Adones Valença
1ª edição
editora
INTELIGÊNCIA • SENSÍVEL Recife, 2017
Aos meus pais, Solange Valença e Betto Oliveira pelo apoio primeiro. A Marcos de Oliveira e Ricardo de Oliveira, pela formação. A Paula Esterfânia, pela colaboração criativa. A Carlos Mélo e Valkiria Dias, pelas aprendizagens. As contribuições de Eudes Mota e Javier Pinzón. Ao amigo Jhon Eldon pelas reflexões. A Juliano Ferreira e toda equipe do programa Rumos, Instituto Itaú Cultural. Aos professores e alunos do curso de Artes Visuais da Universidade Federal de Sergipe, em especial aos professores Otávio Luiz Cabral e Welligton Cesário. Aos que me receberam nos lugares, Renata Martins (PE), André Vitor Brandão (PE), Rayra Martins (PB),Vanessa Lira (PB) Wilton Freire (RN), Cícero França (RN), Etelânio Figueiredo(RN), Emanuel (RN) e Geraldo Bezerra de Menezes (CE). A Cristiana Tejo, pelas conversas que contribuíram significativamente para o desenvolvimento do projeto. A artista Bruna Rafaella Ferrer, por ter acolhido a proposta e empenho em todo processo.
Uma viagem interior “Você não imagina que alguém possa morar tão longe. Mas longe de que afinal?” Já na primeira crônica desenhada por Adones Valença, no começo do trajeto do projeto Viagens não têm títulos, convém notar que sua intenção é ultrapassar a ideia de promover o contato do público com o objeto de arte. Num projeto que toma como partido o deslocamento do corpo como poética, é do encontro com o Outro que emerge a experiência estética e que se constitui um lugar absolutamente diferente, um espaço utópico efetivamente realizado. Como desculpa, valeu-se de uma mala (livro-objeto-galeria de arte) aberta ao sabor dos encontros, de passagem nos povoados sertanejos “sorteados” pela potência poética de seus nomes. Partindo de uma intenção de encontro, o dispositivo para conversa é gerado quando carrega de signos toda sorte de elementos que compõem sua aventura. Mas, mesmo produzindo objetos e situações carregados de signos, o artista constitui sua obra de arte, efetivamente, quando promove um estudo. E seu esboço requer menos um treinamento linguístico e mais um exercício de si.
No devir dessa experiência, observa que o tempo passa mais devagar nas cidades visitadas e sustenta o elogio a um outro modo de uso do tempo. Atento ao comportamento e à produção dos homens e mulheres que “atende” nessa região, acaba por pontuar que não só estamos condenados a uma sociedade em que trabalho e tempo ainda são os principais produtores de valor, mas também que há muito a se considerar nas relações entre as pessoas que vivem nessas paisagens interiores e o que se convencionou chamar de modernidade. Esta publicação reúne alguns registros produzidos ao longo de uma jornada particular que versa sobre a arte do embate não beligerante, a prática de uma “educação sensível”. São excertos das diversas inscrições produzidas pelo artista que, muitas vezes, extrapola a lógica do pensamento visual. Do desenho grafado rapidamente no sketchbook à escrita epistolar de seu diário de bordo, o material aqui apresentado desliza em variadas, mas nunca completas, narrativas de reinvenção de um modo de viver; no caso, viver a vida de artista Bruna Rafaella Ferrer Recife, julho de 2017
Cheguei em Afogados da Ingazeira, a terra dos tabaqueiros. Quando se vem pela estrada vaga, acinzentada pelo véu da caatinga, é possível ao longe escutar o estalar das “reis”, prenúncio dos seus festejos. Aqui, encontro Renata, ela vai me ajudar a chegar até Sozinho. Para chegar até lá, preciso passar por Princesa Izabel e depois ir até Manaíra. Sozinho é um lugar em Manaíra.
11/01/2017 Afogados tem uma igreja que parece um castelo e um cinema que parece ter saído de um filme antigo. Aqui você aprende que os cactos protegem do mau-olhado. Conheci um feiticeiro que tem um jardim deles, um jardim bem delicado, nele é possível ver a espécie chamada de “rabo-de-lagartixa”. Quando ouvimos que os feiticeiros utilizam patas de aranha, pelos de morcego, etc., na verdade estamos falando de plantas que assim foram apelidadas.
A chegada em lugares de esquecimento reanima a esperança das pessoas que aqui moram, é como se a chegada do outro criasse uma possibilidade, a possibilidade de existência, de reconhecimento de que o “eu” existe, é real. Desejo comum aos seres humanos é a existência, seja ela fictícia como na rede, seja na consumação do trabalho braçal que vê a paisagem transformada. Érica é estudante de Pedagogia e vai fazer um TCC sobre os aparelhos ideológicos do Estado. Ela estava na Praça do Cuscuz, lugar em que atendi ontem, das 20h às 21h30, na cidade de Afogados da Ingazeira, sertão pernambucano. Na praça, mostrei o trabalho a alguns artistas e poetas locais. Afogados tem um cinema, o Cine São José, em plena atividade. Boa parte das salas de cinema das cidades do interior foi extinta com o advento do vídeo e do DVD na década de 1980, é curioso esta sala manter-se. A praça do centro é um lugar de encontro, bem como a calçada. Aqui, o tempo passa mais devagar.
12/01/2017
De Afogados, chegamos em Princesa Isabel, a ideia foi de chegar em Sozinho pelo sertão paraibano. Princesa Isabel é uma cidade que no começo do século XX separou-se do Estado da Paraíba. Sozinho existe, não existe apenas como paisagem geográfica, delimitada por muros de pedra. Existe para Manoel Baixinho, de 75 anos, que prepara um tanque de pedra há 40 anos e perfura grandes buracos para encontrar água. Tanto para alimentar suas “reis” (gado) como para garantir que as casas continuem pulverizando a paisagem, de barro solto, vermelho, pois sem água o povo migra. Sozinho não é seco.
14/01/2017 Estou em Souza. Vou fazer daqui meu ponto de apoio para me deslocar até Casinha do Homem, Passarinho e Estrelo (descobri que é Estrelo, e não Estrela). Estou hospedado na pousada de Dona Geralda. Cheguei em Souza ontem à noite, depois de ver uma descida linda da Serra do Teixeira, já em Patos, a nota da conversa mudou. O motorista da lotação falava da violência, do assalto a um carro-forte recentemente. Ao entrar num táxi para ir até o hotel, o taxista fez um interrogatório sobre quem eu era, de onde eu vinha, o que trazia naquela mala. Perguntou se eu era um assaltante. Defendi-me, disse que não, que era artista, que fazia parte de um projeto. Mesmo desconfiado, deu-me o cartão e ofereceu seu serviço para me deslocar até Passarinho e Estrelo. No quarto do hotel em que fiquei ontem, enquanto descansava, a recepcionista ligou-me, disse que meu CEP estava errado, que o nome da rua que eu dei não existia. Corrigi, disse não saber o número do CEP da rua, mas que a rua existia sim. O medo da violência faz que alguns moradores tenham receio do outro. Existe um imaginário de violência. Aqui você não é vítima, aqui você pode ser um algoz. A violência é trazida pelo forasteiro, o que vem de longe, para cometer uma barbárie qualquer e depois sumir nestas longas estradas. Por isto é necessário seriedade quando se fala do trabalho, seriedade na postura, seriedade no olhar. A entrega na ação faz o outro entregar-se também.
Criei uma estratégia persuasiva que é me fazer acompanhado por alguém do lugar. De fato, sozinho, é um tanto difícil quebrar a barreira com o outro; caso não encontre companhia para trabalho, vou refazer esta estratégia de abordagem. Penso em ficar por aqui mesmo, amanhã dizem que não haverá carro para Santa Cruz. De qualquer forma vou tentar; caso eu não consiga, vou trabalhar por aqui e refazer o cronograma.
Quando cheguei em Souza, busquei referências pessoais, sabia que um amigo artista havia realizado uma residência aqui e teria como apontar possíveis pessoas para me ajudar no trabalho. Fui até o Centro Cultural Banco do Nordeste e procurei alguns amigos que ele havia indicado. Encontrei Samuel, pessoa sugerida, que poderia me auxiliar para chegar nos lugares e fazer algum registro. Infelizmente Samuel não pôde, indicou-me Estefanne. Ela disse que também não poderia. No entanto, Estefanne indicou uma moça que, segundo sua descrição, era baixinha, magrinha, fotografava e tinha um fusca azul. Ela me passou o contato de Rayra. Rayra é uma artista local da área de fotografia. Uma referência jovem no lugar que tem um envolvimento com o CCBNB, além de se relacionar com a militância cultural na cidade.
15/01/2017
Na segunda, Rayra e eu marcamos de conversar de manhã cedo e ver como poderia acontecer esta ajuda. Partimos para um café, mostrei o trabalho. Falei da proposta e perguntei se havia a possibilidade de ela me dar um suporte para chegar em Estrelo e Passarinho, ela se convenceu da ideia, disse que gostaria de contribuir. Levou-me no seu fusca azul para atender num lugar que ela denominava “Sem Nome”. Disse que havia crianças e que seria interessante mostrar este trabalho lá. Não hesitei. À tarde, fomos atender no povoado, descobri que o nome do lugar era Benção de Deus. Chegamos no terreiro, ou alpendre, que é uma área que geralmente se estende em volta da casa. Onde as pessoas espalham as cadeiras para conversar num piso liso de cimento queimado ou na areia bem varrida. Apresentei-me, disse quem eu era, e perguntei se eles gostariam de participar da proposta. Olhando a monotipia do rosto, um senhor que estava ali na roda disse que aquele era o rosto dele. Conversamos com as crianças, que pediram para ser fotografadas. Combinamos que no outro dia sairíamos cedo pela manhã e, como Estrelo e Passarinho eram perto, poderíamos fazer os dois locais no mesmo dia com a ajuda de Vanessa Lira, uma amiga que também gostaria de fotografar.
Na manhã da terça, saímos com destino a Estrelo e Passarinho. Fomos logo a Estrelo, perdemo-nos na estrada. Por não haver nenhum tipo de sinalização, criei uma sinalização própria, que apontava para um lugar errado. Perdemo-nos algumas vezes. Em Estrelo, atendemos na casa de um vaqueiro, que disse que o lugar tinha esse nome por causa de um boi que havia nascido com uma estrela na testa. O lugar do boi estrelo; assim ficou. Em Estrelo, uma mulher apontou que era curioso levar o amor, que é tão grande, dentro de uma mala pequena. Na Rota 1, atendi em Afogados da Ingazeira, Pernambuco. Sozinho, Patos do Irerê, Benção de Deus, Estrelo, Passarinho e Souza, na Paraíba. Sinto que deveria melhorar minha relação com as crianças, mas é que, quando chego nestes lugares, ninguém sai fora da casa; só sai o homem, a figura paterna, e, depois, saem os outros integrantes da família. Existe uma permissão limitada. Um olhar de desconfiança que vai cessando aos poucos. Tive que criar uma estratégia para chegar em Casinha do Homem. De Souza, fui para Santa Cruz, em Santa Cruz converso com o pároco local. Tive que aguardar um batismo. Após o batismo, mostrei o projeto, disse que ia para Casinha do Homem e que precisava da ajuda dele para que as pessoas não desconfiassem de mim. O pároco me recebeu e me encaminhou para o senhor Enéas, disse que ele poderia anunciar na torre da igreja e reunir as pessoas ali. Na saída, um senhor que estava no batizado prontamente se dispôs, disse que me levaria até Casinha do Homem. Eu expliquei que acharia melhor que ele me indicasse alguém que me acompanhasse até lá e, depois, levasse-me de volta para Souza. O trabalho tem uma marcação, tem que ir no lugar que disse que ia. Às vezes acho que isto deu um norte ao trabalho, mas a possibilidade de errância seria melhor ainda, provocaria situações de maior descoberta. Passei toda a manhã e parte da tarde em Casinha do Homem, na casa do senhor Enéas e sua família. Não houve anúncio na torre da igreja.
Os diferentes tipos de público Segue abaixo o perfil dos indivíduos que se pretende alcançar, por ordem de prioridades: a) b) c)
d) e) f) g) h) i) j)
k) l)
Artistas, artistas que pintem letreiros, naturezas mortas, paisagens e desenhos. Professores de artes, filosofia, música, português e matemática. Pessoas saudosistas detentores de fotos antigas do lugar e cataloguem praças e loucos. Crianças que geralmente brincam na calçada no fim da tarde antes da janta. Velhinhos que se reúnem nas praças em qualquer dia a tarde para jogar dominó. Músicos e poetas que formam uma banda com pegada beat. Grupos de artesãs do barro, da palha, do tecido, da renda. Grupos de teatro da paróquia local. Padre, pai de santo, pastor ou outro sacerdote. Bares que servem como rodoviária, e oferecem diversos tipos de cereais, doces e salgados. Professores da rede pública militantes da esquerda. Tribos de rock e reggae.
De lá, fomos até Passarinho. O Google sabe de Passarinho, mas as pessoas que moram perto não sabem onde fica esse lugar. Em Passarinho, nada havia, apenas o desejo de migrar. Casas abandonadas, o único ser que lá encontramos foi um pássaro de bela plumagem. A sensação que tive foi de um vazio profundo e descontentamento, mas, ao mesmo tempo, de tamanha emoção, por ter encontrado o pássaro. Dizem que ele é sagrado. Era aquele passarinho que tinha que encontrar em Passarinho. Caminhos serpenteados sem fim, no vazio das serras de árvores tristes e chorosas. Regressamos a Souza.
18/01/2017 A sensibilidade é uma faculdade de todos os seres humanos, mas em Estrelo os camponeses não têm uma educação para os sentidos. Seria maravilhoso juntar a sensibilidade e a relação que aquelas pessoas têm com a terra, com a natureza. Esta questão estética perpassa questões ambientais; certamente a paisagem da caatinga seria outra, porque o homem veria o ritmo dos espinhos dos cactos e compreenderia a beleza e a força das pedras. Hoje é noite de despedida, andarei pelas ruas e suas calçadas cheias de cadeiras, onde as pessoas conversam e esperam o vento que chega às 21h do Ceará, vou me despedir de Dona Geralda e da família que tem um restaurante na frente, aquela comida tem um feitiço, deixa uma sensação boa na vida da gente.
19/01/2017 Sete da manhã. Sento numa praça em Souza à espera de uma lotação que me levasse até Marcelino Vieira, onde começo a rota 2. Começo a desenhar por observação a carroça de Maria, que vende café, tapioca e serve como rodoviária. Quatro ou cinco pessoas percebem o que estou fazendo e ficam em volta, dizendo:
— Como é interessante aquilo, olha só, é a barraca de Maria. Depois chega um homem curioso olhando com minúcia, um tanto desconfiado daquilo que eu fazia. Ele olha e diz: — Este é um bom desenho, eu reconheço um bom desenho! — Você faz quadros? — Perguntou ele. Respondi que sim. Ele disse: — Eu sei que você desenha bem, eu já fui um pintor letrista. Mas vocês conseguem dar volume às coisas, conseguem efeitos que nós não conseguimos.
Mostrou-me no caderno que sabia fazer letreiros e disse que nos anos 1990 ganhou muito dinheiro como pintor de letreiros em São Paulo e no Rio Grande do Norte. Mostrou a propaganda de Elias, o “deputado da água”, tipo de político característico da indústria da seca, que vem acabando por causa da transposição do Rio São Francisco. Ele ficou empolgado com o encontro. Mostrei a ele meus pincéis e os materiais que trazia. Ele me contou que o começo dos anos 2000 foi quando a profissão de pintor letrista começou a sumir, as pinturas passaram a ser feitas com uma película azul que era recortada, depois veio o adesivo colorido, e depois o cartaz impresso, o que tornou insustentável este tipo de trabalho. Disse que depois, em São Paulo, vendia limão, em seguida foi cantor de banda de forró, fazia sucesso, mas, devido às andanças, preferiu ficar mais próximo à família. Ele me deixou na pousada de Seu Anízio. Recomendando-me ao mesmo, disse que eu era de um “projeto social” e que ele me ajeitasse. No começo da noite, resolvi andar um pouco e conhecer o lugar. As calçadas de uma cidade como Pau dos Ferros estão cheias de plateia. A calçada é uma extensão da casa, as famílias reúnem-se em cadeiras para conversar e aliviar o calor, o que as torna cheias de um público que não se interessa por televisão ou redes sociais. A calçada é a própria rede social. Ali todo mundo tem o mesmo direito de fala, todos silenciam e ouvem o que a criança ou o ancião tem a falar; as rodas são afetivas e democráticas. A morte está nas rodas de conversa, como uma senhora simpática e bem-humorada. O bucolismo atravessa as ruas um pouco escuras, onde todos se conhecem.
Criei um exercício que consistia em me perder pela cidade. Caminhava partindo de algum lugar até me perder completamente, sem saber para que lado ficava o referencial de onde havia partido; neste caso, a pousada do senhor Anízio. Anízio olha vago pela porta do hotel que leva seu nome, sua vista se perde na poeira dos carros de linha que passam pela rodagem. Aqui, acolá, levanta-se e limpa as mesas do restaurante, ele não dá ordens aos funcionários, é como se cada um soubesse suas tarefas e as executasse. Pau dos Ferros é uma cidade de gosto sofisticado. No supermercado é possível encontrar uma boa oferta de vinhos e diferentes tipos de queijos. A cidade tem charme e um silêncio noturno, que vai sendo quebrado pelo fechar das lojas de boa grife. Aqui é fácil entender o gosto de Lampião por uísque White Horse e perfume francês. Amanhã vou a Flexas, preciso melhorar a mediação. Mediação: posição de professor. Tem que ser dialética, de troca, não preciso chegar falando do trabalho, é preciso deixar as pessoas sentirem o trabalho e, a partir daí, dialogar. Com Cícero entendi, de forma prática, como o desenho é um dispositivo que permite uma relação com o mundo. É magia feita com papel e lápis, uma chave para outras ecologias. A arte nestes lugares é fundamental, para dissolver a violência que existe no imaginário, na cabeça das pessoas, como algo natural, comum. O que faço é ainda muito pouco.
20/01/2017 Hoje em Belo Jardim, cidade do agreste pernambucano em que nasci, é feriado do dia vinte. Para a Igreja é feriado de São Sebastião. Para os festejos profanos, é festa do dia vinte. Hoje fui a Flexas, não sei se as flechas de São Sebastião ou de Oxóssi. Fui em Flexas, que fica em José da Penha, cidade quase povoado, próximo a Marcelino Vieira, no Rio Grande do Norte. Fui cedo, após o café da manhã, Anízio me recomendou no carro em que iria; peguei o “carro de linha” que ia para Marcelino Vieira. No caminho, conheci Preta. Avisto ao longe aquela vila em que Cícero, o motorista que me trouxe de Souza, apontou o velho sentado num revólver cheio de balas. Parei lá, paguei ao motorista, cheguei junto a um bar e perguntei como poderia fazer para chegar até Flexas, se existia mototáxi ou táxi, todos entreolharam-se e disseram não saber de moto, que eu fosse mais à frente e perguntasse. Caminhei com a mala até a praça central, perguntei a duas senhoras na calçada como poderia fazer para chegar até lá. Responderam que eu fosse mais à frente. Fui até a frente do mercado municipal e falei com um senhor chamado João; expliquei quem era e o que queria fazer. Ele ficou desconfiado, disse que minha cara era de uma pessoa de bem, mas que as coisas não eram assim, que o pessoal estava muito assustado com a violência, que já roubaram muitas motos, e as pessoas têm medo de levar estranhos.
Pediu que esperasse, que eu não iria ficar sem ir, que ele não podia ir, mas iria arrumar alguém que me levasse. Abri a mala, disse que não estava armado e que tinha um outro objetivo, que aquilo era meu trabalho e eu estava fazendo um estudo. Ele disse não haver necessidade daquilo, que confiava em mim, que via na minha cara que era uma pessoa de bem, parou uns três ou quatro amigos, mas nenhum quis me levar. Fiquei esperando e comecei a desenhar o mercado municipal. Olhavam-me desconfiados, sem saber se podiam ver aquilo que fazia. Adotei este exercício para os lugares em que chegava sozinho. Começava a desenhar, as pessoas iam chegando e perguntando quem eu era. Depois de um tempo, apareceu um que disse que me levava. Disse que me deixava lá, mas que não iria me esperar, que dali eu poderia pegar até mesmo uma carona voltando. Fomos até o Sítio Flexas Vila de João de Zeca. Lá encontrei um vilarejo com quatro ou cinco casas, alguns bancos embaixo de árvores e pessoas conversando. Apresentei-me, e concordaram em participar da proposta; aos poucos as pessoas vão ficando curiosas e começam a perguntar. Se no começo ficam um pouco desconfiadas, no fim emocionam-se, felizes, por algo assim. Geralmente pedem que fique, que almoce com elas, que depois me levam para casa. A conversa ajuda a dar exemplo aos jovens: — Tá vendo! — Exclamou uma senhora. — Tem que estudar, né, moço? Se “num” estudar, “num” tem futuro, não, né? — Continuou. Pergunto se já foram a alguma exposição de arte ou se já assistiram a alguma peça de teatro. Balançam a cabeça que não. Disseram que sabem que aquilo é importante, é sério, mas que não têm como ir, nem sabem onde existe.
A burocracia que carrego ajuda a legitimar e estabelecer relações. As pessoas respeitam a burocracia, os recibos, o projeto, o caderno. Acham curiosa a mala, mas ficam um pouco envergonhadas, acho, de perguntar o que é. Hoje, o genro de Anízio falou com um doutor que é artista aqui em Pau dos Ferros. Ligou para ele e me passou o telefone. Apresentei-me, disse quem eu era, que tinha um projeto e que gostaria de falar com ele, de conhecer o seu trabalho. Falei que também faço estudos e gostaria de saber sobre a produção de arte daqui da cidade.
21/01/2017 Marcamos de conversar aqui no hotel, Anízio fez questão que o doutor me recebesse no escritório. Fazia questão. Anízio dizia que aquilo era uma honra para ele. Sentamos frente à frente. Expliquei quem eu era, o que estava fazendo ali. Ele me mostrou seus trabalhos e ficou muito empolgado com o projeto. Disse que era muito interessante aquilo que eu fazia e me recomendou a vários artistas. Mostrou-me, rapidamente, cinco ou seis trabalhos de outros artistas da região. Disse que ali existia arte, que as pessoas produziam, mas sem estímulo os artistas param de produzir.
Ele me mostrou um monte de artistas. Marcou ele mesmo os encontros, dizendo que era importante eu conhecer o trabalho deles. Mostrei a maleta portátil, e ele vibrou. Disse que a arte contemporânea estava estranha, que o grafite foi quem salvou a arte e se autoclassificou como hiper-realista. Conversamos por umas duas horas. Marquei de ir na Universidade Estadual do Rio Grande do Norte — UERN, para conhecer outros artistas. Etelânio Figueiredo é um importante artista e incentivador das artes na região de Pau dos Ferros ao Uiraúna.
Rota 2 Andava um pouco tenso pelas ruas de Pau dos Ferros. Por mais que eu quisesse ser igual, era um estranho entre eles. A figura de um artista, numa cidade em que são poucos os artistas, gera um estranhamento. Desenhar pela cidade é algo pouco visto pelas pessoas dos lugares onde andei, e é rara a presença de artistas de outros locais. Estar de passagem tem um lugar entre o real e a fantasia. Um ser transitando em diferentes planos, e sua visita efêmera cria uma situação mágica. Muitos foram os momentos em que tive medo de não estar vivendo mais o real, dadas as situações ocasionadas pelo meu estar na cidade e os personagens que encontrava. Em Tesoura e Gangorra, assim como em outros lugares, uma coisa que teve presença nas ações foram as redes sociais. Acabei tendo que criar uma estratégia de divulgação nas redes, porque em alguns lugares as pessoas queriam logo saber se eu existia lá, na rede. Rayra me fez refletir que, por meio de postagens no Instagram e no Facebook com vinculação institucional, garantia-se credibilidade ao projeto. Porque as pessoas iam imediatamente procurar meu nome. E me adicionar em alguma rede social. Troquei WhatsApp com motoristas, mototaxistas, donos de pousada e profetas. Quando cheguei em Gangorra, todos esconderam-se. Olho em volta, todas as casas abertas, cheias do escuro. A mulher de que me aproximei inicialmente disse que não queria falar, que não sabia de nada. Subi um pouco até outra casa, depois do grupo escolar, e um homem saiu da porta um pouco desconfiado; depois de um diálogo, permitiu que abrisse a mala. À medida que fui montando o trabalho, algumas crianças foram saindo da casa. Eram seus filhos, dois meninos; mostrei a eles o trabalho, perguntei o que achavam. O pai dos meninos era um sujeito jovem, ria e balançava a cabeça sem acreditar no que via.
Disse que podia me levar de moto, que iria até São José e de lá poderia pegar um carro para Pau dos Ferros. Propus um exercício simples para as crianças, enquanto ele se organizava para ir trabalhar e me dar a carona. Tirei uma caixa de tintas guache que levava comigo e mostrei como misturar as cores primárias. Depois saiu a mãe deles. Enquanto isto, seu pai olhava nas redes sociais quem eu era. A rede social, assim como a televisão, é tomada como uma verdade. Mas será que as pessoas não sabem que tudo aquilo é ilusão?
EX-VOTO CÊNICO
Tudo que faço é inútil. Seria interessante uma educação sensível. Uma educação em que seja trabalhada a sensibilidade por meio das artes. Artes não apenas como atividades de produção de artefatos, mas produção de pensamento sensível e crítico, que atravesse diferentes questões, ambientais, sociais e geopolíticas. Destes locais onde a miséria não é mais a fome. Não adianta levar seis potes de tinta para duas crianças em um lugar onde talvez elas nunca mais receberão potes coloridos. O gesto é romântico, utópico, cristão. A visita do artista com as tintas vai ser uma lembrança que vai se diluir com a realidade do subemprego, do alcoolismo e da violência.
Quando uma vez consultei o Google para ter uma noção das cidades às quais iria, ao colocar o nome do lugar na pesquisa, apareciam várias matérias de jornais com fotos de mortes e acidentes. Fiz vista grossa por achar que eram apenas jornais sensacionalistas. O que dizer de Tesoura? Que não é mais Tesoura. Desde 1963 é Francisco Dantas, coronel afamado na região. Dizem que construiu o prédio da prefeitura de Pau dos Ferros. Quando pergunto quem foi Francisco Dantas, todos se esquivam, não querem dizer que o homem foi coronel. Quando perguntei isto na escola a que fui em Francisco Dantas, apenas uma senhora de cabelos grisalhos respondeu diretamente fechando o diálogo: — Ele era coronel! Era meu bisavô e era coronel, um homem de muito poder na região. Na estrada de Sozinho, conversando com João Alberto Antas, um senhor memorialista de Patos do Irerê, perguntei o que fazia um homem como o coronel ser alguém tão importante. Se se tratava de uma questão de posses, de gado, de terra... Ele respondeu: — Poder! O que um homem daqueles tinha era poder. A partir daí comecei a entender “poder” como algo sobrenatural, uma espécie de dom. Muitos coronéis possuíam uma formação básica escolar que lhes permitia ler e fazer cálculos. Mas também possuíam terras e gado. Foi o “poder” que acabou com o nome Tesoura do lugar. Mataram o encanto dado pela figura que era formada pelo cruzamento de dois rios, a marca da tesoura feita pela natureza. Marca apagada pela construção de um açude que se encontra seco. O nome do coronel Francisco Dantas ficou, para sempre ser lembrado.
Mas, se o que faço é inútil, não podemos dizer o mesmo da ação do professor Jairo José Campos da Costa, atual Reitor da Universidade Estadual de Alagoas, que recentemente abriu um espaço de fruição e formação na singela casa de sua avó, no pequeno município de Francisco Dantas — antigamente, Tesoura. O espaço conta com variado acervo de arte naif de todas as partes do país, bem como peças indígenas, arte sacra e objetos de mestres da cerâmica e madeira. Ainda este ano (2017) a fundação pretende sistematizar ações de cinema e oficinas de artes visuais e literatura. Fui levado lá pelo professor Wilton Freire, da Escola Estadual 26 de Março, escola que atendi quando cheguei em Tesoura. Lá, mostrei ao vice-diretor a proposta, e ele reuniu professores e funcionários para participar da ação. A ida para estes lugares sempre me leva a outros. Porque as pessoas sempre fazem relação com algum espaço que exista na cidade, ou com pessoa de interesse pela história do lugar, ou com algum artista local. Já estava a um dia de ir embora de Pau dos Ferros quando, por sugestão do artista Etelânio Figueiredo, conheci Emanuel, outro artista da cidade que foi ao meu encontro na terça. Emanuel não havia chegado à tarde, como havíamos combinado, chegou soturno, à noite. Sua presença e olhar profundos me deixaram em silêncio. Um impacto espiritual, ele veio em espírito. Emanuel Ferreira apresentou-se, disse que tinha vindo por causa de Doutor Etelânio. Figura alta, esguia, um pouco calvo, de camisa de mangas compridas. Disse sentir frio. Falou-me de Manoel de Barros, mostrou a medalha de um prêmio que havia conquistado em Pernambuco. Combinamos de nos encontrar logo após o café da manhã para irmos à UERN conhecer o espaço de exposições da universidade, assim como o seu trabalho. Emanuel me indicou várias coisas. Mas as principais foram: primeiro, deveria enfatizar mais o vínculo institucional do projeto. Segundo, deambular mais com a mala pela cidade.
AtÊ encontrarmos o professor que nos apresentaria a exposição, fomos em alguns departamentos onde pude ver o trabalho dele, mostrou as obras que havia espalhadas pelos corredores, apresentou-me a professores e amigos, sempre com um charme na gestualidade das mãos e do olhar. Fomos ao encontro do professor Gilton Sampaio, do departamento de Letras, que ficou muito entusiasmado com a visita.
Sugeri a criação de ações educativas no espaço expositivo, algo que poderia ser feito por meio de uma extensão com alunos das licenciaturas, e possíveis ações com a fundação do professor Jairo José Campos da Costa. Emanuel sempre que vê alguém ao longe, seja para pedir carona ou porque não vê o amigo ou conhecido há algum tempo, sai em direção à pessoa ou ao carro, acenando com a mão. Perdi ele de vista umas duas vezes. Quando voltava a vista, estava ali ao meu lado, ofegante, justificando a ausência. Descemos de carro até o Hotel de Anízio, ali fiquei, mas ele continuou viagem, disse que nos veríamos ainda algum dia.
Quando cheguei em Feiticeiro, encontrei a Escola de Ensino Fundamental e Infantil Maria Eneida Peixoto Soares. Encontrei o feiticeiro, estava disfarçado de professor. Recebeu-me muito bem. Reunimos os professores e técnicos da escola para participar da performance e do debate. Mostrei o trabalho, conversei com todos que ali estavam. Pediram ao professor Geraldo Bezerra de Menezes que dissesse suas palavras de encantamento, pois todos ficaram muito felizes com a visita. E queriam retribuir com uma obra feita pelo artista, poeta, que se orgulham de ter entre eles, orador por excelência. Ele, em torno da mala, disse as seguintes palavras mágicas em forma de poesia: “Hoje eu vejo a arte em suas partes. Com tristeza e alegria. Tem junto a noite e o dia. De um rapaz alegre e feliz; como um beija-flor. Levando um projeto de amor aos recantos mais distantes do país. A terra do feiticeiro hoje mudou seu astral. Recebeu esta visita, tão alegre e jovial. Veio trazendo o sucesso e apresentando um projeto do Itaú Cultural.” Depois de uma boa conversa e trocas sobre História, despedi-me do feiticeiro, que disse que eu não fosse, que, por ele, conversaria a tarde inteira comigo. Pedira, com muita insistência, para ir até o açude de Feiticeiro. Fui até lá, disseram que o açude foi inaugurado por Getúlio Vargas. Aquele que ascendeu ao poder após a Revolução de 1930.
É linda a estrada que vai para Jaguaribe, ela parece a melodia de uma sanfona, invadindo em S serras e vales. Tem muita casa de taipa ainda. E serras de cinza e laranja. Tem muita marca de rio seco, marca d´água, que há muito não cai do céu. Mas aos poucos a paisagem vai se tingindo de um verde fresco. Arbustos e cactos formam lindos canteiros pelos lajeiros de pedra. Jaguaribe tem um rio que passa pela cidade de água tão cristalina que se veem as algas dançando no fundo dele com a correnteza. Assim que cheguei em Jaguaribe, perguntei como fazia para chegar em Feiticeiro. Um mototaxista disse que poderia me levar até lá. Acertamos o valor, apresentei-me, disse quem era, o que iria fazer. Ele disse que tudo bem, que não precisava me justificar tanto, que entendia o meu trabalho. Disse que sabia quando uma pessoa era de “bem”. Ouvi muito isto pelos lugares que andei até agora. As pessoas examinam minha fisionomia com um olhar além. Acho que paramos de fazer esse tipo de leitura porque temos muitas máscaras. O meu avatar na rede é a máscara maior. Ele tem o sorriso pelo qual quero ser lembrado, e me faz bem me ver assim, feliz, com amigos, em família, etc.
Rota 3
Lembrei -me que, quando fui para Sozinho, passei em São José de Princesa, local em que ocorreram batalhas separatistas entre os coronéis e o Governo do Estado da Paraíba, que à época era governada por João Pessoa. Depois, João Pessoa, vice da chapa de Getúlio Vargas, morreu, e andaram com o seu corpo por vários lugares do país, como uma espécie de propaganda. As histórias vão cruzando-se. Os caminhos que percorro têm pedaços da história. E, quando chego num lugar e mostro o trabalho, as pessoas sempre acabam me levando para outros lugares, outras histórias. É fim de tarde em Jaguaribe. O gatinho mira o rio escuro no horizonte. A noite vai chegando depois de um belo pôr do sol, que coloria a água de laranja, onde patos e sapos cantavam o fim daquele dia que se ia pelas brechas da ponte marrom e azul. Na praça, enquanto cantavam os hinos da festa da padroeira de Candeias, sentei num banco para desenhar aquela torre de igreja neogótica. Aproximam-se de mim dois meninos que ficam curiosos ao me ver desenhar. Perguntam de onde sou e o que faço ali. Pergunto se sou assim tão diferente. Eles dizem que não, mas que não costumam ver pessoas dali desenhando. Respondi que era um artista viajante e que tinha uma mala mágica, que virava uma galeria de arte. Eles olharam um para o outro e foram embora.
Fui para Quixeramobim. De Jaguaribe para Quixeramobim, o ônibus quebrou na estrada. Ficamos algumas horas esperando um outro ônibus que me levaria até Triângulo Quixadá, para, de lá, ir para Quixeramobim. O ônibus para na estrada, e me indicam uma parada que há pouco havia sido destruída por uma batida de automóveis. Paro e fico esperando algum transporte. De imediato, chega até mim uma velha senhora, apresentou-se, perguntou quem eu era e o que fazia ali: — Para onde você vai? — Questionou ela. Disse que iria para Quixeramobim. Ela disse que, para ir até lá, eu tinha que ir até Quixadá, para depois ir para Quixeramobim. Ficou chateada, não entendia por que me mandaram para aquele lugar. Disse que Quixadá era uma cidade melhor, que tinha mais gente e tinha turista. Respondi que não era o objetivo do projeto acontecer desta maneira, que o projeto acontece no mínimo, com poucas pessoas mesmo.:
— Tudo bem! Vou deixar você no carro que vai para lá. Não diga nada, apenas siga minhas orientações. Foi Deus que mandou eu vir até você, sabia? — Disse ela, olhando para os lados, vasculhando seu campo de visão para ver se não estava sendo vista.
Pegamos o ônibus que ia para Quixadá, cidade em que fica a fazenda Não Me Deixes, de Rachel de Queiroz. A paisagem até lá é de gigantes monólitos, incríveis estruturas de pedra que se erguem para o céu. A velha senhora ficou em Quixadá. Enquanto guardava minha bagagem na outra lotação, ela reservava o meu lugar, disse que eu sentasse logo, para não ficar em pé. Despedi-me dela e agradeci, e pouco tempo depois ela voltou, ofereceu-me uma água gelada, resmungando: — Tome! Dê essa água gelada aí a ele, que ele é um santo, nem bebe, nem come. — Dito isto, sumiu pelas ruas, cheias de carros. Cheguei em Quixeramobim, para de lá ir até Boa Sorte, que é a fazenda de um grande proprietário. As relações de trabalho nestes locais remetem ao feudalismo, no qual os camponeses e a produção da terra ainda tinham seus “donos”. No outro dia parti cedo. Chegando em Boa Sorte, dirijo-me à casa de um dos moradores, lá encontro três irmãos, apresento-me, falo da proposta, realizo a performance e o debate. Dois deles são tatuadores. Há pouco tempo compraram o equipamento de tatuagem ali mesmo, em Boa Sorte. Num cômodo da casa, fazem suas tatuagens. Vi seus desenhos, conversamos sobre os diferentes tipos de lápis grafite, e dei alguns bastões de pastel para que eles experimentassem uma técnica diferente. Desenham em papel de caderno, com caneta esferográfica. Seus desenhos são bem-acabados. Disseram gostar da mala.
Por vezes, fico pensando que esses encontros são ocasionados pelas circunstâncias da locomoção; a chegada é uma espécie de arroubo, um convite por vezes inesperado. A visita tem a coisa da surpresa, esse momento da surpresa tornou-se um momento para educação. A circunstância gera uma possibilidade, a possibilidade de troca. Digo isto porque acredito que a educação se dá em diferentes espaços e de diferentes formas também. Meu trabalho tem muito do professor. Já não acho que seja do mediador, como pensava no início da jornada. O que me interessa é preparar as pessoas para que comecem a experimentar de melhor forma os fenômenos de arte. E tentar mostrar que outras possibilidades de vida, e de mundo, vêm por meio dela. Entendo que o trabalho se divide em três momentos: o primeiro momento é o do discurso — geralmente persuasivo; o segundo, da performance — a montagem da mala; e o terceiro, de debate. O que chamo de performance é o momento de desmontagem (apresentação) da mala, é o momento em que minha ação transforma a obra. A performance é quando ativo o dispositivo. No entanto, creio que toda essa ação é uma grande performance. Pelo roteiro que segue, pelo planejamento dos deslocamentos no espaço geográfico.
Quando me despedi de Boa Sorte, Louro, o mototaxista que me levou, disse que eu tinha que conhecer a casa de Antônio Conselheiro. Que a cidade tinha muito orgulho dele e que eu deveria ir para o marco central do sertão cearense. Deixou-me lá. A casa de Antônio Conselheiro funciona como sede da Secretaria de Cultura de Quixeramobim. Conta com espaço expositivo e acervo de fotografias, bem como salas para cursos de teatro e dança. Lá também realizei performance e debate. No dia seguinte, segui para Iguatu. Fiquei um pouco incomodado com o fato de Iguatu ser uma cidade maior. Está sendo refundada com o signo do contemporâneo. Grandes obras públicas são feitas com arrojadas estruturas de aço e padrões geométricos. A energia do projeto não é para cidades assim, é para cidades menores, em que as relações com o outro sejam qualitativas. Em Iguatu, encontrei Rayra. Disse-lhe que tinha ido fazer um trabalho em Juazeiro. Fui para Baú com ela e seu Francisco, um motorista calado. Não era intenção inicial da pesquisa desenvolver-se em locais remotos do território brasileiro, especificamente da região chamada Nordeste. No entanto o sorteio (digo sorteio, pois foram escolhidos pelo poder que o nome do lugar evocava) me levou para estes lugares. Não era interesse inicial levar a arte para cantos distantes como alguém que explora o exótico. Posso dizer que nesta fuga para o campo, gesto que remete ao Romantismo, pude estabelecer um melhor contato com a natureza. A natureza dos homens e a da terra.
É a partir da dicotomia homem x natureza que os sertões são povoados. Podemos dizer que muitas cidades e lugares do sertão foram fundados por pastores de gado, que geralmente ficavam na sombra de uma grande árvore próximo a um rio ou riacho. Ali, acampavam, para depois seguir viagem. É nesta relação homem-árvore que está alicerçada a cultura dos sertões. A base da cultura sertaneja é a relação do pastor (homem) com a terra (natureza) e o rebanho (cultura). Muitos nomes dos lugares dão-se em virtude da observação da natureza atrelada à imaginação — era o caso de Tesoura, atual Francisco Dantas. No caso de Baú, há um monte alto entre dois lagos em formato de tampa de baú. E assim batizaram o lugar. Baú é uma vila no município de Iguatu, que possui uma associação de moradores, coordenada por mulheres. Lá fomos gentilmente recebidos pelas mulheres da Escola Antonio Cirilo de Oliveira. Depois que percebi a relação da fundação das cidades com as árvores, comecei a realizar a performance nas árvores dos terreiros. Naquela roda formada na frente da escola, falando sobre amor, via no rosto de cada uma das mulheres atendidas seus dramas e alegrias. Seus dramas continuam sendo a violência doméstica, o alcoolismo de seus companheiros, os sonhos não realizados. Suas alegrias são a dignidade do trabalho que executam e as famílias que lideram. Isso faz que muitas carreguem uma seriedade necessária no olhar. Seriedade para que possam, psicológica e socialmente, segurar seus lares. Assim como o pescador sabe a tábua das marés e as luas e como se rege a água do mar, o sertanejo sabe da água do céu, sabe o quanto choveu em milímetros. A água é “problema” cotidiano. Toda essa região vive um período de baixa pluviosidade há quase seis anos. Tem muito açude seco. Com o tempo, comecei a reconhecer uma área que já tinha sido açude ou barragem pelo relevo, pela vegetação e pelo cheiro.
Saí de Iguatu e fui para Farias Brito. Achava que Fortuna era distrito de Farias Brito, mas segundo seus moradores é distrito de Várzea Alegre. Depois de muito andar por serras e estradas cheias de lama, chegamos num povoado. Fortuna tem esse nome pela atividade da mineração de ouro. Recentemente a mina foi desativada, por implicações da empresa com o governo. Chego numa quadra e encontro jovens rapazes jogando bola, interrompo o jogo, apresento-me, pergunto se desejariam participar de uma experiência com arte. Ficam um pouco cismados, mas o encorajamento de alguns faz com que todos formem uma roda. Realizo uma fala inicial, explico que a ação tem apoio do Itaú Cultural, que sou artista. Em seguida faço a performance e começamos um debate. Pergunto se desenham, respondem que sim, só que não sabem “o quê”. Em Fortuna, nesta conversa, contaram-me a História dos três conselhos. Dizem que um camponês havia pedido ao seu patrão para sair da fazenda em que trabalhava há vinte anos, pois gostaria de voltar para casa, para sua esposa e seu filhinho. O patrão, dono da fazenda, pergunta se ele prefere o dinheiro ou três conselhos valorosos. Utilizando-se de sua prudência, o camponês escolhe os três conselhos.
Primeiro conselho: se tiveres fome na tua jornada, suporte-a, pois toda adversidade passa. Segundo conselho: siga pelo caminho difícil. Terceiro conselho: nunca tome decisões num momento de raiva. Dito isto, dá três pães num saco ao viajante. No começo da jornada, sente fome, mas lembra-se do primeiro conselho e não come os pães que leva consigo. Segue viagem e num dado momento depara-se com um caminho bifurcado, lembra-se do segundo conselho e segue pelo caminho espinhoso, cheio de pedras e cactos. Vencidos os obstáculos, encontra outros viajantes que haviam sido saqueados na estrada por ele rejeitada. Depois de tanto caminhar, o camponês finalmente encontra sua casa, mas ao longe vê um jovem rapaz beijando em despedida o :
rosto de sua consorte. Sente vontade de ir até lá tomado por grande fúria, mas lembra-se do terceiro conselho. Como já estava para anoitecer, dorme no meio do mato, coberto por folhas. No outro dia, bem cedo, descobre que na verdade aquele era seu filho, que agora, passados vinte anos, já era um jovem feito. Cheio de felicidade, parte ao encontro deles, dizendo quem era e contando sua história. No banquete feito às pressas para comemorar e saciar a fome, parte os pães em cima da mesa, que no miolo guardavam uma boa quantia de dinheiro colocada ali pelo fazendeiro.
Fim da Rota 3 Cheguei em Juazeiro do Norte, aquele lugar distante onde os milagres acontecem. Tudo em Juazeiro está impregnado de fé. Seja por ser um curioso da fé das pessoas, seja porque foram raros os momentos em que de fato senti fé, posso dizer que ela é algo que sustenta a vida quando o clima e suas intempéries privam a terra de água por seis anos. É preciso fé para manter-se. E o sertanejo sabe disso. A cidade tem uma atmosfera sagrada. Andei com a mala por lá para pegar essa energia. Digo isto porque as pessoas sempre perguntaram se iria adicionar coisas na obra. Respondia que não, que isto poderia comprometer o equilíbrio da composição. Em Feiticeiro, um professor da escola que atendi disse que eu levava e deixava “coisas”. Entendi que estas “coisas” por vezes são invisíveis. A fé foi algo que adicionei na mala e na viagem. As ruas estavam cheias de romeiros, que vêm de toda parte do Nordeste pagar suas promessas. Era período da última romaria, a de Nossa Senhora de Candeias. Alguns fiéis depositam em templos e casas de milagres seus ex-votos, sacrifício simbólico em que uma parte do corpo do penitente — representada por um objeto — é oferecida ao santo pelo milagre alcançado. Dá-se ao santo aquilo que ele curou, é uma abnegação da parte do corpo. Uma troca, um acordo firmado entre as partes, que se formaliza na quitação da dívida. Outros peregrinos penitentes vestem-se com as roupas dos seus santos.
No quintal de uma destas casas de milagres, encontro um poço, pergunto o que todos olhavam lá no fundo, pois nada havia, a não ser um escuro abissal. Uma senhora me chamou de lado e, como num segredo, disse que se eu tivesse fé, veria o “Padrim Ciço” caminhando no brilho d´água. Mas que era preciso fé, muita fé. — Só vê quem tem fé; se não tiver, não vê nada — disse ela. Juazeiro descortinou a espiritualidade do trabalho. Eu mesmo levei minha promessa (mala) pelos lugares sagrados. Eu mesmo andei errante por suas ruas até o horto, donde avistava do alto a cidade milagrosa. Lá, no casarão do Padre Cícero, encontro uma romeira vinda de Paulo Afonso, na Bahia. Tirava o lenço da cabeça e, nas jarras de água que servem aos visitantes, ela cantava feliz, molhando o rosto e bebendo da água do “padrinho”. - Eu voltei, meu padrinho! Eu “tô” aqui de novo, pro senhor me abençoar! Pedi que ela cantasse enquanto derramava um pouco daquela água da jarra no copo para mim. Bebi, e descemos juntos para pegar o ônibus até o centro.
Rota 4 Sou a fim das coisas sem importância. Tudo que é desimportante me fascina. Achamos que tudo o que fazemos — as atividades que desempenhamos, o nosso lugar no sistema e como somos no mundo — é o que existe de mais importante. Mas, na verdade, nada disso tem importância alguma. O que faço é sempre mais importante do que o que o outro faz. Não vou parar o que faço para ouvir o que outro tem a dizer, isto é o que se pensa na maioria das vezes. Fui mais ouvido no campo, junto à natureza, lugar onde pode-se parar para ouvir. Pode-se conversar um pouco e tomar um café. A roça não tem relógio. Alguns amigos estão curiosos a respeito da reação do público nos lugares. Pode ser a imagem do Jeca, cristalizada na literatura, no cinema e nas artes visuais. O Jeca é um sujeito atrasado porque vive no campo, já o sujeito urbano, que vive na cidade, é mais desenvolvido. Temos aqui a ideia de campo atrelada ao atraso, e a da cidade ao progresso.
A resposta ao trabalho sempre vem, ela manifesta-se na troca com o conhecimento do outro. Arte é conhecimento. As relações que estabeleço são de troca de conhecimentos. A resposta nem sempre é do campo da arte, ela pode vir de outra área, mas ela existe. Nos locais que andei, quando realizo a ação, as pessoas interagem, emocionam-se, ficam felizes. O que dizer de algo assim tão desinteressado num momento em que o capitalismo e o espetáculo atravessam boa parte das relações? Digo apenas: — Quero apresentar este trabalho e depois vou embora. Apenas isto. Não cobrarei nada de vocês.
Em Sozinho, seu Manoel Baixinho mostrou-me como criar muros e tanques de pedra. Em Souza, Cícero me ensinou o que era uma “batuta” de pintor letrista. Em Tesoura, fui levado a um santuário. Em Pau do Ferros, mostraram-me outros artistas. Mas para uma troca mais plena seria necessário um tempo de fixação no lugar, as negociações exigem paciência e são construídas de forma política. Como disse, os lugares sempre apontavam para outros lugares, vou construindo uma cartografia de várias camadas: artística, política, social, ambiental, educacional e sensível.
Os seres humanos devem adaptar-se à natureza; neste caso, vale lembrar a árvore como abrigo, como casa. Aqui por onde ando a relação do ser com a terra é direta. No entanto, não é relação de domínio sobre a natureza. Não parte de um entendimento de que a natureza deva ser transformada e melhorada, mas, sim, de que devemos nos integrar a ela; tudo é simples, mal-acabado, porque é temporário. É uma relação da mãe com o filho que amamenta. A terra não é agredida, ela é trabalhada para que possa dar frutos.