Pittacus lore os legados da número seis os arquivos perdidos

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“Eu Sou O Número Quatro” ela é forte,poderosa e pronta para lutar. Mas quem ela é? Aonde esteve vivendo? Como ela foi treinada? Quando ela desenvolveu os seus Legados? E como ela sabe tanto sobre os Mogadorianos? Em I Am Number Four: The Lost Files: Six’s Legacy, descubra a história por trás de Seis. Antes de Paradise, Ohio, antes de John Smith, Seis estava viajando pelo Oeste do Texas com sua Cepân, Katarina. O que aconteceu lá, mudará Seis para sempre...


KATARINA DIZ QUE EXISTE MAIS DE UM JEITO DE SE ESCONDER. Antes de virmos para cá para o México, nós vivíamos em um subúrbio de Denver. Meu nome, então, era Sheila, um nome que eu odeio ainda mais do que o meu nome atual, Kelly. Moramos lá por dois anos, e eu usava presilhas no meu cabelo e pulseiras de borracha cor de rosa em meus pulsos, como todas as outras garotas na minha escola. Eu fazia festa do pijama com algumas delas, as garotas que eu chamava de “minhas amigas.” Eu ia à escola durante o ano letivo, e no verão eu ia para um acampamento de nadadores no YMCA. Eu gostava dos meus amigos e a vida que tinha era boa, mas eu já tinha sido movida pela minha Cêpan, Katarina, o suficiente para saber que não ia ser permanente. Eu sabia que não era a minha vida real. Minha vida real acontecia em nosso porão, onde Katarina e eu fazíamos o treinamento de combate. De dia, era uma sala de recreação comum suburbana, com um sofá grande e confortável e uma televisão em um canto e uma mesa de pingue-pongue no outro. De noite, era um ginásio de treinamento de combate bem abastecido, com sacos pendurados, tapetes, armas e até mesmo um cavalo com alças1 improvisado. Em público, Katarina fazia o papel de minha mãe, alegando que seu “marido” e meu “pai” tinha sido morto em um acidente de carro quando eu era uma criança. Nossos nomes, nossas vidas, nossas histórias eram tudo ficção, identidades para mim e Katarina nos escondermos. Mas essas identidades permitiam-nos viver a céu aberto. Agindo normalmente. Misturando-se: essa era uma maneira de esconder.

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Aparelho de ginástica.


Mas nós escorregamos. Até hoje me lembro da nossa conversa enquanto nos dirigíamos para longe de Denver, fomos para o México por nenhuma outra razão além de que nunca tínhamos estado lá, nós duas tentando descobrir como exatamente nós revelamos nosso disfarce. Algo que eu disse à minha amiga Eliza contradisse algo que Katarina tinha dito à mãe de Eliza. Antes de Denver nós tínhamos vivido na Nova Escócia por um frio, frio inverno, mas conforme eu me lembrava, nossa história, a mentira que tínhamos concordado em dizer, era que tínhamos vivido em Boston antes de Denver. Katarina lembrou de maneira diferente, e afirmou Tallahassee como o nosso lar anterior. Em seguida, Eliza disse à mãe e isso foi quando as pessoas começaram a ficar desconfiadas. Foi quase uma exposição calamitosa. Nós não tivemos nenhuma razão imediata para acreditar que o nosso deslize elevaria o tipo de suspeita que pudesse atrair os Mogadorianos à nossa localização. Mas a nossa vida tinha ficado desagradável lá, e Katarina imaginou que tínhamos estado lá o tempo suficiente quando isso aconteceu. Então, nos mudamos novamente. *** O sol é brilhante e insuportável em Puerto Blanco, o ar incrivelmente seco. Katarina e eu não tentamos nos misturar com os outros residentes, os produtores mexicanos e seus filhos. Nosso único contato regular com os moradores é a nossa viagem uma vez por semana à cidade para comprar itens essenciais na loja pequena. Nós somos os únicos brancos por muitos quilômetros, e apesar de nós duas falarmos espanhol bem, não há como confundir-nos com os nativos do lugar. Para nossos vizinhos, somos as gringas, estranhas brancas reclusas. ― Às vezes você pode se esconder com a mesma eficácia ficando de fora― , diz Katarina. Ela parece estar certa. Estamos aqui há quase um ano e não fomos incomodadas nenhuma vez. Levamos uma solitária, mas regular vida em uma espaçosa choupana de um andar situada entre dois grandes pedaços de terra agrícola. Acordamos com o sol, e antes de comer ou tomar banho Katarina me faz executar exercícios no quintal: subindo e descendo uma pequena colina, fazendo ginástica e praticando tai chi. Aproveitamos as duas horas relativamente frescas da manhã. Os treinos matinais são seguidos por um café da manhã leve, depois de três horas de estudos: línguas, a história do mundo, e quaisquer outros assuntos que Katarina possa desenterrar da Internet. Ela diz que seus métodos e tópicos de ensino são “ecléticos”. Eu não sei o que essa palavra significa, mas eu só estou


grata pela variedade. Katarina é uma mulher tranquila e pensativa, e embora ela seja a coisa mais próxima que eu tenho de uma mãe, ela é muito diferente de mim. Estudos são, provavelmente, o ponto alto do seu dia. Eu prefiro os treinos. Depois de estudos estamos de volta ao sol escaldante, onde o calor faz-me tonta o suficiente para que eu quase possa alucinar com meus inimigos imaginados. Eu faço a batalha com os homens de palha: atirando com flechas, apunhalando-os com facas, ou simplesmente surrando-os com meus punhos nus. Mas meia-cega do sol, eu os vejo como Mogadorianos, e eu aprecio a oportunidade de rasgá-los em pedaços. Katarina diz que mesmo que eu esteja apenas com treze anos, eu estou tão ágil e tão forte que eu poderia facilmente derrubar até mesmo um adulto bem treinado. Uma das coisas agradáveis sobre a vida em Puerto Blanco é que eu não tenho que esconder minhas habilidades. Em Denver, se eu nadasse na Y2 ou apenas jogasse na rua, eu sempre tinha que me segurar, para me deter de revelar a velocidade superior e força que o regime de treinamento de Katarina resultou. Nós mantemo-nos sozinhas aqui, longe dos olhos dos outros, então eu não tenho que esconder. Hoje é domingo, então a nossa tarde de treinos é curta, apenas uma hora. Estou praticando boxe com Katarina no quintal, e posso sentir a sua ânsia de renunciar: seus movimentos são indiferentes, ela está apertando os olhos contra o sol, e ela parece cansada. Eu amo treinamento e poderia prosseguir todo o dia, mas em deferência a ela, eu sugiro que nós paremos com isso. ― Oh, eu suponho que poderíamos terminar mais cedo― , diz ela. Eu sorrio privadamente, permitindo que ela ache que eu sou a única cansada. Nós vamos para dentro e Katarina enche para nós, dois copos grandes de água fresca, nosso habitual deleite de domingo. A ventoinha está soprando com força total na nossa humilde sala de estar da choupana. Katarina inicializou seus vários computadores, enquanto eu arranquei as minhas botas de combate sujas e cheias de suor e derrubei no chão. Estendo meus braços para evitar que se unam, então os balanço para a estante no canto e puxo uma pilha alta de jogos de tabuleiro que mantemos lá. Risk, Stratego, Othello. Katarina tentou me interessar em jogos como Vida e Banco Imobiliário, dizendo que não iriam me prejudicar sendo “abrangentes”. Mas esses jogos nunca tiveram o meu interesse. Katarina deu a dica, e agora nós apenas jogamos jogos de combate e estratégia.

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Abreviatura de YMCA, uma espécie de academia para todos.


Risk3 é o meu favorito, e uma vez que terminamos mais cedo hoje eu acho que Katarina vai concordar em jogá-lo mesmo que seja um jogo mais longo do que os outros. ― Risk? Katarina está em sua cadeira, girando de uma tela para a próxima. ― Risco de quê? ― Ela pergunta distraidamente. Eu rio, em seguida, agito a caixa perto de sua cabeça. Ela não olha para cima das telas, mas o som de todas as peças se chocalhando dentro da caixa é suficiente para ela conseguir. ― Oh ― , diz ela. ― Claro. Eu arrumo o tabuleiro. Sem perguntar, eu divido os exércitos meus e dela, e começo a colocá-los em todo o mapa do jogo. Jogamos este jogo tanto que eu não preciso perguntar a ela quais são os países que gostaria de reivindicar, ou que territórios que gostaria de fortalecer. Ela sempre escolhe os EUA e Ásia. Eu felizmente coloco suas peças nesses territórios, sabendo que dos meus territórios mais facilmente defendidos vou crescer rapidamente meus exércitos fortes o suficiente para esmagar os dela. Estou tão absorvida na criação do jogo que eu nem percebo o silêncio de Katarina, sua absorção. Somente quando eu estralo meu pescoço alto e ela deixa de me censurar por isso — “Por favor, não,” ela costuma dizer, agoniada sobre o som que isso faz — que eu olho para cima e vejo-a, olhando boquiaberta em um de seus monitores. ― Kat? ― Eu pergunto. Ela está silenciosa. Levanto-me do chão, pisando em todo o tabuleiro de jogo para me juntar a ela em sua mesa. É só então que eu vejo o que capturou tão completamente sua atenção. Um item de notícias sobre algum tipo de explosão em um ônibus, na Inglaterra. Eu gemo. Katarina está sempre checando a internet e as notícias de mortes misteriosas. Mortes que poderiam ser o trabalho do Mogadorianos. Mortes que podem significar que o segundo membro da Garde foi derrotado. Ela vem fazendo isso desde que viemos para a Terra, e eu cresci frustrada com a destruição e tristeza disso. Além disso, não é como se isso nos tivesse feito algum bem na primeira vez. Eu tinha nove anos, vivendo em Nova Escócia com Katarina. Nossa sala de treino era no sótão. Katarina tinha se retirado do treinamento pelo dia, mas eu 3

O Jogo War que conhecemos é baseado no Risk dos EUA.


ainda tinha energia para queimar, e estava fazendo movimentos no cavalo com alças sozinha quando de repente senti uma explosão de dor ardente no meu tornozelo. Eu perdi o equilíbrio e desabei para o tapete, segurando o meu tornozelo e gritando de dor. Minha primeira cicatriz. Isso significava que os Mogadorianos tinham matado o Número Um, o primeiro dos Garde. E mesmo com toda a exploração de Katarina na web, isso tinha pego nós duas completamente despercebidas. Esperamos com sensação de formigamento por semanas depois, na expectativa de uma segunda morte e uma segunda cicatriz se seguir em uma breve sequência. Mas ela não veio. Eu acho que Katarina ainda está enrolada, ansiosa, pronta para saltar. Mas três anos se passaram — quase um quarto de toda a minha vida — e não é apenas algo que eu pense muito. Eu passo entre ela e o monitor. ― É domingo. Hora de jogo. ― Por favor, Kelly. ― Ela diz meu apelido mais recente com uma certa rigidez. Eu sei que vou ser sempre Seis para ela. Em meu coração, também. Estes apelidos que eu uso são apenas cascas, eles não são quem eu realmente sou. Tenho certeza que em Lorien eu tinha um nome, um nome real, não apenas um número. Mas isso está tão longe, e eu tive tantos nomes, desde então, que eu não me lembro qual era. Seis é o meu nome verdadeiro. Seis é quem eu sou. Katarina pisca para mim de lado, ansiosa para ler mais detalhes. Nós perdemos tantos dias de jogo por alertas de notícias como esta. E elas nunca vieram a ser qualquer coisa. Elas são apenas tragédias comuns. Na Terra, eu vim a descobrir, não faltam tragédias. ― Não. É apenas um acidente de ônibus. Estamos jogando um jogo. Eu puxo os braços, ansiosa para ela relaxar. Ela parece tão cansada e preocupada, eu sei que ela poderia usar a pausa. Ela se mantém firme. ― É uma explosão de ônibus. E aparentemente ― , diz ela, afastando-se de ler a tela, ― o conflito está em curso. ― O conflito sempre está― , eu digo, revirando os olhos. ― Vamos. Ela balança a cabeça, dando uma de suas risadas irritadas. ― Tudo bem― ,diz ela. ― Ótimo. Katarina se arrasta para longe dos monitores, sentando no chão para o jogo. Isso toma todas as minhas forças para não saborear sua próxima derrota: Eu sempre venço em Risk. Eu fico ao lado dela, de joelhos.


― Você está certa, Kelly― , diz ela, permitindo-se sorrir. ― Eu não preciso de pânico em cada pequena coisa... Um dos monitores na mesa de Katarina solta um súbito DING! Um de seus alertas. Seus computadores estão programados para procurar notícias incomuns, postagens em blogs, mesmo mudanças notáveis no clima global — tudo peneirado por possíveis notícias dos Garde. ― Oh, vamos lá ― , eu digo. Mas Katarina já está fora do chão e de volta na mesa, rolando e clicando de link em link, mais uma vez. ― Tudo bem― , eu digo, irritada. ― Mas eu não estarei mostrando nenhuma clemência quando o jogo começar. De repente, Katarina está silenciosa, impedida por algo que ela encontrou. Levanto-me do chão e passo por cima do tabuleiro, fazendo meu caminho para o monitor. Eu olho para a tela. Não é como eu tinha imaginado, um relatório de notícias da Inglaterra. É uma simples postagem em um blog anônimo. Apenas algumas assombradas, palavras tentadoras: ― Nove, agora oito. Estão o resto de vocês aí fora?


UM GRITO NO DESERTO DE UM MEMBRO DA GARDE. Alguma menina ou algum menino, da mesma idade que eu, olhando para nós. Em um instante, eu arranquei o teclado de Katarina e digitei uma mensagem na parte de comentários. “Nós estamos aqui”. Katarina segurou minha mão antes que eu pudesse apertar o “Enter”. ― Seis! Eu recuei,envergonhada com minha imprudência, com minha precipitação. ― Nós temos que ser cuidadosas. Os Mogadorianos estão nos caçando. Eles mataram o Número Um, e pelo que sabemos eles estão na trilha do Número Dois, Número Três... ― Mas eles estão sozinhos! ― As palavras saem antes que eu tenha noção do que estou dizendo. Eu não sei como sei disso. É só um palpite que eu tenho. Se um membro do Garde está desesperado o suficiente para recorrer à internet,procurando por outros, o seu Protetor ou Protetora deve ter morrido. Eu imagino o pânico de perder meu Garde, o medo dela. Eu não posso imaginar em perder a minha Katarina, ficar sozinha. Considerar tudo que eu teria que lidar... sem Katarina. É inimaginável. ― E se for a Número Dois? E se ela estiver na Inglaterra e os Mogadorianos estiverem atrás dela, e ela está procurando por ajuda? Um segundo atrás eu estava zombando a reação de Katarina à notícia. Mas isso é diferente. Isso é uma ligação para alguém exatamente como eu. Agora eu estou desesperada para ajudá-los.Para responder o seu chamado. ― Talvez esteja na hora ― , eu digo, erguendo meu punho. ― Na hora?― Katarina está com medo, com uma expressão de perplexidade. ― Hora de lutar! Katarina coloca suas mãos entre a cabeça, e começa a rir.


Em momentos de tensão, Katarina agia assim: Ria quando devia ficar séria, ficava séria quando devia rir. Katarina olha para cima e percebo que ela não está rindo de mim. Ela está apenas confusa e nervosa. ― Seus Legados se quer se desenvolvera ― , ela chorou. ― Como poderíamos começar uma guerra agora? Ela se levanta da mesa, balançando a cabeça. ― Não, não estamos prontas para lutar. Até que seus poderes se manifeste, nós não começaremos essa batalha. Até que o Garde esteja pronto, temos que nos esconder. ― Então temos que mandar uma mensagem para ela. ― Ela? Você não sabe se é ela! Pelo que sabemos, não é ninguém! Só uma pessoa aleatória usando acidentalmente uma linguagem que me alertou. ― Eu sei que é um de nós― , eu digo fixando o olhar em Katarina. ― E você sabe disso também. Ela balançou a cabeça,admitindo derrota. ― Apenas uma mensagem. Para deixá-los saber que não estão sozinhos. Para lhes dar esperança. ― “Ela”, novamente ― , Katarina ri,quase triste. Eu acho que é uma guria pois quem escreveu a mensagem parece como eu. Uma versão mais solitária e assustada de mim ― uma que perdeu o seu Cepân. ― Okay ― , ela diz. Eu entro entre ela e o monitor, meus dedos pairando sob as teclas. Eu decido que a mensagem que eu já digitei “Nós estamos aqui” ― é suficiente. Eu aperto o enter. Katarina balança a cabeça, envergonhada de ter sido tão indulgente comigo. Dentro de segundos ela está no computador limpando quaisquer traços de nossa localização pela rede. ― Se sente melhor? ― Ela pergunta, desligando o monitor. Eu estou, um pouco. Dar um pouco de consolo e conforto à um dos Gardes me fez me sentir bem, e me conectava a uma batalha muito maior. Antes que eu possa responder, eu sou eletrificada por um dor que eu só senti uma vez antes,uma lava borbulhante perfurando a carne de meu tornozelo direito. Minha perna cai embaixo de mim, e eu berro, tentando me distanciar da dor, afastando-a tão longe de mim quanto eu posso. Então que eu vejo: A carne de meu tornozelo chiando, saindo fumaça. Uma nova cicatriz,minha segunda, cobras atravessando a minha pele. ― Katarina ! ― eu grito,socando o chão com meus punhos,desesperada por culpa da dor. ― A segunda― , ela disse. ― Número Dois está morta.


KATARINA CORRE ATÉ A TORNEIRA ENCHE UM JARRO E DESPEJA-O POR toda a minha perna. Estou quase catatônica por causa da dor,mordendo meu lábio com tanta força que chega a sangrar. Eu observo a água chiar quando escorre por minha carne queimada,então escorre pelo tabuleiro do jogo,levando as peças para o chão.― ― Você ganha ― , eu digo,tentando fazendo uma piada sem graça. Katarina não reconhece minha tentativa de humor, Minha protetora entrou no modo completo de Cepân: Puxa suplementos de primeiros-socorros de todos os cantos de nossa cabana. Antes ela aplica uma pomada que alivia a minha cicatriz e a enfaixou com gaze. ― Seis ― , ela diz com os olhos úmidos de temor e piedade. Fico surpresa, ela só diz meu nome verdadeiro em momentos de crises extremas. E então eu percebo o que isso significa. Anos passaram sem nenhum incidente desde que o Número Um morreu. Parecia até suspeito. Se estivéssemos nos sentindo realmente esperançosas, poderia ter dito que ele morreu em um acidente. Que os Mogadorianos não tinham pegado nosso cheiro. Esse momento acabou. Sabemos com certeza que os Mogadorianos encontraram o segundo membro da Garde, e matou ele ou ela. Duas mensagens para nós, para o mundo, a única coisa que ele ou ela poderia ter feito. As suas mortes violentas agora estavam marcadas em minha pele. Sabemos que duas mortes não são coincidências. A verdadeira contagem regressiva começou. Eu quase desmaio,mas forço minha consciência mordendo ainda mais forte o meu lábio. ― Seis ― , diz Katarina, limpando o sangue no meu lábio com um pano. ― Relaxe. Eu balanço a cabeça. Eu nunca, nunca poderia relaxar.


Katarina está se esforçando para manter a compostura. Ela não quer me assustar, mas está tentando fazer a coisa certa para honrar suas responsabilidades como Cepân. Eu posso dizer que ela está dividida entre o pânico total e a filosofia tranquila;entre tudo que era melhor para mim, e para o destino da Garde. Ela acolhe minha cabeça, enxuga o suor de minha testa. A água e a pomada tinha tirado a maior parte de minha dor,mas ainda dói tanto quanto a primeira vez,talvez até mais. Mas eu não vou comentar sobre isso. Eu percebo que minha dor, a prova do que Número Dois está passando,atormenta Katarina mais do que o suficiente. ― Nós ficaremos bem ― , ela diz. ― Ainda existe muitos outros... Eu sei que ela está falando negligentemente. Ela não quer dizer que está colocando a vida da Garde antes de mim ― Três, Quatro e Cinco ― antes de mim mesma. Ela só está tentando me consolar. Não a deixarei fazer isso. ― Yeah, é tão bom que outros tenham que morrer antes de mim. ― Não é isso que eu quero dizer ― , ela diz. Percebo que minhas palavras perturbaram ela. Eu suspiro, colocando minha cabeça em seu ombro. Às vezes, no fundo do meu coração, eu uso um nome diferente para Katarina. Às vezes, para mim ela não é Katarina ou Vicky ou Celeste ou qualquer de seus outros apelidos. Às vezes, na minha mente eu a chamo de "mãe".


UMA HORA DEPOIS, ESTÁVAMOS NA ESTRADA. KATARINA AGARRAVA com força o volante de nosso caminhão, cruzando as estradas rurais, amaldiçoando o nosso local de refúgio. Essas estradas eram muito empoeiradas e esburacadas para ir a mais de 40 milhas por hora, e o que nós duas queríamos era a velocidade de uma rodovia. Qualquer coisa para nos distanciar o máximo possível de nossa cabana abandonada. Katarina fazia o que podia para apagar os nossos traços no caminho, mas se o que nós imaginávamos fosse verdade ― os Mogadorianos matando Dois segundos após a sua postagem fatal no blog ― eles se moviam rápido, eles podiam estar correndo exatamente para nossa cabana abandonada agora. Enquanto eu assisto o campo e as colinas passarem pela janela de passageiro,eu percebo que eles poderiam já estar em nossa cabana. Na verdade, eles poderiam estar nos seguindo na estrada. Me sentindo como a covarde que eu era,virei meu pescoço para olhar a janela traseira do caminhão, através da poeira deixada por nós. Nenhum carro estava nos seguindo. Pelo menos, por enquanto. Nossa bagagem é leve. O caminhão já estava carregado com um kit de primeiros socorros, equipamento de camping, garrafas de água,lanternas e cobertores. Uma vez que eu conseguia andar novamente, só tive que pegar umas roupas para a viagem,e minha Caixa dentro de um cofre debaixo da cabana. O pânico da fuga me de pouco tempo para pensar sobre a dor da minha segunda cicatriz,mas ela retornou para mim agora, persistente e dilacerante. ― Não devíamos ter respondido ― , Katarina diz. ― Não sei o que estávamos pensando.


Olho para o rosto de Katarina buscando por sinais de julgamento ― afinal, fui eu quem insistiu em escrever a mensagem ― e fico aliviada em não encontrar nenhum sinal. Tudo que vejo é o seu medo e determinação para nos levar o mais longe possível. Na confusão da fuga, me esqueci de notar se saímos pela saída sul ou norte de Puerto Blanco. ― EUA ? ― eu pergunto. Katarina concorda, tirando os nossos novos passaportes de sua jaqueta militar,jogando a minha em meu colo. ― Maren Elizabeth ― , digo em voz alta. Katarina dedica muito de seu tempo falsificando documentos,embora que normalmente eu me queixe dos nomes que ela escolhe para mim. Quando eu tinha oito anos, e estávamos nos mudando para Nova Escótia,implorei e implorei para que meu nome fosse Starla. Katarina me vetou. Ela acho que eu ‘receberia muita atenção’ e que era “muito exótico”. Eu quase rio ao pensar nisso agora.Uma Katarina no México era o mais exótico que você podia conseguir. E é claro que ela ainda mantém o nome. Katarina cresceu agarrada ao seu próprio nome. Às vezes, suspeito que os Cepâns não são tão diferentes de pais, afinal de contas. Maren Elizabeth... Não é Starla, mas eu gosto da pronúncia. Eu me abaixo, alcançando meu tornozelo. Apertando minhas cicatrizes, eu podia diminuir a dor. Assim que a dor desaparece, o medo volta. O medo da minha atual situação, da morte de Dois. Eu soltei minha perna, e decidi deixar minha perna queimar. Katarina se recusa a parar o carro para qualquer coisa, exceto gasolina e paradas para ir ao banheiro. É uma longa viagem, mas temos nossos passatempos. Na maior parte do tempo, jogávamos o Jogo das Sombras, um jogo que Katarina tinha inventado nas nossas viagens anteriores, como alternativa aos nossos desejos de treinar quando não podíamos fazer exercícios físicos. ― Um Espião Mogadoriano corre atrás de você por duas horas empunhando uma lâmina de vinte polegadas em seu braço esquerdo. Ele a balança. ― Eu me agacho ― , digo. ― E me esquivo para a esquerda. ― Ele se aproxima, a lâmina em sua cabeça. ― Do chão,chuto a virilha. Passo o pé, começando pela sua perna direita até a esquerda. ― Ele cai de costas, mas agarra o seu pé. ― Eu permito. Aproveito para me levantar enquanto ele aperta minha mão,então me solto, e o soco com minha mão livre. É um jogo estranho. Isso me faz separar o físico da realidade, para lutar com meu cérebro, não com meu corpo. Eu costumava reclamar do Jogo das Sombras, que não servia para nada, que era irreal. Que lutar eram punhos, pés e cabeças. Não cérebros e palavras.


Mas quanto mais eu jogava o Jogo Das Sombras, melhor eu me saía no treinamento,especialmente nas quedas de braço com Katarina. Eu não posso negar que o jogo se tornou uma boa prática. Me fez uma lutadora melhor. Eu passei a amá-lo. ― Eu fujo ― , digo. ― Tarde demais ― , ela diz. Eu quase reclamei,sabendo o que viria. ― Você esqueceu a espada ― , ela diz. ― Ele já a sacudiu e acertou seu flanco. ― Não,ele não fez isso ― , eu digo. ― Eu congelei sua espada e a quebrei como se fosse vidro. ― Ah, você fez isso agora? ― Katarina está cansada, os olhos inchados depois de dirigir por dez horas, mas eu posso notar que estou divertindo-a. ― Eu devo ter perdido esta parte. ― Sim ― , eu digo, começando a rir de mim mesma. ― E como foi que tu realizou essa façanha? ― Meu Legado. Ele apareceu de repente. Agora, eu posso congelar as coisas. Isso me faz acreditar. Eu ainda tenho que desenvolver meus legados,e eu não tenho a mínima idéia de quando eles irão aparecer. ― Isso é muito bom ― , Katarina diz.


SEM PROBLEMAS ALGUM, CRUZAMOS A FRONTEIRA DOS EUA ALGUMAS horas atrás. Eu nunca entendi como é que Katarina podia fazer falsificações tão incríveis. Katarina está nos levando para uma parada fora da rodovia. Há um pequeno, e simples hotel,uma decrépita e cafona lanchonete,e um posto de gasolina, mais novo e mais brilhante que os outros edifícios. Está quase anoitecendo,quando saímos do caminhão. Um leve brilho rosa no horizonte foi o suficiente para dar um tom estranho para a nossa pele enquanto andávamos pelo cascalho. Katarina xingava, voltando para o carro. ― Esqueci de por gasolina ― , ela diz. ― Espere aqui. Eu faço o que me foi dito,observando-a estacionar o caminhão ao lado de uma das bombas de combustível. Nós concordamos em descansar no hotel por um ou dois dias para nos recuperarmos da nossa exaustiva, viagem de quinze horas e dos chocantes acontecimentos recentes. Mas mesmo que ficássemos aqui por um tempo, o tanque tinha que ser preenchido: Política de Katarina. ― Nunca deixe um tanque vazio ― , ela diz. Eu acho que ela diz isso tanto para lembrar a si mesma, quanto para me ensinar. É uma boa política. Nunca se sabe quando vai ter que sair as pressas. Eu observo Katarina colocar gasolina no carro. Examino ao meu redor. Pela janela da frente do restaurante através do espaço vazio, vejo alguns caminhoneiros com cabelos grisalhos comendo. Através do cheiro de gasolina das bombas, posso sentir o cheiro de comida de café-da-manhã no ar. Ou talvez eu esteja apenas imaginando isso. Estou incrivelmente faminta. Fico com água na boca ao pensar em tomar café. Eu viro as costas para o restaurante, tentando não pensar em comida, e olhar para a cidade do outro lado da cerca. Casas a um passo das tábuas caírem. maltrapilho,lugar desolado. ― Olá,senhorita.


Assustada, eu olho para um homem alto, cowboy, com o cabelo grisalho. Eu levo um segundo para notar que ele não está tentando começar uma conversa, e sim, sendo meramente educado enquanto ele passa. Ele me dá um pequeno aceno de cabeça por baixo de seu chapéu, e segue em direção ao restaurante. Meu coração acelera. Tinha me esquecido desse aspecto das estradas. Quando nos estabelecemos em um lugar, ainda que remoto como Puerto Blanco, nós conhecemos os rostos locais. Nós sabemos, mais ou menos, em quem confiar. Eu nunca vi um Mogadoriano em toda a minha vida, mas Katarina diz que eles se parecem como qualquer outra pessoa. Depois do que aconteceu com Um e Dois eu sinto um profundo mal estar, um novo sentido. As paradas de estrada são realmente problemáticas pois todo mundo é estranho para todo mundo,então ninguém ergue as sobrancelhas, sem duvida. Para nós,isso significa que qualquer um poderia ser uma ameaça. Katarina estacionou o carro perto de mim, com um sorriso fraco. ― Comer ou dormir? ― ela pergunta. Antes que eu possa responder, ela diz, ― eu voto para dormir. ― Eu voto para comer. ― Você sabe que comer dá sono ― , eu digo. ― Sempre dá. É uma de nossas regras de estrada, e Katarina aceita o veredito. ― Tudo bem, Maren Elizabeth ― , diz ela. ― Nos mostre o caminho.


A LANCHONETE É ÚMIDA E ENGORDURADA. É QUASE SEIS DA MANHÃ, mas quase todos os lugares estão cheios,principalmente de caminhoneiros. Enquanto eu espero por nossa comida, eu observo esses homens agarrando a sua comida ― salsichas,bacon,torradas ― em suas bocas. Quando minha comida chegou, me vi agarrando mais do que a minha parte. Três panquecas,quatro tiras de bacon,e um chá gelado. Eu finalizei com um arroto grosseiro, mas Katarina estava cansada demais para me repreender. ― Como você acha que ... ? ― eu pergunto. Katarina ri, antecipando minha pergunta. ― Como que isso é possível? Eu dou de ombros. Ela assente, e chama a garçonete. Com uma gargalhada culpada, eu peço outra pilha de panquecas. ― Bem ― , diz a garçonete com uma risada seca de fumante. ― Sua filha com certeza manda a ver. A garçonete é uma mulher velha, com o rosto tão cheio de linhas e desfigurado que você poderia confundi-la com um homem. ― Sim,senhora ― , eu digo. A garçonete sai. ― O teu apetite nunca deixará de me surpreender ― , Katarina diz. Mas ela sabe o porquê disso. Eu treino constantemente, e embora eu tenha apenas treze anos, tenho a estrutura física de uma ginasta. Eu preciso de muito combustível, e não tenho vergonha do meu apetite. Outro cliente entre no restaurante lotado. Eu observo os outros homens lhes dar um olhar desconfiado enquanto ele vai se sentar em uma cabine no fundo. Eles olharam para mim e Katarina com


uma suspeita semelhante na primeira vez que entramos. Eu tomei esse lugar como parado, cheio de estranhos, mas aparentemente alguns estranhos são dignos de confiança, e outros não. Katarina e eu estávamos fazendo nosso melhor ao se vestir com roupas comuns: camisetas e shorts cáqui. Eu percebo por que nos destacamos ― eles tem padrões diferentes para “comum” nos confins do Oeste do Texas. Este outro estranho é mais difícil entender, no entanto. Ele está vestido a parte, mais ou menos: vestindo uma daquelas gravatas do Texas com fio de couro preto entrelaçado. E assim como o restante dos homens daqui, ele usa botas. Mas suas roupas parecem de alguma forma fora de moda, e há algo assustador sobre o seu fino bigode preto: parece reto a primeira vista, mas quanto mais penso nisso, me parece que está torto. ― É falta de educação ficar encarando ― , Katarina me repreende outra vez. ― Eu não estava encarando ― , eu minto. ― Estava apenas olhando, com interesse. Katarina ri. Ela riu mais nas ultimas vinte e quatro horas do que em meses. Essa nova Katarina me fará levar um tempo para se acustumar. Não que eu me importe. *** Eu relaxei na cama do hotel enquanto Katarina está no banho. Os lençois são pobres, de polyester ou algodão,mas estou tão cansada da estrada que eles pareciam ser de seda. Quando Katarina sacudiu os lençóis, ela encontrou uma tesourinha, que a incomodou, mas não a mim. ― Mate ― , ela implorou,tapando os olhos. Eu me recusei. ― É só um inseto. ― Mate! ― , ela implorou. Invés disso, eu o afastei para o chão. ― Não ― , eu digo teimosamente. ― Tudo bem ― , disse ela, e foi para chuveiro. Ela girou as torneiras, mas saiu do banheiro novamente um momento mais tarde. ― Eu me preocupo ... ― ela começou. ― Com o quê? ― Eu perguntei. ― Preocupa-me que eu não tenha te treinado direito. Eu revirei os olhos.


― Por que eu não matei um inseto? ― Sim. Não, quero dizer, é o que me fez pensar. Você precisa aprender a matar sem hesitação. Eu nem sequer te ensinei a caçar ratos, muito menos Mogadorianos ... você nunca matou nada. Katarina parou, a água ainda correndo atrás dela. Pensando. Eu poderia dizer que ela estava cansada, perdida em um pensamento. Ela fica assim, as vezes, pensando se nós estavamos treinando direito. ― Kat ― , eu disse. ― Vá para o banho. Ela olhou para cima, seu devaneio interrompido Ela riu e fechou a porta atrás dela. Esperando ela terminar, liguei a TV da cama. O hóspede anterior havia deixado na CNN e eu sou recebido com o local de filmagem de helicóptero do "evento" na Inglaterra. Eu vejo apenas o tempo suficiente para entender que a imprensa e autoridades inglesas estão confusas sobre o que exatamente aconteceu ontem. Estou muito cansada para pensar nisso, vou obter os detalhes mais tarde. Eu desligo a televisão e me deito na cama,ansiosa para o sono tomar conta de mim. Momentos mais tarde Katarina sai do banheiro, com um roupão e escovando os cabelos. Eu a observo com os olhos semi-abertos. Há uma batida na porta. Katarina deixa a escova cair na mesinha. ― Quem é? ― ela pergunta. ― Gerente, senhorita. Eu trouxe algumas toalhas. Estou tão irritada com a interrupção ― eu quero dormir, e é obvio que não precisamos de toalhas já que já temos no quarto ― que eu saio da cama, quase sem pensar. ― Nós não precisamos de nenhuma ― , eu digo já alcançando a porta aberta. Eu só tenho tempo de ouvir Katarina dizer “Não” antes de vê-lo em pé diante de mim. O cara do bigode torto. O grito fica preso em minha garganta quando ele entra no quarto e fecha a porta atrás dele.


EU REAJO SEM PENSAR, EMPURRANDO-O PARA A PORTA, MAS ELE arremessa-me para trás com facilidade, contra a cama. Eu toco meu peito e percebo com horror que meu pingente está fora da minha camisa. Em plena vista. ― Belo colar ― , rosna ele piscando com o reconhecimento. Se ele tinha alguma duvida quanto a quem eu era, essa dúvida desapareceu. Katarina ataca ele, mas ele bate nela com força a arremessando para a TV, quebrando a tela com um cotovelo e cai no chão. Ele puxa algo de sua cintura ― uma longa e fina lâmina ― e eleva-a tão rapidamente que eu nem sequer tenho tempo para me levantar. Eu apenas vejo o flash da lâmina enquanto ele a abaixa ― em direção do meu cérebro. Minha cabeça é instantaneamente inundada com calor e luz. Então é assim que a morte é, eu penso. Eu olho para cima.Como posso ver? Eu penso. Eu estou morta. Mas eu posso ver. E vejo que estou coberta da cabeça aos pés,por um quente e rubro sangue... O homem do bigode torto ainda tem seus braços extendidos, um sorriso de vitória, mas seu crânio estava aberto, como se tivesse sido aberto com uma faca, e seu sangue caia em meus joelhos. Ouço Katarina se lamentar ― um som primitivo que não posso dizer se é um choro de alivio ou de dor ― enquanto o homem, sem sangue no corpo,rapidamente se transforma em pó,se desmoronando em um amontoado de cinzas.


Antes que eu possa respirar, Katarina se levanta, tira o roupão e pega as nossas malas. ― Ele morreu ― , eu digo. ― Eu não. ― Sim ― , Katarina responde. Ela veste uma blusa branca que instantaneamente arruína com o sangue de seu cotovelo ralado por causa da tela da TV. Ela a tira, limpa o sangue de seu cotovelo com uma toalha, e veste outra. Me sinto como uma criança, sem palavras, imóvel, coberta de sangue no chão. Aquele era ― o momento que estive treinando por toda a minha vida ― e tudo que fiz foi ser fraca,facilmente desviada com um empurrão antes dele ser pego e esfaqueado. ― Ele não sabia ― , eu digo. ― Ele não sabia ― , ela diz. O que ele não sabia é que qualquer dano inflingido a mim fora da ordem, seria inflingido ao meu atacante. Eu estava segura contra um ataque direto. Eu sabia, mas eu realmente não sabia também. Quando ele me lançou a espada na cabeça, eu pensei que estava mesmo morta. Foi preciso mesmo ver para acreditar. Eu toco meu couro cabeludo. A pele ai não está partida. Nem mesmo úmida... Foi comprovado. Nós estamos protegidos pelo feitiço. Enquanto ficarmos afastados uns dos outros, só poderemos ser mortos na ordem de nossos números. Eu percebo que o sangue virou pó junto com a carne. Não estou mais encharcada dele. ― Nós temos que partir. Ela está encostada em mim, e eu percebo que estou perdida pelo choque em minha cabeça. Eu posso dizer pelo seu tom que essa é a terceira ou quarta vez que ela repetia, só agora que eu ouvi. ― Agora― , ela diz. Katarina me arrasta pelo pulso, sua mala pendurada em seu ombro. O asfalto quente queima meus pés descalços enquanto caminhávamos em direção ao caminhão. Eu levo minha Caixa, pesada em meus braços. Eu tenho me preparado para a batalha por toda a minha vida, mas tudo o que quero agora é dormir. Arrasto meus pés, meus braços estão pesados. ― Mais rápido ― Katarina diz, me puxando junto. O caminhão está aberto. Entro no banco de passageiro enquanto Katarina joga nossas malas na cama do caminhão e pula para o assento do condutor. Ela mal fecha a porta e vejo um homem correndo atrás de nós. Por um momento penso que é o gerente do hotel nos perseguindo por não ter pagado a conta. Mas então, eu reconheço que é o cowboy de antes que me ofereceu um aceno cortês de seu chapéu de vaqueiro. Não existe nada de educado no jeito que ele corre para nós com o punho erguido. Sua mão esmaga o vidro de passageiro e eu sou pulverizada com vidro. Ele fecha o punho em minha camisa e sinto que estou fora do banco.


Katarina grita. ― Hey ― , uma voz do lado de fora. Minha mão se mexe, procurando qualquer coisa que me desse apoio. Eu só encontro o meu cinto de segurança, que agarro facilmente enquanto o Mogadoriano tenta me puxar pela janela. Katarina agarra a minha camisa. ― Eu pensaria duas vezes quanto a fazer isso ― , ouço a voz de um homem, e assim que sou liberada, caio no banco do caminhão. Fora do caminhão, uma multidão se formou. Caminhoneiros e cowboys, ordinário homens americanos. Eles cercaram ao Mogadoriano. Um deles com uma arma na mão, apontou para ele. Com um sorriso, irônico amargo, o Mogadoriano levanta os braços em rendição. ― As chaves. ― Katarina entra em pânico, quase chorando. ― Deixei-as na sala. Eu não penso, eu só me movo. Eu não sei quanto tempo o Mog será contido pela multidão de proteção, nossos salvadores, mas eu não me importo: Eu corro de volta para o quarto, pego as chaves da mesa de cabeceira e volto para o calor do estacionamento. O Mog está ajoelhado no chão agora, cercado por homens furiosos. ― Chamamos a polícia, senhorita― , diz um deles. Concordo com a cabeça, os meus olhos marejados. Estou muito chocada até mesmo para dizer obrigado. É estranho e maravilhoso considerar que nenhum destes homens nos conhecem mas eles vieram em nosso auxílio, mas assustador que eles não compreendem o verdadeiro poder deste Mog, de que se não tivesse sido instruído para manter um perfil baixo, ele teria rasgado a pele e limpado cada um dos seus corpos até agora. Entro no carro e Katarina pega as chaves. Momentos depois, nos retiramos do estacionamento. Dirijo um último olhar para o Mogadoriano. Seus olhos brilham como os de um réptil. Ele pisca, como se pudesse afastar isso.


KATARINA ESTAVA ERRADA. EU JÁ MATEI ANTES. ANOS ATRÁS, EM Nova Escócia, Canadá. Era início do inverno e Katarina me liberou de nossos estudos para ir jogar no nosso quintal nevado. Corri até o quintal que nem um demônio, andando em círculos na neve em minhas roupas largas, pulando em bancos de neve e atirando bolas de neve em direção ao sol. Odiava a minha jaqueta incômoda e calças à prova d’água, então quando percebi que Katarina virou para a janela, eu as tirei, ficando apenas com meu jeans e camiseta. A temperatura estava abaixo de zero do lado de fora, mas nunca tive muito problema com o frio. Continuei a brincar e correr quando Clifford, o São Bernardo dos vizinhos, veio animado brincar comigo. Ele era um cachorro imenso e naquela época eu era pequena, mesmo para a minha idade. Então subi nele, agarrando o pelo quente de seu flanco. ― Vamos! ― gritei e ele saiu correndo. Montei-o como um pônei, dando voltas pelo quintal. Katarina tinha acabado de me contar mais sobre a minha história e sobre o meu futuro. Não tinha idade suficiente para entender completamente, mas sabia que aquilo significava que eu era uma guerreira. Isso serviu bem para mim, já que sempre me senti uma heroína, uma campeã. Tomei essa montaria com Clifford como outra corrida de prática. Imaginei encarar inimigos sem face na neve, caçando-os e eliminando-os. Clifford tinha me levado até a beira da floresta quando parou e grunhiu. Olhei para a frente e vi um coelho marrom claro correndo entre as árvores. Segundos depois, eu estava deitada de costas no chão, jogada ali por Clifford. Me levantei e arremessei-me atrás de Clifford, entrando na floresta. Minha caça imaginária se tornara uma verdadeira, enquanto Clifford corria atrás do coelho e eu o seguia. Eu estava delirante, sem fôlego, feliz. Ou estava, até a caça terminar.


Clifford pegou o coelho em sua mandíbula e saiu correndo pelo mesmo caminho que veio, voltando ao jardim de seus donos. Eu estava igualmente chateada pelo fim da perseguição e pelo fim provável da vida do coelho, então sai correndo atrás de Clifford, na tentativa de comandar a liberação do coelho. ― Cachorro feio ― falei. ― Cachorro muito feio. Ele estava contente demais com sua conquista para me dar ouvidos. De volta ao seu quintal, alegremente aninhou e mordeu o pelo úmido do coelho. Foi preciso empurrá-lo com força do corpo do coelho para fazê-lo desistir, e mesmo então ele rosnou para mim. Sibilei para Clifford, que, amuado, se jogou na neve. Olhei para o coelho, estirado no chão e ensanguentado. Mas não estava morto. Toda a minha rigidez cedeu quando levantei a criatura leve e peluda até o meu peito. Senti seu coração minúsculo bater furiosamente, à beira da morte. Seus olhos estavam vidrados, incompreensíveis. Sabia o que aconteceria com ele. Seus ferimentos não era profundos, mas ele morreria de choque. Ainda não estava morto, mas sua vida já passara. A única coisa que esse animal tinha que esperar era a paralisia de seu próprio medo e uma morte fria e lenta. Olhei para a janela. Katarina estava fora de vista. Virei-me de volta ao coelho, sabendo num instante a coisa mais generosa a se fazer. Você é uma guerreira, dissera Katarina. ― Eu sou uma guerreira. Minhas palavras congelaram no ar diante de meu rosto. Peguei o pescoço da gentil criatura com ambas as mãos e torci-o com força. Enterrei o cadáver do coelho fundo na neve, onde nem Clifford poderia encontrar. Katarina estava errada: eu já matei antes. Por misericórdia. Mas ainda não por vingança.


KATARINA LEVA O CAMINHÃO PARA FORA DA ESTRADA DE TERRA E saímos. Tem sido um dia de viagem reta e já são três da manhã. Estamos no Arkansas, no lago Ouachita State Park. A entrada do parque estava fechada, portanto Katarina passou por cima de uma corrente e colocou o caminhão para dentro, dirigindo na escuridão da floresta até chegarmos à estrada principal de acampamento. Já estivemos ali antes, mesmo que eu não me lembre. Katarina diz que acampamos aqui quando eu era muito mais nova, e que ela achou que seria um bom lugar para enterrar o meu Baú, se chegasse a esse ponto. Bem, aparentemente chegou a esse ponto. Ao sair do caminhão, posso ouvir o lago ondeando fracamente na costa. Katarina e eu andamos entre as árvores, seguindo seu som. Carrego o Baú nos braços. Decidimos que é muito pesado e perigoso ficar com ele. Katarina diz que não deve cair em mãos mogadorianas. Eu não a pressiono nesse ponto, apesar de haver uma implicação sombria para essa tarefa que me assombra. Se Katarina acha que chegou ao ponto de enterrar o Baú para mantê-lo a salvo, então ela deve achar que nossa captura se tornou provável. Quem sabe inevitável. Tremo no frio da noite, enquanto tento manter insetos longe. Conforme nos aproximamos da água, mais aparecem. Finalmente alcançamos a beira. No meio do lago, vejo uma pequena ilha verde, e conheço Katarina bem o suficiente para saber o que ela está pensando. ― Deixe que eu faço isso ― ela diz. Mas fala as palavras com dificuldade. Está exausta, a ponto de desmaiar. Não dorme há dias. Eu também quase não durmo, só alguns minutos rápidos aqui e ali no carro. Mas isso é mais do que Katarina tem dormido, e sei que ela precisa descansar. ― Deite-se ― falo. ― Eu faço. Katarina protesta um pouquinho, mas depois de pouco tempo está deitada no chão ao lado d’água.


― Descanse ― digo. Pego o cobertor que ela trouxe e uso-o como uma toalha e em vez de cobri-la, escondo-a dos insetos. Tiro minhas roupas, então seguro o Baú firme e piso na água. É uma temperatura estimulante a princípio, mas quando fico submersa, a água está razoavelmente quente. Começo a nadar de uma forma estranha, usando um braço para bater na água e o outro para prender o Baú. Eu nunca nadei à noite antes, e foi preciso toda a minha força de vontade para não imaginar mãos estendendo-se das profundezas lúgubres para agarrar minhas pernas e me puxar para baixo. Continuei focada em meu objetivo. Alcanço a ilha após o que parece ser uma hora, mas provavelmente foram apenas dez minutos. Saio da água, tremendo enquanto o ar batia na minha pele nua, e ando desajeitada sobre as pedras na beirada. Caminho até o centro da ilhota. É quase redonda, e tem provavelmente menos de meio hectare de área, então não levo muito tempo para chegar lá. Cavo um buraco de quase um metro de profundidade, o que leva um tempo considerável em comparação ao tempo que levei nadando. No fim, minhas mãos estão sangrando de cavar pelas terra dura, ardendo muito a cada “pazada” pelo solo. Desço o Baú no buraco. Me sinto relutante em deixá-lo ali, mesmo que nunca tenha visto seu conteúdo, nunca jamais o aberto. Considero rezar por ele, a fonte de tanto potencial e promessa. Decido não rezar. Em vez disso, simplesmente chuto terra em cima do buraco até estar coberto, e deixo o chão liso novamente. Sei que posso nunca mais ver meu Baú de novo. Retorno à água e nado até Katarina.


FAZ UMA SEMANA DESDE QUE CHEGAMOS NO ESTADO DE NOVA YORK. Estamos ficando num motel pequeno, adjacente a um pomar de maçãs e um campo de futebol do bairro. Katarina já está planejando o que vamos fazer em seguida. Não houve nenhum anúncio suspeito nos noticiários ou na internet. Isso nos dá uma medida de esperança para o futuro de Lorien, e também que a trilha dos mogadorianos atrás da gente se perdeu. É uma coisa boba, mas me sinto pronta para lutar. Posso não ter me sentido assim no motel, mas agora estou. Não me importo se não tenho meus Legados. É melhor lutar do que fugir. ― Você não quer isso ― ela diz. ― Devemos ter cautela. Dessa forma, esperamos. O coração de Katarina já está cansado de treinos, mas ainda fazemos o melhor que conseguimos: flexões e boxe no nosso quarto durante o dia, mais golpes elaborados nos cantos escuros do campo de futebol à noite. Durante o dia, posso andar pelo pomar, sentindo o cheiro doce do apodrecimento de maçãs caídas. Katarina me disse para não brincar no campo de futebol de dia, ou falar com crianças que praticam nele. Ela quer continuar a manter um perfil baixo. Mas posso observar o campo por trás de uma árvore na beira do pomar. É um time de garotas que está jogando hoje. As garotas estão todas vestindo camisetas roxas e shorts brancos. Parecem ter a mesma idade que eu. De baixo da sombra da macieira, imagino como seria dar a mim própria algo leve e inconsequente que nem um jogo de futebol. Imagino seria boa: adoro ser física, sou forte e rápido. Não ― eu seria perfeita. Mas não é para eu jogar jogos sem valor.


Sinto inveja subir por minha garganta feito bile. É uma sensação nova para mim. Geralmente, renuncio ao meu destino. Mas algo que diz respeito a esse tempo na estrada, sobre o quase encontro com os mogadorianos, me fez odiar essas garotinhas com a vida ganha. Mas reprimo esse ódio. Tenho que guardá-lo para os mogadorianos. *** Naquela noite, permitimos a nós mesmas assistir um pouco de TV antes de ir para a cama. É um luxo que Katarina geralmente nega a mim, já que acha que apodrece meu cérebro e atrapalha meus sentidos. Mas até Katarina amolece às vezes. Me deito ao lado de Katarina na cama queen-size. Ela trocou o canal para um filme sobre uma mulher que vive na cidade de Nova York e reclama sobre como é difícil encontrar um homem. Minha atenção é rapidamente dispersada da tela para o rosto de Katarina, que tinha uma expressão suave com atenção ao enredo do filme. Ela sucumbiu a ele. Me pega olhando para ela, e cora num instante. ― Eu posso ser relaxada às vezes. ― Vira de volta à tela. ― Não posso evitar. Ele é lindo. Olho de novo para a televisão. A mulher agora está gritando com o homem bonito sobre como ele é um “porco machista”. Vi muito poucos filmes na minha vida, mas já posso supor como esse termina. O homem é bonito, eu acho, mas não estou tão fixa nele como Katarina. ― Você já teve algum namorado? ― pergunto a ela. Ela ri. ― Em Lorien, sim. Eu era casada. Meu coração dá um salto, e coro com meu próprio egocentrismo. Como nunca pude ter perguntado isso a ela antes? Como não pude saber que ela tinha um marido, uma família? Hesito antes de fazer outra pergunta, mas só posso assumir que seu marido morreu na invasão mogadoriana. Meu coração se parte por minha Katarina. Mudo de assunto. ― Mas desde que estamos na Terra? Ela ri de novo. ― Você está comigo o tempo todo. Acho que saberia se eu namorasse!


Rio também, apesar de meu divertimento estar misturado com tristeza. Katarina não poderia ter um namorado mesmo se quisesse ― e isso tudo é por minha culpa. Porque está muito ocupada me protegendo. Ela ergue uma sobrancelha. ― Por que está fazendo tantas perguntas tão de repente? Você tem alguma paquera? Viu algum garoto bonitinho no campo de futebol? ― Ela estende a mão e me belisca, fazendo cócegas. Empurro sua mão, rindo. ― Não ― falo, e é verdade. Garotos treinam ali alguns dias e eu os observo, mas geralmente só para medir seu atletismo e compará-lo ao meu próprio. Não sei se ao menos poderia gostar de algum deles. Não acho que poderia amar ninguém que não estivesse preso na luta comigo. Nunca poderia respeitar alguém que não fizesse parte da guerra contra os mogadorianos, para salvar Lorien. De volta à TV, a mulher está parada na chuva, as lágrimas descendo pelo rosto, falando para o homem bonito que ela mudou de ideia, que amor é tudo que importa, afinal das contas. ― Katarina? ― digo. Ela se vira para mim. Nem tenho que dizer em voz alta; ela me conhece bem. Troca de canal até acharmos um filme de ação. Assistimos-no juntas até cairmos no sono.


NO DIA SEGUINTE, APÓS EXERCÍCIOS E ESTUDOS, VOLTO PARA O POMAR. É um dia quente e me esquivo da sombra de uma árvore para outra enquanto passeio. Ando sobre maçãs moles e podres, sentindo-as sendo esmagadas sob meus pés. Apesar do calor do sol, o ar está fresco e agradável hoje, não muito quente ou frio. Me sinto estranhamente feliz e esperançosa ao caminhar. Katarina está comprando passagens de avião para a Austrália hoje. Acha que lá será um bom lugar para se esconder, melhor que qualquer outro. Já estou animada com a viagem. Viro, pronta para andar de volta para o motel, quando uma bola de futebol passa girando por mim, passando por cima de maçãs esmagadas. Sem pensar, dou um salto à frente e pulo em cima dela com um pé, parando-a no lugar. ― Você vai jogar de volta ou não? Assustada, viro-me. Uma garota bonita com um rabo de cavalo cor de castanha está me observando da borda do pomar. Veste uniforme de futebol e a boca está aberta, mastigando chiclete. Tiro o pé da bola, giro nela e lhe dou um rápido chute, bem em direção à garota. Chuto com mais força do que deveria: quando ela a pega em suas mãos, a força do impacto quase lhe derruba. ― Calma! ― grita. ― Foi mal ― digo, instantaneamente envergonhada. ― Mas foi um belo chute ― diz a garota, me medindo. ― Bom mesmo.


Estou no campo momentos depois. As garotas do time eram muito baixinhas para poderem brigar pela bola, e a garota que mascava chiclete, Tyra, de alguma forma convenceu a treinadora a me deixar jogar. Não sei quais são as regras de futebol, mas as descubro logo. Devo isso a Katarina, por manter meu cérebro afiado para processar regras rapidamente. A treinadora, uma mulher rígida e inclinada com um apito na boca, me coloca como zagueira e logo me estabeleço como uma muralha. As garotas do meu time se acostumam rápido e logo estão formando uma barreira, forçando os atacantes do outro time a passar por mim no lado direito do campo. Ninguém consegue passar sem perder o controle da bola. Antes de eu mesmo perceber, estou coberta de suor, pedaços de grama colando-se no suor das minhas panturrilhas ― felizmente, estou usando meias altas hoje, então ninguém pode minhas cicatrizes. Me sinto tonta e feliz pelo sol e a alegria apreciativa das minhas colegas de time. Há uma reversão à minha esquerda. Tyra tirou a bola de um oponente antes de ter outro membro do outro time correndo atrás dela. Sou a única jogadora livre e ela consegue chutar a bola em minha direção. De repente, quase todo o time adversário está no meu rastro. Minhas colegas correm atrás deles, tentando mantê-los longe de mim, enquanto dou um chute louco com a bola na direção do gol. Posso ver a goleira se armando, pronta para minha aproximação. Meus adversários se livram das minha colegas que estavam bloqueando. Mesmo que ainda esteja na metade do campo, sei que é minha única chance. Eu chuto. A bola sobe num longo arco curvado, impulsionado como um jato. Agi muito rápido, muito irracionalmente, e mirei bem na posição da goleira. Tenho certeza que ela vai agarrar. Ela agarra. Mas eu chutei a bola com tanta força que ela a levanta no ar e a bola sai de suas mãos, girando na rede atrás. Minhas colegas se animam. Nossas adversárias se juntam a nós; era só um amistoso, então podem reconhecer minhas habilidades sem sacrificar muito orgulho. Tyra me dá um tapinha no ombro. Posso perceber que ela está animada por ter sido a pessoa a me tirar do pomar. A treinadora me empurra para um canto e pergunta onde é o meu colégio. Claramente me quer no seu time. ― Não sou daqui ― murmuro. ― Desculpe. ― Ela dá de ombros e me parabeniza pelo jogo.


Sorrio e me afasto do campo. Posso ver que as garotas estão ansiosas pela minha amizade, juntas num grupo e me observando partir. Isso tem lá suas vontades, mas sei que meu lugar é ao lado de Katarina. Retorno ao motel, dando o melhor de mim para tirar o sorriso de vitória do rosto. Sinto um impulso infantil de tagarelar sobre o jogo com Katarina, mesmo que tenha me dito para não jogar. Apesar de mim mesma, encontro-me correndo de volta ao quarto, pronta para começar a me vangloriar. A porta está destrancada e a abro, ainda sorrindo feito uma idiota. O sorriso não dura muito tempo. Há dez homens no quarto ― mogadorianos. Katarina está amarrada à cadeira de escritório do motel, a boca amordaçada e a testa ensanguentada, os olhos se enchendo de lágrimas ao me ver. Viro-me para correr, mas então vejo mais. Mais homens, alguns em carros, alguns só parados lá, por todo o estacionamento. Deve haver, ao total, trinta mogadorianos. Fomos pegas.


MINHAS MÃOS ESTÃO ALGEMADAS E MINHAS PERNAS ESTÃO PRESAS com corda. As de Katarina também estão, mesmo eu não conseguindo ver. Os mogadorianos nos jogaram na traseira de um trailer, amarradas juntas, então a única prova de Katarina que tenho é o lugar onde nossas espinhas se tocam. O trailer empina descontroladamente, e seu que estamos na rodovia, indo rápido para algum lugar. Katarina ainda está amordaçada, mas nunca se incomodaram de me amordaçar. Ou sentiram que eu ficaria quieta para manter Katarina em segurança, ou perceberam que o barulho da estrada iria esconder qualquer som que eu fizesse. Não faço ideia de onde estamos sendo levadas ou o que os mogadorianos planejam fazer conosco quando chegarmos lá. Penso no pior, mas ainda murmuro suavemente, falando coisas para acalmar Katarina na escuridão do trailer. Sei que estaria fazendo a mesma coisa por mim se pudesse. ― Vai ficar tudo bem ― digo. ― Vamos ficar bem. Sei que não vamos. Sei com certeza até demais que essa viagem terminará em nossas mortes. Katarina pressiona as costas em mim, num gesto de amor e encorajamento. Com as mãos amarradas e a boca amordaçada, é a única forma de se comunicar comigo. Está escuro no trailer, com exceção de um pequeno trecho de luz entrando por uma ruptura no teto de alumínio do trailer. A luz do sol entra pela fenda. Sentada no trailer escuro e frio, é estranho pensar que está fazendo sol lá fora. Que é um dia normal.


Sinto dor em todo lugar, dolorida de sentar e muito inconfortável para dormir. No meu delírio exausto, tenho o pensamento ridículo que devia ter ficar para trás com as garotas do futebol. Pelo menos, tempo suficiente para tomar um pouco do energético que a treinadora me ofereceu. Alguma coisa murmura dentro do trailer. Um grunhido gutural e baixo. Há uma gaiola, comprimida na frente do trailer. Posso ver a silhueta de suas grossas barras de aço no escuro. ― O que é? ― pergunto. Katarina murmura algo pela mordaça, e me sinto mal por fazer uma pergunta que ela não tem possibilidade de responder. Inclino-me à frente, o mais longe que posso, puxando Katarina comigo. Posso ouvir Katarina protestar de trás da mordaça, mas a curiosidade vigora. Me estico no escuro, trazendo o meu rosto o mais próximo possível das barras de aço. Outro ruído na escuridão. Um outro prisioneiro? me pergunto. Algum tipo de animal? Meu coração se enche de pena. ― Olá? ― falo para o vazio. A pessoa ou criatura produz baixos soluços de angústia. ― Você está bem? Uma mandíbula se fecha com súbita força nas barras da gaiola, os olhos do tamanho de punhos brilhando vermelhos no escuro. A respiração da criatura coloca meu cabelo para trás. Me afasto em horror e nojo, o cheiro tão revoltante que quase vomito. Tento me afastar, mas a criatura, irritada, mantém sua cabeça pressionada nas barras, seus olhos vermelhos fixos em mim. Sei que, se não fosse pelas barras, eu estaria morto neste momento. Isso não é um prisioneiro. Não é um comparsa derrotado. É um piken. Katarina me contou sobre esses animais antes, cúmplices selvagens e caçadores para os mogadorianos, mas eu acreditava que fossem contos de fadas. Katarina me ajuda a voltar à traseira, me dando mais distância do monstro. Conforme me afasto, o piken faz o mesmo, desaparecendo na escuridão de sua gaiola. Sei que, no momento, estou segura. Mas também sei que esse animal, essa criatura terrível e imunda, pode ser jogada contra mim nos próximos dias ou semanas. Meu estômago se revira em medo e raiva desamparada: não sei se vomito ou desmaio, ou os dois. Descanso minha cabeça na de Katarina, desejando que esse pesadelo passe. Caio num meio-sono agitado, acordada apenas pela voz de Katarina. ― Seis. Acorde. Seis.


Levo um susto. ― Sua mordaça? ― pergunto. ― Consegui tirar. Demorou esse tempo todo para conseguir. ― Ah ― falo estupidamente. Não sei mais o que dizer, que bom nos faz se eu falar algo. Fomos pegas, sem defesas. ― Colocaram um rastreador no carro. Lá no Texas. Foi assim que nos encontraram. Que idiotice nossa, penso. Tivemos tão pouco cuidado. ― Era meu trabalho pensar isso ― ela diz, como se lesse meus pensamentos. ― Mas não importa. Preciso que você se prepare para o que está por vir. E o que está por vir? penso. Morte? ― Eles vão te torturar por informação. Eles vão... ― Ouço Katarina sucumbir a um choro, mas ela se recompõe e continua. ― Irão infligir tormentos impensáveis sobre você. Mas você deve aguentá-los. ― Eu irei ― digo o mais firme possível. ― Eles irão me usar para fazer você conceder. Não pode deixá-los... independente do que... Meu coração congela no peito. Eles vão matar Katarina na minha frente se acharem que isso me fará falar. ― Me prometa, Seis. Por favor... não podem saber seu número. Não podemos dar a eles mais poder sobre os outros do que o poder que já têm, ou poder sobre você. Quanto menos souberem sobre o feitiço, melhor. Me prometa. Você tem que prometer. Imaginando os horrores que estão por vir, não consigo. Sei que minha palavra é tudo o que Katarina quer ouvir, mas simplesmente não consigo.


ESTOU NA MINHA CELA HÁ TRÊS DIAS. NÃO TEM NADA COMIGO AQUI exceto um balde d’água, outro balde para usar como privada e uma bandeja vazia de metal do almoço de ontem. Não restou nenhuma sobra de comida na bandeja: eu lambi ela toda ontem. Quando acordei na minha cela, três dias atrás, a minha intenção era ficar em greve de fome contra meus captores, recusar toda comida e água até que me deixassem ver minha Katarina. Mas dois dias se passaram sem comida e sem água deles. Comecei a imaginar que tinha sido esquecida em minha cela. Quando a comida chegou, eu já estava tão enlouquecida de falta de esperança que ignorei meu plano original e devorei o que tinham passado pelo pequeno buraco na porta da cela. A coisa estranha é que eu nem estava particularmente com fome. Meu espírito estava baixos, mas eu não me sentia fraca de fome. Meu pingente palpitou fracamente no meio peito durante meus dias no escuro, e comecei a suspeitar que o feitiço estava me mantendo segura da fome e desidratação. Mas mesmo que estivesse com fome, nunca fiquei tanto tempo sem comida ou água na minha vida, e a experiência de estar presa me levou a um tipo de loucura temporária. Não estava com fome ou com sede fisicamente, mas estava mentalmente. As paredes são feitas de pedras pesadas e ásperas. Parece menos com uma cela de prisão e mais como uma toca improvisada. Parece que foi esculpida de uma formação natural de pedra em vez de construída. Tomo isso como uma pista de que estamos em alguma estrutura natural: uma caverna, ou o interior de uma montanha.


Sei que posso nunca descobrir a resposta. Tentei quebrar as paredes da minha cela, mas até eu sei que não há nada que possa ser feito. Em todas as minhas tentativas, tudo que consegui foi gastar minhas unhas até as pontas dos meus dedos começarem a sangrar. A única coisa que me resta agora é esperar na cela e tentar manter a sanidade. Essa é a minha missão exclusiva: não deixar meu solitário confinamento me levar à loucura. Posso deixá-lo me endurecer, posso deixá-lo me enrijecer, mas não devo deixá-lo me deixar louca. É um desafio estranho, permanecer sã. Se você se focar com força suficiente em manter a sanidade, a dificuldade da tarefa só lhe deixará mais louco. Por outro lado, se você esquecer sua missão, se você tentar manter sua sanidade não pensando no assunto, pode encotnrar sua mente vagando em padrões estonteantes que você dá corda, novamente, à loucura. O truque é forjar um campo neutro entre os dois: um desinteresse, um estado de neutralidade. Foco na minha respiração. Entra, sai. Entra, sai. Quando não estou me esticando ou fazendo flexões no canto, é isso que faço: simplesmente respiro.

Entra, sai. Entra, sai. Katarina chama isso de meditação. Costumava tentar me encorajar a fazer exercícios de meditação para manter o foco. Sentia que isso me ajudaria em combate. Nunca segui seu conselho. Parecia muito chato. Mas agora, nessa cela, vejo que é uma linha de vida, a melhor forma de manter minha sanidade. Estou meditando quando a porta da minha cela se abre. Viro-me, meus olhos se semicerrando para ajustar à luz vindo do corredor. Um mogadoriano está parado na luz, com vários outros às suas costas. Vejo que ele está segurando um balde, e por um segundo imagino que trouxe água fresca para eu beber. Em vez disso, ele dá um passo à frente e esvazia o balde sobre minha cabeça, me mergulhando em água fria. É uma afronta severa e tremo no frio, mas também é estimulante, restaurador. Me traz de volta à vida, de volta ao meu puro ódio desses mogadorianos idiotas. Ele me levanta no ar, gotejando água, e amarra uma venda nos meus olhos. Ele me joga no chão de novo e luto para me levantar. ― Venha ― ele diz, me empurrando para fora da cela e entrando no corredor. A venda é grossa, então estou andando em total escuro. Mas meus sentidos são aguçados e consigo andar em uma linha quase reta. Também consigo sentir outros mogadorianos ao meu redor.


Enquanto ando, meus pés frios no chão de pedra áspera, ouço diversos gritos e munidos dos meus colegas prisioneiros. Alguns são humanos, alguns são animais. Devem estar trancados em celas como eu fui. Não faço ideia de quem são ou o que os mogadorianos querem com eles. Mas estou muito foada na minha sobrevivência para me importar: estou surda de piedade. Após uma longa marcha, o mogadoriano liderando o guarda diz “Direita!”, e me empurra para a direita. Me empurra forte, e caio de joelhos, arranhando-os na pedra. Luto para me levantar de novo, mas sou pega antes de conseguir, dois mogadorianos me jogando contra uma parede. Minhas mãos são levantadas e acorrentadas a uma corda de ferro presa ao teto. Meu torso está estendido, meus dedos mal tocando o chão. Retiram minha venda. Estou em outra cela; essa está iluminada, clara, e meus olhos parecem que vão queimar, ajustando-se de três de quase total escuridão. Quando se ajustam, eu a vejo. Katarina. Ela está acorrentada ao teto, como eu. Está muito pior que eu, ensanguentada, ferida e batida. Eles haviam começado com ela. ― Katarina ― sussurro. ― Você está bem? Ela olha para mim, os olhos cheios de lágrimas. ― Não olhe para mim ― diz, o olhar descendo até o chão. Um novo mogadoriano entra na sala. Ele está usando, de todas as coisas,uma camisa branca pólo e calças cáqui. Seu cabelo é curto. Seus sapatos ― de viagem ― se esfregam em silêncio no chão. Ele poderia ser um pai suburbano, ou o gerente de uma loja de bairro. ― Olá ― ele diz. Sorri para mim, as mãos no bolso. Seus dentes são brancos como num comercial de pasta de dente. ― Espero que esteja aproveitando sua estada conosco até agora. ― Percebo o cabelo ouriçado nos seus braços bronzeados. Ele é lindo, numa forma branda, com uma estatura compacta porém forte. ― Essas cavernas podem ser assustadoramente frias, mas tentamos deixá-las o mais aconchegante possível. Acredito que você tenha dois baldes na sua cela? Não iria querer que você saísse. Sua mão se estende tão casualmente que por um segundo acho que ele vai acariciar minha bochecha. Em vez disso, ele a belisca, forte, dando uma torção na minha carne. ― Vocês são nossas convidadas de honra, afinal ― fala, a maldade finalmente entrando na sua voz de vendedor.


Eu me odeio por fazer isso, mas começo a chorar. Paro de sentir minhas pernas inteiramente, e sou pendurada com dureza nas algemas. Contudo, não me permito a soluçar de forma audível: ele pode me ver chorar, mas não vou deixá-lo ouvir. ― Muito bem, senhoritas ― diz, batendo palmas uma vez e se aproximando de uma pequena mesa enfiada no canto da cela. Ele abre uma gaveta e tira uma maleta de vinil, que abre na superfície da mesa. A luz vinda do teto brilha numa disposição de objetos afiados de aço. Ele os pego, um por vez, para que eu possa ver todos. Bisturis, navalhas, alicates. Lâminas de todos os tipos. Uma furadeira elétrica de bolso. Ele a liga por uns segundos, me dando calafrios, antes de abaixar. Anda até mim, deixando o rosto ao mesmo nível do meu. Fala, e sua respiração se força para dentro de minhas narinas. Sinto vontade de vomitar. ― Está vendo isso tudo? Não respondo. Sua respiração tem o mesmo cheiro da criatura na gaiola. Apesar de seu exterior brando, ele é feito do mesmo material imundo. ― Pretendo usar cada uma delas em você e na sua Cêpan, a menos que responda cada pergunta que eu fizer com a verdade. Se não responder, garanto que vocês duas irão desejar estarem mortas. Ele abre um pequeno sorriso odioso e anda de volta até a mesa, pegando uma navalha minúscula com um grosso cabo de borracha. Volta até mim, esfregando o lado opaco da lâmina na minha bochecha. A lâmina é fria. ― Tenho caçado vocês, crianças, por um longo tempo ― diz. ― Matamos dois de vocês, e agora temos um bem aqui, seja lá qual é o seu número. Como você pode imaginar, espero que seja a Número Três. Tento me afastar dele, pressionando minhas costas com força na parede da cela, querendo desaparecer na pedra. Ele sorri para mim, novamente pressionando o lado opaco da lâmina na minha bochecha, mais forte dessa vez. ― Ops ― diz, provocador. ― Não é esse o lado certo. Com um único movimento habilidoso, ele gira a lâmina no pulso, o lado afiada agora virado para mim. ― Vamos tentar desse jeito. Com prazer reptiliano, traz a lâmina para o lado do meu rosto e dá um golpe rápido na minha carne. Sinto um calor familiar, mas nenhuma dor, e vejo com choque sua própria bochecha começar a sangrar. Sangue jorra de seu ferimento, que se abre como uma sutura. Ele abaixa a lâmina, apertando o rosto, e começa a tropeçar na sala em dor e frustração. Ele chuta a mesa, mandando os instrumentos de tortura pelos ares, então sai da sala. Os guardas mogadorianos que estavam atrás dele trocam olhares indecifráveis.


Antes de eu ter a chance de dizer algo para Katarina, os mogadorianos avançam, me libertam e me arrastam de volta para a minha cela.


DOIS DIAS SE PASSAM. NA ESCURIDÃO DE MINHA CELA, AGORA TENHO mais que irritação e tédio para me contentar. Também preciso queimar a imagem de uma ensanguentada e quebrada Katarina na minha mente. Quero me lembrar de Katarina como a conheço: sábia e forte. Continuo com minhas atividades de respiração. Elas ajudam. Mas não muito. Mais tarde, a porta da cela se abre, e novamente sou encharcada de água fria, amordaçada dessa vez, vendada e arrastada de volta à mesma cela. Quando fui acorrentada ao teto, minha venda é removida. Katarina está bem no lugar que a vi pela última vez, cansada e abatida que nem antes. Só posso esperar que tenha sido abaixada em alguma hora. O mesmo mogadoriano de antes se sentava à nossa frente, na beira da mesa, uma atadura na bochecha cortada. Posso ver que ele está lutando para parecer ameaçador como antes. Mas ele nos olha com um novo medo. Eu o odeio. Mais do que odeio qualquer um que já tenha conhecido. Se eu pudesse dilacerá-lo com minhas mãos, eu o faria. Se não pudesse usar minhas mãos, eu iria rasgá-lo ao meio com os dentes. Ele percebe que estou olhando para ele. Dá um salto repentino à frente, arrancando a mordaça da minha boca. Maneja a navalha de punho de borracha na frente do meu rosto novamente, torcendo-a, deixando a luz do teto dançar pelas bordas.


― Eu não sei qual é o seu número... ― ele diz. Encolho-me involuntariamente, esperando que ele tente me cortar de novo, mas se contém. Então, com deliberação sádica, vira-se para Katarina, puxando o cabelo dela. Ainda amordaçada, só consegue soltar um choramingo. ― Mas você vai me contar agora. ― Não! ― grito. Ele sorri em satisfação com a minha angústia, como se estivesse esperando por ela. Pressiona a lâmina no braço de Katarina e a desliza pela carne. A pele se abre, derramando sangue. Ela se torce contra as correntes, lágrimas descendo pelo rosto. Tento gritar, mas minha voz não sai: tudo que sai é uma alta arfada em dor. Ele faz outro corte ao lado do primeiro, esse ainda mais fundo. Katarina sucumbe à dor e fica mole. Com os dentes, penso. ― Posso fazer isso o dia inteiro ― ele diz. ― Você está entendendo? Você vai me contartudo que eu quero saber, começando pelo seu número. Fecho meus olhos. Meu coração queima. Me sinto como um vulcão, só que não há nenhuma abertura, nenhuma saída para a raiva comprimida dentro de mim. Quando abro os olhos, ele está de volta na mesa, jogando uma longa lâmina de sua mão esquerda para a direita e vice-versa. Brincalhão, esperando que eu olhe. Agora que olhei, ele segura a lâmina na vertical para que eu possa ver o tamanho. Começa a brilhar nas suas mãos, mudando de cores: violeta por um segundo, verde no seguinte. ― Agora... seu número. Quatro? Sete? Tem sorte a ponto de ser a Número Nove? Katarina, quase inconsciente, sacude a cabeça. Sei que está assinalando para me manter em silêncio. Ela manteve o dela esse tempo todo. Luto para ficar quieta. Mas não consigo, não consigo observá-lo ferir minha Katarina. Minha Cêpan. Ele anda até Katarina, ainda segurando a lâmina. Katarina murmura algo sob a mordaça. Curioso, ele a abaixa de sua boca. Ela cuspe uma grossa quantidade de sangue no chão aos pés dele. ― Me torturando para atingi-la? Ele olha para ela odiosamente, impaciente. ― É, é isso. Katarina solta uma risada baixa e desprezadora. ― Você precisou de dois dias inteiros para pensar nesse plano? Posso ver as bochechas dele ficarem vermelhas com o argumento certeiro dela. Até mogadorianos têm seu orgulho.


― Você deve ser algum tipo de idiota ― ela grita. Tremo com a imprudência de Katarina, orgulhosa de sua provocação, mas com medo das consequências. ― Tenho todo o tempo das galáxias para isso ― ele diz calmamente. ― Enquanto vocês estão aqui comigo, estamos lá fora com o resto de vocês. Não pensem que algo nos impediu de avançar só porque temos vocês. Sabemos mais do que vocês acham. Mas queremos saber tudo. Ele cruelmente golpeia Katarina com o cabo da faca antes de ela falar novamente. Ele se vira para mim. ― Se você não quer vê-la cortada em pequenos pedaços, então é melhor começar a falar, e rápido. E para cada palavra que sair, é melhor que seja verdade. Eu irei saber se você estiver mentindo. Eu sei que ele não está jogando jogos, e não consigo aguentar vê-lo ferir Katarina novamente. Se eu falar, talvez ele tenha piedade. Talvez ele a deixe em paz. Sai tão rápido que eu mal tenho tempo para ordenar os pensamentos, tão rápido que eu mal sei o que estou dizendo quando falo. Tenho uma intenção, mas é uma obscura: contar a ele tudo que sei que ele não possa usar contra mim ou contra os outros lorienos. Conto a ele detalhes ridículos sobre minhas antigas viagens com Katarina, nossas antigas identidades. Conto a ele sobre meu Baú, mas não dou o lugar em que enterrei, dizendo que foi perdido em nossa viagem. Quando começo a falar, tenho medo de parar. Sei que, se parar para medir minhas palavras, ele irá sentir minha fraude. Então ele me pergunta qual é o meu número. Eu sei o que ele quer ouvir: que eu sou a Número Quatro. Não posso ser Três, senão ele teria sido capaz de me matar. Mas se eu for Quatro, então tudo que ele precisará fazer é encontrar e matar Três antes que consiga iniciar seu trabalho sangrento em mim. ― Eu sou a Número Oito ― digo finalmente. Estou tão assustada que falo isso com um suspiro desesperado de medo, e sei que ele será enganado. Ele fica com uma expressão triste. ― Desculpe em desapontá-lo ― falo em voz baixa. Sua decepção foi breve. Ele começa a sorrir vitorioso. Posso não ser o número que ele queria, mas conseguiu extrair o meu número de mim. Procuro os olhos de Katarina, e apesar de ela estar mal consciente, posso ver um fraquíssimo brilho de gratidão em seus olhos. Ela sente-se orgulhosa por eu dar a ele o número errado.


― Você está mesmo fraca, não está? ― Ele me fita com desgosto. Deixe ele, penso. Sinto um impulso de superioridade sobre ele: era idiota o suficiente para acreditar na minha mentira. ― Seus parentes em Lorien, tão facilmente quanto caíram, pelo menos eram lutadores. Pelo menos tinham alguma bravura e dignidade. Mas você... ― Sacude a cabeça para mim, então cospe no chão. ― Você não tem nada, Número Oito. Com isso, levanta o braço com a lâmina e a desce, fundo em Katarina. Ouço o barulho de osso quebrando, da faca transpassando seu osso esterno, entrando direto no coração. Grito. Meus olhos buscam os de Katarina. Ela encontra meu olhar por um último instante. Puxo minhas correntes em direção dela, lutando para estar lá por ela em seu último momento. Mas seu último momento passa rápido. Minha Katarina está morta.


SEMANAS SE TRANSFORMAM EM MESES. Alguns dias eles não me alimentam, mas meu pêndulo me impede de morrer de fome ou sede. O que é mais difícil é a ausência de luz do sol, a imersão sem fim em escuridão. Às vezes, não sei mais onde meu corpo termina e a escuridão começa. Perco sentido de minha própria existência, meus próprios limites. Sou uma nuvem de tinta na noite. Preto no preto. Me sinto esquecida. Encarcerada, sem esperança de fugir, e sem informações que possam levá-los aos outros, sou inútil para eles agora. Até terem matado os outros antes de mim, até minha data de extinção. O impulso de sobrevivência ficou dormente em mim. Eu vivo, não porque eu quero, mas porque eu não posso morrer. Às vezes, eu queria poder. Mesmo assim, me forço a ficar confortável, ágil e pronta para combate da maneira que posso. Flexões, situps, jogos de Sombra. Nesses jogos de Sombra, aprendi a jogar na parte de Katarina tão bem quanto na minha própria, me dando instruções, descrevendo meus adversários imaginários, antes de responder aos meus comandos. Eu adorava esse jogo antes, mas agora o odeio. Mesmo assim, à honra de Katarina, continuo a jogar. Enquanto mentia para o mogadoriano, eu achava que estava fazendo isso para que ele poupasse Katarina, deixá-la viver. Mas assim que vi sua faca perfurar o coração dela, percebi o que estava realmente fazendo: apressando seu fim. Eu estava dando a ele tudo que sabia para que ele pudesse acabar com ela, para que ela não precisasse sofrer mais, para que eu não tivesse que assisti-la sofrer mais. Falo para mim mesmo que essa foi a coisa certa a fazer. Que é isso que Katarina iria querer. Ela estava em muita dor.


Mas tenho estado sem ela por tanto tempo a esse ponto que daria tudo por outro momento com ela, mesmo se ela tivesse que sofrer tormentos inimagináveis para isso. Eu a quero de volta. ***

Os mogadorianos continuam a testar os limites de minha imortalidade condicional. Esses testes tomam tempo para planejar e construir. Mas a cada semana aproximadamente eu sou arrastada para fora da minha cela e levada para outra, armada para a minha destruição. Na primeiro semana após a morte de Katarina, fui trazida a uma pequena câmara e obrigada a ficar de pé em cima de uma afiada grelha de aço a vários metros do chão. A porta estava trancada atrás de mim. Esperei por alguns minutos enquanto a sala se enchia de gás nocivo, subindo da grelha em gavinhas verdes. Cobri minha boca, tentando não respirá-lo, mas só pude prender a respiração por um pouco de tempo. Desisti, inspirando o veneno deles, só para descobrir que tinha o cheiro das mais frescas e frias brisas das montanhas para mim. Furiosos mogadorianos me arrastaram para fora da sala minutos mais tarde, me empurrando rapidamente de volta para a minha cela, mas pude ver a pilha de areia ao lado da porta no caminho para fora. O mogadoriano que apertara o botão liberando o gás havia morrido no meu lugar. Na semana seguinte, eles tentaram me afogar; na seguinte, tentaram me queimar viva. Nada disso me afetou, é claro. Na semana passada, me serviram comida tão mergulhada em veneno que juro que podia sentir cada grão de veneno. Trouxeram um bolo à minha cela. Não tinham motivos para me oferecer sobremesa, e eu soube que era a esperança deles me enganar com o bolo ― e em troca enganar o feitiço. Eles esperaram que se eu não soubesse que minha vida estava em perigo, o feitiço não funcionaria. É claro que eu suspeitei deles imediatamente. Mas comi o bolo mesmo assim. Estava delicioso. Espiando pela rachadura da porta da minha cela, logo descobri que não um, mas três mogadorianos pereceram com a tentativa de envenenamento. Quantos mogadorianos são necessários para fazer um bolo? perguntei a mim mesma mais tarde. Então, com malevolente satisfação, respondi: Três. Me permito imaginar um final feliz onde os mogadorianos, que parecem fazer pouco de suas próprias vidas, continuam tentando me matar e acabam morrendo na tentativa, até não haver mais nenhum mogadoriano sobrando. Sei que é só uma fantasia, mas é uma das felizes.


*** Não sei quanto tempo passei aqui. Mas fiquei tão rígida às tentativas de execução deles que não sinto medo ao me arrastarem pelos corredores para outra. Dessa vez, sou jogada num grande espaço ventoso com luzes fracas, maior que qualquer cela que já tenha estado até agora. Sei que estou sendo observada por um espelho ou um monitor de vídeo, então uso uma expressão de seriedade. Uma expressão que diz: Vem com tudo. Então eu ouço. Um baixo gemido gutural. É tão profundo que posso senti-lo, tremendo o chão. Me viro para ver, fundo nas sombras da sala, uma grande gaiola de aço. Parece familiar. Ouço mandíbulas abrindo e fechando famintas, seguindo pelo som de lamber de beiços. O piken. A criatura da nossa viagem lá fora. Agora eu estou com medo. Há um lampejo claro. De repente, sou banhado por luzes vermelhas fortes, e as barras de aço da gaiola se abrem. Sem armas, caio no canto oposto da sala. Astuto, penso. Os mogadorianos nunca me jogaram contra uma criatura viva

antes. O piken sai. Um monstro de quatro patas, ele se levanta como um bulldog do tamanho de um rinoceronte: patas dianteiras dobradas, a boca babando, mandíbula caída. Grandes dentes sobressaem-se na sua boca como presas. Sua pele é de um verde pútrido e nodoso. Tem cheiro de morte. Ele ruge para mim, me cubrindo numa saliva tão grossa que temo escorregar nela. Então ele ataca. Não consigo acreditar no meu próprio corpo. Estou rígido por causa do confinamento solitário, não pratico combate há meses, mas instinto e adrenalina ajudam, e logo estou desviando da criatura como uma profissional, adernando cantos, agachando-me entre suas pernas. O piken ruge, frustrado, ficando cada vez mais cansado, batendo a cabeça nas paredes. Não tenho tanta diversão há anos, eu acho, conforme consigo dar um roundhouse kick no rosto dele. Pouso no chão, feliz com meu belo chute, mas caio em uma das poças de saliva e meus braços e pernas cedem no escorregadio. É uma momentária queda, mas é o suficiente: a besta já me tem entre os seus dentes. Meu corpo inteiro se enche de calor, e tenho certeza que esse é o fim.


Mas não sinto dor nenhuma. A criatura solta um longo lamúrio e então me solta de sua mandíbula. É uma queda de um metro e meio de sua boca até o chão e caio de joelhos, o que dói mais que a mordida. Viro-me e vejo o piken esparramado no chão, a boca aberta, o peito subindo e descendo rapidamente. Um crescente número de ferimentos está espalhado pelo peito. Ele levou a dor de sua própria mordida. Solta outro gemido baixo e lamentável. É óbvio, penso. Um animal mogadoriano é tão mogadoriano quanto o resto deles. É suscetível ao encanto também. Rodopio, tentando chamar a atenção de quem quer que esteja me observando. Está claro a mim que a cratura, apesar de ferida, irá viver. Deixados aos seus próprios dispositivos, os mogadorianos irão cuidar de seu animal e fazê-lo ficar bem novamente, para que possa viver e aproveitar outro dia. Ando até ele, lembrando-me do coelho que matei anos atrás na Nova Escócia. Ouço os passos de guardas se aproximando e sei que devo agir rápido. Um guarda mogadoriano rompe na sala. Ele carrega uma longa lâmina, e está prestes a me atacar com ela quando se dá conta que só iria matar a si mesmo no processo. Aproveito sua hesitação à minha vantagem. Pulo do chão e acerto-o com um rápido chute, sua lâmina caindo ao chão com um tinido. Mais um chute para mantê-lo derrubado, e então pego a lâmina do chão. Me aproximo da besta em dor conforme mais guardas entram na sala e desço a lâmina, atravessando o crânio do piken. Morto num instante. Os guardas se aglomeram ao meu redor e me arrastam para fora da sala. Estou entorpecida porém feliz. Sem misericórdia.


APRENDI A APRECIAR AS PEQUENAS DIFERENÇAS NA COMIDA QUE ME servem. É sempre a mesma nojeira cinza, um pouco de proteína e trigo misturados numa pasta e deixados na minha bandeja de comida. Mas, às vezes, é com mais água e com menos trigo, mais trigo e menos proteína, etc. Hoje é um dia com proteína pesada. Engulo sem animação, mas com um pouco de gratidão: meus músculos ainda doem por causa da minha batalha com o piken e o guarda, e acho que a proteína vai me cair bem. Dou a última mordida e volto para o canto. Está escuro na minha cela, mas há luz suficiente vindo da abertura de comida para que eu possa ver meus pés, minhas mãos e minha bandeja de comida. Exceto que hoje não consigo ver minha mão. Consigo ver minha esquerda, mas não a direita. Demorou muito para afiar minha visão a esse estado de sensibilidade na escuridão, assim fico furiosa com o seu fracasso. Aceno minha mão direita em frente ao meu rosto, jogando-a da esquerda pra direita na manga. Mas mesmo assim, tudo que eu vejo é escuridão. Dou um tapa no rosto, pisco, tentando recuperar a visão. Mas ainda assim, minha mão direita é um vácuo. Finalmente, abaixo-a e pego minha faca, segurando-a na minha frente. Sinto o estômago revirar quando eu a desço na minha mão. Não quero nenhuma falsa esperança. Sei que não posso sobreviver a alguma falsa esperança. Mas eu posso ver a faca. E ainda não consigo ver minha mão.


Nesse momento, a porta da minha cela se abre e um mogadoriano baixo entra. Ele veio pegar uma bandeja. Tudo o que é preciso é a luz do corredor inundando a sala para confirmar minha suspeita. Minha mão direita está invisível.

Meu primeiro Legado apareceu. Ofego. De todas as habilidades que eu poderia desenvolver, essa parece a perfeita ― a única ― para me tirar dessa prisão viva. O mogadoriano grunhe para mim suspeitando de algo, e coloco a minha manga vazia nas costas, esperando que ele não tenha visto. Estou atordoada de animação. Ele é idiota, e não nota nada. Levanta minha bandeja do chão e sai da sala. Sou mergulhada de volta na escuridão, e espero impacientemente que meus olhos se ajustem ao ponto de poder ver minha nova habilidade de novo. Lá está ela. Manga vazia, mão invisível. Levanto a manga e olho para o braço. Minha mão está completamente invisível, meu antebraço branco, quase translucente, mas a partir do cotovelo estou completamente visível. Posso ver que terei que praticar essa habilidade.


LEVOU DOIS DIAS, MAS APRENDI A CONTROLAR O MEU PRIMEIRO Legado. Meu controle ainda não é perfeito: às vezes, minha invisibilidade vacila e eu entro em pânico, lutando para restaurá-la. Desligá-la e ligá-la não é como apertar um interruptor; é preciso um certo tipo de concentração. Os exercícios de respiração de Katarina vieram a calhar. Quando eu luto para controlar minha invisibilidade, passo a me focar na minha respiração ― entra, sai ― e então volto à habilidade. Depois de conseguir deixar minha mão invisível à vontade, começo a praticar com outras partes do corpo. É como flexionar um novo músculo ― é estranho no início, mas rapidamente acontece naturalmente. Em seguida, deixo meu corpo inteiro desaparecer. Não é mais difícil do que fazer a mão desaparecer; na verdade, parece tomar menos precisão. Estou pronta. Fico completamente invisível e espero a próxima vez que me deixarão comida. Me custa um pouco de energia para manter a invisibilidade, energia que eu queria poder conservar, só tenho esse único instante para o meu golpe funcionar e não posso arriscar vê-los me transformando. Finalmente, um mogadoriano aparece. A abertura para comida se abre, a bandeja é jogada para dentro. Depois se fecha. Me preocupo que o golpe não tenha funcionado. Talvez os mogadorianos não se importem em me examinar, me procurar na cela? E, nesse caso, meu poder é totalmente inútil... A abertura se abre de novo. Dois olhos pequenos perscrutam nas sombras, semicerrando-se.


Entra, sai. Às vezes, o nervosismo me fazia visível e eu não posso estragar esse momento. Entra, sai. Na pior das hipóteses, eles vão descobrir meu poder antes que eu possa usá-lo contra eles. É uma coisa estranha, querer que alguém note sua ausência. A abertura se fecha de novo. Ouço o mogadoriano ir embora e meu coração dá um salto. Onde ele foi? Ele não percebeu que eu não estou aqui... A porta se abre de repente. Logo, minha minúscula cela está cheia de guardas mogadorianos, quatro ao total. Me aperto contra o canto mais longe, me escondendo. Estão agrupados um perto do outro, conferindo meu aparente desaparecimento. Impossível sair. Um sai e corre pelo corredor. Sua saída deixa mais espaço na sala, menos chance de alguém tombar comigo, e respiro mais fácil. Um deles gira o braço em frustração, e tenho que me agachar o mais rápido possível. Ele quase me acerta. Por pouco. Me esquivo, quieta como um gato, até o canto mais perto da porta. Dois mogadorianos estão no meio da cela, mas um deles bloqueia a saída. Mexa-se, penso. Mexa-se. Consigo ouvir passos, correndo em direção à cela. Mais mogadorianos. Sei que tudo que será necessário será um mogadoriano roçando no meu ombro ou sentindo minha respiração para eu e meu novo Legado sermos descobertos. Os passos se aproximam mais. O mogadoriano na porta dá um passo mais para dentro da cela para acomodar os que estão vindo e eu dou o bote para o corredor. Quase caio no chão de pedra do lado de fora da cela, mas consigo recuperar o equilíbrio bem a tempo. Alguém caindo em pedra: certamente teria sido descoberta. Uma horda de mogadorianos está correndo pelo corredor em direção à minha cela vindos da esquerda. Não tenho escolha, a não ser correr para a direita. Faço isso, pousando os pés o mais delicadamente possível. Quieta como um gato. É um corredor longo. Luto para continuar em silêncio, meus pés descalços fazendo um barulho muito fraco enquanto corro sem parar. No início, sinto medo, mas depois posso sentir: liberdade, logo à frente. Vou mais rápido, pousando nos calcanhares para não fazer barulho. Meu coração dá um salto no peito quando saio do corredor e me encontro no centro do complexo mogadoriano, uma grande caverna cheia de vários outros túneis como o que eu acabei de sair. Câmeras de segurança de circuito fechado estão em todo o lugar. Quando as localizo, meu coração acelera de medo, mas depois me lembro estou invisível, para câmeras assim como para mogadorianos.


Por quanto tempo, não sei. Um alarme é soado. Eu devia ter esperado isso. Luzes de segurança acendem quando a caverna é tomada pelo barulho do alarme. As altas paredes da caverna só o amplificam. Recomeço a correr, escolhendo aleatoriamente um túnel. Passo por outras celas como a minha, depois portas de aço que provavelmente prendem mais prisioneiros. Queria ter mais tempo para ajudá-los. Mas tudo que poso fazer é correr e continuar correndo, pelo tempo que minha invisibilidade permanecer. Esquivo-me pela esquerda para fora do túnel, passando por uma grande sala com janela de vidro à minha direita. Está iluminada por luzes fluorescentes claras. Dentro, centenas de computadores em filas zumbem e analisam dados, sem dúvida procurando sinais de meus companheiros Garde. Eu continuo correndo. Passo por outro laboratório, também com janela de vidro, só que dessa vez à esquerda. Mogadorianos em roupas brancas de plástico e óculos de proteção estão dentro. Cientistas? Químicos de bombas? Passo por eles antes de ter a chance de ver o que estão fazendo. Posso apenas aceitar que é algo terrível. Minha cabeça dói com o alarme, e quero tampar os ouvidos. Mas preciso de minhas mãos para manter o equilíbrio enquanto corro, para manter meus passos delicados e inaudíveis. Tenho a estranha ideia de que por toda a minha aspereza, minhas brincadeiras, meu treinamento de guerreira, agora posso convocar uma habilidade feminina ― ter os pés leves, como uma bailarina. O túnel acaba em outro centro, esse ainda maior que o outro. Achei que o que havia visto antes era o coração do complexo, mas na verdade é certamente esse: um salão cavernoso de quase um quilômetro de comprimento e tão escuro e sombrio que mal consigo ver o outro lado. Estou coberta de suor, sem fôlego. Está quente aqui dentro. As paredes e o teto são alinhados com grandes treliças de madeira impedindo que a caverna desmorone. Saliências estreitas esculpidas na superfície da rocha conectam os túneis ponteando as paredes escuras. Acima de mim, vários longos arcos foram escavados da própria montanha para ligar a divisão de um lado ao outro. Prendo a respiração e seco a testa, para impedir que meu próprio suor me segue. Há tantos túneis, nenhum deles marcado. Meu coração martela. Percebo que podia continuar correndo por esse complexo por dias sem encontrar a saída. Imagino-me como um rato num labirinto em um laboratório, correndo e girando em vão. Então eu vejo: um único brilho de luz natural, acima de mim.


Deve haver uma saída lá em cima. Será uma subida íngreme nessas paredes, mas eu consigo. Quando pego a treliça para me lançar para cima, eu ouço. “Ela será encontrada.” É ele. O executor de Katarina. Está falando com alguns guardas mogadorianos, numa passarela acima de mim. Os guardas marcham para longe. Meu olhos caem no executor conforme ele começa a andar de volta ao complexo. Devo escolher. Entre fuga e vingança. A luz acima me seduz como água num deserto. Imagino exatamente quanto tempo se passou desde que vi a luz do sol pela última vez. Mas eu me viro.

Escolho vingança.


EU O SIGO PELOS CORREDORES NA PONTA DOS DEDOS, COM CUIDADO para manter minha invisibilidade ― aprendi o suficiente sobre meu Legado até agora para saber que qualquer surpresa ou quebra de concentração pode me fazer reaparecer no ar. Observo quando ele entra numa cela. Entro em silêncio por trás dele quando a porta se fecha. Sem sabe que tem companhia, anda até o canto da sala e começa a se limpar. Eu olho para baixo. Há sangue no chão, eu consigo ver suas armas. Ele torturou e matou outros. Eu nunca matei um mogadoriano antes. Sem contar os mogadorianos que morreram tentando me matar, em toda a minha vida eu só matei um coelho e um piken. Para o meu próprio choque, percebo que estou sedenta por assassinato. Pego uma navalha de sua mesa e me aproximo dele. A lâmina parece boa na minha mão. Parece certa. Sou esperta o suficiente para saber que não lhe devo dar uma chance para implorar ou suplicar, me fazer esquecer de meu objetivo. Eu o agarro por trás e abro sua garganta num limpo corte. Sua boca gorgoleja e cospe sangue no chão, contra minhas mãos. Ele cai de joelhos e em seguida explode em cinzas. Me sinto mais viva do que jamais me senti. Abro minha boca para falar. Isso é por Katarina, estou para dizer. Mas não digo. Não digo porque sei que é uma mentira. Isso não foi por Katarina. Foi por mim. ***


Saio do complexo aproximadamente uma hora depois, exausta e lutando para permanecer invisível enquanto subo até o topo, correndo da montanha até um morro oposto. Tenho que parar para descansar, para me adaptar ao cegante sol de meio-dia. Minha pele translucente ferve debaixo do sol. Olho para a entrada do complexo, já difícil de se distinguir dessa distância. Não confio na minha memória, então paro para memorizar sua forma, sua precisa localização. Tenho certeza que há mogadorianos espalhados por todo o complexo me procurando. E tenho certeza que já passaram pela saída, e estão agora mesmo procurando-me nas árvores desses morros. Podem olhar. Nunca irão me encontrar. Corro por alguns quilômetros pelas árvores, até alcançar uma estrada numa pequena cidade de mineração. Estou correndo descalça, de forma que a estrada bate dura nos meus pés, matando minhas juntas. Não me importo; mais tarde eu arranjo tênis. Encontro um caminhão parado no único semáforo da cidade. Alegremente pulo no fundo da picape, deixando o caminhão me levar cada vez mais longe do complexo mogadoriano. Quando o caminhoneiro para para abastecer umas horas mais tarde, eu me esquivo, ainda invisível, até a cabine, mexendo nas coisas dele. Tiro uma mão de moedas, uma caneta, alguns papeis e um saco de batatas fritas não comidas. Corro para os fundos do posto de gasolina e me sinto na sombra. Desejo um mapa da entrada do complexo em um lado do papel, e um diagrama dos túneis internos da melhor forma que consigo lembrar. Vai demorar muito ainda para eu começar a usar isso, mas sei que minha memória do esconderijo deles é a coisa mais valiosa que possuo, e deve ser preservada. Quando termino o diagrama, jogo minha cabeça para trás. É o pôr do sol, mas eu ainda consigo sentir o calor do sol no meu rosto. Abro o saco de batatas e as como em três mordidas desajeitadas. As batatas meio salgadas e meio doces têm um gosto delicioso, incrível. *** Estou num quarto de motel, por fim. Por um dia inteiro eu vaguei, levada pela ânsia de abrigo e descanso. Sem chance eu poderia pegar um quarto, e no meu


desespero comecei a considerar roubar alguém. Sacar alguns bolsos, juntar o dinheiro que precisaria. Usando meu Legado, roubar seria realmente fácil. Mas então me ocorreu que eu não precisaria roubar, pelo menos não ainda. Em vez disso, entrei no saguão de um pequeno motel, fiquei invisível e fui em silêncio ao escritório do gerente. Tirei a chave do quarto do gancho. Não tinha certeza de como iria passar a chave flutuante pelo saguão lotado e parei por um momento, congelada no escritório. Mas logo a chave desapareceu também na minha palma. Eu nunca fiz um objeto desaparecer antes, só eu mesma e minhas roupas. Uma dica dos outros usos de meu Legado. Fico no quarto por algumas horas. Como não tenho uma sensação tão forte de que estou roubado, durmo sobre os cobertores, no frio do ar condicionado do quarto. Estou prevenida: durante todo o tempo que fico no quarto, eu estou invisível, agarrada ao esforço de sustentar isso. É como prender a respiração. Me levanto e me aproximo do espelho do outro lado do quarto, me tornando visível. Meu corpo se enche no espelho, e vejo meu rosto pela primeira vez em mais de sete meses. Ofego. A garota que reflete no espelho é quase irreconhecível. Dificilmente eu ainda sou uma garota. Olho para mim mesma por um longo tempo, de pé sozinha no quarto, desacompanhada, sofrendo por Katarina, desejando um tributo digno a ela. Mas está bem ali. Na nova rigidez e definição de meu rosto, na curva de músculos do meu braço. Eu sou uma mulhr agora, e sou uma guerreira. O amor dela e a sua perda estão marcados para sempre na minha firme mandíbula. Eu sou o seu tributo. Sobrevivência é o meu presente a ela. Satisfeita, retorno à cama do motel e durmo por dias.


ANOS SE PASSARAM. Eu tenho uma vida instável, pulando de cidade em cidade. Evito conexões ou laços, e foco-me em desenvolver minhas habilidades de luta e desenvolver meus Legados. Invisibilidade foi seguida por telecinese, e nos recentes meses descobri uma nova habilidade: posso controlar e manipular o clima. Eu poupo esse legado, já que é uma forma fácil de atrair atenção não desejada. Se manifestou meses atrás, num pequeno subúrbio fora de Cleveland. Tenho seguido uma pista de um dos Garde que acabou indo em lugar nenhum e, desencorajada, volto andando devagarinho para o meu motel, bebendo um café gelado. Minha perna dói com uma dor fervente, e derrubo minha bebida no chão. Minha terceira cicatriz. Três está morto. Caí no chão em dor e em raiva, e antes de perceber o que estava acontecendo, o céu acima de mim se encheu de nuvens. Uma carregada tempestade com relâmpagos se seguiu. Estou em Athens, Geórgia, agora. É uma cidadezinha legal, uma das melhores que estive no passar dos anos. Alunos de faculdade em todo o lugar. Tenho um certo rigor vagabundo que se ressalta em áreas suburbanas, mas cercada por estudantes hippies, nerds da música e hipsters, eu não pareço tão anormal. Isso me faz me sentir segura. Todas as minhas pistas terminavam num beco sem saída, e eu ainda não descobri alguém da minha espécie. Mas eu sei que esse dia chegará. Hora de reunir os Garde. Se meus Legados estão se desenvolvendo a essa velocidade, tenho certeza que o mesmo está acontecendo com os outros como eu. Haverá sinais logo, eu posso sentir isso. Sou paciente, mas estou animada: estou pronta para lutar.


Vago pela rua, bebendo os restos de um café gelado. Se tornou minha bebida de escolha. Virei uma bate-carteira para financiar meus apetites, mas isso é tão fácil que eu nunca tenho que enganar ninguém. Só pego algumas notas aqui e ali para passar. De repente, um sopro de ar me atinge, praticamente me tirando do chão. Por um segundo acho que perdi o controle, que foi o meu próprio poder que o causou. Mas o sopro para tão rápido quanto começou, e percebo que não veio de mim. Mas abriu a porta de outro café. Eu quase continuo andando, mas minha atenção é chamada por um terminal de computador no fundo do café. Eu uso cafés com internet para me atualizar das notícias, procurando itens que podem se transformar em uma pista da minha espécie. Fazer isso me faz me sentir mais perto de Katarina. Eu me tornei minha própria Cêpan. Jogo meu copo vazio no lixo do lado de fora e entro no frio ar condicionado do lugar. Me sento e começo a verificar as notícias. Alguma coisa sobre Paradise, Ohio, chama minha atenção. Um adolescente foi visto pulando de um prédio em chamas. Novo na cidade. Chamado John. O repórter mencionou como era difícil conseguir informações sólidas sobre ele. Eu me levanto tão rápido que mando a cadeiro voando de baixo de mim. Sei num instante que ele é um de nós, apesar de não ter certeza de como sei. Algo naquele sopro de ar. Algo sobre a forma que borboletas estão agora flutuando no meu estômago, massageando minhas entranhas com suas asas. Talvez esse reconhecimento seja uma parte do encanto, algo que nos avisa que uma intuição é mais que uma intuição. Eu sei.

Simplesmente sei. Meu coração acelera de animação. Ele está lá fora. Um dos Garde. Saio correndo do café e paro na rua. Esquerda, direita... não sei ao certo qual caminho virar, como chegar a Paradise o mais rápido possível. Respiro fundo. Está começando, penso. Está finalmente começando. Rio da minha própria paralisia. Me lembro que a rodoviália é a menos de um quilômetro da estrada. Tenho um hábito de memorizar todas as rotas de transporte para dentro e fora de cada cidade que visito, e a rota de ônibus para fora de Athens volta à minha mente. O início de um plano para chegar em Paradise começa a se desenvolver. Me viro e começo a andar para a rodoviária.



A PORTA COMEÇA A TREMER. FRACA, FEITA DE BAMBUS PRESOS POR


A PORTA COMEÇA A TREMER. FRACA, FEITA DE BAMBUS PRESOS POR pedaços de corda desfiada. O tremor é sutil e para quase imediatamente. Eles levantam a cabeça para ouvir, um garoto de quatorze anos e um homem de cinqüenta, que todos pensam ser pai dele, mas que nasceu perto de uma selva diferente em um planeta diferente a centenas de anos-luz dali. Os dois estão deitados sem camisa em lados opostos da cabana, cada catre coberto por um mosquiteiro. Ouvem um barulho distante, como se um animal quebrasse o galho de uma árvore — mas, nesse caso, era como se a árvore inteira estivesse sendo quebrada. — O que foi isso? — pergunta o garoto. — Shhh — o homem responde. Eles ouvem o ruído de insetos, nada além. O homem começa a se levantar quando o tremor reinicia. Dessa vez é mais longo, mais firme, e há outro estrondo, mais próximo. O homem fica de pé e caminha lentamente até a porta. Silêncio. Ele respira fundo e estende a mão até o trinco. O garoto se senta. — Não — o homem cochicha, e nesse instante a lâmina longa e brilhante de uma espada feita de um metal branco e luminoso, que não é encontrado na Terra, atravessa a porta e penetra profundamente em seu peito. Quinze centímetros de lâmina projetam-se de suas costas e a espada logo é puxada de volta. O homem grunhe. O menino perde o fôlego. O homem respira fundo e diz uma única palavra: — Fuja.


Então cai sem vida no chão. O garoto pula do catre e atravessa a parede dos fundos. Ele não se incomoda com a porta ou a janela: literalmente se arremessa contra a parede, que se rompe como se fosse de papel, embora seja de mogno-africano, sólido e resistente. Ele mergulha na noite do Congo, salta por cima das árvores e corre a cerca de noventa quilômetros por hora. Sua visão e sua audição vão além do limite humano. Ele se desvia de árvores, atravessa entre os cipós entrelaçados e cruza riachos com apenas um salto. Passadas pesadas soam atrás dele, mais perto a cada segundo. Os perseguidores também têm dons. E têm algo consigo. Algo de que ele só tinha ouvido falar, algo que ele nunca achou que veria na Terra. O barulho está mais próximo. O garoto ouve um rugido grave e intenso. Ele sabe que aquilo que o persegue está ganhando velocidade. E vê uma clareira mais à frente, na selva. Quando a alcança, nota um barranco enorme, um precipício de noventa metros de largura o noventa de profundidade, com um rio no fundo, em cuja margem há pedregulhos enormes, que o arrebentariam se caísse ali. A única opção é saltar o precipício. Ele vai ter pouco espaço para correr e ganhar impulso, e uma única chance. Uma chance para salvar a própria vida. Até mesmo para ele, ou para qualquer um dos outros na Terra que são como ele, o salto é quase impossível. Recuar, descer a encosta ou tentar enfrentá-los seria morte certa. Ele tem uma tentativa. Um rugido ensurdecedor soa atrás dele. Os perseguidores estão de seis a nove metros de distância. Ele recua cinco passos, corre... e, pouco antes da beirada do precipício, salta e atravessa a garganta voando. São três ou quatro segundos no ar. Ele grita, os braços estendidos para a frente, esperando pela segurança ou pelo fim. Chega ao chão e cai rolando, parando aos pés de uma árvore gigantesca. Ele sorri. Não acredita que conseguiu, que vai sobreviver. Para não ser visto pelos perseguidores, e ciente de que precisa se afastar ainda mais, o garoto se levanta. Deve continuar correndo. Ele se vira para a selva. Ao fazer isso, sente a mão enorme se fechando em torno de seu pescoço. Ele é erguido do chão. Luta, se debate, esperneia, tenta se


libertar, mas sabe que é inútil, que acabou. Deveria imaginar que eles estariam dos dois lados, que quando o localizassem não haveria chance de fuga. O mogadoriano o levanta para poder enxergar seu peito, para ver o amuleto que pende do pescoço, o amuleto que só ele e os da mesma espécie podem usar. Ele o arranca e guarda em algum lugar sob o longo manto negro, e, quando sua mão emerge, já empunha a cintilante espada de metal branco. O garoto olha fixamente nos olhos profundos, grandes, negros e frios do mogadoriano e diz: — Os Legados vivem. Eles vão se encontrar e, quando estiverem prontos, vão destruir vocês. O mogadoriano ri, uma gargalhada debochada, cruel. Ele levanta a espada, única arma no universo capaz de quebrar o encantamento que até então protegia o garoto e que ainda protege os outros. A lâmina se acende numa chama prateada ao ser apontada para o céu, como se ganhasse vida, pressentisse sua missão e se alegrasse com a expectativa. E quando desce, formando um arco de luz que cruza a escuridão da selva, o menino ainda acredita que alguma parte sua vai sobreviver e voltar para casa. Ele fecha os olhos pouco antes de ser atingido pela espada. E então é o fim.


NO COMEÇO ÉRAMOS NOVE. PARTIMOS AINDA PEQUENOS, QUASE jovens demais para lembrar.

Quase. Dizem-me que o chão tremeu, que os céus se encheram de luz e explosões. Vivíamos aquelas duas semanas no ano em que as duas luas pairam em lados opostos do horizonte. Era um tempo de celebração, e no início as explosões foram confundidas com fogos de artifício. Mas não eram. Fazia calor, e uma brisa suave soprava da água. Sempre me falam sobre o clima: fazia calor. Havia uma brisa suave. Nunca entendi por que isso importava. O que lembro com mais clareza é como minha avó estava naquele dia. Agitada, triste. Havia lágrimas em seus olhos. Meu avô se mantinha bem atrás do ombro dela. Lembro como os óculos dele refletiam a claridade do céu. Havia abraços. E palavras ditas por eles. Não lembro quais foram. E nada me atormenta mais do que isso. Levei um ano para chegar aqui. Eu tinha cinco anos quando chegamos. A idéia era nos assimilarmos à cultura local antes de retornar a Lorien, quando fosse novamente possível haver vida por lá. Tivemos de nos separar e seguir caminhos distintos. Por quanto tempo, ninguém sabia. Ainda não sabemos. Nenhum deles sabe onde estou, e eu não sei onde eles estão ou que aparência


têm agora. É assim que nos protegemos, com o encantamento lançado quando partimos, um feitiço que garante que só podemos ser mortos na ordem de nossos números, desde que nos mantenhamos separados. Se nos juntarmos, o encantamento se desfaz. Quando um de nós é encontrado e morto, uma cicatriz circular contorna o tornozelo direito daqueles que ainda sobrevivem. E no tornozelo esquerdo temos uma cicatriz idêntica ao amuleto que usamos, um desenho que se formou quando fomos protegidos pelo encantamento lórico. As cicatrizes circulares são outra parte do feitiço. Um sistema de alerta para sabermos onde estamos em relação uns aos outros e quando seremos o próximo na lista dos perseguidores. A primeira cicatriz surgiu quando eu tinha nove anos. Eu dormia, e acordei com a sensação do desenho queimando a pele. Morávamos no Arizona, em uma pequena cidade na fronteira com o México. Acordei gritando no meio da noite, em agonia, aterrorizado ao ver a Cicatriz se desenhando. Foi o primeiro sinal de que os mogadorianos finalmente nos haviam encontrado na Terra, o primeiro sinal de que corríamos perigo. Até a cicatriz aparecer, eu quase me convencera de que minhas lembranças não eram realidade, de que o que Henri me dissera estava errado. Queria ser uma criança normal levando uma vida normal, mas então eu soube, sem margem para dúvidas ou discussão, que eu não era. Nós nos mudamos para Minnesota no dia seguinte. A segunda cicatriz apareceu quando eu tinha doze anos. Estava na escola, no Colorado, participando de um concurso de soletração. Assim que a dor começou, eu soube o que estava acontecendo e o que havia acontecido com o Número Dois. A dor era lancinante, mas dessa vez suportável. Eu teria continuado no palco, mas o calor incendiou minha meia. O professor que conduzia a disputa me socorreu com um extintor de incêndio e me levou para o hospital. O médico no pronto-socorro encontrou a primeira cicatriz e chamou a polícia. Quando Henri chegou, os policiais ameaçaram prendê-lo por maustratos. Mas, como ele não estava nem perto de mim quando a segunda cicatriz apareceu, acabou sendo liberado. Entramos no carro e partimos, dessa vez para o


Maine. Abandonamos tudo o que tínhamos, exceto a Arca Lórica que Henri leva conosco em todas as mudanças. Até agora, vinte e uma. A terceira cicatriz surgiu há uma hora. Eu estava sentado em um barco. Os donos são os pais do garoto mais popular da escola, que dava uma festa sem que eles soubessem. Eu nunca havia sido convidado para festa alguma nessa escola. Como sabia que podíamos partir a qualquer momento, eu preferia ficar na minha. Mas tudo esteve calmo nos últimos dois anos. Henri não via nos jornais nada que pudesse levar os mogadorianos até um de nós ou que nos alertasse da presença deles. Então, fiz alguns amigos. E um deles me apresentou ao garoto que dava a festa. Todo mundo se encontrou no píer. Havia três coolers, música e garotas que eu admirava de longe, mas com quem nunca havia falado, embora quisesse. Zarpamos e seguimos uns oitocentos metros Golfo do México adentro. Eu estava sentado na beirada do barco com os pés na água, conversando com uma menina bonita, morena e de olhos azuis, chamada Tara. Foi quando senti que estava acontecendo. A água começou a ferver em volta da minha perna, que brilhava onde a cicatriz estava se formando. O terceiro símbolo de Lorien, o terceiro aviso. Tara começou a gritar e as pessoas se aglomeraram ao redor. Eu sabia que não tinha jeito de explicar aquilo. E sabia que precisávamos partir imediatamente. Agora o risco era maior. Eles haviam encontrado o Número Três, e, onde quer que estivesse, ele ou ela já estava morto. Eu acalmei Tara, beijei seu rosto, disse que tinha sido legal conhecê-la e que esperava que ela tivesse uma vida longa e feliz. Depois, mergulhei do barco e comecei a nadar, sempre submerso, exceto por uma ida à tona para respirar mais ou menos na metade do caminho, na maior velocidade possível até chegar à praia. Corri pela trilha paralela à estrada, sempre entre as árvores, na mesma velocidade dos carros. Quando cheguei em casa, Henri estava à frente dos escâneres e monitores que usava para pesquisar as notícias do mundo todo e a atividade policial em nossa região. Ele soube sem que eu dissesse uma única palavra, mas levantou minha calça ensopada para ver as cicatrizes.


No início éramos um grupo de nove. Três se foram, morreram. Agora restam seis. Eles estão nos caçando e não vão parar enquanto não matarem todos. Eu sou o Número Quatro. Sei que sou o próximo.


ESTOU NO MEIO DA ENTRADA DA GARAGEM, OLHANDO PARA A casa. É cor-de-rosa suave, quase como cobertura de bolo, e fica elevada uns três metros, sobre o pilotis de madeira. Há uma palmeira na frente. Na parte de trás há um píer que se estende pouco menos de vinte metros no Golfo do México. Se a casa fosse localizada um quilômetro e meio ao sul, o píer ficaria no Oceano Atlântico. Henri sai carregando a última caixa. Algumas sequer foram desembaladas depois da última mudança. Ele tranca a porta e deixa as chaves na caixa de correio, ao lado. São duas horas da manhã. Henri veste short caqui e camisa polo preta. Está muito bronzeado, e a barba por fazer dá a impressão de abatimento. Ele também está triste com a partida. Joga as caixas na parte de trás da caminhonete com o restante das coisas. — É isso — diz. Eu faço que sim com a cabeça. Olhamos para a casa e ouvimos o vento batendo nas folhas da palmeira. Estou carregando um saco de aipo. — Vou sentir saudades daqui — comento. — Mais do que dos outros lugares. — Eu também. — Hora do fogo? — Sim. Quer cuidar disso ou prefere que eu faça?


— Eu faço. Henri pega sua carteira e a joga no chão. Eu pego a minha e faço o mesmo. Ele caminha até a caminhonete e volta trazendo passaportes, certidões de nascimento, cartões do seguro social, talões de cheque, cartões de crédito e do banco, e joga tudo no chão. Todos os documentos e tudo o que se relaciona a nossa identidade neste lugar, tudo forjado e fabricado. Pego no automóvel uma pequena lata de gasolina que mantemos para as emergências e despejo sobre a pilha reduzida. Meu nome atual é Daniel Jones. Minha história atual é que cresci na Califórnia e me mudei para cá por causa do trabalho de meu pai, que é programador de sistemas. Daniel Jones está prestes a desaparecer. Risco um fósforo e jogo no meio da pilha, e o fogo começa imediatamente. Mais uma vida que se vai. Como sempre fazemos, Henri e eu ficamos para ver as chamas. Adeus,

Daniel, eu penso, foi um prazer conhecer você. Quando o fogo se extingue, Henri olha para mim. — Temos que ir. — Eu sei. — Essas ilhas nunca foram seguras. É difícil sair delas rapidamente, difícil fugir. Foi tolice vir para cá. Eu balanço a cabeça, indicando que concordo. Henri está certo, e eu sei disso. Mas ainda reluto em ir embora. Viemos para cá porque eu queria. Pela primeira vez Henri me deixara escolher nosso destino. Ficamos por nove meses, e esse foi o período mais longo que passamos em um lugar desde que deixamos Lorien. Vou sentir falta do sol e do calor. Vou sentir saudades da lagartixa que ficava me espiando da parede todas as manhãs enquanto eu tomava o café. Embora haja literalmente milhões de lagartixas no sul da Flórida, juro que aquela me seguia até a escola e parecia estar em todos os lugares. Vou sentir falta dos temporais que parecem chegar do nada, de como tudo é parado e silencioso no início da manhã, antes de as gaivotas chegarem. Vou sentir falta dos golfinhos que às vezes aparecem quando o sol se põe. Vou sentir saudades até do cheiro de enxofre das algas marinhas que apodrecem na praia, de como ele preenche a casa


e invade nossos sonhos enquanto dormimos. — Livre-se do aipo, eu vou esperar na caminhonete — Henri diz. — Está na hora. Eu entro em um bosque fechado à direita da caminhonete. Há três cervos esperando. Jogo o saco com aipos diante deles e me inclino para afagar um de cada vez. Os animais permitem, porque há muito venceram o medo. Um deles levanta a cabeça e olha para mim, os olhos negros e inexpressivos me encarando. Chega a parecer que ele está me dizendo algo. Sinto um calafrio na espinha. Ele abaixa a cabeça e continua comendo. — Boa sorte, amiguinhos — digo, depois ando até a caminhonete e me sento no banco do carona. Observamos pelos retrovisores enquanto a casa fica cada vez menor, até que Henri entra na estrada principal e ela desaparece. É sábado. Imagino o que está acontecendo na festa, sem mim. O que estão falando sobre o modo como saí de lá e o que dirão na segunda-feira, quando eu não aparecer na escola. Gostaria de ter me despedido. Nunca mais verei ninguém que conheci ali. Nunca mais vou falar com nenhum deles. E nunca saberão o que sou ou por que parti. Depois de alguns meses, talvez semanas, é provável que ninguém pense mais em mim. Antes de chegarmos à estrada estadual, Henri para a fim de abastecer a caminhonete. Enquanto mexe na bomba, eu examino um atlas que ele guarda entre os bancos. Nós o temos desde que chegamos a este planeta. Traçamos linhas indo e vindo de todos os lugares onde já moramos. A esta altura elas já atravessam todos os Estados Unidos. Sabemos que devemos nos livrar do atlas, mas ele é o único objeto que conservamos e que retrata nossa vida. Pessoas comuns têm fotos, vídeos e diários; nós temos o atlas. Ao examiná-lo, percebo que Henri fez uma linha da Flórida até Ohio. Quando imagino Ohio, penso em vacas, milho e pessoas gentis. Sei que as placas dos carros de lá têm escrito "O coração de tudo". Não sei dizer o que é "tudo", mas acho que vou descobrir. Henri volta à caminhonete. Ele comprou dois refrigerantes e um saco de batatas fritas. Partimos na direção da U.S.1, que vai nos levar ao norte. Ele


estende a mão para pegar o atlas. — Acha que há vida em Ohio? — eu brinco. Ele ri. — Imagino que haja algumas. E talvez até tenhamos a sorte de encontrar carros e televisão por lá. Eu movo a cabeça, concordando. Talvez não seja tão ruim quanto imagino. — O que acha do nome "John Smith"? — pergunto. — Foi esse que escolheu? — Acho que sim — respondo. Nunca fui "John" antes, nem "Smith". — Não é possível encontrar nada mais comum. Eu diria que é um prazer conhecê-lo, Sr. Smith. Eu sorrio. — É, acho que gosto de "John Smith". — Vou montar seus documentos quando pararmos. Um quilômetro e meio depois estamos fora da ilha, cruzando a ponte. A água passa por baixo de nós, calma, e a luz da lua brilha, salpicando de branco a crista das pequenas ondas. À direita está o oceano, à esquerda, o golfo; em essência, é a mesma água, mas com nomes diferentes. Tenho vontade de chorar, mas me contenho. Não que esteja triste por deixar a Flórida, mas estou cansado de fugir. Cansado de inventar um nome a cada seis meses. Cansado das novas casas, das novas escolas. Fico me perguntando se algum dia vamos poder parar.


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