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Conhece-te
atimesmo mario sergio cortella O filósofo que conquistou a mídia fala das coisas da vida (e de como conduz a própria). “A filosofia voltou para o circuito em função de um esgotamento do nosso modo de vida” por jacyara azevedo fotos chico max
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arquivo pessoal
Cortella (ao centro) em 1973, quando vivia em um convento
Na sala do escritório na esquina da avenida Angélica com a rua Maranhão, cercado por livros, fotos e o gato Flan, Mario Sergio Cortella, 58 anos, abre um armário e seleciona 15 obras de sua autoria (são 17 no total), antes de presentear a equipe da VERO no início desta entrevista. Pessoalmente, ele é maior do que se pode dimensionar quando visto na TV ou no YouTube – 1,82 metro de altura, 112 quilos – e tem uma retórica ainda melhor. “Sou uma pessoa consistente”, brinca o professor que poucas vezes faz pausas em seu pensamento.
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Com 38 anos de docência, o filósofo afirma usar a identificação com moderação, fala da experiência de três anos como monge em um convento, revela gostar de Lady Gaga, conta que acorda às 4h30 da manhã todos os dias (“um horário em que a humanidade está quieta”), que não tem carta de motorista por opção, diz o que aprendeu com a mãe, com Paulo Freire. A seguir, confira o papo filosófico. Por que decidiu tão jovem ser monge? Minha família é de formação católica e, desde pequeno, eu quis ter uma experiência religiosa mais intensa pelo meu desejo de compreensão
do que é o sentido místico e de ter um fazer com alguma relevância social. Durante minha juventude, na época da ditadura no Brasil, a igreja era a instituição que mais oferecia condições para que eu pudesse ter essas vivências. Assim que entrei na universidade, passei a viver num convento. Tinha 18 anos. Ainda assim, não é uma opção convencional. Você tem de saber que sou um leitor estudioso desde os 7 anos, por uma razão prosaica. Não havia televisão em Londrina, minha cidade. Com essa idade, fui vitimado por uma hepatite e obri-
gado a ficar de repouso três meses. Imagine um menino sem poder levantar da cama por quase cem dias! Eu me dedicava a ouvir programas de rádio e à leitura de todos os livros que a vizinhança trazia. Quando esgotaram os infantis, passei a ler Dostoiévski, Dante. Claro que eu não entendia, mas dez anos mais tarde, estava mergulhado na literatura. Quando reli a clássica pergunta de Os Irmãos Karamázov (“Se Deus não existe, tudo é permitido?”), decidi fazer minha experiência conventual. Como sempre quis fazer filosofia, que é parte da formação do clero católico, fui estudar em
O convento
era uma opcão de
vida
toda,
mas, como O gato Flan, um dos habitantes do escritórioapartamento do professor, em Higienópolis
uma faculdade de jesuítas, a Nossa Senhora Medianeira, embora tenha passado nos vestibulares da USP e PUC. Seu experimento seria temporário desde o início? Era um opção de vida toda, mas, como toda opção de vida toda, tinha de ser flexível. Vivi dois anos na clausura, num convento no km 18,6 da Via Anhanguera, onde hoje é o SBT. Meu curso ficava no km 26 da
rodovia, onde os jesuítas mantinham um campus no meio do mato. Os professores davam parte das aulas caminhando, no estilo peripatético aristotélico. Por isso desenvolvi uma boa memória. Depois de três anos, em 1975, achei que aquela vivência tinha sido suficiente. Algum dia vislumbrou sua trajetória tal qual ela se deu? Ela foi planejada em algumas coisas, como fazer minha carreira docente, mestrado,
doutorado. Eu trabalho com a ideia de oportunidade, o que os gregos chamavam de kairós, e os latinos, de fortuna. Maquiavel, na obra O Príncipe, diz que o príncipe é aquele que consegue aliar a virtude com a fortuna, isto é, com a ocasião. Ao entrar no convento, fazer uma universidade de jesuítas com tradição no ensino, virar docente, lecionar na PUC, conhecer Paulo Freire, entrar para o PT e me tornar secretário da Comunicação no governo
toda opção
assim, tinha
de ser flexível
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Erundina, passei a participar do campo da mídia. E a mídia passou a me chamar para várias coisas.
Uma vida
sem questionamento
éenfadonha.
Uma vida
em que só haja questionamento é perturbadora
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Uma sinopse da sua convivência de 17 anos com Paulo Freire. Paulo Freire era uma pessoa especial pela humildade, sabedoria, capacidade de ensinar e aprender, além de ter clareza do que desejava e de ser cosmopolita. Ele me ensinou uma frase, que não é dele, assim: “Só é um bom ensinante quem é um bom aprendente”. Transformar trabalho em fonte de vida é exclusividade da elite? Marx fazia uma descrição dos reinos da necessidade e da liberdade. Primeiro você precisa suprir suas necessidades para sobreviver. Tendo resolvido, fica livre para fazer o que quiser. Uma sociedade que ainda tem carências não tem tantas pessoas livres para a reflexão filosófica. No entanto, uma parcela daqueles que não têm liberdade para extrapolar já começa a se preocupar com essa questão. Citemos Millôr Fernandes: “Pensar é só pensar”.
Com a família em 2010: o genro, Michael; a nora Jane; o filósofo (ao fundo); o filho André; a mãe, Emília; a filha, Carol; e o filho Pedro
Uma provocação: questionar sempre não pode ser angustiante? Um pensador alemão dizia que a angústia é a possibilidade plena. Ela produz a sensação do nada, o único sentimento que não tem objeto. Você sente e não sabe o porquê. Quando você não tem a estranheza do nada, você já está definido, tem o seu limite. O nada o leva a um questionamento. E uma vida sem questionamento é robótica e, portanto, enfadonha. Por outro lado, uma vida em que só haja questionamento é extremamente perturbadora, produz um descompasso com a necessidade de fruir. Então, é preciso pensar na vida, mas não o tempo todo. O que você faz quando se cansa da sua matemática? Eu fico ouvindo David Guetta, o DJ francês, no meu iPhone. Música boa é aquela
que emociona você. Todos os dias eu ouço no mínimo meia hora de música, desde sinfônicas, como Mozart, até MPB, rap, jazz, blues, Mamonas Assassinas. Hoje, por exemplo, fiquei das 5h às 5h30 escutando Lady Gaga, “Paparazzi”, “Alejandro, “Bad Romance”. Eu acordo às 4h30 todos os dias porque é um horário em que a humanidade está quieta e posso ler, escrever. Mas durmo cedo, por volta da meia-noite. Você dorme quatro horas por noite? Sim, mas isso não significa que eu durma pouco. Na noite passada, voltei cochilando de uma conferência que fiz em Itapira, a 180 km da capital. Eu não dirijo, o que me dá uma qualidade de vida, porque posso cami-
O filósofo recebe seu mestre Paulo Freire e a esposa, Ana Maria, na companhia de sua mulher, Janete, em 1986
fotos: arquivo pessoal
Há quatro anos, dando aula na pós-graduação da PUC-SP
nhar, pensar, ver gente no metrô, chegar em casa menos estressado. Portanto, há momentos em que descanso entre meus deslocamentos. Como é sua rotina? Absolutamente agradável. Tenho rotina, mas não tenho monotonia. Num dia como hoje, eu me levantei às 4h30, li até as 6h30, organizei parte de um material para a CBN, estou conversando com você e logo depois vou a pé para a rádio.
Ontem ouvi música, fiz a última leitura de uma tese de um doutorado, participei de uma banca na PUC como examinador, vim para o escritório despachar coisas, dei uma entrevista para a TV Bandeirantes e fui para Itapira fazer a conferência; voltei à meia-noite, tomei uma sopa e fui dormir. Minhas atividades incluem conferências, aulas, palestras, entrevistas, viagens. Também gosto de cozinhar e de caminhar, afinal, sou uma pessoa consistente (ele sorri). Minha mãe, uma sábia
senhora de 83 anos, usa uma frase caipira especial. Ela diz: “Filho, o corpo é uma coisa tão boa que, se você cuidar direitinho, dura a vida toda”. Quantas palestras chega a dar em um mês? Na última semana, eu fiz 11 palestras em seis cidades diferentes. Já cheguei a fazer quatro por dia. De maneira geral, faço cerca de duas por dia. Hoje é minha principal fonte de recursos, não mais minhas atividades acadêmicas. Embora eu seja professor titular da PUC, não tenho mais vínculo trabalhista, só acadêmico. O que significa ser um filósofo no século XXI? Quando eu era menino, queria ser um intelectual. Isso significava me dedicar ao ensino, à pesquisa, à produção de livros, à comunicação. Falar em público sempre me deu um prazer muito grande. E eu falo como docente há 38 anos, costumo dizer que sou um giz. O giz é a extensão da minha boca, a boca é a extensão da minha mente. Ser um filósofo ganhou um ar de pedantismo por muito tempo, mas hoje eu já assumo, porque as pessoas passaram a assim me identificar. No entanto, em respeito aos clássicos, é preciso evitar chamar a si mesmo do que identificou os grandes Artistóteles, Platão, Descartes. A filosofia é um modo de vida, uma maneira de se aproximar da realidade.
A filosofia pode fazer as vezes da psicologia? Pode, mas não deveria. Como base de formação não me é estranho. Mas no meu entender, a filosofia clínica encontra alguns limites. Uma das tarefas da filosofia não é a construção de identidade, mas a perturbação da identidade. Acho que a filosofia entrou em nosso circuito nas últimas duas décadas em função de um esgotamento do modo de vida. Começamos a ficar exaustos de viver de forma automática. A procura pela instigação de um pensamento que também provoque se tornou marcante. A filosofia traz à tona questões antigas da existência. Cortella, como lida com as suas angústias? Meditando sobre elas. A melhor maneira de você afastar fantasmas é acender a luz. E os veja. E os enfrente. Aliás, faço de forma metódica todos os anos sem exceção. Eu pego uma folha de papel e dobro no meio. Num lado escrevo “apesar de” e, no outro, “por causa de”. Um exemplo: continuo escrevendo livros apesar do trabalho e do tempo que eles me consomem; por causa do meu prazer nisso, da minha vontade de comunicação, do leitor. Ou ainda: continuo casado com a Janete depois de décadas, apesar disso, apesar daquilo, por causa
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As grandes
questões são “Para
onde eu desejo ir?”, “Com quem?”
e “O que
quero
levar?”
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disso, por causa daquilo. Aí eu olho as duas listas. Se tenho mais senões que razões para fazer algo, preciso mexer nisso. Quais perguntas sugere para repensar objetivos de vida? A grande questão é “Para onde eu desejo ir?”, pergunta que o gato faz a Alice no País das Maravilhas. Se você não sabe para onde vai, qualquer caminho serve. Ainda é preciso pensar “Com quem eu quero ir nessa jornada?” e “O que eu quero levar?”. Seja num casamento, seja na profissão, seja na partilha com os amigos. Esse caminho de escolhas se dá a partir do momento em que vou cami-
nhando no que eu quero fazer. Isso não significa que eu só faço o que gosto, há coisas que tenho de fazer para chegar aonde quero. Não gosto de corrigir provas, mas é necessário que eu faça, para conhecer meus alunos e o trabalho que estou fazendo. Então fazer o que se gosta não significa só fazer o que se gosta, é fazer também o que não se gosta para poder fazer o que se gosta. Enigma da humanidade, qual é o sentido da vida? O sentido da vida não está posto, é construído. Deve-se olhar a ideia de sentido como significado e direção. Não há, no meu entender, um roteiro pré-escrito. Vamos construindo coletivamente uma direção naquilo que fazemos. Isso mantém
minha esperança, afinal, se o sentido já estivesse dado, não haveria o porquê de fazer as coisas. Eu não tenho uma visão trágica da vida sem a possibilidade de intervenção na trajetória. Minha visão é dramática, complexa, mas de que a vida pode ser mudada para melhor. Acho que nós somos construtores de sentido. Infernal é a vida sem esperança, do verbo esperançar, ou seja, buscar. Esperança não é espera, como dizia Paulo Freire. Termino com um poema de um homônimo meu, Mario Quintana: “Um dia, pronto, me acabo. Seja o que tem que ser. Morrer? O que me importa. O diabo é deixar de viver”.