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Em lugar de prefácio, carta à minha irmã
from De Vento em Poesia
by O Jão
domingo, 31 de maio de 2020
Acordei com você me olhando, Marcelina, com suas poemas que me falam de rios e gozos e sangues e choros – tanta água! e diários, infância e paisagens e mais poemas, tanta coisa, tanta poesia.
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Minha filha me pega com você me olhando e me pergunta por que uma pessoa se põe a ler numa hora dessas? e eu digo porque alguém escreveu e ela me devolve por que alguém escreve numa hora dessas? porque escrever, minha filha, nos ajuda a sobreviver. Respondo, mas garro a pensar muito sobre isso, uma mulher escrevendo em 2020 quando tantas não puderam em séculos, é uma vingança! uma mulher escrevendo sobre seu corpo, seus desejos, sua raiva, sobre o que quiser. Que bom, mulher. Escreva como uma mulher.
Numa dessas poemas você se pergunta numa pergunta retórica de poesia, o que fazer com as lágrimas, já respondendo ao escrever este livro: regar o próprio jardim. E lamber o jardim como quem lambe as poemas tão lindas, tão lindas, repetidamente lindas, você me faz repetir num corpo de
poema.
Fiquei pensando em quantas vezes você pode ter sido chamado de vaca, pensando muito em tua vaca coração, uma vaquinha não é mesmo um bicho que vai pro abate, que muge, dá leite, aguenta um macho, uma inseminação, ela até chora regando um jardim, e uma vaquinha não é mesmo um bicho sagrado feito um coração? Tenho ganas de te segurar o coração ensanguentado.
Te leio e lembro ainda as minhas “bonecas da minha infância/ onde me deixei ficar/partir/ bonecas de milho afogadas/ adeus”, e então encontro uma outra parte de teus ventos, porque sim, escreve sobre o que quiser, e há tanto sobre o que escrever, que um livro é pouco e o dobra em dois, nos oferece uma paisagem de sertões e maresias pra pular, porque a poeta é variegada e é mais que mulher: encarna a própria ventania e as águas das orixás que reverencia.
Que bonito te ler, Marcelina. Ficar nas tuas águas como o tempo-tanto. Talvez porisso minha leitura tenha essa l e n t i d ã o. Aproveitar e agradecer ainda mais o tempo-tanto.
Finda esta carta, só a poema não quer findar.
nina rizzi