Livro educação e interculturalidade 1ª versão (1)

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EDUCAÇÃO E INTERCULTURALIDADE: Conhecimentos, saberes e práticas descoloniais



Elcio Cecchetti Adecir Pozzer (Organizadores)

EDUCAÇÃO E INTERCULTURALIDADE: Conhecimentos, saberes e práticas descoloniais

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Blumenau, 2013


© Elcio Cecchetti e Adecir Pozzer - 2013 UNIVERSIDADE REGIONAL DE BLUMENAU Reitor João Natel Pollonio Machado Vice-Reitor Griseldes Fredel Boos Pro-Reitoria de Pesquisa, Pós-Graduação, Extensão e Cultura Marcos Rivail da Silva Centro de Ciências Humanas e da Comunicação Clóvis Reis EDITORA DA FURB Editor Executivo Maicon Tenfen Conselho Editorial Edson Luiz Borges Elsa Cristine Bevian João Francisco Noll Jorge Gustavo Barbosa de Oliveira Roberto Heinzle Marco Antônio Wanrowsky Maristela Pereira Fritzen Editoração: Sandra dos Santos Capa: Nádia Silveira Revisão: Joseni Terezinha F. Pasqualini e Marília Aparecida de Oliveira

Bibliotecário responsável:........... CRB .....


SUMÁRIO Apresentação da Coleção Apresentação do Livro Capítulo I COLONIZAÇÃO E DESCOLONIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO E INTERCULTURALIDADE: relações entre saber local e saber universal, no contexto da globalização José Marín Capítulo II A PRÁXIS INTERCULTURAL: uma experiência dialógica para a educação cidadã Álvaro B. Márquez-Fernández Capítulo III EDUCAÇÃO INTERCULTURAL E DIVERSIDADE: perspectivas possíveis Maria Conceição Coppete, Reinaldo Matias Fleuri e Tania Stoltz Capítulo IV INTERCULTURALIDADE E FORMAÇÃO DOCENTE: possibilidades para reconhecimento da diversidade religiosa Adecir Pozzer Capítulo V PEDAGOGIA E INTERCULTURALIDADE: alternativas para descolonizar o desenvolvimento Raquel Maria Pimentel Oliveira dos Reis, Jasom de Oliveira e Lilian Blanck de Oliveira Capítulo VI O ENFOQUE INTERCULTURAL NA AQUISIÇÃO DE UMA SEGUNDA


LÍNGUA: um olhar multifacetário que integra a natureza do homem e seu mundo cultural Jairo Eduardo Soto Molina Capítulo VII DIVERSIDADE RELIGIOSA E INTERCULTURALIDADE: aportes para a decolonização religiosa da escola Georgia Carneiro da Fontoura e Lilian Blanck de Oliveira Capítulo VIII A COLONIALIDADE DO SABER NAS CIÊNCIAS SOCIAIS: análises sobre o ensino de Sociologia no Ensino Médio Natália de Oliveira de Lima Capítulo IX PERSPECTIVAS INTERCULTURAIS E GLOBALIZ(AÇÕES): tensões e dilemas em Timor-Leste Ricardo Teixeira Canarin, Gisele Canarin e Christian Muleka Mwewa Capítulo X EDUCAR PARA O BEM VIVER?! - contribuições para episte(me)todologias decoloniais Mayane K. Baumgärtner e Lilian Blanck de Oliveira Sobre os Autores


APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO Deixar duas páginas em branco

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APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO Deixar duas páginas em branco

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APRESENTAÇÃO DO LIVRO Ao longo de sua trajetória, a cultura ocidental hegemônica tem realizado uma espécie de autocontemplação da sua pretensa superioridade nos campos da ética, cultura, política, direito, economia e religião. Esta superioridade justificada sob as mais diversas formas ou seja, a partir da afirmação da supremacia do deus judaico-cristão sobre os demais deuses, até a narrativa filosófica que elevou o projeto da modernidade como sendo a realização do espírito universal na história. A modernidade tem origem e fundamento na racionalidade e na afirmação de que somente os saberes científicos são válidos para compreensão e intervenção do mundo. O discurso abstrato do pensamento europeu tentou normalizar as diversidades e as identidades foram forjadas segundo os moldes de um único padrão, tido como universal, e, por isso, único e verdadeiro. As outras epistemologias, culturas e modos de vida foram menosprezadas e sistematicamente inferiorizadas. É compreensível, portanto, que nas últimas décadas tenha ocorrido um significativo aumento de grupos e movimentos que, de forma organizada e articulada, veem buscando o reconhecimento de suas identidades, encampando lutas em prol da emancipação dos preconceitos, discriminações e subalternizações historicamente impostos. Tais grupos enfrentam e questionam processos de exclusão e desigualdades a que foram submetidos, através da criação, incorporação e difusão de outras bases lógicas e epistemológicas, que permitam as identidades se desenvolverem autonomamente. A Interculturalidade é um dos paradigmas emergentes que tem possibilitado novas formas de relacionamento entre grupos socioculturais diferentes, abrindo perspectivas para novas concepções e práticas educacionais. E ela é, ainda, uma temática recente nas discussões educacionais latino-americanas. Seu emprego ocorre somente na década de 1980, principalmente nos campos da Antropologia, Pedagogia, Sociologia, 9


História e Filosofia. É concebida como um princípio ético que possibilita repensar as relações entre sujeitos históricos e culturais, promovendo reparação de danos causados pelos processos de colonização das culturas e sociedades, especificamente na América Latina (FORNET-BETANCOURT, 2001). Enquanto princípio, a Interculturalidade não pode ser reduzida a um discurso teórico, racional ou filosófico, mas necessita ser compreendida na e a partir da experiência a ser realizada fundamentalmente nas relações intersubjetivas de forma envolvente e responsável. Tais relações requerem que os sujeitos tenham consciência de suas diferenças identitárias, condição imprescindível para superar assimetrias de poder existentes entre as culturas, as quais legitimam processos de colonização do ser, saber, poder e do viver. Este processo de superação possui implicações tanto na esfera individual quanto na coletiva. Nesta perspectiva, Fornet-Betancourt (2004, p. 13-14) destaca que a [...] interculturalidade quer designar, antes, aquela postura ou disposição pela qual o ser humano se capacita para, e se habitua a viver ‘suas’ referências identitárias em relação com os chamados “outros” [...] se trata de uma atitude que abre o ser humano e o impulsiona a um processo de reaprendizagem e recolocação cultural e contextual [...] É o reconhecimento da necessidade de que uma dimensão fundamental na prática da cultura que temos como “própria” tem de ser a da tradução dos “nomes próprios” que consolidam sua tradição [...] Não há prática intercultural sem vontade nem exercício de tradução.

A postura ou disposição para a abertura na perspectiva da Interculturalidade pode ser entendida, em outras palavras, como um desprendimento de si próprio ou, ainda, um distanciamento das bases identitárias para uma releitura dos fundamentos que permeiam os encontros entre grupos e/ou culturas. Este encontro, não é algo fácil e tranquilo, porque pode ser caracterizado também como confronto ou desencontro. Mas, se os encontros/confrontos/desencontros entre as culturas são inevitáveis, é imprescindível uma responsabilidade ética diante do estranhamento do diferente para que as inter-relações se construam enquanto experiência de libertação que possibilite reconhecer os limites inerentes às diferentes culturas. 10


No campo educacional, particularmente marcado pela presença e manifestação das diversidades, a Interculturalidade representa a possibilidade de questionamento de concepções epistemológicas e pedagógicas monoculturais, contribuindo para superação de processos educacionais que procuram normalizar os diferentes e as diferenças. Ao mesmo tempo, quer contribuir para o estabelecimento de outras formas de observar, interpretar e encaminhar políticas e práticas pedagógicas, na tentativa de (re) criar, a partir do cotidiano escolar, novos olhares frente à diversidade humana e cultural. Uma educação intercultural não nega a complexidade implícita à sua gênese. Pressupõe uma coerência entre os fundamentos epistemológicos, os encaminhamentos metodológicos e as necessidades, limites e possibilidades dos sujeitos significarem a própria existência e identidade cultural numa relação interativa com diferentes culturas. Com este intento, a presente publicação reúne a contribuição de diferentes autores que, à luz de distintos territórios e territorialidades, contribuem para a compreensão das múltiplas interfaces que envolvem as temáticas da Educação e da Interculturalidade, apresentando conhecimentos, saberes e perspectivas para práticas pedagógicas descoloniais. No capítulo 1, intitulado Colonização e descolonização na educação e interculturalidade: relações entre saber local e saber universal, no contexto da globalização, José Marín, a partir do conceito da Interculturalidade, elabora uma análise sobre a descolonização do saber e do poder, uma vez que o processo histórico de colonização europeia foi instituído pela dominação cultural, social, econômica, política e religiosa, desrespeitando a biodiversidade e a diversidade cultural. Aborda a relação entre o saber local e o saber universal imposto pela cultura dominante, desafiando a educação a assumir um caráter intercultural, com base na revalorização das línguas e culturas locais. No Capítulo 2, A práxis intercultural: uma experiência dialógica para a educação cidadã, Álvaro B. Márquez-Fernández defende mudanças nas estruturas do Estado, para que este beneficie 11


mais as comunidades interculturais e cidadanias populares e públicas, do que os grupos que controlam a economia de mercado. Propõe levar em consideração propostas alternativas que são apresentadas pelos movimentos sociais emancipadores, em especial, os que surgem no contexto latino-americano. Defende a emergência de experiências educacionais assentadas no diálogo com o Outro, pois é somente por meio deste que a identificação, reconhecimento e respeito da alteridade podem abrir espaços de convivência intercultural, com suficiente força para quebrar o paradigma neoliberal de unificação das diversidades culturais. No capítulo 3, Educação intercultural e diversidade: perspectivas possíveis, Maria Conceição Coppete, Reinaldo Matias Fleuri e Tania Stoltz, apresentam sentidos e significados de uma educação intercultural, apontando suas possibilidades transformadoras, uma vez que esta amplia o olhar sobre o fazer pedagógico, a partir da interação e diálogo de distintos pontos de vista. Para eles, pensar, agir e viver interculturalmente, especialmente a partir de uma perspectiva crítica, implica na descoberta de si mesmo e do Outro, com vistas a promover a justiça e a construção de um mundo menos desigual. Desta forma, defendem a articulação de políticas educativas e práticas pedagógicas comprometidas com o princípio da não discriminação e voltadas à desconstrução de subalternidades, à emancipação, à liberdade e às práticas efetivamente emancipatórias. Interculturalidade e formação docente: possibilidades para reconhecimento da diversidade religiosa é o título do Capítulo 4, elaborado por Adecir Pozzer, no qual reflete sobre a presença da diversidade religiosa no cotidiano escolar, enquanto elemento constituinte da identidade cultural brasileira. Estabelece interfaces com a formação docente, desafiando-a a adotar perspectivas interculturais, uma vez que a escola, de certa maneira, (re)produz currículos que invizibilizam a complexidade da diversidade religiosa, deixando de intervir nas representações e práticas que promovem intolerâncias, discriminações e estigmatizações do outro em sua alteridade. 12


Na sequência, Raquel Maria Pimentel Oliveira dos Reis, Jasom de Oliveira e Lilian Blanck de Oliveira, em Pedagogia e interculturalidade: alternativas para descolonizar o desenvolvimento, apontam a premência de se pensar processos de desenvolvimento a partir de uma perspectiva intercultural, reconhecendo e integrando diferentes culturas, conhecimentos e saberes que permeiam as sociedades contemporâneas. Defendem a adoção de outros olhares e leituras, referenciais teóricos e práticos, que encaminhem, organizem e constituam outras e novas pedagogias, a fim de que os processos educativos promovam a formação de uma consciência crítica e criadora, onde os sujeitos sejam capazes de analisar a realidade, avaliá-la e transformá-la. No capítulo 06, Jairo Eduardo Soto Molina, em O enfoque intercultural na aquisição de uma segunda língua: um olhar multifacetário que integra a natureza do homem e seu mundo cultural procura romper com a abordagem clássica e convencional no ensino de línguas estrangeiras, já que a presença de outra língua no currículo escolar não deve ser interpretada como um elemento estranho desarticulado do processo de formação, mas como fator de enriquecimento em prol do crescimento pessoal, psico-afetivo, sociocultural e intelectual. Por isso, propõe o desenvolvimento de uma experiência ambiciosa de reconstrução curricular na qual a Interculturalidade não só se constitui em veículo de construção de conhecimento, mas em estratégia principal do processo. Em seguida, Georgia Carneiro da Fontoura e Lilian Blanck de Oliveira, no capítulo intitulado Diversidade religiosa e interculturalidade: aportes para a decolonização religiosa da escola propõem a decolonização do imaginário religioso dos povos colonizados, os quais tiveram seus sistemas de crença, símbolos, mitos, ritos e valores subordinados à perspectiva religiosa dos colonizadores. Assim, se ao longo da história, a educação escolar foi um agente importante para imposição de uma única forma de crer, enfocando uma verdade padronizadora e limitadora que negava outras formas de religiosidades, na atualidade, urge propor perspectivas episte(me)todológicas radicalmente opostas ao historicamente posto, a partir do diálogo e interação entre saberes 13


e conhecimentos das diferentes culturas e tradições religiosas, almejando desencadear processos de decolonização religiosa da educação. Natália de Oliveira de Lima, em A colonialidade do saber nas ciências sociais: análises sobre o ensino de sociologia no ensino médio, destaca a natureza política dos currículos e evidencia o caráter ideológico que envolve os atos educativos. Preocupada especificamente com o ensino de Sociologia, percebe que esta disciplina é diretamente influenciada pelas teorias e conhecimentos que se desenvolvem no âmbito acadêmico, onde a cosmologia ocidental é tomada como referência e lócus de enunciação em detrimento de outras perspectivas. Através da análise de um livro didático destinado ao ensino de Sociologia no Ensino Médio, constata “colonialidade do saber” deste componente, devido às heranças eurocêntricas e coloniais que se encontram internalizadas até o presente, nas diferentes relações de poder e saber travadas, neste caso, na instituição escolar. No capítulo 09, Ricardo Teixeira Canarin, Gisele Canarin e Christian Muleka Mwewa, no artigo Perspectivas interculturais e globaliz(ações): tensões e dilemas em Timor-Leste, discutem a diversidade dos processos de globalização, evidenciando os papeis dos agentes que globalizam e daqueles que sofrem a ação. Relatam que, nos últimos anos, o Timor-Leste encontra-se sob o efeito direto da influência de estrangeiros, reestruturando, assim, seu substrato cultural. É justamente essa a problemática central do capítulo: até que ponto as influências externas tangenciam a noção de cultura nacional? É possível falar em cultura nacional no contexto de Timor-Leste? Concluem destacando que a educação pode ser um elemento estratégico para formação de timorenses preparados para atuarem responsavelmente nas áreas prioritárias do país, contribuindo para que os sujeitos experimentem práticas sociais e intercâmbios acadêmicos que induzam à solidariedade, à colaboração e à experimentação compartilhada. Por fim, em Educar para o bem viver?! – contribuições para episte(me)todologias decoloniais¸ Mayane K. Baumgärtner e Lilian Blanck de Oliveira apresentam algumas percepções e práticas 14


sociais decorrentes da aplicação do paradigma do bem viver em contraposição ao conceito de boa vida, destacando, especialmente, a experiência em desenvolvimento no Equador, que tem incluído os princípios do bem viver no campo educacional. Pautada no paradigma do bem viver, a educação assume a responsabilidade de promover contínuos processos de decolonização, abrindo possibilidades históricas com o intuito de identificar caminhos e práticas para a construção de outras episte(me)todologias, que possam subsidiar outros programas e propostas para a educação escolarizada monocultural. Estes são alguns dos temas que a presente publicação pretende apresentar para socialização e discussão. Esperamos e desejamos que os conhecimentos e saberes aqui apresentados contribuam efetivamente para a promoção de experiências educativas interculturais, onde, por meio de práticas descoloniais, se possa instaurar processos de libertação e transformação social.

Os Organizadores Novembro de 2013

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CAPÍTULO I

COLONIZAÇÃO E DESCOLONIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO E INTERCULTURALIDADE: relações entre saber local e saber universal, no contexto da globalização1 José Marín

1 Introdução A luz e a verdade não pertencem a ninguém e é melhor que assim seja. Igualmente, a luz não pode ser propriedade de ninguém e vive no brilho dos olhos das crianças, nos reflexos do sol na água e na pele das folhas das árvores nos bosques. A luz é como a verdade: todos nós possuímos um pouco de luz e cada um de nós tem dela apenas uma parte. Se quisermos que nasça um novo amanhecer, devemos juntar todos os fragmentos de luz e unir toda a energia que possuímos, para que volte a nascer a vida. Essa é nossa primeira reflexão, da qual partimos para relacionar a proposição da Interculturalidade com a descolonização do poder e do saber. Trata-se da fundamentação para propor um projeto viável de sociedade, ante os desafios ecológicos e os desafios da diversidade cultural e religiosa. Tem o significado não somente de respeito à diversidade, mas, principalmente de aproveitar a riqueza da diversidade nas culturas, como faz a natureza na metáfora que mencionamos de início. Essa opção teórica implica igualmente em assumir o desafio epistemológico do reconhecimento da existência de outras visões de mundo e de aceitar a validade de outros conhecimentos e de outras formas de construir conhecimentos (MARÍN, 2005, 2006, 2008; PORTO-GONÇALVES, 2004, 2006). 1 Este capítulo toma por base o artigo intitulado Interculturalidade e descolonização do saber: relações entre saber local e saber universal, no contexto da globalização, publicado pela Revista Visão Global, v. 12, n. 2, jul./dez. 2009.

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Um bom exemplo para compreender esse processo parece-nos ser o tema das relações entre o saber local e o saber pretensamente universal, imposto no contexto da globalização. Nossa reflexão se realiza a partir da perspectiva intercultural, porque acreditamos que esta é uma possibilidade de análise que permite descolonizar o saber e consequentemente o imaginário que o sustenta (QUIJANO, 2005, 2007). Assumir a interculturalidade como perspectiva possibilitanos o reconhecimento e a valorização de outros sistemas culturais, para além de toda a hierarquização, num contexto de complementaridade que permite a construção de um diálogo. Este por sua vez possibilita a partilha de conhecimentos, para além de toda a falsa oposição entre o moderno e o tradicional, a cultura escrita e a cultura oral, a racionalidade e a dimensão afetiva. Essas falsas oposições impregnam as relações humanas e as aprendizagens (NARBY 1997, 2005). O eixo dessa reflexão permite-nos questionar a separação perversa da natureza e da cultura, posta em prática pela visão eurocêntrica focada na racionalidade do positivismo, sobre a qual foram construídas a ciência e a tecnologia do mundo ocidental. Repensar esse desafio epistemológico pode ajudar-nos a imaginar a reconstrução de uma visão global, multidimensional e interdisciplinar, que associe a natureza e a cultura como sendo o eixo fundamental para compreender melhor o mundo no qual vivemos e, assim, imaginar um projeto social e político que seja capaz de assumir os desafios impostos pelo contexto atual da globalização. Refletir sobre a relação dos conhecimentos locais com os conhecimentos globais, em um contexto determinado, leva-nos a estudar a história das relações de poder entre as culturas dominantes e as culturas dominadas. Saber é poder. Essa afirmação resume nossa premissa. O saber é um dos pontos de sustentação da dominação, em todos os territórios das atividades humanas. E no processo atual da globalização, o domínio do saber tecnológico é simbolicamente determinante das relações de poder. 18


Há uma longa história de valorização e desvalorização dos conhecimentos, que marcou a relação entre as culturas dominantes e as dominadas. Esses conhecimentos são reproduzidos pelos sistemas educativos e pelo mecanismo da imposição de uma política educacional oficial, desde a época da dominação colonial e pós-colonial. A escola oficial encarregou-se de transmitir a visão de mundo, a língua e a cultura dominante, sendo uma instituição eficaz no seu objetivo de reduzir, discriminar e marginalizar línguas, visões de mundo e conhecimentos ou saberes locais. No contexto da América Latina, a Santa Inquisição foi um símbolo dessa época. A Igreja e a escola executaram a função, mediante a evangelização e a alfabetização, de impor uma visão de mundo e determinados conhecimentos valorizados pela cultura dominante. A reflexão sobre esse tema leva-nos a delinear algumas perguntas: Quem determina o valor de um conhecimento e lhe atribui um caráter universal? Quais são os conhecimentos legitimamente integrantes da cultura dominante? Quem efetivamente consegue marginalizar certos conhecimentos pertencentes aos saberes dominados, reduzindo-os a um valor local, ou terminando por folclorizá-los? Qual é a visão de mundo que sustenta a interpretação e o conteúdo dos conhecimentos? Quais são as relações entre os conhecimentos que determinam se eles respondem às nossas necessidades e aos nossos interesses? Tratar de estabelecer as relações fundamentais entre os conhecimentos locais e os conhecimentos universais, no contexto da globalização, leva-nos a refletir sobre o sentido da educação escolar. É necessário superar a fragmentação do conhecimento, para reunir as partes com o todo e assim cumprir a primeira condição para encontrar as melhores formas de trabalhar com a aprendizagem dos conhecimentos. Para a abordagem introdutória dessa problemática, trataremos brevemente da análise do contexto histórico da globalização, na medida em que se constitui o entorno no qual se inscrevem as relações entre os conhecimentos locais e os conhecimentos globais. 19


Com a intenção de repensar as alternativas para imaginar um futuro diferente, centramos nossas esperanças na educação em suas diferentes formas, como sendo o lugar no qual pode iniciar-se a descolonização de nosso imaginário e a revalorização de nossos saberes. A importância da educação se revela na medida em que é o território histórico e cultural onde se constrói o imaginário de toda a sociedade. A educação é o espaço no qual se produz a elaboração e a recriação das visões de mundo, dos sistemas de valores e das maneiras de construir os conhecimentos. Essa recriação é que nos permite a elaboração de um projeto social capaz de adaptar-se às necessidades, às potencialidades e aos interesses de nossas sociedades. Finalmente, propomos algumas reflexões e reafirmamos o valor de outros grandes aportes, como os que têm realizado Edgar Morin (2000, 2006), entre outros.

2 Globalização: conceitos, interpretações, paradoxos e desafios A palavra globalização é a tradução do termo inglês globalization, utilizado nos Estados Unidos desde os anos 80 do século XX. Originalmente, esse conceito se refere a uma suposta liberação planetária dos intercâmbios econômicos. Desde os anos 90 o termo tem sido reelaborado e se aplica para além do campo econômico, na informação e no âmbito da cultura, entre outros. Atualmente a globalização está associada à hegemonia da geopolítica dos Estados Unidos e está fundamentada na ideologia neoliberal, que impõe uma liberdade empresarial, para beneficiar o comércio com vantagens fiscais e alfandegárias. Preconiza igualmente o livre emprego, que na realidade se traduz pela precariedade das condições de trabalho e defende o livre intercâmbio econômico e financeiro, mesmo quando protege suas economias. Esse processo teoricamente se traduziria na especialização de cada país em função de suas vantagens comparativas e numa divisão internacional do trabalho. Todos esses postulados não resistem a uma análise mínima de suas múltiplas incoerências, já demonstradas na realidade, como no caso da Argentina (STIGLITZ 2002). 20


2.1 A deslocalização Denomina-se deslocalização, o desalojamento da produção industrial rumo aos países com baixos salários e melhores vantagens fiscais. A transferência de numerosas empresas dos países industriais a países como a China, e outros do sudeste asiático, é um bom exemplo deste processo. Essa região já concentra vários setores da economia industrial em nível mundial. A deslocalização também ocorre em direção a certos países da Europa do leste, que oferecem melhores vantagens e baixos salários para as multinacionais, o que atualmente divide a Comunidade Européia dos 25. Esse fenômeno é um produto da globalização e é o sinônimo da desindustrialização e da destruição do mercado de trabalho nos países industriais. Esse fato produz um crescente desemprego e exclusão social nos países industriais, e provoca profundas mutações econômicas, sociais e culturais. A deslocalização nos países ricos, em médio prazo, com a exclusão e a marginalidade que são geradas, será a demonstração catastrófica de que os efeitos perversos da globalização também emergem nos países que a impulsionaram e fomentaram (MONNIER 2004; RAMONET 2004). 2.2 Os movimentos antiglobalização São movimentos que tiveram sua origem no desmantelamento da ex–URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), realizado nos anos 90. Opõem-se à privatização dos setores públicos como a Saúde, a Educação e os Serviços Sociais, que são concebidos pela globalização neoliberal como mercadorias que devem ser administradas pelo mercado, com a perda total de sua dimensão social e humana. A essas proposições se opõe esse movimento no campo ecológico, econômico, social, educativo e cultural. Suas ações políticas denunciam as consequências perversas e os paradoxos que a globalização provoca. Essa oposição é explicitada por diferentes organizações não governamentais e por iniciativas cidadãs, como a do Fórum Mundial de Porto Alegre no Brasil, entre outras experiências. 21


2.3 As interpretações da definição de globalização A interpretação histórica é referente aos diferentes episódios da dominação ocidental desde o início do colonialismo e póscolonialismo até a atual dominação hegemônica ocidental na África, América, Ásia e Oceania. Essa interpretação se afirma na perspectiva do respeito à biodiversidade, como sustento vital para todos os seres viventes e como condição para assumir o desafio ecológico. A interpretação cultural compreende todo o processo de dominação cultural que envolve a globalização, em seu afã por impor uma cultura hegemônica. Essa perspectiva também nos recorda a necessidade de respeitar a diversidade cultural, que compreende as diversas visões de mundo e os diferentes sistemas e concepções religiosas, fundamentais para preservar a pluralidade e para assegurar as condições vitais para a convivência democrática e intercultural na sociedade humana. A interpretação social é referente à ausência de um modelo de sociedade viável, como resposta às mutações e paradoxos provocados pela globalização, incluídos na problemática da exclusão e no desafio da dignidade humana. A interpretação econômica vem da importância da dimensão econômica e financeira da imposição do capitalismo no âmbito mundial. A interpretação geopolítica é referente à hegemonia geopolítica que em nível planetário exercem os Estados Unidos, nos termos econômicos, políticos e militares. A atual invasão e destruição do Iraque é um exemplo, com mais de cem mil vítimas civis. Encontramo-nos diante de uma hegemonia impregnada de etnocentrismo, racismo, nacionalismo e fundamentalismo religioso, como na época colonial. A interpretação humanista está relacionada à ausência de respeito aos direitos humanos e à ausência de princípios éticos que articulem os fundamentos essenciais da dignidade humana. A interpretação demográfica é concernente às migrações provocadas pelas mutações e pela ordem injusta que foi instituída pela globalização do sistema capitalista. A emigração desesperada, 22


principalmente dos países pobres para os mais ricos, apresenta-se como uma miragem e a única alternativa para sair da pobreza. Este é um fenômeno a ser estudado nas relações econômicas e sociais do local e do global. A perda de quadros profissionais qualificados, da qual essa situação é coadjuvante, tem o significado de uma sangria inestimável de recursos humanos. A deslocalização de indústrias nos países ricos vindas de outras regiões provoca a destruição do tecido social e a ruptura do mercado de trabalho. Esse fato será a causa de um novo capítulo da exclusão e marcará uma nova etapa na história de migrações dos países industrializados do norte. A interpretação relacionada à educação defronta-se com as tendências de domínio que a globalização impõe, por meio do controle da informação e dos meios de comunicação, assim como da mensagem ideológica e cultural que esses meios veiculam. Esses desafios à educação, em termos de visões de mundo, em relação aos sistemas de valores, às identidades e suas referências, demandam um importante desafio no quadro das relações entre o local e o global.

3 Os paradoxos da globalização e as incontestáveis evidências da ausência de um projeto de sociedade viável Elencar esses paradoxos foi um trabalho elaborado com algumas reflexões do próprio autor, em grande parte inspirado pelo Informe da 46.ª Conferência Internacional de Educação da UNESCO: Aprender a conviver: estamos fracassando? (UNESCO 2003). Os paradoxos são produzidos, na sua maioria, pelos efeitos perversos da globalização. O primeiro paradoxo localiza-se entre a abertura para um desenvolvimento compartilhado entre os países industriais e a destruição das potencialidades de desenvolvimento, particularmente nas nações menos favorecidas. O incremento do comércio internacional, as oportunidades de mobilidade pessoal e o avanço extraordinário das telecomuni23


cações oferecem, entre outros aspectos, uma base material para a vida em comum. Ainda assim, a forma como se promove a globalização provoca problemas graves em muitos lugares do mundo. Estes problemas têm consequências principalmente na destruição do meio ambiente e na deterioração da qualidade de vida de centenas de milhões de habitantes de todos os continentes, acentuando-se as distâncias entre ricos e pobres. O segundo paradoxo consiste em uma profunda contradição que se dá entre a proliferação dos conhecimentos científicos e os desequilíbrios que provocam nas áreas em que se aplicam. As formas de produção e de consumo energético do século XXI, a modernização transferida do Norte para o Sul e o crescimento da população em certas regiões do mundo são fatores que produzem efeitos perversos e sérios danos no meio ambiente (UNESCO 2003). Um bom exemplo desse paradoxo é a bacia amazônica, cuja órbita se estende por 5,5 milhões de quilômetros quadrados, quase o equivalente a uma vez e meia o atual território da Comunidade Européia. A Amazônia está repartida entre sete países, entre os quais o Brasil, que possui aproximadamente 70% de seu território. Incêndios involuntários e desflorestamento têm destruído mais de 630.000 quilômetros quadrados de florestas, o equivalente a duas vezes o território da Itália. A devastação é provocada pela expansão de cultivos agroindustriais como a soja, o gado e o desflorestamento (ALLEMAND, 2004). A biotecnologia avança na construção de conhecimentos para resolver problemas muito diversos, porém se desconhece as consequências e os efeitos posteriores de suas aplicações. A utilização dessas tecnologias em áreas da produção de alimentos deve levar em conta esses riscos. O terceiro paradoxo: na etapa atual a humanidade dispõe de um desenvolvimento de conhecimentos em nível internacional, os quais poderiam melhorar consideravelmente a qualidade de vida de toda a humanidade, porém são conhecimentos que não se aplicam nem se aprendem de forma equitativa. Quase um bilhão de pessoas vive sem acesso à água potável; 2 bilhões e 400 milhões não têm acesso à sanidade básica; mais de dois milhões morrem por ano devi24


do à contaminação ambiental e 34 milhões sobrevivem com AIDS ou HIV (PNUD, 2001). Em apenas dois anos a porcentagem da população mundial que utiliza Internet passou de 2,4 % a 6,7 % enquanto que essa cifra se eleva a mais de 50% na Suécia, Estados Unidos e Noruega. Na China, África do Sul e Brasil, o percentual está abaixo de 10%. A brecha no uso de novas tecnologias da informação é cumulativa, com diferenças no acesso à eletricidade, aos tratores, ao telefone e outras inumeráveis tecnologias do século XX (PNUD, 2001). O quarto paradoxo: nunca antes a humanidade produziu tanta riqueza, porém nunca antes tanta desigualdade. Em 1990, 2 bilhões e 718 milhões de pessoas, ou seja, 45% da população mundial viviam com menos de 2 dólares por dia; em 1998 eram 2 bilhões e 800 milhões (BANCO MUNDIAL, 2001). Atualmente se estima que um bilhão e 200 milhões de pessoas vivem com menos de um dólar por dia. Sob essas condições, cada vez mais assistimos a uma emigração desesperada em nível planetário, dos países mais pobres para os países mais ricos. A miragem da migração, como opção para melhorar a qualidade de vida, restaura o mito do desenvolvimento, proposto pelos países ricos, como solução à pobreza nos anos 60. O caso trágico da emigração do norte da África para a Europa e a situação dos imigrantes clandestinos nos Estados Unidos, entre outros, são dois dos dramas humanitários contemporâneos mais importantes e constituem um grande desafio para todos: assumir o respeito pela dignidade humana. Cada vez mais os jovens abandonam seus lugares de origem para buscar – com ou sem êxito – uma melhor qualidade de vida, onde for possível. As migrações sempre vieram a enriquecer os países, porém representam igualmente um grande desafio e criam novos dramas e problemas. Os pobres buscam nos países ricos espaços de sobrevivência que não são acolhedores, nem generosos. Os casos de maus tratos, de racismo e de xenofobia que sofrem os imigrantes, são inumeráveis. A história das migrações tem marcado a história da humanidade. Atualmente, com o fenômeno da deslocalização, que provoca o fechamento das empresas e a destruição do mercado de trabalho nos países ricos, muitos dos habitantes de origem, que participaram 25


do povoamento desses países, são também excluídos e serão obrigados igualmente a emigrar, como os excluídos do Sul. O quinto paradoxo: como assumir a diversidade cultural? Como respeitar as diferentes visões de mundo, as diversas crenças religiosas? Como conviver, respeitando nossas diferenças, sem chegar aos extremos da perversidade do racismo, xenofobia e marginalidade? São grandes questões na atualidade e a educação, nesse contexto, tem um grande papel a assumir. A globalização é apresentada como uma grande abertura, mas é na verdade uma ameaça de uniformização cultural, que põe em perigo a preservação da diversidade cultural, despertando conflitos e recolhimentos identitários e nacionais, facilitando assim a emergência das inevitáveis consequências da intolerância e do racismo. Atualmente o racismo, no contexto europeu, constitui uma ideologia política de massas (MARÍN, 2002). Não somente se renegam as culturas, mas também os idiomas maternos. A língua tem uma extraordinária importância, uma vez que organiza o conhecimento de nossos ecossistemas, pela nominação. A língua é vital para construir nossas identidades e expressar nossa percepção de mundo e a concepção de nossas sociedades. A dominação cultural e linguística é coadjuvante da perda do patrimônio cultural de toda a humanidade. A imposição do inglês como língua veicular empobrece as culturas e as línguas locais. O sexto paradoxo: em 1980, 81 países deram passos significativos para a democracia; 33 regimes militares foram retomados por governos civis; fez-se mais transparente a presença e a ingerência das ONGs (PNUD, 2002). Porém a possibilidade de realizar a democracia encontra grandes obstáculos. É evidente o enfraquecimento dos Estados-Nação como modelos políticos para organizar institucionalmente a sociedade, diante da emergência dos poderes e das instituições transnacionais, que controlam os novos setores de poder das finanças, da informação e das comunicações e determinam as decisões do poder político sobre a sociedade. O caso da crise Argentina é um bom exemplo dessa dramática realidade (LEWKOWICZ, 2003; STIGLITZ, 2002; UNESCO, 2003). 26


Atualmente, a imposição militar da hegemonia geopolítica dos Estados Unidos cria a insegurança no destino da humanidade. Essa incerteza se encarna na tragédia imposta ao povo iraquiano. De março de 2003 a outubro de 2004, são cem mil as vítimas civis da invasão norte americana no Iraque. Entre 1992 e 1995, morreram na Bósnia aproximadamente 200 mil pessoas e 500.000 em Ruanda, em 1994. Diante disso, primeiramente é necessário compreender que a globalização atual do sistema econômico capitalista sob o signo da ideologia neoliberal não é sinônimo de livre comércio. Assinalar essa premissa permitir-nos-á compreender as transformações sociais que se estão produzindo nos últimos vinte anos. Identificamos a ideologia neoliberal com a depauperação e o desmantelamento do Estado. Esse processo histórico implica em que as decisões mais importantes escapem da gestão dos governos estatais pretensamente democráticos. As decisões são tomadas de acordo com os interesses das empresas multinacionais e dos organismos internacionais, como o Banco Mundial (BM), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização Mundial do Comércio (OMC). A influência preponderante dessas instituições sobre a orientação que deve tomar o desenvolvimento econômico, social, cultural e educativo do mundo é um dos aspectos da globalização importante que seja assinalado e mais investigado (MARÍN e DASEN, 2007). Os setores democráticos e todas as instituições da sociedade civil teriam que assumir um papel fiscalizador mais relevante nesse processo. Necessitamos ter uma visão global de nossas sociedades, para melhor compreender as implicações e consequências da globalização sobre as mesmas e sobre nossa vida cotidiana, em outros trabalhos e outros setores importantes como o social, a saúde pública e a educação. Os antecedentes históricos da globalização entendida como um complexo processo histórico de dominação têm suas origens na colonização da América, da África e, posteriormente, da Ásia e da Oceania. Esse processo de dominação nos mostra a tendência a universalizar os sistemas econômicos, políticos, religiosos, culturais e educativos. 27


Entre os desafios mais importantes a assinalar no terreno do conhecimento, no quadro da dominação cultural, poderíamos pensar no elevado custo das novas tecnologias, que são a origem e a criação de novas dependências, como sustento da dominação e do intercâmbio desigual.

4 Os desafios da globalização O início do terceiro milênio está marcado por mutações econômicas, sociais e culturais profundas que questionam as certezas e as verdades universais impostas desde muito tempo e nos obrigam a recriar o sentido da vida e a realizar esforços para imaginar um projeto de sociedade viável. Entre os desafios mais importantes poderíamos destacar o ecológico, o ético e da dignidade humana, o social e econômico, e o da educação. O desafio ecológico traduz-se pelo respeito à biosfera e à biodiversidade, o que implica evitar toda a destruição sistemática dos ecossistemas por um processo de industrialização, que não integrou a natureza como fator primordial da produção. Os conhecimentos científicos e as tecnologias que sustentam o processo de industrialização ignoraram a capacidade da natureza para suportar todos os efeitos contrários à sustentação de seu equilíbrio. É urgente repensar a aliança vital entre natureza e cultura, como fundamento essencial na construção do saber científico e tecnológico. A catástrofe de Chernobyl na Ucrânia, em 1986, revela os limites dessa visão de mundo e nos expõe um grande desafio epistemológico. A ausência da natureza no pensamento científico atual explica a incapacidade tecnológica para controlar a radioatividade, a destruição da camada de ozônio, o manejo dos resíduos industriais e radioativos. O perigo das manipulações biogenéticas e suas consequências posteriores e o uso irracional de tecnologias, em cuja concentração está ausente a dimensão ecológica, são os fatores de uma nova geração de enfermidades. Necessitamos integrar a dimensão ecológica não só em termos da economia, mas, também, em todos os domínios nos quais 28


se constrói o conhecimento. A educação é o território no qual pode produzir-se a reconciliação entre a natureza e a cultura. Evidentemente, este é um aspecto que implica repensar nossas visões de mundo, que são aquelas nas quais se encontram as raízes da crise ecológica contemporânea (WHITE, 1973). A preservação dos climas e o respeito pela biodiversidade foram os temas de discussão nas reuniões internacionais do Rio de Janeiro em 1992, em Kyoto em 1997 e novamente no Rio de Janeiro em 2012 (RAMONET, CHAO e BOSNIAK, 2003). Esses acordos internacionais, para preservar a biodiversidade e o clima, contam com a oposição aberta dos Estados Unidos da América, que argumentam a partir da oposição entre esses acordos e o progresso econômico. A capacidade de respeitarmos os demais é a base da construção da dignidade humana, e está relacionado ao desafio ético. Atualmente, a falta de ética se traduz na corrupção do sistema político que supostamente deveria administrar a democracia. O caso dramático da invasão norte americana e seus aliados no Iraque pretende justificar-se em nome da imposição militar da liberdade e da democracia, que disfarça muito mal uma verdadeira guerra de saques imperiais, para apropriar-se pela força dos jazigos petrolíferos desse país. A dignidade nos permite ocupar um lugar na sociedade, sustentada no reconhecimento e no respeito de nossos direitos. Esse reconhecimento é a base sobre a qual se constroem nossas identidades, a partir das quais logramos dar um sentido à nossa existência. A educação tem uma grande tarefa na proteção e na preservação da dignidade, desde o âmbito familiar até a escola. Entretanto, essas afirmações contrapõem-se aos paradoxos da exclusão desumanizante que a globalização produz, com mais da metade da humanidade completamente marginalizada e em condições miseráveis. Trabalhar contra a depreciação, ou auto-depreciação que impõe a dominação é uma das grandes tarefas da educação. Não esqueçamos que depreciar, para justificar a opressão, foi regra de ouro desde a época da dominação colonial. Reconstruir a estima e o respeito, de que todos necessitamos, é uma árdua tarefa. Não somente se valorizam as pessoas, mas, também, devem-se valorizar 29


suas culturas e seus idiomas, uma vez que esses organizam seus conhecimentos, pela nominação. A imposição, por exemplo, de uma educação oficial reprodutora da cultura ocidental e o castelhano como idioma oficial na região andino-sulamericana, onde as culturas e idiomas tradicionais quechua e o aymara tradicionalmente existem durante muitos séculos, é um ato de destruição cultural, um etnocídio. Proibir ou menosprezar as línguas que organizam o conhecimento dos saberes locais, pela nominação dos ecossistemas, significa um ato de destruição do patrimônio cultural andino, patrimônio esse que levou séculos para construir-se. O castelhano tem somente uma palavra para nominar a batata, mas estes povos conseguiram classificar mais de mil variedades de batatas, dando-lhes um nome a cada uma. Esse exemplo histórico é muito eloquente para revelar a relação desigual entre os saberes locais e os saberes pretensamente universais, ou globais. O idioma é o espírito e o veículo da dimensão afetiva das culturas. Reconhecer que os outros também possuem conhecimentos é admitir o valor e a pertinência de suas culturas e, é também outorgar-lhes uma posição de interlocutores. Todas essas são premissas fundamentais para construir o diálogo intercultural, como fundamento democrático da educação. O desafio social e econômico está relacionado ao desenvolvimento das novas tecnologias da informação e da comunicação. A informática e a robótica transformaram profundamente a paisagem industrial, e conhecemos a gravidade das fraturas sociais que vieram com sua implementação. O mercado de trabalho foi reduzido ou destruído, em muitos casos, provocando altos percentuais de desocupação, o que por sua vez provoca uma grande dissolução do tecido social, fragmentando as famílias e os indivíduos, que sofrem esse processo de marginalização. A perda dos postos de trabalho provoca uma crise de identidade, uma crise existencial, mais ainda na sociedade industrial, na qual a única identidade que os trabalhadores possuem é a de seu próprio trabalho. Perder o trabalho é perder seu lugar na sociedade, o que pode significar um grande drama, o qual se estende igualmente a suas famílias, que sofrem o estigma implicado nessa situação. 30


Essa exclusão crescente destrói a dignidade e a identidade de quem sofre, como sujeito, esse processo. O grande desafio é pensar em uma sociedade que nos permita ser, para podermos realizar nossas aspirações mais nobres e não nos limitarmos a possuir, reduzindo nossa vida a produzir e a consumir, como fazemos compulsivamente hoje em dia. A sociedade humana necessita reconstruir-se e aí reside o desafio da globalização no domínio da educação, tendo em vista a construção coletiva um projeto viável de sociedade. Refletir sobre a educação, construir conhecimentos e didáticas para proceder a suas ações, já não é mais a tarefa de alguns indivíduos e sim, uma tarefa que compromete o conjunto da sociedade, que se confronta com múltiplos desafios. A educação é a instituição social, por excelência, que responde à pergunta central em todas as culturas: como proceder à ação com os conhecimentos e as visões de mundo, os sistemas de valores e outras referências, necessários para dar um sentido à nossas vidas? Isso posto, há a necessidade de se levantar outras perguntas: a) como proceder ao trabalho pedagógico com as visões de mundo que associam a natureza e a cultura? b) Como propor uma educação que preserve a biodiversidade, a diversidade cultural, a pluralidade e as diferentes concepções religiosas? Como criar sistemas de valores que recriem a solidariedade e reforcem uma dimensão humana coletiva, sabendo que todos necessitamos de todos os demais? Como fomentar concepções que associem o global e o local? Como difundir concepções que restabeleçam em nosso pensamento as relações entre as partes e o todo? Como produzir conhecimentos que associem projeções, identidades e transferências entre o racional, o emocional e o afetivo, concebidos como uma totalidade? Como proceder para comunicar os mesmos, a partir do contexto natural de nossos sistemas ecológicos e de nosso contexto histórico, cultural, social e político? Como projetar nosso trabalho educativo a partir de nossos próprios sistemas de valores, levando em conta que o processo de globalização, ao privilegiar o individualismo, tende a perverter os fundamentos da solidariedade e, dessa maneira, busca degradar os princípios da coletividade? 31


A ideologia neoliberal considera que o indivíduo é o ator principal da sociedade, totalmente isolado dos demais, divorciado da sociedade real na qual vive. O individualismo encarna um egocentrismo no qual se incorporam os novos valores que asseguram o êxito, tais como a competitividade, a mobilidade, o pragmatismo, o utilitarismo e a monetarização das relações humanas. A concepção neoliberal não leva em conta uma realidade na qual o homem não se constrói só, em que todos nós nos construímos mutuamente e onde não pode existir o eu sem o tu. Desta maneira, propomos algumas sugestões: a) definir o contexto local, a partir do qual trabalhamos, valorizando o que somos e o que sabemos para nos relacionarmos nas melhores condições com o global; b) assinalar a importância de definirmos, desde a realidade e da prática social, os aspectos da complexidade e da multidimensionalidade de nossas sociedades; c) projetarmos o futuro, a partir de nossas referências espaciais e culturais da diversidade, do contexto ecológico e a partir da rica diversidade cultural que impregna a realidade latino-americana; d) construirmos nossas vidas a partir de nós mesmos, de nossa própria autoestima, valorizando o que somos como condição primeira para crescermos em nossas possibilidades, a partir de nossa realidade, reforçando assim nossa dignidade. A tomada de consciência histórica é fundamental para compreender o presente e imaginar o futuro; e) Superar a perda da autoestima é uma conquista que está na relação direta com a aceitação da valorização de nossos saberes e percepções, considerados como inferiores ou subdesenvolvidos; f) revalorizar os saberes locais passa por revalorizar a estima e a dignidade das pessoas que os possuem. A dimensão afetiva é capital no trabalho educativo: não somente se procede à comunicação dos conhecimentos, mas também de afetos portadores do reconhecimento de que todos necessitamos; g) definir o local e o global, para construir um conhecimento que explique as relações e as implicações que existem entre essas duas dimensões. 32


Mas, como integrar os fragmentos para reconstruir a totalidade e ter em conta suas múltiplas dimensões, sua complexidade e sua multiculturalidade? Como restaurar o olhar de peixe, para recuperar uma visão global de 360º, longe da focalização na qual nos temos encerrado e limitado por tanto tempo? Como unificar em uma só ótica os conhecimentos locais e os conhecimentos globais, estabelecendo-os em seus diferentes contextos e buscando construir sua complementaridade? Na busca de uma perspectiva intercultural, que admita a igualdade dos conhecimentos, para além de toda categorização e hierarquização que nos foram impostas pelo etnocentrismo da dominação cultural ocidental, a perspectiva intercultural pode permitirnos revalorizar os saberes locais e criar as condições para compartilhá-los, em uma perspectiva de complementaridade, que vá além da mesquinha realidade da lógica do saber, traduzido como poder e como dominação. Trata-se de associar os conhecimentos produzidos pelo ocidente com os conhecimentos produzidos pelas culturas tradicionais, locais ou regionais, considerando seus contextos de produção. Como exemplo concreto dessas reflexões, podemos citar o caso da experiência do Programa de formação de professores indígenas em educação bilíngue e intercultural, que atualmente funciona em Zungarococha, perto da cidade de Iquitos, na Amazônia peruana. Essa experiência educativa é muito importante, na medida em que nos permite imaginar como assumir as relações entre os conhecimentos locais e os conhecimentos universais ou globais, utilizando a perspectiva intercultural. O Programa parte do princípio de que é possível construir um sistema educativo capaz de elaborar uma série de estudos que incorpore os saberes locais indígenas, trazidos pelos especialistas indígenas de cada uma das etnias que nele participam, associando-os aos saberes da educação ocidental (universal/global), que são elaborados pela equipe interdisciplinar de professores. Os princípios em que se baseia esse Programa são: associação da educação tradicional com a escola ocidental; rejeição a um sistema único de escola; recusa da oposição escola tradicional X escola 33


moderna/oficial; oposição a uma ideologia assistencialista; rejeição de uma simples tradução da cultura ocidental aos moldes da educação bilíngue; afirmação de uma educação bilíngue e intercultural; aprovação da aprendizagem do castelhano como segunda língua; sinalização favorável a uma educação vinculada à ecologia (associando a natureza com a cultura); e afirmação de uma educação associada à realidade socioeconômica, política e cultural (MARÍN, 2002). Esses fundamentos educativos tratam de evitar as falsas oposições, próprias à imposição de uma cultura dominante e buscam a complementaridade, o diálogo dos saberes, a interaprendizagem, com base na modéstia e na escuta do outro, no respeito da outra cultura e de seus saberes. Estas são as condições para construir um programa desse tipo: uma educação que parte do reconhecimento de todos os atores, respeitando sua dignidade e fundamentando-se no diálogo. Uma das principais originalidades da revalorização dos conhecimentos ecológicos tradicionais indígenas pode ser a Proposta de Regime de Proteção aos Conhecimentos dos Povos Indígenas sobre a regulação e o acesso aos recursos genéticos. O Peru é um dos poucos países, juntamente com o Panamá, a Bolívia e as Filipinas, que propôs um regime sui generis para preservar conhecimentos ancestrais (GALVIN, 2002). Esses conhecimentos locais sobre a biodiversidade da Amazônia, reconhecidos globalmente, podem ser talvez um exemplo para imaginar uma relação democrática entre os conhecimentos locais e os conhecimentos globais ou universais. Esse programa obteve em 2002 o reconhecimento da cooperação internacional da América Latina, como um dos melhores projetos e, no ano de 2004, a Fundação Andrés BELLO veio a conceder-lhe um prêmio. A perspectiva intercultural se dá em um processo de inter aprendizagem, sem as perversidades que criaram as relações entre culturas dominantes e culturas dominadas (MARÍN, 2002). A ótica intercultural nos permite criar as condições para realizar um diálogo intercultural, que permita o reconhecimento de que todos somos capazes de produzir conhecimentos. Reconhecer que cada um possui conhecimentos é o princípio fundamental para construir a dignidade de que todos necessitamos. A preservação da dignidade e a incorporação da di34


mensão afetiva são essenciais para realizar toda a aprendizagem, nas melhores condições. Desvalorizar as percepções e os saberes locais implica igualmente em um processo que vem erodindo a dignidade e a identidade de quem sofre essa agressão e que, em muitos casos, termina assumindo sua inferioridade. Refletir sobre os efeitos nefastos do colonialismo mental, sobre a necessidade de pensar a partir de nossas realidades e construir a teoria, a metodologia e a didática apropriadas a nossas realidades cotidianas, sem negar a valiosa abordagem do conhecimento teórico, metodológico e didático de outras realidades.

5 Educar para construir uma visão global Precisamos relacionar em uma só ótica os conhecimentos locais e os conhecimentos universais ou globais, estabelecendo-os em seus diferentes contextos e buscando assinalar os aspectos comuns e válidos que nos permitam construir a complementaridade, para evitar todas as falsas e aberrantes oposições que a dominação cultural criou e que opõem: cultura X natureza; cultura escrita X cultura oral; intuição X racionalidade. Mas, como pensar a partir de nós mesmos, dos povos do Brasil, da América Latina, na sua diversidade de povos indígenas, europeus, africanos, asiáticos, de nossa mestiçagem cultural, para crescermos e construirmos um projeto de sociedade viável, a partir do que somos? Como crescer a partir de nossas raízes, desde nossas realidades e em função de nossas necessidades, abertos ao mundo como se abrem os ramos de uma araucária, para namorar o horizonte? Como estar abertos ao mundo exterior e pensar localmente para agir globalmente? Algumas proposições, inspiradas na valiosa contribuição de Edgar Morin (2000), em suas reflexões sobre Os sete saberes necessários para uma educação do futuro, parecem-nos pertinentes: a) utilizar uma ótica e uma prática interdisciplinar que nos permita abordar a multidimensionalidade da realidade, para tratar de compreender a complexidade; 35


b) entender e valorizar a diversidade das inteligências, para criar as condições de um diálogo intercultural, que nos permita compartilhar os conhecimentos em uma perspectiva de complementaridade; por exemplo, entre os conhecimentos da medicina tradicional e os da medicina ocidental; c) educação para o erro, para a ilusão e para o conflito: educar para os diferentes tipos de erros; para entender a rigidez dos paradigmas; para acompanhar a incerteza e a dinamicidade do conhecimento. O conflito também é uma fonte de aprendizagem; d) educar sobre nossa condição cósmica e sobre a diversidade humana. Educação intercultural, que nos permita respeitar a diversidade e a pluralidade dos indivíduos. Valorização da dimensão afetiva, fundamental para a comunicação e a ação com os conhecimentos; e) educação para a importância da ética: tomada de consciência sobre os desafios éticos, ecológicos e as ameaças que devemos enfrentar para defender a dignidade humana. Tomada de consciência sobre os limites da modernidade; f) educação para a compreensão: contra o egocentrismo e o etnocentrismo e contra todo reducionismo, buscando a tomada de consciência da complexidade humana. Educação por uma ética como fundamento de uma cultura planetária; g) Educação política: uma educação que fomente a participação e o diálogo entre os cidadãos, como seu fundamento, capaz de fazer viver os princípios desse paradigma, tão evocado e tão pouco praticado; h) definir a importância da História como uma contribuição fundamental para compreender as origens e para saber situar-nos no presente, e assim podermos vislumbrar o futuro; i) definir a importância da interdisciplinaridade como a única possibilidade para recuperar a visão global e manejar os conceitos de totalidade, de globalidade e de Interculturalidade j) associar a democracia como base para a gestão social e política e apoiar-nos na perspectiva intercultural, como fundamento para a gestão de nossa diversidade cultural; k) definir os conhecimentos locais em função do contexto 36


ecológico no qual se produzem, valorizando seu domínio e relativizando-os em função da existência de outros conhecimentos, produzidos em outros contextos com características próprias e circunscrevê-los a essas realidades; l) construir uma concepção educativa para associar conhecimentos locais e conhecimentos globais, que nos permitam pensar localmente para atuar globalmente. Esse debate sobre a globalização, como quadro histórico das relações entre conhecimentos locais e globais ou universais, está em construção. Portanto, esse ensaio tem um caráter introdutório e limitado sobre uma problemática muito ampla e complexa. Isso pode explicar porque nossa reflexão contribui com mais perguntas do que respostas.

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CAPÍTULO II

A PRÁXIS INTERCULTURAL: uma experiência dialógica para a educação cidadã Álvaro B. Márquez-Fernández

1 Palavras iniciais Os projetos emancipadores e interculturais que as novas cidadanias vêm postulando são cada vez mais numerosos e, por sua vez, estão servindo como resposta efetiva às políticas de expansão e globalização neoliberal. Em quase todos os cenários internacionais encontramos indícios suficientes que tornam clara e objetiva outra concepção de conviver em sociedade considerando muito mais importante o diálogo cidadão que a estrutura econômica do poder político do Estado, que é a que tem prevalecido como centro organizacional das instituições. Os coletivos cidadãos subordinados começaram por uma desobediência pública às normas do poder estatal, reorganizando seus papéis sociais por meio de programas educativos direcionados à formação cidadã, em consonância com seus papéis culturais tradicionais e, com maior capacidade de resposta diante das pressões do Estado a fim de obter e manter o controle da cidadania afeita a seus interesses. Por parte do pensamento neoliberal, as transformações sociopolíticas do Estado seguem considerando como um problema vinculado às políticas públicas que permitem reforçar as pressões econômicas do desenvolvimento capitalista, e de modo algum como um sintoma radical dos desenvolvimentos educativos de uma cidadania que se sente comprometida com suas fontes culturais originárias; e, mais ainda, com a necessidade de abrir espaços de coexistência humana com o Outro, em condições democráticas de igualdade para participar dos poderes públicos de Estado. 41


Frente ao modelo neoliberal a consciência do ser social emancipador promove substanciais alternativas de mudanças para poder transformar o Estado, e dirigi-lo mais para o lado das comunidades interculturais e cidadanias populares e públicas, do que para as lutas das classes sociais e a economia de mercado. É urgente, então, levar em consideração as propostas de mudanças que são apresentadas pelos movimentos sociais alternativos e emancipadores, em especial, os que surgem na América Latina, para gerar uma experiência educacional de formação cidadã que possa aprofundar a discussão sobre os assuntos públicos inerentes aos interesses e necessidades de uma cidadania que se realiza politicamente através do diálogo com o Outro, sendo que é somente por meio deste que a identificação, reconhecimento e alteridade dos cidadãos podem abrir o espaço de convivência intercultural segundo autênticos princípios de democracia social. Os projetos de mudanças sociopolíticos que estão em curso podem perfeitamente associar-se às teses da filosofia intercultural, que pensa sua teoria e se realiza na sua práxis, a partir de um ponto de vista ontológico onde o sentido existencial da liberdade atua como propulsor de uma concepção da vida que seja suficientemente tolerante e inclusiva, com suficiente força dialógica para quebrar o paradigma neoliberal da globalização no seu esforço de unificação das diversidades culturais.

2 O contexto global de uma educação para a convivência cidadã As crises das formas hegemônicas da política que se manifestam atualmente no Estado da modernidade neoliberal são uma consequência direta de vários cenários, a saber: i) a escassa integração social que sofre a maioria da cidadania permitindo sua absorção na institucionalidade do sistema político, devido à sua precária participação na formação de uma opinião pública que sirva de elemento de inclusão na representação social do Estado; ii) a minimização de direitos públicos que possam servir de garantia para um exercício democrático do poder político tornando admissível a dissidência e a crítica quando as reivindicações que estimulam a cidadania reque42


rem respostas e soluções urgentes para a supressão da conflitividade social; e, iii) finalmente, o controle social que sofrem, através da repressão mediática ao discurso, as práticas comunicativas e dialógicas da cidadania para abrir-se desde um mundo intercultural até outras formas societárias mais justas, cuja origem e sustento se fundamentam numa ética que promove a convivência com o Outro. Estes são apenas três dos principais cenários onde se observa, muito empiricamente, as agudas crises sistêmicas pelas quais atravessa atualmente a sociedade neoliberal globalizada e, obviamente, têm repercussões muito negativas ao desenvolvimento endógeno das sociedades neoliberais. E, com certeza, é inegável sua presença nos países latino-americanos que, cada vez mais estão inseridos nos projetos de mudança e transformações que se desenvolvem em suas cidadanias. As sociedades da chamada época Moderna geraram alguns determinismos ideológicos, tecno-científicos e culturais centrados exclusivamente na capacidade reprodutiva do sistema econômico que ultrapassaram e minaram negativamente as fronteiras antropológicas da própria existência humana, infringindo, também, radicais desequilíbrios aos complexos ecossistemas de vida de toda a natureza (BOFF, 2000). O princípio de subsistência se baseia em um exercício de racionalidade instrumental que tem sido capaz de impor-se através do domínio do mercado e da técnica naqueles espaços de autonomia e de liberdade requeridos pelo ser humano para um desenvolvimento sustentável, que permita orientar o sentido de sua existência num mundo de vida compartilhado com outros seres humanos em paz e felicidade. Nestes países desenvolvidos do primeiro mundo, as condições de vida dos seres humanos são tremendamente insuficientes para satisfazer as necessidades da vida cotidiana, apesar dos grandes avanços tecnológicos que bem poderiam estar a serviço de programas de assistência pública permitindo reduzir à mínima expressão a marginalidade e a exclusão. No entanto, o valor do capital se orienta para a obtenção de maiores quantidades de mercadorias para tornar viáveis as estruturas de consumo das quais se reproduz o capital, deixando de lado os sujeitos humanos e suas condições de vida. 43


Estamos na presença de um modelo social exemplarmente centralista e uniforme, onde o controle sobre as mobilidades sociais responde perfeitamente aos princípios universais da racionalidade instrumental, onde o Outro é sempre um ser vivo que vive sua vida no interior de processos de permanente alienação ideológica, política e cultural (HINKELAMMERT, 1998). Seres humanos vivos na tentativa de obter um desenvolvimento político em consonância com a natureza social de suas diversas necessidades, são situados à margem de práticas revolucionárias que podem diretamente infringir, no sistema de repressão social, críticas severas, desacatos e greves, que em pouco tempo possam gerar sobre o sistema de domínio, processos de fragmentação ou desintegração social. Trata-se de evitar este cenário futuro a partir de um poder hegemônico que se instala no imaginário do coletivo social com uma suficiente pertinência ideológica capaz de suscitar e motivar a possibilidade de fazer parte, da formação cidadã pública, dos sistemas de controle social da institucionalidade do Estado. Isso é o que explica o porquê de muitos dos movimentos sociais emergentes (QUESADA, 2002) terminam, nos seus fins insurrecionais, neutralizados pelas ideologias do poder e, em consequência, diversificados através de um tecido político que serve de apoio socializante aos conflitos. Deste modo se favorece uma estrutura discursiva propensa à tolerância que permite resistir ao arranco dos sujeitos sociais emergentes no seu propósito de questionar a ordem de poder já que comprometem sua participação popular e pública através de alternativas políticas de mudanças profundas. Essa cidadania ativa não pode entender-se como um tipo de voluntarismo romântico ou espiritualmente espontâneo, como às vezes se pretende qualificar pelas forças que reforçam a legalidade do Estado. Ao contrário, essa força de resistência cidadã vem de raízes muito mais profundas que se encontram na origem cultural de seus símbolos, valores, representações e discursos. Não respondem ao deslocamento orgânico de forças sociais capitalizadas pelos partidos políticos ou as instituições tradicionais da legalidade estatal. 44


Eventualmente poderiam ser classificadas como forças de insurgência cidadãs associadas ao pensamento crítico de esquerda, tão somente para guardar uma convenção clássica em termos de simplificação política. No entanto, esta é uma distinção insuficiente, pois, se trata de um processo social e de uma práxis política cuja conscientização surge e se projeta desde as origens ou fontes onde a consciência cidadã busca e registra suas memórias históricas mais ancestrais, para apreender delas as formas de resistência e de lutas contra a repressão e a opressão a uma razão histórica que tenta contê-la a partir da sua agregação à cultura dominante. A partir desta perspectiva filosófica acerca da interpretação que devemos fazer da realidade colonial, na qual se inserem os processos de expansão global da sociedade neoliberal capitalista, se deve assumir o projeto de uma filosofia intercultural que emerge e resgata a partir de sua consciência desideologizadora do mundo, as representações concretas de sua historicidade. A presença da subjetividade de um sujeito (ACOSTA, 2005) que assume seu contexto histórico sem deixar de estar em comunhão com o tempo passado do qual é herdeiro pela tradição e por sua língua. Atualmente a presença destes sujeitos e indivíduos, estes atores e cidadãos da política, se encontram em processos de integração social que lhes permite compreender a realidade a partir de uma multiplicidade de sentidos e de interpretações, pois o entrelaçado no qual se configuram as realidades da realidade não é um único, mas múltiplo e disforme. O acesso ao espaço público do Estado nacional neoliberal vem sofrendo uma ampliação com a presença humana desta diversidade cultural de seres vivos que estão demandando condições de vida e de bens, direitos e deveres. Devem abrir a coexistência entre todas as formas para satisfazer suas necessidades e interesses que se encontrem em relação direta com a participação de todos no exercício dos poderes políticos e, em especial, do direito à palavra como o principal poder para relacionar-nos comunicativamente através do diálogo. A democratização da institucionalidade do Estado deve passar, então, pela interpretação de uma realidade social para a qual converge uma práxis política que esteja nas mãos da cidadania 45


pública. Esta teoria social será o resultado de uma pedagogia do ensinar e uma poiésis do aprender (KOHAN, 2008), em cujo seio primam aqueles valores culturais por meio dos quais os cidadãos se representam e simbolizam. Já não será o Estado, por conseguinte, quem detém o poder para induzir a regulação de uma determinada ordem do espaço público a favor de um controle social excludente onde o Outro se encontra subordinado, marginalizado ou excluído, despojado do direito de sua língua e palavra; quer dizer, de seu discurso (GOGOL, 2004). O desaparecimento deste tipo de controle estatal monocultural, é possível na medida em que a tomada de consciência desde a cultural particular, individual ou regional de cada ator ou sujeito, se torne manifesta por meio dos papéis políticos que servem de identificação popular e torne viável seu acesso ao encontro com os Outros que residem nos espaços de consenso, deliberação e crítica. Referimos-nos a tudo o que existe através dos diversos discursos públicos (MÉNDEZ, 2004) que fazem parte dos processos de interação comunicativa da cidadania, na qual todos os atores da cidadania popular têm o livre direito à participação no uso dos poderes comunicacionais que são requeridos para cumprir com as práxis políticas. Deste modo nos situamos num sistema complexo de inter -relações toda vez que estas novas cidadanias emergentes requerem sistemas de poder abertos (SOTOLONGO, 2006), sem as restrições do controle social que ampliam as forças da legalidade estatal, para poder democratizar uma cultura cidadã de participação equitativa e igualitária. Referimos-nos, então, a uma crítica política do contexto histórico da globalização neoliberal, que deve ser superada a partir de uma interioridade do sistema no sentido contra -hegemônico, o que muito bem pode dar início a uma interpretação do poder de relações valorativas por meio das quais uma cultura se torna crítica do sentido de apropriação do Outro, que surge de todo poder para controlar, mandar e obedecer (HIDALGO FLOR e MÁRQUEZ-FERNÁNDEZ, 2012). Não se deve tolerar ou aceitar, a centralidade do poder como a prática que dota de sentido unívoco o poder, pois o sentido 46


que serve de contexto político ao reconhecimento do poder, surge e se manifesta de outras referências simbólicas das culturas ou saberes daqueles que são parte da cidadania na sua diversidade. Aqui se aponta, desde cedo, para um olhar intercultural que na sua reflexão e discussão filosófica, abre o espaço dos poderes da política para uma cidadania que se deveria ir democratizando na medida em que se torna prático para todos uma política governamental que tenha seu fundamento numa educação em direitos de cidadanias, e não em direitos normativos que identificam e reconhecem o Outro nas diferenças de classes, partidos, instituições, grupos, elites. A educação cidadã, do e para o Outro (PANIKKAR, 1990), quebra o paradigma positivista da racionalidade moderna que busca sintetizar no pensamento único, a diversidade da condição humana da qual o mundo é um resultado múltiplo e diverso para sua alteridade; se propõem outros horizontes de compreensão que se expõem, associam e inserem, em correlatos de vidas emancipadas onde os seres humanos se encontram entre si e com outros, para reconhecerem seus rostos nas suas culturas cidadãs, sociais e políticas. É sobre estes espaços de reencontros de alteridade onde se pretende situar o projeto emancipador e libertador da educação pública na construção dos novos papéis políticos de uma cidadania, que se identifica plenamente com a democratização do poder através dos valores e práticas de suas culturas cívicas. Neste aspecto, a ação política da educação pública tem como norte, indagar e buscar, por conseguinte, através desse reconhecimento do Outro, tornar-se parte do sistema de diálogos emancipadores, através dos quais se orienta a democracia social das cidadanias. E este diálogo com o Outro, é um diálogo existencial (PÉREZ-ESTÉVEZ, 2013) onde o outro aparece libertado da falsa representação da cultura dominante, expressamente conscientizado de que nas pragmáticas dos intercâmbios discursivos que servem de identidade a cada um dos atores ou interlocutores participantes, a necessidade de apresentar e compartilhar seu mundo subjetivo em beneficio da integração e a participação comunitária é a aspiração de todos.

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3 O cidadão desejável da polis intercultural A partir de uma perspectiva filosófica da interculturalidade, esta polis ou cidade-estado que responde a um ideal ético da convivência humana, proposto pelos gregos, hoje alega ser relevante construir uma polis da diversidade por meio de um logos racional que possa ser reconhecido, na sua alteridade, pelas formas de governabilidade nas quais o Estado sustenta sua legitimidade. Uma das principais características dessas formas de governar é através de uma relação direta de convivência em comum no marco legal de direitos humanos que nos permite compreender o desenvolvimento da polis como um espaço de alteridade onde se admite a diversidade do Outro na sua mais genuína pluralidade cultural e de saberes originários (SIDEKUM, 2003). Os direitos cívicos da cidadania são uma consequência da obtenção de novos direitos políticos adquiridos por meio de processos de inclusão social, que dependerão da capacidade consensual e de tolerância dialógica de cada um dos discursos que a cidadania carrega em seu esforço para debater a interpretação coletiva dos interesses em foco na reprodução do sentido da realidade. É óbvio que se deve partir de uma onto-semiótica que permita interpretar os conteúdos vivenciais da realidade dos Outros, uma vez que as práticas comunicativas ocorrem através de uma ordem do discurso onde o Outro se apresenta e se manifesta, e isso requer uma compreensão do Outro a partir de uma existência humana concreta que impede qualquer omissão ou negação de suas singularidades. O Outro que é ser, indivíduo, cidadão, carrega e se desloca de seu mundo subjetivo para um encontro com Outros sem diminuir ou simplificar as relações de alteridade, ou seja, se expõem num espaço que é por sua vez único e diverso, comum e plural, diferente e alternativo, libertador e crítico, com a intenção de nos constituirmos do Outro, a partir do ser singular que somos, que se recria intersubjetivamente ao sentir-se chamado ou interpelado por outras hermenêuticas culturais que falam do mundo de vida com outras representações e símbolos. 48


O cidadão que se reeduca para compartilhar a vida intersubjetiva a partir da polis intercultural (SIDEKUM e HAHN 2007), está disposto a aprender o uso retórico da palavra e o uso dialético da racionalidade. Dos universos de encontro com o Outro se pode aprender sua subjetividade existencial, e a partir disso recriar o espaço de convivência onde a transformação do logos filosófico se alcança pela pluralidade das significações do sentido da realidade e do universo perceptivo das diferenças culturais. Quer dizer, o mundo compartilhado se aprende de uma educação muito mais complexa que supera os princípios instrumentais de educar o cidadão a partir de normas lineares e gerais que privilegiam a igualdade objetiva dos seres face à unificação do mundo. Nesta perspectiva, a direcionalidade de estar no mundo responde a essa ordem lógica da razão instrumental, onde as vivências humanas da realidade são suprimidas pelas normas do comportamento e pela doutrina das leis. Encontramo-nos em uma sociedade neoliberal e global fechada e saturada pela coação da força da razão que se impõem sobre o campo subjetivo da sensibilidade da consciência - que resiste às forças insurgentes de outras formas de compartilhamento dos poderes políticos (o governo da polis), evitando por completo que se alcance a cidadania por causa do poder das leis. Precisamente, se propõe a partir da concepção filosófica intercultural, a desconstrução do monologismo da razão, a fim de fundar ou criar direitos humanos muito mais propensos para atendimento das necessidades de diálogo relacionados com os problemas pontuais da sociedade e da vida (HERRERA FLORES, 2000). A educação para a cidadania deve implementar e favorecer o desenvolvimento, a partir de uma concepção de cidadania onde a vida tenha sua real mediação e concretude através da palavra e do discurso. Sem estas possibilidades, as práticas políticas que podem fomentar e institucionalizar os cidadãos necessitarão de um sentido hermenêutico e dialógico que devem envolver os discursos sociais fomentadores da discussão pública sobre os valores relacionados com uma cultura e seus saberes - os quais se projetam desde o passado até o presente, buscando sua reinterpretação. 49


Esta questão é de principal interesse para a Interculturalidade, pois se trata de situarmos os espaços ontológicos das diversas intersubjetividades dos atores e interlocutores envolvidos nos diálogos e nas lutas para orientar o sentido político do poder do Estado. Atualmente esse poder que residia no Estado moderno, passa por uma discussão pública onde a cidadania - na sua abrangência existencial e suas práxis para repolitizar, desde suas bases, a política do Estado - assume o desafio de interpretar a força das leis através de bens comuns em termos de equidade e justiça social, a partir de relações sociais altamente humanizadas pelo diálogo com o Outro, sem o qual não é possível o reconhecimento (LÉVINAS, 1999). Lutar pela recuperação da vida do cidadão no desenvolvimento político de uma polis aberta à razão dialógica - um ser da polis onde esta é concebida e posta em prática desde a pluralidade dos logos (FORNET-BETANCOURT, 2001) - significa um avanço muito sensível nas mudanças de papéis sociais com os quais o poder da sociedade neoliberal vem-se consagrando como legítimo. A democracia social vem demandar a atividade de cidadãos que efetivamente possuem essa condição humana própria de toda racionalidade discursiva e dialógica. A cidadania intercultural advoga espaços compartilhados onde a conflitividade que se produz pelo exercício do poder possa ser dirimida através de um diálogo onde efetivamente a representação do Outro não se encontre autodeterminada por nenhuma forma de marginalidade ou exclusão. É um projeto de vida que responde a um princípio de responsabilidade ética que é capaz de reconhecer o Outro na sua singularidade, bem como o direito do Outro assumir os valores de sua polis cultural. É nesse universo de valores interculturais que se aposta nos direitos humanos, pois se trata de oferecer um status legal ou normativo capaz de democratizar a produção destes valores, cujas estruturas ou sistemas de convivência humana entre cidadãos com vários referenciais culturais dependem, uma vez que necessitam construir relações dialógicas nos processos comunicativos que servirão de sustentação para garantir sua coexistência. Esta é uma nova ordem da polis que privilegia o diálogo e 50


os processos de deliberação racional e de consenso, onde a inclusão do Outro, desde seus cosmos culturais originários, é aceita e negociada de um modo analítico, crítico, reflexivo, para que o resultado deste encontro-reconhecimento entre o eu e o tu, não seja afiançado por algum tipo de obrigação ou obediência que limite a autonomia e liberdade que permitem o desenvolvimento ético das culturas. Esta referência a respeito dos Outros e o benefício em comum a todos provenientes da alteridade, fornece aos cidadãos um status de responsabilidade moral que permite considerar, em termos de direitos humanos, o exercício dos poderes da polis como um bem comum desejável entre todos. A ideia central da proposta relacionada com esse tipo de cidadanias interculturais é uma resposta antiglobalizadora à cultura dominante das sociedades neoliberais tecno-científicas, que agrupam a diversidade cultural num padrão de condutas equivalentes às normas hierárquicas das leis da cultura hegemônica. Trata-se, portanto, de contrapor a este tipo de cidadanias condutoras do desenvolvimento neoliberal da polis, frente à alternativa intercultural de tornar inclusiva a diversidade das culturas no interior de um processo dialógico que dialetiza os argumentos da racionalidade política através do discurso público dos cidadãos, na elaboração de normas argumentativas da comunicação política. Assim, o cidadão consegue cumprir com os fins da sociedade toda vez que assume o poder da cidadania discursiva e pública, sendo capaz de ampliar e aprofundar os valores práticos que cada cultura se identifica, dando origem a outros espaços de intersubjetividade e de intercâmbios das práticas valorativas entre a diversidade da cidadania. É o ponto culminante que nos coloca na presença de um discurso político e uma dialogicidade da razão intercultural (VALLESCAR, 2013), com propósitos e fins explicitamente de coparticipação democrática nos poderes políticos. A noção do Outro como um sujeito vivo já não faz parte de uma estrutura predeterminada pelo poder institucional do Estado que não cessa de regular a autonomia e as liberdades - com a finalidade do controle explícito através da produção e do consumo, como também das ideologiasmas, sim, o Outro como sujeito de vida coexistencial que supõe a 51


presença e encontro entre aqueles sujeitos que se desenvolvem no mesmo contexto das interações e transformações da cultura para dentro e para fora. Se a diferença cultural é necessária para o reconhecimento do Outro, não é menos importante o fato de que o Outro, na sua condição de sujeito, se amplia num encontro intersubjetivo que permite a revelação de sua humanidade corporal e estética, linguística e simbólica, tradições e costumes, imagens arcaicas e renovadas da história comum, e tantas outras expressões das características com as quais uma cultura consegue reproduzir e reformular permanentemente suas formas de identidade cultural. Essa transformação ocorre por meio da atuação das cidadanias nos espaços políticos de interação social que são permeadas pelas culturas entre si. Não é, por conseguinte, a cidadania intercultural um mosaico ou miscigenação de culturas que se dispersam ou se camuflam através de um controle social que se impõe por causa do domínio de alguma delas. Não, pois este tipo de cidadão se reconstrói não por si mesmo, mas a partir do Outro que é sua permanente alteridade, para quem se dirige com a palavra e, dessa significação cultural da palavra, nutre o encontro comunicacional com a escuta de quem a percebe ou recebe ideias e pensamentos. Porém, o diálogo a partir do uso intercultural da palavra implica necessariamente uma hermenêutica do sentido (ORTIZ OSÉS, 2003) que, em princípio, se define como interpretação do Outro a partir de uma alteridade simbólica que é imanente à nossa. Pois é nesta condição humana de existência contingente dos cidadãos, onde a alteridade recria o espaço público, que se torna viável um encontro humano afetivo, evidente e fático com o Outro. É no seio subjetivo do cidadão, o receptor da ordem política dos poderes, que se torna emergente sua voz, sua palavra, sua dialogicidade com o Outro. A polis é polissêmica e retórica, devido ao agudo grau de discursividade que requer este tipo construção, por causa da intervenção do cidadão na sua condição de sujeito da diversidade. Os poderes da polis são os poderes argumentativos e consensuais, dissidentes e críticos, de uma cidadania que é educada na arte de aprender em comunidade de saberes. 52


4 Direitos públicos para uma educação intercultural O rompimento e a superação do Estado neoliberal se pensa geralmente ser de caráter, quase exclusivamente, econômico (SEBASTIÁN, 1997). A presunção desta única possibilidade carece totalmente de sentido. O sistema neoliberal pode dar mostras piedosas de um cristianismo humanista que concede parte do valor de sua economia e assim favorece grande parcela da humanidade que vive na pobreza. A sociedade do capital carrega em si a resposta para suas crises, contudo, não está em capacidade política de oferecer uma resposta à exigência da justiça social. Com efeito, compreende-se que a hegemonia política da sociedade neoliberal é uma consequência direta da superestrutura ideológica da qual se serve para justificar a exploração e a alienação; porém, também, é isso o que Gramsci assinala com clareza, pois, ela é criadora e portadora da “direção cultural da hegemonia” (GRAMSCI, 1955). Esta é uma afirmação de extrema importância para compreender o desenvolvimento das cidadanias dentro do projeto social do pensamento neoliberal que se vale desse domínio ideológico e hegemônico da cultura para sustentar o sistema de opressão que torna possível a reprodução do capital em qualquer de suas imagináveis formas de controle. Outro aspecto assinalado por Gramsci que serve de complemento ao domínio cultural é a administração da educação pública, e aqui aparece a extraordinária figura do intelectual orgânico (GRAMSCI, 1959) da qual se serve para explicar de modo convincente este processo de permanente recolonização ou, ao contrário, descolonização da cultura capitalista. Trata-se de entender a partir da perspectiva intercultural em construção na América Latina, as possibilidades que nos brinda a teoria gramsciana para relacionar cenários que se devem analisar a partir da perspectiva dos fenômenos complexos e dialéticos. Isso significa que os processos sociais e suas contextualidades políticas se encontram permanentemente inter-relacionados em mais de um sistema de representação e simbolização. Assim, o desenvolvimento político dos espaços cidadãos nos quais se assentam os meios de comunicação, tem reforçado processos de dissensão so53


cial por parte de movimentos sociais emergentes muito pontuais que permitem significativos debates em nível da opinião pública (HIDALGO FLOR, 2009). Assim, é no espaço público onde o reconhecimento dos direitos humanos ao exercício do poder político nos permite aceitar os sujeitos que buscam um reconhecimento de cidadão que foi confiscado pelo poder legal de uma cultura política monológica. Isto explica claramente o papel que cumpre a educação privada como reprodutora da ideologia da cultura dominante, que termina por penetrar em todos os interstícios do imaginário do coletivo social, anulando a natureza política de sua autonomia e pluralidade. O Estado neoliberal se intromete como órgão regular dos padrões de condução social de toda a cidadania direta ou indiretamente, de modo que, nada ou muito pouco escapa a esse tipo de controle social sobre o sentido crítico da racionalidade política, quando esta deveria surgir e obter seu reconhecimento a partir da diversidade cidadã. Os postulados da educação intercultural, propostos por diversos estudiosos latino-americanos (ANSION e TUBINO, 2007), nos permitem situar em um contexto de relações sociais muito estimulantes o pensamento alternativo e emancipador que sugere a filosofia intercultural, como uma práxis genuína para a criação de um novo sentimento humanista da sociedade. Nesse sentido, se insiste cada vez mais no aprofundamento do papel dos direitos humanos na geração de teorias sociais e políticas que permitam um maior acesso da cidadania, em duas direções: por um lado, nos cenários de poder e tomada de decisões na cogestão dos poderes do Estado através de suas instituições, e, por outro, na direção cultural, por meio da qual a sociedade civil obtém permanentemente suas adesões nas esferas do poder, sobretudo, graças às mediações dos partidos políticos. Porém, o papel público que poderia cumprir o cidadão na gestão e administração desses espaços públicos do poder, que servem de contexto para sua integração ao sistema democrático, depende diretamente do papel de mobilidade social obtida através da educação formal que é subministrada pelo Estado com o interesse 54


expresso de manter a legitimidade de sua hegemonia. De alguma maneira a permanência ou o retorno à política atravessa o sistema de legitimação institucional do Estado, graças aos direitos políticos de participação: o status quo que o governo confere aos cidadãos para mantê-los nos circuitos de poder, justamente, é o resultado da formação de cidadãos ideologizados através dos papéis que a educação cumpre. O Estado educa publicamente o cidadão para que este reproduza, na sua condição de intelectual orgânico, a ideologia que serve para defender as políticas de gestão pública que o governo exerce sobre todos os cidadãos. Uma cidadania uniformizada pelos códigos de conduta e de interpretação cunhados pelas autoridades do Estado, com a finalidade de reforçar as adesões e lealdades para seu exercício do poder (ALBORNOZ, 2003). Aqui podemos observar a complexidade destas relações de poder e força entre o Estado e a sociedade civil através das mediações culturais presentes no espaço público da educação privada por um lado, e a pública, por outro. Contudo, ambos os momentos da formação cidadã em valores democráticos correspondem aos fins propostos pelo estilo de governabilidade que serve de estrutura comunicacional do Estado para obter suas alianças. Observa-se claramente o sentido homogêneo e uniforme que imprime o poder político à possível diversidade dos contextos educacionais nos quais a cidadania é capaz de obter e consolidar em seus diversos papéis sociais. A possibilidade de pluralizar a gestão de governabilidade do Estado neoliberal, além do padrão de consumo estimulado pelas novas tecnologias da comunicação e da aprendizagem, é mínima porque a educação pública responde a um padrão cultural que se cristaliza na medida em que irá reforçar a ideologia da cultura dominante. Nesse sentido, trata-se de avaliar o impacto dos valores de consumo e reprodução, de uma cultura que encerra o ciclo hermenêutico unicamente a favor de uma reprodução cultural das massas. Aqui reside o senso crítico que significa compreender que, no espaço público, os direitos políticos obtidos às margens da legitimidade das sociedades neoliberais devem ser processados à crítica 55


social permanente e a dissidência política necessária para tornar possível outro universo público de reinserção social. É imprescindível aproveitar este espaço de encontros para promover formas de coparticipação onde as cidadanias, na sua diversidade cultural, possam contribuir para reinterpretar os papeis da política em consonância com os valores de seus saberes culturais, onde predomine uma coexistência sustentável entre o homem e a natureza, sem possibilidades de destruição ou exploração irracional (BOFF, 1996). Nesta perspectiva, os espaços públicos constituem-se como instâncias de educação popular onde os sujeitos das culturas são seus próprios protagonistas. Não são admissíveis as intervenções comerciais e de consumo de um padrão de conduta social altamente orientado para a profissionalização de códigos de convivência mediados pela rentabilidade do capital que se pode obter do exercido público da profissão. Escolas e Universidades inseridas nas reflexões interculturais do aprender para ser e fazer diminuem potencialmente as forças de coesão comunicativa que fazem parte da linguagem ideológica para impedir sua propagação por toda a estrutura social, contribuindo para a formação de uma cidadania plural e democrática. Para lograr o êxito da proposta intercultural no seio da sociedade neoliberal, é preciso partir de uma educação cidadã que reclame por direitos públicos em um sistema de aprendizagem onde o diálogo com o Outro é a regra de ouro da argumentação e do consenso. Ao contrário do que se promove na sociedade do conhecimento tecnificado, educar o Outro na perspectiva intercultural é reconhecer no Outro o direito político de significação do mundo a partir da práxis cultural na qual se encontra inserido. Mas, também, para além do uso de sua língua e de sua palavra, é imprescindível que este educar em saberes provenha da tradição mais antiga para que o Outro possa responder a partir do direito da escuta de seu pensamento e discurso (DÍAZ MONTIEL, 2013). Trata-se de programar o direito político que todos os cidadãos têm para a palavra a partir da fala de sua língua no contexto de suas culturas. Esta diversidade, que viola o padrão monocultural da sociedade neoliberal, está rompendo sua lógica argumentativa uni56


forme, já que torna viável a mudança das relações de poder que estão a serviço da política numa ordem de classe social antagônica. O direito público à palavra é um direito humano a ser educado: é o resultado das transformações dos valores de sua cultura que estão no espaço intersubjetivo onde as intervenções de uma cultura respondem aos interesses comuns compartilhados pela maioria dos sujeitos que fazem parte comunitária ou civicamente dessas culturas (SOUSA SANTOS, 2002). O direito de conviver com o Outro é um direito político que exige que os cidadãos sejam educados para aprender a respeitar a diversidade em sua alteridade. Esse Outro que não é a si mesmo, mas que em sua distância, não deixa de ser próximo para um possível encontro, por esses valores práticos sobre os quais uma cultura se desenvolve e se transforma, mediante identidades que originalmente respondem à história dessa cultura em sua reprodução no mundo sensível e, posteriormente, através de identidades narrativas do encontro com o Outro que tem sua origem no diálogo intersubjetivo. Um diálogo onde o eu não é egocêntrico, tomado pelo sentido da radicalidade da palavra em seu domínio de poder, mas, pelo contrário, é um eu que se desloca ontologicamente para as esferas da sensibilidade vivente do Outro que, na sua expectativa comunicacional, não restringe o sentido de sua linguagem ao código interno de sua cultura, mas se abre a uma significação das palavras que entram em contraste com um só sentido ou sentimento das palavras (PEREIRA, 2007). Agora, a linguagem que dota de vida os sujeitos e interlocutores é constituída por palavras que, no discurso com a alteridade do Outro, se desdobra para reinterpretar o que interpreta, sem anular a capacidade dialógica da razão comunicativa para refletir sobre as interpretações. Não existe ordem institucional da política capaz de coagir esse uso ou giro linguístico que procede da ordem das palavras que se contextualizam no interior dos saberes de uma cultura, em relação de outras. Busca-se num esforço reflexivo ininterrupto essa semântica da palavra para se conectar com o sujeito de quem a palavra é existência e da qual provém à presença do Outro na sua corporeidade humana e material. 57


Nestes espaços intersubjetivos de encontros é onde essa experiência de educar o Outro, no sentido intercultural, pode efetivamente inverter os papéis dominantes da cultura hegemônica em relação com as outras, sendo que ao libertar os códigos repressivos da comunicação da cultura hegemônica, se libertam as forças discursivas da linguagem para agir numa comunicação livre de restrições ou censuras. Usamos uma língua originária para organizar as gramáticas de uma cultura, porém, é somente através do diálogo com o Outro, que essa língua vai refletir e transmitir suas práticas hermenêuticas com o propósito de enunciar e compartilhar o sentido ontológico das realidades culturais onde estão incorporados seus saberes. Portanto, aprendemos a comunicar não por uma instância de significados objetivos da cultura, mas por meio dos imaginários que uma cultura produz para encontrar-se com outras (SÁNCHEZ CAPDEQUÍ, 1999). Quer dizer, aquelas intersecções de sentido nos quais uma cultura se revela na sua transcendência prática e utópica, nesse modo de ser do cidadão ou sujeito de uma cultura na sua originalidade mais ancestral e que o consumo mediático da sociedade neoliberal tem desnaturalizado quase até sua extinção. Da cultura subordinada não restam signos de originalidade por causa do nível de colonialidade que a aliena sistematicamente e a impede de recriar-se através do encontro dialógico com o Outro. Isso porque na dinâmica do processo comunicativo é o diálogo que torna permeável uma cultura na co-presença de outras em espaços de interação comunal, o que supõe uma liberdade para que os sujeitos possam participar das práxis simbólicas de interpretação intersubjetivas, não reguladas pela opressão das forças sociolinguísticas do domínio da política que induzem a racionalidade do discurso neoliberal. Descolonizar a cidadania destas práticas sociolinguísticas que coagem o diálogo com o Outro, devido à negação a priori da capacidade reflexiva dos cidadãos para representar, a partir de sua língua, o sentido da realidade, é propiciar uma crítica radical à hegemonia da cultura neoliberal no desenvolvimento dos saberes originários das culturas mais arcaicas e tradicionais, em especial quando nos referimos aos povos latino-americanos. 58


Educar interculturalmente o Outro de um nós coexistencial supõe uma experiência de vida na qual os usuários ativos dos valores práticos de uma cultura se veem obrigados a defender a cultura a qual pertencem, na medida em que o espaço público de sua intervenção política lhes permite a visibilidade necessária para alcançar sua representação social. A ressignificação do mundo a partir da diversidade das culturas torna possível, então, transformá-lo em outros mundos possíveis, de tal sorte que o cidadão do mundo não é um cidadão único nem uniforme, mas é um sujeito que resulta da multiplicidade das experiências de vida, e que depende de toda cultura originária para sua recriação junto às outras.

5 O papel político do diálogo para um educar a partir da alteridade A crise da razão moderna deixou às claras uma concepção dogmática da racionalidade política com a qual se pretendia dirigir a pluralidade enquanto parte do desenvolvimento da sociedade civil. Uma forma de exercer o poder do logos na polis, onde, a partir de premissas universais, se deduzem condições materiais de vida que deve refletir-se quase que objetivamente na existência particular dos cidadãos, sem resistências ou subversões. O Estado moderno é o encarregado de cumprir com esse trabalho de subordinação ou de controle social, pois se requer que o coletivo social, na sua grande maioria, não deixe de responder aos princípios normativos dessa racionalidade monológica que se instaura através da cultura do poder das leis. Esta concepção ideal e transcendente da vida cidadã na polis termina convertida numa ordem absolutista da racionalidade política, pois, vem condicionar à práxis do ser social na sua liberdade, precisamente, porque nos apresenta um conceito genérico de ser humano abstraído das contingências reais da vida, que é consequência imediata das formas históricas de sua produção e reprodução material e espiritual. O principal questionamento a esta forma de alienação social sofrida pelo cidadão por meio da razão hegemônica da política 59


neoliberal, consiste na contundente negação e exclusão da presença do Outro na construção dos múltiplos sentidos da realidade. Esta situação de restrição ontológica sobre o campo existencial do Outro, traz como consequência que, o ser social e subjetivo da realidade existencial fica diminuído na sua dimensão factual e antropológica, sobretudo, na sua dimensão dialógica. Assim, já não é possível um reconhecimento do Outro, uma aproximação, um encontro, pois este é despojado da sua palavra e do seu discurso - condição imprescindível da realidade dos seres pensantes e dialogantes, pois é isto que permite situar-se no mundo dos fenômenos e nos processos da realidade: a linguagem e os sentidos de sua significação. A sociedade neoliberal não cessa na sua intenção repetitiva de fazer desaparecer o Outro até chegar à sua mais profunda anulação, ou seja, tornar concreta sua alienação. Neste processo se cumpre a implantação de um domínio racional sobre o logos do Outro, impedindo-o de uma genuína inserção na interpretação dos mundos da polis que, atualmente, precisa ser argumentativa e interpretativa em termos interculturais. Precisamente, a polis intercultural, tal como assinalamos anteriormente, é o espaço do encontro com a emergência do Outro necessariamente porque o Outro é um ser cuja natureza racional o torna apto para fazer uso inteligível da linguagem através das palavras, e criar deste modo o espaço comunicacional que permite ao cidadão representar e simbolizar o mundo a partir da crença e do conceito, da análise e da crítica, da opinião e da episteme, da arte e da poesia. Através das palavras construímos e desconstruímos hermeneuticamente o mundo das realidades nos seus diversos sentidos (REDING BLASE, 2007), e necessitamos situar-nos frente ao Outro desde a pluralidade do sentido e das significações das quais as palavra são portadoras, porque é através delas que a expressão racional dos pensamentos torna-nos seres humanos, cidadãos de uma polis onde democraticamente a todos nós nos pertence o poder que nos outorga o direito à palavra. Uma nova cultura de cidadanias interculturais é viável e sua fortaleza residirá, então, em gerar práticas de participação social e política que garantam esses direitos públicos ao uso livre e autôno60


mo da palavra para acessar ao espaço intersubjetivo do Outro, que se manifesta por meio de suas linguagens, já que devemos aprender a usar, compartilhar e conviver, o uso do domínio formal da racionalidade torna possível transformar a linguagem na estrutura discursiva que deve revalidar-se entre todos no universo da polis, pois é isso que permitirá a comunicação dialógica. O sentido dialógico do diálogo, quer dizer, a prática comunicativa que torna inclusivo o Outro numa relação de encontro co-presente, por meio da linguagem, implica que os horizontes discursivos dos falantes sejam suficientemente amplos para absorver as fronteiras identitárias das culturas e poder acessar ao seio originário onde as culturas produzem seus valores e simbolizações (FORNET-BETANCOURT, 2009). Não se trata de monopolizar, a partir do Estado ou das classes sociais, um modelo discursivo presumido de dialogicidade, porque torna tolerável o encontro e reconhecimento do Outro, sempre e quando o Outro esteja sujeito a obedecer às normas que regulam politicamente sua participação ou intervenção nas discussões que podem ser de interesse comum aos cidadãos representantes de uma sociedade ou cultura. O assunto é muito mais complexo do que se percebe num piscar de olhos. O diálogo é dialógico porque a práxis racional do discurso, posto em marcha a partir da alteridade, é capaz de desvelar e interpretar os condicionamentos que devem ser vencidos ou superados, para que a discussão gerada no espaço público possa produzir as intercomunicações necessárias para a transformação cidadã dos participantes a favor de uma ordem de vida que garanta direitos de convivência, onde todos possam obter seus benefícios. Nenhuma hegemonia se pode construir, muito menos deve responder ao predomínio de uma cultura sobre outra, a negação de um discurso contra Outro, e, sobretudo, a coação que pode sofrer o diálogo quando se busca discernir e argumentar, desde a crítica, os usos dos poderes da política. Estar nessa correlação sócio-comunicativa frente ao Outro, trata de determinar a práxis de interação dialógica onde o código daquele que faz parte do discurso é necessariamente reinterpretável culturalmente, pois é a maneira de 61


atuar e por em prática as mudanças que devem sofrer nossas subjetividades. A partir desta premissa intercultural do Outro, como ser subjetivo que pensa com a finalidade de fazer-se compreender, é que aparece, então, o espaço pragmático do discurso entre aqueles que se comunicam desde diversos universos linguísticos com a intenção consciente de alcançar essa hermenêutica do sentido graças à convivência dialógica entre as culturas. Educar o Outro a partir da alteridade significa várias coisas: a) reconhecer que o diálogo com o Outro é intercultural porque se abre um espaço intersubjetivo entre todos onde o encontro na alteridade sempre é inédito e criador; b) este espaço de pluralidades não pode ser constrangido por nenhum tipo de força dominadora sobre a qual uma cultura pretenda a imposição de sua universalidade; e c) porque se trata de uma correlação da alteridade entre todos, capaz de partir de uma prática ética de convivências que permita o surgimento de direitos humanos que afiancem o respeito e solidariedade num mundo onde, precisamente, as diferenças devem ser compartilhadas. Por definição poderia entender-se que um educar na alteridade, quer dizer, ensinar e aprender a hermenêutica do diálogo através da diversidade discursiva é o melhor projeto comunicacional que tornaria possível a politização da cidadania para a concretização de uma democracia que aposte na diversidade de um mundo que resulta da imaginação e a subjetividade criadora de cada um dos indivíduos ou cidadãos da polis. As regras gerais do diálogo vão além dos códigos de comunicação gramatical; portanto, trata-se de compreender que o sentido dialógico do diálogo ressitua permanentemente o interlocutor face às reviravoltas que sofre o discurso segundo a urgência que se apresenta à racionalidade, para compreender o lado oculto ou invisível da prática comunicativa e que necessitamos esclarecer desde a consciência crítica das nossas percepções da realidade. Os vários mundos de vida dos que são educados interculturalmente são os que se tornem possíveis que as convivências que resultam das vidas desses seres humanos e cidadãos da polis, desfrutem de uma tolerância e persuasão argumental que prima sobre 62


os critérios da objetividade racional do conhecimento da realidade. Esta tese contrasta por completo com as concepções clássicas da educação cidadã onde o Estado docente se impõe sobre as liberdades de expressão das cidadanias em virtude de que este deve cumprir com a ordem social que se impõe politicamente (MONTIEL, 2005). Logo, é muito problemática a possibilidade de criar cenários possíveis para um diálogo com o Outro, pois os impérios linguísticos, lógicos e hermenêuticos da cultura dominante, através do Estado e seus aparatos ideológicos, são os que institucionalizam a força coativa do discurso oficial da palavra (BOURDIEU, 1982), em detrimento da razão dialógica própria que se gesta no espaço público que é o receptor da confluência cidadã onde se deve optar pela democracia comunicativa e participativa. Aqui, observamos o modelo da racionalidade política da modernidade, e a insurgência, dos movimentos sociais emergentes, de uma racionalidade dialógica alternativa que se torna eco de uma transformação intercultural do poder hegemônico da razão da qual se serviu a sociedade neoliberal e que a enriqueceu com os novos processos de colonização cibernética e técno-científica que acentuam a desumanização global. O aprender a educar o Outro desde a alteridade (SIDEKUM, 2002), atualmente, é equivalente a pensar a partir da interculturalidade, pois, não há outra forma de compreender esse terreno movediço relativo ao futuro de nossa existência ontológica. Aquele lugar onde o Outro reside e habita no seu mundo é indefinível a partir do meu, mas, talvez, compreensível se acessar o saber-fazer do Outro, sempre e quando o valor ético de educar em liberdade permita acessar o seu dever de ser original, sem repressões. As condições de vida onde o Outro se faz perceptível ao meu horizonte racional e sensível, deve ser interpretado permanentemente em sua base para a comunicação e em particular, ao diálogo como processo fenomenológico válido para os encontros e reconhecimentos dos sujeitos ou cidadãos de uma sociedade ou cultura. Tais práticas dialógicas de aprendizagem no diálogo com o Outro requerem um compromisso político que se está associado ao poder das palavras e do discurso. Sobre isto devemos ser muito 63


conscientes, pois, se neste caso a polis é uma realidade, devemos democratizá-la. É de senso comum que esse poder não é mera força para impor-nos sobre os Outros (NINO, 1997), mas é retórica e dialética da palavra para aprender a conviver com os Outros num cenário de práticas que derivam da aceitação do poder, visto através de direitos humanos que nos igualam e nos tornam aptos para aprender a compartilhar decisões e opiniões. A democracia do diálogo não é, por conseguinte, uma utopia por mais inacessível ou irreal que seja; pelo contrário, este tipo de coexistência humana e cidadã baseada no papel político que carrega e transmite o diálogo é no seu fato mais concreto uma realidade pragmática da comunicação, pois dependerá de nossa cognição para aprender a razão da mão de Outros aos quais não se pode negar a mesma condição humana e cidadã. Educamo-nos e aprendemos a ser e a fazer a partir das diferenças de nossas respectivas culturas, desde que compreendamos que a lógica da racionalidade política neoliberal nos unifica através de uma ordem nominativa que coloniza os imaginários de nossos coletivos cidadãos ou povos; quando somos capazes de responder onto-criativamente aos desafios das contingências do mundo. Aprender a educar a partir da pergunta que serve de suporte ao diálogo, quando se trata de explorar o sentido existencial do Outro que vive sua diferença a partir de mim; é, então, aprender a compartilhar e conviver a práxis intercultural da racionalidade na qual nos situamos dialogicamente, e assim poder superar o tempo linear da razão dogmática das culturas coloniais que busca tornar-se universal e absoluto, indeterminado e abstrato. [Tradução: Antonio Sidekum – Revisão: Elcio Cecchetti]

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CAPÍTULO III

EDUCAÇÃO INTERCULTURAL E DIVERSIDADE: PERSPECTIVAS POSSÍVEIS2 Maria Conceição Coppete Reinaldo Matias Fleuri Tania Stoltz 1 Considerações iniciais Uma das principais características das sociedades atuais é a crescente pluralidade de realidades sociais com suas especificidades culturais, étnicas, relacionais, geracionais e comunicativas. Os hidridismos mostram-se como regra e concomitantemente parece desorientação. Vive-se uma espécie de declinação no plural, o que gera, indubitavelmente, a necessidade de ressignificar conceitos, valores e atitudes. Diante desse contexto, questões como a cultura e a educação são protagonistas neste espetáculo vivo, vibrante e inédito que é o dia a dia de todos e de cada um. Sabemos que é incontestável a relação íntima e orgânica, recíproca e complexa que existe entre educação e cultura, como assevera Forquin (1993, p. 14), “a cultura é o conteúdo substancial da educação, sua fonte [...] a educação não é nada fora da cultura e sem ela. Mas reciprocamente, dir-se-á que é pela e na educação [...] que a cultura se transmite e se perpetua. A educação realiza a cultura como memória viva”. E é complexa porque a educação escolar, particularmente, “supõe sempre na verdade uma seleção no interior da cultura e uma reelaboração dos conteúdos da cultura destinados a serem transmitidos às novas gerações” (1993, p. 14). 2 O presente artigo foi elaborado a partir dos Capítulos II e III da tese de doutorado intitulada Educação e sensibilidade: possibilidades para a docência aprovada em sua forma final em abril de 2012, pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, sob a orientação do prof. Dr. Reinaldo Matias Fleuri (UFSC) e a co-orientação da profª. Drª. Tania Stoltz (UFPR).

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Por outro lado, Certeau (2001, p. 104) nos lembra que “a relação da cultura com a sociedade modificou-se: a cultura não está mais reservada a um grupo social; ela não mais constitui uma propriedade particular de certas especialidades profissionais (docentes, profissionais liberais), ela não é mais estável e definida por um código aceito por todos.” A cultura é uma relação social. Ela pressupõe uma atividade, um modo particular de apropriação. A cultura, na perspectiva de Certeau (2001), é compreendida no plural, por entender que é mais importante o conjunto de operações que os usuários empreendem ao se apropriarem dos produtos culturais do que a disponibilidade oferecida no mercado de bens simbólicos. Nessa perspectiva e entendendo que olhar é significação, Forquin (1993) e Fleuri (1999, 2001, 2003, 2009) parecem fazer esse movimento quando no exercício de “olhar para conhecer” investigam criticamente e encontram esta íntima relação entre educação e cultura e, a partir desse encontro, conceituam e explicitam algumas de suas principais relações. Nosso convite é o de também fazer este exercício a partir desses conceitos, para então remetê-los à diversidade e à educação em uma perspectiva intercultural. É preciso dizer que a perspectiva intercultural de educação pressupõe primeiramente uma intencionalidade que motiva a relação entre grupos culturais diferentes, que também pode ser significada por objetivos em comum. Dessa forma, demanda um projeto educativo intencional capaz de promover essa relação. Uma segunda característica é que essa perspectiva entende e considera a relação entre as culturas na prática educativa como modos próprios de cada grupo ver e interagir com a realidade, como argumenta Fleuri (1999). Dentro dessa abordagem, culturas diferentes são entendidas como contextos complexos e sua relação produz confrontos entre visões de mundo diferentes. Compartilhamos do entendimento de Fleuri (2001), ao dizer que a cultura constitui a trama da existência humana. Uma teia de significados. Interagir com uma cultura diferente “contribui para que uma pessoa ou um grupo modifique o seu horizonte de compreensão da realidade na medida em que lhe possibilita compreender pontos de vista ou lógicas diferentes de interpretação da 70


realidade ou de relação social” (2001, p. 53). Uma terceira particularidade refere-se à ênfase dada aos sujeitos da relação, ou seja, a valorização é dada prioritariamente aos sujeitos que são os que criam e sustentam as culturas. Todas essas questões nos levam a pensar e a problematizar o que entendemos por diversidade.

2 Problematizando o conceito de Diversidade: sua origem e desdobramentos A diversidade constituiu-se como um dos principais fatores de visibilidade nos contextos educacionais. Sua presença tem sido notória no palco dos debates relacionados à educação no país, principalmente nos últimos dez anos. No campo normativo, várias leis foram sancionadas, tais como a Lei nº 10.639/03, que torna obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas do país e a Lei nº 11.645/08, que insere a questão indígena nos currículos escolares. Em relação ao Ministério da Educação (MEC), criou-se, no ano de 2004, uma secretaria específica, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), com o objetivo de articular o tema da diversidade nas políticas educacionais, entre outros. Na literatura é possível identificar um conjunto variado e complexo de significados para o termo diversidade, conforme o campo no qual se situa. Nas ciências sociais, geralmente é empregado para tratar a heterogeneidade de culturas fortemente marcada na sociedade contemporânea. Essa posição se contrapõe ao modelo de Estado-nação moderno, liberal e ocidental, constituído “sobre o pressuposto (geralmente tácito) da homogeneidade cultural organizada em torno de valores universais, seculares e individuais” (HALL, 2003, p. 52). Na sua dimensão cultural encontra-se associada aos novos movimentos sociais, fundamentalmente aqueles de caráter identitário, circunscritos em torno da defesa das “políticas de diferença” (TAYLOR, 1994; GIROUX, 1999; HALL, 2003). Para Moehlecke (2009), tal reivindicação decorreu, no Brasil, de setores relacionados ao movimento feminista e movimento negro dos anos 71


de 1980, tornando-se mais intensa nos anos seguintes, quando outros grupos passaram a fazer parte, como o dos indígenas e das pessoas com deficiência. Considerando as políticas públicas em nosso país, principalmente a partir do final dos anos de 1990, constata-se a preocupação com a diversidade cultural, especialmente quando articuladas ao gênero, raça e etnia. Essa preocupação se evidencia em relação às políticas educacionais, entre as quais podemos citar: a incorporação da pluralidade cultural como tema transversal nos Parâmetros Curriculares Nacionais; a definição de um capítulo específico para abordar a educação especial; assim como os artigos voltados à educação indígena, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº 9.394/96; o Plano Nacional de Educação de 2001, com capítulos destinados à educação especial e educação indígena; a definição do dia 20 de novembro como dia da Consciência Negra, além Lei nº 10.639/03 e Lei nº 11.645/08, citadas anteriormente. No Brasil, a expressão diversidade tem sido usada como multiculturalismo, principalmente pelo poder público. Este substantivo, de acordo com Hall (2003), refere-se às estratégias políticas empregadas para lidar com situações de diversidade desencadeadas em sociedades culturalmente plurais. Aliás, é preciso dizer que no âmbito educacional o termo multiculturalismo tem sido abordado com frequência e com sentidos diversos. No que se refere aos variados tipos de multiculturalismo encontram-se, principalmente, os estudos de McLaren (2000); Giroux (1999); e Hall (2003). Considerando o amplo conjunto de estudos relacionados a essa questão, é possível identificar, segundo Moehlecke (2009), três aspectos que delimitam e diferenciam os significados oscilantes associados ao multiculturalismo: o primeiro diz respeito ao reconhecimento ou não das hierarquias de poder presentes nas relações entre os diferentes grupos culturais. O segundo associase a uma visão mais essencializada ou mais dinâmica da identidade cultural de determinados grupos. O terceiro, por sua vez, está mais voltado à articulação ou não entre as desigualdades socioeconômicas e as diferenças culturais. 72


Para além da defesa desta ou daquela proposição, o fato é que as questões relacionadas à diferença e à identidade cultural são candentes para a educação, principalmente no âmbito das escolas e, por conseguinte, das práticas pedagógicas. Reinaldo Matias Fleuri (2009) afirma que no âmbito da educação a multiplicidade de termos e de concepções em torno de uma mesma ideia – multicultural, transcultural, intercultural – parece dificultar a compreensão do fenômeno. Nesse sentido, o autor questiona o significado desses conceitos e os contextos nos quais se aplicam. Destaca o intenso debate que acontece, atualmente, em torno da relação entre os diversos grupos culturais, mostrando a coexistência de variadas propostas e concepções que empregam termos iguais para designar conceitos diferentes, ou fazem afirmações idênticas mediante nomes distintos. O conceito de educação multicultural é um exemplo importante. De acordo com Fleuri (2009, p. 37), o entendimento de educação multicultural “utilizado nos países anglo-saxônicos para designar a luta pela paridade de direitos entre diferentes grupos sociais e culturais na sociedade, na Europa é habitualmente traduzido pelo conceito de ‘educação intercultural’”. Fleuri (2009) argumenta que educação multicultural pode ser abordada sob duas perspectivas. A primeira como movimento em prol da equidade social. A segunda perspectiva contempla uma abordagem curricular como contraposição alternativa à abordagem monocultural ainda vigente. A expressão “educação inter/multicultural” é utilizada pelos autores Stephen Stoer e Luísa Cortezão, da Universidade do Porto (Portugal), como forma de se referirem ao conjunto de movimentos que propõem não só o respeito mútuo às especificidades de cada grupo cultural, mas também à relação e à interação entre eles (FLEURI, 2009). O termo “transcultural” está relacionado à ideia de encontrar os valores que sejam comuns às diferentes culturas e que possibilitem criar uma base de entendimento que considere essas espeficidades.

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3 Entendendo os significados e sentidos da educação em uma abordagem intercultural Para melhor compreender o que consiste a abordagem de educação na perspectiva intercultural, é importante saber o contexto de surgimento da expressão intercultura. O termo Intercultura, segundo Paola Falteri (1998), vem sendo utilizado pelo Conselho Europeu desde os anos de 1980, quando foi decidido abordar a questão da entrada dos estrangeiros nas escolas; também foi adotado como perspectiva unificadora pelas ‘educações’, as quais, das mais variadas maneiras, focalizam a importância da convivência. De acordo com a autora, é um caso raro de escolha terminológica, uma vez que a expressão foi eleita em concordância entre os organismos oficiais e as bases. No plano educacional, a interculturalidade sinaliza um projeto cujo objetivo é a intervenção nas mudanças induzidas a partir do contato e da interação entre sujeitos e sua diversidade, de maneira a promover atitudes abertas ao confronto e conduza processos integradores entre culturas. Nessa mesma direção segue Del Arco Bravo (1998), ao dizer que quando duas ou mais culturas entram em contato, a impregnação que se produz é inevitável. A educação intercultural é entendida como aquela que enfatiza a relação entre sujeitos culturais diferentes, enquanto a educação multicultural constituiria uma perspectiva que busca o reconhecimento identitário das minorias étnicas, em luta contra os processos de sujeição a que foram submetidas historicamente (FLEURI, 2000). Com o aprimoramento dos estudos, segundo Fleuri, amparando-se em Canen e Moreira (2009), ambos os conceitos são redimensionados: [...] o termo multiculturalidade passou a ser compreendido como indicador da realidade de coexistência de diversos grupos culturais na mesma sociedade, enquanto o termo interculturalidade servia para indicar o conjunto de propostas de convivência e de relação democrática e criativa entre culturas diferentes. Mais recentemente, interagimos com estudos que buscam representar polifonicamente a

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polissemia dos desafios e das propostas emergentes como as expressões inter/multicultural (utilizada por Stoer, 2001) e intertranscultural (utilizada por Padilha; 2004). (FLEURI, 2009, p. 39).

No que se refere à problemática decorrente desse conjunto de conceitos (multi/inter/transculturalidade), Fleuri (2009), alerta sobre dois importantes aspectos a considerar. O primeiro deles é a impossibilidade de reduzir a um único conceito o imenso conjunto de ideias, bem como de propostas, que se encontram em elaboração neste campo de pesquisa e ação educativa. Para o autor, a pluridade de perspectivas é fértil e rica, na medida em que demanda diálogo e compreensão mútua dos vários pontos de vista, de um lado e de outro. O segundo aspecto relevante diz respeito ao desafio no sentido de promover a unidade e a relação entre distintos grupos, sujeitos e culturas de maneira que tal unidade e relação não anulem as diferenças, mas sim sejam potencializadoras do desenvolvimento de cada um – este é o eixo fundamental da problemática que toda essa situação enuncia (FLEURI, 2003). Nos estudos mais recentes realizados por Fleuri e seu grupo de pesquisa, vislumbra-se uma nova perspectiva epistemológica em relação às identidades e relações interculturais, como sendo híbridas e ambivalentes. Nesse sentido, o foco reside na busca de entender os “entrelugares” (BHABHA, 1998), ou seja, buscar o entendimento “dos contextos intersticiais que constituem os campos identitários, subjetivos ou coletivos, nas relações e nos processos interculturais” (FLEURI, 2009, p.39). Sendo assim, a intercultura torna-se um objeto de estudo transversal, interdisciplinar e complexo a temáticas de cultura, etnia, gerações, gênero, movimento e de ação social. Em Coppete (2007), encontramos a explicação acerca do prefixo inter que marca a reciprocidade, interação, intercâmbio, ruptura do isolamento e, concomitantemente, indica separação, interposição e diferença. Refere-se, portanto, a um processo dinâmico marcado pela intercessão de perspectivas que podem ser entendidas como representações sociais produzidas em interação. Para Muñoz Sedano (1997, p. 119), “caracteriza uma vontade de mudança, de ação no contexto de uma sociedade multicultural.” É um processo 75


permanente e inacabado, fortemente marcado pela intenção de promover relações democráticas e dialógicas entre grupos e culturas diversas. Fleuri, Coppete e Azibeiro (2009) destacam que o tema da interculturalidade tem sido cada vez mais recorrente, paradoxal. Por sua contemporaneidade tem sido usado em variados contextos, prestando-se a interesses sociopolíticos diversos. Os movimentos sociais, a mídia, a pesquisa científica e os programas governamentais têm promovido o reconhecimento da diversidade multicultural, o que denota o interesse pela temática da interculturalidade. Porém, em algumas situações, apresenta-se como uma nova tendência multicultural isenta de sentido crítico, político, construtivo e de transformação. O que se constata é que o esforço pela promoção do diálogo e da cooperação crítica e criativa entre as pessoas e seus contextos distintos corre o risco de reeditar novas formas de sujeição e de subalternização. Os autores destacam duas perspectivas teórico-epistemológicas distintas. De um lado estão aquelas que reduzem as relações interculturais às relações individuais, desconsiderando os contextos sociopolíticos de subalternização. De outro lado, surgem perspectivas de interculturalidade crítica que apontam para a descolonialização do saber, do poder, do ser e do viver. Essa perspectiva conclama a elaboração e mobilização de formas de saber, poder, ser e viver que garantam a convivência de todos os seres humanos com a natureza e entre si, “para além de dispositivos e de estruturas de dominação sociocultural e de destruição sistemática da natureza vigente no atual contexto mundial” (2009, p. 31). Catherine Walsh (2009), na conferência de abertura proferida no XII Congresso da Association internationale pour la Recherche Interculturelle (ARIC), defendeu a perspectiva crítica de interculturalidade. Para a autora, “interculturalidade em si, só terá significação, impacto e valor se assumida de maneira crítica, como ação, projeto e processo que procura intervir na re-fundação das estruturas [...] da sociedade que racializa, inferioriza e des-humaniza, [...] na matriz ainda presente da colonialidade do poder.” (WALSH, 2009, p. 02). Três perspectivas envolvem, atualmente, a interculturalidade: relacional, funcional e crítica. Fleuri, Coppete e Azibeiro (2009), am76


parados em Walsh (2009), argumentam que a primeira perspectiva, designada como relacional, faz referência ao contato e intercâmbio entre culturas diferentes, como sendo algo que existe há muito tempo. Considera os processos de mestiçagem, os sincretismos e as transculturações como sendo naturais. Nessa prospectiva, existe uma forte tendência a ocultar ou minimizar os conflitos, assim como os contextos de poder e dominação, a relação é limitada ao nível individual. “Na medida em que encobre as estruturas sociais, políticas, econômicas e também epistêmicas, posiciona a diferença cultural em termos de superioridade ou inferioridade” (2009, p. 31). Em outras palavras, reduzem as relações interculturais a relações individuais, sem considerar os contextos sociopolíticos de subalternização. A segunda perspectiva, chamada por Wash de funcional, e referendada pelos autores já citados, reconhece a diferença cultural com o objetivo de inclui-la na estrutura social estabelecida. Investe na promoção do diálogo, na convivência e na tolerância. Todavia, não questiona as possíveis causas da assimetria e da desigualdade social e cultural. Adota a (nova) lógica multicultural do capitalismo global. Fleuri, Coppete, Azibeiro, amparados em Quijano (2009), destacam que essa perpectiva reconhece e sustenta a produção e administração da diferença de maneira funcional à expansão do sistema-mundo-moderno. Aponta para o controle do conflito étnico a partir da inclusão dos grupos historicamente excluídos, porém faz isso com vistas a manter a estabilidade social de acordo com os ditames econômicos do modelo neoliberal. A terceira perspectiva, defendida por Walsh e autores já citados, como interculturalidade crítica, aponta para a construção de sociedades diferentes, a outra ordem social, na medida em que problematiza a estrutura colonial racial e sua ligação ao capitalismo de mercado. A abordagem traduz a reivindicação de povos e grupos sociais historicamente subalternizados, representa também setores de luta a eles associados, na construção de uma sociedade justa, equitativa, igualitária e plural. Trata-se, portanto, de um projeto de vida que implica formas de viver e estar neste mundo; um projeto político, social, ético e epistêmico.

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4 Divisando possibilidades a partir de uma perspectiva de educação intercultural O objetivo maior da abordagem de educação, em sua perspectiva intercultural, consiste em auxiliar as pessoas a se apropriarem do código, que possibilite acessar o universo do outro, ou seja, os valores, a história, a maneira de pensar, de viver, entre outros. Uma vez que tenha acesso a esse código, poderá voltar ao seu próprio código, e seu universo pessoal estará mais enriquecido pela troca empreendida. Assim, é possível inferir que a educação intercultural sugere que as pessoas aprendam e se habituem a olhar, mediados por uma ótica diferente. Propõe mudanças cognitivas e emocionais que as levem a compreender como os outros pensam e sentem e, nesse processo, retornem a si mesmos mais conscientes de suas próprias raízes culturais. Conforme assevera Campani (1993), esses fatores remetem à sensibilidade no exercício da docência na medida em que afetam a diversidade, a alteridade, o cuidado, a afetividade, a capacidade criadora, entre outros aspectos que envolvem as ações humanas, Para Vieira (1999), nos processos de aprendizagem e nas relações sociais interculturais, os contatos são de reciprocidade e de trocas. É preciso pensar em educação para o plural, no sentido atribuído por Certeau (2001) e discutido anteriormente, o que demanda a reestruturação de todo sistema de atitudes. A educação intercultural contempla uma abordagem emancipatória e rizomática, constituída na e pela percepção da multiplicidade de olhares, nas inter-relações, na interação entre as diversas culturas. Demanda, indubitavelmente, um encontro. Todavia, não se trata de um encontro pura e simplesmente entre pessoas diferentes. Segundo Torres (1998), para que um encontro seja intercultural é significativo que as diferenças sejam como “tensões produtivas”, de onde se pode partir para a construção de conhecimentos e de práticas escolares e educativas que sejam relevantes para os vários grupos sociais envolvidos. É fato que as culturas têm sua dinamicidade e nela se ressignificam. Assim, todas possuem seus processos internos, o que 78


lhes possibilita preservar suas singularidades, sua diversidade. Concomitantemente estabelecem relações e constituem vínculos com outras culturas, mediante processos de negociação que lhes possibilitem viver junto às demais. Nesse movimento, muitas vezes conflitivo, apropriam-se de aspectos dessas culturas, e reinventam a sua própria vida. Essas relações internas e externas estão diretamente relacionadas ao contexto e ao espaço onde cada cultura está inserida e se desenvolve. Numa perspectiva intercultural, a escola, como contexto institucional, possui um significado de extrema importância. É nela e por meio dela que crianças, jovens e adultos podem interagir de maneira criativa e, segundo Fleuri (1998), compartilhar processos formativos. Muitas e significativas contribuições decorrem da articulação entre propostas e experiências de educação, especialmente no âmbito da educação popular, mas, também, no âmbito da educação básica, assim como nos processos de formação de professores e professoras. González Manjón (1993) destaca as principais características na organização das ações com vistas a favorecer para a escola aberta à diversidade e, por conseguinte, às práticas educativas numa abordagem intercultural de educação. Para o autor, é necessário haver flexibilidade, funcionalidade, participação e comunicação. A educação intercultural se desenvolve como relação entre pessoas de diferentes culturas. Não se pode perder de vista que os sujeitos se formam em contextos culturais determinados. Entretanto, são eles que fazem cultura. A estratégia intercultural consiste antes de tudo em promover a relação entre as pessoas, enquanto membros de sociedades históricas, caracterizadas culturalmente de modo muito variado, nas quais são sujeitos ativo. Fleuri (2000a) cita Nanni para dizer que a educação intercultural configura-se como um processo, um caminho aberto, complexo e multidimensional por envolver múltiplos fatores e dimensões, dentre os quais se destacam a pessoa e o grupo, a cultura e a religião, a língua e a alimentação, os preconceitos e as expectativas. A educação intercultural não pode ser reduzida e limitada a uma simples relação de conhecimento. “Trata-se da interação entre su79


jeitos. Isso significa uma relação de troca e de reciprocidade entre pessoas vivas, com rostos e nomes próprios, reconhecendo reciprocamente seus direitos e sua dignidade.” (2000a, p. 77). Concordamos com as ideias apresentadas por Fleuri (1999), muito especialmente, quando afirma que a educação intercultural configura-se como uma “pedagogia do encontro até suas últimas conseqüências”, na medida em que busca promover uma experiência de caráter profundo e complexo na qual o encontro/ confronto de distintas narrativas se configura como uma oportunidade singular de crescimento pessoal e uma experiência viva, intensa e também singular de conflito/acolhimento. Para o autor (1999, p. 281), a educação intercultural é promotora de mudanças, inclusive no sistema escolar, já que “defende a igualdade de oportunidades educacionais para todos, requer a formação dos educadores, estimula a reelaboração dos livros didáticos, assim como a adoção de técnicas e instrumentos multimediais”. Todavia, não se pode perder de vista que se por um lado ela é promotora dessas grandes causas, por outro necessita encontrar um ambiente favorável à mudança e em condições para que isso ocorra. Em outras palavras, como destaca o autor (1999), fazer acontecer essa perspectiva intercultural de educação implica mudanças estruturais na prática educativa, particularmente na escola, no sentido de assegurar oportunidades de educação para todas as pessoas, com respeito e reconhecimento da diversidade de sujeitos e de seus pontos de vista, bem como, o desenvolvimento de processos educativos, metodologias e instrumentos pedagógicos suficientemente capazes de abarcar a complexidade das relações humanas estabelecidas entre indivíduos e culturas diferentes e, ainda a reinvenção do papel e do processo de formação de educadores. Reiteramos a assertiva feita acima, sobre a necessidade de se levar em conta que essas práticas demandam outro entendimento de escola, de sala de aula e de relações de ensino e aprendizagem, outra cosmovisão, radicalmente diferente da concepção tradicional e hermética, erguida sob velhos pilares conservadores, sustentados por uma perspectiva monocultural e etnocêntrica, 80


herdada do paradigma mecanicista/simplificador, insuficiente nos dias atuais. A abordagem de educação intercultural contempla elementos do pensamento complexo, cuja dinamicidade é um de seus principais fatores. Podemos identificá-lo na capacidade de articular, integrar e refletir os distintos conhecimentos. O pensamento complexo procura restabelecer o diálogo entre formas simplificadas de pensar - características do paradigma simplificado - e formas sistêmicas de compreender - paradigma da complexidade - unidade não é o oposto da diversidade, tampouco quantidade é oposta à qualidade. Moraes (2003) diz tratar-se de um novo olhar, cujo foco está na articulação capaz de ajustar a ação e o pensamento do sujeito sobre o objeto. É uma condição necessária já que o novo século no qual vivemos submete a educação a uma dura obrigação. “À educação cabe fornecer, de algum modo, os mapas de um mundo complexo e constantemente agitado, e, ao mesmo tempo, a bússola que permita navegar através dele,” assevera Delors (1996, p. 89). A educação em sua perspectiva intercultural pode ser um indicador de caminhos possíveis, sugerindo outras direções possíveis, que pedem, por conseguinte, outra docência, capaz de construir pontes, outras margens e desvãos. A perspectiva intercultural compreende que as relações culturais são construídas historicamente e se encontram fortemente atravessadas por relações hierarquizadas e de poder. Relações cujo preconceito e cuja discriminação são fortemente demarcados, principalmente, no que se refere a determinados grupos sociais. Essa perspectiva não desvincula as questões da diferença e da desigualdade que se dão a ver de maneira tensa e conflitiva na atualidade, tanto no âmbito mundial, quanto em cada sociedade em particular. Daí sua perspectiva crítica focada na descolonialização do saber, do poder, do ser e do viver. E como tal, conclama a elaboração e mobilização de formas de saber, poder, ser e viver que garantam a convivência de todos os seres humanos com a natureza e entre si. A perspectiva intercultural afirma essa relação e confirma sua complexidade, admitindo distintas configurações de acordo 81


com cada realidade. É promotora de uma educação que reconhece o outro e defende o diálogo entre os distintos grupos sociais e culturais. Volta-se para a negociação cultural e aposta no enfrentamento dos conflitos decorrentes da assimetria de poder existente entre os diferentes grupos presentes nas sociedades nas quais vivemos. A educação intercultural acontece quando é possível criar contextos educativos capazes de oportunizar a integração e a interação tanto criativa quanto cooperativa, crítica e afetiva entre diferentes sujeitos e diferentes contextos sociais e culturais. Esta relação se constitui baseada na troca e na reciprocidade entre pessoas, transpondo a dimensão individual dos sujeitos e envolvendo pertencimentos e identidade.

5 Considerações Finais A educação intercultural é um conceito de extrema potência, na medida em que amplia o olhar sobre o fazer pedagógico a partir da interação entre experiências realizadas em espaços distintos, mas que se tornam similares porque se retroalimentam e possibilitam reconstruções entre um aqui e um acolá, gestando um “entrelugar”, diferente deste e daquele. Agir interculturalmente requer diálogo e compreensão mútua dos vários pontos de vista, de um lado e de outro. Seu objetivo é promover a unidade e a relação entre distintos grupos, sujeitos e culturas de maneira que tal unidade e tal relação não anulem as diferenças, mas que sejam potencializadores do desenvolvimento de cada um. Assim posto, parece situar-se em um plano teórico e abstrato. Porém, se olharmos desde os contextos de aprendizagem no interior das salas de aula, envolvendo substancialmente as relações que acontecem entre professor/a e educandos e educandos entre si, e mesmo entre professores e professoras e, ainda, entre esses/as e as demais instâncias que compõem o coletivo da escola, essa abordagem adquire concretude e possibilidade efetiva de acontecer. Relações que se estabelecem no interior das salas de 82


aula e nas escolas de modo geral são sempre tensas, intensas e conflitivas, e revelam as concepções que se encontram subliminares às atitudes das pessoas. No âmbito das ações docentes e, mais precisamente, no terreno dos conteúdos escolares e das metodologias, a perspectiva intercultural inclui os processos de interação em sala de aula, em que a participação é dialógica e dinâmica, reflexiva e pró-ativa; os conflitos são entendidos como mobilizadores do processo de aprendizagem, em que a tomada de decisões não se dá arbitrariamente pelo professor ou professora, decorrem de processos de negociação entre os estudantes mediados pelos docentes. São decisões potencializadoras do enriquecimento intercultural, ajustadas aos distintos interesses e capacidades, as quais podem ser aplicadas a outros contextos. A crítica e o aperfeiçoamento são favorecidos progressivamente, a cooperação é potencializada, assim como a planificação de ações e o seu desenvolvimento. Nessa abordagem é fundamental que os sujeitos sintam-se pessoalmente comprometidos na análise das próprias atitudes e valores, na busca de novas perspectivas compartilhadas. Portanto, não está restrita à mera inserção de temas dentro do currículo ou de metodologias pedagógicas. Trata-se de uma nova perspectiva e como tal requer novas relações, enfoques e procedimentos. Contempla uma proposta de transformação estrutural e sócio-histórica, na medida em que concebe a pedagogia como política cultural, daí seu caráter propositivo e não apenas denunciativo. Pensar, agir e viver interculturalmente, especialmente a partir de uma perspectiva crítica, transpõe a descoberta de si mesmo e do outro, requer ações pensadas e executadas de maneira interativa, respeitosa, solidária, afetiva, prospectiva com vistas à justiça e equidade social e construção de um mundo menos desigual. Se é fato que o curso seguido pela vida humana é o da sensibilidade, e nela as nossas emoções interagem com nossas ideias e valores, estabelecendo significados vivenciais para assim dizer a nós e aos outros quem somos, quem são nossos outros e o que estamos vivendo, experimentando e fazendo com eles e entre eles, como diz Carlos Rodrigues Brandão (2005), então também é fato 83


que a educação intercultural é geradora de sensibilidade, na medida em que possibilita a reflexão associada à emoção. Em outras palavras, as emoções são significadas por meio de saberes, valores e sentidos que criamos cooperativamente, para construir e compartilhar nossas vidas. Para que projetos interculturais aconteçam é necessário, entre outros aspectos, articular políticas educativas e práticas pedagógicas comprometidas com o princípio da não discriminação e voltadas à desconstrução de subalternidades, à emancipação e à liberdade, às práticas efetivamente emancipatórias.

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CAPÍTULO IV

INTERCULTURALIDADE E FORMAÇÃO DOCENTE: possibilidades para reconhecimento da diversidade religiosa Adecir Pozzer

1 Palavras iniciais A temática da diversidade religiosa está imbricada à história do Brasil e, respectivamente, às concepções e práticas formativas desenvolvidas até os dias atuais. A partir da colonização, grande parte desta história foi marcada pela negação da diversidade religiosa de forma oficial, permanecendo, após a separação entre Estado e Igreja, de forma oficiosa. No entanto, processos de resistência e algumas iniciativas em diferentes áreas do conhecimento, estão possibilitando o desenvolvimento de um pensamento mais amplo em relação à diversidade religiosa, provocando assim, uma releitura das perspectivas formativas com caráter monocultural e técnico-instrumental. Estas iniciativas ancoram-se em entorno do conceito de interculturalidade. A perspectiva intercultural constitui-se como um caminho para pensar uma formação capaz de agregar, integrar e desenvolver processos de reconhecimento do outro, para além das diferenças, aspectos constituintes da identidade dos sujeitos nas diferentes culturas, em que a dimensão da crença religiosa não pode ser subestimada, excluída ou negada. Os processos interculturais no campo da formação humana e, especificamente a formação docente, sugerem a realização de diálogos autênticos e exigem a superação da incapacidade de dialogar que, em certa medida, impede o estabelecimento de relações marcadas pelo respeito e reconhecimento da alteridade dos sujeitos dialogantes. 89


O diálogo ocorre quando há uma participação ativa, tanto na fala quanto na escuta. Visa superar a lógica em que há sujeitos e sujeitados. No diálogo autêntico os sujeitos dialogantes acolhem-se e reconhecem-se em suas alteridades. Não há superiores e inferiores por causa de diferenças de qualquer natureza. Acreditamos ser um aspecto basilar para pensar a formação na perspectiva intercultural, sendo a diversidade religiosa parte integrante dos currículos que tratam da formação docente.

2 Interculturalidade: aproximações conceituais A temática da interculturalidade é recente no campo das Ciências Humanas e Sociais na América Latina. No Brasil, ingressou sob duas perspectivas com origens diferentes, uma a partir de perspectivas europeias e outra de base latino-americana. No continente Europeu, os estudos e discussões relativas à interculturalidade surgem a partir do fenômeno da imigração, no qual muitos países se defrontaram com inúmeras culturas oriundas dos demais continentes, provocando problemáticas complexas e conflitivas no campo educacional e social. Já nos países Latino-Americanos, as pesquisas, estudos e reflexões desenvolvem-se em outra perspectiva, mais relacionadas aos grupos e às populações indígenas e afro-americanas marginalizadas (CANDAU, 2008). De acordo com Fleuri (2009a, p. 3), a interculturalidade [...] é o reconhecimento do outro na sua cultura como produtores autônomos significativos de conhecimento, de autonomia própria. [...] A grande riqueza, está na interação com o outro, ao buscar compreender o outro em profundidade eu coloco em cheque a própria estrutura do meu pensamento, do meu modo de viver, não no singular, mas no plural.

A proposta da interculturalidade está não em apenas tolerar e possibilitar que o outro enquanto sujeito/grupo ou cultura 90


tenha garantido um espaço geográfico para sobreviver, mas está em (re)conhecer o outro para compreendê-lo e apre(e)nder com ele. A partir desta interação, é fundamental procurar mudar radicalmente as formas predatórias, marginalizadoras e monoculturais de pensar e organizar as sociedades em todos os níveis. Jordán (1996) acrescenta que a interculturalidade abarca os aspectos sociais, políticos, ideológicos, culturais e educacionais/ pedagógicos. Neste sentido, pensar a interculturalidade somente na esfera educacional é limitar as possibilidades que ela tem a oferecer de um modo geral. Ela é uma possibilidade pedagógico-educacional que necessariamente precisa estar associada à problemática social e política de e em cada contexto. Necessariamente, precisamos revisitar o conceito de cultura na perspectiva da escola que, de certa forma, reproduz a cultura dominante presente na sociedade. Mas, pela sua natureza, a escola é constantemente desafiada a reler e refletir os pressupostos que a constitui com o intuito de produzir uma cultura própria, a cultura da escola, onde os sujeitos que transitam determinado contexto se sintam parte de um processo criativo e participativo que caracteriza uma determinada escola, com um modo próprio e significativo de desenvolver os processos de ensino e aprendizagem, rompendo assim com o caráter monocultural que reproduz identidades desconectadas da alteridade dos sujeitos. Sacristán e Pérez Gómez (1995, p. 97), ao abordarem o caráter monocultural da cultura escolar afirmam que [...] a cultura dominante nas salas de aula é a que corresponde à visão de determinados grupos sociais: nos conteúdos escolares e nos textos aparece poucas vezes a cultura popular, as subculturas dos jovens, as contribuições das mulheres à sociedade, as formas de vida rurais, e dos povos desfavorecidos (exceto os elementos do exotismo), problema da fome, do desemprego ou dos maus tratos, o racismo e a xenofobia, as consequências do consumismo e muitos outros temas problemas que parecem “incômodos”. Consciente e inconscientemente se produz um primeiro velamento que afeta os conflitos sociais que nos rodeiam quotidianamente.

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Para Méndez (2009, p.101), “a interculturalidade exige não só reconhecer as possibilidades educativas dos variados espaços de interrelação, mas fazer dos espaços educativos – escolares ou não – plataformas para que todos recuperem a palavra”. Neste processo, a formação docente na perspectiva da interculturalidade pode contribuir na recuperação da força histórica da palavra; o direito de falar e o poder/autoridade da palavra3. A formação docente, dentro da perspectiva da interculturalidade é um aspecto crucial e determinante, pois, os formadores precisam recuperar a força da palavra, do direito de falar e do poder/autoridade da palavra no seu processo formativo, a fim de que sejam educados no ouvir/acolher/ reconhecer os sujeitos do processo educacional, os educandos. As perspectivas interculturais visam superar o monoculturalismo, as noções da biculturalidade4 e da pluriculturalidade5. O próprio termo multiculturalidade, que segundo Candau (2008), muitas vezes é utilizado como sinônimo de interculturalidade, não responde especificamente ao desenvolvimento de uma dinâmica social informado pelo caráter intercultural, mas provoca na sociedade “apartheids” e guetificações sociais e culturais. Parece-nos que o desafio reside na continuidade e ampliação de projetos que investigam e avaliam em que medida e abrangência a perspectiva da interculturalidade pode contribuir na elaboração de referenciais e encaminhamentos de projetos para a formação docente na tentativa de educar para o respeito e o reconhecimento da diversidade cultural religiosa no contexto educacional de social. 3 Diversidade Religiosa: negação ou reconhecimento? Compreendemos que a diversidade religiosa está imbricada com as culturas e os processos históricos, políticos e sociais de cada contexto, pois: 3 Recuperar o direito de falar e o poder/autoridade da palavra é um desafio à educação e perpassa também pela formação de educadores (Cf. Streck, 2005) 4 Biculturalidade - Refere-se às ações institucionais que procuravam considerar a diferença cultural envolvendo as culturas indígenas e ocidentais-europeias (Cf. Silva, 2003). 5 Pluriculturalidade – Diz respeito a uma tentativa de assumir a diversidade como algo positivo, um recurso enriquecedor (Cf. Hamel, 2006).

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As tradições, as memórias e as histórias contribuem para a tessitura das culturas, para o modo como as pessoas e os lugares estão ligados e como as pessoas usam e valorizam seus tempos, espaços e lugares, constroem-se e reconstroem-se, desenvolvem-se e desenvolvem o seu entorno (OLIVEIRA et. al., 2009, p. 9).

Sidekum (2009) entende que o ser humano vem ao mundo despreparado para viver, pois não vem dotado e predeterminado por instintos irracionais. Por meio da aprendizagem que se dá no âmbito sociocultural, ele aprende a superar as situações contrárias à sua natureza frágil para sobreviver. As culturas vêm e se constituem como arcabouços para a sobrevivência e o desenvolvimento do ser humano. Para o autor (2009, p. 58-59), cultura é, [...] todo o ato de aprender a viver e o processo de humanizar-se. Cultura passa a ser o processo de humanização. Assim, podemos definir a cultura como o modo de viver do ser humano. Pela cultura o homem supera o que lhe é dado pela natureza. Portanto, a cultura é todo o processo com o qual ele se transforma: a sociedade e o mundo material. [...] A cultura compreende-se a partir da criatividade humana. Essa criatividade é sua característica fundamental. O caráter antropológico é a divisa que se estabelece com um mundo dado. [...] A cultura expressa o desenvolvimento das habilidades cognitivas e espirituais do ser humano. Além da ideação do mundo, o ser humano é impulsionado para a transformação do mundo.

Todas as culturas produziram algum tipo de crença ou manifestações religiosas frente aos processos de busca de compreensão dos fenômenos naturais e humanos. A partir da observação e relação com a natureza construíram conhecimentos que exerceram grande influência na organização social, sendo que muitos deles penduram até os dias atuais: As diferentes vivências, percepções e elaborações em relação ao sagrado integram o substrato cultural dos povos, cujos relatos e registros elaborados sistematicamente pela humanidade se constituem em um arcabouço de conheci-

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mentos a instigar, desafiar, conflitar e subsidiar o cotidiano das gerações (RISKE-KOCH, 2006, p. 52).

De acordo com Martini (1995), na raiz de toda criação cultural reside uma possibilidade de transcendência. A capacidade de transcender é uma dimensão inerente ao ser humano e esta integra tudo o que está em seu envolto. Por isso, o ser humano foi deixando marcas ao longo da história que o caracteriza como homo religiosus que, de acordo com Eliade (2001), é a abertura às manifestações inteiramente diferentes das realidades consideradas “naturais”. O religioso, expresso em diferentes religiosidades e tradições religiosas, passa a ser entendido como parte de uma totalidade, corresponsável pela vida. Não pode ser concebido ou tido como algo privilegiado ou mais importante que outros elementos que integram a estrutura das culturas, mas, sim, como algo integrado e comprometido com as realidades sociais (OLIVEIRA et. al., 2007). De acordo com Eliade, buscar conhecer o universo transcendental e as situações assumidas pelo ser humano religioso é fazer avançar seu conhecimento como um todo, embora [...] a maior parte das situações assumidas pelo homem religioso das sociedades primitivas e das civilizações arcaicas há muito tempo foram ultrapassadas pela história. Mas não desapareceram sem deixar vestígios: contribuíram para que nos tornássemos aquilo que somos hoje; fazem parte, portanto, da nossa própria história (ELIADE, 2001, p. 164).

No Brasil, as crenças religiosas dos povos ancestrais indígenas e africanos foram relegadas, desconsideradas e negadas pelos colonizadores, os quais impuseram outra crença, a cristã. Aos que se negavam a conversão, restava à perseguição e o não reconhecimento social e político. Além dos povos ancestrais indígenas, passaram pelas mesmas restrições e perseguições integrantes das religiões afro-brasileiras, judaicas e protestantes. A diversidade cultural religiosa era tida como uma ameaça ao fundamento em que a sociedade brasileira estava organizada (FONAPER, 2000). 94


O modelo etnocêntrico e monocultural impregnado pelo processo de colonização não permitia ver/aceitar a diversidade cultural e religiosa que constituía a nação brasileira. Com o processo de imigração iniciado no século XIX e intensificado no século seguinte, juntamente com as lutas de movimentos étnicos, sociais e religiosos, ocorreu um processo de ampliação e percepção da diversidade cultural religiosa. Mesmo assim, tal processo se mostrou insuficiente e lento enquanto reconhecimento social e político. Mesmo após algumas reformas e políticas educacionais, o modelo etnocêntrico e monocultural persiste nas propostas pedagógicas, nos currículos formativos de docentes, nos materiais didáticos e nos ritmos e ritos da escola. Na educação monocultural, pode-se dizer que oficialmente ou oficiosamente os valores da cultura religiosa eurocêntrica, judaico-cristã permanecem de forma hegemônica e, não raro, em detrimento da diversidade presente no substrato das diferentes culturas. Na Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural publicada pela UNESCO em 2001, a diversidade cultural é reconhecida como um patrimônio da humanidade. Do conjunto de elementos que constituem as culturas, não é possível excluir a dimensão das crenças religiosas, pois são partes estruturantes e, de uma forma ou de outra, exercem influência na formação das identidades dos sujeitos. Neste sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu art. II, afirma que toda pessoa tem o direito de gozar das liberdades fundamentais, independente das diferenças de “raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição” (ONU, 1948). Tais premissas desafiam significativamente a educação para que amplie suas reflexões, estudos e práticas a fim de superar processos que invizibilizam, discriminam e colonizam o outro em sua alteridade. A perspectiva intercultural tem despertado o interesse de educadores que, comprometidos com o respeito e reconhecimento da diversidade religiosa no campo educacional, procuram refletir e desenvolver práticas interculturais. 95


Reconhecer o outro é reconhecer o diferente, o não-eu. De acordo com Oliveira (2003, p. 166), o diferente é aquele “que anda diferente, fala diferente, vê o mundo com outros olhos, tem cor da pele diferente, crê de modo diferente, deseja e se identifica de outro modo, pertence à outra cultura, a outra geração ou a outro grupo social”. Assim, o reconhecimento não se reduz a processos distributivos como forma de equiparação de desigualdades de condições sociais e econômicas. Perpassa pela questão ética chegando à justiça.

4 Formação docente: o currículo em perspectivas interculturais Sou sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos viram o que nenhum homem poderia ver: câmaras de gás construídas por engenheiros formados, crianças envenenadas por médicos diplomados, recém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas, mulheres e bebês fuzilados e queimados por graduados de colégios e universidades. Assim, tenho minhas suspeitas sobre a educação. Meu pedido é: ajudem seus alunos a tornarem-se humanos. Seus esforços nunca deverão produzir monstros treinados ou psicopatas hábeis. Ler, escrever e aritmética só são importantes para fazer nossas crianças mais humanas (OLIVEIRA, 2006, p. 63).

Este texto é uma carta anônima encontrada em um dos muros do campo de extermínio nazista de Auschwitz, na Alemanha. O autor revela a indignação, o desconforto e os desafios à educação, denunciando e implorando outros olhares à formação docente que, fundamentalmente perpassa pelas questões curriculares e pelos tipos de relações que se estabelecem nos processo formativos. Decorre daí a exigência em repensar outros paradigmas para a formação docente frente ao monoculturalismo que, mesmo diante dos inúmeros movimentos em prol das diversidades, tende a se manter nos processos formativos em seus conteúdos, metodologias, discursos e valores. Não estamos defendendo a mera substituição de uma perspectiva por outra, mas sim, refletindo em que 96


medida a interculturalidade pode contribuir na desacomodação e elaboração de outras possíveis respostas aos desafios atuais que afligem a humanidade. Moreira e Candau (2003, p. 161) atestam esta perspectiva ao afirmarem que: A escola sempre teve dificuldade em lidar com a pluralidade e a diferença. Tende a silenciá-las e neutralizá-las. Sente-se mais confortável com a homogeneização e a padronização. No entanto, abrir espaços para a diversidade, a diferença e para o cruzamento de culturas constitui o grande desafio que está chamada a enfrentar.

Se a escola é compreendida como um espaço no qual os diferentes se encontram e as diferenças se identificam e/ou se (re)produzem, não pode negar ou omitir a discussão referente à diversidade religiosa, assim como as demais. Neste sentido, cabe perguntar: como os currículos abordam a temática da diversidade cultural religiosa? A partir de que olhares, intencionalidades e perspectivas? Primeiramente é preciso refletir sobre o que é/são currículo(s). Segundo Moreira e Candau (2008, p. 86), [...] existem várias concepções de currículo, as quais refletem variados posicionamentos, compromissos e pontos de vista teóricos. As discussões sobre currículo incorporam, com maior ou menor ênfase, debates sobre os conhecimentos escolares, os procedimentos pedagógicos, as relações sociais, os valores e as identidades dos nossos alunos e alunas.

Dentre muitas compreensões e enfoques, Silva (1999) recorda que o currículo é lugar, é território. Portanto apresenta significados que ultrapassam teorias tradicionais, pois, se dá nas e pelas relações de poder. Neste sentido, o currículo se configura no caminhar, pois, é trajetória, é percurso. Na perspectiva de o currículo integrar e articular diferentes contextos educativos que contemplem a diversidade cultural, Fleuri (1999b, p. 288) afirma que, 97


O currículo e a programação didática, mais do que um caráter lógico, terão uma função ecológica, ou seja, sua tarefa não será meramente a de configurar um referencial teórico e o repasse hierárquico e progressivo de informações, mas terá a tarefa de prever e de preparar recursos capazes de ativar a elaboração e circulação de informações entre sujeitos, de modo que se auto-organizem com relação à reciprocidade entre si e com o próprio ambiente.

A compreensão de currículo acima desafia para uma avaliação da maneira hegemônica que a escola define e trata os conhecimentos. Neste sentido, Gomes (2008, p. 24) questiona: Podemos indagar que histórias as narrativas do currículo têm contado sobre as relações raciais, os movimentos do campo, o movimento indígena, o movimento das pessoas com deficiência, a luta dos povos da floresta, as trajetórias dos jovens da periferia, as vivências da infância (principalmente a popular) e a luta das mulheres? São narrativas que fixam os sujeitos e os movimentos sociais em noções estereotipadas ou realizam uma interpretação emancipatória dessas lutas e grupos sociais? Que grupos sociais têm o poder de se representar e quais podem apenas ser representados nos currículos? Que grupos sociais e étnico/raciais têm sido historicamente representados de forma estereotipada e distorcida?

De acordo com a autora é necessário sair do imobilismo e agir, repensando as práticas pedagógicas, a fim de que elas contemplem as diferentes identidades e diferenças culturais que transitam o cotidiano escolar e que estão presentes na sociedade. Para inserir nos currículos tais discussões, é necessário compreender as causas políticas, econômicas e sociais de fenômenos como o etnocentrismo, racismo, sexismo, homofobia e a xenofobia. Falar sobre a diversidade e a diferença, pressupõe um posicionamento literalmente contrário aos processos de colonização e dominação: É perceber como, nesses contextos, algumas diferenças foram naturalizadas e inferiorizadas sendo, portanto, tratadas de forma desigual e discriminatória. É entender o impacto subjetivo destes processos na vida dos sujeitos sociais e no

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cotidiano da escola. É incorporar no currículo, nos livros didáticos, no plano de aula, nos projetos pedagógicos das escolas os saberes produzidos pelas diversas áreas e ciências articulados com os saberes produzidos pelos movimentos sociais e pela comunidade. Há diversos conhecimentos produzidos pela humanidade que ainda estão ausentes nos currículos e na formação dos professores [...] (GOMES, 2008 p. 25).

Neste sentido, podem-se citar conhecimentos da comunidade negra e afro-brasileira na luta pela superação do racismo; conhecimentos referentes à luta dos povos indígenas pela terra, já que a mesma foi literalmente invadida e roubada pelos colonizadores; conhecimentos produzidos pelas mulheres no processo de luta pela igualdade de gênero; conhecimentos da juventude expressos em diversos momentos sócio-político-culturais; conhecimentos e ensinamentos das tradições religiosas orientais, africanas e indígenas, dentre tantos outros. Incorporar de forma integrada a produção histórica das diferenças e das desigualdades é uma maneira de saldar simbolicamente a dívida da própria educação brasileira com os grupos sociais historicamente tratados de forma desigual. Sacristán (1997) ao ser interrogado sobre como contemplar num currículo os conhecimentos do cotidiano e os científicos, indica três possibilidades: a) é preciso estudar o contexto social dos educandos na sala de aula, sua cultura próxima, isto é, os sujeitos precisam compreender o que se passa ao redor deles para compreender questões mais distantes e complexas. b) é necessário nas práticas pedagógicas dar lugar para que os educandos analisem e compreendam as crenças presentes no contexto e no cotidiano em que vivem para assim respeitar as diferentes culturas. A vida cotidiana e as crenças sobre elas dão sentido a vida aos sujeitos. Tais crenças possuem sentidos que são comuns, cultura e irracionalidades que, por vezes, precisam ser corrigidas. c) Faz-se necessário contemplar o dia-a-dia para transcendê-lo, ou seja, precisa-se ir além do imediato e isso se alcança pelo conhecimento mais particular e também sobre o universal. De acordo com Oliveira (2003), será preciso considerar uma 99


mudança nos métodos pedagógicos assim como propiciar outra formação de docentes, que estimule uma perspectiva cultural que contemple a complexidade da cultura e da experiência humanas e conduza à discussão, reflexão e encaminhamento de uma prática educativa comprometida radicalmente com a vida solidária num contexto marcado pela alteridade. Urgente se faz superar as marcas de um currículo monocultural, estabelecendo processos de reeducação do olhar sobre o outro e sobre nós mesmos a partir das diferenças. Deve-se superar o apelo romântico ao diverso e ao diferente e construir políticas e práticas pedagógicas e curriculares nas quais a diversidade possa ser uma dimensão constitutiva do currículo, do planejamento das ações e das relações estabelecidas nos contextos formativos. A formação docente em perspectivas interculturais perpassa fundamentalmente pelos processos de construção do currículo e o respectivo desenvolvimento e envolvimento dos sujeitos.

5 Considerações finais Não nasci, porém, marcado para ser um professor assim. Vim me tornando desta forma no corpo das tramas, na reflexão sobre a ação, na observação atenta a outras práticas ou a prática de muitos sujeitos (FREIRE, 1993, p. 87).

É relevante considerar que todo docente é um sujeito que, antes de ser educador, teve uma formação e continua se formando cotidianamente. Seu corpo traz as marcas indeléveis da construção de sua própria história. História como ser social, religioso, familiar, político e acadêmico. Formal e informalmente, o ser humano incorpora cotidianamente e (res)significa conceitos e práticas que, ao longo da vida, serão decodificados e ancorados a outros esquemas que, por sua vez, construirão e constituirão o ser educador (OLIVEIRA e RISKE-KOCH, 2008). Neste sentido, para tratar da diversidade religiosa em perspectivas interculturais em contextos formativos e educacionais, a formação docente precisa se pautar em pressupostos da intercul100


turalidade que, analogicamente, provocará mudanças nas “lentes” pela quais olhamos o outro em suas diferenças. Não basta mudar apenas a “armação” destas lentes sem transformar o olhar, sob o risco de continuar reproduzindo invisibilizações. Uma formação docente na perspectiva intercultural possibilita ver-olhar a diversidade cultural religiosa de forma mais abrangente, para além dos preconceitos e estigmatizações reproduzidos historicamente. Por meio de outra formação docente é possível romper com as visões monoculturais presentes em processos formativos, superando “daltonismos culturais” que não permitem reconhecer o “arco-íris de culturas” que transitam o contexto escolar (MOREIRA, 2008, p.31). Neste “arco-íris”, a diversidade religiosa está presente e tem de ser tratada com o intuito de potencializar a capacidade de diálogo entre docentes e formandos, de forma autêntica e responsável. No que tange a diversidade cultural e religiosa, esta perspectiva encontra-se presente nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Religioso (FONAPER, 2009), segundo o qual o profissional do Ensino Religioso é um dos responsáveis diretos pelo tratamento pedagógico e respeito à diversidade cultural religiosa, em suas múltiplas manifestações. Portanto, os profissionais da educação têm de nortear-se pela sensibilidade à pluralidade e, conscientes da complexidade sociocultural da questão religiosa no contexto escolar, procurar garantir eticamente a liberdade religiosa, promovendo uma educação para o diálogo inter-religioso e intercultural, na constante busca pela promoção dos direitos humanos.

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CAPÍTULO V

PEDAGOGIA E INTERCULTURALIDADE: alternativas para descolonizar o desenvolvimento6 Raquel Maria Pimentel Oliveira dos Reis Jasom de Oliveira Lilian Blanck de Oliveira

1 Palavras Iniciais Este texto transita em um universo de aportes teóricos, discussões e reflexões provocadas e respaldadas por realidades de opressão e invisibilização de homens e mulheres historicamente marginalizados e ignorados em processos de colonização nos territórios latino-americanos. Para tanto, investiga e discute o valor e reconhecimento da diversidade cultural como compromisso para com as atuais e futuras gerações em realidades de exclusão na busca de contribuir com debates e reflexões sobre processos de colonização ocorridos na América Latina em sintonia com correntes de pensamentos que defendem a descolonização - contraponto à concepção de desenvolvimento à moda ocidental, isto é, oposição ao posicionamento de superioridade eurocêntrica diante das culturas e saberes dos povos latino americanos. Concepção de superioridade que decorre no escalonamento de categorias como: países do Primeiro Mundo (desenvolvidos) e países do Terceiro Mundo (em desenvolvimento), geradas em aportes teóricos alheios às culturas e conhecimentos locais/regionais. A dinâmica imposta pela colonização cristã e eurocêntrica na América Latina forjou relações sociais, elegeu conhecimentos e estabeleceu modelos de desenvolvimento, invisibilizando e subalternizando saberes, culturas e povos e originários. 6 Este texto foi apresentado originariamente no Primer Congreso de Estudios Poscoloniales, y las II Jornadas de Feminismo Poscolonial - Cruzando puentes: Legados, genealogías y memorias poscoloniales em 5, 6 e 7 de dezembro de 2012. Buenos Aires, Argentina - Biblioteca Nacional.

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Pesquisas realizadas pelos autores apontam para a premência de se pensar processos de desenvolvimento em diferentes instâncias em uma perspectiva intercultural, ou seja, que reconheçam, contemplem e integrem as diferentes culturas, conhecimentos e saberes que permeiam as sociedades contemporâneas. Isto se viabiliza a partir da adoção de outros olhares e leituras - referenciais teórico-práticos que encaminham, organizam e constituem outras e novas pedagogias - ações em alteridade de respeito, acolhida, solidariedade e interação com os interesses e necessidades de todos os sujeitos e culturas comprometidos visceralmente com a construção de outros mundos melhores, e ainda, possíveis para se estar, ser e viver.

2 Descolonizar o Desenvolvimento O processo de colonização dos países da América Latina, implementado pelos representantes da matriz cristã europeia, pode ser entendido como um modelo de desenvolvimento à maneira ocidental7. Anibal Quijano (2005, p. 6) explica que, nesse processo os colonizadores europeus, [...] forçaram – também em medidas variáveis em cada caso – os colonizados a aprender parcialmente a cultura dos dominadores em tudo que fosse útil para a reprodução da dominação, seja no campo da atividade material, tecnológica, como da subjetiva, especialmente religiosa. É este o caso da religiosidade judaico-cristã.

Para Casaldáliga (1988, p. 12) os processos de evangelização efetivada pelos colonizadores europeus na América Latina “[...] foi uma evangelização compulsória, muito culturalista, muito impositiva. Foi uma evangelização muito pouco evangélica”. No âmbito cultural o processo de colonização ocorrido na América Latina é entendido por Meliá (2009) como um descobrimento de terras 7 À maneira ocidental é expressão usada por Verhelst (1992), para designar os processos de desenvolvimento impostos pelos colonizadores europeus.

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e encobrimento de culturas, pois os colonizadores não reconheceram o legado cultural dos nativos latino-americanos (cultos, ritos, idiomas) e, estribados nesta postura de intolerância, impuseram sua forma de pensar e agir aos povos conquistados. Entretanto, para Casaldáliga (1988, p. 12), apesar dessa violência sofrida, o povo latino americano conseguiu resguardar a riqueza presente na sua cultura (indígena e negra) e esse legado continua contribuindo com “[...] vitalidade suficiente para continuar sendo eles mesmos [...]”. É nesta perspectiva que Arnold (2008) apresenta suas críticas ao modelo de desenvolvimento em curso, considerando-o como desenvolvimentista e declara o seu apoio à tendência atual denominada descolonização, termo que se opõe ao modelo de desenvolvimento imposta pelos grupos hegemônicos do hemisfério norte. Candau (2009, p. 24) também se posiciona a favor deste movimento de orientação decolonial “[...] dirigido a romper as correntes que ainda estão nas mentes [...]” dos colonizados. Nesse movimento também estão envolvidos outros pesquisadores, entre eles, Catherine Walsh e Reinaldo Fleuri. Para sair desta condição de subalternidade histórica Catherine Walsh (2009) propõe uma mudança de atitude, um repensar sobre o que se vivencia e o que se percebe sobre desenvolvimento na América Latina e, para tanto, propõe um movimento que define como descolonização, que para ela, pode ser definido como um movimento capaz de “[...] sinalizar e provocar um posicionamento – uma postura e atitude contínua – de transgredir, intervir, insurgir e influenciar” (p. 15, tradução nossa). Casaldáliga (1988, p. 13) explica que descolonizar significa “[...] permitir ao povo latino-americano que se possa expressar no concerto das nações do mundo como outro, como diferente [...] com uma identidade que em certa medida unifica todos estes povos [...]”. Para ele descolonizar é “[...] voltar às fontes da identidade latino-americana, deixar que a América Latina seja o que originalmente é permitir que se realize como um Continente de todos, fraternos, com uma unidade radical, indígena, negra, criolla...[...]” (p. 12). 107


Descolonizar é permitir que a cultura latino-americana contemporânea constituída das vivências e experiências dos povos nativos aliados à contribuição das culturas dos povos que nela se fixaram possam se expressar sem estribo e sem peias “[...] em todos os aspectos da vida cultural, em suas produções literárias, artísticas, na educação, na organização política [...]” (CASALDÁLIGA, 1988, p. 13). Azibeiro (2006, p. 86-87, grifos da autora) trilha os caminhos da descolonização utilizando-se da expressão desconstruções de subalternidades: [...] desconstruir a relação de subalternidade é transformá -la em relação de reciprocidade, não como um pacifico, conciliador e amorfo face a face, mas como potenciação dos paradoxos, das contradições, explodindo na construção de significados e processos de subjetivação diversos dos habituais, por que plurais, polissêmicos – implicando muitas vezes a transgressão, ou subversão, significada como crítica e mudança de modos de entendimento e ação. Essa transgressão, em geral, pode significar introduzir – ou perceber – o inusitado, o inesperado em nossas ações e reações, levando à reflexão e à tomada de posição, pelo deslocamento de significados enrijecidos, cristalizados.

Entendemos isto como uma tomada de atitude, sair do comodismo individual, pensar plural e ousar na busca de ações que favoreçam o coletivo. Na base dos processos colonizadores reside uma concepção de superioridade adotada por alguns atores e gestores que atuam nas numerosas entidades internacionais de fomento ao desenvolvimento à maneira ocidental. Para Verhelst (1992), a falta de articulação, a desvalorização das culturas, conhecimentos e a negação da participação efetiva dos representantes das populações autóctones no planejamento e ações dos projetos de desenvolvimento representam um dos entraves para a implantação e sucesso, destes projetos, em regiões ou países que apresentam dificuldades históricas. 108


Para o autor (1992), o modus operandi destas organizações é explicado como uma tentativa de projetar em ambientes culturalmente diferenciados as experiências positivas vivenciadas no hemisfério Norte, sem levar em conta os costumes, aspirações, necessidades e objetivos das comunidades em questão, ou seja, uma postura voltada à adoção de comportamentos padronizados, que não reconhece o diferente, que não disponibiliza o direito à diferença. Esta posição de superioridade, não aceitação de manifestações, diálogo e interação com outras culturas adotada pelos países do Norte, sustenta-se no olhar e prática etnocêntricos, provocados e alimentados por uma posição econômica dominante. Verhelst (1992) questiona se este tipo de visão, a enxergar nas tradições autóctones aspectos negativos ou retrógrados, não poderá incorrer num erro fatal e irreversível. Um exemplo das consequências de tal posição é dado por Arnold (2008) quando destaca que a invasão europeia trouxe na sua esteira uma série de fenômenos que trouxeram influências para a região colonizada, isto é, mudaram a configuração de alguns aspectos da cultura local. Entre eles podemos citar: a evangelização das sociedades da região com culturas religiosas de fora: católica, judaica e muçulmana; a exploração dos recursos naturais da região (sobretudo, a prata); a vinculação da exploração dos recursos naturais com a filosofia de desencanto da natureza defendida por Descartes, Kant, Hegel e Marx. A conjuntura que favoreceu esse padrão de desenvolvimento veio com a reconfiguração do mundo após a II Guerra Mundial. Desde então a Europa e os EUA dividiram o mundo economicamente em três níveis: o Primeiro Mundo formado por países desenvolvidos onde estava concentrada a riqueza; o Segundo Mundo formado pelo bloco comunista; o Terceiro Mundo considerado a periferia econômica do Primeiro Mundo, em virtude da sua condição de subdesenvolvimento. Ao defender a descolonização Arnold (2008) aponta como melhores alternativas de desenvolvimento aquelas que contemplam e integram, na sua efetivação, o conhecimento da população 109


nativa, isto é, aquelas que no seu planejamento de desenvolvimento regional/local dão às pessoas de cada comunidade voz e vez para falarem e serem ouvidas e, desta forma, não se utilizam de modelos hegemônicos, mas principalmente, priorizam a cultura local, permite a presença e utilização de formas de trabalho diferentes, mas nem por isso inferiores. Para explicar a condição de inferioridade atribuída aos colonizados Quijano (2005) explica que a concepção de superioridade assumida pelos colonizadores não corresponde exatamente à verdade histórica dos povos colonizados, pois antes de serem submetidos à colonização europeia muitos destes povos pertenciam a civilizações consideradas, ainda hoje, desenvolvidas e sofisticadas, mas os colonizadores europeus ignoraram o legado cultural destes povos e os relegaram à condição de invisibilização. O autor acrescenta que, […] no momento em que os ibéricos conquistaram, nomearam e colonizaram a América […] encontraram um grande número de diferentes povos, cada um com sua própria história, linguagem, descobrimentos e produtos culturais, memória e identidade. […] São conhecidos os nomes dos mais desenvolvidos e sofisticados deles: astecas, maias, chimus, aimarás, incas, chibchas, etc. Trezentos anos mais tarde todos eles reduziam-se a uma única identidade: índios. Esta nova identidade era racial, colonial e negativa. Assim também sucedeu com os povos trazidos forçadamente da futura África como escravos: achantes, iorubás, zulus, congos, bacongos, etc. No lapso de trezentos anos, todos eles não eram outra coisa além de negros (QUIJANO, 2005, p. 12).

Tal resultado representa o histórico do poder colonial e criou duas situações distintas. A primeira está relacionada a não aceitação da cultura dos povos latino-americanos pelos colonizadores europeus e, desta forma, foram despojados da sua identificação histórico-cultural. De acordo com Quijano (2005, p. 12) a segunda situação “[…] é, talvez, menos óbvia, mas não é menos decisiva: sua nova identidade racial, colonial e negativa, implicava o despojo de seu lugar na história da produção cultural da humanidade”. Para 110


ele, desde então, foi imposta, aos colonizados, a condição de inferioridade racial com capacidade, apenas, de produção cultural inferior, além da “[…] sua relocalização no novo tempo histórico constituído com a América primeiro e com a Europa depois: desse momento em diante passaram a ser o passado” (2005, p. 13). Portanto, ao padrão de poder presente na colonialidade é associado um padrão de cognição que classifica o conhecimento não europeu como passado, primitivo e inferior. Neste sentido, Ahmed Baba Miské (1981, p. 44) afirma que esta postura dos colonizadores europeus representa “[…] o assassinato das civilizações que serviram de base para muitas das sociedades dos dias de hoje […]”. Em oposição à condição de superioridade adotada pelos colonizadores europeus, Herman Viola e Carolyn Margolis (1991) enfatizam que a constituição e afirmação da Europa como referência de poder e desenvolvimento só se fez possível em razão da exploração do trabalho gratuito dos negros, mestiços e índios da América Latina, trabalho esse embasado na avançada tecnologia apresentada na mineração e agricultura com destaque, entre outros, para os seguintes produtos: prata, ouro, tomate, tabaco e batata. Este cenário nos leva a questionar o desenvolvimento imposto pelos colonizadores europeus à América Latina e outros povos. Este questionamento vincula-se à preocupação de Catherine Walsh (2009) com a deterioração das estruturas institucionais e, principalmente, com a qualidade de vida. Para mudar este cenário a autora sugere a disponibilização de vida digna para todos os seres humanos. Dignidade não apenas em termos individuais, mas que abranja os entornos sociais, culturais e ancestrais nos quais os seres humanos se desenvolveram. Uma dignidade vinculada ao direito de exercer sua diversidade cultural, de alcançar a satisfação das suas necessidades. É com base neste direito que se funda a proposição de um desenvolvimento sob características e perspectivas interculturais (REIS, 2010). Um desenvolvimento que promova o bem estar individual entrelaçado ao coletivo, que disponibilize a melhoria da qualidade de vida, que permita o protagonismo, enfim, que potencialize a igualdade de oportunidades para cada ser humano a partir de sua cultura, conhecimentos, relações, saberes e necessidades. 111


3. Uma Pedagogia de Perspectiva Intercultural A educação, em particular a escola, tem desempenhado o papel de agenciar a relação entre culturas com poder desigual, contribuindo para a manutenção e a difusão dos saberes dos mais fortes, produzindo homogeneidades e reproduzindo subalternidades. O ponto de partida para transformar este quadro, segundo Candau (2004), é a necessidade de uma pedagogia que veja a educação como uma prática social em íntima relação com as diferentes dinâmicas presentes numa sociedade concreta. Para Jasom de Oliveira (2012), esta prática social não pode ser confundida com prática cultural que abarca somente as diferentes características culturais; é necessário também abarcar as estruturas sociais desiguais com suas relações de poder para transformá -las. A perspectiva intercultural, também chamada de interculturalidade, busca manifestar-se nas diferentes áreas da sociedade e, entre elas, na educação. Por sua vez, a perspectiva busca uma estreita relação entre as diferentes áreas para que as transformações propostas possam alcançar as relações existentes em todos os espaços da sociedade, como a organização política, a vida cultural, artística e as produções literárias (CASALDÁLIGA, 1988). Portanto, a educação intercultural dialoga com as diversas dimensões como o projeto de transformação intercultural da filosofia proposto por Raul Fornet-Betancourt (2001) e transformação intercultural da pedagogia, defendida por José Mario Méndez Méndez (2009). Para uma educação transformada, é necessário fazer do tempo e do contexto ingredientes básicos da práxis pedagógica e reconhecer, consequentemente, a gama e respectividade de saberes, no caso latino-americano, a indígena, a negra e a criolla (CASALDÁLIGA, 1988). Também exige promover o diálogo, desenvolver a palavra, aprender a escutar, fazer da aprendizagem uma prática cooperativa e solidária que depende necessariamente das outras pessoas. A educação deve questionar a cosmovisão correspondente de um mundo global homogeneizado, o desenvolvimento modus operandi (VERHELST, 1992), pensado e construído pelo mercado. A referência para a construção deve ser a vida, uma educação a serviço dela, que 112


ajuda a superar o encontro assimétrico entre as culturas, que promove relações humanizadas e que desvele as riquezas resguardadas da cultura latino-americana. A educação intercultural, portanto, preocupa-se não somente com a ação recíproca entre indivíduo, mas entre grupos de origens diferentes, entornos sociais, culturais e ancestrais nos quais os seres humanos se desenvolvem. Para Candau (2009), o objetivo de uma pedagogia de perspectiva intercultural é promover uma educação para o reconhecimento dos outros8 enquanto sujeitos, para o diálogo entre os diferentes grupos socioculturais, resgatar os processos de identidades culturais, tanto no nível pessoal como coletivo; uma educação para a negociação cultural, que enfrenta os conflitos provocados pela assimetria de poder entre os diferentes grupos socioculturais na sociedade e é capaz de favorecer a construção de um projeto comum, pela qual as diferenças sejam dialeticamente integradas. A interculturalidade orienta-se pela dinamicidade das culturas e das identidades e pelo contínuo diálogo intercultural. Consequentemente, a pedagogia intercultural é entendida como um processo, ou seja, um caminho aberto, complexo e interdimensional, pois envolve uma multiplicidade de fatores e dimensões que interagem ininterruptamente entre si, não sendo possível compreendê-las isoladamente. Essas dimensões e fatores, conforme Fleuri (1999), são os sujeitos e os grupos sociais, a religião, a língua e a alimentação, os preconceitos e as expectativas, ou seja, o cotidiano. Pensar em pedagogia intercultural é pensar inequivocamente em uma pedagogia relacional, entre todos os sujeitos a fim de promover uma consciência crítica e criadora, convocando mulheres e homens provenientes de diversas culturas, para as suas responsabilidades políticas, de serem capazes de analisar a realidade, avaliá -la e transformá-la. Até porque, segundo Pineda (2009, p. 109), “[...] permanecer numa consciência ingênua é terminar colaborando com a injustiça, direta ou indiretamente, fazendo-se cúmplice dos processos de dominação”. 8 Para Pineda (2009), a educação intercultural busca facilitar o processo de ver o outro dentro de nós mesmos; perceber o outro essencialmente diferente, mas ao mesmo tempo parte de nós.

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Candau (2004) aponta quatro movimentos fundamentais para a promoção de uma pedagogia de perspectiva intercultural. O primeiro movimento é desconstruir o universo de preconceitos e discriminações presentes na sociedade. Esta realidade apresentase com um caráter difuso, fluido, muitas vezes sutil, e está presente em todas as relações sociais, fruto da colonialidade. A naturalização é um componente que a fez em grande parte invisível e especialmente complexa. Para a promoção de uma educação intercultural, é necessário reconhecer o caráter desigual, discriminador e racista da sociedade, da educação de cada pessoa e grupo sociocultural; questionar o caráter monocultural e etnocêntrico que, explícita ou implicitamente, estão presentes na escola e nas políticas educativas que impregnam os currículos escolares. O segundo movimento é articular a igualdade e a diferença no nível das políticas educativas, assim como das práticas pedagógicas, para o reconhecimento e a valorização da diversidade cultural e do direito à educação como direito de todos. O terceiro movimento é resgatar os processos de construção das nossas identidades culturais, tanto no nível pessoal como coletivo, revertendo o processo histórico de encobrimento de culturas (MELIÀ, 2009). A hibridização cultural e a constituição de novas identidades culturais são questões fundantes para este movimento. O conceito dinâmico e histórico de cultura, capaz de integrar as raízes históricas e as novas configurações, evitando-se uma visão das culturas como universos fechados, como uma essência pré-estabelecida em um dado que não está em contínuo movimento, deve ser reforçado. Por fim, o quarto movimento, que é promover experiências de interação sistemática com o outro. O que se busca efetivamente é uma reeducação coletiva, porque, para Pineda (2009), a interculturalidade não é espontânea, tampouco automática, mas fruto de um processo permanente de diálogo que produz equidade, justiça, igualdade e diferença. A pedagogia de perspectiva intercultural não é uma pedagogia que se contenta somente com a democratização dos saberes. É uma educação que busca encarnar na mentalidade e nas práticas das pessoas, refletida no cotidiano além-escola, nas relações de 114


poder, na esfera política, econômica, ambiental, etc. Para Candau (2009, p. 15), “[...] trata-se de um enfoque global que deve afetar todos os atores e todas as dimensões do processo educativo, assim como os diferentes âmbitos em que ele se desenvolve”. Para proporcionar estas transformações, as ações não podem se reduzir a algumas situações e/ou atividades pontuais, nem focalizar sua atenção exclusivamente em determinados grupos sociais.

3. À Guisa de Conclusão A dinâmica imposta pela colonização cristã e eurocêntrica na América Latina forjou relações sociais, elegeu conhecimentos e estabeleceu modelos de desenvolvimento invisibilizando e subalternizando saberes, culturas e povos e originários. Vários autores apontam para a premência de se pensar processos pedagógicos e de desenvolvimento em diferentes instâncias em uma perspectiva intercultural, ou seja, que reconheçam, contemplem e integrem as diferentes culturas, conhecimentos e saberes que permeiam as sociedades contemporâneas. Isto se viabiliza a partir da adoção de outros olhares e leituras - referenciais teórico-práticos que encaminham, organizam e constituem outras e novas pedagogias - ações em alteridade de respeito, acolhida, solidariedade e interação com os interesses e necessidades de todos os sujeitos e culturas comprometidas visceralmente com a construção de outros mundos melhores, e ainda, possíveis para se estar, ser e viver.

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CAPÍTULO VI

O ENFOQUE INTERCULTURAL NA AQUISIÇÃO DE UMA SEGUNDA LÍNGUA: um olhar multifacetário que integra a natureza do homem e seu mundo cultural Jairo Eduardo Soto Molina

1 Introdução No início deste novo século se observa uma transição social, cultural e política que indica um processo de ruptura ou, pelo menos, de questionamento da hegemonia cultural que historicamente dominou toda a região andina. Uma transição chamada de multi, pluri e interculturalidade, impulsionada pela inegável gestão dos movimentos indígenas, o que nos faz pensar sobre os temas da identidade, diferença, igualdade e solidariedade, bem como, sobre o enorme desafio de construir sociedades e nações verdadeiramente plurais, fundamentadas em todos os níveis da Interculturalidade. Isso tudo significa novas transformações nas estruturas e instituições do Estado. Esta transição baseia-se no fato, já quase generalizado em países andinos, de definir-se juridicamente como multiétnico e pluricultural. Em torno desta definição desenvolveu-se um novo discurso público e oficial fundamentado na diversidade e na necessidade de promover uma convivência entre branco-mestiços, indígena e, também, negra. Na promulgação de leis especiais, nas reformas educativas e nas próprias constituições, a pluralidade linguística e cultural é tema muito considerado (em alguns países mais que em outros). Deste modo vai aparecendo a Interculturalidade como meta, visão e prática para construir sociedades distintas, que visualizam a pluralidade cultural como parte ou instrumento da construção de um novo imaginário nacional, sem conflitos, reivindicações, preconceitos ou rancor. 119


2 Estado, Cultura e Colonialidade da Língua Então, perguntamos: Qual é o interesse dos governos para incor­porar a diversidade cultural dentro de seus espaços de poder? Podemos falar de uma nova ordem que está buscando controlar a diferença para que não coloque em perigo a estabilidade social e, assim permitir que o projeto neoliberal siga adiante? Há outro aspecto desta apropriação neoliberal do transculturalismo que se deve também levar em conta: sua relação com a ideologia do capita­lismo global, impulsionada pela nova relação colonial com as empresas multinacionais globais que agora utilizam o transculturalismo e uma suposta abertura e relação com as culturas locais para fortalecer seus projetos e promover seus interesses no pacto com o governo nacional. Um exemplo claro da região andina é o das companhias petroleiras. Por meio de projetos sociais e a incorporação dos membros da comunidade em trabalhos da Companhia, controlam e estabelecem uma dependência, como também um consumismo, fortalecendo assim uma política de acumulação que cruza fronteiras. Outro exemplo é a estratégia dual do Banco Mundial em manter, por um lado, políticas indigenistas e, por outro, assessorar e apoiar os projetos neoliberais nacionais da região. Como anota Zizek (1998, p. 150): A relação entre o colonialismo imperialista tradicional e a autocolo­nização capitalista global é exatamente a mesma que a relação entre o imperialismo cultural ocidental e o multiculturalismo: da mesma forma que no capitalismo global existe o paradoxo da colonização sem a metrópole colonizante do tipo Estado-Nação, no multiculturalismo existe uma distância eurocentrista condes­cendente e/ou respeitosa das culturas locais, sem lançar raízes em nenhuma cultura em particular.

Neste sentido, o multiculturalismo não faz nada diferente a não ser reafirmar a universalidade, o privilégio e superioridade dos grupos dominantes que, com a globalização e as políticas de integração regional, funcionam sem distinção de fronteiras. Ao prevalecer a cultura de dominação cultural no currículo de inglês 120


desenvolvido por especialistas internacionais, que por sua vez selecionaram o saber que se adquire ou aprende por parte da criança ou adolescente, subjaz inegavelmente uma carga alienante sobre a mente do aprendiz. Este vive um processo de transculturação. Apagam-se nele os valores, costumes e crenças de sua própria cultura para dar passagem à cultura de dominação. Como muito bem é assinalado por Canagarajah (2000, p. 25): Essa é a perspectiva resistente de que trata o título deste livro... Ela prevê a possibilidade de que, na vida cotidiana, o poder das comunidades pós-coloniais pode encontrar maneiras de negociar, alterar e se opor as estruturas políticas, culturais e identitárias e delas tirar vantagens. A intenção não é rejeitar o inglês, mas reconstituí-lo em termos mais abrangentes, ético e democrático, trazendo resoluções criativas para os conflitos linguísticos.

Em outro estudo, Calvet (2005) mostra de que modo o estudo das línguas estabeleceu certa visão das comunidades linguísticas e de sua forma de relacionamento, e como se pode utilizar essa visão para justificar os objetivos coloniais. Por ser teórico da sociolinguística, isso lhe rendeu o rótulo de denunciante da glotofagia. Ao longo do tempo, a linguística foi utilizada para negar a língua de alguns povos, que continuou constituindo o embasamento ideológico da superioridade linguística, principalmente do Ocidente cristão sobre os povos exóticos que tiveram de curvar-se. Esse fenômeno não desapareceu com o processo de descolonização, mas continua presente em diversos comportamentos. Os modernos fenômenos imperialistas de expansão se descrevem no avanço da opressão de um povo sobre outro através dos avatares das línguas faladas por eles. Calvet (2005) observa que a francofonia tem sido o último estágio do imperialismo cultural francês no subcapítulo intitulado Que francofonia?, no qual o denomina como uma extensão enganosa e denuncia o desaparecimento de mais de 10.000 línguas e 100.000 dialetos no território africano graças ao impulso da francofonia. O autor trata de responder a duas grandes questões no seu texto: Qual é o estatuto da língua 121


dentro da opressão colonial e neocolonial? E que atuação deve-se reservar-lhe na luta pela libertação nacional? Ele tenta demonstrar que a linguística esteve a serviço do colonialismo e sua proposta é que se deveria e se poderia lutar contra o neocolonialismo, ou seja, lutar pelo direito à existência no centro de sua cultura. Por outro lado, o conceito de contexto é fundamental para o estudo da linguagem. Muito mais em contextos nos quais se adquire uma segunda língua onde esta não é parte daquele. É necessário analisar várias particularidades das situações sociais, as culturas e os episódios de interações que assumiram tradicionalmente como contextos de uso da linguagem. Se os contextos de textos e conversações são definidos informalmente como conjunto de propriedades relevantes nas situações de comunicação de interação verbal, mas, também estão colocados no contexto da língua materna, então uma análise destas situações é essencial para o desenvolvimento de uma teoria explícita do contexto e de como este controla o uso da segunda língua quando ela não exerce uma influência direta sobre o meio. Deste modo, a aprendizagem não se torna artificial, por isso os chamados textos autênticos fracassaram no ensino de uma segunda língua. As situações sociais e suas propriedades (a classe social, ou gênero ou a idade dos usuários da segunda língua) também exercem influência direta e imediata sobre o uso da língua estrangeira. Isso torna necessária a exploração teórica da natureza da influência contextual. Os modelos de contexto explicam como e por que o uso da segunda língua, neste caso o inglês, é social, pessoal e situacionalmente variável. Ao mesmo tempo em que oferecem um marco teórico explícito para a teoria pragmática ao explicar a habilidade dos usuários do inglês para adaptar seu texto e sua conversação às propriedades relevantes para eles em cada momento da situação comunicativa. Por isso a abordagem deste problema é necessariamente intercultural, privilegiando a cultura materna para a seleção da cultura sem chegar a um uniculturalismo ou domínio único desta cultura. Os valores culturais pertinentes na cultura local serão recriados no processo de aquisição da segunda língua. 122


3 Aproximação à Diversidade das Culturas desde os Contextos É pertinente distinguir os conceitos multiculturalidade ou pluriculturalidade do conceito de Interculturalidade. Multiculturalidade ou Pluriculturalidade

História Tradição

Mundo da vida

Linguagem Língua-fala

CULTURA HISPÂNICA

CULTURA SAXONICA

Interculturalidade

O modelo intercultural é contraposto ao multiculturismo. Mediante sua aplicação se pretende romper com o enfoque clássico e convencional no tra­tamento da problemática curricular dos idiomas estrangeiros, e no seu lugar se propõe realizar práticas concretas, vivências e reflexões sobre nossa cultura.

Currículo Intercultural

Pensamento complexo

Inteligências múltiplas

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Trabalho interdisciplinar


O desenvolvimento das ciências cognitivas e das neurociências tem demonstrado que, para que existam interpretações e compreensões da conduta como ação social é necessário ler além do contexto outras mentes como um espelho de nossa própria mente, quer dizer, que o texto ou a conversação sem o pensamento carecem fundamentalmente de sentido. Os enfoques críticos do discurso (VAN DIJK, 2011) têm destacado que não se deve considerar aos participantes como meros falantes, mas como atores sociais que trazem consigo suas identidades ou papéis sociais ou suas relações de poder quando participam de um ato comunicativo.

Modelo Intercultural

Inovação curricular

Vivências

Reflexões

A estrutura social, as propriedades das situações sociais e, por conseguinte, as propriedades sociais dos atores, não influem nem objetiva nem causalmente sobre o texto e a conversação, mas esta influência está mediada pelos modelos subjetivos dos participantes. A teoria dos modelos de contexto explica as representações e os processos compreendidos nesta relevância das propriedades sociais e cognitivas das situações sociais, através da psicologia social e seus estudos acerca das estruturas dos episódios e das situações sociais compartilhadas, tais como o conhecimento e as ideologias, que são aplicados pelos usuários do inglês na construção de seus modelos de contexto. É preciso revisar, além disso, o conceito de situação na sociologia atual para reforçar uma teoria dos modelos de contexto de base sociológica. Isso requer que se explique o fato de que os participantes não só criam modelos em situações micro, cara a cara, 124


mas também em estrutura macro, muito mais complexas como os grupos, as associações ou estruturas sociais (como a desigualdade social). Examina-se a análise crítica da conversação e sua tendência para a conversação de maneira livre de contexto integrando o social com o cognitivo. Portanto, neste momento, qualquer tipo de estudo relacionado com a experiência e o desenvolvimento humano, deve ser feito através de um olhar multifacetário que responda a todas as tradições familiares que integram a natureza humana e, ao mesmo tempo, entender que o mundo físico está configurado por seres biológicos e culturais.

Currículo Intercultural

Experiência e desenvolvimento humano

Olhar multifacetário

Tradições familiares

O processo de aprendizagem da segunda língua pode ser concebido como objeto de estudo a partir de um enfoque holístico e integrador. Por isso, neste processo deve estar subjacente a interdisciplinaridade, entendida como um ponto onde convergem os distintos saberes dos campos de formação do estudante. Tem-se enfrentado, com a ajuda dos estudantes, o problema interdisciplinar e participativo a partir da lógica das inteligências múltiplas, como também, tem-se concebido com a comunidade (entorno) o currículo, na sua relação indissociável como uma organização e como sistema auto-organizador. Propõe-se a inovação, a mudança educativo-institucional e pessoal desde e através de um projeto de investigação qualitativa etnometodológica, mediante o qual se farão os ajustes necessários ao estado de desenvolvimento em distintos momentos da proposta que oriente o projeto numa dinâmica do retrospectivo, perspectivo e prospectivo (MORENO SANTACOLOMA, 2005). 125


4 O Novo Currículo Intercultural da Aprendizagem das Línguas O novo currículo intercultural de aprendizagem das línguas se operacionaliza através da metodologia de investigação qualitativa etnometodológica, e, também, com o uso da semiótica como metodologia da significação e do sentido, a partir do ponto de vista pedagógico, organizativo e operativo, cujo núcleo se estabelece sob o princípio de coesão-coerência que são estabelecidos pelos conceitos intrínsecos do sistema de ideias e de conceitos de compreensibilidade, característicos do paradigma da complexidade.

Processo de reflexão crítica

Exigências socioculturais

Interdisciplinaridade e investigação formativa

Diferentes momentos da avaliação curricular

CURRICULO INTERCULTURAL

Prática Pedagógica

Inteligências múltiplas

Do contexto local, regional e nacional

Pensamento complexo

Esta visão intercultural da aprendizagem do inglês busca, acima de tudo, compreender que o mundo é muito mais do que a compreensão eurocêntrica apresenta. Além disso, procura afirmar que os latino-americanos são seres diferentes nos modos de ser, pensar e sentir, na concepção do tempo e na forma como se relacionam, olham para o passado e para o futuro, na forma como organizam coletivamente a vida e todos os aspectos culturais que os fazem distintos e diferentes dos demais. 126


Que teoria sustenta a seleção da cultura materna para a aquisição do inglês como segunda língua através de um estudo qualitativo intercultural? Como atuam e se reproduzem os modelos interculturais nas atividades cotidianas da comunidade estudada? Como interagem socialmente os indivíduos envolvidos na pesquisa para dar sentido às ações que realizam diariamente? Que elementos fornece o contexto para recriar o ensino do inglês? As respostas conduzirão para: identificar os elementos que articulam interdisciplinarmente os componentes do novo currículo, através de um processo de reflexão crítica nos diferentes momentos da avaliação curricular; analisar o papel que é desempenhado pelas inteligências múltiplas no novo currículo; relacionar a prática pedagógica, a interdisciplinaridade e a investigação formativa com o fim de estabelecer se realmente existem os nexos propostos no currículo; a partir da seleção da cultura, determinar as exigências socioculturais do contexto local, regional e nacional para estabelecer se o novo currículo responde a essas exigências. S I S T E M A A U T OO R G A N I Z A D O

ENFOQUE HOLÍSTICO E INTEGRADOR

HISTÓRIA

FÍSICA

GEOGRAFIA

ARTES

LÍNGUA MATERNA

INGLÊS

CIÊNCIAS NATURAIS

MÚSICA

QUÍMICA

MATEMÁTICAS

COMUNIDADE (Contexto Local, Regional e Nacional)

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I N V E S T I G A Ç Ã O A Ç Ã O


Através de um processo avaliativo constante com uma metodologia da investigação etnometodológica e semiótica se identificarão as fraquezas, oportunidades, forças e ameaças que permitam chegar a um diagnóstico e os posteriores ajustes para o melhoramento do currículo. A etnometodologia e a semiótica são utilizadas como um método que se constrói durante a busca, percorrendo o caminho a pé. Desta forma, pode-se reestruturar o atual currículo com o propósito de fortalecer o processo pedagógico e um desenvolvimento profissional dos docentes que enfrentam a responsabilidade desta problemática complexa que tem formulado, de maneira que não só proporcionem uma melhor aprendizagem aos estudantes, mas, e, sobretudo, que os professores convertam a aula num laboratório de investigação pedagógica e educativa, modificando a prática tradicional do docente de educação básica e média. A partir do impacto esperado do projeto, se pretende iniciar um processo coletivo de reflexão, discussão permanente e reestruturação curricular que ajuste o novo currículo às necessidades acadêmicas pedagógicas, investigativas e socioculturais da cidade e a região. De uma maneira ampla se entende que a seleção da cultura é um processo de busca, negociação, confrontação e socialização entre a cultura universal e a cultura da cotidianidade. Este processo gera experiências (implícitas e explícitas) que constituem as vivências do estudante na instituição educativa e seu contexto. CULTURA ACADÊMICA TRADICIONAL

INSTITUIÇÃO EDUCATIVA NOVA CULTURA DA COMUNIDADE SOCIAL

CULTURA DO ESTUDANTE

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Uma alternativa de currículo intercultural exige um redimensionamento do processo de selecionar, organizar e transmitir a cultura. Além disso, implica formular uma perspectiva crítica frente ao processo de planejamento, investigação e desenvolvimento educacional e curricular que se tem empregado até o momento. Implica também redefinir os papéis e funções que os especialistas da área, os educadores e comunidade em geral devem levar em consideração na gestação e implementação do currículo. A nova cultura selecionada condiciona a percepção sobre as outras pessoas, o tipo de interações e relações que se favorecem, a forma de participação, as mensagens de aceitação e rejeição. Porém, quais são os aspectos que caracterizam na prática um processo de aquisição do inglês a partir de uma perspectiva intercultural? Na prática, a seleção da cultura pode organizar-se de tal forma que permita ao estudante preencher suas experiências de significado em duas culturas? A instituição educativa deve preocupar-se por construir uma ponte entre a cultura acadêmica tradicional, a cultura do estudante e a cultura que se está criando na comunidade social. Desta maneira, o inglês, nesta nova dimensão, vem converter-se no veículo essencial pelo qual as pessoas constroem e reconstroem o significado de suas experiências. Um processo de aquisição do inglês sob este enfoque intercultural supõe não apenas mudar as intenções do ato educativo superando os preconceitos culturais, mas sim transformar o processo de aprendizagem. Para isso, torna-se necessário reavaliar a cultura institucional e considerar, além dos conteúdos mínimos selecionados, as seguintes questões: Que conexões se estabelecem entre aquilo que se quer ensinar e o significado que tem o contexto sociocultural dos estudantes e o da cultura estrangeira? Como se pode articular o currículo num contexto que atenda a diversidade cultural do meio social circundante? Que relevância tem o que se ensina para as necessidades do contexto? Em que medida a metodologia utilizada favorece a reflexão pessoal e coletiva, as interações entre os estudantes e o compartilhar de ideias? De que maneira se empregam estratégias didáticas e materiais audiovisuais para que respondam a distintos modos de conhecer e de aprender de cada estudante? 129


É necessário, igualmente, evitar uma concepção simplista e restrita do enfoque intercultural, ou seja, uma cultura que simplesmente enverniza com alguns temas o conhecimento de outra cultura, abordando aspectos externos, facilmente convertíveis em tópicos (folclore, gastronomia, música, etc.), de uma maneira casual, acessória e sem uma relação real com os demais elementos do contexto. Também, é aconselhável trabalhar a diversidade cultural não só em momentos específicos (como a celebração de alguma festa ou acontecimento histórico-cultural), pois isto estaria mais de acordo com outros modelos de educação (o currículo aditivo ou agregado, por exemplo) (JORDÁN, 1998). Ambas as perspectivas não fazem parte de um currículo intercultural. Ao abordar a língua estrangeira de maneira isolada das demais aprendizagens, atribuindo a alguns destes uma maior valorização no currículo, se pode chegar a potenciar estereótipos e tópicos a partir de temas da linguagem ou das ciências sociais. Mas, geralmente, esta tem sido a forma na qual alguns docentes tem abordado o tema da diversidade cultural no currículo de suas instituições bilíngues. É claro que esta perspectiva curricular não é a adequada para abordar o tema de maneira holística e efetiva no desenvolvimento das capacidades para a convivência numa sociedade pluralista e tolerante apesar de que, de alguma maneira, estes posicionamentos são benéficos ao facilitar o reconhecimento explícito da diversidade e são úteis para lutar contra o menosprezo, a anulação e a marginalização ou qualquer forma de discriminação social. (CAZDEN, 1988). O enfoque mais efetivo para a educação intercultural é, sem dúvida, aquele que funciona como um eixo transversal que cruza e enriquece cursos, níveis, etapas e áreas curriculares. Enfoque que se deve considerar como uma responsabilidade compartilhada pelos professores e fazendo parte explícita de suas programações didáticas, nas quais, por sua vez, se torna necessário definir os objetivos relacionados com a educação intercultural que se pretende para os estudantes, através dos conteúdos específicos das distintas disciplinas para desenvolver competências através da análise discursiva dos textos. 130


Os conteúdos das disciplinas devem ser abordados de forma situada ao seu verdadeiro contexto, relativizando-os e analisando-os desde outro(s) olhar (es) cultural(is). A interculturalidade deve ser o clima ou ambiente global de referência em que se desenvolve toda a atividade educativa. Referência para a qual todas as áreas curriculares contribuem a fim de desenvolver a competência intercultural dos estudantes, objetivo essencial do currículo bilíngue.

Contexto Sócio-Político

Conhecimento e pesquisa

Realidade - aluno - família, comunidade Aprender fazendo e aprender jogando tomam, então, sua verdadeira dimensão nesta etapa da aprendizagem do ser humano, quando se estão moldando e modelando forças relacionadas com o sentimento, emoções, afetos e com o sentir. Daí a importância de 131


uma educação artística (dramatizações, música, desenho, mímicas, representações, plásticas, teatro, literatura), não somente em línguas estrangeiras, mas em todas as áreas do currículo. Portanto, qualquer planejamento intercultural deveria realizar-se à luz dos pressupostos da renovação curricular, isto é, a utilização do enfoque Humanístico-Comunicativo-Significativo-Lúdico-Natural-Artístico, entre outros (YALDEN, 1987). Este enfoque permitiria à criança a interação com o mundo que a rodeia, estabelecendo relações consigo mesma, com a música, desenho dinâmico, poesia, pintura, fantoches, da arte em geral; com o inglês e com os demais saberes escolares. O ensino dos distintos saberes num currículo integrado e integrador se fundamenta nos seguintes princípios: • Currículo centrado no estudante (NUNAN, 1988); • Objetivos em termos de uma aprendizagem efetiva e significativa: aprender a aprender; • Princípios lúdicos da aprendizagem. Planejamento de atividades baseado na solução de problemas; • Estabelecimento de metodologias adequadas de ensino e apren­dizagem, usando atividades comunicativas e significativas; • Implementação do idioma como meio de desenvolvimento, de comuni­cação e de significação; • Fazer com que as crianças sejam conscientes de sua própria cultura e a valo­rizem; • Estimular a participação de trabalhos em grupo; • Inter-relação de diferentes áreas do currículo; • Ensino e aprendizagem colaborativos. (NUNAN, 1988). 5 Conclusões A introdução progressiva da aprendizagem do inglês como meio de ensino é uma contribuição para a qualificação da educação porque determina que, pelo menos uma disciplina, a língua estrangeira, se perceba como um suporte ou um instrumento de conhecimento e não como um objeto autônomo e isolado do mesmo. É muito fácil entender o argumento de que o idioma é a ferramenta uni132


versal de pensamento e que perde todo sentido quando se identifica simplesmente como um conjunto de regras e palavras por aprender, sem projetar-se de forma alguma a serviço das outras áreas. Complementarmente, é muito difícil entender porque durante muito tempo o inglês foi visto como um saber secundário e não como uma disciplina fundamental. Porém é contraditório pensar que outras disciplinas como a língua materna e a matemática, também tenham sentido fundamental se entendidas como linguagens de análises e construção de conhecimentos, e que constituam por si mesmas o objeto de conhecimento. Em que se beneficia o sujeito tendo uma visão do idioma pelo idioma mesmo (a gramática, a fonética, a estilística, etc.) em lugar de aplicá-lo ao conhecimento do mundo e a exploração da realidade? E a matemática, por exemplo, caso não recorra permanentemente à realidade para exemplificar suas operações e princípios? Por que então se mantém como disciplinas isoladas desvinculadas do contexto e com um alto poder no currículo? Se este projeto se limitar a propor suas conquistas a serviço de outra disciplina ao acaso, se constituiria apenas numa solução parcial aos problemas que afligem a educação. Por isso, vale a pena propor o desenvolvimento de uma experiência ambiciosa de reconstrução curricular na qual a interculturalidade não só se constitua em veículo de construção de conhecimento, mas em estratégia do mesmo processo. Esta experiência conduzirá a identificar os elementos que articulam interdisciplinarmente os componentes do novo currículo, através de um processo de reflexão crítica nos diferentes momentos da avaliação curricular para: a) analisar o papel das inteligências múltiplas e do pensamento complexo no novo currículo; b) relacionar a prática pedagógica, a interdisciplinaridade e a investigação formativa com o fim de estabelecer que realmente existam os nexos propostos no currículo; c) determinar as exigências socioculturais do contexto local, regional e nacional para avaliar se o novo currículo responde a essas exigências. Ao considerar todas as áreas do currículo na sua condição de contribuintes para a formação integral do cidadão, este deve emergir como pessoa intelectualmente ativa e socialmente comprometida em construir uma nação capaz de enfrentar os desafios deste novo século. 133


Este é um grande objetivo no qual estamos todos comprometidos. A presença de uma língua estrangeira no currículo do ciclo básico primário não deve ser interpreta como a inclusão de um estranho desarticulado do processo de formação, mas pelo contrário, a presença ativa de um elemento de enriquecimento e desfrute, em prol do crescimento pessoal, psico-afetivo, sociocultural e intelectual. Isso posto, o processo de aquisição do inglês deve ser integrado. Porque deve responder à forma como conhece o homem, porque a realidade não está fracionada; o mundo é um todo estruturado, onde os diversos elementos se inter-relacionam mudando e evoluindo permanentemente. Elementos e estruturas não se concebem sem relações, isto é, não estão isolados e independentes, nem funcionam automaticamente, mas sempre com respeito a... e em função de outro elemento ou estrutura. [Tradução: Antonio Sidekum – Revisão: Elcio Cecchetti]

Referências CANAGARAJAH, A. S. Resisting linguistic imperialism in english teaching. Nova York: Oxford University Press, 2000. CALVET, L.- J. Linguística y colonialismo: breve tratado de glotofagia. Buenos Aires: FCE, 2005. CAZDEN, C. B. Class discourse. Portmouth NH Heinemann, 1988. JORDÁN, J.A. La escuela multicultural. Un reto para el profesorado. Paidós, Barcelona, 1998. _______. (Org.). Multiculturalisme i educació. Edioc-Proa. Barcelona, 1998. MORENO SANTACOLOMA, M. d. C. Innovaciones pedagógicas: una propuesta de evaluación crítica. Bogotá, 2005. 134


NUNAN, D. The kearner-centered currículo. Glasgow: Cambridge University Press, 1988. VAN DIJK, T. A. Sociedad y discurso. Barcelona: Gedisa Editorial, 2011. YALDEN, J. The communicative syllabus: evolution, design and implementation. London: Prentice-Hall International Press, 1987. ZIZEK, S.. Multiculturalismo, o la lógica cultural del capitalismo multinacional. In: GRÜNER, Eduardo: Estudios culturales. Reflexiones sobre el multiculturalismo. Buenos Aires: Paidós, 1998.

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CAPÍTULO VII

DIVERSIDADE CULTURAL E INTERCULTURALIDADE: aportes para uma decolonização religiosa da educação Georgia Carneiro da Fontoura Lilian Blanck de Oliveira

1 Palavras Iniciais Nas atuais sociedades, os processos de hibridização cultural são intensos e mobilizadores de identidades abertas e em constante construção. No entanto, nas dinâmicas sociais, as constituições identitárias, por um lado, ainda são demarcadas pela perpetuação de paradigmas colonizantes, e de outro, pelo processo de homogeneização cultural difundido na escola global pelo sistema capitalista neoliberal. Por isso, é condição fundamental o desenvolvimento de perspectivas e práticas que provoquem a decolonização do saber, poder, ser e viver, embasadas em epistemes que promovam relações de interação entre os diferentes e as diferenças, desconstruindo padrões monoculturais coloniais. Nesse intento, emerge a Interculturalidade, enquanto paradigma que encaminha outras formas de convivência, movidas pelo intercâmbio, diálogo e reconhecimento de saberes e conhecimentos dos diferentes povos e sociedades. Tal perspectiva embasa, atualmente, movimentos que lutam pela decolonização do imaginário religioso dos povos colonizados, os quais tiveram seus sistemas de crença, símbolos, mitos, ritos e valores subordinados à perspectiva religiosa dos colonizadores. Historicamente, a educação escolar foi um agente importante para difusão do processo de colonização religiosa, especialmente pela imposição de uma única forma de crer, tida como 137


verdadeira e universal. Assim, materiais didáticos, processos de formação de professores, abordagens metodológicas, políticas públicas decorrentes de acordos entre setores políticos e grupos religiosos, dentre outros meios, colaboraram para a doutrinação religiosa de gerações inteiras via sistema escolar. Deste modo, a escola, em um primeiro momento, tornou-se instrumento fundamental do catolicismo no projeto civilizatório-colonizador a difundir os preceitos tidos como únicos e universais. O currículo e a organização do cotidiano escolar visavam catequizar os sujeitos, de uma forma confessional, enfocando uma verdade padronizadora e limitadora, negando quaisquer outras formas de religiosidades. Este capítulo, embasado nos referenciais de Interculturalidade apresentam um caminho de perspectivas episte (me) todológicas radicalmente oposto ao historicamente posto – hegemônico, eurocêntrico e cristão – a partir do diálogo e interação entre saberes e conhecimentos das diferentes culturas e tradições religiosas, almejando desencadear processos de decolonização religiosa da educação.

2 Diversidade Cultural e Interculturalidade Para Candau (2008, p.46-47), “a questão da diferença assume importância e se transforma em um direito, não só pelo direito dos diferentes serem iguais, mas o direito de afirmar a diferença em suas diversas especificidades”. Desconstruir a padronização é lutar contra todas as formas de desigualdades presentes na sociedade reconhecendo a diferença como elemento da construção da igualdade. Para Santos (1997, p.122) “temos direito a reivindicar a igualdade sempre que a diferença nos inferioriza e temos direito de reivindicar a diferença sempre que a igualdade nos descaracteriza”. Nas últimas décadas do século XX, a cultura tornou-se conceito estratégico para a definição de identidades e alteridades no mundo contemporâneo, vasto campo de lutas e contradições na afirmação da diferença, e exigência de reconhecimento diante de intensos processos de dominação, desigualdades e exclusão produzidos pelo desenvolvimento capitalista (SANTOS e NUNES, 2003). 138


Neste contexto, surge o multiculturalismo como uma forma política de tolerância à diferença, no intuito de “respeitar as diferenças integradas num ambiente unitário que não as anule” (FLEURI, 2003, p.17). Multiculturalismo, segundo Santos e Nunes (2003, p. 30), [...] é um conceito eurocêntrico, criado para descrever a diversidade cultural no quadro dos Estados-Nação do hemisfério norte e para lidar com a situação resultante do afluxo de imigrantes vindos do sul para um espaço europeu sem fronteiras internas, da diversidade étnica e afirmação identitária das minorias nos EUA e dos problemas específicos de países como o Canadá, com comunidades linguísticas ou étnicas territorialmente diferenciadas. [...] um conceito de que o Norte procura impor aos países do Sul um modo de definir a condição histórica e identidade destes.

O reconhecimento das sociedades multiculturais abriu novas perspectivas epistemológicas sobre o direito à diferença e compreensão das relações entre culturas, confluindo numa série de concepções e perspectivas ocasionando uma polissemia terminológica9. Neste trabalho socializamos duas: a assimilacionista e a diferencialista apresentadas por Candau (2009), base de diversas propostas nas sociedades hodiernas. O multiculturalismo assimilacionista compreende a sociedade multicultural – sentido descritivo – como um espaço em que não há igualdade de oportunidades para todos. Há grupos que não têm o mesmo acesso a determinados serviços, bens e direitos como 9 O multiculturalismo aponta simultaneamente ou alternativamente para uma descrição e projeto. Como descrição pode referir-se à “existência de uma multiplicidade de culturas no mundo”, “à co-existência de culturas diversas no espaço de um mesmo Estado-nação” e “à existência de culturas que se interinfluenciam tanto dentro como para além do Estado-nação.” Como projeto, refere-se a um “projeto político de celebração ou reconhecimento dessas diferenças”. Em sociedades multiculturais, há multiculturalismos diversos. Por sua vez, o adjetivo “intercultural” tem sido utilizado para indicar realidades e perspectivas incongruentes entre si: há quem o reduz ao significado de relação entre grupos “folclóricos”; há quem amplia o conceito de interculturalidade de modo a compreender o “diferente” que caracteriza a singularidade e a irrepetibilidade de cada sujeito humano; há ainda quem considera interculturalidade como sinônimo de “mestiçagem” (SANTOS e NUNES, 2003, p. 28).

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os de outro grupo, em geral os de classe média ou alta, brancos e com elevado grau de escolarização. Uma política assimilacionista favorece que todos sejam integrados e incorporados à cultura hegemônica. Contudo, não se modifica a matriz da sociedade, assimilam-se os grupos marginalizados aos valores, mentalidades e conhecimentos socialmente valorizados defendendo a construção de uma cultura comum, deslegitimando saberes, valores, línguas e crenças, reproduzindo uma prática integracionista adotada historicamente pelos estados nacionais (CANDAU, 2008, p.50). A perspectiva diferencialista pauta-se no reconhecimento da diferença para garantir espaços de expressão das diferentes identidades culturais, como forma de manter suas matrizes culturais de base. Concebe que ao enfatizar a assimilação se nega ou silencia a diferença. Em alguns casos compartilha de uma visão estática e essencialista de formação das identidades culturais, enfatiza o acesso a direitos sociais e econômicos, privilegia a formação de comunidades culturais homogêneas com suas próprias organizações constituindo verdadeiros apartheids socioculturais (CANDAU, 2008, p.51). O multiculturalismo traz contribuições na perspectiva do reconhecimento da diversidade cultural, principalmente no que se refere à política da diferença10. Todavia, sua proposta apresentou uma série de críticas e riscos11: negação dos factíveis encontros e interações culturais de forma a delimitar e reforçar as diferenças – guetificação; estímulo à fragmentação da vida social; ausência de valores universais - forma relativista de legitimar barbáries nos guetos sociais independentes; diferentes grupos considerados objetos de estudo e não sujeitos; uma nova forma de racismo negada, que respeita, mas não integra. Legitima um conceito eurocêntrico com tendência a ser descritivo e apolítico suprimindo os problemas das relações de poder, exploração, desigualdades 10 Para Boaventura de Sousa Santos (2003), é importante que se distingam as formas conservadoras/reacionárias do multiculturalismo das progressistas/ inovadoras). 11 Para aprofundamento, investigar: SIDEKUM, 2003; SANTOS (2003); CANDAU (2008); DAMÁZIO (2008); FLORE (2002).

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e exclusões; problemas estratégicos no emprego de conceitos hegemônicos, eurocêntricos (SANTOS e NUNES, 2003; OLIVEIRA, 2012). Neste contexto, pertinente se faz a diferenciação entre diálogo multicultural e diálogo intercultural descrita por Dussel e citada por Damázio (2008, p. 79-80): O primeiro [diálogo multicultural] exige a aceitação de certos princípios procedimentais ocidentais que devem ser acatados por todos os membros da comunidade, permitindo ao mesmo tempo a diversidade valorativa cultural (ou religiosa). Politicamente isto significa aceitar o Estado liberal multicultural, sem questionar que sua estrutura, tal como se institucionaliza no presente, é a expressão da cultura ocidental e restringe a possibilidade de sobrevivência de todas as demais culturas. O diálogo intercultural, diferentemente, deve ser transversal, isto é, deve partir de outro lugar, além do mero diálogo entre os eruditos do mundo acadêmico ou institucionalmente dominante.

A proposta intercultural surge como possibilidade de completar este vazio deixado pelo multiculturalismo visando à transformação das culturas por meio da interação e diálogo intercultural, em busca do reconhecimento da diversidade cultural via saberes e conhecimentos que integrem as diversidades. Situa-se “em confronto com todas as visões diferencialistas, que favorecem processos radicais de afirmação de identidades culturais específicas, assim como com as perspectivas assimilacionistas, que não valorizam a explicitação da riqueza das diferenças culturais” (CANDAU, 2008, p.51). Nas atuais sociedades, os processos de hibridização cultural são intensos e mobilizadores de identidades abertas e em constante construção. Condição fundamental para a interculturalidade, que propõe orientar processos permanentes e inacabados, com o intuito de abertura de vias para uma construção democrática - cidadania intercultural - e não uma convivência tolerante e pacífica dentro de um mesmo contexto social. 141


Para Walsh (2009, p. 41-42), educadora e pesquisadora equatoriana, [...] a interculturalidade significa - em sua forma mais geral - o contato e intercâmbio entre culturas em condições de equidade, em condições de igualdade. Tal contato e intercâmbio não devem ser pensados simplesmente em termos étnicos, mas a partir da relação, comunicação e aprendizagem permanentes entre pessoas, grupos, conhecimentos, valores, tradições, diferentes lógicas e racionalidades, destinada a criar, construir e promover o respeito mútuo, e pleno desenvolvimento das capacidades dos indivíduos e coletivos acima de suas diferenças culturais e sociais. Em si, a interculturalidade tenta romper com a história hegemônica de uma cultura dominante e outras subordinadas e, assim, fortalecer as identidades tradicionalmente excluídas para construir, tanto na vida cotidiana como nas instituições sociais, um com-viver de respeito e legitimidade entre todos os grupos da sociedade. [...] Em si, a interculturalidade tem um papel - crítico, central e prospectivo em todas as instituições sociais – de reconstruir passo a passo sociedades, estruturas, sistemas e processos (educacionais, sociais, políticos, jurídicos e epistemológicos) e de acionar entre todas as relações, atitudes, valores, práticas, conhecimentos e habilidades fundamentados em respeito e igualdade, no reconhecimento das diferenças e da convivência democrática que, em si mesma é muitas vezes conflituosa [tradução nossa].

A interculturalidade alude a um tipo de sociedade emergente onde as comunidades étnicas, grupos sociais, políticos e/ou religiosos se reconhecem em suas diferenças e buscam mútua compreensão e valorização. Supõe a busca de instâncias dialogais focada na aceitação e colaboração entre as culturas como uma proposta teórica a responder desafios de uma sociedade pluricultural válida para sentar as bases de uma forma de convivência (ASTRAIN, 2003). Saber viver e saber (con)viver se confluem diretamente como bases do reconhecimento da diversidade cultural - condição de se (in)surgir, (re)existir e (re)viver12 - práxis de humanização, descolonização e interculturalidade. 12 Aprofundamento em Walsh (2009b).

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3 Diálogo Intercultural e outras epistemologias Segundo Fornet-Betancourt (1994), o diálogo intercultural pressupõe sujeitos que se interpelam reciprocamente, não sendo este possível numa relação na qual o Outro13 seja mero objeto de interesse ou pesquisa. Isso implica que os sujeitos subalternizados se unam para romper a divisão moderna entre sujeitos e objetos de conhecimento. Trata-se de forjar outros caminhos de produção do conhecimento via diálogo entre a episteme moderna e outras epistemes. Isto se dá de tal forma que o desenvolvimento de um pensamento crítico transdisciplinar não terá como referência fundante a episteme moderna, mas epistemes que foram historicamente marginalizadas. [...] a relação entre a cultura europeia e as outras culturas se estabeleceu e, desde então, se mantém como uma relação entre ‘sujeito’ e ‘objeto’. Bloqueou, em consequência, toda relação de comunicação e de intercâmbio de conhecimentos e de modos de produzir conhecimentos entre as culturas, já que o paradigma implica que entre ‘sujeito’ e ‘objeto’ não possa haver senão uma relação de exterioridade. E tais desigualdades são percebidas como de natureza: só a cultura europeia é racional, pode conter ‘sujeitos’. As demais não são racionais. Não podem ser nem almejar ‘sujeitos’. Em consequência, as outras culturas são diferentes no sentido de serem desiguais, de fato inferiores por natureza. Só podem ser ‘objeto’ de conhecimento ou de práticas de dominação. Nessa perspectiva, a relação entre a cultura europeia e as outras culturas se estabeleceu e, desde então, se mantém como uma relação entre ‘sujeito’ e ‘objeto’ (QUIJANO, 1992, p. 443).

Podemos identificar aqui uma espécie de epistemicídio, ou seja, “[...] a destruição de algumas formas de saber locais à inferiorização de outras, desperdiçando-se, em nome dos desígnios do 13 O termo “Outro” (com a inicial em maiúsculo) quer representar os “Outros” e a “Outra(s)”, plural e feminino que, para Levinas (2005) representa aquele que não pode ser contido, que conduz para além de todo contexto e do ser. O Outro não pode ser reduzido a um conceito; é rosto, presença viva que interpela, convoca, desafia e constrói. Maior aprofundamento em Levinas (2005).

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colonialismo, a riqueza de perspectivas presentes na diversidade cultural e nas multifacetadas visões do mundo por elas protagonizadas” (SANTOS e MENESES, 2009, p. 49). Neste contexto, o diálogo é chave hermenêutica em possibilitar o (des)ocultar de histórias de colonialismo, pressuposto necessário para criar condições onde os povos falem com voz própria. Assim, o diálogo intercultural continua sendo, [...] o desafio que historicamente estamos obrigados a assumir; porque é – ao menos momentaneamente - a única alternativa que promete nos conduzir à superação efetiva de formas de pensar que, de uma ou outra maneira, resistem ao processo da argumentação aberta, ao condensar-se em posições dogmáticas, determinadas somente a partir de uma perspectiva monocultural. Resumindo: o diálogo intercultural nos parece ser hoje a alternativa histórica para empreendermos a transformação dos modos de pensar vigentes (FORNET-BETANCOURT, 1994, p.19).

A interculturalidade se apresenta hoje como um tema paradoxal. Por um lado com perspectivas da decolonização do saber, poder, ser e viver – espaço/lugar de promoção de relações de interação entre sujeitos capazes de construir processos de subjetivação plurais polissêmicos - formas de reconhecimento da diversidade cultural e desconstrução de padrões culturais coloniais modernos. Por outro lado, pode se insurgir como forma de reeditar novas formas de sujeição e subalternização desconsiderando contextos sociopolíticos de subalternização ou de adequação de forma funcional as novas estratégias globalizantes de dominação (FLEURI; COPPETE e AZIBEIRO, 2010). A perspectiva intercultural, ao desvelar as estruturas sociais, políticas e epistêmicas da colonialidade, em suas relações de poder enraizadas na racialização, no conhecimento eurocêntrico e na inferiorização de alguns seres humanos e suas respectivas culturas, busca desafiar e derrubar este mecanismo. A decolonialidade do poder, do saber, do ser é condição básica para a promoção de relações humanas e igualitárias entre diferentes grupos socioculturais (OLIVEIRA, 2012). No caso da América Latina, a exigência 144


da interculturalidade faz parte de sua história social e intelectual, como se pode perceber nas lutas ininterruptas dos povos indígenas e afro-americanos em território latino americano, particularmente na região andina. Desafios para a promoção de uma educação intercultural em perspectiva crítica e emancipatória, que respeite e promova os DH e articule questões relativas à igualdade e à diferença integram a pauta em vigor. Candau (2008), dialogando com a proposta de Sousa Santos, faz apontamentos nesta direção: a desconstrução do universo dos preconceitos e discriminações; questionamento do caráter monocultural e etnocêntrico na escola e políticas educativas; articulação entre igualdade e diferença nos projetos e ações pedagógicas; valorização das diferenças culturais; percepção dos processos de hibridização - novas identidades culturais; promoção de experiências de interação sistemática com os Outros; empoderamento dos sujeitos e atores sociais; formação de uma cidadania aberta e interativa; reconhecimento das assimetrias de poder entre os diferentes grupos culturais; abordagem dos conflitos e promoção de relações solidárias. Para Santos (1997), as novas conceituações dos DH ressaltam a necessidade do diálogo intercultural, e a partir deste a hermenêutica diatópica que objetiva “ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro noutra. Nisto reside seu caráter diatópico” (p. 116). Neste contexto é componente fundamental o resgate da memória histórica – “educar para o nunca mais” - romper com uma cultura de silêncio e impunidade e construir a identidade de um povo na pluralidade de suas etnias e culturas. Para tal, supõe a utilização de metodologias ativas, participativas e linguagens diversas. Trata-se, portanto de transformar mentalidades, atitudes, comportamentos, dinâmicas organizacionais e práticas cotidianas de atores sociais e instituições. Os processos de uma Educação em Direitos Humanos devem favorecer processos de formação de sujeitos de direito, em nível pessoal e coletivo e que articulem as dimensões ética, político-social e as práticas concretas (CANDAU, 2010). 145


Uma educação que supere os limites da instrução pode produzir espaços/lugares onde os sujeitos em formação tenham como se significar politicamente - sujeitos capazes de reconhecer seus direitos, respeitar os direitos e a cultura do outro (VIOLA, 2010). Deste modo, uma Educação em, para e com DH se dá em tempos/espaços/lugares de (re) conhecimento da memória histórica; para a formação de sujeitos de direitos em uma contemporaneidade de desigualdades, invisibilizações e violações múltiplas; com direitos à diferença e reconhecimento das identidades – dignidade humana.

4 Decolonização Religiosa da Educação A sociedade brasileira é formada pela diversidade de saberes, vivências e culturas dos povos originários indígenas e dos povos africanos trazidos como escravos, que sofrem diferentes processos de colonização europeia. Sua construção histórica se dá no (des) encontro de inúmeras manifestações, expressões, crenças, movimentos e tradições religiosas formando configurações e identidades a partir de convivências multiculturais. Esta diversidade é permeada por diferentes cosmologias, onde o aspecto religioso se faz presente nos ritos, mitos, símbolos, festas, celebrações, textos, crenças e doutrinas dos grupos, por sua vez integrados nos demais campos sociais. (OLIVEIRA e CECCHETTI, 2012). Diferentes vivências integram o substrato cultural do povo brasileiro se constituindo em fontes de uma riqueza ímpar de saberes e conhecimentos a instigar, desafiar e subsidiar o cotidiano das gerações. Contudo, esta construção apresenta traços históricos provenientes de relações de poder desiguais tecidas em tempos/espaços/lugares de exploração e escravidão para uns, liberdade e abundância para outros. Conduzidos por olhares/leituras colonizantes construíram territórios a serem contestados - dimensões culturais, econômicas e políticas de caráter eurocêntrico. (MARKUS e OLIVEIRA, 2010). 146


A transposição da compreensão religiosa eurocêntrica para o território em conquista foi uma das metodologias utilizadas. A conquista espiritual concebia que o mundo imaginário indígena era demoníaco e seus atos divinos eram uma afronta à divindade cristã e como tal deveriam ser destruídos. Segundo Galeano (2011, p. 31), “a fanática missão contra a heresia dos nativos se confundia com a febre, que nas hostes da conquista, era causada pelo brilho dos tesouros do Novo Mundo, [...] eles chegaram à América ‘para servir a Deus e a Sua Majestade, e também por haver riquezas’”. Tratava-se de uma colonização do imaginário dos dominados, como fruto de uma repressão dos seus modos de conhecimento, crenças, símbolos, significações à imposição de padrões dos dominantes, que “serviram não somente para impedir a produção cultural dos dominantes, mas também como meios muito eficazes de controle social e cultural, quando a repressão imediata deixou de ser constante e sistemática”. (QUIJANO, 1992, p. 438). Paulatinamente o colonizado passa então a assumir a identidade de seu colonizador através da imposição de uma ordem política, econômica, racial e religiosa. Sob esta égide vai se cartografando um novo território - geografia do poder eurocêntrico - tempos/ espaços/lugares onde as submetidas/resistentes novas identidades históricas se somam ao colonialismo europeu afirmando o Ocidente como a geopolítica do conhecimento global. Segundo Quijano (2005), a colonialidade do poder implica, ainda hoje, na invisibilidade sociológica dos não europeus em relação à produção de suas subjetividades, memórias históricas, imaginários, conhecimentos e identidades. Com isto, se gera a subalternização de saberes: destruição material e subjetiva dos povos colonizados tornando-os culturalmente colonizados e dependentes no espaço de um modelo epistemológico monocultural. Esta nova geopolítica do conhecimento dissemina de forma naturalizada a nova estrutura de poder, ocultando todo o processo de dominação, e disseminando a lógica da racionalidade/modernidade, colocando todas as outras culturas numa relação de subalternidade. Para Sousa Santos “esta divisão radical entre saberes atribuiu à ciência moderna o monopólio universal de distinção entre 147


o verdadeiro e o falso, gerando as profundas contradições que hoje persistem no centro dos debates epistemológicos” (apud MENEZES, 2008, p. 6). Desta forma, as diferenças culturais do resto do mundo em relação à Europa, foram admitidas pela lógica colonial como desigualdades hierárquicas onde a concepção do sujeito individual nega a totalidade social, gera a ausência do Outro excluindo a possibilidade de existência de outros sujeitos que não os da identidade europeia. A modernidade sob o paradigma europeu de conhecimento racional apresentou-se como uma continuidade a este ambiente excludente, onde a ciência racional invalidava os saberes do Outro. A colonialidade se sustentou e continua a se sustentar a partir da construção do imaginário epistêmico da universalidade. A colonialidade do saber gera a persistência da dominação epistêmica de matriz colonial de tal forma que a epistemologia eurocêntrica nos impede de ver o mundo a partir dos nossos olhos, do mundo que vivemos, anulando a diversidade epistêmica existente. Historicamente a educação escolar foi um espaço importante para a divulgação e aplicação das políticas nacionais de homogeneização preconizadas no Brasil, através da edição de materiais didáticos, processos de formação de formadores, abordagens metodológicas, entre outros meios. Assim, as discriminações praticadas com base em diferenças ficavam ocultas sob o manto de uma igualdade não efetiva, espaço/lugar de vivências de sofrimento e exclusão (MARKUS e OLIVEIRA, 2010). No que se refere à diversidade religiosa, a escola, em um primeiro momento, tornou-se instrumento fundamental do catolicismo no projeto civilizatório-colonizador a difundir os preceitos tidos como únicos e universais. O currículo e a organização do cotidiano escolar visavam catequizar os sujeitos, de uma forma confessional, enfocando uma verdade padronizadora e limitadora, negando quaisquer outras formas de religiosidades. Deste modo, a escola pública ao afirmar uma religião como única e verdadeira segregava as demais manifestações religiosas (CECCHETTI, 2012). A Constituição de 1988 reconhece o caráter multiétnico e pluricultural do povo brasileiro assegurando proteções e garantias 148


ao pleno exercício dos direitos culturais, vendando quaisquer formas de discriminação e proselitismo. Com base nos princípios fundamentais, o componente curricular de Ensino Religioso, historicamente de caráter homogêneo (salvo algumas exceções), é (pró)vocado em sua gênese epistemológica e metodológica pela Lei nº 9.475/97, que altera e dá nova redação ao art. 33 da LDBEN Nº 9.394/96, desafiando a construção de um currículo e práticas pedagógicas que respondam às exigências legais e hodiernas. No contexto escolar é possível identificar presenças e ausências quando se trata de diversidade cultural e religiosa, produto de um longo processo de seleção de elementos simbólicos hegemônicos, valorizando apenas certos componentes da cultura ocidental moderna, onde determinadas culturas e tradições religiosas são reconhecidas e valorizadas, pelo currículo oficial ou real, em detrimento de outras, exotizadas, silenciadas ou negadas. (CECCHETI, 2012). A presença de diversas culturas, saberes e conhecimentos num sistema educacional exige uma tomada de consciência na definição e encaminhamento de outras diretrizes curriculares. Urge considerar e efetivar mudanças nos pressupostos episte(me)mológicos buscando construir propostas formadoras que conduzam a discussão, (re)flexão e encaminhem processos e práticas formadoras e educativas, comprometidas com a diversidade, num contexto marcado por desigualdades, singularidades e diversidades. (MARKUS e OLIVEIRA, 2012). Este movimento exige (res)significar pensamentos, posturas, imaginários e redefinir competências e práticas - decolonizar14 14 Decolonizar, de acordo com Walsh (2009) trata-se do rompimento com processos de colonização e capitalismo. Não descolonizar, pois não se consegue desfazer ou desmanchar todo um processo colonial, não há como fingir que a colonização não existiu e apagar tudo que ela impôs. O que se busca é uma luta constante, uma construção, a busca por alternativas, a fim de traçar um rumo novo para os povos. “Suprimir o ‘s’ e nomear ‘decolonial’ não é promover um anglicismo. Pelo contrário, é marcar uma distinção com o significado castelhano do ‘des’. Não pretendemos simplesmente desarmar, desfazer ou reverter o colonial: quer dizer, passar de um momento colonial para um não colonial, como que fosse possível fazer com que seus padrões e vestígios deixem de existir. A intenção é assinalar e provocar um posicionamento – uma postura e atitude contínua – de transgredir, intervir, in-surgir e influenciar. O decolonial denota, então, um caminho de luta contínua no qual podemos identificar, visibilizar e alentar ‘lugares’ de exterioridade e construções alternativas (WALSH, 2009, p. 14-15) [tradução nossa].

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- de tal forma que a práxis conduza à novas mentalidades, desafiando tempos e espaços institucionais historicamente cristalizados, a fim de insurgir “a capacidade da educação para acolher a diversidade” (SACRISTÁN, 1995, p.82). O estudo, pesquisa e diálogo para o (re)conhecimento da diversidade cultural religiosa se apresenta como um dos elementos para uma formação integral do ser humano nos diferentes tempos/ espaços/lugares da educação escolar, juntamente com os demais componentes curriculares. Assume o compromisso de refletir, discutir, analisar e organizar critérios que encaminhem vivências fundamentadas na ética e nos DH, que se percebem e conjugam na e em alteridade com liberdade, justiça, solidariedade e defesa do direito à diferença - referenciais para uma educação diferenciada. (OLIVEIRA, 2003). Reconhecer a diversidade religiosa na cultura da escola, através de uma educação em, para e com DH requer o desenvolvimento de compreensões contextualizadas e diferenciadas de ser humano, sociedade, cultura, escola e aprendizagem integrando a diversidade de lógicas, conceitos e sujeitos, em exercícios de pesquisa e práticas pedagógicas críticas e criativas, a fim de produzir rupturas e fragilizar paradigmas padronizadores e homogeneizadores ainda presentes na educação. Formar com e para o respeito, acolhida e interação com as diferenças pressupõe aportes e práticas formadoras, que se pautem essencialmente por e em exercícios de alteridade (CECCHETTI e OLIVEIRA, 2009).

5 À guiza de uma (in)conclusão As diversidades (pró)vocam uma miríade de processos abertos, plurais e complexos, que precisam ser articulados e pensados com/o outros tempos/espaços/lugares - territórios coletivos de produção de saberes. (Res)significar olhares/leituras/ações cristalizados criam possibilidades15 históricas para a assunção de sujeitos de direitos, base para se construir uma convivência social onde 15 Para Sousa Santos (2004, p. 796), “possibilidade é o movimento do mundo”.

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diferença e igualdade se constituam em estratégias para enfrentar colonialidades para e na construção de caminhos e práticas decolonizantes a uma sociedade radicalmente diferente. A interculturalidade, neste processo, é projeto político social e epistêmico, que se apresenta como via a contribuir para uma transformação estrutural - decolonização de mentes e corpos, seres e saberes, sistemas e estruturas em processos tecidos em lutas e ações contínuas. Lutas dirigidas a enfrentar construções sociais e imaginárias, objetivas e subjetivas nas sociedades e povos, como formas de um (re)pensar a partir de outros parâmetros - tempos/ espaços/lugares teórico-metodológicos em construção. Neste sentido, os referenciais de interculturalidade apresentam um caminho de perspectivas episte(me)todológicas radicalmente oposto ao historicamente posto – hegemônico, eurocêntrico e cristão – a partir do diálogo e interação entre saberes e conhecimentos para, das e com as diversidades. A efetivação de uma proposta de Educação em, para e com DH em relação à diversidade religiosa detém a capacidade de (pró)vocar o surgimento de outras cartografias culturais, sociais e políticas – traços a abrir e transpor fronteiras na busca da construção de outros territórios - (des)construção de subalternidades históricas. Questionar e desafiar a percepção e adoção de outros olhares/leituras/ação em processos, que relacionem diversidade cultural religiosa e DH - (re)conhecer e empoderar os atores sociais na construção de tempos/espaços/lugares escolares democráticos, plurais e inclusivos - se apresenta como tarefa historicamente necessária e intransferível nas sociedades contemporâneas.

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CAPÍTULO VIII

A COLONIALIDADE DO SABER NAS CIÊNCIAS SOCIAIS: análises sobre o ensino de Sociologia no Ensino Médio16 Natália de Oliveira de Lima

1 Introdução Podemos dizer que, de maneira geral, existem muitas expectativas em relação ao papel da educação escolar na vida dos jovens. Espera-se que na escola adquiram conhecimentos úteis e importantes para seu crescimento pessoal e intelectual, para seu engajamento na vida social, assim como, para a inserção no mundo do trabalho. Desta forma, a questão educacional torna-se/é um assunto de constante debate, em que se busca sempre refletir sobre as maneiras pelas quais esses conhecimentos devem ser apropriados aos nossos educandos e educandas. Entretanto, de acordo com Michael Apple (2006), é necessário ir além das questões técnicas de como ensinar de maneira eficiente e eficaz para que se tenha um estudo verdadeiramente crítico acerca da educação. Para ele, um dos maiores mecanismos através do qual o poder se mantém, se reproduz ou é combatido, é representado pelas instituições de ensino. E, sendo assim, “qualquer análise das maneiras pelas quais o poder desigual é reproduzido e discutido na sociedade não pode deixar de levar em conta a educação” (APPLE, 2006, p. 07). Assim, devemos pensar criticamente a relação da educação com o poder político e econômico. 16 Versão revisitada e adaptada do artigo “O livro didático de Sociologia no Ensino Médio: uma análise na perspectiva da ‘colonialidade do saber’”, apresentado como Trabalho de Conclusão de Licenciatura (orientação: Profa. Elizabeth Farias da Silva, UFSC, 2013).

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Ao refletirmos sobre os conteúdos ministrados nas escolas, inicialmente, podemos perguntar: qual conhecimento deve ser selecionado? Quais saberes são primordiais para serem ensinados/ aprendidos? São questões aparentemente simples, mas que tratam de um intenso debate acerca da chamada natureza política do currículo (APPLE, 2006), uma vez que os conflitos sobre o que deve ou não ser ensinado são agudos e profundos. Ao perguntarmos sobre de quem são os conhecimentos selecionados como mais importantes, conseguiremos evidenciar o caráter político e ideológico que envolve os atos educativos. A disciplina de Sociologia não pode deixar de ser considerada neste debate. Obrigatório no ensino médio brasileiro desde 200817, este componente curricular pode ser considerado relativamente novo em nossas escolas, o que torna a discussão acerca de seus conteúdos ainda mais atual. De acordo com as Orientações Curriculares para o Ensino Médio – OCEM (MEC, 2008), o ensino de Sociologia deve desnaturalizar as concepções e explicações dos fenômenos sociais ao proporcionar aos estudantes “modos de pensar” ou a “desconstrução e reconstrução” desses modos de pensar. É através do pensamento sociológico, conforme afirmam as OCEM, que os educandos entenderão que certas mudanças ou continuidades históricas decorrem de decisões, as quais, por sua vez, derivam de interesses – ou seja, razões objetivas e humanas – e, portanto, não é fruto de tendências naturais. Entretanto, os conteúdos da Sociologia ensinados atualmente nas escolas, talvez devido à sua pouca tradição no espaço escolar, são diretamente influenciados pelas teorias e conhecimentos que se desenvolvem no âmbito acadêmico. Isto é, os saberes sociológicos escolares são, basicamente, os saberes sociológicos acadêmicos transpostos, adaptados a metodologias e didáticas coerentes com a faixa-etária e a fase de aprendizagem dos jovens. O contexto acadêmico, por sua vez, e, neste caso especificamente, o contexto acadêmico brasileiro, tem a cosmologia ocidental como seu ponto de referência historicamente inevitável, sendo 17 A Lei n° 11.684/08 tornou obrigatórias as disciplinas de Sociologia e Filosofia no Ensino Médio brasileiro.

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ditado pelos conhecimentos e pensamentos hegemônicos oriundos dos chamados países do norte ou países de primeiro mundo, onde as Ciências Sociais18 surgiram e desenvolveram sua tradição clássica. Sendo assim, verifica-se a tendência em reproduzir os saberes de um determinado lócus de enunciação – em especial a Europa – em detrimento de outros. É a partir dessas observações e informações iniciais que situo o presente Capítulo, que tem por objetivo analisar a “colonialidade do saber” no Ensino de Sociologia. Compreendemos por colonialidade as heranças eurocêntricas e coloniais resultado dos processos históricos da colonização, que se encontram internalizadas e ainda vivas no presente através das relações de poder, conhecimentos e subjetividades, representadas, neste caso, pela instituição escolar. Esta análise se concentrará na apresentação feita sobre o que é e para que serve a Sociologia e o conhecimento sociológico a partir da Introdução do livro didático Sociologia para o Ensino Médio, do autor Nelson Dacio Tomazi (2010), utilizado para o ensino da disciplina em diversas escolas do Brasil. Muito pode ser dito e percebido sobre o posicionamento político e epistemológico de um livro ou autor a partir da apresentação feita em sua Introdução – sobretudo quando se trata da apresentação da própria disciplina da qual o livro tratará. Justamente por isso esta será a parte analisada.

2 A “Colonialidade do Saber” Considerando que o pensamento – e o desenvolvimento deste em ideias, saberes, valores, etc – existe em todo e qualquer lugar onde se desenvolveu (e desenvolvem) os seres humanos, em diferentes povos e culturas, podemos avaliar que, no vasto território do globo, “são múltiplas as epistemes com seus muitos mundos de vida” (PORTO-GONÇALVES, 2005, p.10). 18 O chamado “ensino de Sociologia” é o espaço de realização das Ciências Sociais nas escolas. Isto é, nessa disciplina escolar as três grandes vertentes das Ciências Sociais são contempladas: Antropologia, Ciência Política e Sociologia.

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A melhor dominação, para o autor (2005), é aquela que, naturalizada, não aparece como tal. Tanto no Brasil como em toda América Latina, percebe-se que, o fim do colonialismo não significou, necessariamente, o fim da colonialidade. A colonialidade, ao contrário, está “longe de ser algo confinado no passado”. (MIGNOLO, 2003, p. 15). Além das profundas heranças de desigualdades e injustiças sociais deixadas pelo colonialismo e imperialismo, há, também, um legado epistemológico do eurocentrismo19 que nos impede de compreender o mundo a partir do próprio território em que vivemos e das epistemes que lhe são próprias. A partir dessa visão eurocêntrica, somos impedidos de ver que não há um lugar ativo – a Europa –, e lugares passivos – a América – por exemplo. É como se existisse um saber atípico, um saber de lugar nenhum, que se pretende universal e se institui como referência para definir o que/quais são os saberes locais ou regionais. Dessa forma, o eurocentrismo, enquanto discurso suscitado pela Modernidade, nos leva a perpetuar a colonialidade do saber (CASTRO-GÓMEZ, 2005; LANDER, 2005), que “caracteriza todo conhecimento produzido fora dos centros hegemônicos e escrito em outras línguas não-hegemônicas como saberes locais ou regionais” (PORTO-GONÇALVES, 2005, p. 09). Também para Mignolo (2003, p. 09), “o mundo moderno vem sendo descrito e teorizado de dentro do sistema, enquanto a variedade de experiências históricas e coloniais lhe vem sendo simplesmente anexada e contemplada a partir do interior do sistema”. Para ele, a colonialidade é “tão somente o lado reverso e inevitável da ‘modernidade’” (p. 47). A partir desse momento, inicia-se o longo processo no qual se organiza o espaço e o tempo em sua totalidade – culturas, povos e territórios do planeta, presentes e passados, todos juntos numa grande narrativa universal. “Nessa narrativa, a Europa é – ou sempre foi – simultaneamente o centro geográfico e a culminação do movimento temporal”. (LANDER, 2005, p. 26). 19 Os problemas do eurocentrismo não se localizam apenas na distorção na compreensão dos outros. Está simetricamente implicada igualmente a distorção na autocompreensão europeia, ao conceberem-se como centro, como sujeitos únicos da história da modernidade. (LANDER, 2005, nota de rodapé 13, p. 35).

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Para que possamos compreender a separação imposta ao mundo com o intento da Modernidade, bem como as relações – e divisões – de poder determinadas a partir de então, é necessário conhecer esse processo de fragmentação, assim como seus ideais motivadores. A Modernidade, conforme Castro-Gómez (2005) é uma máquina geradora de alteridade, que, em nome da razão e do humanismo, constrói o outro mediante uma lógica binária que reprime as diferenças. Assim, “exclui do imaginário a hibridez, a multiplicidade, a ambiguidade e a contingência das formas de vida concretas”. (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p.169). Esta lógica binária do projeto da modernidade, que polariza e hierarquiza o mundo entre sociedade moderna ocidental e outras culturas, povos e sociedades, estabelece pressupostos e olhares específicos em relação ao conhecimento dos outros. Segundo Lander (2005), ao construir-se a noção de universalidade a partir da experiência particular da história europeia e realizar uma leitura da totalidade do tempo e espaço da experiência humana do ponto de vista dessa particularidade, institui-se uma universalidade radicalmente excludente. É através, sobretudo, da naturalização das relações sociais, que o pensamento científico moderno atinge sua eficácia da forma mais potente, já que, naturalizado, constrói-se no senso comum. Com a naturalização da sociedade liberal, que é modelo almejado pelo projeto da modernidade, este tipo de sociedade passa a ser considerado não apenas um modelo desejável, mas a única forma de vida possível. É justamente devido ao (suposto) caráter universal da experiência histórica da Europa que as formas de conhecimento produzidas para a compreensão dessa sociedade se converteram nas únicas formas objetivas, válidas e universais de conhecimento. A partir da reconversão do campo de conhecimento suscitada pela Modernidade Iluminista20, as práticas coloniais de investigação, as 20 Segundo Mignolo (2003), observamos ao longo da História três grandes projetos de caráter hegemônico e universalizante: A missão cristã na Renascença (“Colonialismo Moderno inicial”); O Iluminismo (“Colonialismo da Modernidade Secularizada”) e os Colonialismos dos Projetos de Desenvolvimento e Modernização observados a partir do pós 2ª Guerra Mundial.

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ditas formas disciplinadas de conhecimento, são trazidas ao cerne da produção de conhecimento mundial. Dessa forma, epistemologia e hermenêutica21 passam a ser consideradas as metodologias não apenas mais legítimas, mas também as mais legitimadoras do que é ou não um conhecimento válido. Percebe-se que as categorias, conceitos e perspectivas da episteme europeia se convertem “não apenas em categorias universais para a análise de qualquer realidade, mas também em proposições normativas que definem o dever ser para todos os povos do planeta” (LANDER, 2005, p. 34) [grifos do autor]. Em suma, pode-se dizer que esta razão científica/técnica tornou-se um instrumento para a subalternização de formas de conhecimento fora de suas fronteiras disciplinadas. A partir de então, já não se pode mais contemplar ou utilizar as informações (crenças, hábitos, pensamentos, etc) vindas de outras culturas, já que estas são entendidas como não-científicas. Em vez disso, estas outras culturas podem e devem ser conhecidas através das abordagens científicas da epistemologia ocidental europeia. Importante ressaltar que essas outras culturas, historicamente tratadas como provenientes do Terceiro Mundo22, não são apenas objeto de análise e investigação, não apenas produzem culturas a serem estudadas por antropólogos e etno-historiadores vindos do Primeiro Mundo e/ou que se utilizam das teorias que possuem este lócus de enunciação. O Terceiro Mundo produz também intelectuais que, por sua vez, criam teorias e refletem sobre sua própria história e cultura. No entanto, segundo Darcy Ribeiro (1968 apud MIGNOLO, 2003, p. 36), não podemos esquecer que “do mesmo modo que a Europa levou várias técnicas e invenções aos povos presos em sua rede de dominação ela também os familiarizou com seu equipamento de conceitos, preconceitos e idiossincrasias, referentes, simultaneamente, à própria Europa e aos povos coloniais”. Sendo 21 Para Mignolo (2003), epistemologia e hermenêutica são as bases das “ciências” e “humanidades”. Segundo o autor, coube à hermenêutica o domínio do sentido e da compreensão humana e à epistemologia o do conhecimento e da verdade. 22 O binômio Terceiro Mundo – Primeiro Mundo é mais uma das dicotomias estabelecidas pela divisão binária da Modernidade.

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assim, mesmo que irrefletidamente, os intelectuais do chamado Terceiro Mundo, em muitos casos, acabam por reproduzir o eurocentrismo e o colonialismo através de suas análises e teorias. A internalização dos valores se dá de forma tão sutil e velada que os referenciais e modelos da Europa são naturalizados e perpetuados sem sequer nos darmos conta disso. Dessa forma, os conhecimentos acadêmicos brasileiros e latino-americanos podem se tornar mais um instrumento para a subalternização das diferentes formas de conhecimento, seja pela reprodução das relações e valores impostos e vistos como ideais, seja pela comparação e tentativa de assemelhar-se aos europeus e superar nosso atraso - desvalorização dos conhecimentos que não são da Europa, mesmo que isso inclua ou omita o nosso próprio saber. Pode-se dizer que em todo o mundo ex-colonial (LANDER, 2005), o conjunto de saberes denominado Ciências Sociais, em vez de propiciar ou desenvolver o conhecimento dessas sociedades a partir de suas especificidades histórico-culturais, serviu mais para o estabelecimento dos contrastes em relação à experiência europeia – vista como universal e normativa – do que na tentativa de superar essas diferenças.

3 Ciências Sociais e Colonialidade Como foi dito anteriormente, os saberes e imaginários modernos atingem sua força máxima a partir, sobretudo, da naturalização da sociedade liberal capitalista. Segundo Lander (2005), as Ciências Sociais se constituem neste contexto específico (sobretudo em Inglaterra, França, Alemanha, Itália e Estados Unidos) na segunda metade do século passado, tendo como base as novas condições criadas com o modelo de organização da propriedade, do trabalho e do tempo da sociedade liberal. Segundo o mesmo autor (2005, p. 33), “esta é a visão de mundo que fornece os pressupostos fundacionais de todo o edifício dos conhecimentos sociais modernos” [grifos do autor]. Dessa 161


forma, é a partir do surgimento das Ciências Sociais que “dá-se o processo de cientifização da sociedade liberal, sua objetivação e universalização e, portanto, sua naturalização” (p. 35) [grifos do autor]. Ao afirmar a universalidade dos saberes científicos eurocêntricos/liberais, o estudo de todas as demais culturas e povos passa a ser abordado e analisado a partir da experiência moderna ocidental/europeia, contribuindo desta maneira para “ocultar, negar, subordinar ou extirpar toda experiência ou expressão cultural que não corresponda a esse dever ser que fundamenta as Ciências Sociais” (LANDER, 2005, p.36) [grifos do autor]. As Ciências Sociais na América Latina, conforme aponta Lander (2005), na medida em que também tentava atingir esta objetividade universal (para assemelharem-se, ao máximo, das Ciências Sociais da Europa), contribuía para a busca da superação dos traços tradicionais e pré-modernos que, segundo a concepção da episteme europeia, estaria servindo de obstáculo ao progresso e à transformação destas sociedades à imagem e semelhança das sociedades liberais industriais. As representações (sociais) suscitadas pelo imaginário colonial moderno possuem uma materialidade concreta, porque se ancoram em sistemas abstratos de caráter disciplinar como a escola, a lei, o Estado, as prisões, os hospitais e as próprias Ciências Sociais, por exemplo. (CASTRO-GÓMEZ, 2005). Para o autor, estes são dispositivos de saber e de poder que servem de ponto de partida para a construção destas representações. Enquanto instituições, as escolas oferecem áreas bastante interessantes, política e economicamente potentes, pois é onde ocorre a naturalização das relações sociais tidas como ideais (através da aquisição de conhecimentos, capacidades, hábitos, valores, modelos culturais e estilos de vida propostos e impostos). Podemos dizer que a educação está profundamente implicada na política da cultura, pois, como afirma Apple (2006, p. 22-23), “a decisão de definir o conhecimento de alguns grupos como digno de passar para gerações, enquanto a cultura e a história de outros grupos mal veem a luz do dia, nos informa algo extremamente importante sobre quem tem o poder na sociedade”. 162


4. O Ensino de Sociologia: a “Colonialidade Do Saber” na Escola e no Livro Didático Na escola, a disciplina de Sociologia representa o conjunto de saberes conhecido como Ciências Sociais. Uma vez compreendida sua condição científica, compreendemos, também, sua condição escolar isso porque, quando pensamos este ensino de forma criteriosa, seus dilemas epistemológicos também vêm à tona. Assim, além das dificuldades próprias do ato educativo, somam-se ao desafio do ensino de Sociologia a questão da natureza desta disciplina, a qual busca apresentar explicações para os fatos e acontecimentos sociais dos quais os estudantes já possuem uma primeira interpretação – conhecimentos prévios ancorados em saberes cotidianos – e, principalmente, o fato de encontrarmos/percebermos limitações heurísticas das categorias sociológicas, bem como das suas fronteiras epistêmicas (OLIVEIRA e ERAS, 2011). No contexto escolar, a disciplina de Sociologia deve demonstrar explicações qualitativamente diferenciadas dos fenômenos sociais estudados, apontando para além da superfície destes fenômenos – apresentando outros modos de pensar ou reconstruindo e desconstruindo esses modos de pensar. Mas, uma vez que seus conteúdos são diretamente influenciados pelos conteúdos acadêmicos, pode-se dizer que, o que costuma ser feito e observado nas salas de aula é a mera repetição do saber constituído a partir de um lócus de enunciação epistemologicamente situado (em especial, a Europa) e que foi estabelecido a partir de relações de poder impostas, o que leva, portanto, à hipervalorização deste mesmo lócus em detrimento de outros. Desta forma, percebe-se que esta lógica hegemônica acaba por limitar (através não apenas do ensino de Sociologia, mas da educação de maneira geral) os canais de acesso que permitiriam suspeitar, problematizar e esclarecer esses padrões impostos. Todos são/foram cooptados ou dirigidos a reproduzir os padrões próprios das significações coloniais, sempre sob a orientação da cultura do colonizador, o que nos leva ao risco da repetição da história única23. 23 A expressão “história única” foi cunhada pela escritora nigeriana Chimamanda Adichie em discurso para o “Technology, Entertainment, Design (TED)” em 2009. Para mais detalhes, conferir o vídeo da conferência de Adichie em: http://www. ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html).

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Obrigatória no ensino médio brasileiro desde 2008, podemos dizer que a tradição escolar da disciplina de Sociologia é relativamente nova. Entretanto, a luta por sua presença nos currículos escolares é de longa data. Desde a constituição do sistema educacional brasileiro, este ensino é caracterizado por diversos intervalos e interrupções em sua oferta nas salas de aula. Em 1925 (com a Reforma Rocha Vaz, vigente até 1942), e em 1931 (com a Reforma Francisco Campos), o ensino passa a integrar os currículos escolares. Em 1933/34 verifica-se seu aparecimento no ensino superior24. A partir de 1942, no entanto, passa a ser marcada por sua intermitência. Em 1961, na primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira – LDB (Lei n° 4024/61) aparece como disciplina optativa ou facultativa nos currículos. Durante o período da ditadura militar no Brasil (1964 – 1985) é banida e substituída pelos ensinos de Organização Social e Política Brasileira (OSPB) e Educação Moral e Cívica (EMC). A partir de 1982 passa a ressurgir em alguns currículos, quando ocorre uma flexibilização da legislação educacional. Em 1996, com a nova LDB (Lei n° 9.394/96), volta a ser obrigatória no currículo, e, no entanto, as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio – DCNEM – de 199825, dão margem a interpretações ambíguas da lei vigente e interferem e refletem em seu oferecimento nas salas de aula. Quase 40 anos após a sua retirada dos currículos (quando foi substituída por OSPB e EMC em 1971) é que a disciplina de Sociologia – bem como a disciplina de Filosofia – é mais uma vez incorporada ao Ensino Médio através da Lei n° 11.684/2008, que torna as duas disciplinas obrigatórias nas três séries do Ensino Médio. Muitas expectativas são criadas em relação ao poder de formação da disciplina de Sociologia, sobretudo quanto à formação política das pessoas, uma vez que se relaciona, por exemplo, conhecimentos de Sociologia ao exercício de cidadania e à capacidade de um pensamento crítico. O Ensino Médio, por sua vez, é considerado um dos momentos finais do processo de formação básica do sujei24 Cursos superiores de Ciências Sociais na Escola Livre de Sociologia e Política, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade do Distrito Federal (UDF). 25 Parecer CNE/CEB 15/98 e Resolução CNE/CEB 03/98.

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to, uma passagem crucial em sua formação pessoal. Dessa forma, devemos entender a presença ou a ausência da Sociologia nos currículos como indício de escolhas, sobretudo do campo político. Para Apple (2006), há um conjunto real e verdadeiro de relações entre, de um lado, quem tem o poder econômico, político e cultural na sociedade e, de outro, os modos pelos quais se pensa, organiza e avalia a educação, uma vez que a educação é também um ponto de conflito sobre o tipo de conhecimento que é, e deve ser ensinado. Dessa forma, a educação se liga fortemente à reprodução das relações sociais existentes. Com a inserção (obrigatória) do ensino de Sociologia nas escolas brasileiras, no ano de 201126 ela é incluída, pela primeira vez, no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que tem por objetivo auxiliar o trabalho pedagógico dos professores por meio da distribuição de coleções de livros didáticos aos estudantes da educação básica. Após a avaliação das obras por parte de membros e pareceristas – graduados e/ou professores da área – o MEC publica o Guia de Livros Didáticos, com resenhas das coleções consideradas aprovadas. O guia é encaminhado às escolas, que escolhem, entre os títulos disponíveis, aqueles que melhor atendem ao seu Projeto Político Pedagógico (PPP). A partir disso, vários debates foram travados sobre como os conhecimentos e especificidades da Sociologia deveriam ser expressos nos livros didáticos. Segundo o PNLD (2011), o livro didático de Sociologia pode atuar em três dimensões na escola pública brasileira: (1) didático-pedagógica, em que poderá favorecer os estudantes quanto à capacidade de estranhar e desnaturalizar a vida social em que se inserem; (2) social, tendo em vista que o livro didático representa – para uma parcela significativa de estudantes – a única oportunidade de acesso a um bem cultural; e (3) política, já que a distribuição gratuita do livro didático contribui para a melhoria da qualidade de ensino da escola pública. Em Santa Catarina, assim como em todo o território nacional, dois livros didáticos foram escolhidos, a partir da comissão or26 O PNLD foi publicado no ano de 2011 dando orientações à escolha e utilização dos livros para o ano de 2012. Ou seja, é em 2012 que o livro didático de Sociologia aparece, pela primeira vez, nas escolas.

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ganizada pelo Governo Federal, a serem utilizados para o ensino da disciplina. São eles: Tempos Modernos, Tempos de Sociologia, dos autores Helena Maria Bomeny Garchet e Bianca Stella Pinheiro de Freire Medeiros (2010) e Sociologia para o Ensino Médio, de Nelson Dacio Tomazi (2010). O primeiro apresenta os conteúdos da teoria sociológica se utilizando do cinema como recurso principal: a partir da descrição de cenas do filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin (1936), introduz alguns dos conceitos e teorias fundamentais das Ciências Sociais que, segundo o PNLD (2011), procuram analisar ações, pensamentos e sentimentos típicos da vida urbana industrial moderna. O segundo livro, por sua vez, é o objeto de análise deste capítulo, e seu conteúdo será abordado mais adiante. Antes disso, é preciso lembrar que a ideia de colonialidade do saber nos direciona a uma crítica em torno do saber oriundo de um lugar situado epistemologicamente (a Europa), constituído a partir de relações de poder que acaba por desvalorizar ou desconsiderar os saberes de outros locais. Este projeto colonial suscitado pela Modernidade Iluminista, sempre se assentou num projeto colonial de educação, já que através da dimensão pedagógica e cultural o conhecimento liga-se ao conjunto das relações coloniais de poder. A escola, por sua vez, representa uma instituição de destaque nessas relações de poder, por se tratar de uma das principais referências e meios de socialização das crianças e jovens. Nesta, há a tendência de certo culto a uma cultura comum ou cultura geral a ser ensinada, sobretudo quando se trata dos seus conteúdos escolares. É justamente por meio desta cultura comum, que os estudantes recebem valores de determinado grupo – em geral dos dominantes –, cultura esta que não corresponde à cultura vivenciada por todos. Considerando que, na atualidade, os livros didáticos representam uma das principais formas de acesso aos conteúdos a serem estudados nas escolas – tanto por parte dos professores, quanto por parte dos estudantes – e mesmo que inicialmente o livro didático possa ser visto como uma espécie de alicerce, fornecendo 166


os conteúdos – ou diretrizes para estes conteúdos –, é importante lembrar que frequentemente os textos nele apresentados reproduzem aspectos dos mecanismos de controle discutidos até aqui. Isto é, à medida que estes conteúdos são indiretamente controlados através desses textos, pouca coisa é deixada para a decisão do educador, o que faz com que os resultados e os objetivos desse ensino sejam (mesmo que de forma oculta) conduzidos. Esse é o poder de persuasão dos livros didáticos: uma vez que são os livros didáticos que estabelecem grande parte das condições materiais para o ensino e a aprendizagem nas salas de aula de muitos países através do mundo e considerando que são os textos destes livros que frequentemente definem qual é a cultura legítima a ser transmitida, será por aqui que devemos começar (APPLE, 1995, P. 80-81).

Por isso, na análise que fizemos do livro didático de Sociologia, tomamos por referência as quatro dimensões que Lander (2005) aponta como eixo articulador central da cosmovisão da modernidade: (1) a visão universal da história associada à ideia de progresso; (2) a naturalização tanto das relações sociais como da natureza humana da sociedade liberal-capitalista; (3) a naturalização ou ontologização das múltiplas separações próprias dessa sociedade; e (4) a necessária superioridade dos conhecimentos que essa sociedade produz – a ciência – em relação a todos os outros conhecimentos. Na Introdução do livro didático de Tomazi (2010), intitulada O estudo da Sociologia, encontramos justificativas do por que estudar a sociedade de modo científico, bem como as finalidades da Sociologia: O que se pode dizer, inicialmente, é que a Sociologia, assim como as demais ciências humanas (História, Ciência Política, Economia, Antropologia, etc), tem como objetivo compreender e explicar as permanências e as transformações que ocorrem nas sociedades humanas e até indicar algumas pistas sobre os rumos das mudanças. (…) A Sociologia nos ajuda a entender melhor (...) questões que envolvem nosso cotidiano, sejam elas de caráter pessoal, grupal, ou ainda,

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relativa à sociedade à qual pertencemos ou a todas as sociedades. Mas o fundamental da Sociologia é fornecer-nos conceitos e outras ferramentas para analisar as questões sociais e individuais de um modo sistemático e consistente, indo além do senso comum. (TOMAZI, 2010, p. 07-08) [grifos meus]

Já nesse primeiro trecho podemos perceber certa alusão à ciência-Sociologia como capaz de compreender todas as sociedades humanas, fornecendo seus conceitos e ferramentas de análise. No entanto, devemos, de certa maneira, relevar essa orientação positivista do texto, já que uma apresentação feita aos estudantes de Ensino Médio deve ser contextualizada, evitando ao máximo as abstrações, o que aumenta o risco de uma simplificação extrema. De qualquer forma, mesmo relevando essa objetivação necessária, após fazer essa breve apresentação, o autor do livro segue fornecendo definições de Sociologia a partir de um sociólogo francês (Bourdieu), um estadunidense (Mills) e um filósofo inglês (Whitehead), demonstrando certa predileção por um lócus de enunciação de origem determinada (no caso, Europa e Estados Unidos da América). Não devemos desconsiderar as importantes reflexões realizadas por estes (e outros) autores europeus e estadunidenses. Mas a questão que surge e se sobressai nesse momento é: porque nenhuma definição de Sociologia de autores brasileiros é/foi incluída nesta apresentação? Ainda na Introdução, na parte intitulada A produção social do conhecimento, apresenta a ideia de que “todo conhecimento se desenvolve socialmente” (TOMAZI, 2010, p. 09) e que precisamos conhecer o contexto social no qual vivem as pessoas para compreender como as mesmas pensam. Ao falar sobre a ordem social existente e a superação ou manutenção dessa ordem, explica que além de conflitos no campo político e econômico, há também um conflito no campo das ideias entre os diferentes grupos sociais, gerando diferentes concepções e formas de conhecimento. Segundo o livro, 168


A Sociologia é uma dessas formas de conhecimento, resultado de condições sociais, econômicas e políticas do tempo em que se desenvolveu. Ela nasceu em resposta à necessidade de explicar e entender as transformações que começaram a ocorrer no mundo ocidental entre o final do século XVIII e o início do século XIX, decorrentes da emergência e do conhecimento da sociedade capitalista. (TOMAZI, 2010, p. 09) [grifos meus]

Nesta frase, mesmo considerando que o texto é um histórico sobre a Sociologia que, de fato, desenvolveu-se em países determinados, podemos perceber a tendência à perpetuação da visão única da história mundial ao falar sobre as transformações que ocorreram no mundo ocidental a partir da emergência e do conhecimento da sociedade capitalista. Ainda, a utilização da expressão mundo ocidental implica na naturalização de uma dicotomia típica dessa episteme em ascensão: a separação do mundo entre ocidente e oriente. A partir da explicação de como, na época, a produção de alimentos e objetos, antes artesanais e produzidos no campo, passaram a se deslocar para as cidades, onde se desenvolviam as indústrias, o texto afirma que “essa mudança desencadeou importantes transformações no modo de vida dos diferentes grupos sociais (…), grandes transformações políticas também ocorreram (…), impulsionadas por movimentos como o da Independência dos Estados Unidos e da Revolução Francesa” (TOMAZI, 2010, p. 10). Além da sutil visão positiva que o texto traz sobre o processo de industrialização das cidades (com as palavras “importantes” e “grandes” para caracterizar as transformações), ao colocar fatos ocorridos em países específicos como “marco-zero” das tais “transformações” do “mundo ocidental”, demonstra-se certa naturalização ou, até mesmo, uma ontologização dos fatos ocorridos em alguns países da Europa do séc. XVIII e nos EUA. Percebemos, assim, que a Europa e os EUA são colocados como o centro da história, seu ponto de referência e orientação. Já mais ao final dessa parte introdutória, o autor (2010, p. 10) discorre que, no decorrer do século XX a Sociologia tornou-se uma disci-

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plina mundialmente reconhecida. (…) Os mais destacados, independentemente do país de origem, ministram cursos e conferências em centros universitários de todos os continentes e têm seus livros traduzidos em muitos idiomas [grifos meus].

Tal informação nos leva a entender que a distribuição da disciplina de Sociologia no mundo se deu de forma homogênea e regular. No entanto, conforme diz Mignolo (2003), realizações intelectuais exigem condições materiais, e condições materiais satisfatórias, por sua vez, relacionam-se com a colonialidade do poder (e consequentemente, do saber). Além disso, quando o texto fala em “todos os continentes” e da tradução dos livros “em muitos idiomas”, mais uma vez nos induz ao erro. Segundo Mignolo (2003, p. 14), a impressão – bem como a tradução – de livros relaciona-se à subalternização do conhecimento: “se a publicação for em inglês, há menos necessidade de reimpressão por causa da circulação mais ampla. Quando se publica em espanhol [por ex.], as publicações geralmente não ultrapassam o circuito local”. A Introdução do livro didático é encerrada com (finalmente) um parágrafo sobre a Sociologia brasileira: No Brasil, a Sociologia tem alcançado uma visibilidade muito grande seja por causa da presença em todo o território nacional de institutos de pesquisa social ou de cursos de graduação e de pós-graduação, seja pela atuação de sociólogos em muitos órgãos públicos e privados ou nos meios de comunicação de massa. Assim, a Sociologia e os sociólogos estão presentes no cotidiano do país. (TOMAZI, 2010, p. 10).

É interessante perceber que o histórico apresentado até então era descritivo e atento à associação entre saberes sociológicos, acontecimentos históricos da sociedade, seus autores, o porquê de seus conceitos e categorias, e os fatos sociais que impulsionaram estes pensamentos. Ao falar deste saber em nosso país a análise limitase a “onde” e “como” os profissionais de Sociologia estão aplicando este conhecimento, sem sequer problematizar se há uma produção intelectual própria daqui, quem são seus autores principais, fundacionais ou que mais se destacaram. 170


Importante destacar que a edição do livro em análise é datada de 2010, época em que a Sociologia no Brasil já pode ser considerada bastante consolidada, e que, portanto, seus intelectuais – como o sociólogo autor do livro – são plenamente capazes de, não apenas narrar a história da Sociologia daqui, mas discuti-la e analisá-la criticamente. 5 Considerações Finais Se pensarmos na Sociologia enquanto saber científico em sua forma mais inicial, perceberemos que é carregada de valores que a Modernidade Iluminista, na qual ela surgiu, suscitou. Tendo em vista seu contexto de formação e a conjuntura dos autores que escreviam acerca da sociedade de sua época, podemos compreender essas características como sendo uma consequência natural. Se pensarmos na produção científica das Ciências Sociais contemporâneas, sobretudo a produção brasileira, perceberemos que há, em certa medida, a tendência a uma importação de teorias, em especial de países e lóci de enunciação específicos (Europa), que coincidem com os países ditos originários dessas teorias. Com isso, acaba-se por reproduzir e reforçar a colonialidade e o eurocentrismo da ciência social ao invés de promover novas formas de crítica cultural e de emancipação intelectual e política. Enquanto saber escolar, por sua vez, a Sociologia encontrada nas salas de aula espelha-se completamente na Sociologia acadêmica. A partir da análise feita da Introdução do livro didático, percebe-se que a apresentação da disciplina não contempla a pluralidade das teorias e métodos deste campo de investigação, que nos tempos atuais encontra-se mais refinado. O repertório das explicações e informações trazidas para os estudantes compõem um conjunto uniforme de teorias e autores, que sempre valorizam (mesmo que implicitamente) o de lá em detrimento do de cá, e, em sua maioria, são, inclusive, vindos destes locais. Dessa forma, ao limitar - através do ensino escolar e de seus conteúdos - os meios que permitiriam aos sujeitos suspeitar dos padrões e condições impostos à suas vidas, percebe-se a perpetuação 171


de uma visão única da história, orientada a partir de conhecimentos e marcos culturais do grupo dominante, e, neste caso, do colonizador (europeu). Podemos entender essa constatação da herança eurocêntrica e colonialista de nossos saberes (científicos e escolares) como uma vitória do projeto moderno, que se enraizou de tal maneira em nossos pensamentos que temos dificuldades de percebê-la. Tal como disse Porto Gonçalves (2005), a melhor dominação é aquela que, naturalizada, não aparece como tal. O trabalho de análise de um livro didático é árduo e dificultoso, justamente por este motivo, uma vez que as bases e preceitos do eurocentrismo e do colonialismo sempre estiveram presentes em nossa trajetória escolar e acadêmica. Devemos lembrar, no entanto, que a educação é uma via de mão dupla. Ao mesmo tempo em que é através dela que essa força hegemônica naturaliza-se na sociedade, é através dela também que devemos ver o seu meio de desconstrução. Constatar como e onde as relações de domínio e subordinação se organizam é importante para conseguir dar o primeiro passo para romper com tal dominação. O discurso e pensamentos suscitados pelas teorias pós-coloniais (que fomentam a argumentação teórica deste artigo) não são apenas um novo campo de estudo, mas também “a condição para a possibilidade de se construírem novos loci de enunciação e para a reflexão de que o ‘conhecimento e compreensão’ acadêmicos devem ser contemplados pelo ‘aprender com’ aqueles que vivem e refletem a partir de legados coloniais e pós-coloniais” (MIGNOLO, 2003, p. 25). Segundo Apple (2006, p. 30), “as ideias são armas (…): espalhá-las em um contexto autoritário [e de conhecimento hegemônico] é um ato subversivo, (…) e ainda assim totalmente essencial”. Sendo assim, esperamos que o presente capítulo possa contribuir não apenas para problematizar a questão das relações coloniais da educação (e da sociedade), mas, também, demonstrar que a mudança epistêmica proposta e desenvolvida a partir das teorias pós-coloniais mostram-se elementares para pensar um processo educativo significativo e descolonizado, com, na medida do possível, uma perspectiva epistemológica coerente com a realidade e contexto sociopolítico das crianças, adolescentes e jovens. 172


Referências APPLE, M. Ideologia e Currículo. 3 ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em 25 out. 2013. ______. Lei nº 11.684, de 2 de Junho de 2008. Altera o art. 36 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias nos currículos do ensino médio. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2008/Lei/L11684.htm. Acesso em 25 out. 2013. ______. Ministério da Educação. Orientações curriculares para o Ensino Médio – ciências humanas e suas tecnologias. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2008. ______. Ministério da Educação. Guia de livros didáticos – PNLD 2012: Sociologia. Brasília: MEC, Secretaria de Educação Básica, 2011. CASTRO-GOMEZ, S. Ciências Sociais, violência epistêmica e o problema da “invenção do outro”. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino -americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005, p. 169-186. LANDER, E. Ciênciais sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. In: ______. (org.) A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 21-53. MIGNOLO, W. Histórias locais - projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003. OLIVEIRA, A.; ERAS, L.W. Por um ensino de sociologia descolonizado. Revista de Estudos AntiUtilitaristas e PósColoniais. Volume 1, número 1, 2011. 173


PORTO-GONÇALVES, C.W. Apresentação da edição em português. In: LANDER, E. (org.) A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005, p. 09-15. TOMAZI, N.D. Sociologia para o Ensino Médio. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

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CAPÍTULO IX

PERSPECTIVAS INTERCULTURAIS E GLOBALIZ(AÇÕES): tensões e dilemas em Timor-Leste Ricardo Teixeira Canarin Gisele Canarin Christian Muleka Mwewa

1 Introdução A partir de algumas características culturais em Timor-Leste, pretendemos perspectivar a diversidade da globalização que, por diferentes configurações, não se caracteriza como singular, mas plural, a começar pela duplicidade do seu movimento. O processo de globalização pressupõe, no mínimo, dois agentes, aquele que globaliza e aqueles que sofrem a ação, ou os globalizados e os que não o são. Nos últimos anos do século XX, Timor-Leste encontra-se sob o efeito direto da influência de estrangeiros, estruturando, assim, sua noção cultural em certos aspectos, como por exemplo, linguísticos, alimentícios e de mobilidade. É a partir destes aspectos que norteamos o nosso objetivo, que é tensionar a estrutura cultural de Timor-Leste por meio das relações estabelecidas entre diversos grupos com origens diferentes. Até que ponto as influências externas tangenciam a noção de cultura nacional? É possível falar em cultura nacional no contexto de Timor-Leste? Qual é a atuação política no contexto nacional? Timor-Leste configura-se num mosaico cultural que instaura a necessidade de se repensar a relação da nação com estrangeiros, que impacta na identidade cultural. 175


É nestas bases que se estrutura o processo de globalização, o qual encontra na educação o seu algoz voraz, enquanto possibilidade de resistência à incorporação da diversidade sem submissão à globalização unilateral.

2 Timor-Leste na perspectiva intercultural Timor-Leste é um país que reconquistou sua independência recentemente, e ainda está se (re)estruturando política e economicamente. Neste artigo, falaremos de um país que tem apenas dez anos de independência política. Como é um dos países mais recentes do mundo, politicamente, é comum encontrarmos algumas peculiaridades27 que não encontraríamos facilmente em outros lugares. Timor-Leste ou Timor Lorosa’e28 é um país que está situado no sudeste do continente asiático e possui uma população estimada de cerca de um milhão de habitantes. A ilha de Timor é dividida em duas partes. A porção ocidental, com capital em Kupang, pertence hoje à República da Indonésia, e a porção oriental, com capital em Díli, foi colônia de Portugal desde o século XVI. Esta porção oriental é hoje o país de Timor-Leste. Neste contexto, o presente artigo pretende analisar algumas características culturais desta parte oriental da ilha de Timor, o país de Timor-Leste, e como se estrutura a cultura de uma nação que, nos últimos anos, sofre efeito direto das grandes teias da globalização. Assim, este trabalho busca analisar as questões culturais do país sob o foco principal de Nestor Garcia Canclini e seu pensamento sobre interculturalidade. Acreditamos que o referido autor pode ajudar a entender como caminha a questão cultural em Timor-Leste. 27 Referimos a peculiaridades num sentido positivo, pois consideramos que TimorLeste ainda está alicerçado em tradições fortes e marcantes, que guiam e mostram caminhos certos para o povo timorense. 28 Timor Lorosa’e significa Timor-Leste em língua Tétum, língua oficial em TimorLeste, juntamente com o Português.

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Entendemos que, com a modernidade os avanços tecnológicos, o sistema econômico global e a forte presença das Nações Unidas (ONU), o país de Timor-Leste, neste momento histórico, sofre certa influência de várias culturas, que são trazidas pelo considerável número de estrangeiros que estão neste país. Um dos possíveis problemas que destacamos é que estas pessoas estão em Timor-Leste por um período curto de tempo, pois são trabalhadores que vieram para este território desempenhar funções que fazem parte da reestruturação política e econômica do país. Mas, como sabemos, as cooperações internacionais tendem a deixar essa nação quando sentirem que Timor-Leste já vislumbra uma estrutura política e economicamente autônoma, não precisando, assim, da ajuda internacional para exercer certas funções neste âmbito. Dessa forma, há um movimento interessante para ser estudado neste país. Os estrangeiros superficialmente podem se inserir na cultura timorense, mas, um fator preocupante, a nosso ver, é a influência que essas pessoas podem exercer na cultura timorense. Esta preocupação também é compartilhada com Geoffrey Gunn (2001, p. 25), em seu artigo intitulado Língua e cultura na construção da identidade de Timor-Leste, no qual o referido autor afirma que, “hoje, porém, o desafio de manter a cultura e a identidade de Timor-Leste resulta igualmente do efeito da globalização, cuja porta foi aberta pela presença das Nações Unidas e pela introdução do Inglês como língua de trabalho entre os funcionários multinacionais”. Se levarmos em consideração que grande parte desses estrangeiros está impregnada da cultura capitalista ocidental, podemos destacar um problema à cultura timorense com todas as suas peculiaridades orientais. Assim, o consumismo e a indústria do entretenimento vão se instalando aos poucos e ganhando cada vez mais adeptos. É neste momento histórico que a indústria cultural pode enraizar suas bases neste país, abalando a sua cultura. Neste contexto, o povo timorense pode se mostrar confuso diante dessas múltiplas facetas que o capitalismo utiliza para descaracterizar a identidade de cada indivíduo. 177


Para analisar estes aspectos, surgem alguns questionamentos importantes a nosso ver: Como podemos entender o processo, que parece tão complexo e inevitável, deste “mix” de culturas em Timor-Leste? Qual a perspectiva para a cultura timorense em tempos modernos globais? Como deve se estruturar a cultura de um país que pretende conectar-se ao mundo globalizado, sem perder seus traços históricos? Vamos recorrer a Nestor Garcia Canclini e sua ideia sobre a interculturalidade para encontrar possíveis respostas para uma conexão global de Timor-Leste, sem que este perca suas marcas culturais dos antigos moradores desta ilha. Canclini (2006) acredita que a interculturalidade possibilita a compreensão da dinâmica dos processos e relações da sociedade. Os processos de exclusão social, política, econômica, cultural, étnica e religiosa, são faces dessa nova realidade intercultural. A interculturalidade pode ser vista, segundo Mwewa (2009, p. 18), como: Uma questão da formação da subjetividade a partir das relações com as quais o sujeito se conecta na sociedade por meio da cultura. Estas não se mantêm somente no nível do discurso e sim o extrapolam, com ações que buscam uma relação mais autônoma entre os sujeitos e do sujeito para consigo mesmo, porém, sem garantias.

De acordo com Canclini (2006), a globalização é uma tendência irreversível; então, precisamos buscar uma conexão global, baseada em fontes seguras de informação e educação. É preciso questionar as respostas impostas pela sociedade do consumismo que, em muitas vezes, usam os bens e meios de comunicação de massa para proliferar as ideias hegemônicas do capital. Concordamos com Canclini, pois acreditamos que o processo da globalização é inevitável, e essa tendência em Timor-Leste não se encontra diferente dos outros países do mundo. Apesar de ser um país muito recente, sofre violentamente com o processo da globalização econômica, e a consolidação visível das bases da indústria cultural. É necessário, então, valorizar as disposições artísticas e intelectuais, pois a formação dos timorenses dependerá de um pro178


cesso educacional intenso, para que “não ocorra a perda de instrumentos conceituais pela deserção escolar e escassez de estímulos culturais complexos e duradouros” (CANCLINI, 2003, p. 29). Nesta perspectiva, para Canclini (2006), um dos assuntos de suma importância a ser tratado nas políticas sociais e culturais não é apenas a diferença das camadas da sociedade, mas como corrigir as desigualdades e conectar as minorias nas redes globalizadas. Neste contexto, então, podemos dizer que é na educação que assumimos a responsabilidade de cuidar do mundo, tomando-a como base forte para lutas sociais, em prol de uma sociedade que possa incluir a todos de forma igualitária e coesa. Nestes termos, Timor -Leste busca, na atualidade, a conexão com o mundo, e este processo acontece fortemente com as ações da ONU. Este órgão mundial atua fortemente na representação de Timor-Leste em grande parte do mundo. E, na educação, podemos citar cooperações internacionais, como a cooperação portuguesa e a brasileira, que auxiliam na implantação do novo currículo escolar e na formação de professores, que ainda é campo muito deficitário neste momento histórico deste país. Na busca por uma conexão global, o povo timorense encontra caminhos para possibilitar uma ligação ao mundo globalizado, como o aprendizado de outras línguas, como por exemplo, o Malaio indonésio, Inglês e o Português; e o uso dos recursos midiáticos e a internet por parte de uma parcela da população que encontra, nesses meios, acesso para buscar uma conexão global. Em Timor-Leste é possível encontrar um grupo significativo da população empenhada em apreender outras línguas29, pois é comum ouvir de timorenses que o aprendizado da língua portuguesa é importante para buscar uma conexão linguística com outros países, pois Português é uma língua mundial, coisa que o Tétum (língua nativa e oficial de Timor-Leste) não é. 29 É importante ressaltar que “Timor-Leste é um país poliglota, com nada menos que quinze línguas distintas, muitas delas subdivididas em dialetos locais. Onze destas línguas (Tétum, Kawaimina, Hábum, Idalaka, Galóli, Ataurense, Tocodede, Quêmaque, Mambae, Baiqueno e Lovaia) pertencem, assim como o Malaioindonésio, o Tagal (philipino), e a maioria das línguas do Pacífico, à família das línguas austronésias. As outras quatro línguas (Búnaque, Macassae, Macalero e Fataluco) estão classificadas como línguas papuas e são muito mais antigas, tendo sido introduzidas em Timor há milênios, a partir da Nova Guiné” (HULL, 2001, p.1).

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Atualmente, essa conexão ao mundo global se encontra prejudicada por problemas nos sistemas nacionais de políticas sociais, pois a parcela de desconectados não é “diferente” apenas pelas questões étnicas e culturais, mas, a economia também se configura em fator de desconexão. Para entender um pouco melhor como se estrutura a cultura de Timor-Leste, vamos buscar, na história desse país, alguns fatos que nos podem esclarecer como viveu e como vive o povo timorense, esta nação que reconquistou sua independência há tão pouco tempo. Independência esta que, segundo professor Felipe dos Santos Arranhado, em sua palestra para os professores brasileiros e timorenses, intitulada “A Educação e a História Cultural de Timor-Leste (2012)”, só foi conquistada pela forte base cultural que Timor-Leste conserva até hoje. Assim, faz-se necessário contextualizar os períodos históricos da educação formal e não formal timorense, bem como o aprendizado da língua portuguesa, pois entendemos que, com a colonização portuguesa e a nova forma de educação trazida por estes, vieram novas ideologias que influenciaram fortemente a cultura e a língua do povo. Neste contexto, discorreremos sobre estas influências na educação de Timor-Leste e traçaremos o perfil das mudanças ocorridas na estrutura econômica e política deste país.

3 Educação e as possíveis bases culturais Quando os primeiros mercadores e missionários portugueses aportaram na ilha de Timor em 1515, encontraram populações organizadas em pequenos estados, reunidos em duas confederações: Servião e Belos30, que praticavam religiões animistas. Na segunda metade do século XVI, chegam a Timor-Leste os primeiros frades dominicanos portugueses, por intermédio dos quais se desenvolve uma progressiva influência religiosa, ao mesmo tempo em que se estabelece a dominação portuguesa. Neste 30 Belos eram os povos que habitavam a parte oriental da ilha, e Servião os povos que habitavam o ocidente (MATTOSO, 2001).

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período começa a se estruturar a formalização de um processo de ensino-aprendizagem com jesuítas, abrindo, assim, uma nova forma de educação - a educação formal para o povo timorense. Consideramos como nova forma de educação, pois se pode dizer que a formação educacional do povo timorense, desde há muito tempo, esteve vinculada a um forte aspecto religioso, se considerarmos aqui a expressão Formação Educacional sob um aspecto mais amplo do que a educação formal de uma sala de aula. Desta forma, o professor Januario Gomes (2010, p. 3) ajuda a compreender a ideia de que Timor-Leste já detinha sua própria educação: Em épocas muito anteriores à chegada dos primeiros portugueses nas terras do país que hoje chamamos de Timor -Leste, os habitantes desta ilha já possuíam sua fé própria e original. A necessidade de passar essa fé e esses conhecimentos aos filhos, aos netos e às novas gerações, geraram os primeiros sinais de uma educação que não era formal, mas nem por isso deixava de ser um tipo de educação. Essa educação sempre teve um forte vínculo com os aspectos religiosos e místicos.

Essa educação dos antigos habitantes de Timor-Leste marcou fortemente a formação da cultura deste povo e, ainda hoje, é possível encontrar muito dessas marcas culturais: a língua Tétum é uma delas: “uma comprovação da eficiência daquele tipo de educação e do seu resultado, para o povo timorense, é que ainda nos dias de hoje se preserva muito a respeito de objetos, como pedras, madeiras ou outros elementos da natureza, como árvores, animais” (GOMES, 2010, p. 5), objetos esses considerados sagrados pelos povos antigos da ilha de Timor. A transferência dos valores que chegaram até os dias atuais, feita por via oral pela tradição de pai para filho, indica que os povos de Timor-Leste já praticavam um tipo de educação há muitos anos, mesmo sem saber ou definir sua atitude como um tipo de educação. O resultado desta tradição oral afeta significativamente qualquer estudo que seja feito em Timor-Leste, pois há poucos registros históricos sobre a vida e costumes timorenses. 181


Na sociedade timorense, os professores desempenham um papel importante, não somente como profissionais da educação, mas também como pessoas que são responsáveis pela formação das novas gerações. Essa formação não ocorre somente no ambiente da escola, mas também em todos os aspetos da vida dos timorenses. Segundo Gomes (2010, p. 3), o professor timorense, pelos seus comportamentos e atitudes, é visto como exemplo para os jovens, influenciando no comportamento das novas gerações: Na sociedade timorense, a figura do professor é sempre vista como referência. Nas comunidades menores, a avaliação do comportamento do professor, tanto em sua vida pessoal quanto em relação ao domínio do conteúdo da disciplina em que trabalha, é feita constantemente pelas pessoas que compõem esta comunidade. A sociedade avalia e julga principalmente o caráter e a atividade dos professores em todos os momentos, considerando aquelas que julga dignas de serem imitadas ou não.

Neste contexto, podemos observar a figura do professor como um modelo a ser seguido, o que retrata a grande responsabilidade que a sociedade timorense emprega na educação dos seus jovens, e extrema confiança em seus educadores. Como é um país em reconstrução, para muitos timorenses a educação será capaz de reestruturar o país, capacitando os jovens desta nação para ocupar os cargos que, até o presente momento, estão ocupados por profissionais da UN, ou outras cooperações estrangeiras em território timorense. Nestes termos, segundo o professor Januario Gomes (2010, p. 4), podemos confirmar esta ideia: Reconhecendo que não se constrói um país realmente democrático e independente sem uma boa educação de qualidade, o governo timorense, através do Ministério da Educação, estabeleceu vários convênios de cooperação internacional em educação com outros países, principalmente Portugal e Brasil. Esses dois países são muito importantes na história da educação do Timor-Leste porque são responsá-

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veis por um dos cursos de formação de professores (bacharelado emergencial). Além de serem países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e de cooperarem na própria formação de professores, podem ajudar muito na divulgação e utilização da língua portuguesa pelos professores e, por consequência, pelo povo timorense.

Podemos observar a importância dada à língua portuguesa como fonte promotora de uma possível conexão com os países da CPLP, configurando uma busca por uma conexão global deste país. Alguns autores, incluindo fortemente o nome do linguista australiano Geoffrey Stephen Hull, afirmam que a língua portuguesa, além de ter auxiliado nas estratégias do exército da resistência, hoje pode contribuir na conexão global de Timor-Leste e auxiliar na estrutura da língua Tétum, que carece de inclusões de algumas palavras e expressões que o idioma não possui. Assim, a língua portuguesa, segundo Hull (2001), pode significativamente reafirmar a identidade cultural do povo timorense com base na história deste povo. Sabemos que, com mais de 250 milhões de falantes, a língua portuguesa é, como língua nativa, a quinta língua mais falada no mundo. Além de Portugal e Brasil, é língua oficial em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Macau, Moçambique, São Tome e Príncipe e Timor-Leste. Possui estatuto oficial na União Europeia, MERCOSUL, União Africana, Organização dos Estados Americanos, União Latina e na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Percebe-se, neste contexto, a importância da língua Portuguesa no cenário mundial. Para Timor-Leste, país que a adotou como oficial, esta língua traz consigo uma herança que marca a história do povo timorense. Muito mais que patrimônio nacional, a língua portuguesa é a língua que resistiu à perseguição indonésia. “Ao contrário do previsto e apesar de ser fortemente reprimida pelos indonésios, a língua portuguesa não se extinguiu em Timor” (HULL, 2001, p. 38). Confirmando as ideias de Hull sobre a importância da língua portuguesa em Timor-Leste durante a ocupação indonésia, podemos citar o nome de Taur Matan Ruak31 (2001, p. 41), que discorre sobre a luta para preservar esta língua: 31 Atual Presidente da República Democrática de Timor-Leste (2012/2016).

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Nos tempos da guerra de posição, de 1975 a 1979, a língua oficialmente utilizada pela resistência era o Português, falado e escrito em qualquer tipo de comunicação, desde o topo até a base. Embora lutássemos com dificuldades de toda a ordem, utilizávamos todos os recursos disponíveis para não só preservar a língua, mas, essencialmente, expandi-la aos menores e analfabetos, através de aprendizagem, até utilizando para isso carvão e casca de certas plantas para servir de papel.

O governo timorense partilha da ideia de que a língua portuguesa deve estar nas bases educacionais; assim, afirma que é necessário investir muito na área da educação e cultura: Na sequência da consulta popular de 1999, grande parte das infraestruturas existentes foi destruída e os quadros técnicos indonésios na área da educação abandonaram o país. O esforço de reconstrução desde então realizado, feito em cooperação com os Parceiros de Desenvolvimento e diversas Organizações Não-Governamentais nacionais e estrangeiras, tem permitido inverter gradualmente esta situação, inclusive o ensino de língua portuguesa. Os acontecimentos de 2006 vieram, porém, demonstrar que este esforço exige um trabalho em continuidade em várias áreas, no sentido do reforço das instituições do Estado e da criação de relações entre estas e as demais estruturas sociais do país. Não tendo sido uma área fundamental de investimento dos anteriores governos Português e Indonésio, a área da cultura foi grandemente afetada com os acontecimentos de 1999, e com o fato de o esforço de reconstrução realizado entre 1999 e 2006 ter sido essencialmente direcionado para questões relacionadas com a reestruturação institucional, a educação e a inserção da língua portuguesa como língua de ensino nas escolas secundárias (TIMOR-LESTE, 2012a).

Nestes termos podemos, ainda, ressaltar novamente as palavras do presidente de Timor-Leste, Taur Matan Ruak (2001, p. 41), que é incisivo na elevação da língua portuguesa como língua oficial deste país:

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Queremos, enfim, afirmar que nunca perdemos a vontade de manter a língua portuguesa, tanto oral como ortograficamente, apesar das várias dificuldades e limitações impostas na redução física dos falantes da língua portuguesa. Sempre com espírito de que a mesma será a nossa língua oficial, logramos conseguir aquilo que para muitos foi um sonho. Com muita razão dizemos: valeu à pena lutar.

Assim, a língua portuguesa assume lugar de destaque como patrimônio histórico e fator importante na busca por uma identidade cultural, baseada na história da resistência do povo timorense, que se orgulha em ser um povo forte e persistente que venceu 24 anos de opressão indonésia, tendo como fator de suma importância para sua vitória essa língua que, para muitos, é o orgulho nacional. Está na constituição federal de Timor-Leste que, no atual contexto deste país, a tutela da cultura deverá desempenhar um papel fundamental de “coordenação e harmonização de iniciativas dos vários intervenientes na atividade cultural, quer no Governo, quer na relação entre o Governo e a sociedade civil” (TIMOR-LESTE, 2012b). Assim, ressalta-se a importância de uma política que promova a qualificação de recursos humanos, a criação de infraestruturas e o estabelecimento de parcerias com instituições nacionais e internacionais. É neste contexto que podemos destacar os cursos de capacitação docente e de língua portuguesa instrumental, que são oferecidos pela cooperação brasileira para os timorenses. Ambos os cursos podem proporcionar, ao Timor-Leste, uma oportunidade de socialização das práticas docentes dos professores brasileiros, e ao mesmo tempo podem aperfeiçoar a língua portuguesa, que é a segunda língua oficial em Timor. Timor-Leste possui um número reduzido de quadro profissional de nível técnico, médio e superior. A maior parte das universidades existente não contempla ainda a formação superior em áreas sociais e culturais do conhecimento (Antropologia, Sociologia, Geografia, Filosofia, História, Arqueologia, Artes, Arquitetura e Música). “Esta situação está em parte relacionada com o tecido socioeconômico do país e com a fraca capacidade existente para absorver recursos humanos qualificados nessas áreas” (TIMOR-LESTE, 2012a). 185


Neste contexto, é importante ressaltar que, em Timor -Leste, uma parte significativa da população vive em áreas rurais, com condições de habitabilidade, acesso à informação e comunicação insuficientes. Em muitos casos não há um conexão dos habitantes destas áreas com as áreas mais desenvolvidas de Timor. Apesar destas condicionantes, o contexto de isolamento permite igualmente a existência de uma forte interdependência entre as comunidades e o meio, sua história e tradições culturais. Podemos destacar esse certo isolamento como benéfico à cultura local, pois a mesma permanece intacta, sem influências internacionais. A problemática que se levanta neste ponto é a dificuldade de uma comunidade evoluir sozinha, apenas valorizando sua cultura, principalmente neste momento que Timor-Leste visa à ampliação de suas relações com o mundo. A diversidade étnica, linguística e de outras manifestações de natureza cultural existente em Timor-Leste deve ser destacada para que estes contribuam para o processo de desenvolvimento e de (re)construção da nação. As várias culturas existentes não devem ser interpretadas como entraves ao desenvolvimento, mas como parte integrante deste. “A cultura e as tradições são processos dinâmicos, que evoluem no tempo, a melhor compreensão e integração destes elementos no processo de modernização do país ajudará a desenvolver uma identidade cultural para Timor -Leste” (TIMOR-LESTE 2012b).

4 Algumas considerações Assim, com mais de 40.000 anos de presença humana, 400 anos de colonização portuguesa, 24 anos de ocupação indonésia e um período de transição sob a administração da Organização das Nações Unidas, entre 1999 e 2002, Timor-Leste desenvolvese, hoje, no sentido de construir instituições culturais sólidas e de um sentido de identidade nacional. Identidade esta que busca na língua portuguesa suas mais profundas raízes culturais para solidificar suas duas línguas oficiais (Tétum e Português). O Tétum visa 186


à comunicação em nível nacional, já o Português pode ampliar as fronteiras marítimas de Timor-Leste, possibilitando uma comunicação maior com os países que compõem a CPLP para que, posteriormente, consolide uma conexão com o mundo. No que tange ao atual sistema educacional, Timor-Leste necessita de apoio para implementar o novo currículo que está posto (currículo em língua portuguesa). Neste sentido, cooperações como a do Brasil e Timor são de fundamental importância para a efetiva consolidação desse currículo, e a efetiva utilização da língua portuguesa como língua de ensino nas escolas. Nestes termos, podemos apresentar algumas restrições desfavoráveis à presença de estrangeiros em Timor: sabemos que todas as cooperações e organizações estrangeiras buscam um objetivo em comum, que é auxiliar Timor-Leste a ser autossuficiente administrativa e economicamente. Porém, é necessário repensar o quanto é impactante a presença tão elevada de estrangeiros em um país que busca uma identidade cultural que lhe foi usurpada tantas vezes. Destacamos que a educação pode ser um caminho seguro para a formação de timorenses preparados para atuarem responsavelmente nas áreas nas quais Timor-Leste necessita e, ainda, que é preciso pensar nas práticas educativas em todos os níveis, de modo que o aluno possa experimentar práticas sociais e intercâmbios acadêmicos que induzam à solidariedade, à colaboração, à experimentação compartilhada, assim como outro tipo de relação com o conhecimento e a cultura, que estimulem a busca, a comparação, a crítica, a iniciativa e a criação. Então, consideramos que a formação dos timorenses esteja pautada na educação e que esta possa proporcionar instrumentos para a melhoria social embasada na formação cultural do sujeito. Assim, os timorenses equiparam suas chances na busca de uma conexão com o mundo, sob os auspícios do direito de serem diferentes, desiguais, porém conectados.

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Referências CANCLINI, Néstor Garcia. Reconstruir políticas de inclusão na América Latina. In: UNESCO. Políticas culturais para o desenvolvimento: uma base de dados para a cultura. Brasília: UNESCO Brasil, 2003. _______. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 5. Ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005. _______.Diferentes, desiguales y desconectados. Barcelona: Gedisa, 2006. GOMES, Januário. Estudo comparativo entre os cursos de formação de professores de matemática da UNTL – FEAH e do INFPC. 2010. Monografia. Universidade Nacional Timor Lorosa’e - UNTL. Dili, 2010. GUNN, Geoffrey. Língua e cultura na construção da identidade de Timor-Leste. Revista de letras e culturas lusófona. Instituto Camões. Lisboa, Portugal, 2001. HULL, Geoffrey Stephen. TIMOR-LESTE/Identidade, Língua e Política Educacional. Tradução para o Português Maria da Graça D’Orey. Dilli/Timor Leste: Palmigráfica, 2001. ______. Geoffrey Stephen. Manual de Língua Tétum para Timor -Leste. Austrália: University of Wollongong Printery, 2001. MATOSO, José. Sobre a Identidade de Timor Lorosa’e. In: Revista de Letras e Culturas lusófonas. Instituto Camões. Lisboa, Portugal, 2001. MWEWA, Muleka. Sobre a integração social entre desiguais. In: _______; FERNANDES, Gleiciani; GOMES, Patrícia. Sociedades desiguais: gênero, cidadania e identidades. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2009. 188


RUAK, Taur Matan. A importância da língua portuguesa na resistência contra a ocupação Indonésia. In: Revista de Letras e Culturas Lusófonas. Instituto Camões. Lisboa, Portugal, 2001. TIMOR-LESTE. História e cultura de Timor-Leste. Disponível em: http://vida1.planetavida.org/paises/Timor-Leste/Timor-Leste-o -pais/historia-e-cultura-de-Timor-Leste/. Acessado em: 18 de nov. 2012. ______. Política Nacional para a Cultura. Disponível em: http:// www.cultura.gov.tl/pt/documentacao/legislacao. Acessado em 17 de nov.2012.

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CAPÍTULO X

EDUCAR PARA O BEM VIVER?! - contribuições para episte(me)todologias decoloniais Mayane K. Baumgärtner Lilian Blanck de Oliveira

1 Palavras iniciais Os povos originários latino-americanos sofreram um grande impacto com os processos de colonização europeia. Sua visão de bem viver foi aos poucos subjugada frente ao paradigma da boa vida, calcada na concepção econômico-desenvolvimentista dos povos colonizadores. Enquanto o bem viver aponta possibilidades para relações equilibradas entre humano e a natureza, a partir de uma visão de respeito e interdependência, a boa vida está ligada ao projeto massificado de consumo capitalista, guiado pela busca do conforto, lucro e prazer imediato. Na atualidade, dadas às múltiplas formas de exploração, dominação e degradação da natureza e da própria dignidade humana, diferentes sujeitos, grupos e movimentos sociais lutam para revitalizar alternativas que façam frente ao modelo hegemônico de desenvolvimento. Neste intento, o princípio ancestral do bem viver desponta como uma saída possível, sendo inclusive implementado nas novas Constituições de alguns países latino-americanos, tais como a Bolívia e o Equador. O presente capítulo busca apresentar algumas percepções e práticas sociais decorrentes da aplicação do paradigma do bem viver em contraposição ao conceito de boa vida, destacando especialmente a experiência em desenvolvimento no Equador, que tem incluído os princípios do bem viver no campo educacional. Pautada no paradigma do bem viver, a educação assume a responsabilidade de promover contínuos processos de decoloniza191


ção, abrindo possibilidades históricas com o intuito de identificar caminhos e práticas para a construção de outras episte(me)todologias, que possam subsidiar outros programas e propostas para a educação escolarizada monocultural.

2 Boa vida: um conceito movido pelo capital Podemos identificar já na época dos sofistas, filósofos gregos do século IV a.C., a existência de uma concepção que procurava vivenciar os desejos humanos com maior intensidade possível, independente dos meios necessários para tal. Tais atitudes são semelhantes à mentalidade europeia que se desenvolveu a partir do Renascimento, quando as transformações socioeconômicas decorrentes da transição do feudalismo para o capitalismo32 levaram o homem a se conceber como centro do universo, separado e superior à natureza, dominando-a segundo suas necessidades e interesses. (VERHELST, 1992). Durante o período do Iluminismo, as nações europeias descobriam o novo mundo, que rapidamente foi transformado em colônias, do qual extraíam riquezas e matérias-primas, ao mesmo tempo em que impunham sua cultura aos povos submetidos à dependência econômica, política, jurídica e religiosa. Em um primeiro momento, a imposição cultural ocorreu utilizando o poder militar e religioso. Atualmente, como a cultura ocidental já se encontra enraizada nos povos colonizados, a colonização se faz “pelo capital, pela ideologia do desenvolvimento, pelo consumo e pela competição”. (SUESS, 2010a). Na lógica capitalista, difundida mundialmente pelo fenômeno da globalização, o homem moderno vive para satisfazer as 32 Segundo Bobbio (2000), o capitalismo possui duas acepções: a primeira é restrita e advém de um agir econômico, um meio de produção e um subsistema econômico; já a segunda é a extensa e vê o capitalismo como atinente à sociedade, que interfere diretamente na sua formação social e histórica. Esta última é considerada mais pertinente, pois não há como o modelo econômico não alterar a sociedade em sua essência histórica, cultural e social. Portanto, o capitalismo é um modelo socioeconômico que visa o ganho de capital, a proteção da propriedade privada e da propriedade intelectual (os saberes), a liberdade de contrato e o livre comércio.

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suas vontades, e para isso precisa de dinheiro, motivo que o leva a trabalhar. Quanto mais trabalha, mais sente necessidade em adquirir bens materiais e de consumo para uma vida cômoda e confortável, levando-o a acreditar que pode acumular sempre mais. No entanto, ele investe seu tempo e energia no trabalho sem poder usufruir o que adquire e sem ter tempo para pensar e questionar sobre o modelo de vida que lhe foi imposto. Diante da exploração dos recursos naturais e da quantidade de resíduos e poluentes que esta forma de vida produz para manter-se, Oliveira (2012, p. 14) lembra que, [...] mais cedo ou mais tarde o apagão dos recursos naturais obrigará a nossa espécie a viver pobremente. Podemos então nos antecipar a ele e aprender a diminuir voluntária e plenamente nosso consumo [...]. Não se trata de voltar a formas de consumo de antigamente, mas sim de iniciar desde agora a redução geral da produção e assim nos prepararmos para um modo de vida muito mais simples.

A partir dessa concepção pode-se considerar que “o capitalismo não tem patologias. Ele é a patologia”. (SUESS, 2010a). Nesta ideologia se verifica elementos de uma boa vida almejados por muitos, mas vivenciados por poucos, haja vista a desigualdade de acesso aos bens necessários para subsistência, a expropriação do trabalho assalariado, a concentração das riquezas em pequenos grupos, a educação colonizante oferecida às classes subalternas, a degradação ambiental e seus impactos no cotidiano da população. Para tanto, faz-se necessário instaurar processos de decolonização em diferentes tempo/espaços/lugares. Decolonizar, de acordo com Walsh (2009a), trata-se da luta por rompimento de processos colonizadores mantidos na atualidade via sistema capitalista. Para ela, não é possível des-colonizar, pois não se consegue desfazer o processo colonial, uma vez que não há como fingir que a colonização não existiu e apagar tudo que ela impôs. O que se busca é uma luta constante, uma construção de alternativas, a fim de traçar um rumo novo para os povos dominados e empobrecidos. Mas como romper com a lógica da boa vida? 193


De acordo com Suess (2010b), se faz necessária uma (re) educação para romper com a lógica alienante, onde a sociedade está inserida. É importante que as pessoas aprendam a se desapegar das coisas que as prende na cadeia de consumo, pois esse não é o caminho da felicidade, e tampouco trará aos povos uma vida com dignidade. Desapegar pode significar desprender-se de privilégios e soltar ao vento desejos, saberes e objetos que criam dependências. O desapego é primordial para a construção de uma vida livre e integral. O desapego como ascesis, como exercício de libertar-se do desnecessário para que todos possam desfrutar do necessário [...] O desapego como exercício ascético tem uma função social que desestabiliza o sistema. [...] Desprendimento é ruptura. Isto quer dizer, retomar a vida das mãos daqueles que nos educaram para morrer. (SUESS, 2010b, s/d). [tradução nossa]

É também necessário decolonizar a política e suas instituições, desmercantilizar os saberes e religiosidades, desprivatizar as áreas da economia, saúde, educação e segurança (SUESS, 2010a). É preciso romper com a ideia de que o desenvolvimento a qualquer custo é o melhor resultado que se pode atingir. Deve-se perceber a ideologia mais cara da modernidade capitalista: o progresso econômico como provedor das condições para liberdade individual (DÁVALOS, 2009). Na lógica da boa vida, uma nação é considerada desenvolvida ou em processo de crescimento se o Produto Interno Bruto (PIB) – indicador de análise da capacidade de acumular capital – estiver em elevação. Para Dávalos (2009, p. 01), [...] na realidade, o crescimento como dispositivo conceitual do desenvolvimento neoliberal, é um argumento vazio. Efetivamente, o crescimento econômico, strictu sensu, não existe. O que existe é a acumulação de capital, e capital não é uma coisa nem um conjunto de objetos, é uma relação social mediada pela exploração e a reificação. [tradução nossa]

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Segundo o autor (2009), há cinco aspectos socioeconômicos censurados pelo desenvolvimento econômico que devem ser rompidos para que seja possível a sobrevivência do ser humano na terra: A primeira dessas censuras se dá quando o discurso do crescimento econômico fragmenta e rompe a relação do ser humano com a natureza. Enquanto o homem atuar como dominador do meio ambiente, continuarão os desmatamentos, a poluição do solo, ar, mananciais e, consequentemente, o aquecimento global e as mudanças climáticas. A ética é considerada a segunda censura, pois nem o desenvolvimento movido pelo capital e nem o crescimento econômico são éticos. Se fossem éticos não haveria desigualdade social, nem exploração, fome ou miséria. O capitalismo move-se pela acumulação de capital, pelo interesse individual (propriedade privada) e não pela ajuda mútua. A terceira censura, geralmente vista como entrave pelo desenvolvimento econômico, diz respeito à história e a cultura dos diferentes povos. Se cada grupo cultural tem seus costumes, gostos, vontades, valores, saberes e conhecimentos como expandir mercados e difundir hábitos de consumo para populações onde o acúmulo financeiro não interessa? Conforme Shumacher apud Verhelst (1992, p. 55): O economista moderno está habituado a medir o “padrão de vida” de acordo com o consumo anual e, por isso, ele afirma constantemente que um homem que consome mais “vive melhor” do que aquele que consome menos. Um economista budista irá ver, nessa postulação, um pensamento superlativamente irracional: já que o consumo representa um meio para se chegar ao bem-estar humano, o objetivo a ser alcançado deveria ser a obtenção de um máximo de bem-estar através de um mínimo de consumo.

A quarta censura tem a ver com a economia, pois, em síntese, o regime econômico implantado na atualidade garante, a partir do controle da escassez, o domínio político. O próprio modelo econômico gera a escassez e a pobreza, pois elas são necessárias para manter o próprio sistema em funcionamento. 195


A quinta, e considerada a mais grave das censuras, é a colonização epistêmica. Nas palavras do próprio autor: “A colonização epistemológica produzida pelo discurso de crescimento econômico está neutralizando a capacidade que a humanidade teria em pensar em alternativas para o capitalismo” (DÁVALOS, 2008, p. 4) [tradução nossa]. A população em geral está tão ocupada com o mundo do trabalho, no intuito de satisfazer o que acreditam ser as suas vontades, que se conformou com o sistema e não consegue visualizar outras formas de viver. Assim, mantem-se a cadeia produtiva, com um grande contingente de mão de obra barata, e esta, por sua vez, aceita tal condição acreditando que poderá, um dia, ter poder aquisitivo para uma vida digna. Diante desta realidade, Catherine Walsh (2009a) propõe que se pense na construção de uma sociedade que contemple o bem viver, filosofia de vida dos povos andinos que também é compartilhada pelos afrodescendentes da diáspora para a América Latina e Caribe, em oposição ao desenvolvimento embasado no princípio de boa vida, que moldou o pensamento hegemônico europeu.

3 Bem viver: um paradigma ancestral O bem viver é um conceito andino que provém do termo Sumak Kawsay (em quéchua) e Suma Qamaña (em aymará), e que representa a busca pela satisfação das necessidades humanas a fim de alcançar a qualidade de vida e morte dignas, a convivência social e ecológica, a liberdade dos sujeitos assumirem e vivenciar suas identidades culturais (SUESS, 2010a). Esse conceito traduz uma busca por equilíbrio, uma comunicação entre a natureza e os seres humanos, uma complementaridade nas suas maneiras de conceber e construir a vida. A partir desse entendimento, é possível adentrar em quatro princípios que orientam o bem viver, traçados por Catherine Walsh (2009). O primeiro princípio é o da relacionalidade33, a ideia 33 A autora utiliza o termo “relacionalidad” que não possui uma tradução equivalente no idioma português.

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de que tudo está inter-relacionado, pois todos os seres fazem parte do mesmo contexto e se comunicam, complementam e se relacionam entre si. O segundo princípio é o da correspondência, onde os elementos que compõem o todo possuem um correspondente de forma harmoniosa. Essa relação harmônica não se restringe apenas à ação e reação e sim, a todos os demais tipos de relações, sejam elas simbólicas voltadas a rituais, comemorativas e/ou qualitativas. O terceiro princípio é o da complementaridade, pois nenhuma ação, ente ou acontecimento existe isoladamente, sem que haja em cada ato, coisa ou fato um correspondente específico. O último princípio é a reciprocidade, o ayni, que nas palavras da autora “é a expressão pragmática da correspondência e da complementaridade” (WALSH, 2009a, p. 219) [tradução nossa]. Além de existir um equivalente para todas as coisas e estas integrarem o todo, elas mais do que se relacionam, se inter-relacionam. Há aqui uma quebra da racionalidade eurocêntrica. Na compreensão andina, há uma inter-relação livre e voluntária do ser humano para com ele próprio, do ser humano como ser natural. O homem é mais do que um ser integrante da natureza, ele é a própria natureza. O bem viver se baseia em uma visão ampliada de vida, na totalidade espaço-temporal da existência, em valores não apenas materiais, mas, fundamentalmente, espirituais - formas de vivências com respeito, dignidade e harmonia com a natureza. Por outro lado, a concepção eurocêntrica de boa vida, se fundamenta na vida urbana34 sedentarizada, no racionalismo e na relação objetivada com a natureza. Esta perspectiva moderno-ocidental de boa vida aproximase da filosofia e prática econômica, política, social e cultural imposta como universal pelo capitalismo, que prioriza princípios embasados na oposição e separação hierárquica, presentes na organização e sustentação da colonialidade do poder. Essas atitudes são embasadas pela mentalidade europeia e sua concepção linear de história, e pela dominação sobre a natureza e sobre outros seres humanos. (VERHELST, 1992). 34 Segundo Medina (2001), na perspectiva da boa vida, a cidade tornou-se o espaço ideal para os civilizados, para o progresso.

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Contrapondo-se à concepção da boa vida, o conceito do bem viver percebe o ser humano harmonizado com a natureza, como parte integrante e inseparável do meio (MINA, 2002). Mas, é possível o bem viver? Analisando pesquisas históricas e antropológicas, verifica-se que as sociedades tradicionais demonstraram ser totalmente possível viver em interação com a natureza e possuir tecnologias sofisticadas, tais como as dos Incas, por exemplo. Eles possuíam uma sociedade organizada onde havia o respeito ao ambiente e às pessoas. Narrativas feitas pelo inca Felipe Guaman Poma de Ayala, por volta do ano 1600, transcritas pela Casa de La Cultura del Peru relatam “como os índios eram misericordiosos, por isso, comiam em praça pública, porque se chegassem peregrinos pobres, estrangeiros, órfãos, enfermos e os que não tinham o que comer, todos comiam bem e as sobras eram levadas para os pobres”. (AYALA, 1969, p. 34) [tradução nossa]. Por isso, as novas Constituições nacionais da Venezuela (2000), Equador (2008), Bolívia (2009) e Colômbia (1991 e 2005) buscam revitalizar os conhecimentos ancestrais em seus documentos e práticas, com o intuito de valorizar cada sujeito na sociedade, pela sua sabedoria, cultura e religião - formas de agregar o valor ao todo.

4 Uma educação para o bem-viver!? O exemplo do Equador Um exemplo da mudança de perspectiva em curso acontece no Equador. Este país está propondo um modelo de vida e governo que insere a visão de bem viver em todos os âmbitos da organização social, política e econômica. Apesar dos conflitos internos que o país vem passando, está se propondo um modelo de vida, que pretende superar o passado desenvolvimentista35, sua colonização ou seu modelo pragmatizado de ser “branco, rico, moderno-ocidental” (WALSH, 2009a, p. 225-226). 35 Para Walsh (2009a), o desenvolvimentismo assegura uma dependência e inferioridade político-econômica dos países situados no denominado “terceiro mundo” voltado para os interesses e indicadores do norte global. Trata-se de uma ilusão do progresso que gera uma ânsia pelo consumo, riqueza, acumulação, que são apresentados como valores da civilização.

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Assim, o Equador propõe um resgate de sua própria cultura através do bem viver. Para tanto, o Art. 27 de sua Constituição estabelece em que perspectiva se centrará os processos educativos. Estes deverão ser direcionados para o ser, garantindo seu desenvolvimento holístico e ensinando, sobretudo, o respeito aos direitos humanos, ao meio ambiente e a democracia. A Constituição equatoriana também apresenta uma seção voltada à Ciência, Tecnologia, Inovação e Saberes Ancestrais (Art. 385 e seguintes). Essa seção visa demonstrar que é possível uma educação e um desenvolvimento tecnológico em harmonia com os conhecimentos passados de geração em geração. Desta forma, propõe-se um desenvolvimento científico e tecnológico que respeite o meio ambiente, a natureza, a vida e as culturas dos povos. A produção do conhecimento deve potencializar os saberes ancestrais e, assim contribuir para a implantação do bem viver. Assim, o Estado investirá recursos para transformar o desenvolvimento tecnológico, a formação científica e a educação, valorizando os conhecimentos ancestrais pertencentes aos distintivos povos que estruturam a diversa sociedade equatoriana. Esta experiência demonstra que o bem viver não se limita às questões econômicas, políticas e ambientais, na medida em que trata de questões epistêmicas, no intuito de promover a relação integral entre o ser e o saber para novos sistemas de vida (WALSH, 2009a, p. 230). Cria-se, assim, uma proposta palpável de religação entre o homem e a mãe terra. Passa-se para as futuras gerações um conhecimento e uma prática de vida que rompe radicalmente com o modelo filosófico-político moderno-neoliberal. Busca-se uma complementaridade entre a ciência e os saberes. Assim, para implantar uma educação para o bem viver é importante desenvolver tecnologias sustentáveis que respeitem a natureza, e utilizar a ciência como forma de reunir saberes distintos que possam apresentar soluções aos desafios do cotidiano. A mudança não é fácil, há necessidade de uma decolonização epistêmica, ou seja, de ruptura com conhecimentos e vivências vinculadas a processos de colonização, na busca da construção de outras episte(me)todologias, que tragam em seu bojo princípios e saberes 199


cultivados milenarmente pelos povos originários e que, no decorrer dos tempos foram sendo inviabilizados, entre eles o bem viver. Trata-se, portanto, de promover uma educação e uma práxis pedagógica de perspectiva decolonial, voltada ao questionamento, transformação e intervenção na realidade, que permita a construção de outros marcos epistemológicos que problematizem e desafiem a hegemonia de um pensamento único, totalitário e universal, revitalizando e revalorizando saberes ancestrais36 (WALSH, 2009b). Uma educação para o bem viver é elemento estratégico para questionamento dos processos de subalternização, inferiorização, exclusão e desigualdade, pois, [...] viabiliza maneiras diferentes de ser, viver e saber e busca o desenvolvimento e criação de compreensões e condições que não só articulam e fazem dialogar as diferenças num marco de legitimidade, dignidade, igualdade, equidade e respeito, mas, que – ao mesmo tempo, alentam a criação de modos ‘outros’ – de pensar, ser, estar, aprender, ensinar, sonhar e viver que cruzam fronteiras (WALSH, 2009b, p. 25).

Neste sentido, práticas educativas em consonância com o princípio do bem viver, pautam-se no questionamento e na análise crítica, na ação social transformadora, na intervenção dos campos de poder, saber e ser, desmantelando práticas sociais que mantém a colonialidade e que difundem o paradigma da boa vida como única possibilidade existencial.

5 Considerações finais A busca de igualdade e dignidade para todos os seres humanos em suas necessidades e práticas sociais (pró)voca na atualidade uma série de discursos voltados à construção de conceitos alternativos para o desenvolvimento do ser humano, governos, territórios, organizações e aparatos burocráticos. Na América Latina, 36 Considerar os saberes ancestrais como conhecimentos, ciências e tecnologias, cujo ensino é válido e importante para o conjunto da população, desde a escola até a universidade, é outro avanço da nova Constituição equatoriana.

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estes discursos ampliaram-se não somente em nível discursivo, mas também ganharam visibilidade política, ao passo que foi ratificada em algumas Constituições de países latino-americanos (KRETZMANN, 2007). Tais mudanças são inspiradas pela emergência de movimentos sociais comprometidos em denunciar desigualdades e exclusões vivenciadas pelas minorias, que reivindicam o direito ao reconhecimento social e cultural e a implantação de pressupostos e políticas que contemplem e atendam as diferenças que as organizam e as constituem. Para que se possa pensar em outro desenvolvimento para a América Latina, que contemple e integre a diversidade cultural dos povos e os imperativos dos direitos humanos, é necessária a adoção de posturas e práticas de decolonização. Neste sentido, Walsh (2009a) registra a necessidade de se formar uma visão ampliada de vida cuja condição seja o bem viver - visão essa que orientou as cosmovisões, filosofias e práticas de vida dos povos originários da América Latina - voltada para a melhoria da qualidade de vida e do respeito às diferenças. Nesse processo de formar outras visões, calcadas no paradigma do bem viver, é que a educação assume a responsabilidade de promover contínuos processos de decolonização - um novo pensar/fazer/ser na construção de identidades e desenvolvimento dos sujeitos. Estudos, pesquisas e interações com saberes e conhecimentos dos povos originários do Brasil e seus descendentes são possibilidades históricas para identificar caminhos e práticas para a construção de outras episte (me)todologias, que venham a subsidiar outros programas e propostas para a educação nacional, diferentes das que estão em vigor.

Referências BOBBIO, Noberto. Dicionário de política. 5 ed. Brasília: Editora UnB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000.

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BOLÍVIA. Constitución política del estado plurinacional de Bolivia. 2009. Disponível em <http://www.gacetaoficialdebolivia.gob.bo/ normas/view/36208>. Acesso em: 18 jul. 2013. COLÔMBIA. Constitución política de Colômbia. Proclamada em 1991 com alterações de 2005. Disponível em http://www.constitucioncolombia.com/docs/Constitucion-Politica-Colombia.pdf. Acesso em: 18 de jul. 2013. DÁVALOS, Pablo. El “Sumak Kawsay” (“Buen vivir”) y lãs censuras del desarrollo. Publicado em 08 mar. 2009. Disponível em http:// www.vientosur.info/spip.php?page=imprimir_articulo&id_article=718. Acesso em 10.09.2013. ECUADOR. Constitución de la república del Ecuador. 2008. Disponível em http://www.asambleanacional.gov.ec/documentos/constitucion_de_bolsillo.pdf. Acesso em: 18 jul. 2013. KRETZMANN, Carolina Giordani. Multiculturalismo e diversidade cultural: comunidades tradicionais e a proteção do patrimônio comum da humanidade. 2007. 150 f. Dissertação (Mestrado em Direito). Programa de Pós-Graduação em Direito. Universidade de Caxias do Sul, UCS. Caxias do Sul, 2007. MEDINA, Javier. La comprensión indígena de la buena vida. La Paz: GTZ/Federación de Asociaciones Municipales de Bolivia, 2001. MINA, William. El pensamiento afro: más allá de Oriente y Occidente. Cali: Artes Gráficas, 2002. OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Uma sociedade de bem-viver. Mundo jovem: um jornal de ideias. Ano 50, n 425. Abril, 2012. Porto Alegre, p. 14 POMA DE AYALA, Felipe Guaman. Nueva cronica y buen gobierno. Lima: Casa de La Cultura del Peru, 1969. SUESS, Paulo. O ‘buen vivir’ supera as dicotomias cartesianas, entrelaça o tempo linear com o tempo circular e a objetividade da 202


produção com a subjetividade da mãe terra. 2 nov. 2010a. Disponível em: http://complexidade.ning.com/profiles/blogs/elementos -para-a-busca-do-bem. Acesso em: 15 jan. 2013. ______. El “buen vivir” como sabiduría del reino. Publicado em 26 agos. 2010b. Disponível em: http://www.diegodemedellin.cl/ teologia/537-el-buen-vivir-como-sabiduria-del-reino.html. Acesso em: 15 jan. 2013. VENEZUELA. Constituición de La República Bolivariana de Venezuela. 2000. Disponível em <http://www.tsj.gov.ve/legislacion/ constitucion1999.htm>. Acesso em: 17 de jul. de 2013. VERHELST, Thierry. O direito à diferença. sul - norte: Identidades Culturais e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Vozes, 1992. WALSH, Catherine. Interculturalidad, estado, sociedad: Luchas (de) coloniales de nuestra época. Quito: Universidad Andina Simon Bolívar/ Ediciones Abya-Yala, 2009a. ______. Interculturalidade, crítica e pedagógica decolonial: insurgir, re-existir e re-viver. In: CANDAU, Vera Maria (org.) Educação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009b.

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SOBRE OS AUTORES Adecir Pozzer Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Formação de Professores para o Ensino Religioso pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Graduado em Ciências da Religião - Licenciatura em Ensino Religioso pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Membro do grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento (GPEAD/FURB). Coordenador do Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER 2012-2014). Atua como docente no PARFOR/FURB, na Rede Pública de Ensino do Estado de Santa Catarina e na Associação Franciscana Senhor Bom Jesus. Tem experiência na área da educação, com ênfase em diversidade cultural religiosa, ensino religioso, formação de formadores e direitos humanos. Álvaro B. Márquez – Fernández Doutor em Filosofia pela Universidade de Paris I Pantheon-Sorbonne (França). Diplomado em Filosofia para meninos e meninas, Principado de Asturias (Espanha). Docente no Doutorado da Faculdade de Humanidades e Educação, no Doutorado da Faculdade de Ciências Econômicas e Sociais, e investigador do Centro de Estudos Sociológicos e Antropológicos (CESA) da Universidade de Zulia (LUZ, Maracaibo/Venezuela). Investigador do Centro de Filosofia para Meninos e Meninas da Faculdade de Filosofia e Teologia e coordenador do Mestrado em Filosofia da Universidade Católica Cecilio Acosta (UNICA, Maracaibo/Venezuela). Diretor de Utopía y Praxis Latinoamericana - Revista Internacional de Filosofia Ibero-americana e Teoria Social. Co-autor de vários livros e inúmeros artigos sobre ética, discurso e filosofia intercultural; epistemologia das ciências sociais, filosofia para meninos e meninas, direitos humanos, filosofia contra-hegemônica e teoria política latino-americana. 205


Christian Muleka Mwewa Doutor em Ciências da Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com estágio doutoral na Universidade de Paris I Panthéon-Sorbonne. Mestre em Formação de Profissionais da Formação (Máster Erasmus Mundus, MUNDUSFOR) pela Universidade de Granada/Espanha, Universitat Rovira i Virgili/Espanha e Universidade do Porto/Portugal. Mestre em Ciências da Educação e Graduado em Letras português pela UFSC. Professor no programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Líder de Grupo de pesquisas Educação, Cultura e sociedade (EDUCS/ UNISUL/CNPq); Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (UFSC/UNISUL/CNPq) e Membro do Grupo de Pesquisa Política e Gestão da Educação (UNISUL/CNPq). Editor da Revista Poiésis da UNISUL. Atua principalmente nos seguintes temas: educação (formação), cultura, literatura, manifestação cultural, teoria crítica e estudos culturais. Elcio Cecchetti Mestre e doutorando em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Ciências da Religião-Licenciatura em Ensino Religioso e especialista em Fundamentos e Metodologia do Ensino Religioso pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Assistente Técnico-Pedagógico da Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina (SED/SC). Membro do Grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento (GPEAD/FURB) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação e Instituições Escolares de Santa Catarina (GEPHIESC/UFSC). Tem experiência na área de educação, com ênfase em formação continuada de educadores, diversidade cultural, ensino religioso, interculturalidade e direitos humanos. Georgia Carneiro da Fontoura Possui graduação em Direito pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Membro do Grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento (GPEAD/FURB). Atua principalmente nos seguintes temas: educação em direitos humanos, diversidade cultural, diversidade religiosa e cartografias. 206


Gisele Canarin Mestranda em Educação pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). Especialista em PROEJA pelo Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC). Graduada em Sistemas de informação pela Escola de Superior de Criciúma (ESUCRI). Bolsista no Programa de Qualificação Docente e Ensino da Língua Portuguesa em Timor-Leste (PQLP/CAPES). Jairo Eduardo Soto Molina Doutorando em Humanidades pela Universidade de Zulia (LUZ, Maracaibo/Venezuela). Mestre em Educação - administração educativa pela Universidade de Antioquia. Pós-graduado pela Universidade de Califórnia. Licenciado em Filologia e Idiomas pela Universidade do Atlântico. Bacharel pelo Colégio Nacional José Eusebio Caro em Barranquilla. Diretor e coordenador do Grupo de Pesquisa Language Circle pela Universidade do Atlântico (UA), onde atua como docente. Atuou como professor de inglês no Instituto Distrital Técnico Meira Delmar. Jasom de Oliveira Mestre em Teologia (área de concentração Educação e Religião), Especialista em Educação, Diversidade e Cultura Indígena e Bacharel em Teologia pela Escola Superior de Teologia. Docente no Curso de Ciências da Religião - Licenciatura em Ensino Religioso (PARFOR/FURB). Atualmente é assistente de projetos no Conselho de Missão entre Indígenas (COMIN) na região Leste Catarinense, entre os povos indígenas Xokleng e Guarani. José Marín Doutor em Antropologia pela Universidade da Sorbonne e diplomado pelo Instituto de Altos Estudos da América Latina em Paris. Pesquisador da problemática do desenvolvimento e ecologia humana. Diplomado pelo Instituto Universitário de Estudos do Desenvolvimento e da Academia Internacional do Meio Ambiente de Genebra. Foi professor da Universidade de Genebra e colaborador da rede Universitária Internacional de Genebra (RUIG). Atualmente é colaborador de diferentes instituições e publicações da Europa e da América Latina, e da UNESCO na África. 207


Lilian Blanck de Oliveira Doutora em Teologia pela Escola Superior de Teologi (área de concentração Educação e Religião). Licenciada em Pedagogia pela Fundação Educacional Regional Jaraguaense (UNERJ). Atualmente é professora titular do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional (PPGDR) da Universidade Regional de Blumenau (FURB). Líder do Grupo de Pesquisa: Ethos, Alteridade e Desenvolvimento (GPEAD). Tem experiência na área de sociedade, culturas, religiões e educação. Atua nos seguintes temas: diversidades histórico-culturais e direitos humanos; culturas, ciência e desenvolvimento; currículo e diferença; formação inicial e continuada de professores. Maria Conceição Coppete Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestra em Educação e Cultura pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Possui graduação em Pedagogia e Especialização em Fundamentos da Educação. Professora adjunta da Universidade do Estado de Santa Catarina (FAED/UDESC). Pesquisadora do grupo de pesquisa Observatório de Práticas Escolares (UDESC); vice-líder do grupo Educação e Cibercultura (UDESC); e membro da Rede de Pesquisa - Educação Intercultural e Movimentos Sociais (UFSC/CNPq). Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Ensino Fundamental (anos iniciais), formação de professores, prática pedagógica, educação intercultural, sensibilidade na docência, currículo e educação a distância. Mayane Karoline Baumgartner Graduada em Direito pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Membro do Grupo de Pesquisa Ethos, Alteridade e Desenvolvimento (GPEAD/FURB). Atua principalmente nos seguintes temas: Vale do Itajaí, Revista Blumenau em Cadernos, cultura, história e povos indígenas. 208


Natália de Oliveira de Lima Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Cursa bacharelado em Ciências Sociais e é estagiária no Departamento de Sociologia e Ciência Política (Coordenação de Estágios de Ciências Sociais) da mesma instituição. Membro do grupo de pesquisa Projetos Globais e o Estranho - Situações locais e o diverso (UFSC).

Raquel Maria Pimentel Oliveira dos Reis Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Especialização em Administração Pública Municipal no Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM). Graduada em Administração Pública pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e em Administração pelo Instituto Blumenauense de Ensino Superior (IBES).

Reinaldo Matias Fleuri Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Realizou estágios de pós-doutorado na Università degli Studi di Perugia (Itália), na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade Federal Fluminense (UFF). É Professor Visitante Nacional Sênior (CAPES) junto ao Instituto Federal Catarinense. Professor Titular da Universidade Federal de Santa Catarina, com vínculo de professor voluntário após aposentadoria em 2011. Coordena a rede internacional de pesquisas que se desenvolveu com base no Grupo de Pesquisa - Educação Intercultural e Movimentos Sociais (UFSC/CNPq). Tem desenvolvido, coordenado e orientado pesquisas, que resultaram em publicações e produções acadêmicas nas áreas de epistemologia, educação popular, interculturalidade, educação inclusiva e formação de educadores.

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Ricardo Teixeira Canarin Mestre em Educação e graduado em Letras português/inglês pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL). É especialista em Metodologia e Prática Interdisciplinar do Ensino (FUCAP), em Educação Profissional Integrada à Educação na Modalidade PROEJA (IFSC) e em Língua Brasileira de Sinais/LIBRAS (UNICID). Membro do grupo de pesquisa do Programa Marco Inter-universitário para uma Política de Equidade e Coesão Social na Educação Superior, financiado pela União Europeia. É Articulador Pedagógico de Língua Portuguesa no âmbito do Programa de Qualificação de Docente e Ensino de Língua Portuguesa no Timor Leste (PQLP/CAPES). Tania Stoltz Doutora em Educação (Psicologia da Educação) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Pós-doutora pelos Archives Jean Piaget (Genebra/Suíça) e pela Alanus Hochschule (Alemanha). Mestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Graduada em Pedagogia pela Universidade Tuiuti do Paraná e em Educação Artística pela Faculdade de Educação Musical do Paraná. Professora Associada II na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Tem experiência na área da Educação, com ênfase em Psicologia da Educação, atuando como orientadora de dissertações e teses, cujo foco concentra-se nos desdobramentos das perspectivas teóricas de Piaget, Rudolf Steiner e Vygotsky.

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