SUMÁRIO Apresentação Paulo Freire Vive! Hoje, dez anos depois... OLHARES FREIREANOS O pedagogo da esperança e da liberdade Da impossibilidade de existirmos sem os sonhos e sem a luta Paulo Freire e a interdisciplinaridade em São Paulo Compromisso e competência na gestão educacional: uma lição de Paulo Freire Paulo Freire: utopia e esperança Paulo Freire e o Projeto Mova-SP Requerimento da Sessão Solene em homenagem a Paulo Freire
Ivan Valente
Ademar Bogo
Ana Maria Araújo Freire João Zanetic
Lisete R. G. Arelaro Mario Sergio Cortella Sílvia Telles
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APRESENTAÇÃO
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m mandato coletivo, comprometido com a luta popular e com o socialismo, tem, no horizonte de sua atuação, o resgate da memória das lutas daqueles e daquelas que dedicaram suas vidas ao combate a todas as formas de opressão e exploração dos trabalhadores. Em nossa última plenária, deliberamos dedicar nossa atuação militante à memória de Paulo Freire, por tudo que representa seu pensamento, sua contribuição teórica e trajetória de vida para a educação e a libertação dos povos do Brasil e do mundo.
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No início desta Legislatura, apresentamos Requerimento na Câmara dos Deputados, em conjunto com outros parlamentares, solicitando realização de Sessão Solene em sua homenagem por ocasião dos dez anos de sua morte; posteriormente, ocupamos a tribuna para proferir pronunciamento em que consignamos nosso tributo a esse inesquecível companheiro.
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Esta publicação ganhou densidade com artigos e depoimentos elaborados por pessoas de reconhecido saber, que conviveram, conhecem e praticam os ensinamentos de Paulo Freire, expressando diferentes aspectos da trajetória e do pensamento freireano: sua atuação compromissada e competente à frente da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo; a construção, coletiva, de propostas de educação para jovens e adultos e a questão da organização curricular; seu vínculo e a importância de seu legado para os movimentos populares, em especial, o Movimento dos Trabalhadores sem Terra – MST; sua retidão política e disposição de luta
em prol da educação pública movidas pela sua inabalável esperança por um mundo melhor. Ficam nossos sinceros agradecimentos à contribuição desses valorosos educadores e educadoras: Ademar Bogo, Ana Maria Araújo Freire, João Zanetic, Lisete R. G. Arelaro, Mario Sergio Cortella e Sílvia Telles.
Paulo Freire nos alenta, nos inspira e nos alegra. Com suas idéias, alimenta nossos sonhos de mudança; com suas reflexões, nos instiga à crítica; com seu exemplo, reforça nosso engajamento; com sua ternura, nos leva à solidariedade e com sua tolerância, nos mobiliza para o efetivo exercício da democracia. Paulo Freire: PRESENTE! Março de 2007 Mandato Popular e Socialista Ivan Valente – Deputado Federal Psol/SP
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Por último, queremos falar do sentimento de alegria que a lembrança de alguém que nos é muito querido nos traz, em contrapartida com a dor de sua ausência. Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, artistas populares, traduzem assim esse conflito: “em Mangueira todos choram quando morre um poeta, mas é um pranto diferente, sem lenço, que alegra a gente.” (Pranto do Poeta).
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Paulo Freire Vive! Hoje, dez anos depois...
“Uma das questões centrais com que temos de lidar é a promoção de posturas rebeldes em posturas revolucionárias que nos engajam no processo radical de transformação do mundo. A rebeldia é o ponto de partida indispensável, é deflagração da justa ira, mas não é suficiente. A rebeldia enquanto denúncia precisa se alongar até uma posição mais radical e crítica, a revolucionária, fundamentalmente anunciadora. A mudança do mundo implica a dialetização entre a denúncia da situação desumanizante e o anúncio de sua superação; no fundo, o nosso sonho”. (Paulo Freire)
Introdução No dia dois de maio de 2007 completará dez anos da morte do professor Paulo Reglus Neves Freire, conhecido mundialmente como um grande educador, pensador, filósofo e militante da Educação. Inconformado com as injustiças sociais, Paulo Freire fez da educação um instrumento político de combate ao autoritarismo e de luta em favor
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Ivan Valente
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da democracia. Dedicou sua vida a criticar toda e qualquer forma de opressão e tirania e questionou o método de ensinar e aprender impostos pelas classes dominantes como instrumento de manutenção do status quo. Em contraposição à educação bancária, onde o saber é transmitido de cima para baixo, autoritariamente, e o conteúdo tem um valor “em si”, construiu, coletivamente, um projeto educacional libertador, partilhado, capaz de criar uma cultura de pessoas livres, conscientes e responsáveis por si e pela coletividade.
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Sua trajetória de vida - contribuição teórica, reflexão sobre a prática, propostas de políticas públicas especialmente para a área educacionalfizeram com que se tornasse referência mundial para intelectuais, profissionais de diversos campos do saber, atores sociais, educadores e educadoras, comprometidos com as causas populares, com a educação pública de qualidade e com a luta por uma sociedade mais justa e igualitária.
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Suas idéias, nos anos duros da ditadura militar, o levaram ao exílio por dezesseis anos. Continuou, porém, a desenvolver seu trabalho em diversos países, reafirmando sua opção política e sua concepção de educação, democrática e popular, dialética e dialógica, mostrando a intencionalidade do ato educativo. Paulo Freire se fez e continua presente no mundo inteiro, principalmente entre aqueles e aquelas que sempre acreditaram e continuam a crer na possibilidade de construir um mundo novo e melhor, mais belo, mais humano e fraterno. Esta homenagem a Paulo Freire, mais do que recordar, com saudade, um dos brasileiros mais ilustres, reconhecido internacionalmente por seu trabalho e testemunho de vida, tem um sentido simbólico: o de resgatar sua luta incansável por justiça social, através de um projeto de
educação popular libertador, emancipador e transformador da realidade. Esta homenagem tem também por objetivo fazer desta oportunidade, um instrumento vivo de ação e de luta.
TRAJETÓRIA O cidadão brasileiro e cidadão do mundo Paulo Freire, pernambucano, nasceu em Recife, em 19 de setembro de 1921. De família humilde, teve uma infância marcada por dificuldades econômicas e desde cedo conheceu a pobreza. Foi alfabetizado em casa, por seus pais, escrevendo com gravetos, no chão de terra debaixo das mangueiras do quintal. Como gostava muito de estudar, assim que concluiu a escola secundária, tornou-se professor.
A partir dos anos 60, desenvolveu uma proposta revolucionária de alfabetização através da qual, para além da mera aquisição da linguagem escrita, a partir da realidade vivencial dos educandos e do diálogo permanente, busca-se a leitura e a compreensão crítica do mundo, para poder transformá-lo. Essa nova teoria valorizava o universo cultural e vivencial dos educandos, estabelece o diálogo como método e, através dele, a construção coletiva do conhecimento, estabelecendo uma relação “dialógica” entre natureza e cultura, fazendo com que os alunos se percebam como sujeitos e, portanto, construtores de sua própria história. Dentro dessa perspectiva, a alfabetização é um processo de educação
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Formou-se em Direito, mas não exerceu a profissão. Optou por se engajar na formação de jovens e adultos trabalhadores e por atuar em projetos de alfabetização. A partir de sua prática, com uma metodologia diferente, criou uma teoria epistemológica que o tornou conhecido internacionalmente.
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permanente, constituindo-se em instrumento de conscientização que gera projetos de transformação da realidade. Daí, porque, insistia o Professor, o ato de educar é eminentemente político e o fazer pedagógico, necessariamente coletivo. Foram suas atividades no Movimento de Cultura Popular no Recife que inspiraram sua teoria do conhecimento, da qual seu chamado “método de alfabetização” extrapolou os limites do país. Como conseqüência dessa atuação, foi preso (1964) e exilado. Durante o período de exílio, trabalhou no Chile, com alfabetização de camponeses, nos Estados Unidos, ministrando aulas na Universidade de Harvard, como professor convidado, e depois se fixou em Genebra, na Suíça.
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Lá, foi consultor especial do Departamento de Educação do Conselho Mundial de Igrejas, viajando e trabalhando em diferentes países, tornandose mundialmente conhecido. Com outros companheiros de exílio, fundou o Instituto de Ação Cultural - IDAC e no início dos anos 70 trabalhou na África, especialmente nas ex-colônias portuguesas: Guiné Bissau, Cabo Verde, Angola, São Tomé e Príncipe. Assessorou campanhas de alfabetização e contribuiu efetivamente para sistematização de programas e projetos educacionais naqueles países.
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Em 1980, com a anistia, voltou ao Brasil. Por considerar ofensivas as regras impostas, recusou-se a pedir a reintegração a seu cargo na Universidade Federal de Pernambuco. Passou então a trabalhar como professor na PUC/São Paulo e, em seguida, tornou-se professor da Universidade de Campinas - Unicamp, onde lecionou até o final de 1990. Em 1989, foi convidado pela Prefeita Luiza Erundina para ser Secretário de Educação do Município de São Paulo. Sua Gestão caracterizou-se por ampla discussão sobre condições de ensino e de trabalho, onde o método “ação - reflexão - ação”, enquanto um processo prático e exigente de Gestão Democrática ia se consolidando; investiu não só na formação
permanente dos educadores, mas melhorou as condições de trabalho com uma nova jornada; aprovou o primeiro Estatuto do Magistério da rede municipal de São Paulo; promoveu a revisão curricular via projetos de interdisciplinaridade e uma nova organização do ensino por meio de ciclos. Fez da Gestão Democrática, nas suas diversas dimensões, uma diretriz política. Com democracia, participação colegiada e construção coletiva tornou-se um marco para a educação na rede municipal. Com investimento na infra-estrutura, na formação dos profissionais, na democratização do acesso e permanência dos alunos e na gestão escolar conseguiu “mudar a cara da escola” e mostrou que é possível fazer da escola pública um lugar privilegiado de construção de conhecimento, de desenvolvimento de projetos e de inserção social. Reconhecido até pelos adversários, desenvolveu o melhor projeto de formação de professores da cidade de São Paulo. Depois de deixar a Secretaria de Educação do Município de São Paulo, em 1991, retomou suas atividades acadêmicas publicando diversos livros e
O Professor Paulo Freire morreu em 02 de maio de 1997, aos 75 anos, na cidade de São Paulo.
Alfabetização e conscientização: inseparáveis em Paulo Freire O Brasil deve a Paulo Freire a inclusão na categoria de lutadores sociais de milhões de brasileiros e brasileiras que compreenderam o que é ser sujeito de sua própria história. Permitiu a um número expressivo de pessoas que pertenciam aos “de baixo” enxergarem–se como agentes transformadores
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fomentando, de forma permanente, a discussão educacional.
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na busca por uma sociedade mais justa e igualitária. Deu-lhes a chance de escolher seu próprio caminho, em vez de ficarem sempre presos às alternativas impostas pelas elites para perpetuar sua dominação de classe e a brutal exclusão social que sofrem os trabalhadores no Brasil, e em toda periferia capitalista.
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Não é à toa que os interessados em manter seus privilégios e a alienação do homem e da sociedade brasileira viram logo no seu “método” um perigo iminente à manutenção do status quo, uma ameaça sem precedentes a seus valores e instrumentos de dominação, uma verdadeira “subversão da ordem”, pois se tratava não só de alfabetizar com rapidez e eficácia, mas, estimular o processo de conscientização. O medo das elites se agravava quanto mais crescia a aceitação de sua metodologia. Freire se refere a este fenômeno afirmando que “se não tivesse sido interrompido pelo golpe de 64, naquele ano, deveria estar em funcionamento vinte mil círculos da cultura em todo país”.
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Paulo Freire como intelectual orgânico e, mais do que isso, como um militante político, ao colocar seus conhecimentos em prática, valorizando o homem do povo, aprendendo com a vida, formando educadores engajados e respeitadores da experiência e da sabedoria popular, transformava valores, atacava a meritocracia, o autoritarismo e a hierarquização nas relações. Subvertia a ordem do poder dominante, da lógica do lucro, dos ricos, valorizando o homem e a natureza. Nesta passagem do seu livro “Educação como prática da liberdade” encontramos uma pequena síntese de porque o pensamento de Paulo Freire amedrontava aqueles que têm pavor do “despertar” das massas:
Diálogo e construção coletiva no pensamento de Freire Uma característica do pensar e do agir, da maneira de se relacionar e aprender em Paulo Freire, diz respeito à forma como ele vê o outro. O aprender a ouvir, a valorização dos saberes que vêm da experiência e da cultura popular, a abertura para o diálogo com os diferentes e com os adversários para melhor apreender os antagonismos, são características
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“Como explicar que um homem, analfabeto até poucos dias, escreva palavras com fonemas complexos antes mesmo de estudá-los. É que, tendo dominado o mecanismo das combinações fonêmicas, tentou e conseguiu expressar-se graficamente como fala. A afirmação que nos parece fundamental de ser enfatizada é a de que, na alfabetização de adultos, para que não seja puramente mecânica e memorizada, o que se há de fazer é proporcionar-lhes que se conscientizem para que se alfabetizem. Daí à medida que um método ativo ajuda o homem a se conscientizar em torno de sua problemática, em torno de sua condição de pessoa, por isso de sujeito, se instrumentalizará para suas opções. Aí então, ele mesmo se politizará. Quando um ex-analfabeto de Angicos, discutindo diante do presidente Goulart e sua comitiva, declarou que já não era massa, mas povo, disse mais do que uma frase: afirmou-se conscientemente uma opção. Escolheu a participação decisória, que só o povo tem, e renunciou a demissão emocional das massas. Politizou-se.”
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essenciais do projeto educativo de Paulo Freire. O combate ao autoritarismo nas relações humanas e sociais e a corajosa crítica que faz ao sectarismo muito presente na vida e na política, com suas “certezas sectárias excludentes de possibilidades de outras certezas, negadoras de dúvidas” e o seu apelo à tolerância são outras marcas que vão dar consistência às ações de quem acredita no caráter coletivo do projeto educativo.
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Diz, Paulo Freire em “Extensão ou Comunicação?” que: “ser dialógico, para o humanismo verdadeiro, não é dizer-se descomprometidamente dialógico; é vivenciar o diálogo. Ser dialógico é não invadir, é não manipular, é não sloganizar. Ser dialógico é empenhar-se na transformação cons-tante da realidade”. Freire trabalha de forma excepcional o caráter social da aprendizagem. Combate com rigor a idéia do professor como transferidor de conhecimento, trata a educação como um ato político e ressalta a “diferença entre o falar com alguém e o falar para alguém”.
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É na contestação à lógica de que a palavra deve estar com quem sabe; é combatendo a ideologia de que o educando nada sabe; é duelando com a lógica expandida de que o centro sabe e fala e a periferia do país escuta, que Paulo Freire demonstra o potencial humano e a capacidade do povo se assenhorar do conhecimento e fazê-lo instrumento da construção de um novo sonho e de uma nova vida transformada. Nos diálogos que reproduzimos abaixo, retirados de experiências de Paulo Freire com trabalhadores rurais, é cristalina essa matriz de pensamento:
“- Muito bem - disse eu a eles. - Eu sei. Vocês não sabem. Mas o que eu sei e vocês não sabem? - O senhor sabe porque é doutor. Nós, não. - Exato, eu sou doutor. Vocês não. Mas, porque eu sou doutor e
vocês não? - Porque foi à escola, tem leitura, tem estudo e nós, não. - Por que fui à escola? - Porque seu pai pôde mandar o senhor à escola. O nosso, não. - E por que os pais de vocês não puderam mandar vocês à escola? - Porque eram camponeses como nós. - E o que é ser camponês? - É não ter educação, posses, trabalhar de sol a sol sem ter direitos, esperança de um dia melhor. - E por que ao camponês falta tudo isso? - Porque Deus quer. E quem é Deus? É o Pai de todos nós. - E quem é pai aqui nesta reunião? Quase todos de mãos para cima, disseram que o eram. Olhando o grupo todo em silêncio, me fixei num deles e lhe perguntei:- Quantos filhos você tem? - Você seria capaz de sacrificar dois deles submetendo-os a sofrimentos para que o terceiro estudasse, com vida boa no Recife? Você seria capaz de amar assim? - Não. - Se você – disse eu - , homem de carne e osso, não é capaz de fazer uma injustiça desta, como é possível entender que Deus o faça? Será mesmo que Deus é o fazedor dessas coisas? Um silêncio diferente, completamente diferente do anterior, um silêncio no qual algo começava a ser pratejado. Em seguida: Não. Não é Deus o fazedor disso tudo. É o patrão.”
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- Três.
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Nesse trecho fica claro que o educador sabe que no meio do senso comum, convivem elementos de bom senso na experiência popular. Por outro lado, o diálogo, o aprendizado e o respeito ao saber popular, não podem levar o educador a uma visão complacente que não contribua para inflamar o debate e o despertar para descobertas fantásticas. Outra faceta revolucionária dos seus ensinamentos aparece na constatação prática de que a participação crítica dos educandos e a liberdade com que o fazem é que confere efetividade ao aprendizado e ao projeto educacional. O aprender com o outro, no diálogo com seus semelhantes, ensina Paulo Freire: “ninguém educa a ninguém, ninguém tampouco se educa sozinho, os homens e as mulheres se educam entre si, mediatizados pelo mundo.”
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Imprescindível homenagem
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Paulo Freire mostrou de diferentes ângulos, unindo a dimensão ética e estética das relações humanas, que, atrás do ato de ensinar e aprender há uma clara opção política e que a educação nunca é neutra, toma partido, principalmente em um mundo fortemente marcado pela opressão e desigualdade social. Sua práxis mantém-se atual e tem servido para fundamentar trabalhos acadêmicos, inspirado práticas em várias áreas do saber e, além disso, estimulado a participação popular e a organização dos movimentos sociais em diversas partes do mundo. Sua contribuição acadêmica e intelectual, com inúmeros livros publicados e traduzidos para vários idiomas, foi orientada para a emancipação da pessoa humana, para a liberdade e justiça social, para a democracia autêntica
como soberania popular e para a paz entre os cidadãos, num clima de humanização e de conscientização. Diante da importância de seu pensamento, do compromisso políticopedagógico e de sua trajetória de vida, prestamos esta necessária homenagem por ocasião dos dez anos da morte desse grande brasileiro e educador do mundo: Paulo Freire, reconhecendo que seu trabalho
Fontes de Consulta: FREIRE, Ana Maria Araújo. Paulo Freire: uma história de vida. Indaiatuba,SP: Villa das Letras, 2006. SOUZA, Ana Inês. Paulo Freire – Vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 2007. _____________ Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1997. _____________ Pedagogia da esperança: um encontro com a pedagogia do oprimido. 11ª. Ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997. _____________ Educação na cidade. 5ª. Ed. São Paulo: Cortez, 1995. _____________ Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
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dignificou a Educação e o Brasil.
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Ademar Bogo Ana Maria Araújo Freire João Zanetic Lisete R. G. Arelaro Mario Sergio Cortella Sílvia Telles
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O pedagogo da esperança e da liberdade Ademar Bogo*
Paulo Freire é um daqueles seres humanos que entram na história para nunca mais sair. Pela simplicidade, dedicação, persistência e empenho com que
A sua grande descoberta, já no final da década de 1950, foi que aprendemos a ler o mundo que nos cerca, antes mesmo das palavras e frases1. A partir daí tornou-se o grande pedagogo, amigo e militante das lutas sociais. O caminho indicado para aprender a ler o mundo a partir da ótica política seria a luta, por isso não só declarou que “todos sabemos alguma coisa”, como também despertou na geração de seu tempo e posteriores a esperança de mudar o mundo. Conjugou como se fossem verbos as palavras “esperança e liberdade” e as interligou na prática revolucionária de cada dia. * Membro da coordenação nacional do MST. 1.FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 41.ed. São Paulo: Cortez, 2001
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tratou a educação, continua presente em todos os lugares em que se discute a transformação da realidade.
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Astuto como educador e militante, percebeu que o mundo das necessidades tem os problemas e, ao mesmo tempo, as soluções. A organização e a luta é que nos fazem sujeitos da história. Assim aconteceu com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. O problema social é o mundo imediato de qualquer ser social que encara a vida com vontade de se tornar sujeito. Ler a existência da exploração e do latifúndio foi a forma embrionária da consciência, ela permitiu que os trabalhadores sem-terra, dispersos, procurassem algum lugar onde pudessem denunciar o que sabiam; isso porque, na luta social, num primeiro momento, o saber se dá na forma de “reclamação”. A reclamação colocada se estabeleceu como “denúncia”. Era a comparação das condições que havia entre os seres sociais que possuíam os mesmos direitos, mas se diferenciavam nas condições.
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Por sua vez, a denúncia se transformou em “crítica” e essa, ainda espontaneamente, avançou para a revolta. A revolta foi o primeiro sinal de que a organização da classe estava se configurando. Agora existia porque aparecia e incomodava.
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A leitura do mundo despertou a “imaginação” que, no fundo, era o desejo de mudar. Era a esperança que desabrochava, como o movimento da primavera que não se pode conter. Depois da leitura do mundo, vieram os documentos, as pautas de reivindicações, as notícias nos jornais onde alguém que aprendera a ler as letras (provavelmente sem ter levado em consideração o mundo em que vivia) discorria diante dos ouvidos atentos, para saberem se as palavras escritas retratavam o que haviam feito. Dessa forma, o MST, ao nascer e se desenvolver, nada mais fez do que confirmar pela prática, o que Paulo Freire havia descrito em suas reflexões. A prática ensina, dizia Paulo Freire, mas esse conhecimento não basta,
“precisamos conhecer melhor as coisas que já conhecemos e conhecer outras que ainda não conhecemos” 2. Conhecer, então, é mais do que uma curiosidade, é apreender a realidade como se ela nos pertencesse. Foi por esse caminho que Paulo Freire nos levou pela mão; nos fez apaixonados pelo conhecimento e pela humanização, pois conhecíamos o latifúndio pela sua extensão antes da ocupação, mas isso não era tudo, as letras e os números traziam, com precisão, o nome, tamanho e proprietário daquele território sem fim. Ao tomar conhecimento dessas características, compreendíamos as classes sociais, sabíamos o porquê de estarmos em lados opostos e porque éramos inimigos. Compreendíamos não pelas letras, mas porque víamos o proprietário que, sozinho, tinha uma enorme propriedade que não cumpria a função social. Por isso não havia mais terra disponível em nosso país para quem quisesse trabalhar para sobreviver.
“Estar no mundo e com o mundo” Paulo Freire nos ensinou o caminho para a formação da consciência na sua forma política. Ensinou-nos que “estar no mundo e com o mundo” é não somente aprender a ler a realidade, mas propor-se a modificá-la, já que alteramo-nos na medida da alteração que provocamos. Acreditava Freire que “o mundo não é, o mundo está sendo”. Antes de entrar na luta pela terra, as pessoas “estão no mundo”, mas se 2. FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1982.
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O conflito, por essa leitura do mundo e das letras, tornou-se uma saída para resolver as necessidades que motivaram a luta. Então lutar é bom, é um prazer porque nos ensina a ler o mundo melhor e a descrevê-lo como se fosse nosso.
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comportam como se estivessem fora dele. Vêem os problemas, mas se desviam deles. Aparentemente, a fome, a falta de trabalho e moradia etc. não têm causa, e, onde não há causas, não há lutas. Talvez ninguém tenha entendido e aplicado tão bem quanto Paulo Freire a terceira tese sobre Feuerbach, onde Karl Marx e Friedrich Engels, descreveram que, “o próprio educador tem que ser educado” 3. Ou seja, educar é buscar formas de modificar as circunstâncias em que vivemos para modificar-nos junto. Separar os sujeitos das circunstâncias em que vivem, é descomprometê-los. E não pode haver jamais um movimento social sem comprometimento.
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Paulo Freire percebeu que os problemas sociais não são apenas uma criação humana que diminuem a humanização, mas que eles também são a porta do conhecimento. Então, na ligação entre o ser e as circunstâncias, os problemas se transformam em temas geradores do próprio conhecimento.
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“A leitura do mundo”, de acordo com Paulo Freire, nada mais é do que uma leitura de nós mesmos e das circunstâncias que nos rodeiam. Através dessa leitura reconhecemos que, aquilo que parecia estar somente fora de nós, está também dentro, como cicatrizes. O educador nos ajudou a descobrirnos, porque ele já tinha se descoberto anteriormente e, em si, processou a modificação enquanto pedagogo. Daí que, o “professor” da tese de Marx e de Engels, no movimento social, pode ser entendido como a liderança. Organizar a luta é um conhecimento político que precisa de habilidade, inteligência e astúcia. Logo, a formação política procura combinar formas e conteúdos. Assim, atinge-se o estágio de liderança quando o fazer e o dizer não estão em desacordo; quando as relações expressam a lógica das combinações e das contradições. Nessa perspectiva Freire afirma que: 3. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Centauro, 2002, pág. 108.
“A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é o fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos. Faz cultura...”. 4 O processo de estabelecer relações políticas entre as pessoas e dessas, organizadas com a realidade, defendidas por Paulo Freire, é a base fundante da proposta pedagógica do MST, pois para o Movimento, fazer uma ocupação ou construir uma escola são atividades de igual importância. Sair de inóspitos recantos, de acampamentos e assentamentos, para construir, com trabalho voluntário, a Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema, no Estado de São Paulo, para, depois do espaço preparado, participar dos cursos de formação de militantes, é a dinamização do mundo, agora sendo criado e recriado pelo fazer das novas relações brotadas da afirmação da auto-estima. É o valor da solidariedade elevando o ser humano a uma nova categoria, a de sujeito do velho mundo, só que lido e interpretado com os olhos do novo sonho.
com facilidade, como se viesse ao encontro no caminho que se vai a pé. A diferença é que, quanto mais tempo se anda na militância, sem abandonar os temas iniciais, os que aparecem são cada vez mais complexos e surpreendentes. Ou seja, se o primeiro tema motivador da discussão e do
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Assim estar com o mundo é querê-lo e desejá-lo. Os olhos que viam e descreviam, agora sentem que, ao ler o mundo, pulavam pedaços na leitura, porque não entendiam a totalidade da mensagem oferecida pelas contradições da realidade. Ser militante é ler o mundo por inteiro. É relacionar-se com ele através da economia, da política, da ideologia, da cultura, da arte etc.
4.FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 15. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1983, pág. 43.
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O fio que liga os passos desse conhecimento é o tema gerador, que aparece
aprendizado era latifúndio, com espaço determinado, agora é imperialismo, espaço mundial, que tem a cara curtida pela guerra. Lê-lo, significa interpretá-lo, nunca temê-lo. Aprendemos com Paulo Freire e na luta que a leitura crítica do mundo amplia o próprio mundo. E ao lê-lo conscientemente, evita-se cair em enganos e cometer desatinos.
A prática política e a democrática
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Nos princípios organizativos extraídos da experiência da luta de classes na história, a democracia e a participação possuem grande importância. Paulo Freire não deixou de percebê-las e recomendá-las. Para ele, o sectarismo além de ser uma doença é um ato de desamor. “O povo não conta nem pesa para o sectário, a não ser como suporte para seus fins...”.5
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Não seria possível organizar um movimento social impondo idéias e desmerecendo as idéias amigas. Um movimento social é filho da solidariedade política da sociedade. Esquecer desse detalhe é isolar-se e provocar a própria derrota. Um movimento social é uma obra coletiva, tanto dos que diretamente participam quanto daqueles que admiram a sua construção. A leitura favorável dos fatos cria as circunstâncias para os passos seguintes. O olhar amigo é sempre uma trincheira de autodefesa. É esse sentido que se pode extrair das palavras de Paulo Freire, que a força jamais deve desconsiderar a inteligência. Em oposição ao sectário, pôs o radical. Enquanto o primeiro se coloca como o único fazedor da história, o radical “rejeita o ativismo e submete sempre a sua ação à reflexão” 6, por isso não detém nem antecipa a história. O sectário afasta, não permite aproximação e desconsidera a ajuda. Por isso, “nada cria porque não ama”. 5.Ibid, pág. 52. 6.Ibid, pág. 50.
Estuda, mas nada aprende. Fazer política é um exercício afetivo. A criatividade depende da afetividade e do respeito. A raiva e a arrogância só podem servir aos inimigos, pois ambas são forças que nos destroem por dentro. O sectarismo pode se manifestar em qualquer aspecto da convivência social e política. Perceber os seus aspectos é conter a tempo a desarmonia interna. Nesse sentido, aprendemos que todas as manifestações culturais, sejam elas artísticas ou religiosas, são idéias e práticas que, ao invés de serem discriminadas, reprimidas e proibidas, devem ser interpretadas e incentivadas. As festas e a alegria não podem ficar distantes das atividades políticas, porque a sociedade que pretendemos construir não pode ser triste e descorada. No contexto da luta cotidiana, a leitura correta do mundo nos permite ver que a sociedade se organiza e se divide em classes sociais, não em credos religiosos, nem tampouco em etnias e gênero. E que nos movimentos sociais, a participação é motivada pela condição e posição de classe. Mulheres e homens aparecem como sujeitos fazedores da obra da emancipação. É pela Na labuta do dia-a-dia, constatamos que os textos mais difíceis de serem lidos na luta social são aqueles produzidos pelos sectários, porque nos forçam a romper com sentimentos que deveriam ser preservados. A democracia, então, nada mais é do que incentivar que cada um leia o mundo com seus próprios olhos e se proponha, junto com os demais membros da classe, a transformá-lo.
Exemplo de ética revolucionária Pensava Paulo Freire que a grande preocupação com a transformação do mundo é se ela contribui para a emancipação, para a humanização ou não. Afirmava que “mesmo que não percebamos, nossa práxis, como educadores,
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participação política que aprendemos a ler o mundo politicamente.
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é para a libertação dos seres humanos, sua humanização, ou para a domesticação, sua dominação”.7 Ele nos desafiou a segui-lo, não somente na educação, como também nas atividades políticas e nas lutas sociais. Freire nos instigou a sermos agentes da transformação. Mas ser agente da transformação exige discernimento de que conteúdo se deve desenvolver para que as pessoas se transformem juntas e para melhor. Não deixamos de ver isso nos escritos de Paulo Freire, que não faz outra coisa a não ser declarar que todos somos capazes e que temos dentro de nós a capacidade de fazer-nos diferente do que somos. Mas, para tanto é preciso ter o cuidado para diferenciar-nos dos opressores. Não temos apenas uma separação de classes com eles mas, acima de tudo, uma profunda diferença de caráter e de comportamento com a classe burguesa. Nesse sentido, alertou-nos Freire: “É necessário que os revolucionários dêem testemunho, mais e mais, da radical diferença que os separa das forças reacionárias”. 8
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E esse testemunho é o fazer propriamente dito da libertação. Entretanto, o testemunho não se dá sem conflito, pois a ética torna-se necessária para que se possa avaliar os métodos utilizados nas relações políticas internas ou no trato com os inimigos.
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É nesse contexto que se pode extrair do pensamento de Paulo Freire a importância dada à cultura. Para ele, as ações tornam-se cultura na medida em que, no fazer histórico, a realização do possível de hoje deva viabilizar para amanhã o impossível de hoje. Querer inverter ou impor a inversão dessa ordem é atentar-se contra as possibilidades históricas. O impossível de hoje terá que se tornar o possível de amanhã. É preciso trabalhar para isso, com um pé no presente e o outro procurando a base do futuro, para que os sonhos não cansem e adormeçam. Na sua relação com o MST, Paulo Freire nunca escondeu o seu entusiasmo, 7. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 41.ed. São Paulo: Cortez, 2001, pág. 69. 8. FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1982, pág. 79.
por perceber que a obra da alfabetização e da formação das consciências, iniciadas por ele na década de 1950 no Nordeste do Brasil, continuava viva no cotidiano da luta por terra, escola e dignidade; e na formação política de nossa militância. Externou seu contentamento em um depoimento gravado em vídeo, em novembro de 1996, que dedicou aos educadores e educadoras do MST, ao dizer, no encerramento de sua fala: “Vivam por mim, já que não posso viver a alegria de trabalhar com crianças e adultos que, com sua luta e com sua esperança, estão conseguindo ser eles mesmos e elas mesmas”.9
No MST, são inúmeras as homenagens prestadas a ele, seja na mudança de nomes das antigas fazendas em novos assentamentos, nos centros de formação ou em escolas de ensino fundamental. Sua obra é lida em todos os cursos de formação de educadores, do ensino médio à graduação, e nos de formação política; seu rosto aparece nos murais e pinturas feitas pelos artistas que lutam pela terra e pela emancipação de toda a classe trabalhadora; seus ensinamentos aparecem nas palavras de ordem, nas místicas e nas músicas feitas pelos educandos da terra de todos os cantos do Brasil. Não é, mas poderia ser de Paulo Freire, a célebre frase “Proletários de todo o mundo, uni-vos”, pois esse era o seu sonho, ainda vibrante por todos os países por onde militou e ensinou. Por toda a sua trajetória histórica e política é que para os educadores e educadoras do povo e movimentos sociais Paulo Freire vive como pedagogo, mas acima de tudo como militante da esperança e da liberdade. 9. Paulo Freire em MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Paulo Freire: um educador do povo. São Paulo: Associação Nacional de Cooperativa Agrícola, 2001, pág. 40.
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A persistência de Paulo Freire e sua profunda crença no povo, na capacidade de organizar-se e buscar as formas da própria libertação, fez dele uma grande referência para os movimentos sociais que aprenderam, mais do que imitá-lo, a tê-lo como companheiro da formação política.
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Da impossibilidade de existirmos sem os sonhos e sem a luta Nita Ana Maria Araújo Freire
Os dez anos da partida de Paulo desta vida, de existência plena e fértil, como uma experiência complexa, profunda e rica que foi a sua de estar com outros e outras e com o mundo, marcada como a de muito poucos pela dignidade, coerência e amorosidade, me levam a escrever este texto, como uma contribuição à leitura daqueles e daquelas que sonham com um * Ana Maria Araújo Freire (Nita) é doutora em educação pela PUC-SP e viúva do educador Paulo Freire. 1.FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança. São Paulo: Paz e terra, 1992, pág. 91-2.
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“Sonhar não é apenas um ato político necessário, mas também uma conotação da forma histórico-social de estar sendo de mulheres e homens. Faz parte da natureza humana que, dentro da história, se acha em permanente processo de tornar-se... Não há mudança sem sonho como não há sonho sem esperança... A compreensão da história como possibilidade e não determinismo seria ininteligível sem o sonho, assim como a concepção determinista se sente incompatível com ele e, por isso, o nega”.1
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mundo melhor, mas também a outros que, não sendo sectários, irão lê-lo porque querem escutar vozes diferentes da sua. Estou certa de que, senão a maioria, mas uma grande parte da população do mundo tem o sonho utópico de construir um mundo no qual as relações de conflitos sejam resolvidas de forma harmoniosa – e não pela guerra -, tendo como intuito preservar a grandeza e a inteireza dos seres humanos. Sonhamos com um mundo onde caibam a tolerância, a decência, a confiança e a solidariedade, tanto nas relações de família quanto nas sociais, em todos os seus níveis e amplitudes.
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Mas a partir de “11 de setembro” o imperialismo norte-americano ditou, com seu princípio maior calcado no neoliberalismo globalizado, uma versão pós-moderna da Lei de Talião, cujas ações incidentes no mundo devem necessariamente ser regidas pela cobiça das riquezas alheias, pela usurpação delas para usufruto privilegiado de seus pares e eventualmente de seus concidadãos.
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As ações dos “neoconservadores e fundamentalistas cristãos”2, que comandam o mundo da Casa Branca, vêm sendo basicamente movidas pelo ódio do diferente, concretizada pelas guerras de vingança, ditas preventivas, profundamente desumanizantes. Para quem as praticam e para quem as sofrem, essas ações exacerbam, portanto, a antieticidade, num processo de desumanização que atinge a todos e a todas. Essa perversa ideologia dissemina a idéia da sua superioridade intrínseca acima de todas as coisas e pessoas e atinge todos os âmbitos e todas as relações. Estamos vivendo tempos de medo e desconfiança entre os indivíduos e, sobretudo, entre sociedades de culturas diferentes do mundo. 2. Categoria utilizada por Boaventura de Sousa Santos, na Carta Maior, 29, nov.,2004, “O novo século americano”, divulgada pela internet.
O autêntico diálogo freireano do qual tanto precisamos é aquele que, ao contrário, se rege pela amorosidade, pelo respeito ao diferente e admiração pela diversidade e pela crença na horizontalidade das relações entre as pessoas como sujeitos da história para a construção de um mundo verdadeiramente democrático. É importante que nesta publicação, que reafirma o pensamento de Paulo, façamos uma reflexão sobre a nossa expectativa de mundo. Sobre como nos organizar para alimentar nossos sonhos e construir nosso projeto de transformação social. Em como manter a nossa esperança forte e aquecida, para não nos curvar perante posições fatalistas e o poder determinante – diante do qual, nada podemos fazer - nos imobilizando para reação, para luta. Resgatar e ampliar a possibilidade deste diálogo – da necessária e justa reivindicação de mudarmos o mundo - é viver Paulo Freire. Quando comecei em princípio de 2004 a organizar os textos do livro
Pedagogia da tolerância, pensava e refletia constantemente, que a globalização da economia e o pensamento neoliberal, ao contrário do que diziam os seus promotores pretender fazer, e estavam concretamente totalitário e exacerbado, a arrogância, a prepotência e a malvadez sem limites. Sobretudo, via com clareza, como tantos outros e outras faziam, que estes se comportavam e norteavam a política mundial com a intolerância do superior, dos que a ninguém e a nada respeitam, dos que: “sabem com quem estão falando?” Dos que pensam que a história e eles mesmos se fazem apenas com o eu exacerbado como demiurgos da realidade, sem o indispensável tu. Sobre as tensões e confrontações: ideológicas, políticas, pedagógicas e éticas entre as forças progressistas e o atraso imobilizador, Paulo Freire é contumaz nas suas palavras:
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fazendo, era disseminar através do poder político e econômico centralizado,
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“Se as estruturas econômicas, na verdade, me dominam de maneira tão senhorial, se, moldando meu pensar, me fazem objeto dócil de sua força, como explicar a luta política, mas, sobretudo, como fazê-la e em nome de quê? Para mim, em nome da ética, obviamente, não da ética do mercado, mas da ética universal do ser humano, para mim, em nome da necessária transformação da sociedade de que decorra a superação das injustiças desumanizantes. E tudo isso porque, condicionado pelas estruturas econômicas, não sou, porém, por elas determinado. Se não é possível desconhecer, de um lado, que é nas condições materiais da sociedade que se gestam a luta e as transformações políticas, não é possível, de outro, negar a importância fundamental da subjetividade na história(...) Para mim, não é possível falar de subjetividade a não ser se compreendida em sua dialética relação com a objetividade (...) É neste sentido que só falo em subjetividade entre os seres que, inacabados, se tornaram capazes de saber-se inacabados, entre os seres que se fizeram aptos de ir mais além da determinação, reduzida, assim, a condicionamento e que, assumindo-se como objetos, porque condicionados, puderam arriscar-se como sujeitos, porque não determinados”. 3
Hoje, ao analisarmos a conjuntura mundial, constatamos sem quase nenhuma dificuldade, sem sequer sermos cientistas políticos ou economistas, o acirramento, há anos denunciado por Paulo, das contradições que redundam no estado de injustiça de todos os níveis e graus e que são cada dia maiores, ditadas pela globalização da economia. 3.FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação – Cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora Unesp, 2000, pág. 56-7.
Esta forma pós-moderna de controlar o destino do mundo e de todas as pessoas, que concentra as rendas nacionais nas mãos de poucas pessoas e países, distribui, magnanimamente, como necessidade de sua manutenção, uma política de endividamento, de negação das soberanias nacionais, de misérias de toda sorte. Fome, doenças, múltiplas penúrias que vêm fragilizando mais e mais a maioria da população da África e da América Latina e também segmentos significativos dentro das próprias sociedades do Norte todo poderoso. Nós, brasileiros e brasileiras, a cada dia, rigorosamente falando, somos tão destituídos quanto nossos pares latino-americanos, embora menos do que nossos pais de origem étnica e cultural, os africanos. Sentindo-nos e sabendo-nos como nunca subtraídos perversamente em nossas condições e possibilidades de ser, de ter, de desejar, de querer e de poder.
esmaga, antes devem aumentar porque comprovam a que vêm e estão a globalização e seus defensores -, entendi que devemos mudar o enfoque das reflexões preparatórias das nossas ações. Relendo a obra de Paulo percebi, sobretudo a partir da Pedagogia da esperança, que ele vinha nos convidando sim a nos indignar!Mas já indicava, para alcançarmos a estratégia – a democracia –, de irmos superando esta instância afetivopolítica projetando sonhos de mudança. Já nos convidava, já vinha nos fazendo ver que deveríamos ir incorporando à indignação e ao amor os sonhos éticos e políticos como uma necessidade humana mais radical quando precisássemos enfrentar, como agora, os difíceis problemas da sociedade. O que digo é que precisamos não deixar de nos indignar e amar, mas a
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Diante desse quadro absolutamente desesperador que impera em nosso país, à imagem do que acontece em todos os países emergentes do mundo – mas que entretanto não deve amenizar ou fazer desaparecer os sentimentos de repúdio ao modelo político-econômico que nos
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partir deste sentimento de indignação mesmo – porque pouco ou quase nada está sendo ouvido da voz de nossa indignação pelos dominantes acerca de nossos clamores -, nutrir os sonhos que quase sempre podemos fazer possíveis para continuarmos sendo de fato e nos sentindo como homens e mulheres sujeitos da história. De existência verdadeira. Para não deixarmos que a indignação se esvaia completamente, que o espanto desalentador ou a desesperança desestabilizadora ou o cinismo adaptador tome conta de nós. Por mais contraditório que isso possa parecer, precisamos, urgentemente, pois, reavivar em nós mesmos a nossa capacidade ontológica de sonhar, de projetar para um futuro mais próximo possível, dias de paz, eqüidade e solidariedade.
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Reativar em nossos corpos conscientes as possibilidades de sonhar o sonho utópico que Paulo há anos já vinha nos convidado a sonhar – o sonho possível -, o que nos possibilita resgatar em nós todos e todas a nossa humanidade mais autêntica roubada por esses e essas que nos exploram e mutilam. Pelos que minam as nossas esperanças de tornarmos a nossa, uma sociedade séria e justa como merecemos.
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Mais uma coisa acrescento, uma advertência para nossas reflexões: ou nos identificamos com uma ética libertadora, assim humanista; com as utopias onde cabem as diferenças, expurgando-nos e expurgando da sociedade planetária as discriminações e nos solidarizamos na construção social dos sonhos possíveis da tolerância democrática ou marcharemos a passos largos e rápidos para a autodestruição total dos seres humanos. Para isso precisamos, na reflexão de Paulo, acreditar que “Do alvoroço da alma faz parte também a dor da ruptura do sonho, da utopia” 4 Mas, que, 4. FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança. São Paulo: Paz e Terra, 1992, pág. 33.
contraditoriamente, dos “sonhos rasgados, mas não desfeitos” 5, podemos fazer renascer em nós a esperança de uma nova sociedade.
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Assim, nós que temos compromisso com um mundo melhor, que sentimos hoje mais do que nunca que nossos sonhos estão sendo “rasgados”, que, mais uma vez, procuremos em e com Paulo Freire re-fazer socialmente os sonhos possíveis de transformação, pois sabemos que só aparentemente eles foram desfeitos, pois sonhar é destino dado.
5. Ibdem, pág. 35.
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Paulo Freire e a interdisciplinaridade em São Paulo João Zanetic*
“Uma das ilusões liberais é que a instrução, por si só, seja fator capaz de transformar a sociedade, quando sabemos que em países como o Brasil o problema só poderá ser solucionado pela conjugação entre educação e consciência política progressista. Antonio Candido” 1
Alguns dias depois que recebi o convite do Marcelo Aguirre2 para escrever um pequeno artigo sobre nosso saudoso educador Paulo Freire (1921-1997) para esta publicação marcando o décimo aniversário de sua morte, uma notícia publicada em um jornal de São Paulo me forneceu a inspiração que eu procurava para a abertura do artigo. Essa notícia apresentava os resultados de uma pesquisa - realizada em parceria da Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) com o Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) - que apontava o bom desempenho de algumas poucas dezenas de escolas-modelo públicas de ensino fundamental do país. Segundo a notícia, os principais ingredientes responsáveis pelo destaque da boa
* Professor do Instituto de Física da USP. 1. CANDIDO, Antonio. “Apresentação”, em VALENTE, Ivan e ARELARO, Lisete. Educação e políticas públicas. São Paulo: Xamã, 2002, pág. 7. 2. Marcelo Aguirre é assessor do mandato do Deputado Federal Ivan Valente (PSOL/SP).
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Introdução
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qualidade dessas escolas incluíam: professores que incentivam atividades a serem realizadas em sala de aula e que têm formação continuada; estudantes interessados e esforçados nas tarefas escolares; propostas pedagógicas ligadas à realidade dos alunos; participação de universidades públicas na elaboração das propostas pedagógicas e o envolvimento dos pais e da comunidade no processo de aprendizado.3 Um editorial do mesmo jornal, ao comentar o conteúdo dessa pesquisa, conclui que, embora as propostas pedagógicas dessas escolas sejam relevantes, “as receitas das 33 instituições selecionadas pelo Unicef e pelo Mec não são universalizáveis”.4
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Ao ler essa notícia e a avaliação do editorial, imediatamente veio-me à mente uma prazerosa lembrança de uma experiência educacional que, entre várias outras, também possuía os ingredientes acima citados e que tinha e tem tudo para ser universalizada nas escolas do país. Essa experiência educacional, que tive a satisfação e o orgulho de ter participado como um dos representantes da Universidade de São Paulo, ocorreu entre os anos de 1989 e 1992, na Administração Popular do Município de São Paulo na primeira gestão do Partido dos Trabalhadores (PT). Nesses anos teve lugar o Movimento de Reorientação Curricular, que foi comandado por Paulo Freire que, na maior parte desse período, desempenhou o cargo de Secretário Municipal de Educação. A experiência educacional nas escolas de ensino fundamental da rede municipal denominava-se “Projeto Interdisciplinar, via Tema Gerador”. Creio que é relevante e atual relembrar algo dessa experiência educacional principalmente neste momento da vida do país quando a péssima qualidade da educação dos jovens brasileiros tem ocupado as páginas de nossos jornais. Tanto durante a primeira gestão de Lula como presidente da República, quanto no início de sua segunda gestão, a política educacional dominante está distante do legado educacional de Paulo Freire. 3.CONSTANTINO, Luciana. Ensino público tem 33 escolas modelo. Folha de São Paulo, 20/12/2006, pág. C4. 4.Editorial. Folha de São Paulo, 24/12/2006, pág. A2.
Para situar melhor essa experiência exporei brevemente algumas concepções freireanas críticas à educação tradicional e suas propostas alternativas.
Educação bancária
Tanto a concepção “bancária” da educação que Paulo Freire também denominava como a educação como prática de dominação, quanto sua negação, representada pela concepção problematizadora e emancipadora de educação, apareceram pela primeira vez no seu livro Pedagogia do oprimido, escrito durante seu exílio no Chile nos anos 1967-1969 e publicado inicialmente em Nova York, em setembro de 1970. Esse livro, devido à censura imposta pela ditadura militar, que em 1964 expulsara seu autor do Brasil, só teve sua primeira impressão brasileira em português em 1975, depois de terem sido publicadas edições em inglês, espanhol, italiano, francês, alemão, holandês e sueco! 5 5.Eu mesmo li pela primeira vez o livro mais famoso de Paulo Freire, em 1973, na versão inglesa Pedagogy of the oppressed, publicada na coleção Penguin Education Titles.
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Paulo Freire denominava o modelo tradicional de prática pedagógica de “educação bancária”, pois entendia que ela visava à mera transmissão passiva de conteúdos do professor, assumido como aquele que supostamente tudo sabe, para o aluno, que era assumido como aquele que nada sabe. Era como se o professor fosse preenchendo com seu saber a cabeça vazia de seus alunos; depositava conteúdos, como alguém deposita dinheiro num banco. O professor seria um mero narrador, nessa concepção de educação. Nessa narração a realidade apareceria como algo imutável, estático, compartimentado e bem comportado, como se fosse uma “coisa morta”. Se na alfabetização dominava o “b”, “a”, “ba”, no ensino fundamental e médio deveria dominar a repetição, a memorização, algo que nas aulas de física se resumiria no “x = xo + vot + 1/2at2” ou “a segunda lei de Newton diz que a força é igual à massa vezes aceleração”, entre outras tantas fórmulas e frases a serem memorizadas.
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“A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, terá dois momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se na práxis com a sua transformação; o segundo, em que, transformada a realidade opressora, essa pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação”.6 Embora sua preocupação original estivesse relacionada com a problemática envolvida na educação de adultos (alfabetização e cultura), sua análise sempre transcendeu essa educação e propiciou temas que nos ajudam a entender vários conceitos cruciais: a educação, o professor, o aluno, a escola, o conteúdo escolar com finalidades sociais, o respeito pela cultura popular, entre outros.
A palavra geradora na alfabetização de adultos
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Em um livro7 publicado alguns anos antes do Pedagogia do oprimido, Paulo Freire
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delineava no trato do problema da alfabetização de adultos algumas concepções que marcariam a reformulação curricular por meio da interdisciplinaridade, no período de 1989 a 1992. Por conta disso, creio que é útil resgatar algumas dessas idéias. Sua prática educacional estava baseada nas experiências por ele acumuladas no campo da educação de adultos em áreas proletárias e sub-proletárias, urbanas e rurais do Brasil durante as décadas de 50 e 60 do século passado. Desde o início fora afastada qualquer hipótese de uma alfabetização puramente mecânica. Como educar, como auxiliar o homem e a mulher analfabetos a decodificarem, entenderem e usarem os diversos sinais gráficos que os cercam no cotidiano, no trabalho, no lazer e na vida política? 6.FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 2ª edição, 1975, pág. 44. 7.FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 4ª edição, 1974. Paulo Freire concluiu a escrita desse livro no exílio em Santiago, capital do Chile, na primavera de 1965.
Como proporcionar-lhes os meios necessários para superar suas atitudes, mágicas ou ingênuas, diante da realidade? Paulo Freire apresentava sua resposta propondo: a) um método ativo, dialógico, crítico e criticista; b) uma modificação no conteúdo programático da educação levando em conta a realidade vivenciada pelo educando; c) o uso de técnicas como a da redução temática e da codificação. De uma forma bem abreviada estas são as várias fases de elaboração do método8: 1. Levantamento do universo vocabular dos grupos com que se trabalha; são palavras ligadas às experiências existenciais, profissionais e políticas dos participantes dos diferentes grupos. 2. Escolha das palavras geradoras9, selecionadas do universo vocabular pesquisado. Para essa seleção devem ser obedecidos os seguintes critérios: a) riqueza fonética; b) as palavras selecionadas devem responder às dificuldades fonéticas da língua; c) teor pragmático da palavra implicando numa maior pluralidade de envolvimento da mesma numa dada realidade social, cultural e política.
4. Elaboração de fichas-roteiro, que auxiliem os coordenadores de debates no seu trabalho.
“A programação desses debates nos era oferecida pelos próprios grupos, através de entrevistas que mantínhamos com eles e de que resultava a enumeração de problemas que gostariam de debater. “Nacionalismo”, “Remessa de lucros para o estrangeiro”, “Evolução política do Brasil”, “Desenvolvimento”, “Analfabetismo”. “Voto do analfabeto”, “Democracia”, eram entre outros, temas que se repetiam, de grupo a grupo.”10 8.Ibid., págs. 112-118. 9.“Palavras geradoras são aquelas que, decompostas em seus elementos silábicos, propiciam, pela combinação desses elementos, a criação de novas palavras.” Ibid, nota de rodapé da pág. 112. 10.Ibid., pág. 103.
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3. Criação de situações existenciais típicas do grupo com que se vai trabalhar.
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5. Feitura de fichas com a decomposição das famílias fonéticas correspondentes aos vocábulos geradores. A execução prática era realizada com a projeção de situações com a palavra geradora, por exemplo, entre pedreiros, a palavra tijolo. A seguir esgota-se a análise (descodificação) da situação dada. Projeta-se a palavra geradora TIJOLO. Na seqüência trabalha-se a separação da palavra em sílabas: TI JO LO. E, finalmente, elabora-se a “ficha da descoberta”:
TA
TE
TI
TO
TU
LA
LE
LI
LO
LU
JA
JE
JI
JO
JU
Solicita-se aos participantes do círculo de cultura que o grupo forme palavras utilizando a “ficha da descoberta”. Assim surgem, por arranjo das sílabas: tatu, luta, tijolo, lajota, tito, loja, lote, teta, tela, jato, tijela (tigela) e até frases como tu ja le (tu já lês). Surgem ainda palavras juntando sílabas e vogais: tio, leite, jeito, lua, etc.
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Terminados esses exercícios orais o homem e a mulher passam a escrever.
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“E isso se verificou em todas as experiências que passaram a ser feitas no País, e que se iam estender e aprofundar através do Programa Nacional de Alfabetização do Ministério de Educação e Cultura, que coordenávamos, extinto depois do Golpe Militar”.11 Essas palavras de Paulo Freire valem como registro da violência da ditadura militar instalada no país em 1964 e que interrompeu esse processo de alfabetização. Paulo Freire só retornaria ao Brasil em 1979, em função da aprovação da Lei de Anistia Política, conquistada por intensa campanha popular. 11.Ibid., pág. 119.
Projeto Interdisciplinar, via Tema Gerador A educação problematizadora de Paulo Freire rompe com a polarização entre professor e alunos, dominante na educação bancária, propondo em seu lugar o par educador-educandos. Nessa educação predomina o diálogo entre educador e educandos envolvidos num processo que deve propiciar a construção de um diálogo inteligente com o mundo, problematizando o conteúdo que os mediatiza. O costume de aceitar como neutro o conteúdo educacional, mesmo numa área do conhecimento como a física, tem que ser abandonado.
“Critérios mínimos, objetivamente colocados, precisam ser explicitados para a seleção do conhecimento universal – que tem uma natureza ampla, dinâmica, não acabada – sob pena de se reduzirem apenas aos mesmos dos manuais didáticos e programas escolares já propostos, isto é, roupa nova sobre a mesma velha carcaça. Não é apenas a forma de abordagem do “conteúdo”, mas o próprio “conteúdo” escolar que deve estar em questão na construção de uma educação progressista.” 12 A construção da educação libertadora tem que enfrentar o problema de selecionar o conteúdo que constituirá o conhecimento a ser processado na escola de modo democrático, competente, culturalmente significativo e comprometido com a transformação social e que, ao mesmo tempo, tenha por eixo os interesses e necessidades da maioria da população. A realização dessa tarefa no “Projeto Interdisciplinar, via Tema Gerador” 12.DELIZOICOV, Demétrio. Conhecimento, tensões e transições. Tese de Doutorado, FEUSP, São Paulo, 1991, pág. 131.
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Como escreveria Demétrio Delizoicov, que desempenhou um papel importantíssimo quando atuava como assessor na reformulação curricular do “Projeto Interdisciplinar, via Tema Gerador”, o próprio termo conteúdo deveria ser analisado criticamente.
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guardava alguma semelhança com o que foi descrito acima sobre a escolha das palavras geradoras do processo de alfabetização. A seleção de elementos culturais representados pelas diferentes áreas do conhecimento passou por um processo de várias etapas para a construção curricular, com base na interdisciplinaridade, e por vários momentos pedagógicos para a construção da organização didática a ser trabalhada com os alunos nas unidades de ensino. Todo esse processo envolveu professores das diferentes áreas do conhecimento e a assessoria composta pelos docentes universitários, além dos alunos, demais trabalhadores em educação e representantes de pais de alunos.
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Utilizando o material da proposta do grupo de ciências naturais do “Projeto”, vou apresentar resumidamente como ocorreram essas etapas e momentos. Primeira etapa: levantamento preliminar de informações sobre as condições da localidade em que se encontrava a escola. Segunda etapa: esse levantamento possibilitava a análise e escolha de situações contraditórias, que eram codificadas (desenhos, fotografias ou depoimentos orais) para serem utilizadas na etapa seguinte. Terceira etapa: constituía-se um “círculo de investigação temática” – envolvendo professores, alunos, assessores e conselhos de escola - que iniciava um processo de descodificação das situações escolhidas para discussão; era um momento de problematização quando eram identificados os “temas geradores”; essa etapa desempenhava o importante papel de formação continuada de professores em serviço. Quarta etapa: era realizado um estudo interdisciplinar e sistemático de todo o material coletado visando à redução temática para a construção do programa. Quinta etapa: produção e discussão do material didático (textos específicos temáticos de cada área, diretrizes, abordagens epistemológicas, entre outros), ao longo do ano letivo, com a equipe de professores e assessores universitários; dessa forma, o professor deixava de ser um mero reprodutor de currículos tradicionais.
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A organização didática nas salas de aula era realizada sistematicamente por
meio de três momentos pedagógicos: 1. Estudo da Realidade: discussão crítica de uma situação da realidade, visando a sua compreensão, a partir da visão que o aluno tem sobre ela. 2. Organização do Conhecimento: estudo do conhecimento universal das diferentes áreas do conhecimento buscando conteúdos específicos e cotejando as visões distintas; nesse momento fica explicitado o conflito entre essas visões de mundo na construção do conhecimento científico; é o momento da ruptura com um obstáculo epistemológico.
Eis uma lista de alguns temas geradores que surgiram em escolas no Núcleo de Ação Educativa 6 (NAE 6): falta de lazer; violência na convivência; córrego/lixo; falta de segurança; utilização do tempo livre; escola e televisão; dificuldades no relacionamento humano; falta de organização social; desemprego; falta de saneamento básico; enchente/lixo; ser humano: uma ameaça ao planeta; baixo salário; escola para quê?; relações locais conformistas e precariedade do trabalho. A definição do tema gerador que iria ser utilizado por determinada escola não era uma tarefa fácil e rápida. Ao contrário, exigia uma discussão e aprofundamento de potenciais temas geradores que muitas vezes chegava a ser dramático. Muitas vezes era difícil para professores e alunos aceitarem que sua escola e seu bairro fossem problemáticos a tal ponto que gerassem temas para serem debatidos no currículo escolar. Deve-se destacar que a implementação da mudança curricular, ao final de 1992, término da gestão da Administração Popular do Município de São Paulo, ainda estava em processo de consolidação quando foi interrompida
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3. Aplicação do Conhecimento: neste momento, o conteúdo apreendido é utilizado para reinterpretar a situação apresentada no primeiro momento; esse conhecimento é também extrapolado para outras situações; nesse momento busca-se a síntese dos momentos anteriores.
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pela gestão que tomou posse em 1993. Creio que vale acrescentar aqui uma citação um pouco mais longa de Paulo Freire e que é um desabafo crítico presente em um de seus últimos livros:
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“Ao contrário do que pensam os irresponsáveis, a linguagem de quem se insere na realidade contraditória, movido pelo sonho de fazê-la menos perversa, é a da possibilidade. [...] É a fala de quem, certo do rigor ético de sua luta e de seu sonho contra a perversidade de uma sociedade desigual como a nossa, faz tudo o que pode para mobilizar e organizar as classes populares e outros segmentos sociais para que democraticamente se instaure um governo mais justo. [...] Na verdade, se tudo fizermos para democratizar a escola do ponto de vista da quantidade e de sua qualidade, estaremos certos em nossa opção progressista, não importa se venceremos ou não a próxima eleição. O fato de não termos obtido aprovação à nossa proposta no trato geral da coisa pública, da saúde, da educação e da cultura não invalida o sonho democrático. Não posso elitizar minha compreensão do mundo só porque fui derrotado numa eleição democrática; preciso, sim, continuar a luta pelo aperfeiçoamento e democratização das instituições da sociedade. Também não posso simplesmente responsabilizar o povo culpando-o por não saber votar ou acusá-lo de ingrato. Devo identificar a presença da ideologia e a inexperiência democrática enraizada em nossas tradições.” 13 Vale também mencionar que o educador Antonio Fernando Gouvêa da Silva, que também participou dessa proposta de Paulo Freire em São Paulo como coordenador do NAE 6, nos últimos anos tem assessorado movimentos de reorientação curricular utilizando o “Projeto Interdisciplinar, via Tema 13.FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. São Paulo: Editora Olho d’Água, 1995, págs. 44-45.
Gerador” como referência básica. E isso ele fez ou está fazendo em várias cidades como Angra dos Reis (RJ), Belém do Pará (PA), Caxias do Sul (RS), Chapecó (SC), Crisciúma (SC), Dourados (MS), Esteio (RS), Goiânia (GO), Gravataí (RS), Maceió (AL), Porto Alegre (RS) e Vitória da Conquista (BA).14 A prática da educação emancipadora comandada por Paulo Freire em São Paulo entre 1989-1992 e multiplicada nas várias experiências acima mencionadas permite concluir que ela é uma proposta universalizável no Brasil. Basta vontade política e luta popular que a sustente.
A educação não pode ser simplesmente reprodutora da ideologia dominante. É verdade que o educador e a educadora críticos não podem sozinhos transformar o país para além do capital mas, como acreditava Paulo Freire, eles podem demonstrar que é possível mudar. E isto reforça nele ou nela a importância de sua tarefa político-pedagógica.16
14.SILVA, Antonio Fernando Gouvêa da. A construção do currículo na perspectiva popular crítica: das falas significativas às práticas contextualizadas. Tese de Doutorado, PUC/SP, São Paulo, 2004. 15.MÉSSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2005, pág. 47. 16.FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática pedagógica. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1997, págs. 126-127.
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Essa proposta de Paulo Freire também me parece adequada ao desafio proposto pelo filósofo István Mésszáros em livro recentemente publicado, quando ele diz que é preciso “romper com a lógica do capital na área da educação” substituindo as formas dominantes de educação que se restringem a “fornecer os conhecimentos” e um “quadro de valores” que servem à máquina produtiva e quase nada mais.15
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Compromisso e competência na gestão educacional: uma lição de Paulo Freire.
É um pouco complexo discutir, hoje, lições de vida e opções de Paulo Freire em relação a diversos aspectos da política educacional quando esteve à frente da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, na Gestão Luiza Erundina (1989-1992), em função das muitas obras e artigos que já contribuíram para se conhecer um pouco mais deste extraordinário Educador, que foi Paulo Freire. Há, no entanto, um aspecto que, acredito, possa ser melhor revelado, pois ainda é pouco discutido: o de gestor educacional. * Professora da Faculdade de Educação da USP; é pesquisadora na área de Política Educacional. Participou da Equipe do Prof. Paulo Freire na Gestão Luiza Erundina, na Cidade de São Paulo (1989/92). Endereço eletrônico: liselaro@usp.br.
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Lisete R. G. Arelaro*
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Em geral, os estudos e pesquisas disponíveis expõem as teorias de Paulo Freire, em particular sua Teoria do Conhecimento, centradas na ação pedagógica que o processo educacional intra e inter escolares apresentam. E nele, uma nova proposta de atuação pedagógica que ganhou o apelido de “educação popular”, pois nela se discutia, fundamentalmente, o processo político de “inclusão social” a que todos têm direito e o direito à educação a que os “oprimidos” – no caso, os pobres - na nossa sociedade desigual, nunca tiveram.
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O direito de todos à educação, histórica e politicamente, no Brasil, significou possibilitar o acesso à escola, no máximo, a crianças de 6 ou 7 anos de idade até 14 ou 15. Não mais. Os jovens maiores de 15 anos e os adultos analfabetos ou com baixa escolaridade, nunca fizeram parte das prioridades educacionais do país. Exceção feita há muitos anos atrás – e uma só vez – no Governo Jango Goulart (nos idos dos anos 60...) quando Paulo de Tarso Santos, juntamente com Darcy Ribeiro, o primeiro, como Ministro da Educação, e o segundo, o idealizador e fundador da Universidade de Brasília, convidaram um professor pernambucano simpático, para coordenar um Plano de Alfabetização ousado – como se exigia naqueles tempos – que
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atendesse, em curto prazo, e de ponta a ponta do país, os milhões de jovens e adultos analfabetos. Não por acaso, durante muito tempo falou-se mais num tal “método de alfabetização paulofreireano” que produzia milagres, já que em somente 30 horas – diziam - um analfabeto poderia se transformar em um “leitor do mundo”, agora, alfabetizado. Foram necessários bons anos, para que o próprio Paulo Freire desmentisse, de forma convincente e definitiva – essa “criação” que a mídia havia produzido, ajudado por um amigo jornalista, que mais do que lançar a notícia “espetaculosa” – como ele gostava de se referir – do “método mágico” esperava conquistar a atenção de muitos, em especial dos dirigentes e políticos nacionais, para um problema que, até então, parecia insolúvel, dadas
as condições de desigualdade social do Brasil. Estávamos nos anos 60. E o jovem Paulo Freire, quanto mais testava, na prática, essa nova concepção de educação e de processo ensino-aprendizagem, mais se convencia de que “ouvir” o outro, com os ouvidos “de dentro”, implicava em reconhecer e se formar no processo cidadão do diálogo, do respeito aos pensamentos diferentes, aos diferentes jeitos de ser, estar, sentir e criar. Daí a convicção, que sempre lhe custou críticas ácidas de adversários numerosos, de que esse “ouvir”, que ele caracterizava como uma opção política pelo direito à igualdade e à fraternidade, na diferença, traduzia a necessidade de que as relações entre aluno e professor – e portanto, de quem aprende, com quem ensina – fossem estabelecidas a partir de um pacto democrático, em que um, nunca sabe tudo e o outro, nunca é tão ignorante, que não possa contribuir com suas reflexões e práticas de vida. Nascia, assim, a concepção dialógica, não como um método de ensino ou “estratégia” pedagógica, mas como uma teoria do conhecimento e da aprendizagem, e condição fundante das relações educacionais, dentro e fora da escola. Na vida, com os amigos, com o namorado, com o patrão, na
Nessa concepção, não há mais o chefe “que manda”, porque tudo sabe, e este “saber“ lhe dá poder, mas o “colega” de equipe, que coopera, que apóia, que coordena. E cada um da “equipe”, tem, a partir de metas construídas em função de um objetivo comum, um conjunto possível e variado de tarefas e funções a desempenhar. É por isso que na sua teoria, o professor não é o que tudo sabe, e o aluno, um corpo vazio onde se “colocam” conhecimentos. Por ela, professor e aluno têm uma relação – necessária teoricamente – de camaradagem, de companheirismo e de respeito, nos seus diferentes papéis, que interfere e modifica o próprio processo de aprendizagem. Assim, passa a ser
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escola... e nesta, envolvendo todas as funções do trabalho escolar e pedagógico.
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compreensível que o professor não seja simplesmente “quem tudo sabe”, e o aluno o que, “passivamente, aprende”, mas, ao contrário, uma aprendizagem em processo que envolve todos os personagens.
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Em São Paulo, a megalópole brasileira e a cidade mais rica do país, tradicionalmente conservadora e elitista, na sua primeira Gestão pública, à esquerda, quando, construir uma sociedade socialista era objetivo, ainda, do Partido dos Trabalhadores (PT), essa sua concepção de gestão e de administração da “coisa” e dos serviços públicos, certamente incomodou muitos, porque, ao mesmo tempo, em que ele era sempre solidário, era também, de forma bem humorada, exigente, ousado, competente e atento.
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E a sua ação e postura, no cotidiano de Dirigente Educacional e de Governo, foram coerentes com sua concepção de educação, de cidadania, de processo de ensino-aprendizagem. Paulo Freire nunca foi arrogante, mesmo sendo o mais titulado dos intelectuais brasileiros. Nunca reivindicou para si, “direitos especiais” como Secretário Municipal ou como professor reconhecido e amado em todo o mundo. O seu lema “o mundo não é; o mundo está sendo”, valia para ele, também, onde cada minuto constituía uma oportunidade única de transformar o mundo, e nele, as pessoas. E a possibilidade de, mesmo crendo, hoje, totalmente em alguns valores, poder “reavaliá-los”, amanhã, a partir de novas condições histórico-culturais. Era, portanto, um professor, à frente de seu tempo. O seu método de trabalho – ação, reflexão, ação – inspirava o seu cotidiano de Dirigente: as reuniões de equipe eram necessárias, sistemáticas e permanentes, para que, de forma coletiva, se avaliasse, a todo momento, a coerência das propostas educacionais, frente aos objetivos definidos e às sugestões de ação, que a rede municipal apontava. Criou colegiados de decisão, espaços públicos que, administrativa e politicamente, definiam as políticas de ação frente às políticas educacionais estabelecidas nos Fóruns do Partido, que caracterizaram e definiram, naquela
década, o “modo petista de governar”. Naquele momento histórico, a gestão democrática, que envolvesse pessoas, grupos, associações e sindicatos, a construir, de forma coletiva, princípio e diretrizes de governo, era o princípio que dirigia e motivava as gestões petistas. E onde a participação popular ganharia reforço, organização e espaço de decisão, no esforço de construção de uma sociedade cada vez mais radicalmente democrática. Na sua origem, e tendo Paulo Freire como referência efetiva, a razão maior que motivava o PT para a disputa institucional, era a certeza da importância histórica da mobilização popular, que através de Conselhos Populares, de caráter deliberativo, motivassem os diferentes grupos sociais e movimentos populares a se fazer presentes, com sugestões e propostas de políticas que melhor orientassem a ação pública dos dirigentes, democraticamente escolhidos pelo voto universal.
o lema “o povo unido, jamais será vencido” havia motivado e mobilizado as campanhas do Partido e, mesmo, os movimentos populares, na maioria de suas reivindicações e de ações de resistência ao governo militar, recém substituído pelos civis. Paulo Freire – com um jeito muito próprio – sorria, sabiamente, ao ouvir essas propostas. Sabia que este era um equívoco político, ainda que estimulante, uma vez que o processo de participação popular em decisões fundamentais de governo é muito mais complexo do que o simples desejo de governantes, por mais avançadas que representem estas propostas para os oprimidos. Sabia, ainda que isso não abatesse sua militância e esperança nos movimentos sociais, que o sistema capitalista brasileiro – com os apelidos
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Seriam estes Conselhos Populares – idéia logo abandonada no início da gestão “popular e democrática” - uma criação política e de adoção gerencial, que se constituiria marca de Governo, pois “mostraria” aos incrédulos, a força do povo, quando estimulados e organizados, sistematicamente. Afinal,
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que se adotasse: periférico ou emergente – era muito mais forte e tinha raízes mais profundas, que uma gestão municipal pudesse combater ou contestar. “Sentia”, pelas suas caminhadas pelo mundo, a proximidade de discursos mais combativos do capitalismo internacional.
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Na sua prática, contestava, sem perder tempo com longas citações, os equívocos teóricos de intelectuais, que pregavam – e, ainda hoje, condicionam e inspiram a ação de muitos! – concepções correntes de que “poder” e “chefia” são sempre sinônimos de “controle”, como pré-condição da eficácia e eficiência das ações. Esse modo de entender a vida e o trabalho, dizia ele, implica em uma relação de subordinação e de separação necessária entre os que pensam e os que fazem. E, em conseqüência, a necessidade – mudança visível, em muitos colegas nossos - de assumir um “ar superior”, que uma posição hierárquica de chefia, aparentemente, dá, e cria a (falsa) impressão, de que “alguns são mais iguais que outros” e que os “chefes” são – sempre! – cidadãos acima de qualquer suspeita.
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Esta era, para o Professor Paulo, a função ideológica que o aparato burocrático criava, quando um grupo político – eleito pelo povo e para governar para e com o povo – em nome dele, se encastelava, se isolava, estabelecendo novos direitos e privilégios, que negavam, na prática, a gestão democrática e o direito de todos. Ou, como se encontra freqüentemente na atual literatura sobre gerência e administração, a crença quase “religiosa” de que a inovação e a criatividade só alcançam seu mais alto potencial, se estimuladas por uma feroz – e por isso salutar – competitividade entre os componentes da equipe de trabalho. E onde se declara, como critério científico – porque “neutro” - de avaliação da produtividade e de qualidade da atuação, em qualquer campo do saber e da atuação pública, a produção de “resultados” quantificáveis, que justifiquem (ou não) os processos adotados. Na educação, estas concepções já estão também presentes, pois hoje, é pouco importante saber se uma criança ou jovem “gosta” da escola e que
significado ela tem para eles, mas sim, avaliar se sua “competência” no cumprimento dos seus objetivos, podem ser verificados através de processos que “meçam” as habilidades adquiridas, habilidades estas definidas a partir dos interesses e das indicações do mercado. Ou seja, vivemos um momento em que a ênfase é dada aos “produtos”, e não mais aos “processos”. Esta é uma mudança estratégica para o processo de ensino, e ainda que pareça sutil, altera, profundamente, a atual organização escolar e dos sistemas escolares. Traduz a entrada, através de processos economicistas e de competição, da lógica do mercado na escola e na educação, em que o lucro, produzido pelo menor custo – e o aumento cada vez mais constante dele – define (em dólares!) a competência da empresa. As políticas sociais seriam a primeira vítima dessa concepção.
necessidade da formação, a mais rápida possível dos “sem consumo” – os pobres, como tradicionalmente eram chamados. Argumentam, de forma palatável e “moderna”, que o desafio atual é “aprender a aprender”, não paulofreireanamente falando, mas, já que o processo de educação é permanente, cada um que cuide, pessoalmente, e sob sua responsabilidade, de sua própria educação, e arque com o ônus econômico de estar “preparado” – sempre! – para as exigências do mercado. Aos “muitos”, o pouco que o Estado deve oferecer, aos “poucos” – economicamente falando – pelos seus méritos, e em seu nome, muito será oferecido. O próprio conceito de qualidade da educação, traduzida em “produtos mensuráveis”, desejo de muitos com visão economicista, constituiu um
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Nesta lógica, os que nada – ou pouco - “rendem”, ainda que por culpa do sistema político e econômico, devem ser eliminados, e, caso não se consiga eliminá-los totalmente, por conta dos antigos e retrógrados direitos sociais, temos que fazer com que seus encontros (passagens?) nas escolas, sejam os mais breves possíveis. Não por acaso, da UNESCO ao Banco Mundial, as indicações de “flexibilização” das propostas educacionais embutem a
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desafio, na gestão municipal de São Paulo, a que Paulo Freire se contrapôs, de maneira competente e coerente. Ele riria hoje, se vivo estivesse, com a “febre” de exames unificados, sob a forma de testes de múltipla escolha, como critério quase exclusivo de se avaliar a qualidade dos sistemas de ensino, da atuação dos professores e da aprendizagem dos alunos.
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Ele simplesmente propôs, na sua Gestão, uma inversão correta de caminhos. Primeiro movimento: perguntou aos alunos, funcionários, professores e pais, o que achavam da escola, em que eles ou seus filhos estavam matriculados ou que atuavam, profissionalmente – e essa ação constituiu a realização do primeiro diagnóstico da escola e de suas circunstâncias. Segundo passo: perguntou, a todos, como eles gostariam que fosse sua escola – escola ideal para cada um dos segmentos que nela atuavam ou conviviam – para que a partir desses “desejos” e concepções ideais, se estabelecessem os objetivos educacionais a serem atingidos, sob responsabilidade conjunta, pelas escolas. E, em terceiro lugar: o que e em que eles gostariam que suas escolas fossem diferentes – ou seja, realizava-se ali, uma primeira avaliação e proposição de alternativas de solução para cada uma e para todas as escolas, respeitando-se a história e as especificidades de cada uma.
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Em função desse processo – e coerente com a disputa do diálogo como método de trabalho e de vida – Paulo Freire convidou/convocou os melhores professores das melhores universidades, para que, juntos, ajudassem as escolas a construir, prática e cotidianamente, seu caminho pedagógico e político que orientasse suas “escolhas” educacionais. Realizou, assim, um precioso e inédito processo de formação de professores da rede municipal de ensino, que não significou contratos e imposição de “pacotes”, mas ofereceu subsídios vitais para que a escola “de qualidade”, e com a “qualidade” dos alunos reais, fosse sendo construída. Os resultados não tardaram a aparecer, pois não foram poucos os alunos oriundos de segmentos de classe média que, reiniciaram sua volta às
escolas públicas municipais, não pela falta de recursos econômicos, mas pela excelência das mesmas, traduzidas e avaliadas, num primeiro olhar, pela alegria e esperança dos professores, de que estavam sendo “ouvidos” e, em conseqüência, respeitados. Assim sendo, uma coleção de projetos começaram a florescer nas escolas, projetos estes, escritos pelos próprios professores e especialistas de ensino, desejosos de construir uma nova “escola pública”, em que a qualidade, agora, definida pela maioria presente na escola - e apelidada de “qualidade social” - constituísse sua audácia pedagógica. Feito isso – procedimento que burocrata algum colocaria defeito, pois os “passos” do planejamento haviam sido obedecidos – como propor ou defender um sistema unificado ou centralizado de avaliação da aprendizagem e de avaliação educacional? Como propor um currículo único, para todas as escolas? Como sustentar, pedagogicamente, a concepção dialógica do conhecimento e da aprendizagem, com uma concepção diretiva – ainda que em nome da “competência”? conhecimento, em conteúdos “científicos”, “profissionais e técnicos” ou “críticos”, essa divisão do trabalho entre os educadores, cada um assumindo a propriedade de sua tarefa, levaria, necessariamente, a um descompromisso pela totalidade do ato educativo. Assumia, com ousadia, a concepção que o desenvolvimento da consciência crítica se faz pelo conhecimento, pela análise e ação sobre a realidade vivida, e que isso não pode ser atribuído como propriedade de nenhum conteúdo em particular, e se constitui responsabilidade coletiva que não pode ser subdividida no processo pedagógico. Paulo Freire resistiu à tentação de “baixar atos” pelo Diário Oficial, sem que os mesmos tivessem sido discutidos – às vezes, até de forma exaustiva, pelos envolvidos na decisão. Teve coerência – e paciência histórica – para propor
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Tinha clareza de que se fossem criadas “brechas” para a divisão do
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idéias arrojadas, e ao mesmo tempo, teve humildade para reconhecer que, nem sempre, a rede municipal, no seu conjunto, tinha condições pedagógicas e políticas de aceitar essas idéias, voltando atrás. Teve a ousadia gerencial de propor uma pesquisa, envolvendo o conjunto da rede, sobre as diretrizes constantes de uma primeira proposta de Estatuto do Magistério, que considerávamos ideal. Foi vencido, em alguns aspectos. Perdeu, em particular, no que se referia a “desacomodar” dirigentes municipais de seus cargos, que, legitimamente haviam sido conseguidos por concurso público, mas que não os legitimava a, política e pedagogicamente, exercerem esses cargos, para toda a vida.
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Defendia, por coerência, a eleição e o rodízio de todos os cargos de direção, no sistema escolar. E nem a “vaia”, recebida em reunião com dois mil dirigentes educacionais da rede municipal, que se sentiram ameaçados por essas propostas, o fizeram titubear sobre o direito da livre manifestação do pensamento, como oportunidade privilegiada de formação política e pedagógica e de (re)visão de conceitos fundamentais ao ensino e à educação.
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Nem por isso, no entanto, em nenhum momento, utilizou seu cargo – ou poder de persuasão – para esconder a “derrota” e, a partir daí, mudar a regra do jogo que a consulta e a participação populares, exigem. Defendeu, inequivocamente, todos os professores e especialistas de ensino, que haviam sido perseguidos e punidos pelo Governo anterior – por terem participado de atos de protesto, contra posições do então Governo – e nunca, na sua gestão, impediu que, por desafeto ou divergência, educadores, alunos ou pais deixassem de participar dos conselhos deliberativos. Essa coerência, por certo, não é fácil de ser mantida. Mas, ainda que não acreditasse que a formação crítica acontecesse a partir de conteúdos formais ou de disciplinas específicas, mantinha sua fé na escola e na pessoa humana, de que a educação política, realizada também pela escola, na busca de uma educação cidadã, que tivesse significado para a vida das crianças, jovens e
adultos que nela estavam, exigiria a busca da igualdade a ser construída para além do sistema capitalista. Sua convicção de que o diálogo – que exige constância e sistematicidade – poderia levar a uma outra concepção de mundo, fez dele o mais capaz, arguto e coerente administrador educacional que conheci. Por isso, nós todos, que tivemos o privilégio de conviver com ele, afirmamos: Paulo Freire vive! Morreu, sem morrer, pois sua obra e seus sonhos ficaram e germinaram. E nossa melhor homenagem, a esse homem íntegro, é – como insistia ele – não “repetir” as suas palavras, mas “buscar novos sentidos”, novos caminhos e sonhos, aos que virão...
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Viva Paulo Freire! Paulo Freire Vive!
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Paulo Freire: utopia e esperança Mario Sergio Cortella*
Em 2005, como expressão de minha presença no V Colóquio Internacional Paulo Freire, realizado na Cidade do Recife/PE, selecionei e sintetizei quatro pequenas reflexões sobre ele publicadas por mim nos últimos anos e que comporão, com outras trinta e cinco sobre temas variados em Educação, um livro chamado
Ilusão de ética Dez anos já se passaram desde que, no final da madrugada de 2 de maio de 1997 (uma sexta-feira, dia chamado de veneris no calendário romano da Antigüidade, em homenagem a Vênus, deusa do Amor...), aconteceu a morte do corpo de Paulo Freire. Dez sem ouvir, de viva voz, o Mestre nos alertando para os riscos da complacência política e da conivência ingênua. * Filósofo, professor-titular do Departamento de Teologia e Ciências da Religião e da Pós-Graduação em Educação da PUC-SP. Integrou a equipe de Paulo Freire e foi Secretário Municipal de Educação de São Paulo (1991-1992).
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Pensatas Pedagógicas.
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Dez anos sem escutar, dito por ele mesmo, um verbo que preciosamente inventara: “miopisar”. Em Paris, em 1986, ao receber o Prêmio Educação para a Paz da Unesco disse: “De anônimas gentes, sofridas gentes, exploradas gentes aprendi, sobretudo, que a paz é fundamental, indispensável, mas que a paz implica lutar por ela. A paz se cria, se constrói na e pela superação de realidades sociais perversas. A paz se cria, se constrói na construção incessante da justiça social. Por isso, não creio em nenhum esforço chamado de educação para a paz que, em lugar de desvelar o mundo das injustiças, o torna opaco e tenta miopisar as suas vítimas”.
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Miopisar! Deixar míope, dificultar a visão, distorcer o foco. Isso nos lembra a conjuntura atual da República brasileira, na qual muitos daqueles aos quais cabe constitucionalmente a tarefa de proteger a Justiça, a Democracia e a Cidadania, fraturam a honradez e a legitimidade social, impondo, mais do que uma ilusão de ótica, uma ilusão de Ética. É a transformação em “normal” de uma opaca ética do vale-tudo, do uso privado dos recursos públicos, do exercício da autoridade legislativa para tungar benesses particulares, da outorga judiciária para obter a locupletação exclusiva.
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É claro que a incúria, a malversação, a prevaricação, a fraude e a negligência são temas cotidianos e recorrentes durante toda a nossa história, mas, não precisam continuar sendo... E, só não o serão mais se não os considerarmos como inevitáveis, naturais ou, até, normais. A novidade, porém, é que, no momento em que há mais divulgação e mecanismos legais de defesa contra tais desmandos e tresvarios, parece que o espaço pedagógico não vem tocando muito nesses temas (que não são nada transversais ou oblíquos e, sim, centrais e primordiais). Paulo Freire ficaria fraternalmente irado! Irado com o entorpecimento que acomete muitas e muitos de nós que atuamos em Educação; ele com certeza brandiria a Pedagogia da indignação contra a eventual demora em transformar esse contexto nacional eticamente turbulento em um tema-gerador diário de nossa reflexão na comunidade escolar, de modo a favorecermos a rejeição ao fatalismo e à cumplicidade involuntária. É provável, também, que nosso
saudoso educador pernambucano nos relembrasse que “a melhor maneira que a gente tem de fazer possível amanhã alguma coisa que não é possível de ser feita hoje, é fazer hoje aquilo que hoje pode ser feito. Mas se eu não fizer hoje o que hoje pode ser feito e tentar fazer hoje o que hoje não pode ser feito, dificilmente eu faço amanhã o que hoje também não pude fazer...”.
Primavera do patriarca Pouco mais de um mês após a morte de Paulo Freire, publiquei uma reflexão sobre ele e a sedução da esperança. Gostaria de celebrar essa lembrança com a retomada de um trecho daquela mesma homenagem, pois penso que se mantém dela a vivacidade. “Paulo Freire (1921-1997) foi uma pessoa encantadora nas múltiplas acepções que esse adjetivo carrega. Encantava as pessoas (no sentido de enfeitiçá-las) com sua figura miúda (grande por dentro), seu sotaque pernambucano (jamais abandonado) e sua barba bem cuidada (herança profética).”
o mal, são incapazes de matar uma mosca, são incapazes de ofender alguém; Paulo Freire sofria (felizmente para nós) dessa outra incapacidade: não perdia a esperança. Cabe perguntar: esperança em que? Na reinvenção do humano, na necessidade de inconformar-se com as coisas no modo como estão. Dizia ele que “uma das condições fundamentais é tornar possível o que parece não ser possível. A gente tem que lutar para tornar possível o que ainda não é possível. Isto faz parte da tarefa histórica de redesenhar e reconstruir o mundo”. Tarefa histórica era uma expressão muito usada por Paulo Freire; ora, de quem recebera ele essa tarefa? De si mesmo, na sua relação com o mundo real; sua consciência ética apontava sempre como imperativa a obra perene da construção da felicidade coletiva.
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Seu maior poder de encantar tinha, no entanto, outra fonte: uma inesgotável incapacidade de desistir. De algumas pessoas se diz que são incapazes de fazer
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Ele encarnou, como poucos, um dos ideais da Grécia clássica que dizia ser a Eudaimonia o objetivo maior da Política (da vida na polis); literalmente eu/bem + daimonia/espírito interior, significaria paz de espírito, mas sua tradução oferece um ótimo trocadilho em português: felicidade e, também, feliz/cidade. Foi exatamente esse ideal (a política como busca da felicidade de todos e todas) que conduziu Paulo Freire para a educação e, nela, para a prática libertadora. Muitas vezes, ao se avaliar a importância da obra de Paulo Freire e o impacto que causou na realidade brasileira e internacional, foi comum tachá-lo de um “incompreendido”. Grande engano! Ele foi muito bem compreendido e, por isso mesmo, é amado e admirado por muitos e rejeitado por outros tantos.
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Paulo Freire não era (e nem poderia ser) uma unanimidade; fez uma opção pelo enfrentamento político e existencial e, dessa forma, só um resultado anódino de suas idéias e práticas conseguiria situá-lo no altar ascético (e inerme) daqueles que são aceitos por qualquer um. Afinal, mede-se, também, o alcance do que se faz pela qualidade dos adversários que se encontra e das oposições que se manifestam.
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O ideal freireano, felizmente, continua robustecido e vivo para as educadoras e educadores que sustentam a força da esperança e recusam-se a admitir a falência da felicidade; esse sim é um ideal perene e amoroso.
Caminhos e escolhas Em uma manhã de fevereiro de 1992 (lá se vão quinze anos), logo no início do ano letivo, tive a oportunidade de passar algumas prazerosas e encantadoras horas na companhia de Paulo Freire. Fazíamos uma entrevista cuja finalidade era, depois, se transformar em um depoimento, publicado, em 1997, no livro Rememória – Entrevistas sobre o Brasil do século XX 1. Grande aula naquele dia. 1.AZEVEDO, Ricardo Rememória – Entrevistas sobre o Brasil do século XX. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1997.
Enquanto conversávamos na sala da casa em que vivia com Nita Freire, distraíme por um minuto ao observar um aparelho de som, sobre um aparador mais ao fundo. Toca-discos ainda era um objeto comum, numa época em que os CDs – agora já rumando para a obsolescência – estavam apenas iniciando sua difusão mais acelerada. Durante a entrevista, como uma deliciosa trilha sonora, havia uma música de Bach rodando em um compact disc. No entanto, minha atenção dirigiase a alguns antigos discos de vinil alinhados sob o móvel, o mais visível com músicas de Geraldo Vandré. No mesmo instante, vendo a capa do disco, seja por ser começo de mais um ano docente, seja por estar frente a Paulo Freire, alguém que, aos 71 anos, ensinava há mais de meio século, lembrei-me dos versos iniciais da música O Plantador, de Geraldo Vandré e Hilton Accioly (lançada no disco Canto Geral, em 1968, em plena ditadura política e durante o exílio de Freire no Chile):
Não é, claro, um caminhar para qualquer lugar e de qualquer modo; não é um caminhar errante e desnorteado. É preciso revigorar amiúde o alerta feito pelo mesmo Paulo Freire, em 1997, na Pedagogia da autonomia (última obra por ele lançada ainda em vida): “Não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. Exige de mim que escolha entre isto e aquilo. Não posso ser professor a favor de quem quer que seja e a favor de não importa o quê. Não posso ser professor a favor simplesmente do Homem ou da Humanidade, frase de uma vaguidade demasiado contrastante com a concretude da prática educativa. Sou professor a favor da decência contra o despudor, a favor
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“Quanto mais eu ando, mais vejo estrada Mas se eu não caminho, eu sou é nada. Se tenho a poeira como companheira, faço da poeira o meu camarada”.
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da liberdade contra o autoritarismo, da autoridade contra a licenciosidade, da democracia contra a ditadura de direita ou de esquerda.” Viver sinceramente o “quanto mais eu ando, mais vejo estrada, mas se eu não caminho, eu sou é nada”. Viver docentemente.
Especial humildade
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Em setembro de 1994, Paulo Freire concedeu uma entrevista à educadora equatoriana Rosa Maria Torres, grande estudiosa e conhecedora da obra do inestimável mestre que, naquele mesmo mês, completava 73 anos. A conversa só foi publicada de fato na Argentina, em maio de 1997, poucos dias após o falecimento de Paulo Freire, mas, em 2001, quando ele faria 80 anos, saiu uma tradução em português no livro Pedagogia dos sonhos possíveis 2 , organizado por sua mulher, a educadora Ana Maria Araújo Freire.
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No diálogo, os temas prioritários foram a valorização do trabalho docente, a formação permanente, a necessidade de recuperação salarial, a importância específica de algumas greves do magistério, o perigo dos discursos eleitorais oportunistas, etc. No entanto, o que mais chamou a atenção foi quando, ao falar sobre o papel das greves, disse “Se eu pudesse ter mais influência através dos meus livros, através da minha postura e da minha posição, convidaria o magistério e seus dirigentes a reexaminar as táticas de luta. Não para abandonálas. Eu seria o último a dizer aos professores ‘Não lutem’. Eu gostaria de morrer deixando uma mensagem de luta.” Uma década após a entrevista, o mais espantoso nessa frase não é evidentemente o conteúdo que ela carrega; afinal, Paulo Freire sempre deixou claro que as táticas pela labuta contínua na melhoria da educação não excluíam, mas também não se esgotavam, nas paralisações reivindicatórias eventuais. O que suscita surpresa é a humildade verdadeira que manifesta ao relativizar, ele mesmo, com honestidade, o 2.FREIRE, Ana Maria Araújo. Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: UNESP, 2001.
poder de seus escritos e ensinamentos. O mestre levanta dúvidas pessoais sobre o peso da autoridade de suas obras e ações, a ponto de afirmar “se eu pudesse ter mais influência...”. Vai além. Usa na fala reproduzida antes o verbo no futuro do pretérito: “Eu gostaria de morrer deixando uma mensagem de luta”. Ora, o que mais fez durante toda a existência adulta? Por acaso seria aceitável supor que o conjunto da obra que viveu e publicou tenha deixado em algum instante de ser uma perene e abrasiva mensagem de ânimo combativo e crítica edificante? Esse “eu gostaria” sugere um desejo que nos parece estranho, pois, antes de tudo, o que fez incansavelmente, e assim o honramos, foi impedir que aceitássemos o falecimento da esperança.
Há uma ironia etimológica. Seu nome inicial vem do latim paulu que significa “pequeno”; o vocábulo “humildade” por sua vez é oriundo da adjetivação (também latina) humilis, com o sentido de “pouca estatura”, pois tem origem no substantivo húmus (terra ou solo, o que nos está abaixo), mas, da mesma raiz indo-européia para “humano”. Grande lição. Ser capaz de crescer porque ainda se considerava pequeno.
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Aí está a chave. Embora nos seja óbvia a contribuição que Paulo Freire jamais deixou de oferecer para advertir as nossas conformidades e entusiasmar as nossas intenções, ele próprio não se admitia definitivo, concluído, encerrado. Continuava, com mais de 70 anos, um ser em construção e, desse modo, em aprendizados permanentes e aspirações elevadas.
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Paulo Freire e o Projeto Mova-SP Sílvia Telles*
No entanto, “tudo começou”, no hoje denominado Período das Luzes da Educação de Adultos - EDA (1959-1964), marcado pelo Congresso de EDA (1958) que se caracterizou pela “intensa busca de maior eficiência metodológica e por inovações importantes neste terreno, pela reintrodução da reflexão sobre o social no pensamento pedagógico brasileiro e pelos esforços realizados pelos mais diversos grupos em favor da educação da população adulta”1. * Coordenadora do Projeto Mova-SP na gestão Luiza Erundina (1989-92). Professora de Educação de Jovens e Adultos do Centro Universitário 9 de Julho. 1.HADDAD, S. e DI PIERRO, M.C. Revista Brasileira de Educação, mai/jun/jul/ago/2000, nº 14, Número Especial – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação.
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Falar em Paulo Freire nas décadas de 70 e 80, junto a grupos de Educação de Adultos, era sinônimo de estar engajado em um trabalho de jovens e adultos não escolarizados visando à transformação da realidade daqueles que socialmente se encontravam marginalizados de uma sociedade letrada e, na maioria dos casos, vivendo um processo de exclusão social.
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Esse período é marcado fundamentalmente por um grande número de pessoas atuando junto aos movimentos populares por entenderem que a educação permitia uma ação política de transformação social, pois “não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão”2 como nos ensinou Paulo Freire. Participando intensamente desse momento turbulento, Paulo Freire nos traz vários debates sobre a prática da alfabetização de adultos, numa proposta de pedagogia crítico-libertadora que inclui elementos filosóficos fundamentais tais como a dialogicidade, a leitura da palavra não dissociada da leitura do mundo, a importância do saber e da cultura do educando, o educando enquanto sujeito de sua história e tantos outros que estas referências acabaram por se transformar, no imaginário de muitos educadores, também em um método de alfabetizar o adulto.
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Apesar do golpe militar de 1964 e de seu exílio, Paulo Freire continua sua luta por uma educação libertadora nas suas andanças pelo mundo e, no Brasil, nas décadas de 1960 a 1980, os movimentos populares e inúmeros militantes continuam seus trabalhos de alfabetização de adultos na clandestinidade.
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Momentos extremamente duros, mas que foram muito alimentados pelo ideário e pelas experiências do grande educador, que mesmo longe não deixava de contribuir para a resistência de um trabalho político-social-educativo em um mundo que precisava ser transformado e humanizado. Na década de 1980, num processo lento de redemocratização da política nacional do Brasil, que Paulo Freire volta de seu longo exílio e, em 1988, Luiza Erundina é eleita Prefeita do Município de São Paulo. Um de seus primeiros atos foi convidar e nomear o professor Paulo Freire Secretário de Educação da cidade. As quatro prioridades que nortearam as políticas da Secretaria Municipal de 2.FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1977.
Educação foram: o direito de crianças, jovens e adultos terem acesso à escola: “Democratização do Acesso”; o direito de permanecer nesta escola: “Nova Qualidade de Ensino”; o direito de intervir nos rumos dessa escola e na política educacional mais global: “Democratização da Gestão”; e “Educação de Jovens e Adultos”, uma vez que existia não só no município de São Paulo, mas em todo Brasil, altos índices de analfabetismo, baixos níveis de escolarização e alto nível de exclusão na população trabalhadora de baixa renda. Em 1989, no município de São Paulo, as estimativas revelavam que cerca de um milhão de pessoas com mais de quinze anos de idade não eram alfabetizadas e dois e meio milhões de jovens e adultos possuíam menos de quatro anos de escolaridade.
Em Educação de Jovens e Adultos, a figura do professor Paulo Freire representava para muitos e principalmente para aqueles que se constituíram em grupos de resistência às práticas educativas calcadas no ideário do Mobral, a possibilidade da definição de uma política que incorporasse a importância da educação de jovens e adultos na transformação social da cidade e não somente uma educação visando o processo produtivo da Nação. Isso porque, “a prática educativa, reconhecendo-se como prática política, se recusa a deixar-se aprisionar na estreiteza burocrática de procedimentos escolarizantes; lidando com o processo de conhecer, a prática educativa é tão interessada em possibilitar o ensino de conteúdos às pessoas quanto em sua conscientização”.4 3.O final da década de 1980 também foi marcado por um movimento internacional de combate ao analfabetismo, definido pela declaração da UNESCO, onde o ano de 1990 seria o “Ano Internacional da Alfabetização”, com a proposta de erradicar o analfabetismo em dez anos. 4. FREIRE, Paulo. Política e educação. São Paulo: Cortez, 1992.
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A Constituição Federal de 1988, previa em seu artigo 208, inciso 1º, que o Ensino Fundamental fosse obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso em idade própria e, praticamente, da mesma forma, a Constituição Estadual de São Paulo, no artigo 240 e a Lei Orgânica do Município de São Paulo, no artigo 203, prevendo o atendimento de jovens e adultos no Ensino Fundamental.3
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Ao ser anunciado para Secretário de Educação o nome do professor Paulo Reglus Neves Freire - conhecido pela “Pedagogia do oprimido”, educador popular por excelência, responsável pela existência política de vários dos movimentos existentes - a expectativa de todos os educadores tornou-se enorme. Os movimentos imediatamente se reuniram e, antes mesmo de iniciar a gestão, lideranças dos movimentos populares discutiam um projeto em que estes tivessem participação efetiva no processo de alfabetização de jovens e adultos. Nos primeiros dias da gestão Paulo Freire, educadores populares e representantes da Secretaria de Educação iniciaram a discussão de um projeto conjunto entre governo e movimentos populares e, em março de 1989, uma comissão do movimento popular já estava entregando oficialmente um projeto de Alfabetização de Jovens e Adultos. Esse foi um processo de ampla discussão, junto aos educadores da rede municipal de ensino, movimentos populares e educadores ligados às mais expressivas experiências de educação de jovens e adultos.
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Nasce assim o MOVA-SP: uma proposta de participação popular e ação cultural na organização de um amplo Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos. Nessa direção o projeto visava assegurar, aos jovens e adultos não escolarizados
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da cidade de São Paulo, o direito à alfabetização e à continuidade do processo educativo, de forma a viabilizar o cumprimento da meta constitucional de erradicação do analfabetismo e universalização do ensino fundamental; garantir a participação popular, num reconhecimento ao saber acumulado pelos Movimentos Populares já engajados nessa luta e à importante contribuição que estes tinham a dar na construção de uma política de Educação de Jovens e Adultos, por meio de um projeto que iria somar esforços na direção de consolidar as diretrizes políticas da Educação de Adultos, na cidade de São Paulo. O MOVA-SP não se constituiu em uma ação isolada, e deve ser analisado num contexto mais amplo da atuação da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo pois, juntamente com o Programa de Educação de Jovens e Adultos (EDA) e o Programa de Alfabetização de Funcionários, fez parte de uma entre as quatro
prioridades básicas que nortearam a ação política daquele governo. Essa era a primeira vez que um governo da cidade de São Paulo colocava em suas diretrizes políticas de educação uma preocupação explícita com a educação de jovens e adultos, traduzindo-se em projetos efetivamente concretizados. Para a constituição do Projeto de parceria - Secretaria de Educação e Movimentos Populares - foi criado o Fórum Municipal de Alfabetização que, inicialmente, definiu as diretrizes e princípios político-pedagógicos do processo de alfabetização, estabelecendo e organizando sua estrutura de trabalho; conferindo - À Secretaria Municipal de Educação: apoiar financeira e materialmente os projetos de Alfabetização de Jovens e Adultos desenvolvidos pelos movimentos populares; criar novos núcleos de alfabetização nas áreas onde os movimentos ainda não assumissem essa tarefa; garantir a orientação político-pedagógica e a formação permanente dos educadores populares, em encontros sistemáticos entre educadores dos movimentos populares e equipe técnica do projeto MOVA-SP.
O MOVA-SP visava, também, contribuir, por meio do Movimento de Alfabetização, para o desenvolvimento da consciência política dos educandos e dos educadores envolvidos e à luta pelos direitos sociais do cidadão, ressaltando o direito básico à educação pública e popular. O segundo grande objetivo do MOVA-SP, de importância estratégica para contribuir na concretização das diretrizes políticas da Secretaria de Educação, foi o incentivo à participação popular e respectivo fortalecimento dos movimentos sociais. O grande desafio era levar um trabalho de alfabetização – leitura do mundo e da palavra – que contribuísse para a organização da comunidade, o fortalecimento de grupos já organizados e a organização de novas participações.
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- Aos Movimentos Populares: ceder os espaços físicos para o funcionamento das salas de aula, matricular os educandos, formar as classes, indicar os monitores e os supervisores conforme critérios previamente definidos no Fórum MOVA e participar, em conjunto com a SME, da construção do projeto pedagógico.
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Por isso, o Projeto MOVA-SP foi concebido como um projeto de participação popular articulado à ação educacional onde o movimento é realmente parceiro, visando a transformação social numa ação contrária à exclusão. Cabe ressaltar, com muita ênfase, que – segundo Paulo Freire - o princípio que norteou o projeto em parceria com os movimentos populares não previa de forma alguma a desobrigação do Estado para com o processo de escolarização da população, mas sim uma estratégia para se garantir a participação popular na construção da política de educação do município e na disputa política para que jovens e adultos excluídos se motivassem para a alfabetização. Ao final de 1992, o MOVA-SP tinha 73 entidades populares conveniadas com a Secretaria Municipal de Educação, organizadas em seis Fóruns Regionais e unificadas pelo Fórum Municipal de Alfabetização, e junto à Secretaria de Educação, pelo Fórum MOVA.
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Os mil núcleos implantados naquele ano, atenderam a aproximadamente 20 mil educandos, totalizando, aproximadamente, 50 mil alfabetizandos ao longo dos três anos de funcionamento.
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Falar em Educação de Jovens e Adultos no Brasil é falar sobre algo muito pouco conhecido; ao se falar, o debate se concentra na situação de miséria social, das precárias condições de vida da maioria da população e nos resultados do sistema público regular de ensino, não existindo uma discussão consistente sobre qual educação é necessária a esse segmento excluído do sistema escolar. Via de regra, qualquer educação oferecida a eles já é considerada um dado significativo, usando-se a lógica que, aos pobres, qualquer “educação” basta, principalmente dirigindo-se a adultos que “pouca possibilidade de aprendizado apresentam”. Na história da alfabetização de adultos ou educação de adultos (atualmente Educação de Jovens e Adultos), as questões pertinentes a esse segmento da educação têm sido muito pouco estudadas e analisadas e, quando o são, enfatizam a ótica da produção, do mercado de trabalho e suas novas tecnologias,
voltando-se mais para uma educação de caráter compensatório, neglicenciando o desenvolvimento integral do indivíduo, enquanto sujeito/cidadão. O MOVA-SP teve por princípio uma educação libertadora, emancipatória, em que a ação educativa objetivava a construção da identidade de sujeitos/ educandos como cidadãos de direitos; portanto, exigiu um processo substantivo de formação permanente, dos educandos, dos educadores e supervisores populares e dos educadores da Secretaria de Educação, para a garantia de sua qualidade político-pedagógica e “qualidade de suas ações sociais”, motivo de avaliação e processo de sistematização do trabalho realizado.
Para tanto, o processo de formação não foi concebido como mais um trabalho voltado para educadores, mas construído e organizado coletivamente, em busca de uma prática que avançasse na qualidade desse atendimento e na construção de uma educação pública democrática. Sua palavra chave foi participação, uma lição que os movimentos sabiam ensinar e ensinaram.
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Isto significava, na concepção político-filosófica de Paulo Freire, uma educação que reconhecia a pluralidade de experiências que o educando jovem/adulto traz de sua vida, articulando sua vivência, detectando sua realidade e seus saberes, para a partir deles ampliá-los, permitindo uma leitura crítica do mundo e uma apropriação e criação de conhecimentos que melhor capacitem o educando/ sujeito à ação transformadora de sua realidade social.
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Requerimento Nº 23 / 2007 (do Deputado Ivan Valente e outros) Requer convocação de sessão solene da Câmara dos Deputados para dia 02 de maio de 2007, com a finalidade de homenagear a memória de Paulo Freire. Senhor presidente: Requeremos, nos termos do artigo 68 do Regimento Interno, ouvido o plenário, a convocação de Sessão Solene desta Casa para o dia 02 de maio de 2007, às 10 horas, a fim de homenagearmos, em Plenário, a memória do educador e filósofo da Educação, professor Paulo Reglus Neves Freire, por ocasião do 10º ano de seu falecimento.
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JUSTIFICATIVA
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No dia 02 (dois) de maio de 2007 completará dez anos da morte do grande educador e filósofo, Paulo Reglus Neves Freire. Sua trajetória de vida, sua contribuição teórica e reflexão sobre sua prática, assim como, suas propostas de políticas públicas em diversas áreas, mais especificamente para a área educacional, fizeram com que se tornasse referência mundial para intelectuais, profissionais de diversos campos do saber, educadores e educadoras, comprometidos com as causas populares, com a educação pública de qualidade, com a luta por uma sociedade mais justa e igualitária. Paulo Freire ficou mundialmente conhecido a partir dos anos 60, quando desenvolveu proposta revolucionária de alfabetização através da qual, para além da mera aquisição da linguagem escrita, a partir da realidade vivencial dos educandos e do diálogo permanente, busca-se a leitura e a compreensão crítica do mundo, para poder transformá-lo. Suas idéias fizeram com que, nos anos duros da ditadura militar, fosse exilado por dezesseis anos, porém, continuou a desenvolver seu trabalho e sua teoria do conhecimento em diversos países reafirmando sua opção política e sua concepção de educação, democrática e popular, dialética e dialógica e mostrando a intencionalidade do ato educativo.
Nos anos 80, com a Lei da Anistia, retorna ao Brasil e volta à atividade docente como Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC e também Professor da Universidade de Campinas – UNICAMP. De 1989 a 1991 esteve à frente da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. Sua Gestão, avaliada por amplos setores como uma das melhores de que o Brasil já experimentou, mudou a “cara da escola” e mostrou que com opção política é possível fazer da escola pública uma prioridade. Após este período continuou suas atividades acadêmicas, publicou livros e estimulou a reflexão e o debate educacional. Paulo Freire nos deixou aos 75 anos, vítima de infarto, no dia dois de maio de 1997, na cidade de São Paulo. Diante da importância de seu pensamento, do compromisso políticopedagógico e de sua trajetória de vida, necessário se faz que esta Casa realize uma justa homenagem, somando-se a tantas outras que, com certeza, irão ocorrer por ocasião dos dez anos da morte deste grande brasileiro e educador do mundo Paulo Freire. Propomos, em conseqüência, a realização de uma Sessão Solene em que o Professor Paulo Freire possa, com justiça, ser homenageado, reconhecendo-se que seu trabalho dignificou a Educação e o Brasil.
Ivan Valente Deputado Federal PSOL/SP Luiza Erundina Deputada Federal PSB/SP Chico Alencar Deputado Federal PSOL/RJ Paulo Rubem Santiago Deputado Federal PT/PE
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Sala de Sessões, 02 de fevereiro de 2007.
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CANÇÃO ÓBVIA Escolhi a sombra desta árvore para repousar do muito que farei, enquanto esperarei por ti. Quem espera na pura espera vive um tempo de espera vã. Por isto, enquanto te espero trabalharei os campos e conversarei com os homens Suarei meu corpo, que o sol queimará; minhas mãos ficarão calejadas; meus pés aprenderão o mistério dos caminhos; meus ouvidos ouvirão mais, meus olhos verão o que antes não viam, enquanto esperarei por ti. Não te esperarei na pura espera porque o meu tempo de espera é um tempo de quefazer. Desconfiarei daqueles que virão dizer-me, em voz baixa e precavidos: É perigoso agir É perigoso falar É perigoso andar É perigoso esperar, na forma em que esperas, porquê esses recusam a alegria de tua chegada. Desconfiarei também daqueles que virão dizer-me, com palavras fáceis, que já chegaste, porque esses, ao anunciar-te ingenuamente , antes te denunciam. Estarei preparando a tua chegada como o jardineiro prepara o jardim para a rosa que se abrirá na primavera. Paulo Freire Genebra, março 1971. do acervo de Ana Maria Araújo Freire. in: FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação.SP: Editora da UNESP, 2000.
Agradecimentos: Joana Barros, Max Ordonez, Solange Aguirre, Violeta Marien e ao Setor de Artes Gráficas do Centro de Multimeios da Secretaria Municipal de Educação de SP. Produção Editorial: Assessoria do mandato Ivan Valente PSOL/SP As fotos desta publicação foram gentilmente cedidas por: Ana Maria Araújo Freire (páginas 8,20, 32,52, 64, 72 e 82) Douglas Mansur (páginas 22, 40) Escritório em São Paulo: Rua Afonso Celso, 594 - Vila Mariana - SP Cep: 04119-002 - Fonefax: (11) 5539-6204 e (11) 5081-7563 ivalente@uol.com.br Gabinete em Brasília: Câmara dos Deputados - Gabinete 716 - Anexo IV Cep: 70160-900 - Fones: (61) - 3215-3716 / 3215-5716 - (fax) 3215-2716 dep.ivanvalente@camara.gov.br
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O Brasil deve a Paulo Freire a inclusão na categoria de lutadores sociais de milhões de brasileiros e brasileiras que compreenderam o que é ser sujeito de sua própria história. Permitiu a um número expressivo de pessoas que pertenciam aos “de baixo” enxergarem–se como agentes transformadores na busca por uma sociedade mais justa e igualitária. Deu-lhes a chance de escolher seu próprio caminho, em vez de ficarem sempre presos às alternativas impostas pelas elites para perpetuar sua dominação de classe e a brutal exclusão social que sofrem os trabalhadores no Brasil, e em toda periferia capitalista. Paulo Freire como intelectual orgânico e, mais do que isso, como um militante político, ao colocar seus conhecimentos em prática, valorizando o homem do povo, aprendendo com a vida, formando educadores engajados e respeitadores da experiência e da sabedoria popular, transformava valores, atacava a meritocracia, o autoritarismo e a hierarquização nas relações. Subvertia a ordem do poder dominante, da lógica do lucro, dos ricos, valorizando o homem e a natureza. Diante da importância de seu pensamento, do compromisso político-pedagógico e de sua trajetória de vida, prestamos esta necessária homenagem por ocasião dos dez anos da morte desse grande brasileiro e educador do mundo: Paulo Freire, reconhecendo que seu trabalho dignificou a Educação e o Brasil.
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Ivan Valente Deputado Federal PSOL/SP
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