulo, ela reforçou a posição da Organização Mundial da Saúde (OMS), que classifica a dependência química como doença crônica e perigosa. Para Volkow, em entrevista concedida à revista Veja, “não existe droga segura, a não ser a cafeína.” Segundo ela, “comprovadamente, a maconha tem efeitos bastante danosos. Ela pode bloquear receptores neurais muito importantes. [...] Causa desde aumento da ansiedade até perda de memória e depressão.” Ao analisar os estudos sobre dependência, a cientista afirma que “a maior parte dos usuários de cocaína começou com a maconha. Mas, ao olharmos os dados de quem fuma maconha, veremos que essas pessoas geralmente começaram com cigarros ou álcool.” Beatriz se enquadra nesse perfil de usuário, mas começou a fumar cigarros de tabaco quando estava cursando a segunda série do Ensino Médio. Depois de um ano estudando no curso pré-vestibular se preparando para ingressar em um curso de medicina, Beatriz conseguiu passar em uma faculdade privada em uma cidade do interior do Rio de Janeiro a 250 quilômetros de onde morava. Preferiu ingressar na universidade a estudar mais um ano para entrar em uma instituição pública. Com a decisão, o pai passou a desembolsar o dinheiro do aluguel e mais R$ 2200 da mensalidade do curso. Pouco antes de sua mudança para o Rio, sua turma lhe preparou uma festa de despedida na casa de uma de suas amigas. Ali, experimentou a cocaína. — A cocaína sempre foi uma droga que eu tinha vontade de experimentar. Sabia que um dia eu ia cheirar, mas tinha um tremendo pavor do que ela poderia me causar. Achava chocantes aquelas histórias que a gente ouve dessa droga. No local, quase todos os seus amigos cheiravam cocaína. E ela, mais Até o fundo do poço 93
uma vez, era uma das poucas meninas da turma que não haviam experimentado a droga. Nesse dia, depois de ter bebido álcool, sentiu curiosidade de experimentar a sensação proporcionada pelo pó e pediu aos amigos que lhe “esticassem uma carreira”. — Eu já sabia como usar por ver os amigos usando. No começo, gostei muito da sensação que tive, mas logo fiquei apavorada. Não sabia o que estava acontecendo comigo. Perguntava pra mim mesma: “será que eu estou muito louca? Será que estão percebendo que eu cheirei?” Me sentia suja, achava que era uma coisa muito feia de fazer, ainda mais para uma mulher. Era um preconceito que eu tinha. Mas logo depois de se mudar e ingressar na faculdade, esse preconceito de Beatriz passou. Isso porque conheceu no ambiente acadêmico uma série de futuros médicos que usavam drogas, de vários tipos e de forma contínua. A maioria dos estudantes com os quais se identificou na faculdade se encaixava nesse perfil. — Lá tem muita gente que usa. Muita mulher usa, às vezes mais pra se fazer de tal, pra aparecer. Daí eu voltei a cheirar algumas vezes, várias, pelo menos dez. Eu ainda morria de medo mas tinha gostado. A sensação que sentia foi mudando, e o efeito melhorando. — Você está sabendo pelo que está passando e o que vai sentir depois de usar a droga, então vai aproveitando o grau que te dá. Os lugares em que cheirei mudaram minha sensação também. Ter experimentado em uma festinha em casa, como eu fiz, deu uma sensação. Quando usei em uma festa de jogos de faculdade foi outra coisa, aproveitei de outras formas o grau, muito bom. Mas a maioria das vezes em que eu usei foi na casa do pessoal mais amigo e tal. Mas mesmo tendo cheirado diversas vezes o entorpecente, ainda sentia-se mal por usar, arrependia-se sempre que consumia. — Esse lance de eu usar me deixava muito mal. Antes de começar meu coração já começava a palpitar, dava medo, angústia e peso na consciência. Batia uma dúvida: “será que eu tenho que fazer isso?”. E se eu cheirasse, o que poderia acontecer comigo estando muito louca. Não era igual a usar 94 Até o fundo do poço
drogas junto com amigos mais íntimos ou com os irmãos. Nesse dilema, decidiu aconselhar-se com a pessoa com a qual tinha a maior relação de confiança, seu irmão dois anos mais velho. Beatriz contou ao irmão que havia cheirado cocaína e que estava preocupada. Ele a aconselhou a tomar cuidado com o ambiente em que fosse se drogar e pediu que ela prestasse atenção nas companhias, mas não pediu que ela evitasse consumir o pó. Preocupada, Beatriz abdicou de usar a droga durante um tempo por medo de ficar “louca demais”. — Tenho preconceito comigo mesma cheirando cocaína. Hoje em dia eu evito, mas não digo que nunca mais usarei. Isso porque, na faculdade em que está, as oportunidades aparecem constantemente no meio das festas e churrascos. A atitude de evitar a droga ocorreu logo após a primeira experiência ruim que Beatriz teve. Depois de ter cheirado muito em um dia, quando estava no terceiro ano de faculdade, ficou na cama passando mal. — Me bateu uma bad trip (“viagem ruim”, quando o usuário sente efeitos colaterais) horrenda, eu não conseguia dormir. Ali pensei que aquilo o que estava tomando não era pra mim. Decidi dar um tempo. Hoje a menina, que está no quarto ano do curso, adaptou-se a uma nova e completamente diferente rotina daquela vivida antes da graduação. Se antes usava maconha esporádica e disfarçadamente, com a liberdade de morar sozinha e com o clima liberal da faculdade, Beatriz passou a fumar erva diariamente, e mais de uma vez por dia. Também abriu a gama de lugares em que consumia a droga. Com isso, mais pessoas souberam de seu uso. — Já fui pega fumando maconha pelo segurança em um show e fui expulsa do local junto com uns amigos. Também passei um aperto quando estava viajando com uns amigos para Trindade (Paraty-RJ) e a polícia parou o carro para fazer uma revista. Eu consegui jogar fora a droga que estava comigo, mas uma amiga minha não conseguiu porque ficou muito nervosa e escondeu. Até o fundo do poço 95
Na revista, a polícia achou porque pediu que a menina tirasse a roupa inteira. Pediu que ela se apalpasse, abaixasse e levantasse os braços, abrisse as pernas, tudo para localizar entorpecentes. E achou a porção de droga que a menina havia escondido. A amiga tomou tapas da policial, teve a droga apreendida e em seguida foi liberada. — Esse foi o pior aperto que a gente passou, mas não deu em nada, não pegaram nenhuma porção grande. No início de seu consumo, a estudante de medicina pegava maconha apenas com os amigos, mas com o consumo diário passou a comprar a droga de traficantes e em quantidades maiores. Assim, criou o hábito de fazer um estoque da droga, e com isso passou a gastar menos. Durante os três primeiros anos de faculdade, ela vinha de ônibus para visitar os pais a cada duas ou três semanas e aproveitava para repor as porções de maconha consumidas. Mas neste ano ganhou um carro zero quilômetro do pai e passou a comprar semanalmente. — Compro toda vez que vou a minha cidade. Levo de lá porque é muito mais barato do que na faculdade. Agora que estou vindo de carro, compro sempre aqui. Mas antes, quando não tinha, durante os três primeiros anos da graduação, eu comprei na faculdade, mas é bem mais caro. O gasto é sempre certo e planejado. Na hora de comprar, ela ainda busca a discrição, exatamente por isso é freguesa de uma boca de fumo específica e evita comprar mercadoria em outros lugares. Semanalmente, ela gasta, em média, R$ 50 reais com a erva. — Essa grana rende uma pedra de maconha bem servida, da mais misturada, a mais vagabunda. Se fosse para comprar um bom, os R$ 50 dariam uma pedra pequenininha. Não tenho nem acesso a essa de qualidade boa. Geralmente eu fumo da boa quando meu irmão traz de São Paulo ou quando alguém traz um quilo de maconha de São Paulo para Vassouras. Não é investimento, é gasto. O local onde compra fica em um bairro de classe média baixa da periferia da cidade, indicado pelo irmão como o lugar mais discreto e tranquilo para comprar droga. 96 Até o fundo do poço
— Todos os meus irmãos fumam até hoje. Meu irmão de 40 anos nunca deixou de fumar, mas é o que fuma menos. Os outros fumam sempre. E desde sempre o mais novo deles me ajudou em tudo que envolvia droga. Quando eu fui fazer faculdade, e quis achar onde comprar maconha, ele foi comigo para me ajudar a encontrar onde era mais seguro evitar que todo mundo ficasse sabendo. Apesar de já ter estabilizado seu consumo de maconha, Beatriz também compra porções maiores do que as que está habituada quando vai às festas da faculdade. Acostumou-se a comprar para si própria e para a turma de amigos. Hoje o pai sabe, e ela acredita que, como ele já passou por isso com todos os filhos, aprendeu que a maconha não é das drogas mais fortes nem das mais viciantes, que fará seus filhos dependentes. No último Dia dos Pais, foi à cidade natal e aproveitou, como sempre, para comprar maconha. E nesse dia comprou uma pedra da droga, quantidade suficiente para abastecer o consumo de todos os seus amigos por várias festas de faculdade. Escondeu o tablete em casa no dia, mas a mãe mexeu no guarda-roupa da menina e achou a droga. Contou para o pai, desesperada com a situação. — Meu pai ficou uma fera, disse que sabia que eu fumava, mas ficou bravo pela quantidade de droga. Perguntou: “pra que tudo isso? Pra quem é? Onde e com quem você comprou? Como que você contatou quem vende isso?”. Ouvi um grande sermão. O pai tinha medo de que a filha estivesse traficando, que fosse presa pela polícia e desperdiçasse qualquer chance de ter uma carreira de sucesso na Medicina. — Isso é um absurdo, não é um cigarrinho que você fuma esporadicamente, como eu acho que você faz. Você passou dos limites. Ou está vendendo ou consome tudo isso, é viciada. — Não é, meu pai, deram pra eu guardar. Mas eu não vou falar os nomes, desencana, relaxa e esquece. Ao ouvir isso, a mãe chorava. Já o pai, iniciou um discurso para que a Até o fundo do poço 97
filha dele “colocasse a mão na consciência” e visse o quanto custava para a família mantê-la numa cidade em outro estado, morando sozinha e numa faculdade de Medicina paga. — Não é que eu não tenha consciência. Eu fumo todos os dias e fumo mais de uma vez por dia, às vezes quatro, cinco e até mais vezes no mesmo dia. Mas moro sozinha, não atrapalho ninguém e isso não atrapalha minha rotina. No máximo me dá sono, mas deixa minha vida ir para frente, sei administrar. Mas não é só quando tem vontade que Beatriz usa drogas. Mesmo depois de ter começado a evitar a cocaína, por exemplo, cheirou o pó várias vezes, e inclusive chegou a entrar na boca de fumo de um bairro pobre e dos mais perigosos da periferia de sua cidade natal para buscar a substância. — Fui pilhada por um pessoal que gosta muito, mas eu não queria. Só eu tinha carro e acabei indo, detestei. Isso foi há cerca de um ano e eu prometi que nunca vou voltar àquele lugar. Nunca mais usei com essa galera também. Eu estava bêbada e louca, se a polícia me parasse seria o fim. Bateu a consciência no dia seguinte, se meu pai soubesse disso seria horrível. E essa não foi a última fez que ela usou a droga. Nos jogos universitários de sua faculdade, usou pelo menos três tipos de entorpecentes, dentre eles a cocaína. — Lá rolam muitas festas, por ser uma cidade universitária, sempre tem balada, festinha em república, churrasco, etc. Os jogos são a maior das festas, e ali todo mundo usa drogas de tudo quanto é tipo. Nesses últimos tempos acabei cheirando cocaína, abri exceção. Só uso em um lugar muito bom, com uma galera muito boa e estando bem à vontade. Isso tudo aconteceu e me deu vontade. Nessa ocasião, também usou a droga que hoje é a sua preferida, o LSD ou ácido lisérgico, popularmente conhecido entre os universitários pelo nome de “doce”. A droga é sintética e, por ser mais cara do que as drogas convencionais, é usada principalmente pelo público universitário. O fato de ser considerada pelos estudantes uma droga não viciante e pouco peri98 Até o fundo do poço
gosa ajudou a disseminação de seu uso. Entretanto, especialistas refutam essa teoria do senso comum de que o LSD é uma droga segura. O ácido é uma droga alucinógena, consumida quase sempre em conjunto com outra droga sintética, o ecstasy ou MMDA, conhecido como “bala”, que tem efeito estimulante. Combinadas, essas drogas são frequentemente usadas em raves, festas de música eletrônica populares no público universitário das classes média e, principalmente, alta. Esses eventos geralmente têm duração de mais de 24 horas, e é para permanecerem acordados que seus frequentadores recorrem às substâncias. Os efeitos de uma “bala” demoram, em média, 5 horas para cessar, enquanto que os do “doce” podem chegar a 12 horas de duração. O argumento de que são drogas seguras não é verdadeiro. Desde a sua popularização no Brasil, as raves registram casos de mortes por overdose dessas drogas. Nos últimos anos, essas substâncias passaram a ser encontradas facilmente e consumidas também fora dos festivais de música eletrônica. Beatriz é um exemplo disso. Sem nunca ter ido a uma rave, a moça usa o LSD e também já experimentou o ecstasy. — O ácido é a melhor droga já feita, é muito, muito, muito bom. E eu nunca fui em rave, morro de medo de ir porque dá muita gente no “grau forte”. E não gosto de olhar pessoas num estado deplorável. Fico desesperada pra saber se eu estou assim. Não fico igual a essa galera, abitolada, conversando com folhas de árvore, vendo coisas. Não é esse grau que tenho, morro de medo de chegar nesse ponto. Normalmente tomo em festas grandes de faculdade, tipo a dos jogos universitários, onde geralmente toca de tudo um pouco. A primeira vez que Beatriz tomou o ácido foi quando participou de uma edição dos jogos universitários no primeiro ano de faculdade. Ela estava no início de um namoro com um veterano da faculdade que, como ela, gostava de experimentar todas as drogas que pudesse a fim de “curtir a brisa e aproveitar a vida”. O rapaz já usava “bala” e “doce” e ela resolveu experimentá-las. Pediu a um amigo que tinha a mercadoria e tomou Até o fundo do poço 99
as duas substâncias. A primeira veio na forma de comprimido, a segunda consistia um pequeno papelote embebido no ácido. — Adorei o doce, mas a bala não. É uma a sensação semelhante a da cocaína, mas mais fraca. Depois da primeira experiência, adicionou o LSD à sua lista de drogas consumidas com mais frequência. — Já tomei um doce inteiro e nunca tive bad trip, mas em geral tomo um quarto de papelote por vez. Nunca tive alucinações fortes, só sentia que os reflexos ficavam mais apurados. Ela acredita que nunca passou mal porque soube onde usar. Para ela, só passa mal quem não sabe onde e como apreciar o entorpecente. — Eu sempre que tomei LSD foi com meu namorado, por exemplo. Mas se a gente estava mal, nem tomava, porque seriam 12 horas de discussão, até acabar o efeito da droga. Quando lhe perguntam por que considera o efeito do LSD o melhor dentre os sete tipos de droga que já usou, Beatriz responde: — Eu tomo o ácido e fico querendo captar tudo o que acontece ao meu redor ao mesmo tempo com o olhar. Consigo captar várias coisas a mais do que quando estou normal, careta. Não consego me concentrar em uma coisa só, não consego levar uma conversa inteira. Acho que a gente só descobre o quanto é bom depois de tomar. Posso me ver de fora do corpo, como se estivesse de frente com um espelho. Consigo refletir, penso em várias coisas chego a conclusões importantes sobre problemas que tenho. Mas apesar de não ter ido a festivais de música eletrônica e frequentar festas universitárias que tocam diversos tipos de música, Beatriz curte mais a música eletrônica quando está sob o efeito do ácido. O gasto dela com a droga varia. Geralmente, costuma comprar a substância na faculdade com amigos. Nos últimos jogos universitários, levou cinco papelotes de LSD, pagando R$ 40 por cada. Mas geralmente compra quantias menores mensalmente. Geralmente paga de R$ 30 a R$ 40 por cada papelote. — Compro sempre com a galera da faculdade, universitários que con100 Até o fundo do poço
somem a droga e vão buscá-la nas capitais e revendem para os amigos. Esse tipo de traficante costuma ser chamado de dealer e tem o perfil diferente do traficante comum. São, em sua maioria, jovens universitários que vendem apenas drogas sintéticas para um grupo conhecido de pessoas e em porções pequenas. Constituem uma espécie de intermediário entre o produtor da droga e os usuários. Festeira, a rotina atual de Beatriz intercala períodos intensos de estudo com viagens e baladas com os amigos. De todas as pessoas com quem tem afinidade, ela afirma que, ao menos nove entre dez usam drogas com frequência. — Quem não usa direto geralmente é mulher, não tem coragem de cheirar pó, mas de tomar doce sim. Todas as minhas amigas entraram na faculdade sem saber o que era maconha e hoje estão todas fumando beck e tomando doce. O pessoal até zoa, fala: “Nossa, olha só a mulherada. Antes era só a Bia que era maconheira, agora olha a cambada que têm. As meninas estão toda hora querendo beck e doce.” Beatriz não faz mais tanta questão de esconder seu uso de drogas das pessoas com quem convive. Procura apenas não consumir nada às vistas de quem não conhece ou com quem não tem intimidade. Mas mesmo os que não são seus amigos na faculdade sabem, seja por terem visto a moça sob o efeito de drogas em festas, seja porque algum amigo dela comentou. Para ela, atualmente, mesmo com o uso banalizado da maconha, por exemplo, existe preconceito com seus usuários. — Até algumas amigas mais próximas vêm me falar que eu uso muita droga, e eu não me importo de elas falarem. Até fico agradecida pela preocupação, mas quando critica demais eu não gosto. Elas não podem me criticar porque bebem, ficam caídas por aí e vão para cama com o primeiro que aparece pela frente. Ninguém pode me julgar por fumar maconha em casa na hora em que vou dormir. Eu respeito a vontade de cada um, os outros têm que respeitar a minha. Mas mesmo que não goste de ouvir algumas críticas, Beatriz sabe que seu uso contínuo da droga não é algo benéfico. No quarto ano do curso Até o fundo do poço 101
de Medicina, ela sabe dos efeitos e consequências do consumo cotidiano de drogas. É fato que tem mais conhecimento sobre o mal que os entorpecentes causam ao seu organismo do que boa parte dos usuários, e não tem receio de admitir isso. Mas mesmo assim, não vê motivos para se preocupar com a saúde atualmente e afirma que a maconha faz menos mal para seu organismo do que o cigarro que fuma e é legalizado. — Eu acho que eu uso muito, mas vejo isso de uma forma realista, eu me enxergo, sei quais são meus atos e as possíveis consequências. Tenho certeza de que essa fase vai passar. Eu não posso continuar nessa rotina para sempre, ainda mais no ano que vem, que eu vou entrar no internato. Minha vida vai ser cada vez mais corrida. Essa é uma fase. Acho que tudo tem sua fase, e a faculdade é quando você mais bebe, mais zoa, mais tem liberdade. Mas não tem como levar isso para frente depois. Mas não pretende parar de fumar maconha, apenas vê que terá de reduzir gradativamente o consumo. Hoje fuma para assistir às aulas às vezes e não vai mal nas provas, pelo contrário, costuma ser uma boa aluna. Fuma para estudar e acha que isso melhora a sua concentração. Sua identificação com a droga é tanta que ela fala que, quando for casar, provavelmente será com uma pessoa que também fume. Mesmo assim, ela admite o próprio vício, ainda que, paradoxalmente, também acredite em seu domínio sobre a vontade de usar drogas. — Eu acredito que seja viciada em maconha. Se não tiver maconha, arranjo um jeito de fumar com alguém ou de comprar. Não me lembro de ter ficado um dia sem fumar maconha durante a semana em pelos menos dois anos. Só quando venho para a casa dos meus pais fico, às vezes, sem fumar. Mas realmente tenho certeza do meu autocontrole. Mas para Orlando Benedito de Lima, que orienta jovens sobre os riscos dessa realidade, todo usuário dependente, falsamente, acredita ter controle sobre seu uso. — Nunca vi um dependente que, antes de assumir que precisa de ajuda, diga que não tem controle sobre suas vontades. “Eu paro quando eu quero”, isso a gente ouve muito. Mentira, não dá, se você for dependente 102 Até o fundo do poço
não consegue. Como prova do seu comando sobre as próprias vontades, Beatriz afirma que não são todas as drogas que provaria. Diz que nunca vai usar crack. Isso porque tem vários amigos e conhecidos de infância que são dependentes da droga e que hoje estão em situação deplorável. — Tenho mais nojo do crack que curiosidade em saber quais são os efeitos. Não preciso provar pra saber que não é bom. Uma vez já cheirei cola e foi horrível, pensei que era uma idiota, era horrível a sensação, você fica com medo de tudo, se sente como um bichinho acuado e no crack eu acho que isso deve ser elevado a um milhão. Ao saber da história de Beatriz, é fácil perceber contradições em sua vida. Não é fácil explicar logicamente, por exemplo, ela se preocupar com o corpo ao ir à academia três vezes por semana e, ao mesmo tempo, fumar maconha e cigarros diariamente, consciente dos males à saúde. Também é complicado imaginar o porquê de ela estar cursando medicina, uma profissão tão ligada aos cuidados com a saúde. Beatriz quer se especializar em oncologia, gosta de ter o contato com as pessoas e de poder ajudá-las. Quer tratar de crianças. — Nessa profissão você convive com as pessoas e aprende a lidar com a vida. Nada mexe mais com uma pessoa do que a doença. Sempre tive vontade de cuidar do corpo humano, interesse em saber como funciona, sempre fui aficionada pelo corpo humano. O difícil mesmo é entender como alguém que tem tanto interesse em cuidar da saúde das pessoas possa fazer um mal consciente a seu próprio corpo.
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Quando o maior desafio está dentro de casa Henrique tem 42 anos e aparência jovial. Veste-se com camisetas estampadas, calças jeans, tênis e meias de cano curto. Mas, apesar da imagem que passa, está aposentado por invalidez devido a uma série de problemas de saúde, em boa parte ocasionados pelo uso contínuo de cocaína por mais de 20 anos. Durante quase uma década, apenas quem cheirava cocaína com ele e alguns amigos mais íntimos tinham conhecimento do fato. Casado, ele enfrentava crises conjugais e quase não via os filhos, mesmo morando junto com eles. Ao chegar ao “fundo do poço”, pediu ajuda e tratou-se. Hoje se mantém longe das drogas, mas tem que enfrentar um problema ainda maior que a própria dependência. Henrique nasceu em uma família pobre em um bairro de classe baixa de uma das maiores cidades do Vale do Paraíba, no interior de São Paulo. Seus pais se casaram ainda jovens e tiveram cinco filhos, dos quais Henrique é o segundo mais velho. Com uma família grande para cuidar, os pais tiveram dificuldades financeiras até para sustentar os filhos. Além disso, brigavam constantemente, fato que levou à separação do casal. Quando os filhos ainda eram pequenos, o pai saiu de casa e foi morar em uma cidade do Litoral Norte de São Paulo, deixando a educação e o sustento das crianças para a mãe. Ela tinha que trabalhar o dia todo para sustentar a casa, e por conta disso deixava o filho mais velho responsável por cuidar da casa e Henrique por cuidar os irmãos mais novos. Ambos ainda eram crianças. Aos oito anos, Henrique se queimou com um litro de álcool ao tentar salvar a irmã. A mãe, que era operária de uma indústria, estava trabalhando. A irmã mais nova estava brincando com fogo na cozinha, enquanto ele brincava com água nos fundos da casa, usando apenas uma cueca. Até o fundo do poço 107
Quando ouviu os gritos da irmã foi socorrê-la e viu a garrafa pegando fogo. Tirou o objeto da mão da menina e tentou jogá-lo fora, mas não deu tempo. A garrafa explodiu, queimando todo seu braço esquerdo. As queimaduras foram de terceiro grau. O médico disse à mãe que ele havia escapado da morte, mas devido à gravidade dos ferimentos, ficaria internado no hospital por um longo período. Entre idas e vindas ao hospital, com infecções hospitalares e outras complicações, Henrique ficou mais de dois anos tratando as queimaduras. A irmã não se queimou muito e saiu logo do hospital. Hoje classifica os pais como alcoólatras, e acredita ter herdado o vício dos pais, pois o pai bebia com certa frequência, embora não ficasse andando bêbado pelas ruas; já a mãe, depois da separação, passou a beber quase que diariamente em bares. Desde a infância não aceitava a vida que tinha. Revoltava-se por ter ficado, ainda pequeno, tanto tempo internado. As cicatrizes eram feias e na época era chamado de “leproso” na escola. Pouco tempo depois, abandonou a escola e, quando sua mãe pediu ao pai que levasse dois dos filhos para criar, foi um dos escolhidos, junto com o irmão mais velho, que não quis ficar no litoral por muito tempo e voltou. Henrique, aos 12 anos, acabou tendo que morar sozinho com o pai. O homem era boêmio e dedicava pouco tempo ao filho, deixava-o com uma tia. Com isso, o menino cresceu sentindo-se, de certa forma, rejeitado pela família, mas permaneceu no litoral até completar 18 anos. Lá, arranjou o primeiro trabalho, tornou-se aprendiz em uma oficina mecânica. Um dia, quando foi de bicicleta até a casa da mãe, seu irmão mais novo arranjou-lhe um emprego na linha de produção da Juta, uma indústria de tecidos. Ele não gostava de fábrica, mas foi. E foi ali que conheceu a mulher que viria a ser sua esposa. Em 1981, ingressou em uma montadora de veículos. — Em oito meses de namoro, casei com minha namorada, sem estrutura familiar nenhuma, sem maturidade, sem responsabilidades. E ainda tive minha filha aos 19 anos. Com o casamento, vieram mais problemas. Ainda jovem, antes de 108 Até o fundo do poço
completar 20 anos, Henrique casou porque admirava a namorada por sua beleza. Mas a mulher era ciumenta, e ele não aceitava o sentimento. Queria aproveitar uma vida de solteiro mesmo estando casado: jogava cartas com os amigos todos os dias, ia a rodeios toda semana e aos bares quase diariamente. Consequentemente, o relacionamento com a esposa foi se deteriorando rapidamente. Outro resultado da boemia era que o rapaz ia trabalhar cansado porque ficava até de madrugada nos bares. Dando prioridade à diversão, pediu para ser mandado embora e montou um negócio próprio para fazer seu horário de trabalho mais flexível. — Eu nem parava em casa mais. Voltava pra casa às 3h ou 4h, e saía de manhã para ir ao trabalho. Um dia, quando estava desgostoso com as brigas constantes com a mulher e com uma crise financeira que estava vivendo por conta dos gastos com noitadas, viu, no escritório da oficina mecânica, um cliente usando cocaína. Sentiu vontade de experimentar e pediu para usar também. O homem tentou demovê-lo da ideia, mas Henrique foi insistente e usou a droga. Gostou da sensação, sentiu-se mais bem disposto e pronto para enfrentar os problemas. Mesmo usando a droga sem culpa, achava que era necessária a discrição, e por isso, usava sozinho, evitando que alguém o visse consumindo o pó. Pouco depois conheceu, também na oficina, um homem que era traficante de drogas e fez amizade com ele. Na mesma época, entrou na Polícia Civil como mecânico, mesmo sem ter prestado concurso público. Tinha um bom contato com policiais, que eram seus clientes na oficina, e entrou na corporação como prestador de serviços. Ali ficou por quatro anos. — Eu estava do lado da lei e do lado das drogas. Trabalhava e mantinha as duas aparências, tinha controle da situação. Um dia o delegado de polícia o chamou para uma reunião particular. O assunto: ele descobrira que Henrique estava usando cocaína. Como gostava muito dele, o homem decidiu não autuá-lo, nem tampouco desmoraAté o fundo do poço 109
lizá-lo em público. Pediu apenas que o mecânico pedisse a exoneração e recomendou que ele parasse de se drogar. — Eu não quero te ver aqui como um réu, mas você vai ter que sair daqui. Muitos dos investigadores que trabalhavam com ele na época estão mortos hoje por causa do envolvimento com drogas. Todos os que eram usuários foram, cedo ou tarde, expulsos da corporação. Depois do fato, Henrique ainda demorou quase dez anos para desencadear o processo de dependência química, com a perda do controle sobre a rotina de vida. Nesse tempo, Henrique se entregava à boemia, indo diariamente a bares, shows, rodeios, ou outro tipo de festa que houvesse. Mas não sentia efeito colateral algum do uso de drogas, seu único problema era a “amarra” do casamento. Quando saiu da polícia, começou a ganhar a vida no tráfico de drogas em um bairro pobre da cidade. Fez amizade com o traficante, mas não se sentia à vontade, tinha ressaca moral por ter de chegar àquele ponto. — Acabei virando aquilo tudo contra o que sempre fui. Roubava casas e carros, assaltava, ameaçava os usuários inadimplentes de morte. Como inúmeros outros traficantes, o parceiro de Henrique foi assassinado por uma disputa por pontos de droga. Depois disso, apavorado, Henrique decidiu que precisava sair das drogas. Tinha medo de morrer como o amigo. Para fugir das drogas, dos traficantes, e tentar reestruturar a vida, saiu da cidade e voltou a morar no litoral, mas não levou a família por achar que precisava passar um tempo sozinho. Ficou, ao todo, um ano morando longe dos filhos e da esposa. Montou uma oficina mecânica no litoral e depois trouxe a família para morar com ele na praia. Mas o que parecia estar dando certo, de repente, voltou à estaca zero. — Não teve jeito. Aquele não era o lugar certo. Um dia, um cliente entrou na oficina, bom falador e paulistano, dizendo que tinha dinheiro e me propondo um negócio. Na época, eu estava na oficina, mas não estava tendo lucro, estava meio falido, e topei. Mas nem desconfiava que ele 110 Até o fundo do poço
também era usuário de drogas. Era “baqueiro”, injetava heroína na veia. Mas os dois não terminaram a sociedade depois que Henrique descobriu que o sócio também era um viciado. Pelo contrário, fortaleceram uma amizade e Henrique retomou o uso de drogas com força. A sociedade terminou de vez com a morte do sócio de Henrique, ocorrida num acidente de automóvel. Dirigindo sob o efeito de drogas, a mais de 100 km/h, o homem acabou por colidir na traseira de um caminhão. Henrique também estava no carro e se feriu, mas sobreviveu. Depois de escapar da morte, Henrique tentou novamente parar com as drogas, mas sem obter sucesso. O que acontecia era o inverso: ele estava consumindo cada vez mais droga. Sabendo do problema do filho e tendo tratado o alcoolismo, a mãe de Henrique veio visitá-lo. Na hora de ir embora, ele fez questão de levá-la de carro para Taubaté. — Na verdade eu queria mesmo é fugir da minha esposa para poder usar droga escondido em Taubaté. Mas minha mãe e minha mulher não deixavam. As duas foram com ele dentro de um Escort que ele havia consertado. O carro era de um cliente importante, sobrinho de um delegado da cidade. — Eu ia só deixá-la em Taubaté, era rapidinho e não vi problema. Mas na ida, no meio do caminho, com um espirro, Henrique, que havia cheirado cocaína na noite anterior, estourou uma veia do nariz. Com o sangramento, perdeu o controle do veículo, que capotou. Por sorte, ninguém se feriu. — Deixei as duas no pronto-socorro para que fizessem exame e fiquei desesperado, não tinha dinheiro para consertar o carro novamente. Como já tinha contatos no mundo do crime, tive que recorrer a conhecidos e consegui um carro igual, roubado. Entreguei o carro pro cliente, mas minha esposa sofreu demais com isso. Com a experiência, voltou ao tráfico para se levantar financeiramente. Mas não conseguia mais por conta do uso excessivo de drogas. Toda tentativa de prosperar no negócio criminoso era frustrada porque ele usava Até o fundo do poço 111
boa parte da mercadoria que tinha de vender. Mesmo tendo trabalhado no tráfico, garante que nunca tirou a vida de ninguém. — Acho que, mesmo seguindo aquele caminho totalmente equivocado, tinha alguma bondade no coração. Estive por diversas vezes prestes a matar alguém ou a ver a morte de gente que devia ao tráfico. Mas na hora em que precisava atirar, tinha pena. E cheguei até a impedir a morte de alguns usuários. Aí entendi que eu tinha que sair. Não me encaixava naquela vida, mas estava ali pelo vício. Sua esposa queria que ele retornasse para o Vale do Paraíba, pedisse seu antigo emprego na fábrica de automóveis de volta e deixasse as drogas. Ele aceitou e se mudou novamente, mas sem esperanças de conseguir arranjar emprego. Para ingressar na indústria, precisava passar em um exame antidoping, o que naquelas circunstâncias era impossível. — Não conseguia ficar limpo um dia sequer, precisava cheirar. Estava desiludido com a situação pela qual passava, mas, por insistência da minha esposa, preparei um currículo e mandei para um amigo que trabalhava na fábrica. Dias depois, em um jogo de futebol com amigos, ao disputar a bola, um dos jogadores do time adversário atingiu a perna de Henrique. — O golpe atingiu uma artéria da minha perna, machucou bastante, fiquei imobilizado na hora e precisei ser levado ao hospital. Quando estava internado para se recuperar da lesão, foi convocado pela fábrica para fazer um teste de intoxicação para ser admitido. Por estar internado, Henrique não conseguira ter acesso à cocaína, mas ao mesmo tempo, não tinha alta médica para deixar o hospital. — Então minha mulher, muito insistente, assinou um termo de responsabilidade e me levou para fazer o teste. Fui mancando até lá, mas passei e fui novamente contratado. Ainda durante cinco anos eu usei drogas na empresa. Mas tentei reduzir o uso para manter o emprego. Mesmo assim, faltava muito nas segundas e sextas-feiras. Nesses dias não aguentava trabalhar porque geralmente havia se drogado muito no 112 Até o fundo do poço
fim de semana. — Não sabia até que ponto era difícil usar drogas. Fiz muitas promessas, mas não consegui me recuperar. Dos finais de semana, o uso progrediu para diário de novo, e com o uso veio a depressão e a agressividade. Henrique sentia-se frustrado por não conseguir parar com o vício e voltava-se contra si próprio em acessos repentinos de raiva. Por quatro vezes tentou se suicidar. Com medo de que alguma vez ele pudesse ter êxito nessas tentativas, sua esposa, ao perceber que o marido estava prestes a surtar, saía da casa, levava os filhos consigo e escondia as armas de fogo que ele ainda guardava desde quando trabalhava no tráfico. Henrique tinha uma espingarda calibre 12 e um revólver de calibre 38. — Eu nunca atingi meus filhos, mas queria me mutilar. Não aguentava mais aquela situação de não conseguir me curar. Num domingo, cheguei a casa às 17h e comecei a cheirar. Minha esposa percebeu e saiu de casa. Só parei às 20h porque o corpo não suportava mais. Estava transtornado, via coisas andando pela parede de casa. Queira acabar com aquilo. Procurei as armas que tinha, mas não estava conseguindo achar. Depois de muito procurar, achei as munições do revólver. Coloquei as balas na boca do fogão. Quando explodiu o primeiro projétil, chamaram a polícia. A esposa, que estava na casa da irmã, também foi chamada às pressas pela vizinhança. A bala não havia atingido o marido, mas já era a quinta tentativa de suicídio. E vários eram os motivos pelos quais queria morrer: para deixar de sofrer com a dependência, para evitar machucar a família, por vergonha da situação em que se encontrava. Depois disso sentiu que algo havia mudado. Não podia mais se manter naquela vida, não tinha o que piorar. — Na hora da perda total, a pessoa sente que precisa parar. Foi assim comigo, e é assim com a maioria dos usuários que conheço. É o fundo do poço. A pessoa vê que não dá, não consegue mais. Não tem mais forças para trabalhar, os amigos que usavam droga junto com ele e andavam sempre juntos não estão mais com ele porque não chegaram nesse estágio Até o fundo do poço 113
de dependência e não querem mais a convivência com o drogado. Isso aconteceu comigo. Eu andava de carro, ia a festas, era popular e andava rodeado de pessoas quando comecei a usar drogas. E depois, quando fui perdendo dinheiro e passei a andar a pé, desapareceram todos. Ninguém queria ficar perto de mim. Aí a depressão entra, e entra forte. É a hora em que você fala pra você que precisa parar. Henrique precisou chegar sozinho à conclusão de que não poderia parar o vício por conta própria. Pediu ajuda. — Decidi que precisava me internar e entrei no programa de tratamento de dependentes químicos que a fábrica tinha para os funcionários. No dia seguinte já pedi a internação e fui. Na clínica, eu entendi o que era a droga e porque eu não conseguia parar de usá-la. Foram 30 dias desesperadores lá dentro. Eu batia a cabeça no chão e na parede pela vontade grande de usar drogas. Quando entrei não sabia ainda o que era uma crise de abstinência. Mas depois dos 30 dias não tive mais crise, terminei meu período na clínica, recuperei minha vida. Logo depois de sair do programa de recuperação da empresa, foi chamado para passar na linha de montagem e conversar com quem estava passando pelos mesmos problemas. Ali, Henrique descobriu que tinha desenvoltura e habilidade para lidar com dependentes. — Eu me engajei no projeto para ajudar pessoas que passaram pelo que eu passei, e venho passando ainda. Pela experiência própria que eu tive no vício, virou uma rotina pedirem para que eu converse com dependentes. E eu entendo a situação, entendo o que eles sentem, o que eles querem e como eles podem parar. Visitei funcionários em suas casas e dentro da empresa. Fui bem sucedido nessa área e superei muitas dificuldades. Depois, quando me aposentei, passei a ajudar clínicas e grupos. Mas, ultimamente, Henrique, voltou a ter crises de abstinência após doze anos sem usar drogas. — E acho que vou tê-las até a morte. Não posso dizer que estou definitivamente livre das drogas, porque a vontade de usar persiste, e é forte. Vivo na filosofia de que cada dia é uma luta diferente contra o vício. 114 Até o fundo do poço
Para ele, uma das coisas que mais pode prejudicar um dependente recuperado são as expectativas dos mais queridos. — Não quero que me vejam como curado porque consegui parar momentaneamente. As pessoas não devem depositar sua confiança inteiramente em mim, a qualquer momento eu posso recair, como qualquer outro usuário. Hoje ajudando no processo de recuperação de dependentes químicos em um grupo de Narcóticos Anônimos da cidade e em uma clínica de reabilitação, Henrique afirma que a margem de recuperação é baixa. Para ele, os que conseguem, em sua maioria, passaram a seguir alguma religião, e por isso ele defende que a conversão é um dos caminhos que tem mais êxito. — Dos que sei que pararam, todos são convertidos. Inúmeros tentaram parar e não conseguiram, morreram de overdose ou assassinados. Alguns ainda continuam usando. Eu me mantenho longe das drogas em grande parte graças à religião evangélica, à qual me converti depois do tratamento e que tem me feito tão bem. Ele trabalha diariamente tentando convencer usuários de drogas de que há chances de recuperação, ainda que o processo seja doloroso, árduo e difícil. — A dificuldade que a gente tem pra se manter livre das drogas é enorme. Mas eu quero mostrar que é possível parar de usar, que dá pra você ficar limpo. E há pessoas que eu levei às reuniões de Narcóticos Anônimos 11 anos atrás e hoje estão recuperados, nunca mais usaram drogas. Uma das coisas que mais ressalta ao falar sobre o problema é que não há classe social no vício. — Tive uma infância sofrida, mas não acredito que esse tenha sido motivo para eu ter entrado nas drogas. Conheci dezenas de famílias estruturadas que têm filhos viciados. Acho que a pessoa nasce com a predisposição a ser dependente. Hoje, ele recebe ligações a todo tempo de pais e familiares desesperados com o rumo que a vida de entes queridos está tomando com o vício Até o fundo do poço 115
nas drogas. Numa noite, Henrique acordou assustado com o toque do telefone. Atendeu e ouviu do outro lado da linha uma voz feminina desesperada. Era uma mãe que já o havia procurado, pedindo que aconselhasse o filho dela, usuário de drogas. — Ela me perguntou: “O que é que eu faço com o meu filho?” A senhora só pode orar e torcer muito para que ele desperte. Depende dele. Estive com ele, tentei ajudá-lo, alertá-lo, mas só vai dar certo se ele admitir o vício e se ele realmente quiser parar. Geralmente, Henrique vê na família dos dependentes um distúrbio tão perigoso quanto o próprio vício. Segundo ele, uma das coisas que mais contribui para as recaídas no tratamento dos dependentes é o peso da cobrança da sociedade. — Se a pessoa já usou drogas, a sociedade a exclui, deixa ela de lado. O crack, por exemplo, que tem detonado a sociedade. Quando a pessoa usa aquela droga, rapidamente definha, vai para o caminho do crime, o furto é muito frequente nesses casos. E se a sociedade vê um vizinho que está recuperado e o deixa de lado, dificilmente dá novas chances para a pessoa. Isso atrapalha muito. As pessoas que conheceram um rapaz como viciado são as primeiras a duvidar de sua recuperação, jogam negatividade diretamente na cabeça dos dependentes. E muitas vezes é a própria família que faz isso. A mesma linha de raciocínio de Henrique, de que a família muitas vezes atrapalha o tratamento do viciado, é defendida por grupos de ajuda como o Amor Exigente e o Nar-Anon, que trabalham uma mudança na atitude hostil ou benevolente demais que geralmente as famílias de dependentes têm, como forma de auxiliar no tratamento do viciado. — É preciso trabalhar a cabeça da família no processo de recuperação do dependente justamente para que ela mude esse comportamento e tente ajudar. Essa mãe que me ligou é dessa forma. O rapaz começa a caminhar no rumo certo e a mãe começa a esmagar a cabeça dele, jogando coisas passadas na cabeça do cara. E o problema é que ela não quer se tratar. Como muitas, acha que não tem problema porque não usa drogas. Isso é 116 Até o fundo do poço
uma grande dificuldade para o tratamento. Quando lhe perguntam qual o maior problema em sua vida atual, Henrique não tem dúvidas. Continua sendo a dependência, mas não mais a própria, mesmo que tenha trabalho em se manter longe das drogas. — Eu foco a minha vida na minha família, especialmente no meu filho que, aos 18 anos, também entrou na dependência química. Um moleque educado, uma benção. Ele gosta de ajudar as pessoas, mas se envolveu. Viu o pai definhar. Falei para não usar desde quando eu ainda era drogado. Mas não adiantou, quando cresceu tomou sua própria decisão. Minha filha não. Ela estuda enfermagem e criou nojo de drogas por me ver na situação de viciado. Mas Henrique não se mostra desesperado nem abatido como a maioria dos pais que têm filhos dependentes. Ele sabe exatamente o que o filho sente e sabe pelo que o menino terá de passar para sair da delicada situação de estar no mundo das drogas. — Mostrei a meu filho certa vez um quadro com uma foto onde estão eu e mais vinte e duas pessoas reunidas em festa. Todos usavam drogas, e hoje só três estão recuperados. Eu dei o quadro pra ele. Como muitos jovens, ele caiu, e sei que vai ter que trabalhar com isso. Ele fugiu de casa, passou sete meses fora, pelas ruas. Agora voltou, almoça comigo. Já aconteceu uma coisa grave e ele procurou a família. Na casa em que o filho de Henrique estava usando drogas junto com uma turma, todos foram presos pela polícia. Mas naquele dia o menino não dormia ali. — Por Deus ele não foi preso, não teve overdose, não foi assassinado. Já falei para ele que a dependência dele pode ser genética, mas disse também que eu peço a Deus que ele também tenha herdado de mim a força de vontade necessária para deixar o vício. Henrique lida com o problema do filho buscando seguir à risca aquilo que acredita que teria funcionado com ele. E a perseverança, a persistência e o carinho por parte da família, segundo ele, são uma parte da única solução possível para o problema. Até o fundo do poço 117
— O início da minha vida foi difícil, o meio foi trágico e o final, mesmo com as dificuldades, será bom. Quero que as pessoas que me conheceram se lembrem de mim como um guerreiro e não como um derrotado. Não quero morrer com overdose no banheiro, nem de desgosto por ter recaído. Não posso vacilar, minha família não merece isso, eu não mereço isso. Sei que não participei da infância dos meus filhos, não fui um bom pai. Mas se hoje tenho uma certeza, é esta: enquanto meu filho precisar de mim, lutarei com todas as forças para estar presente, para ajudá-lo a sair do buraco no qual um dia eu também entrei. E vamos conseguir, tenho fé. Mas ele sabe mais que ninguém que depende da vontade própria do usuário. A análise de vida que hoje Henrique faz e a sua postura ao lidar com os problemas servem de exemplo para os dependentes que ele ajuda. E se há uma palavra que pode definir sua trajetória de vida é esperança.
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Usuário de crack vivendo em função da droga, sujo, maltrapilho e em condições sub-humanas Até o fundo do poço 123
As cada vez mais populares raves, caracterizadas pela decoração psicodélica e pela música alta; ecstasy e LSD são comuns nos eventos
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O uso de drogas sintéticas, popular nas raves, atualmente também é feito em festas de boates e shows em todo o País Até o fundo do poço 127
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Posfácio Quando o estudante de Jornalismo Ivan Martínez me procurou pela primeira vez para expressar seu desejo de fazer um livro-reportagem como Projeto Experimental na conclusão da graduação, eu já sabia que ele seria bem sucedido. Pois, se existem qualidades que eu aprendi a respeitar no jovem repórter, são sua perseverança, sua persistência e sua enorme vontade de que tudo dê certo, apesar dos contratempos e dificuldades que possam existir. Como um jovem jornalista em formação, Ivan tinha a vontade de realizar um livro-reportagem que provocasse impacto social, que fosse uma contribuição para conscientizar uma parcela da população, em suma, algo que deixasse sua marca como profissional consciente de suas responsabilidades. Isso implicava na escolha de um tema atual e contundente e é difícil encontrar outro assunto que cumprisse tais requisitos que não passasse perto da crucial questão das drogas e de seus efeitos. Escolha feita, vamos às fontes: por mais cruel que possa parecer, encontrar pessoas envolvidas com o assunto é muito fácil. São usuários, ex-usuários (estes mais raros, infelizmente), familiares, vizinhos, médicos, assistentes sociais, amigos, colegas... Sempre tem alguém com alguma experiência pessoal ou algum caso conhecido para relatar. “Toda família irá passar por este problema algum dia” foi um comentário que li em algum lugar sobre o uso de drogas e que reproduzi ao Ivan, quando este me convidou a orientá-lo em sua jornada. E a apuração começou: entrevista daqui, apura de lá, o jovem foca foi colhendo depoimentos, lendo relatórios sobre o uso de entorpecentes no Brasil e no mundo, ouvindo histórias e relatos que, muitas vezes, o impressionavam, mas cada vez mais o deixavam convicto de que estava no caminho certo. Na hora de pôr no papel as experiências colhidas, Ivan seguiu à Até o fundo do poço 131
risca os conselhos de bons jornalistas: humanizou o relato, construiu um texto narrativo-descritivo convincente, propiciou ao leitor a identificação com os personagens que são foco dos capítulos. Assim, é quase impossível desgrudar os olhos das páginas que refletem vidas humanas em diferentes estágios. E não se emocionar. Mas tudo isso não aconteceu casualmente. Como acredito piamente que as coisas não acontecem por acaso, a rotina do jovem repórter em sua batalha para conciliar a realização do projeto experimental com estágio, faculdade, questões pessoais e até mesmo perdas familiares, deu uma guinada durante a realização do livro-reportagem. Curiosamente, Ivan se viu diante de muitos caminhos a tomar, de um excesso de compromissos a cumprir, da consciência de que sua vida nunca mais seria a mesma. E a única certeza que ele tinha é de que por um bom tempo não teria uma noite tranquila de sono. Mas o que isso significa? São os acasos da vida aos quais temos que agradecer. Era o momento de perceber que a missão exigiria muita dedicação, muita força de vontade, muito de si mesmo, talvez um esforço sobre-humano, mas era preciso querer e querer muito para que algo acontecesse. Ora, não era isso mesmo, porém em proporções evidentemente muito maiores, que vivia um dependente químico no momento em que percebia que estava no fundo do poço e que era hora de mudar? Não é desse mesmo jeito – com um frio na barriga, um aperto na boca do estômago, uma pontada aguda no coração e com a sensação de que é agora ou nunca – que um pai e uma mãe de um usuário se sentem motivados a nunca desistir? Pois Ivan teve esse privilégio, porém, graças a Deus, a sentir tudo isso por uma boa causa, que na verdade era uma oportunidade profissional e pessoal. E fez a escolha certa. E não desistiu. E reuniu o que podia e não podia de suas forças para chegar ao resultado final. E o principal: contou com o inesgotável apoio de sua família, de seus colegas, de seus chefes e professores, de seus amigos. E a prerrogativa de passar por tudo isso não é só do jornalista que 132 Até o fundo do poço
se forma também por causa deste livro-reportagem. Compartilhar dessa experiência me fez alguém mais consciente, mais preocupada, mais firme em minhas convicções e mais disposta a acreditar que nossa missão é muito maior, principalmente porque sou mãe, sou educadora, sou jornalista. Agradeço a ele por tudo isso e tenho a certeza (e sei que muitos terão também) de que o resultado – a obra que agora temos em mãos – é fruto de algo muito maior. E Ivan deu o primeiro passo.
Profª. Eliane Freire de Oliveira Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e docente da Universidade de Taubaté Até o fundo do poço 133
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Agradecimento Um SALVE a Deus Pai, a Nosso Senhor Jesus Cristo e ao Espírito Santo! Devo a existência deste livro a todos aqueles que, de alguma maneira, me apoiaram nessa difícil e custosa empreitada. Meus agradecimentos especiais: À minha família, pela paciência em lidar com um estudante estressado e à beira de um ataque de nervos, pelo carinho, pelo amor, pelo auxílio financeiro e pelos valores que hoje tenho incorporados à minha personalidade. À amiga e orientadora Eliane Freire de Oliveira, por ter acreditado em minha capacidade quando até eu mesmo duvidava que fosse capaz de concluir este trabalho. Devo-lhe eterna e imensa gratidão pela paciência, pelos conselhos e pelos ensinamentos. Ao querido e inestimável amigo Jaime Lemes, por ter me acompanhado nas horas mais difíceis de produção deste trabalho, desde a sua concepção, e por ter me ajudado imensamente na reta final do projeto. Sei que posso contar com você, peço que conte comigo também. Ao grande camarada Felipe Guerra, pelos momentos de risada e descontração aliados àqueles de conversas sérias e construtivas. Obrigado pela amizade e pela ajuda com a revisão deste projeto. Aos amigos do 4º ano de Jornalismo Matutino da Universidade de Taubaté. Não poderia ter imaginado, nem nos melhores sonhos, que me formaria com uma turma tão animada, parceira e amiga. Aos professores do Departamento de Comunicação que me mostraram o jornalismo apaixonado aliado, antes de tudo, à ética e ao respeito ao ser humano. Se hoje tenho a certeza de que escolhi a profissão certa, vocês têm parte nisso. À amiga Eunice Ramos e ao parceiro Paulo Donizetti, o Paulão, por Até o fundo do poço 135
terem me estendido a mão para que eu pudesse concluir este trabalho. Aos meus companheiros da Universidade de Taubaté, da TV Câmara Taubaté, do jornal O Vale e do Grupo Estado. Obrigado pela amizade e por terem me ensinado o que é ser jornalista na prática. A todos os amigos que não me deixaram vacilar nem desistir, que estavam ao meu lado quando eu precisava e que me levantaram quando me encontrava caído. Obrigado por existirem. Aos funcionários e colegas do Departamento de Comunicação, pelo apoio, pelas conversas, pelos conselhos, pela ajuda e pela simpatia.
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