INSEGURANÇA SOCIAL E SURGIMENTO DA PREOCUPAÇÃO COM A SEGURANÇA SOCIAL INSECURITY AND THE EMERGENCE OF CONCERNS ABOUT SECURITY Loïc Wacquant* Universidade de Berkeley
A análise comparada da evolução da pena nos países avançados durante a década passada demonstra uma ligação estreita entre o sucesso do neoliberalismo como projeto ideológico e prática governamental que ordena a submissão ao “livre mercado” e a celebração da “responsabilidade individual” em todos os domínios, por um lado, e o desenvolvimento de políticas de segurança ativas e punitivas circunscritas à delinquência de rua e as categorias situadas às margens da nova ordem econômica e moral que ocorre sob o império conjunto do capital financeiro e do salário flexível, por outro.1 Essas políticas foram objeto de um consenso político sem precedente e de uma ampla aceitação pública que transcende as fronteiras de classe, em favor de uma bagunça midiática tenaz entre criminalidade, pobreza e imigração, assim como uma confusão constante entre insegurança e “sentimento de insegurança”. Essa confusão é criada para canalizar para a figura do delinquente de rua (de pele escura) a ansiedade difusa causada por uma série de transformações conexas: mudanças de salário, crise da família patriarcal e erosão das relações tradicionais de autoridade entre as categorias de idade e sexo, decomposição dos territórios tradicionais dos operários e intensificação da competição escolar como meio de acesso ao emprego. A severidade penal é, então, apresentada praticamente por todo lado e por todos como uma necessidade saudável, um reflexo indispensável de autodefesa do corpo social *
Professor de Sociologia na Universidade da Califórnia – Berkeley e pesquisador no Centro de Sociologia Européia em Paris. Seus trabalhos, publicados em várias línguas, abordam as questões da desigualdade urbana, a incorporação, o Estado penal, a dominação etnoracial e a teoria sociológica. Dentre seus livros recentes, temos The Mystery of Ministry: Pierre Bourdieu and Democratic Politics(2005), Parias urbains. Ghetto, banlieues, État(2006), e Punishing the Poor: The New Government of Social Insecurity(lançado em 2008). É co-fundador e director da revista interdisciplinary Etnography. 1 Esse artigo apresenta as grandes linhas de meu livro Punishing the Poor: The New Government of Social Insecurity(Durham e Londres; Duke University Press, 2008), apoiando-se no prefácio e no primeiro capítulo. Uma versão francesa desse livro ainda será publicada.
Tradução Translation
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ameaçado pela gangrena da criminalidade, qualquer que seja sua gravidade. A grande experiência norte-americana da “guerra contra o crime” se impôs como a referência incontornável dos governos do Primeiro Mundo, a fonte teórica e a inspiração prática do endurecimento generalizado da pena que se traduziu em todos os países avançados por uma hipertrofia espetacular da população carcerária.2 Constrangido entre a alternativa oblíqua entre catastrofismo e angelismo, quem quer que ouse questionar as “evidências” do pensamento securitário único que reina hoje sem divisão se vê certamente (des)qualificado como um doce sonhador ou um ideólogo culpavelmente ignorante quanto às rudes realidades da vida urbana contemporânea.
A GENERALIZAÇÃO DA INSEGURANÇA SOCIAL E SEUS EFEITOS A expansão e glorificação repentinas do Estado penal nos Estados Unidos a partir da metade dos anos de 1970, e depois em toda a Europa segundo os mesmos esquemas, vinte anos mais tarde, não correspondem a nenhuma ruptura na evolução da criminalidade: os crimes não mudaram bruscamente de escala ou de padrão durante esse período seja em um ou no outro lado do Atlântico. Esse fenômeno também não traduz um aumento da eficiência do aparelho repressivo que justificasse seu reforço, como querem fazer crer os responsáveis pelo mito acadêmico da “tolerância zero” que se espalhou por todo o planeta. Não foi tanto a criminalidade que mudou, mas o olhar que a sociedade passou a ter sobre algumas ilegalidades de visibilidade pública, ou seja, no final das contas, sobre as populações deserdadas e desamparadas (por seu status ou origem) que começaram a recair a suspeita de crimes, desde o local que essas pessoas ocupam nas cidades, até os usos e tradições delas passaram a ser explorados nos âmbitos político e midiático. Essas categorias-detrito – jovens desempregados e sem domicílio fixo, nômades e dependentes químicos à deriva, imigrados pós-coloniais sem passaporte e documentos nem relações fixas – subitamente se tornaram proeminentes no espaço público, sua presença indesejável e suas ações intoleráveis, porque eles são a encarnação viva e ameaçadora da insegurança social generalizada produzida pela erosão do salário estável e homogêneo (promovido pelo paradigma de emprego na época das décadas de expansão fordista entre 1945 e 1975) e pela decomposição das solidariedades de classe e de cultura que a estabilidade econômica sustentava em um quadro nacional claramente circunscrito.3 Com o esgarçamento 2
Loïc Wacquant, Les Prisons de la misère, Raisons d’Agir Editions, Paris, 1999. Robert Castel, Les Métamorphoses de la question sociale. Une chronique du salariat, Fayard, Paris, 1995 e Loïc Wacquant, Parias urbains. Ghetto, banlieues, État, La Découverte, Paris, 2007. 3
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das fronteiras da nação pela hipermobilidade do capital, a ampliação dos fluxos migratórios e a integração europeia, a normalização do trabalho informal alimenta no conjunto as sociedades do continente com uma poderosa corrente de ansiedade. Essa corrente introduz o medo do futuro, a raiva pela queda e crise sociais, e a angústia por não poder transmitir seu status aos seus filhos em uma competição sempre mais intensa e incerta para a obtenção de títulos e postos de trabalho. É essa insegurança social e mental, difusa e multiforme, que atinge (objetivamente) as famílias das classes populares desprovidas de capital cultural requerido para alcançar os setores protegidos do mercado de trabalho, mas que também enche de cólera (subjetivamente) amplos setores das classes médias, que o novo discurso marcial dos políticos e das mídias sobre a delinquência captou para fixá-lo tão somente sobre a questão da insegurança física ou criminal. De fato, o endurecimento generalizado das políticas policialescas, judiciárias e penitenciárias que se observa na maior parte dos países do Primeiro Mundo há uns vinte anos decorre de uma tripla transformação do Estado, que contribui simultaneamente para acelerar e ocultar, aliando a amputação de seu braço econômico, a retração de sua proteção social e o aumento considerável de sua atuação penal. Essa transformação é a resposta burocrática dada pelas elites políticas para as mutações do emprego (terceirização e polarização dos postos de trabalho, flexibilização e intensificação do trabalho, individualização dos contratos de emprego, descontinuidade e dispersão dos trajetos profissionais) e a seus efeitos destruidores nos níveis inferiores da estrutura social e espacial. Essas mutações são o produto da mudança na relação de forças entre as classes e os grupos que lutam a todo momento pelo controle do mundo do emprego. E, nessa luta, são os grandes empregadores transnacionais e as frações “modernizadoras” da burguesia cultura e da alta nobreza do Estado, aliados sob a bandeira do neoliberalismo, que tomaram a ponta e realizaram uma vasta campanha de reconstrução do poder público de acordo com seus interesses materiais e simbólicos.4 Mercantilização dos bens públicos e aumento do trabalho precário e sub-remunerado, tendo como pano de fundo a miséria dos trabalhadores norte-americanos e o desemprego em massa contínuo na Europa. Criminalização das proteções sociais que conduz à substituição do direito coletivo ao seguro contra o desemprego e a pobreza pela obrigação individual de atividade (workfare nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, emprego ALE na Bélgica, PARE e RMA na França, reforma Hartz na Alemanha, etc.) com o intuito de impor o asssalariado 4
Para uma análise das variações nacionais desse esquema comum, ler Marion Fourcade-Gourinchas e Sarah L. Babb, The Rebirth of the Liberal Creed: Paths to Neoliberalism in Four Countries, in American Journal of Sociology 108(novembro de 2002), p. 533-579.
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dessocializado como horizonte normal do trabalho para o novo proletariado urbano dos serviços.5 Reforço e extensão do aparelho punitivo centralizado nos bairros deserdados das cidades centrais e das periferias, onde se acumulam as desordens e a desesperança engendradas pelo duplo movimento de retração do Estado nos âmbitos econômico e social. Essas três tendências são autoimplicadas e autoimbrincadas em uma cadeia causal autorelacionada que reconstrói o perímetro e redefine as modalidades de ação do poder público. A um Estado keynesiano acoplado ao assalariado fordista vetor de solidariedade, que tinha como missão diminuir os ciclos recessivos da economia de mercado, proteger as populações mais vulneráveis e reduzir as desigualdades mais gritantes, sucede um Estado que se pode qualificar como neodarwinista, na medida em que ele erige a competição como fetiche e celebra a plenos pulmões a “responsabilidade individual” – cuja contrapartida é a irresponsabilidade coletiva e política. O Leviatã se contenta então no desenvolvimento de suas funções reais de manutenção da ordem, hipertrofiadas e deliberadamente abstratas de seu meio social, como também sobre sua missão simbólica de reafirmação dos valores comuns pela execração pública das categorias desviantes – em primeiro lugar, aquelas da “recaída” no desemprego e o “pedófilo” – consideradas tanto como encarnações vivas da incapacidade congênita de se conformar à ética ascética do trabalho assalariado e do autocontrole sexual. Esse novo darwinismo, que elogia e recompensa os “ganhadores” pelo seu vigor e inteligência e fustiga os “perdedores” da “luta pela existência” econômica, assinalando suas carências de caráter ou de comportamento, não encontra seu modelo na natureza, como seu predecessor do início do século XX.6 É o mercado que lhe fornece sua metáfora maior e o mecanismo de seleção que supostamente assegura a “sobrevivência do mais apto”, mas um mercado que é ele mesmo naturalizado, ou seja, descrito a partir de bases radicalmente desistoricizadas que, paradoxo, comanda uma forma de realização histórica concreta das abstrações puras e perfeitas da ciência econômica ortodoxa, elevada ao nível de teodiceia oficial da ordem social in statu nascendi. É assim que a “mão invisível” do mercado de trabalho desqualificado, reforçado pela transição do welfare para o workfare, encontra seu prolongamento ideológico e seu complemento institucional no “pingo de ferro” do Estado penal se realiza e se desenvolve de
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Jamie Peck, Workfare States, Guilford Press, New York, 2001 e Catherine Lévy, Vivre au minimum. Enquête dans l’Europe de la précarité, Editions La Dispute, Paris, 2003, capítulo 4. 6 Mike Hawkins, Social Darwinism in European and American Thought, 1860-1945: Nature as Model and Nature as Threat, Cambridge University Press, Cambridge, 1997.
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forma a estrangular as desordens geradas pela difusão da insegurança social e pela desestabilização correlativa das hierarquias estatutárias que formavam a armadura tradicional da sociedade nacional (tal como a divisão entre Brancos e Negros na América e entre nacional e imigrado colonial na Europa do Oeste). À regulação das classes populares que Pierre Bourdieu denomina de “a mão esquerda” do Estado7, aquela que protege e melhora as oportunidades de vida, representada pelo direito do trabalho, à educação, à saúde, à assistência e à moradia, é substituída – nos Estados Unidos – ou é acrescentada – na União Europeia – a regulação por sua “mão direita”, polícia, justiça e administração penintenciária, cada vez mais ativa e intrusiva nas zonas inferiores do espaço social e urbano. E, logicamente, a prisão volta à cena principal da sociedade, quando os mais eminentes especialistas da questão penal eram unânimes em prever sua inutilidade, na verdade seu desaparecimento, há apenas trinta anos. A utilidade reencontrada para o aparelho penal na era póskeynesiana do emprego da insegurança é tripla: (i) ela permite que as frações mais reativas da classe operária se curvem à disciplina do novo emprego do setor de serviços, na medida em que aumenta os custos da estratégia de fuga para a economia informal da rua; (ii) ela neutraliza e contrapõe os elementos mais questionadores, tornando-os claramente supérfluos pela recomposição da oferta de empregos; e (iii) ela reafirma a autoridade do Estado no quotidiano no domínio restrito a partir desse momento ocupado por ele. A canonização do “direito à segurança”, correlativa à depreciação do “direito ao trabalho” sob sua antiga forma (isto é, em tempo integral e com direitos plenos, com uma duração indeterminada e um salário viável, dando a possibilidade de se reproduzir socialmente e de se projetar no futuro), e o interesse e os meios estabelecidos para a manutenção da ordem foram criados para ocupar o espaço do déficit de legitimidade sentido pelos responsáveis pelas decisões políticas pelo próprio fato de que eles renunciaram às missões estabelecidas para o Estado em matéria econômica e social. Compreende-se melhor o motivo pelo qual, em toda a Europa, os partidos da esquerda do governo convertidos à visão neoliberal tenham se mostrado tão ávidos pela temática da segurança encarnada pela “tolerância zero” vinda da América durante a década passada, ou pelos seus derivados britânicos, como a “polícia de proximidade”. Isso porque, nesse caso específico, a adoção de políticas de desregulamentação econômica e de retração social significou uma traição política ao eleitorado popular que os levou ao poder e que
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Pierre Bourdieu et al, La Misère du monde, Seuil, Paris, 1993, pp. 219-228, e Contre-feux, Raisons d’agir, Paris, 1997, pp. 9-15.
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esperava justamente do Estado uma proteção reforçada contra os julgamentos e as carências do mercado. Assim, a viragem punitiva negociada pelo governo da “esquerda plural” controlada por Lionel Jospin na França no outono de 1997, como também pela de Anthony Blair na GrãBretanha, de Felipe Gonzalez na Espanha, de Massimo d’Alema na Itália e de Gerhard Schröder na Alemanha, por volta dos mesmos anos, depois que William Clinton se aliou sem problema à ordem do dia ultra-repressiva ditada pelo Partido Republicano do outro lado do Atlântico em 1994, não tem grande relação com a pretensa “explosão” da delinquência dos jovens ou com as “violências urbanas” que invadiram o debate público por volta do fim da década de 1990. Essa virada punitiva, ao contrário, está relacionada com a generalização do salário dessocializado e a instauração de um regime político que permitiu impô-lo. Regime que podemos denominar de “liberal-paternalista”, já que ele é liberal e permissivo na parte de cima, em relação às empresas e às classes privilegiadas, e paternalista e autoritário na parte de baixo, em relação àqueles que se foram capturados pela reestruturação do emprego e pelo refluxo das proteções sociais ou sua reconversão em instrumento de vigilância e disciplina.
QUANDO PRISÃO E ASSISTÊNCIA SOCIAL SE ENCONTRAM: A DUPLA REGULAÇÃO DOS POBRES O giro claramente punitivo realizado pelas políticas penais nas sociedades avançadas no final do século XX não decorre apenas e simplesmente do conjunto de duas obras que se completam: “crime e castigo”. Ele anuncia a instauração de um novo governo da insegurança social, “no sentido amplo de técnicas e procedimentos destinados a dirigir a conduta dos homens”8 e mulheres capturados pelas turbulências da desregulamentação econômica e pela reconversão da assistência social em trampolim rumo ao emprego precário, dispositivo no seio do qual a prisão assume um papel principal e que se traduz, para os grupos que habitam as regiões inferiores do espaço social, por uma tutela severa e minuciosa. Foram nos Estados que se inventou essa nova política da pobreza entre 1973 e 1996, no rastro da reação social, racial e política aos movimentos progressistas da década anterior, que será o caldeirão da revolução neoliberal.9 Em 1971, Frances Fox Piven e Richard Cloward publicaram seu livro clássico Regulating the Poor, no qual defendem que “os programas de assistência aos pobres foram
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Michel Foucault, “Du gouvernement des vivants”, in Résumé des cours, 1970-1982, Julliard, Paris, 1989, p. 123. 9 Michael C. Brown, Race, Money, and the American Welfare State, Cornell University Press, Ithaca, 1999, pp. 323-353.
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iniciados para fazer frente aos deslocamentos da organização do trabalho que provocaram desordens em massa, e depois perduraram (sob uma forma modificada) a fim de que fosse respeitada a disciplina do trabalho”.10 Trinta anos depois, essa dinâmica cíclica de expansão e retração da assistência social foi suplantada por uma nova divisão do trabalho de entiquetamento e dominação das populações desviantes e dependentes que liga os serviços sociais e a administração da justiça sob a égide de uma mesma filosofia behaviorista e punitiva. A ativação dos dispositivos disciplinares aplicados aos desempregados, indigentes, mães solteiras e outros “assistidos” para jogá-los nos setores periféricos do mercado de trabalho, por um lado, e o enorme desenvolvimento de uma fina ramificação policial e penal em rede reforçada nas zonas urbanas deserdadas, por outro, são os dois componentes de um mesmo dispositivo de gestão da pobreza que visam a uma recuperação autoritária do comportamento das populações indóceis à ordem econômica e simbólica que se colocou. E que pretende, na falta de outras medidas, assegurar um distanciamento cívico ou físico em relação àqueles que são considerados “incorrigíveis” ou inúteis. Na era do salário em decomposição e descontínuo, a regulação das famílias das classes populares não passa mais apenas pelo braço maternal e complacente do EstadoProvidência; ela se apóia também sobre aquele, viril e controlador, do Estado-Penitência. A “dramaturgia do trabalho” não se desenvolve apenas sobre a cena da repartição da assistência social e dos locais em que se busca emprego, como gostariam Piven e Cloward na edição revista em 1993 de sua análise clássica da regulação dos pobres.11 No início do novo século, ela se desenvolve também em torno dos cenários severos das delegacias de polícia, nas barras dos tribunais e na sombra das prisões. Esse acoplamento dinâmico entre a mão esquerda e a mão direita do Estado se opera de acordo com uma divisão dos papéis dentro da família entre os gêneros. À burocracia da assistência social reconvertida em trampolim para os círculos de miséria incumbe a missão de inculcar nas mulheres pobres (e indiretamente em suas crianças) o dever do trabalho pelo trabalho: 90% dos provenientes do “welfare” nos Estados Unidos são mulheres. Para o quarteto formado pela polícia, tribunais, prisão e o agente da condicional, a missão é a de endireitar seus irmãos, companheiros e filhos: 93% dos detentos americanos são homens(que são também 88% dos libertados em condicional e 77% que tiveram o direito ao sursis). De acordo com uma rica linha de trabalhos feministas sobre políticas públicas, gênero
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Frances Fox Piven e Richard A. Cloward, Regulating the Poor: The Functions of Public Welfare, Vintage Books, New York, 1971, nova edição ampliada, 1993, p. xviii. 11 Piven e Cloward, op.cit., pp. 381-387 e 395-397.
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e cidadania12, essa distribuição sugere que a invenção da dupla regulação dos pobres na América nas últimas décadas do século XX faz parte de uma (re)masculinização do Estado na era neoliberal, que é em parte uma reação oblíqua às mudanças sociais trazidas pelos movimentos feministas, com reverberações no interior da estrutura burocrática. Para além dessa divisão sexual e institucional da regulação dos pobres, os “clientes” dos setores assistencial e penitenciário do Estado são o objeto de uma mesma suspeita: eles são considerados moralmente frágeis, até que se prove o contrário. É por isso que suas condutas devem ser vigiadas e reguladas pela imposição de protocolos rígidos, cuja violação os expõe a um aumento da disciplina corretiva, e depois, se necessário, a sanções que podem resultar em um isolamento prolongado, uma espécie de morte social por falta moral – isolados da comunidade cívica dos portadores de direito para aqueles que recebem a assistência social, isolados da sociedade dos homens “livres” para os reincidentes. Assistência social e justiça criminal são, a partir desse momento, animados por uma mesma filosofia paternalista e punitiva que acentua a “responsabilidade individual” do “cliente”, tratado como pouco mais do que um sujeito (em oposição aos direitos e obrigações universais do cidadão13), e elas atingem os públicos de maneiras semelhantes. Em 2001, o número de famílias que recebiam a principal alocação instituída pela “reforma” da assistência aos desamparados de 1996 (Temporary Assistance to Needy Families” era de 2,1 milhões, correspondendo a cerca de 6 milhões de beneficiários. Nesse mesmo ano, o estoque da população carcerária atingiu 2,1 milhões de pessoas e os efetivos que estavam sob a responsabilidade da justiça(juntando-se os detidos e os condenados com sursis e liberados em condicional) se aproximava de 6,5 milhões. Além disso, os beneficiários da assistência social e os presos apresentam perfis sociais similares e estabelecem relações mútuas estreitas que os tornam as duas metades sexuais de uma mesma população.
UMA VIA EUROPEIA EM DIREÇÃO AO ESTADO PENAL? A erosão das bases econômicas e a gestação social do crescimento do Estado penal na América fornecem materiais indispensáveis para uma antropologia histórica da invenção em atos do neoliberalismo. A partir da metade dos anos de 1970, esse país é o motor teórico e prático da elaboração e disseminação planetária de um projeto político que visa a submeter o 12
Ver Ann Orloff, “Gender in the Welfare State”, in Annual Review of Sociology, 22(1996), pp. 51-78 e Julia Adams e Tasleem Padamsee, Signs and Regimes: Reading Feminist Research on Welfare States, in Social Politics 8, 1 Printemps 2001, pp. 1-23. 13 Dorothy Roberts, “Welfare and the Problem of Black Citizenship”, in Yale Law Journal, 105, 6, Abril de 1996, pp. 1563-1602.
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conjunto das atividades humanas à tutela do mercado. Longe de ser um desenvolvimento incidental ou um processo teratológico, a expansão hipertrofiada do setor penal do campo burocrático é um componente essencial de sua nova anatomia na idade do neo-darwinismo econômico. Percorrer o arquipélago carcerário norte-americano, é assim não apenas viajar nos “limites extremos da civilização europeia”, de acordo com as palavras de Tocqueville. É também descobrir os possíveis contornos, verdadeiramente prováveis, da futura paisagem da polícia, da justiça e da prisão nos países da Europa e da América do Sul que se engajaram no caminho da “liberalização” da economia e na reconstrução do Estado inflamado pelo líder americano. Sob esse ângulo, os Estados Unidos são uma espécie de alambique histórico que permite observar em tamanho grande, e antecipar por transposição estrutural, as consequências sociais, políticas e culturais do surgimento da pena neoliberal em uma sociedade submetida ao império conjunto da forma do mercado e do individualismo moralizante. Isso porque os Estados Unidos não se contentam em ser a caldeira e a locomotiva do projeto neoliberal no plano da economia e da assistência social; durante a década passada, eles se tornaram também os primeiros exportadores mundiais de “teorias”, slogans e medidas de segurança.14 Em seu panorama da evolução carcerária ao redor do mundo, Vivien Stern sublinha que “uma influência importante sobre a política penal na Grã-Bretanha e em outros países europeus foi a política seguida pelos Estados Unidos”, influência que ela atribui (i) “à mudança completa do consenso prevalecente no mundo desenvolvido durante o pós-guerra e expresso pelas convenções das Nações Unidas”, segundo o qual “a privação da liberdade deve ser utilizada de maneira restrita”, e (ii) ao descrédito que pesa hoje em todo lugar sobre o ideal de “reabilitação e reintegração social do criminoso”.15 Por imposição ou inspiração, o alinhamento ou a convergência das políticas penais nunca passam por uma simples cópia. Nos países da Europa com tradição estatal forte, católica ou social-democrata, a nova política da miséria não implica uma duplicação servil do patrão norte-americano, seja uma modificação clara e brutal do tratamento social em direção ao tratamento penal da marginalidade urbana, levando a um hiper-encarceramento. O enraizamento profundo do Estado social na estrutura burocrática como também nas estruturas
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Loïc Wacquant, “The Penalisation of Poverty and the Rise of Neoliberalism”, in European Journal of Criminal Policy and Research, número especial sobre Justiça penal e política social, 9 4, inverno de 2001, pp. 401-412; e Tim Newburn e Richard Sparks(dir.), Criminal Justice and Political Cultures: National and International Dimensions of Crime Control, Willan Publishing, Londres, 2004. 15 Vivien Stern, “Mass Incarceration: ‘A Sin Against the Future’?”, in European Journal of Criminal Policy and Research, 3, outubro de 1996, p. 14.
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mentais nacionais, a menor impregnação da ideologia individualista e utilitarista que está por trás da sacralização do mercado, e a falta de cesura etno-racial fizeram com que os países continentais não passassem rapidamente para o “todo penal”. Cada um deles deve construir seu próprio caminho em direção ao novo governo da insegurança social, de acordo com sua história nacional, suas configurações sociais e tradições políticas e burocráticas específicas. Para esquematizar, pode-se caracterizar provisoriamente a “via europeia” (com as variações francesa, italiana, holandesa, etc.) para o Estado penal que se desenha por acaso perante nossos olhos por um duplo acento conjunto da regulação social e penal das categorias marginais. Assim, durante a década passada, as autoridades francesas realizaram ao mesmo tempo mais na questão social e mais no aspecto penal, mesmo que o “social” seja marcado por um moralismo punitivo. Por um lado, multiplicaram-se os dispositivos de assistência (Contratos Emprego-Solidariedade, empregos para jovens, estágios de formação, programa TRACE, etc.), aumentaram-se os mínimos sociais, foi instituída a Cobertura Médica Universal e estendeu-se o acesso à Renda Mínima de Inserção. Por outro, desenvolveram-se as “células de vigilância” e foram fixadas as unidades de polícia antirevoltas nos “bairros sensíveis” da periferia urbana; substituiu-se o educador pelo juiz para fazer apelo à lei; foram aprovados decretos contra a mendicância (tornando tal atividade ilegal), multiplicadas as operações policiais “súbitas e inesperadas” nas cidades estigmatizadas e banalizado o uso da prisão preventiva, aumentadas as penas para os reincidentes e as possibilidades de prisão de menores, limitadas as liberações em condicional, aceleradas as deportações de estrangeiros submetidos a uma dupla pena, ameaçados os pais de jovens delinquentes com a supressão das alocações familiares, etc. Segunda diferença entre os Estados Unidos e os países do Velho Mundo: a penalização da miséria à europeia se realiza principalmente através da polícia e dos tribunais do que pela prisão. Ela obedece (por quanto tempo ainda?) a uma lógica dominante muito mais panóptica do que segregadora e retributiva. Correlacionado a isso, os serviços sociais têm um papel ativo nesse processo de criminalização, já que eles dispõem de meios administrativos e humanos para exercer uma supervisão mais próxima das populações ditas problemáticas. Mas, a ativação simultânea do tratamento social e penal das desordens urbanas não pode esconder o fato de que o primeiro serve com frequência de tapa-sexo burocrático para o segundo e ele está cada vez mais submetido na prática. Encorajando os serviços sociais, sanitários, escolares, etc., do Estado a colaborar estreitamente com a polícia e a
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justiça, nós os transformamos em extensão do aparelho penal de forma a instaurar um panoptismo social que, sob a justificativa de assegurar o bem-estar das populações deserdadas e esquecidas, acaba por submetê-las (e somente elas) a uma vigilância punitiva cada vez mais precisa e penetrante. Resta saber se essa via europeia em direção ao liberal-paternalismo é uma alternativa verdadeira à penalização à americana ou se ela constitui simplesmente uma etapa intermediária ou um desvio que levará a uma hiper-inflação carcerária perene (como experimentados por Espanha e Portugal). Se os bairros são saturados de viatura de polícia sem que sejam realmente melhoradas as chances de vida e de emprego nessas regiões, se forem multiplicadas as parcerias entre a justiça e os outros serviços do Estado, aumenta-se a probabilidade de se detectarem atividades delituosas e, portanto, as prisões e condenações penais. Quem pode dizer hoje, onde e quando vai parar a inflação dos efetivos das casas de detenção e das penitenciárias que se observa em quase todos os países da Europa? O caso dos Países Baixos, que passaram de uma estratégia dita humanista para uma filosofia penal de tipo empresarial, e do excelente ranking de último da classe para o líder em encarceramento dentre os quinze países da União Europeia, é tão instrutivo quanto inquietante.
A PENALIZAÇÃO DA PRECARIEDADE COMO PRODUÇÃO DA REALIDADE Da mesma forma que a emergência de um novo governo da insegurança social difundido pela revolução neoliberal não marca um retorno histórico em direção a uma configuração organizacional familiar, mas representa uma verdadeira novação política, também o desenvolvimento do Estado penal não pode ser compreendido sob a rubrica estreita da repressão. Na verdade, a tropa repressiva é um ingrediente maior da confusão discursiva que envolve e obscurece a profunda transformação dos meios, finalidades e justificações da autoridade pública na virada do século. Os militantes da esquerda que denunciam a “máquina de punir” dos dois lados do Atlântico – travando uma batalha quimérica contra a “prisãoindustrial complexa” nos Estados Unidos e vituperando contra um diabólico “programa de segurança” na França – confundem a embalagem com o conteúdo. Cegos pelas fogueiras midiáticas, eles não vêem que a luta contra a criminalidade é apenas um pretexto cômodo e uma plataforma propícia para reconstrução do perímetro da responsabilidade do Estado que se opera simultaneamente nos âmbitos econômico, social e penal. Para mostrar que a escalada do aparelho punitivo nas sociedades avançadas decorre menos de uma “guerra contra o crime” do que da reconstrução do Estado, é preciso e é
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suficiente romper com a visão da história inspirada pela teoria do complô, que atribui essa escalada a um plano deliberadamente construído pelas classes dominantes oniscientes e onipotentes, tomadores de decisão política, dirigentes de grandes empresas ou outros agentes que tiram proveito (algumas vezes pecuniário) do crescimento, da amplitude e da intensidade das penas e dos programas de supervisão pensados para os dejetos urbanos da desregulação. É preciso, com Pierre Bourdieu, recusar o “funcionalismo do pior” que transforma todo desenvolvimento histórico na obra de um estrategista perspicaz, ou o produto mecânico e quase milagroso de um aparelho abstrato de dominação e exploração que se “reproduziria” em todas as situações.16 Além disso, tal visão confunde a convergência objetiva de um conjunto de políticas públicas diversas que se entrelaçam, cada uma defendida por seus protagonistas e impostas por suas relações próprias, com as intenções subjetivas dos administradores do Estado. Ela também não considera a advertência feita por Foucault, quando nos convidou a abandonar “a hipótese repressiva” a fim de tratar o poder como uma força fecunda que recompõe a própria paisagem que ela percorre.17 O aparecimento do “liberal-paternalismo” deve ser concebido também, como o sugeria naquele momento Karl Marx, a partir da categoria geradora da produção: “O criminoso produz uma impressão ao mesmo tempo moral e trágica, e ele ‘presta um serviço’ ao apresentar os sentimentos morais e estéticos do público. Ele produz não apenas os manuais da lei penal e a própria lei penal, e, portanto, os legisladores, mas também a arte, a literatura, e o teatro dramático. O criminoso rompe com a monotonia e a segurança da vida burguesa. Assim, ele a protege da estagnação e suscita essa tensão constante, essa mobilidade de espírito sem o qual o próprio estímulo pela competição seria atenuado.”18 A transição da gestão social para o tratamento penal das desordens induzida pela fragmentação do salário é de fato eminentemente produtiva. Produtiva de novas categorias de percepção e de ação pública, em primeiro lugar. Como um eco distorcido à pretensa descoberta das “underclass areas” nos Estados Unidos, a Europa do final do século XX viu a invenção do “bairro sensível” na França, do “sink estate” no Reino Unido, do “Problemquartier” na Alemanha, do “krottenwijck” nos Países Baixos, e assim sucessivamente, como também o aparecimento de eufemismos burocráticos para designar as 16 “Um dos princípios da sociologia consiste em recusar esse funcionalismo negativo: os mecanismos sociais não são o produto de uma intenção maquiavélica. Eles são muito mais inteligentes que o mais inteligente dos dominadores”. Pierre Bourdieu, Questions de Sociologie, Minuit, Paris, 1980, p. 71. 17 Michel Foucault, Two Lectures(1976), in Power/Knowledge: Selected Interviews and Other Writings, 19721977, dir. Colin Gordon, Pantheon, New York, 1980, p. 97. 18 Karl Marx, Le Capital. Livre IV: Théories de la plus-value, Editions Sociales, Paris, 1976(orig. 1877), tomo 1, pp. 226.
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camadas miseráveis da cidade deixadas em estagnação econômica e social pelo Estado, e por essa razão, submetidas a um controle policial reforçado e a uma penetração mais cruel da instituição carcerária. O mesmo ocorre com a noção burocrática de “violências urbanas”, forjada na França pelo Ministério do Interior para amalgamar os atos desviantes de natureza e motivação as mais diversas (olhares agressivos e linguagem de baixo calão, grafite e depredações, roubo de veículos, rixas entre jovens, ameaças aos professores, tráfico de drogas ou receptação de objetos roubados, confrontos coletivos com a polícia, etc.) a fim de favorecer um enfrentamento punitivo dos problemas sociais que afligem os bairros populares, despolitizando-os.19 Novos tipos sociais são um outro produto derivado do novo regime de insegurança social: a irrupção dos “super-predadores” nos Estados Unidos, dos “feral youth” e outros “yobs” no Reino Unido, ou dos “selvagens” na França (variante social-paternalista do insulto racista em uma linguagem jurídica supondo uma falta de cultura das classes populares) justificou a reabertura ou a extensão dos centros de internação para jovens delinquentes, enquanto todos os estudos existentes deploram sua extrema nocividade. A tudo isso, acrescente-se a renovação de figuras clássicas tal como o do “reincidente profissional”, último avatar pseudo-científico do uomo delinquente de Cesare Lombroso em 1884, em que se pesquisam através de “retratos-falados” as características psicofisiológicas e antropométricas distintivas, alimentando o crescimento de uma verdadeira indústria burocrático-jurídica de “avaliação dos riscos” envolvidos pela soltura de categorias sensíveis de detentos. Isso porque a política de criminalização da precariedade é igualmente portadora de novos saberes sobre a cidade e seus distúrbios que difundem uma gama inédita de “experts” e, seguindo seus passos, de jornalistas, responsáveis administrativos, associações e eleitos preocupados com os “bairros sensíveis”. Esses saberes são colocados em forma e em órbita por instituições híbridas, situadas na interseção dos campos burocrático, universitário e midiático, que simulam a pesquisa para dar uma caução de aparência científica o aumento do aparato policial e penal nos bairros deserdados. É o caso, na França, do Instituto de Altos Estudos da Segurança Interna, organismo criado por Pierre Joxe em 1989, e depois desenvolvido por Charles Pasqua, “colocado sob a autoridade direta do Ministro do Interior”, a fim de promover um “pensamento razoável sobre a segurança interna”, que irriga a França
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Sobre a invenção e o desenvolvimento político-burocrático dessa noção, ver Laurent Bonelli, Renseignements Généraux et violences urbaines, in Actes de la recherche en sciences sociales, n. 136-137, março de 2001, pp. 95-103 e Laurent Mucchielli, L’expertise policière de la ‘violence urbaine’: sa construction intellectuelle et ses usages dans le débat public français, in Déviance et société, 24-4, dezembro de 2000, pp. 351-375.
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com as últimas novidades do “crime control” importadas da América do Norte.20 Ele é auxiliado nessa função pelo Instituto de criminologia de Paris, oficina da propaganda de segurança que apresenta essa característica curiosa de não contar com nenhum criminólogo dentre seus eminentes membros. A relação dos agentes e dispositivos que contribuem, cada um em seu nível, para o trabalho coletivo de construção material e simbólica do Estado penal a partir de agora encarregado de (re)tomar em suas mãos as populações jogadas nos vãos e nos fossos do espaço urbano, não estaria completa se não mencionássemos as empresas privadas de “aconselhamento em segurança” que passam pelos “adjuntos da segurança”, os sindicatos dos delegados de polícia, as editoras ávidas por publicar trabalhos sobre esse tema importante, os “cidadãos vigias” (esses sujeitos benevolentes que noticiam à polícia os problemas de seu bairro) e toda uma série de inovações jurídicas (apelo à lei, juiz de proximidade, composição penal, etc.) que, sob o pretexto de eficiência burocrática, instauram uma justiça diferenciada de acordo com a origem de classe e de local de residência. Em resumo, a penalização da precariedade criada da realidade, e uma realidade talhada sobre medida para legitimar a extensão das prerrogativas do Estado-penitência de acordo com o princípio da profecia que se auto-realiza. Uma ilustração: tratando a menor desordem de cor, manifestação de imprudência de classe ou rixa de cor de recreação não mais como desvios de disciplina a serem resolvidos pela autoridade pedagógica da escola, mas como infrações ao código penal sistematicamente denunciadas ao delegado do bairro ou ao substituto do promotor e reunidas em uma base de dados centralizada (graças a um programa de computador específico, o programa Signa), designando um “policial de referência” a cada escola (ao invés de um psicólogo ou um assistente social, que fazem muita falta nos bairros populares), as autoridades francesas transformaram as turbulências comuns da vida escolar em violações da lei e fabricaram uma epidemia de “violências escolares”, mesmo que as pesquisas realizadas com os alunos mostram que mais de 90% se sentem totalmente seguros no ambiente escolar. A caixa de ressonância das mídias ao ajudar nessa “explosão” de violência serve, por outro lado, para justificar a “parceria escola-polícia” que a produziu e o engajamento do corpo de professores
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Em julho de 2004, o IHESI foi substituído pelo INHES(Instituto nacional de altos estudos de segurança), uma estrutura siamesa apresentada pelo Ministro do Interior, Nicolas Sarkozy como “a escola de elite da segurança que a França precisa”. Seu comitê de direção não é formado por um único pesquisador. Seu trabalho é prolongado pelas atividades do Observatório sobre a delinquência, também criado por Sarkozy e dirigido por Alain Bauer, “criminólogo” autoproclamado e PDG da firma do “conselho em segurança urbana Alain Bauer Associates”.
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dos bairros periféricos em declínio à realização das missões de vigilância e de sanção da polícia. A encenação das “violências escolares” permite aos administradores do Estado esconder a desvalorização profissional e os dilemas burocráticos criados no seio do sistema educativo pela quase universalização do acesso ao ensino secundário em maior tempo e pela submissão do sistema escolar à lógica da competição e aos imperativos da “cultura do resultado” importada do mundo da empresa.21
*** Não é mais possível, para quem pretende penetrar no destino das frações precarizadas da classe operária em suas relações com o Estado, se contentar em estudar os programas de assistência social. É preciso prolongar e completar a sociologia das políticas tradicionais de “bem-estar” coletivo – ajuda às pessoas e às famílias desassistidas, mas também educação, habitação social, saúde pública, alocações familiares, redistribuição de renda, etc. – com as políticas penais. A partir de agora, o estudo do encarceramento deixa de ser relevante apenas para a área especializada dos criminólogos e penalistas para se tornar um capítulo essencial da sociologia do Estado e da estratificação social, e mais especificamente da (de)composição do proletariado urbano na era do neoliberalismo ascendente. De fato, a cristalização de um regime político liberal-paternalista, que pratica o “laisser-faire e laisserpasser” no alto da estrutura das classes, no nível dos mecanismos de produção das desigualdades, e o paternalismo punitivo na base, no nível de suas implicações sociais e espaciais, exige o abandono da definição tradicional do “social”, produto de um senso comum político e erudito ultrapassado pela realidade histórica. Ela demanda que se adote uma perspectiva alargada, para albergar em uma única análise o conjunto das ações pelas quais o Estado pretende modelar, classificar e controlar as populações (julgadas) desviantes, dependentes e perigosas situadas em seu território. Religar política social e política penal denota o que poderia aparecer como uma contradição doutrinária, ou pelo menos uma antinomia prática do neoliberalismo, entre a diminuição do poder público sobre a área econômica e seu aumento naquela da manutenção da ordem pública e moral. Se os mesmos que exigem um Estado mínimo a fim de “liberar” as “forças vivas” do mercado e submeter os mais despossuídos ao aguilhão da competição não hesitam em erigir um Estado máximo para assegurar a “segurança” no cotidiano, é que a 21
Eric Debardieux, Insécurité et clivages sociaux: l’exemple des violences scolaires, in Les Annales de la recherché urbaine 75(Junho de 1997), pp. 43-50 e Franck Poupeau, Contestations scolaires et ordre social. Les enseignants de Seine-Saint-Denis en greve, Syllepse, Paris, 2004.
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miséria do Estado social sobre o fundo da desregulação suscita e necessita a grandeza do Estado penal. E que essa relação causal e funcional entre os dois setores do campo burocrático é tanto mais forte quanto o Estado se desincumbe mais completamente de qualquer responsabilidade econômica e tolera ao mesmo tempo um alto nível de pobreza e uma forte diferença de escala das desigualdades. Tradução de José Emílio Medauar Ommati**
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Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da UFMG; Professor de Teoria do Estado, Teoria da Constituição, Hermenêutica e Argumentação Jurídica e Direito Administrativo I na PUC Minas Serro(MG); Coordenador do Curso de Direito da PUC Minas Serro(MG).
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