O diálogo possível entre watchmen, romance gráfico de alan moore e dave gibbons, e a teoria da liter

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Revista da Graduação Vol. 5

No. 2

2012

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Seção: Faculdade de Letras

Título: O DIÁLOGO POSSÍVEL ENTRE WATCHMEN, ROMANCE GRÁFICO DE ALAN MOORE E DAVE GIBBONS, E A TEORIA DA LITERATURA Autor: Jeferson de Moraes Jacques

Este trabalho está publicado na Revista da Graduação. ISSN 1983-1374 http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/graduacao/editor/submission/12425


PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE LETRAS

JEFERSON DE MORAES JACQUES

O DIÁLOGO POSSÍVEL ENTRE WATCHMEN, ROMANCE GRÁFICO DE ALAN MOORE E DAVE GIBBONS, E A TEORIA DA LITERATURA

Porto Alegre 2012


JEFERSON DE MORAES JACQUES

O DIÁLOGO POSSÍVEL ENTRE WATCHMEN, ROMANCE GRÁFICO DE ALAN MOORE E DAVE GIBBONS, E A TEORIA DA LITERATURA

Monografia apresentada à Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul como requisito para a obtenção do grau de licenciatura do curso de Letras.

Professor orientador: Maria Tereza Amodeo

Porto Alegre 2012


JEFERSON DE MORAES JACQUES

O DIÁLOGO POSSÍVEL ENTRE WATCHMEN, ROMANCE GRÁFICO DE ALAN MOORE E DAVE GIBBONS, E A TEORIA DA LITERATURA

Monografia apresentada à Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul como requisito para a obtenção do grau de licenciatura do curso de Letras.

Aprovada em _____ de __________________ de _________.

BANCA EXAMINADORA:

Profª. Drª. Maria Tereza Amodeo

________________________________________

Prof. Dr. Ricardo Barberena

________________________________________

Prof. Dr. André Fagundes Pase

________________________________________

Porto Alegre 2012


Para Andressa... Por todo o amor.


AGRADECIMENTOS

Agradeço... À arte dos humanos primitivos que, dentro das limitações impostas por sua linguagem ainda não muito desenvolvida, sentiram a necessidade de registrar imagens de seu cotidiano às voltas com a sobrevivência... A este belo legado de desenhos e algarismos sequenciais nas frias pedras, que, tanto tempo depois, foram reconhecidos como os primórdios da nona arte... Àqueles profissionais (ou não) que, nesta arte, nos fazem acreditar, por meio de seus personagens, que um mundo melhor ainda é possível... A estes personagens (não necessariamente os que vestem uniformes e capas), por expressarem cada vez mais a vontade de seus criadores em vê-los lidos e analisados sem a as travas da ignorância e do preconceito, que escondem as belezas da arte séria da qual eles fazem parte... Aos mestres desenhistas Lehgau-Z Carvalho e Daniel HDR e o grande Roberto Guedes, pela constante contribuição para as narrativas seqüenciais e pela preciosa ajuda bibliográfica... A todos os professores do curso de Letras da PUCRS e da FEEVALE que, de alguma forma, contribuíram para minha formação. À minha querida orientadora, professora Maria Tereza Amodeo, por ter lido tantas vezes meu trabalho, e ter, desde o início, acreditado e apoiado minhas ousadas ideias. Obrigado por ter me auxiliado a escrever com propriedade sobre algo de que tanto gosto desde sempre! Aos meus pais, pelos gibis, lápis de cor e folhas brancas que me deram na infância, e por todo auxilio durante a longa ―Era de Ouro‖ chamada graduação... Aos poderosos amigos e colegas do meu convívio, aos quais prefiro presentear pessoalmente com um abraço em vez de arriscar citar seus nomes! À Andressa Mueller, minha companheira de remo... O que sinto por ela definitivamente ―não está no gibi‖, não cabe nos balões de fala de todas as histórias em quadrinhos do mundo.


Uma das chaves do meu pensamento sempre foi a crença quase fanática de que eu estava comprometido com uma forma de arte literária. Will Eisner (1917 – 2005)


RESUMO

Histórias em quadrinhos são um popular meio de entretenimento. Do início do século XX, ocasião do aumento de sua popularidade e circulação, até meados dos anos 70, eram consideradas um produto puramente mercadológico. Porem, autores dispostos a atrair a atenção dos leitores de literatura começaram a publicar narrativas gráficas que possuem características que as aproxima mais de obras literárias do que do formato convencional de quadrinhos: são os chamados romances gráficos. Embora características peculiares dos quadrinhos, tais como a presença da arte gráfica obrigatória em sua construção, os impeça de serem obras literárias, eles apresentam diversos exemplos de publicações que podem ter sua estrutura estudada pela teoria da literatura. O presente trabalho é um estudo da história em quadrinhos de super-heróis Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, na perspectiva da teoria do romance, a fim de ampliar o âmbito do estudo da teoria da literatura para os romances gráficos.

Palavras-chave: Watchmen. Romance gráfico. Literatura. Alan Moore. Dave Gibbons.


ABSTRACT

Comic books are a popular means of entertainment. From the early twentieth century, moment of their increase in popularity and circulation, until the mid-70s, they were considered purely as a product marketing. However, authors wanting to attract the attention of readers of literature began publishing graphic narratives which have characteristics that make them be closer to literature than the standard comic format: the graphic novels. Although specific features of the comics, such as the presence of graphics required in their construction, prevents them from being literary, they present several examples of publications which can have their structure studied by the theory of literature. The present work is a study of comic book superheroes Watchmen, by Alan Moore and Dave Gibbons, in view of the theory of the novel in order to broaden the scope of the study of literary theory to graphic novels.

Key words: Watchmen. Graphic novel. Literature. Alan Moore. Dave Gibbons.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1– Balões: o audível visível .............................................................................. 21 Figura 2– Exemplo de ―colchete de fala‖ ..................................................................... 21 Figura 3 – Primeiros balões de fala em Yellow Kid .................................................... 22 Figura 4– Enquadramento: conter a visão do leitor .................................................... 22 Figura 5– Onomatopeias: imitar o som por escrito ..................................................... 23 Figura 6 – Arte seqüencial no Egíto: a tumba de Menna ........................................... 25 Figura 7 – Quadro 10 da narrativa visual ―O progresso de uma prostituta‖, de William Hogarth................................................................................................. 26 Figura 8– Trecho de M. Vieux-Bois, de Rudolph Töpffer ........................................... 27 Figura 9 – The Phantom, primeiro herói mascarado .................................................. 30 Figura 10 – Primeira edição da revista Action Comics, em 1938............................... 31 Figura 11 – Techo de The Spirit, de Will Eisner.......................................................... 33 Figura 12 – O Quarteto Fantástico, de Lee e Kirby .................................................... 35 Figura 13 - Wolverine, de Lein Wein ........................................................................... 38 Figura 14– Capa de Um contrato com Deus, romance gráfico de Will Eisner .......... 52 Figura 15 – Capa de X-Men – O conflito de uma raça ............................................... 55 Figura 16– Capas de Watchmen ................................................................................. 57 Figura 17– Sutilezas visuais 1 ..................................................................................... 66 Figura 18– Sutilezas visuais 2 ..................................................................................... 67 Figura 19– Sutilezas visuais 3 ..................................................................................... 68 Figura 20– Hollis Mason (Coruja I) .............................................................................. 74 Figura 21 – Dan Dreiberg (Coruja II) ........................................................................... 74 Figura 22 – Edward Blake (Comediante) .................................................................... 75 Figura 23 – Adrian Veidt (Ozymandias) ...................................................................... 75 Figura 24 – Sally Juspeczyc (Espectral I) ................................................................... 76 Figura 25 - Laurie Juspeczyc (Espectral II) ................................................................. 76 Figura 26 – Dr. Manhattan ........................................................................................... 77 Figura 27 – Valter Kovacs (Rorschach)....................................................................... 79 Figura 28 – Personagens secundários ........................................................................ 82 Figura 29 – Justaposição das duas histórias .............................................................. 83


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10

2 TEMPOS (PÓS) MODERNOS: A CONTEMPORANEIDADE ................................ 13 2.1 ―E VIU DEUS QUE A LUZ ERA BOA‖ – INVENÇÕES DO SÉCULO XIX ........... 13 2.2 DA LÂMPADA AO COMPUTADOR: A CULTURA DAS MASSAS ...................... 15 2.3 OS VÍNCULOS... DA VIDA AO COMPUTADOR .................................................. 17

3 QUADRINHOS: MUITO ALÉM DE BALÕES E ONOMATOPEIAS ....................... 20 3.1 DE DENTRO DAS CAVERNAS: SHAZAM! – A ORIGEM .................................. 24 3.1.1 É um pássaro? É um avião? – A Era de Ouro ............................................... 29 3.1.2 Perseguição e gibis “em chamas!” - a Era de Prata .................................... 33 3.2.3 A era de bronze... Ou de adamantiun?........................................................... 36

4 O ROMANCE: DA EPOPÉIA AO CONTEMPORÂNEO ......................................... 39 4.1 ―POR ISSO EU LEIO E RELEIO‖ .......................................................................... 43 4.2 RELOJOEIROS DO ROMANCE ........................................................................... 46

5 ROMANCES GRÁFICOS: UM VERDADEIRO CONTRATO COM DEUS ............ 51

6 WATCHMEN: SOB O CAPUZ ................................................................................. 56 6.1 AS PARTES DO RELÓGIO ................................................................................... 64 6.1.1 Os tempos mudando ........................................................................................... 69 6.1.2 Quem vigia os vigilantes? ............................................................................... 73 6.1.3 Na cidade, no Antártida, no alto mar, em Marte...! ....................................... 80 7 NADA CHEGA AO FIM... (OU CONSIDERAÇÕES “FINAIS”) ............................. 84

REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 88


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INTRODUÇÃO

Literatura e histórias em quadrinhos tiveram uma origem comum: o ato de contar histórias. Muito antes da escrita, eram usados desenhos toscos e algarismos, cujo formato se assemelhava às letras do futuro alfabeto de cada cultura. Os romances gráficos são uma forma mais nítida de aproximação entre quadrinhos e literatura. O romance gráfico é, ainda, um gênero em ascensão. Embora os quadrinhos não sejam considerados literatura por excelência e tampouco tenham pretensão de o ser, justamente por serem outra forma de arte, é relevante observar que eles parecem buscar leitores de literatura. O fato de alguns romances gráficos terem concorrido e até ganhado prêmios literários prova que esta forma de contar histórias merece atenção dos estudiosos da literatura. Embora as histórias em quadrinhos sejam lembradas como um subgênero por pessoas que as desconhecem, ainda antes da ascensão dos romances gráficos elas já eram, na condição de canal midiático e de fácil acessibilidade, tal qual o cinema, um modo sofisticado de emular – ou recriar – a realidade. O trabalho não tem a intenção de colocar uma forma de arte inferior próxima a uma forma de arte maior, ou vice-versa. Não há concorrência, tampouco comparação, em qualquer aspecto. É apenas uma forma de ampliar a área de atuação dos estudos de uma arte para exemplos singulares pertencentes a outra arte. No mundo contemporâneo, quadrinhos são uma forma elaborada de narrativa, passível de análise da Teoria da Literatura, e é justamente neste quesito em que é direcionado o foco deste trabalho. A fim de contextualizar o romance gráfico Watchmen em seu tempo, espaço e valores em evidência, bem como apresentar um possível perfil do leitor contemporâneo, é feito um estudo sobre a contemporaneidade. Por meio de duas obras de Edgar Morin (Cultura de massas no século XX e O desafio do século XXI : religar os conhecimentos) e uma de Fredric Jameson (Pós Modernismo – A lógica cultural do capitalismo tardio), é feita uma revisão histórica, desde a invenção e a popularização da energia elétrica e a invenção da fotografia e da imprensa. As influências destes elementos no comportamento e nos valores do homem contemporâneo também são analisados, tendo como base a obra Amor líquido, do filósofo Zygmunt Bauman.


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Após, com a base teórica de duas obras de Scott McCloud (Desvendando os Quadrinhos e Reinventando os quadrinhos), duas obras de Will Eisner (Quadrinhos e arte-sequencial e Narrativas gráficas) duas de Álvaro de Moya (História das histórias em quadrinhos e Shazam!), uma de Roberto Guedes (A Era de Bronze dos super-heróis), é feita uma revisão sobre os quadrinhos: dos primeiros registros da arte sequencial na história da humanidade, passando pelas partes de sua estrutura, as eras de Ouro, Prata e Bronze, até o surgimento, na metade dos anos 70, dos romances gráficos, que têm Watchmen, do escritor Alan Moore e o ilustrador Dave Gibbons, o expoente máximo de desconstrução e renovação do próprio gênero. Em seguida, apresenta-se uma revisão sobre a história e a construção do gênero literário romance, do qual este trabalho visa a aproximar Watchmen. Como principais fundamentações teóricas, foram usadas as obras A criação literária: prosa I, de Massaud Moisés, Aspectos do romance, de Edward Morgan Forster, e Poética, de Aristóteles.

A escolha de Aristóteles foi feita devido ao conceito de

verossimilhança, desenvolvido por ele ao falar de tragédia e epopeia e usado ainda na contemporaneidade. A escolha de Moisés e Forster foi feita justamente com o objetivo de aproximar Watchmen dos conceitos básicos do romance, a fim de mostrar que o romance gráfico não possui apenas características contemporâneas, e sua narratividade não assemelha apenas às de romances contemporâneos. Watchmen carrega consigo aspectos romanescos mais clássicos, ao mesmo tempo em que tem características inovadoras, visto que não é um exemplo de ―substituição‖ do romance, mas uma possível derivação dele. Após explanação sobre as especificidades do romance, que, com o tempo foram se incorporando em algumas produções em quadrinhos, é feita uma revisão do gênero romance gráfico: origem do termo, características principais e primeiros romances gráficos, até chegar em Watchmen, tendo como principal fonte o livro A era de Bronze dos Super Heróis, de Roberto Guedes. Por fim, é feito o trabalho principal: a aproximação do romance gráfico Watchmen com o gênero romance. Novamente com base em Massaud Moisés e Edward Forster, e com citações do próprio Watchmen, é feito uma análise de suas partes constitutivas (tempo, personagens e espaço), de sua forma de criar a realidade, e da junção harmônica entre estes aspectos, o que é muito próximo do que os autores postulam a respeito da estrutura e da narratividade do romance.


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Assim, cumpre-se o objetivo principal deste trabalho: contribuir para ampliar o âmbito dos estudos da teoria da literatura para os romances gråficos.


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TEMPOS (PÓS) MODERNOS: A CONTEMPORANEIDADE Faço parte do mundo e, no entanto, ele me torna perplexo. (Charles Chaplin)

Antes de discorrer a respeito da definição das histórias em quadrinhos, sua origem e história até suas inovações estéticas e literárias mais recentes, é necessário lembrar que os quadrinhos, após uma evolução de milhares de anos das paredes das cavernas para o papel impresso e os meios virtuais - são, como disse Luis Gasca (no prefácio da obra Shazam!, de Álvaro de Moya), um ―alimento de consumo de massa para os cidadãos de todo mundo‖ (1977, p. 7). Logo, quadrinhos são muito mais associados com a pós-modernidade e com suas diversas modalidades narrativas e gráficas do que com a Pré-história, período que antecede a invenção da escrita. Assim, é necessário fazer uma breve reflexão sobre a contemporaneidade - relacionada ao período pós-Revolução Industrial e eventos importantes do século XIX - e a cultura de massas, a fim de situar e contextualizar os quadrinhos em seu(s) tempo(s). Conforme François Caron (apud MORIN, 1999, p. 358), ―há duas experiências que são de natureza a impressionar os espíritos: o da emergência, nos anos 1800-1900, das tecnologias da eletricidade; a da emergência, nos anos 1960-1980, das tecnologias da informática.‖ A seguir, uma breve análise destes tópicos.

2.1

―E VIU DEUS QUE A LUZ ERA BOA‖ – INVENÇÕES DO SÉCULO XIX A gente não quer só comida. A gente quer comida, diversão e arte. (Comida – Titãs, grupo musical brasileiro)

Até meados do século XIX, período caracterizado por invenções que redefiniram o comportamento do homem para o próximo século, coisas hoje comuns como lazer, boas condições de vida, bem-estar em geral e até mesmo oportunidades de alfabetização, bem como o acesso à cultura (neste caso, conhecimento científico-acadêmico), eram restritos às pessoas pertencentes à


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classe burguesa. Para os agricultores, havia o trabalho rural que, com poucos recursos e baixa rentabilidade, era caracterizado pela longa e fatigante jornada de trabalho, com grande exigência de esforço físico. O trabalho era não mais que um a mera fonte provedora de recursos mínimos necessários para a sobrevivência. Todavia, o surgimento de itens que hoje, de tão essenciais passaram a ser comuns a ponto de sequer serem percebidos, foram, à época, o impulso para a descentralização de todos os fatores citados acima, e da tecnologia. Um exemplo é a expansão da eletricidade, que ampliou a visão de presente e de futuro do homem do século XIX a partir da invenção da lâmpada elétrica por Thomas Edison em 1879. Tal evento redefiniu rapidamente o ritmo de vida urbano: A iluminação elétrica dava respostas apropriadas a várias aspirações essenciais da sociedade do século XIX. Respondia a uma exigência social forte. Era sinônimo de conforto e higiene. A luz parecia trazer segurança às cidades. Tornou-se o acompanhamento necessário das festas. Não se substituía às outras formas de iluminação. Tratava-se de um produto novo, criador de um modo de vida inteiramente inédito. Respondia às expectativas de uma sociedade que construía, por tentativas e erros, um sistema de valores e de comportamentos que iria ser os do século XX. (CARON, apud MORIN, 1999, p. 363)

Gradativamente, tal modo de vida passou a ser mais acessível à população mais pobre. O surgimento das primeiras máquinas elétricas como substituição às máquinas a vapor iniciou um momento caracterizado pela mecanização do trabalho. O homem, aos poucos, estava deixando de fazer toda a parte braçal do trabalho em virtude da presença de tais mecanismos que eram operáveis por ele. Este equilíbrio, ou nivelamento de condições de vida, impulsionou o que Leo Bogart (apud MORIN, 1999, p. 43) chama de ―padronização dos gostos e interesses‖. Assim, uma parcela da população que antes só conhecia o trabalho passou a ter acesso a atividades antes disponíveis apenas pela burguesia, e passou a almejar para si o que pensava ser o ideal de ser um cidadão completo: ter reais condições de poder realizar seus desejos que não estavam diretamente relacionados ao mero ato de poder alimentar-se, mas de poder desfrutar de prazeres que julgava serem essenciais à felicidade. Assim, surge a cultura de massas.


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2.2

DA LÂMPADA AO COMPUTADOR: A CULTURA DAS MASSAS Não importa a contradição, o que importa é televisão. Dizem que não há nada que você não se acostume. Cala a boca e aumenta o volume, então. (A melhor banda de todos os tempos da última semana – Titãs, grupo musical brasileiro)

Antes de referir-se ao termo cultura de massas em si, é necessário apontar a definição de Philipe Quéau (apud MORIN, 1999, p. 403) para a palavra ―cultura‖: ―É aquilo que pode dar a cada pessoa razões para viver e para esperar.‖ Sendo assim, tendo tal potencial, a cultura que estiver limitada apenas à determinada classe social, acaba beneficiando-a enquanto forma provedora de felicidade, pois, ainda segundo o autor, uma cultura fechada, seria um verdadeiro contra-senso, visto que ela, tal qual a Natureza, vive de respirações, de fluxos, de fôlegos, de fecundações e de mestiçagens. A cultura das massas, de acordo com Caron (apud MORIN, 1999, p. 363), surgiu a partir de ―aspirações à saúde, ao conforto, aos lazeres‖. O autor pontua que a cultura das massas manifestou-se, primeiramente, nas ―nas categorias sociais superiores‖. Contudo, a tecnologia muito precocemente desenvolveu-se para ―democratizar‖ novos produtos, colocando-os à disposição do maior número possível de consumidores. Este seria o início da sociedade de consumo de massa. Morin (1997, p. 14) compartilha da mesma visão acerca da cultura de massas, quando diz que ela é a cultura ―produzida segundo as normas maciças da fabricação industrial, propagadas pelas técnicas de difusão maciças (...), destinandose a uma massa social, isto é, um aglomerado gigantesco de indivíduos compreendidos aquém e além das estruturas internas da sociedade (classes, famílias, etc.).‖ Tais produções são movidas pelos interesses desses indivíduos em almejar realizações pessoais, a fim de alcançarem a felicidade, cujos significados, ainda segundo o autor (1997, p. 125), ―variam segundo as civilizações‖, e, por ter como base um ideal de vida fundado no direito de ter coisas outrora fora de alcance, então vistas como fundamentais, formam uma ―figura particular e complexa da felicidade: projetiva e identificativa simultaneamente.‖


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Assim, ―a felicidade é mito, isto é, projeção imaginária de arquétipos de felicidade, mas é ao mesmo tempo idéia-força, busca vivida por milhões de adeptos.‖ O bem-estar, o lazer, a felicidade, passaram, então, a ser vistos como ideais, porem, a referência daquilo que se desejava ter e/ou ser eram os até então privilégios burgueses, cada vez mais acessíveis. Como uma continuidade às mudanças promovidas pela eletricidade e as primeiras máquinas elétricas, o acesso ao cinema foi fundamental para a reconfiguração do ritmo de vida urbano. A fotografia já não mais refletia o ritmo de vida, que se tornou mais acelerado com a ascensão das máquinas elétricas e dos trens, veículos mais rápidos do que o que havia para o uso das pessoas, que era de tração animal. O final do século XIX é marcado pelas invenções e pelo seu crescente acesso a todas as pessoas. As primeiras três décadas do século XX marcam a conquista de espaço do cinema, e Morin (1997, p. 89) refere-se ao ano de 1930 como o momento em que ―a cultura de massa se desenvolveu em suas características originais (...), primeiramente nos Estados Unidos.‖ Opções de lazer e conforto para mais gente redefiniu, também, os interesses. Não mais importava apenas vestir-se e alimentar-se. A individualização passou a ganhar maior espaço. A modificação das condições de vida sob o efeito das técnicas, a elevação das possibilidades de consumo, a promoção da vida privada correspondem a um novo grau de individualização da existência humana. A cultura de massas se constitui em função das necessidades individuais que emergem. Ela vai fornecer à vida privada as imagens e os modelos que dão forma a suas aspirações, (...) resgata uma evasão por procuração em direção a um universo onde reinam a aventura, o movimento, a ação sem freio, (...), a liberdade no sentido individual, afetivo, íntimo, da realização das necessidades ou instintos inibidos ou proibidos. (MORIN, 1997, p. 90)

O acesso à tecnologia, desde o início do século XX até agora, início do século XXI, apesar de estar longe de ser justo com todas as pessoas, apresenta certo grau de equilíbrio entre as classes. Hoje, conectar-se à internet já é algo mais fácil do que o fora há pelo menos uma década, bem como adquirir eletro-eletrônicos. E, também longe de ser o ideal, o poder aquisitivo da população de muitos países em desenvolvimento aumentou, a exemplo da realidade brasileira, na qual cidadãos


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com recursos

básicos

de moradia

e sustento conseguem

pagar

longos

financiamentos de automóveis, e arcar com as despesas de possuir veículo próprio. No Brasil, em apenas uma década (2000-2010), o número de automóveis nas ruas aumentou em 119 % 1, considerando-se o fato de o automóvel ter demorado tanto tempo, durante o século XX, para estar ao alcance dos consumidores com menor renda. Além dos automóveis, aparelhos como a televisão, que durante a maior parte do século XX foi a principal motivadora para a consolidação da sociedade de consumo, atualmente estão presentes na maioria das residências. A rapidez das transmissões do jornal moderno, a implantação das salas de cinema nas cidades e depois no campo e, sobretudo, a telecomunicação que operam rádio e televisão tornam a cultura de massa onipresente. Ela está em toda parte para todos, acompanha até o solitário que leva seu transistor a tiracolo. (MORIN, 1997, p. 61)

Quanto à informática, tem um crescimento que, dia após dia, fica mais acelerado. Nos anos 60, ela passou a apenas substituir recursos pertencentes à mecanografia, que, de acordo com Caron (apud MORIN, 1999, p. 360), ―perante a informática, era uma tecnologia saturada, tal como fora a máquina a vapor perante a eletricidade e a turbina nos anos 1890 e 1900‖. O primeiro computador pessoal, datado de 1981, teve seu momento de ascensão na metade dos anos 90, e hoje já perde espaço para dispositivos portáteis que, em uma velocidade espantosa, vão se tornando obsoletos a cada novo modelo lançado. Enquanto o intervalo de tempo entre a invenção de dois itens tão essenciais para a vida moderna, no caso o telefone por Alexander Grahan Bell e a primeira lâmpada elétrica por Thomas Edison, foi de três anos, hoje recursos tecnológicos já são substituíveis de um dia para outro, e estão ao alcance da população que antes carecia de melhores condições de vida. E, naturalmente, o homem foi, com o tempo, estendendo esta forma descartável de vida para além do material: suas relações humanas. 2.3 OS VÍNCULOS... DA VIDA AO COMPUTADOR

1

Dados do Departamento Nacional de Trânsito (http://g1.globo.com/carros/noticia/2011/02/frota-deveiculos-cresce-119-em-dez-anos-no-brasil-aponta-denatran.html - acessado em 05/05/2012, às 17:45.)


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Ele não está preocupado com o ontem, sabe que a constante mudança está agora aqui. Ele é nobre o bastante para saber o que é certo, mas fraco o bastante para não escolhê-lo. Ele é sábio o bastante para ganhar o mundo, mas tolo o bastante para perdê-lo. Ele é um homem do novo mundo. (New World Man – Rush, grupo musical canadense)

O comportamento do homem contemporâneo, formado pela horizontalização de recursos tecnológicos, de acordo com Morin, caracteriza-se sempre pela busca daquilo que é considerado, no momento, como a melhor forma de felicidade: O primeiro motor da moda é, evidentemente, a necessidade de mudança em si mesma da lassidão do já-visto e da atração do novo. O segundo motor da moda é o desejo de originalidade pessoal por meio da afirmação dos sinais que identificam os pertencentes à elite. Mas esse desejo de originalidade, desde que a moda se espalhou, se transforma em seu contrário; o único, vira padrão. E é então que a moda se renova aristocraticamente, enquanto se difunde democraticamente. (1997, p. 142)

Tais buscas, norteadas pela renovação rápida daquilo que, em um dado instante é o necessário para a felicidade, influenciou o comportamento do homem contemporâneo não só nas escolhas e aquisições, mas também no estabelecimento e manutenção de deus vínculos humanos. A forma de relacionar-se com outras pessoas já é uma extensão da forma de relacionar-se com as coisas adquiridas ou ainda almejadas. Conforme Zygmunt Bauman: Consideradas defeituosas ou não "plenamente satisfatórias", as mercadorias podem ser trocadas por outras, as quais se espera que agradem mais, mesmo que não haja um serviço de atendimento ao cliente e que a transação não inclua a garantia de devolução do dinheiro. Mas, ainda que cumpram o que delas se espera, não se imagina que permaneçam em uso por muito tempo. Afinal, automóveis, computadores ou telefones celulares perfeitamente usáveis, em bom estado e em condições de funcionamento satisfatórias são considerados, sem remorso, como um monte de lixo no instante em que "novas e aperfeiçoadas versões" aparecem nas lojas e se tornam o assunto do momento. Alguma razão para que as parcerias sejam consideradas uma exceção à regra? (2004, p. 14)


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Tal extensão do vínculo material para o vínculo afetivo referida pelo autor consolida-se com o uso da informática para vínculos amorosos e fraternos. As redes sociais, hoje, já são grandes promovedoras de encontros e recuperação de vínculos até então tidos como distantes, embora a manutenção destas conexões humanas seja diferente da forma de relacionar-se na época anterior ao surgimento da cultura de massas. Ainda, de acordo com o autor: A proximidade não exige mais a contigüidade física; e a contigüidade física não determina mais a proximidade. (...) O advento da proximidade virtual torna as conexões humanas simultaneamente mais freqüentes e mais banais, mais intensas e mais breves. As conexões tendem a ser demasiadamente breves e banais para poderem condensar-se em laços. (...) Diferentemente da antiquada proximidade topográfica, ela [conexão humana] não exige laços estabelecidos de antemão nem resulta necessariamente em seu estabelecimento. "Estar conectado" é menos custoso do que "estar engajado" — mas também consideravelmente menos produtivo em termos da construção e manutenção de vínculos. (BAUMAN, 2004, p. 38-39)

Contudo, é importante destacar que a paulatina evolução quanto ao acesso à tecnologia, e esta em si, não são culpadas pelo empobrecimento das relações humanas. A forma de usar a tecnologia é que configura os relacionamentos na contemporaneidade: tanto entre as pessoas, como entre elas na condição de consumidoras com o que é culturalmente consumido. O homem contemporâneo, que navega pela internet, assiste a filmes, telenovelas, lê jornais, revistas, quadrinhos, é diferente do homem do início do século XX, que era encantado com a eletricidade, com as máquinas elétricas, e com a televisão. E difere mais ainda do homem do século XIX, momento em que recursos midiáticos eram escassos e pouco – ou nada – acessíveis. Assim, as modalidades culturais – cinema, literatura, música, quadrinhos etc. – tendem a acompanhar sua época com respectivas tendências, e, assim a apresentar cada vez mais mudanças substanciais em seus novos produtos.


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QUADRINHOS: MUITO ALÉM DE BALÕES E ONOMATOPEIAS Essencialmente, as histórias em quadrinhos são uma forma de arte voltada para a emulação da experiência real. (Will Eisner)

Histórias em quadrinhos, mesmo com a existência de diversas mídias, são um veículo de comunicação muito popular. Feitas tanto para fins de entretenimento como para servir de manuais de instruções, são caracterizadas pelo baixo custo e fácil acessibilidade. São encontradas em bancas e livrarias. Por esses motivos, parecem ser fáceis de serem definidas. De forma geral, podem ser narrativas impressas ou digitais que fazem uso de imagens sequenciais e balões de fala, com o objetivo de entretenimento, informação, ou ambos. Porém, análises mais criteriosas começaram a ser feitas, e, nas últimas três décadas, importantes obras teóricas foram produzidas para explicar as especificidades do gênero. A mais conhecida chama-se Quadrinhos e arte sequencial2, de Will Eisner. De acordo com o autor (1989, p. 26), os balões são um ―recurso desesperado‖, o ato de ―combinar aquilo que é ouvido com o que é visto como resultando em uma imagem visualizada do ato da fala.‖ Eles são o ato de tornar audível o que não ecoa; dar, por meio de texto escrito, consciência e voz sonora e própria a personagens desenhados.

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Neste livro, baseado inteiramente nas aulas que por muitos anos ministrara na School of Visual Art, de Nova Iorque, o autor fala sobre a construção dos quadrinhos em geral, dos principais elementos que as compõem, quais sejam: enquadramento, tempo na narrativa, balões de fala, onomatopeias. Cenas de sua principal criação, The Spirit, são usadas no livro, como exemplo em todas as explicações sobre a construção e a linguagem dos quadrinhos.


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Figura 1– Balões: o audível visível

(EISNER, 1989, p. 26-27)

A primeira versão do balão era simplesmente uma fita (filatérico) que emergia da boca do emissor – ou (nos frisos maias) chaves apontando para a boca. Com o desenvolvimento do balão, também ele foi se aprimorando, e deixou de ter apenas a forma de um requadro. Adquiriu significado e passou a contribuir para a narração. (EISNER, 1989, p. 27) Figura 2– Exemplo de “colchete de fala”

(EISNER, 1989, p. 27)

A história em quadrinhos Yellow Kid (O menino amarelo), de Richard Outcault, lançada em 1895, protagonizada por um menino careca e de orelhas grandes que usava uma longa camisola amarela com frases críticas sobre o contexto da época, foi o primeiro trabalho a usar os balões de fala da forma como se conhece hoje.


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Figura 3 – Primeiros balões de fala em Yellow Kid

(MOYA, 1986, p. 22)

Em relação ao enquadramento, Eisner (1989, p. 43-44) diz que ―os painéis atuam para conter a visão do leitor. (…) Somando-se à sua função primária como moldura, a própria borda do painel pode ser usada como parte da ‗linguagem‘ nãoverbal da arte sequencial‖. Assim, a disposição, a forma e o tamanho dos quadros e dos balões, ou mesmo a ausência deles, é sempre feita por fins propositais na narrativa, tais como seu tempo.

Figura 4– Enquadramento: conter a visão do leitor

(EISNER, 1989, p. 47)

As onomatopeias, recurso também utilizado na literatura, são outra característica presente nos quadrinhos, mesmo em momentos nos quais o texto verbal não está presente. É a forma de fazer o leitor ouvir por meio de linguagem verbal-escrita. Álvaro de Moya, em seu livro História das histórias em quadrinhos, as define:


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As onomatopeias são palavras imitativas, isto é, palavras que pretendem imitar, através dos fonemas de que se compõem, certos ruídos como o grito ou o canto dos animais, o som dos instrumentos musicais, o barulho das máquinas, o ruído que acompanha os fenômenos da natureza, etc. A onomatopeia é sempre uma aproximação e nunca uma reprodução exata, como nem de outra forma poderia ser. Os fonemas da voz humana diferem no seu timbre e noutras qualidades dos ruídos da natureza que procuram imitar. (1977, p. 270) Figura 5– Onomatopeias: imitar o som por escrito

(EISNER, 1989, p. 18)

Elementos como os balões, os quadros e as onomatopeias não são suficientes para definir a forma em questão. Como arte, o gênero é mais abrangente. No livro Quadrinhos e arte-sequencial, Will Eisner utilizou pela primeira vez a expressão ―arte sequencial‖ para referir-se às histórias em quadrinhos. Tal termo, mesmo importante enquanto única forma até então de referir-se ao gênero como manifestação de arte, era apenas uma nomenclatura, e não uma definição completa, e recebeu uma reformulação por Scott McCloud, em seu livro Desvendando os quadrinhos, publicado originalmente em 1993. Devido ao fato de outras mídias tão diferentes, como filmes e animações, poderem também ser consideradas ―arte sequencial‖, McCloud (2005, p. 9) remodelou o conceito de histórias em quadrinhos, de forma a aproximá-lo de uma definição de dicionário: ―Histórias em quadrinhos s. pl., usado com um verbo. 1. Imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada, destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador.‖ Os quadrinhos, por serem um ponto de partida para outras leituras e estudos, fazem com que tal definição possa também tornar-se incompleta e passar por


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reformulações com o passar dos anos. Porem, hoje é a que abrange todas as modalidades de histórias em quadrinhos que conhecemos até então: o gibi, as tiras de jornal, manuais de instruções, e os romances e novelas gráficos.

3.1

DE DENTRO DAS CAVERNAS: SHAZAM! – A ORIGEM Desde os primórdios até hoje em dia/ O homem ainda faz o que o macaco fazia. (HomemPrimata - Titãs, grupo musical brasileiro)

A origem dos quadrinhos está diretamente ligada à origem do ato de contar histórias. Antes mesmo da fala e da escrita, os seres humanos primitivos já gravavam imagens sequenciais em árvores, pedras e paredes internas das cavernas para narrar fatos importantes, geralmente ligados a atividades cotidianas, tais como uma caça bem sucedida, uma boa colheita, ou ainda algum ato heroico que tenha sido importante para a sobrevivência. Logo, a afirmação de Eisner (2005, p. 11 e 12), de que os primeiros contadores de histórias, provavelmente, usaram imagens grosseiras com gestos e sons vocais que evoluíram até se transformarem em linguagem, evidencia que a origem das narrativas sequenciais está muito ligada com as primeiras manifestações humanas de cultura. Dentro da teoria da literatura, Lajolo segue a mesma linha de pensamento quando discorre sobre a origem da literatura: Quando o homem não era mais símio, mas ainda não era completamente humano, no começo de tudo, ele se maravilhou com a linguagem (...). Bichos, plantas, rios e montanhas receberam nomes. Foram reproduzidos em desenhos, foram simbolizados por sons e sinais gráficos. Completou-se a transformação: o homem não era mais um ser entre outros seres. (1984, p.33)

Tal princípio fundamental de criação, passando por formatos diferentes ao longo do tempo, chegou ao que hoje conhecemos como histórias em quadrinhos. Bons exemplos de ancestrais dos quadrinhos, de acordo com McCloud (2005, p. 1016), são manuscritos datados da época pré-colombiana, no continente Americano, e


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a tapeçaria francesa de Bayeux, que, em 70 metros de imagens sequenciais, conta e detalha a conquista normanda da Inglaterra em 1066. Também há exemplos de narrativas sequenciais nas pinturas egípcias, como, por exemplo, a cena pintada há trinta e dois séculos para a tumba de Menna, um antigo escriba egípcio. Nela, há a narrativa detalhada de operários que colhem o trigo e, em seguida, separam-no da palha, sob a supervisão do próprio Menna. As presenças de uma cena de espancamento dos fazendeiros atrasados, e outra dos escribas reais registrando a produção de trigo em seus papiros, são um exemplo claro da afirmação de Eisner (2005, p.11-12), de que o ato de contar histórias está enraizado no comportamento social dos grupos humanos – antigos e modernos.

Figura 6 – Arte seqüencial no Egíto: a tumba de Menna

(MCCLOUD, 2005, p. 14)

Ainda de acordo com McCloud (2005, p.16-17), depois das peças antigas de tapeçaria, há as pinturas sequenciais, que tiveram como principal expoente o pintor satírico inglês William Hogarth (10/11/1697 – 26/10/1764), cujos trabalhos foram o último passo para que, posteriormente, fossem usadas as imagens combinadas com texto para a confecção de narrativas sequenciais.


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Figura 7 – Quadro 10 da narrativa visual “O progresso de uma prostituta”, de William Hogarth3

Em meados do século XIX, o professor suíço Rodolphe Töpffer (1799 – 1846) foi o primeiro a compor narrativas gráficas satíricas, que tinham combinação interdependente entre palavras e figuras. Töpffer conseguia condensar, por meio de detalhes em um só quadro, diversas informações daquilo sobre o qual queria discorrer por meio da narrativa sequencial. Logo, aspectos literários sutis que são vistos hoje como principais marcas de qualidade nos romances gráficos, já eram utilizados por Töpffer no início de sua carreira. Ele define seu próprio método de criação: Ele se compõe de uma série de desenhos autografados em traço. Cada um destes desenhos é acompanhado de uma ou duas linhas de texto. Os desenhos, sem este texto, teriam um significado obscuro, o texto, sem o desenho, nada significaria. O todo, junto, forma uma espécie de romance, um livro que, falando diretamente aos olhos, se exprime pela representação, não pela narrativa. Aqui, como um conceito fácil, os tratamentos de observação, o cômico, o espírito, residem mais no esboço propriamente dito, do que na ideia que o croquis desenvolve. (MOYA, 1986, p. 13)

3

Imagem disponível em http://www.zazzle.pt/a_orgia_placa_iii_dos_progressos_de_um_ancinho_poster228910210568891566, acessado em 31/08/2012, às 00:01.


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Embora os quadrinhos modernos já apresentem sequências narrativas gráficas de qualidade sem a presença do texto, a definição de Töpffer já era, com efeito, um princípio básico do gênero que conhecemos hoje como romance gráfico. O trabalho de Töpffer só veio a obter reconhecimento em épocas posteriores à sua morte devido a pouca credibilidade que tinham as narrativas gráficas em seu tempo. A criação de Töpffer, a ascensão da imprensa, a invenção da fotografia e do cinema são fatores que motivaram a presença da arte-narrativa gráfica no mundo moderno.

Figura 8– Trecho de M. Vieux-Bois, de Rudolph Töpffer

(MOYA, 1986, p. 11)

A partir disso, houve o surgimento de outros artistas pioneiros dos quadrinhos com importantes contribuições para o crescimento do gênero, como Wilhelm Busch (Max und Moritz, de 1865), Ângelo Agostini (As cobranças, de 1867), Richard Outcault (Yellow Kid, de 1895, e Buster Brown, de 1902), Rudolph Dirks (Katzenjammer Kids, de 1867), Gustave Verbeck (Upside Downs, de 1903), Geo McManus (The newlyweds and their only child, de 1904), e Winsor McCay (Litte Nemo in slumberland, de 1905), entre outros. Apesar de algumas dessas criações terem tido críticas sociais como plano de fundo (e o próprio Yellow Kid é um exemplo), elas apresentavam, basicamente,


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cenas jocosas ora de animais humanizados, ora de situações de família, ou, ainda, de crianças travessas. O tema comum entre todas elas era o humor. Esta é a explicação para o nome que os quadrinhos carregam até hoje na língua inglesa: comics (cômicos). Tal tendência sofreria modificações nos anos seguintes à crise de 1929, com o surgimento das histórias de aventura.

3.1

DA SELVA AO ESPAÇO – AS HISTÓRIAS DE AVENTURA E OS

PRIMEIROS SUPER-HERÓIS Um herói é um indivíduo comum que encontra a força para perseverar e resistir apesar dos obstáculos. (Christopher Reeve, 1952-2004, ator norte-americano)

Moya (1986) descreve detalhadamente todos os principais personagens do gênero aventura em quadrinhos da década de 30, dedicando um capítulo para cada autor. Por razões de relevância, apresenta-se a seguir apenas três desses personagens que, até o surgimento dos primeiros super-heróis, foram os mais expressivos: Tarzan of the apes, criado pelo escritor norte-americano Edgar Rice Burroughs em 1912, adaptado para os quadrinhos em 1929; Dick Tracy, criado pelo cartunista Chester Gould em 1931; Flash Gordon, criado por Alex Raymond para ser concorrente de outro personagem do espaço, Buck Rogers, do escritor de ficção científica Philip Francis Nowlan. Tarzan, Dick Tracy e Flash Gordon precedem um período da história das histórias em quadrinhos chamado a Era de Ouro. A história dos quadrinhos de super-heróis é dividida em três partes: Era de Ouro, Era de Prata e Era de Bronze. Tais expressões são oriundas dos próprios leitores de quadrinhos, e, com o tempo e uso constante, tornaram-se forma padrão para dividir a história dos quadrinhos. De acordo com o escritor Roberto Guedes: Os termos "Era de Prata" e "Era de Ouro" surgiram por volta de 1965, nas seções de cartas da revista da Liga da Justiça. Os leitores, entusiasmados com o resgate dos heróis dos anos 40, referiam-se àquela época como "anos de ouro" ou "era de ouro", e criavam um paralelo com os tempos modernos (anos 60), chamando-os de "anos


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de prata" ou "era de prata". Com o tempo, todo mundo estava usando essas denominações para especificar os gibis por épocas, tanto leitores, quanto pesquisadores e comerciantes. Posteriormente, lá pelos anos 90, começaram a debater também o termo "era de bronze", mais especificamente nas páginas do guia Comic Book Buyers Guide, uma publicação voltada para estudiosos e comerciantes.4

Com efeito, faz-se necessário um esclarecimento sobre cada uma destas épocas da história dos quadrinhos de super-heróis. 3.1.1 É um pássaro? É um avião? – A Era de Ouro Os super-heróis foram uma reação à sua época. Eles são uma metáfora para nossas frustrações em relação aos defeitos da sociedade. Com o decorrer do tempo, porém, perdemos esse ponto de vista e fomos nos concentrando em fantasias. As primeiras aventuras do SuperHomem eram permeadas por temas como linchamento, violência doméstica e governos ditatoriais. Hoje, os super-heróis podem ser uma inspiração, uma metáfora para o que queiramos fazer. (Alex Ross, desenhista norte-americano)

O surgimento dos heróis pós Tarzan/Dick Tracy/Flash Gordon, e a fundação das duas principais editoras de quadrinhos de super-heróis (Marvel Comics e DC Comics) fizeram com que a segunda metade da década de 30 fosse conhecida como a Era de Ouro. Em 1934, Major Malcolm Wheeler-Nicholson fundou a editora National Allied Publications, que, em 1944, em uma fusão com a Detective Comics Inc. (eram duas companhias com os mesmos proprietários), formou a National Comics. Porém, devido ao uso do logo Superman-DC, a editora passou a ser popularmente chamada de DC Comics, nome que mais tarde seria registrado como oficial. A DC Comics é a prorietária de personagens como Batman, Superman, Wonder Woman (Mulher Maravilha), Captain Marvel (Capitão Marvel) e Green Lantern (Lanterna-Verde). 4

Tal esclarecimento, transcrito literalmente, foi feito pelo próprio Roberto Guedes em conversa via rede social (Facebook), em 4 de maio de 2012.


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Em 1939, a editora Timely Comics, fundada por Martin Goodman, publicou a primeira edição da revista que batizaria a própria editora: Marvel Comics. A revista trazia histórias dos heróis Human Torch (Tocha-Humana) e The Submariner (Namor – o príncipe submarino). A parceria entre Stan Lee e Jack Kirby, criadores de Amazing Spider Man (O espetacular Homem-Aranha) e Fantastic Four (Quarteto Fantástico) alavancaram o sucesso comercial da editora, que seguiu com outras criações de igual importância, como X-Men. Com a criação das duas principais editoras, multiplicaram-se os heróis e as temáticas. Em Moya (1986, p. 124), encontram-se detalhes sobre o primeiro herói mascarado e uniformizado: The Phantom (O Fantasma), criado pelo escritor Lee Falk e o ilustrador Ray Moore em 1936. Após The Phantom, houve o aparecimento do primeiro super-herói com poderes, talvez o mais importante da Era do Ouro: Superman. Figura 9 – The Phantom, primeiro herói mascarado5

Superman, conhecido por muito tempo no Brasil como Super-Homem, foi criado, em 1938, pelos jovens estudantes norte-americanos Jerry Siegel e Joe Shuster. A primeira aparição do personagem foi na revista Action Comics Magazine nº 1, lançada em 1938, em um momento em que o mundo se recuperava da Primeira Guerra Mundial, e havia a grande popularidade dos comic books.

5

Imagem disponível em http://quadradinhos.blogspot.com.br/2005_05_01_archive.html. Acesado em 31/08/2012, às 00:20.


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Figura 10 – Primeira edição da revista Action Comics, em 19386

De acordo com Álvaro de Moya7, em 1934 surgiram os primeiros comic books (gibis), com a republicação de histórias completas, mas que foi em 1938 que aconteceu o ―boom‖: a popularidade de Superman, que já apareceu em todas as mídias existentes até hoje, o faz ser conhecido, ainda de acordo com Moya (1977, p. 64), como ―uma das maiores figuras míticas do gênero‖. De tão popular, seu nome é quase ―redundante‖. Após Superman em 1938, muitos outros heróis surgiram, tais como: Capitain America (Capitão América), em 1941, de Joe Simon e Jack Kirby, The Submariner (Namor – O príncipe Submarino) de Bill Everett, Human Torch (Tocha-Humana), de Carl Burgos, todos pela Marvel Comics. Pela DC Comics: The Flash, de Gardner Fox e Harry Lampert; The Green Lantern (O Lanterna Verde), de Martin Nodell; Wonder Woman (Mulher-Maravilha – primeira super-heroína), de William Moulton Marston; Capitain Marvel (Capitão Marvel), de Charles Clarence Beck e Bill Parkere; Batman (Batman), de Bob Kane, e o inovador The Spirit (O Espírito), criado em 1942 por Will Eisner, e publicado em forma de revista a partir de 1944 pela Quality Comics. As criações do professor e teórico de histórias em quadrinhos Will Eisner foram o marco literário dos quadrinhos da Era de Ouro. McCloud fala sobre o pioneirismo artístico de Eisner: Por volta de 1940, Will Eisner, criador de The Spirit, concedeu uma entrevista ao Baltimore Sun, na qual sugeriu que os quadrinhos eram 6

Imagem disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Action_Comics_1, acessado em 31/08/2012, às 00:24. Na obra Shazam!, Primeiro livro teórico sobre histórias em quadrinhos lançado no Brasil , por autores brasileiros. 7


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uma legítima forma literária e artística. A turma nos bastidores certamente ganhou o dia com aquela. Falar de quadrinhos como ―arte‖ ou ―literatura‖ não dava muito certo nos velhos tempos. (...) Durante décadas, Will esteve virtualmente sozinho em sua visão dos quadrinhos; como Dom Quixote, vendo gigantes onde outros só viam moinhos de vento. (2006, p. 26)

The Spirit foi a criação máxima de Eisner, na qual ele explora todo o potencial artístico que acreditava existir na arte sequencial. Trata-se se de um policial novato chamado Denny Colt, que fora dado como morto, mas que, com traje azul (sobretudo, terno, chapéu, máscara nos olhos e luvas), camisa branca e gravata vermelha, usa a identidade de O Espírito para colaborar com a polícia nas investigações criminais. O galanteador investigador, diferente do Superman, não tem qualquer superpoder além da própria sorte. The Spirit trouxe inúmeras inovações textuais e gráficas para os quadrinhos. De acordo com Moya: Um dos pontos mais altos no gênero coroou e encerrou a carreira de um dos maiores artistas, cujo senso de equilíbrio entre texto e imagem é dos mais agudos. (...) O tom levemente humorístico das histórias tinha um equivalente no traço sempre pronto à inovações e quebrando regras clássicas quanto à perspectiva. (Um sujeito seguindo outro numa rua mal iluminada é notado pelo perseguido pelo simples erro proposital de perspectiva). (...) O travelling, o contracampo cinematográfico, os cortes, os close ups, a ligação das sequencias quase em fusão ou sobreposição, cortes sonoros e efeitos, como um ruidinho sutil no meio de um quarto na escuridão, tudo era motivo de rendimento cinematográfico. (1977, p. 68)

O autor ainda define o estilo textual de Eisner como: Visivelmente influenciados por Gogol e Tchekov em seu balanço tópico de conto literário, amargo, irônico, sutil, humorístico, num traço que receberia os mesmos adjetivos. O equilíbrio perfeito, o paralelismo e simultaneidade de texto e uso da imagem em desenvolvimento idêntico fizeram desta experiência uma das mais bem logradas em arte. (MOYA, 1977, p. 68)

O resultado da combinação entre arte gráfica de qualidade e texto bem construído, feita pelo visionário Will Eisner, estava muito à frente de seu tempo, e tem influenciado muitos outros roteiristas e desenhistas de quadrinhos até hoje.


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Figura 11 – Techo de The Spirit, de Will Eisner

(EISNER, 1989, p. 95)

A Era de Ouro, permeada por heróis simples, mas muito contextualizados com sua época, foi a primeira geração de heróis, e encaminhou-se para o seu fim no final dos anos 50, com as mudanças mundiais relacionadas ao pós-Segunda Guerra Mundial, que influenciaram diretamente a elaboração de personagens e histórias. 3.1.2 Perseguição e gibis “em chamas!” - a Era de Prata Os quadrinhos são uma expressão artística universal, que deve poder encontrar ressonância em todos os grupos sociais. (Ana Luiza Koehler, quadrinhista brasileira)

A partir da lei precatória Alien registration code, que impedia qualquer civil norte-americano de divulgar, propagar ou publicar qualquer coisa que sugerisse ideais antiamericanos em plena época de crescimento das ideias comunistas no Oriente, o senador Joseph Mccarty idealizou uma intensa perseguição a todos os meios culturais, incluindo os quadrinhos. McCloud (2006, p. 86) e Moya (1977, p. 72) detalham tais acontecimentos, em especial as ideias do psiquiatra Fredric Wertham que, aproveitando-se das circunstâncias, lançou, em 1954, o livro Seduction of the innocent (A sedução dos inocentes), que pôs o gênero quadrinhos como o principal incentivador da delinquência juvenil, ―perversões‖ sexuais, até o ódio racial.


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De acordo com Moya (1977, p. 71), o livro foi ―a condenação do meio de expressão através das exceções‖, um modo de julgar como agressiva toda uma manifestação artística tendo como base apenas alguns exemplos, tais como as revistas de crimes e horror, que ganharam espaço com o declínio de popularidade dos heróis da Era de Ouro. O livro de Wertham provocou enorme revolta contra os quadrinhos, por parte de pais e educadores moralistas. A partir disso, surgiu o Comic code (Código de ética dos quadrinhos), que, de acordo com McCloud: Impôs as restrições mais severas a recaírem sobre qualquer meio narrativo naquela época. Foram proibidas quaisquer descrições de sangue, sexo, ou comportamentos sádicos. Proibiram-se igualmente quaisquer desafios à autoridade estabelecida, os detalhes exclusivos de quaisquer crimes, quaisquer insinuações de ―relações ilícitas‖ ou de aprovação ao divórcio, quaisquer referências a aflições ou deformidades físicas, e quaisquer alusões a ―perversões sexuais‖ de todo tipo. (2006, p. 87)

Tais acontecimentos definiram o formato dos quadrinhos da Era de Prata, também conhecida como a Era Marvel. Temas como o nacionalismo exacerbado, típicos das histórias de personagens como Superman e Capitão América, saíram de moda. Assim, alguns dos principais heróis da Era de Ouro ficaram obsoletos com o final da Segunda Guerra Mundial. O próprio Capitão América foi tirado de circulação por alguns anos, tendo sido revivido mais tarde, com histórias e temáticas diferentes. Além do surgimento de novos personagens, houve também a remodelação da origem de alguns da Era de Ouro, como Flash e Lanterna Verde, tudo a partir dos pressupostos do Comic Code. Assim, com histórias mais leves, origens mais bem explicadas, tramas e linguagem simples, com enredos recheados de situações comuns e familiares, personagens como o Quarteto Fantástico, de Stan Lee e Jack Kirby fizeram enorme sucesso. De acordo com Roberto Guedes, tais características foram levadas ao extremo: Desde sua primeira aventura, em 1961, quando adquiriu seus fantásticos poderes após ser exposto aos misteriosos raios cósmicos, o grupo se envolveu nas mais emocionantes histórias possíveis; do espaço para a terrível Zona Negativa. Tudo permeado por muito drama, choro, conflitos de geração arroubos de paixão, e temperamentos explosivos. Enfim, tudo aquilo que acontece em toda família que se preze. (2008, p. 17)


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Figura 12 – O Quarteto Fantástico, de Lee e Kirby8

Tais formas de dramatização renderam muito sucesso a estes títulos, e facilitaram o surgimento de muitos outros personagens expressivos, como Daredevil – The man without fear (Demolidor – o homem sem medo, o mais famoso herói cego), Uncanny X-Men (Os fabulosos X-Men), Silver Surfer (Surfista Prateado), Mighty Thor (O poderoso Thor), The invincible Iron Man (O invencível Homem de Ferro), e The amazing Spider Man (O espetacular Homem-Aranha, maior sucesso comercial da Marvel Comics). O Homem-Aranha, criado por Stan Lee em 1962, mostrava um herói adolescente com dificuldades em conciliar sua vida de estudante e suas questões familiares e financeiras com a dupla identidade. Era um modelo de super-herói com problemas humanos, no estilo de Quarteto Fantástico. A saída de Jack Kirby da Marvel Comics, em 1969, e o encerramento das atividades de várias editoras devido às exigências do Comic Code marcaram o final da Era de Prata. Em uma tentativa de refutar o Comic Code, artistas como Robert Crumb exploraram seu potencial criativo em produções independentes que influenciaria uma série de artistas nos anos 70 e 80, na chamada Era de Bronze.

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Imagem disponível em http://hqrock.wordpress.com/category/quarteto-fantastico/page/2/, acessado em 31/08/2012, às 00:50.


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3.2.3 A era de bronze... Ou de adamantiun? O que define uma grande história em quadrinhos não é apenas o belo acabamento artístico ou os mirabolantes conceitos fantasiosos que a compõem, antes sim, é a sensibilidade do autor para trabalhar o elemento humano. Se a história não tocar o coração do leitor, não fizer com que ele se identifique com os personagens, com a "realidade" deles, então esta será uma obra vazia. (Roberto Guedes, escritor e quadrinhista brasileiro)

A Era de Bronze, período que começa no início da década de 70 e estende-se até a metade da década de 80, é marcada pelo surgimento das lojas especializadas em quadrinhos, do Mercado Direto, das produções que desafiavam o Comic Code, e da afirmação dos romances gráficos. O surgimento do Mercado Direto foi uma verdadeira revolução editorial nos quadrinhos. Em meados da década de 70 ocorreu a gênese do famoso Mercado Direto das revistas; quando as editoras, no desejo de evitar maiores rombos em suas finanças, passaram a imprimir tiragens específicas de cada título, pré-determinadas pelos lojistas – a partir da procura dos clientes dos mesmos. (GUEDES, 2008, p. 174)

Melhor organização da distribuição e venda dos quadrinhos possibilitou a uma maior participação da comunidade de fãs e leitores no ramo e eventos importantes, como reuniões, convenções e encontros com desenhistas e criadores para entrevistas e debates passaram a acontecer. Os desafios ao Comic Code foram muito comuns na Era de Bronze. Os heróis continuaram a ser representados de forma mais humanizada, porém, não só por vivenciarem problemas cotidianos, mas por frequentemente estarem às voltas com problemas sociais como racismo, drogas e alcoolismo. Exemplos expressivos sobre o tema das drogas são algumas histórias da dupla Lanterna Verde e Arqueiro Verde (pertencentes à DC Comics), além do Homem-Aranha (a popularmente chamada ―a história das drogas‖) e da história O demônio da garrafa, nas páginas do Homem-deFerro (pertencentes à Marvel Comics)


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O lançamento do primeiro gibi solo de um personagem negro, Luke Cage, impulsionou a ascensão de outros heróis negros em épocas posteriores, como Spawn – o soldado do inferno, de Todd McFarlane, nos anos 90. Na Era de Bronze, o desafio ao Comi Code não se restringiu apenas ao aparecimento de questões sociais reais nas histórias dos heróis. O surgimento de personagens diferentes, que colocam em dúvida o próprio conceito de herói, também foi importante para a redefinição dos quadrinhos de heróis nos anos seguintes. Exemplos máximos são Conan, the barbarian (Conan, o bárbaro), criado pelo escritor Robert Howard em 1970, e Wolverine, criado por Lein Wein em 1974, ambos da Marvel Comics. Conan the barbarian foi uma antítese de todos os personagens criados até então. Guedes (2008, p. 12) o descreve como uma publicação que ―pendia mais para o gênero espada e feitiçaria. Conan diferia de todos os outros personagens de então, pois era amoral, ladrão, vingativo, assassino e dado a orgias e bebedeiras.‖ Conan teve sua primeira aparição em uma publicação literária barata (os chamados pulps), no conto The Phoenix on the sword, em 1932. Porém, o sucesso e a notoriedade vieram com sua adaptação para os quadrinhos pela Marvel Comics em 1970. Wolverine, famoso por suas indestrutíveis garras de adamantium (suposto metal mais resistente do mundo, existente apenas no universo Marvel), teve sua primeira aparição na última página da revista The incredible Hulk nº 180. O comportamento sádico e agressivo do personagem, em contraste com a postura mais convencional dos demais heróis de seu universo, o fazia fugir do modelo até então clássico de super-heróis, rendendo-lhe grande notoriedade.


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Figura 13 - Wolverine, de Lein Wein9

Conan e Wolverine são dois exemplos máximos do anti-herói, modelo que seria muito melhor desenvolvido por escritores como Alan Moore e Frank Miller em seus romances gráficos. O conceito de romance gráfico (graphic novel) foi popularizado por Will Eisner em sua obra A contract with God and other tenement stories (Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço). Antes de fazer qualquer explanação sobre o gênero romance gráfico, é necessário fazer uma revisão histórica e estrutural sobre o romance – gênero anterior aos romances gráficos, e do qual os quadrinhos, por meio de obras como Um contrato com Deus e Watchmen, paulatinamente estão se aproximando.

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Imagem disponível em http://www.marveldirectory.com/individuals/w/wolverine.htm, acessado em 31/08/2012, às 01:00.


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O ROMANCE: DA EPOPÉIA AO CONTEMPORÂNEO É importante que uma história soe real a nível humano, mesmo que nunca tenha acontecido. (Alan Moore, escritor/roteirista britânico)

Após uma explanação sobre a contemporaneidade com as principais invenções do século XIX, seus efeitos no desenvolvimento das mídias e das tendências comportamentais do século XX, passando pela história das histórias em quadrinhos até o surgimento dos romances gráficos, é necessário fazer uma breve revisão teórica sobre o romance, do qual os quadrinhos incorporariam diversas características. O romance é um gênero literário. A literatura é oriunda do ato de contar histórias, ao qual Eisner (2005, p. 11 e 12) e Lajolo (1984, p. 38) se referem como um produto da linguagem humana. Ao discorrer sobre o que é literatura, a autora não propõe a uma definição completa, pois esta arte muda com o passar do tempo. Logo, mediante leituras e observações de cada época, com seus valores e estilos, não há como chegar a um resultado absoluto. Como fundamental característica do texto literário, Lajolo (1984, p. 38, 43) evidencia o espaço de interação de subjetividade (autor e leitor) que escapa do imediatismo, que não se prenda às funcionalidades comuns da existência humana, pois a literatura tem caráter criador, e não transmissor. Aristóteles (1966, p. 78), em sua obra Poética, que é um dos primeiros trabalhos teóricos sobre a literatura, faz uma diferenciação entre o poeta e o historiador: enquanto um narra o que poderia acontecer, o outro relata o que aconteceu. O romance, por seu potencial criador e voltado para a subjetividade, é um gênero literário. Conforme M. Abel Chevalley (Apud FORSTER, 1969, p. 3), o romance é, em síntese, ―uma ficção em prosa com certa extensão.‖ O romancista e crítico literário Edward Morgan Forster acrescenta ainda que ―isso é suficiente para nós, mas talvez possamos ir além e acrescentar que a extensão não deveria ter menos de 50.000 palavras‖, e que, muito aquém das classificações diversas que pode receber quanto à sua natureza, ―o romance conta uma história. Este e o aspecto fundamental, sem o que ele não poderia existir. Este é o máximo divisor comum a todos os romances‖


40

(1969, p. 3 e 21). A filósofa e crítica literária Julia Kristeva apresenta uma breve definição de romance: Dá-se por vezes o nome de ROMANCE a estruturas narrativas muito diferentes: Há romances gregos, romances corteses, romances picarescos, romances psicológicos – para mencionar apenas algumas das variedades que a palavra engloba. Todas as narrativas que saíssem do esquema da epopeia ou do conto popular recebiam o nome de romance desde que fossem suficientemente extensas, sem que se tivesse dado às suas particularidades uma definição precisa e satisfatória. (1984, p. 15)

Oriundo da tradição oral, o romance é descendente direto da epopeia, que Aristóteles caracteriza tendo como base suas diferenças em relação à tragédia: A epopeia e a tragédia concordam somente em serem, ambas, imitação de homens superiores, em verso; mas difere a epopéia da tragédia pelo seu metro único e sua forma narrativa. E também na extensão, porque a tragédia procura, o mais que é possível, caber dentro de um período de sol, ou pouco excedê-lo, porém a epopéia não tem limite de texto (...). (1966, p. 73)

Com efeito, o gênero epopeia, que deu origem ao romance, e que Aristóteles define como sendo ―sem limite de texto‖ (opondo-se às ―50.000 palavras‖ de Forster em relação ao romance) firmou-se, literalmente, como uma forma de expressão voltada exclusivamente aos interesses de ―homens superiores‖, no caso, imitação do estilo de vida de um público de maior poder aquisitivo e com acesso a alfabetização: a burguesia, nos séculos XVIII e XIX. Nas palavras do professor Massaud Moisés: Como decorrência, a epopéia, considerada, na linha da tradição aristotélica, a mais elevada expressão de arte, cede lugar a uma fôrma burguesa: o romance. A demofilia que varre as mentes lúcidas e insatisfeitas da Europa do tempo determina o aparecimento de uma literatura feita pelo, para e com o povo, especialmente a nova classe ascendente, a burguesia. Ora, nada mais natural que a prosa, "objetiva", descritiva e narrativa, viesse a ocupar o espaço da poesia épica. (...) Com isso, o romance passa a representar o papel antes destinado à epopéia, e objetiva o mesmo alvo: constituir-se no espelho de um povo, a imagem fiel duma sociedade. (1967, p. 159)

O professor e escritor Donaldo Shüler refere-se ao romance como um gênero que escapa a quaisquer tentativas de classificação:


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O romance, livre de compromissos, surge como lugar em que ideias se fazem, se desfazem, se refazem. A escrita, marca originária do romance, chega agora a seu pleno florescimento. Aberto a todas as experiências, avesso a quaisquer limites, o romance mina a rigidez dos gêneros. Nele não confluem só o épico, o dramático e o lírico; no romance apagam-se até os limites entre ficção e ensaio. (1989, p. 19)

De acordo com Moisés (1969, p. 157), muito aquém do sentido pejorativo que a palavra romance carrega, que é o de simples relação amorosa, ela já teve diferentes usos: designar, na Idade Média, as línguas do povo sob o domínio do império romano; diferenciar a linguagem popular da linguagem erudita; e rotular composições literárias de cunho popular, folclórico, todas de caráter imaginativo e fantasioso, tanto em prosa quanto em verso, no caso, os romances de cavalaria, narrativas que contavam proezas de cavaleiros. O romance surge, como o entendemos hoje em dia, nos meados do século XVIII: aparece com o Romantismo, revolução cultural originária da Escócia e da Prússia. O romance se coadunava perfeitamente com o novo espírito, implantado em conseqüência do desgaste das estruturas sócio-culturais trazidas pela Renascença. Às configurações de absolutismo até a época em voga (em política, O despotismo monárquico; em religião, o dogmatismo inquisitorial e jesuítico; nas artes, a aceitação de um receituário baseado nos preceitos clássicos, sucedeu um clima de liberalismo, franqueador das comportas do sentimentalismo individualista. (MOISES, 1967, p. 158-159)

Ainda de acordo com o autor (1967, p. 160), o romance aparec e, no século XVIII, identificado com a revolução romântica. Esta fase tem como expoentes as principais obras e autores: A Princesa de Cleves (1678), de Madame de Lafayette; Manon Lescaut (1731), do Abade Prévost, a Vida de Mariana (1741), de Marivaux, Pamela (1740) e Clarissa Harlowe (1748), de Samuel Richardson, As Aventuras de Roderick Random (1748), de Tobias Smollet, e o cultuado História de Tom Jones (1749), de Henry Fielding, tido como o introdutor oficial do romance inglês. No século XIX, surgiram os principais prosadores europeus, sendo Stendhal o primeiro grande representante do romance europeu oitocentista (O Vermelho e o Negro, 1830, A Cartuxa de Parma, 1839); Balzac foi o principal expoente do romance moderno (Comédia Humana, escrita entre 1829 e 1850, sobre a sociedade burguesa). Tamanha era sua engenhosidade que levou muitos autores a dividir a


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história do romance em duas épocas: antes-de-Balzac e depois-de-Balzac. Após este, houve ainda Flaubert (autor de Madame Bovary) e Zola. O século XIX trouxe os pioneiros do romance moderno: além de Balzac, houve Dostoievski, Tolstoi, Turguenieff, Gogol, Proust, todos inovadores por apresentarem um desenvolvimento psicológico mais profundo de seus personagens, o que era inédito até então, e influenciaram os escritores do século XX, como James Joyce, Thomas Marm, Virgínia Woolf, Franz Kafka, Hermarm Broch, Robert Musil, William Faulkner, John Steinbeck, entre outros. Em Portugal, o romance apareceu com Julio Diniz, e tem Eça de Queiroz e sua prosa realista como seu principal expoente. No Brasil, o romance tem início com Joaquim Manuel de Macedo e José de Alencar, no período do Romantismo. Porem, a fase áurea seria o realismo, com Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Inglês de Sousa, Domingos Olímpio, Raul Pompéia, Coelho Neto e outros. Mesmo com este crescente número de autores, o romance brasileiro, embora falasse de questões de seu país e época, ainda tinha grande influência de autores europeus. Contudo, o romance brasileiro do século XX possui autores cujas obras contribuíram para a formação da identidade da literatura nacional: A partir de 1930, vêm surgindo alguns nomes de primeira categoria, dentro e fora das fronteiras do País: Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Octávio de Faria, Lúcio Cardoso, Clarice Lispector, José Geraldo Vieira, Cornélio Pena, Guimarães Rosa, Osman Lins, Adonias Filho, Autran Dourado e outros. (MOISES, 1967, p. 165)

Dada a tendência de cada década, e mesmo com o desenvolvimento do meio virtual, o romance continua sendo um gênero literário forte, de efetiva influência sobre outras mídias. As formas que esta modalidade de narrativa longa assume são tão diversas quanto a quantidade de tecnologias midiáticas disponíveis na contemporaneidade. Tendo ainda caráter mais social, ou histórico, ou intimista, com o tempo ele se modifica ao mesmo passo que a própria comunicação humana e o ato de contar histórias. Na contemporaneidade, já incorpora em si elementos de outras mídias, ao mesmo tempo em que as influencia, a exemplo do que acontece com as histórias em quadrinhos e com o cinema. Embora se caracterize pela função primordial de contar uma história, o romance, bem como qualquer outro gênero


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literário, não é feito pelo óbvio. Como forma artística desde sempre, requer certos critérios para o estudo de sua forma e literariedade.

4.1

―POR ISSO EU LEIO E RELEIO‖ É que não faz sentido, cara. Por isso eu leio e releio. (Watchmen, capítulo XI, página 23)

Como gênero literário, o romance ocupa, desde sempre, um lugar de subjetivação. A busca pela leitura de textos literários se dá, com efeito, por razões não exclusivas ao próprio texto literário, são as mesmas que movem a busca pelas histórias em quadrinhos: vontade de compreender a realidade; acreditar que ela possa ser diferente; ou para ter o efeito que Shüler (1989, p. 6) chama de aparelhamento que serve para e enfrentar a realidade com ―renovado vigor.‖ Em síntese, indiretamente o autor refere-se à diversão e à subjetivação proporcionada pela leitura literária como uma forma de melhorar a qualidade de vida. Sendo um gênero literário consolidado, e de temas e estilos variados conforme a época em questão, o romance pareceu não ser abalado pela ascensão das novas modalidades midiáticas de narrativa. O gênero ainda aumenta seu prestígio, tanto pelo poder de sublimação como pela acessibilidade em qualquer lugar, podendo ter como tema os mais variados assuntos: Como não há critério vedado ao romance, classificações que adotam o conteúdo como critério proliferam. Se é legítimo dividir o romance em rural e urbano, nada obsta que se venha falar em romance espacial. Já serviram de critério classificatório fenômenos como a seca ou culturas como a cana-de-açucar e o cacau. Nada impede que se fale em romance do futebol e da droga. (SHÜLLER, 1989, p.8)

Apesar de tais buscas terem sido uma constante desde sempre, o romance não permaneceu o mesmo, mas sofreu modificações a cada século de existência. Forster (1969, p. 14), a respeito da evolução do gênero, diz que ―ele se desenvolve artisticamente de maneira autônoma, mas com vínculos históricos evidentes.‖ Tal qual são os idiomas, que mudam com o tempo e conforme os valores que estão em


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evidência, o romance, obra literária produto da linguagem humana, também se modifica com o passar do tempo. Um dos critérios já usados para o estudo do romance é a cronologia 10. Porem, Forster questiona a utilidade deste meio para o estudo do romance. Em seu livro Aspectos do romance, publicado originalmente em 1927, época em que a teoria da literatura no sentido moderno ainda estava no início, ele justifica sua idéia comparando dois trechos de livros: um de Samuel Richard e outro de Henry James, mostrando que, embora estejam separados no tempo por 150 anos, apresentam muitas semelhanças em seu estilo psicológico de narrar, o que, a seu ver, exclui a cronologia como forma válida de estudar o romance. Para Forster, a cronologia não tem importância, bem como o tema sobre o qual se escreve. O que importa, para a análise, é a forma de narrar, cuja complexidade ―resolve-se não por fórmulas, mas pelo poder do escritor em levar o leitor à aceitação do que ele diz‖ (1969, p. 18). No caso, a sensibilidade do autor aparece como algo que seja, provavelmente, mais fundamental do que o próprio tema, ou o assunto sobre o qual fala a narrativa: Um espelho não se aperfeiçoa porque um cortejo histórico passa à sua frente. Ele só melhora quando recebe uma nova camada de mercúrio – em outras palavras, quando adquire nova sensibilidade. E o sucesso de um romance está na sua própria sensibilidade, não no sucesso de seu assunto. (FORSTER, 1969, p. 14)

Em contraponto, além do poder sublimatório do romance, Massaud Moisés (1967, p. 165) ressalta a influência do contexto em que a obra foi escrita. Para o autor, os critérios de ―engajamento‖ e ―entretendimento‖ merecem exame: seja por motivos de causa, doutrina, ideologia, sistema filosófico, político, religioso ou científico, o romance pode funcionar muito bem como um trabalho engajado, sem que perca sua característica de contar história. Além do nível de engajamento da obra com a realidade de seu tempo e da sua capacidade para o ―entretendimento‖, há a empatia individual que o romance terá (ou não) com o leitor. O efeito estético que um trabalho artístico pode causar em uma 10

Tal critério tem certa unanimidade por parte dos leitores ao estudar histórias em quadrinhos, dividindo a história delas em períodos (era de Ouro, Prata, Bronze). Isto é possível devido ao gênero, como o conhecemos, ainda ser jovem.


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pessoa é algo completamente individual. Para cada leitor, determinado trecho pode remeter a inúmeras situações já vividas e a leituras anteriores. Tal capacidade, no modo global do romance lido, influencia na impressão final que terá o leitor sobre o que leu, visto que cada um possui diversos tipos de vivencia e de experiência de leitura. O teste final de um romance será a nossa afeição por ele, como é o teste dos nossos amigos, e de qualquer outra coisa que não podemos definir. (...) Tudo que eu posso prometer é que a sentimentalidade não deverá falar demasiado alto, nem muito cedo. A intensa, sufocante qualidade humana de romance não deve ser evitada; o romance está encharcado de humanidade; não há escapatória para o enaltecimento ou a ruína, nem estes podem ser mantidos fora da crítica. (FORSTER, 1969, p. 17)

O autor ainda enfatiza os resultados, caso a capacidade para o engajamento ou função subjetiva da obra sejam levadas ao extremo: Em suma, entreter é por certo uma das funções do romance, bem como de todo texto literário, mas não há de predominar sobre as demais sem correr o risco de perder densidade e significado. Por outro lado, evitará cair no extremo oposto, sob pena de obscurecerse ou intelectualizar-se. (MOISES, 1967, p. 172)

Logo, tanto o engajamento com a realidade como a empatia individual do leitor com a obra são importantes critérios para o estudo do romance. E, quanto à estrutura do romance, importantes aspectos são levados em conta para o estudo: tempo, espaço, e personagens, que, bem organizados em forma de narrativa que cria nova realidade ao mesmo tempo em que sugere novas reflexões sobre a vida do homem, forma a literariedade.


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4.2

RELOJOEIROS DO ROMANCE Quem faz o mundo? Talvez o mundo não seja feito. Talvez nada seja feito. Talvez simplesmente seja, tenha sido, será eternamente um relógio sem relojoeiro. (Watchmen cap. 4, p. 28)

Tempo, espaço e personagens são partes constitutivas do romance. Embora não sejam suficientes para formar a literariedade, merecem esclarecimentos. Forster, ao discorrer sobre o tempo, é categórico em dizer que ele é muito mais do que o que é medido pelo relógio. O tempo possui algo de valor. De acordo com o autor (1969, p. 22), o tempo, ―ao revermos nosso passado‖, ―não se estende regularmente, mas se aglomera em alguns pináculos memoráveis e, quando olhamos para o futuro, este parece, às vezes, uma parede, às vezes, uma nuvem, às vezes, um sol, mas nunca um gráfico cronológico‖. Assim, é necessário que o romancista saiba manusear o tempo medido pelo relógio ou pelo calendário, no caso o tempo ser quantitativo, e o tempo como um aglomerado de memórias e sensações marcantes armazenadas, que seria uma espécie de tempo qualitativo. Shüler, em seu livro Teorias do romance, também discorre sobre a importância do tempo no romance: No romance, experimentamos o tempo de várias maneiras. O tempo da narrativa é uma delas, é ele que organiza o narrado. Dele se distingue o tempo da narração, provocado pela distância entre o momento em que os acontecimentos são narrados e a ocasião em que teriam ocorrido. Há ainda o móvel tempo da leitura, alterado pela sucessão dos leitores. (SHÜLLER, 1989, p. 49)

Massaud Moisés (1967, p. 182) refere-se ao tempo da narrativa como: a) Histórico, que se refere ao antes mencionado tempo quantitativo: o correspondente ao tempo do relógio, ao calendário, a mudanças naturais como noite-dia, e todo o referente à cronologia que ajuda a entender a realidade;


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b) Psicológico geralmente não coincide ao histórico, pois faz parte do interior de cada pessoa, e não é medido por aparelhos, mas pela intensidade de sensações e vivências, de forma a fugir da ordem exata em que aconteceram para fixar-se à tais eventos por si só em sua relevância. Logo, é um tempo subjetivo, diferente do histórico, que é objetivo; c) Metafísico ou mítico, que é o tempo mais relacionado ao transcendente, logo, às vezes se mistura ao tempo histórico e ao tempo psicológico. É o tempo do ser, o tempo imutável, ―anterior à história e a consciência‖, no qual são contadas as histórias míticas e religiosas dos povos. De acordo com Forster (1969, p. 36), os principais eventos da existência do homem são cinco: nascimento, alimentação, sono, amor e morte. Estes são os elementos fixos, sem os quais, provavelmente, não se dá a existência humana. Dada a realidade nos aspectos de duração e intensidade de cada um destes fatos, e de muitos outros de cunho individual, não é possível reproduzir por escrito a vida humana como ela realmente é e chamar tal produção de romance. Caso assim fosse, o autor estaria registrando algo, em vez de criando, o que fugiria do princípio do texto literário de criar e/ou recriar a realidade. Se assim fosse, o romancista passaria de autor para historiador. Embora certos romances sejam referências satisfatórias para fatos históricos, não deixam de ser ficção, arte, criação. De acordo com Forster, (1969, p. 36), ―o historiador registra, enquanto o romancista deve criar.‖ Assim, a configuração do tempo na narrativa romanesca, que conta ou dá ênfase apenas ao que interessa, deve estar a serviço do tipo de efeito que se quer causar no leitor. Em relação aos personagens, Forster prefere chamá-los de ―pessoas‖, mesmo termo usado por Moisés na sua definição: Entendamos, inicialmente, o que vêm a ser personagens de romance: "pessoas" que vivem dramas e situações, à imagem e semelhança do ser humano,"representações", "ilusões", "sugestões", "ficções", "máscaras", de onde "personagens" (do lat. persona, máscara). Via de regra, só "gente" pode ser personagem de romance. Animais irracionais que participem do desenrolar de acontecimentos romanescos, ou são projeções da personagem (como no caso de Quincas Borba), ou invulgares em sua condição (como a Baleia de Vidas Secas), ou servem de motivo ao desenvolvimento da ação (como em Moby Dick). Parece


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desnecessário lembrar que os animais só atuam como personagens nas fábulas ou nas narrativas de cunho poético. (1967, p. 226)

Personagens, semelhantes ao ser humano, são feitos com as medidas comportamentais e emocionais necessárias para a funcionalidade que a narrativa em questão exige, embora levem consigo muito de seu criador que, para criá-las, tem como base sua vivência, suas alegrias e frustrações, e suas experiências de leitura. Logo, personagens não surgem do nada. O romancista ―arranja uma porção de massas verbais, descrevendo a grosso modo a si mesmo (...), dá-lhes nomes e sexos, determina-lhes os gestos plausíveis e as faz fala por meio de aspas e talvez comportarem-se consistentemente. Elas não chegam assim frias à sua mente, podendo ser criadas em delirante excitação. Sua natureza, no entanto, está condicionada pelo que o romancista imagina sobre outras pessoas e sobre si mesmo, e, além disso, é modificado por outros aspectos de seu trabalho.‖ (FORSTER, 1969, p. 34)

Moisés partilha da mesma visão quanto à criação dos personagens. De acordo com o autor, ―sempre o ficcionista extrai as personagens de dentro de si‖ (1967, p. 237), o que assegura a existência do caráter altamente projetivo em meio à criatividade e as razões funcionais na criação e desenvolvimento deles na narrativa. Assim sendo, é necessário que haja identificação entre o leitor e o(s) personagem(s). De acordo com Forster (1969, p.48), os personagens ―são reais não por serem como nós (embora possam sê-lo), mas porque são convincentes‖, e, provavelmente, o que os separa de pessoas reais é a possibilidade de o leitor poder conhecê-los tanto quanto gostaria de conhecer seus semelhantes. Ou, pelo menos, pensa conhecer. A própria palavra personagem, de acordo com Shüller (1989, p. 40) é derivada de persona, a máscara do teatro romano, logo, o personagem é ―tão teatral quanto ator. Máscaras a esconder o caráter esquivo das personagens definem bem os entes que povoam o mundo romanesco.‖ Logo, a semelhança do personagem com o leitor, sendo ela ilusória ou não, é fundamental tanto para identificação e interesse na história como para o desenvolvimento dela. Forster (1969, p. 53-55) propõe uma classificação de personagens que se tornou clássica, e que ainda é usada por alguns autores: ―redondas‖ ou ―planas‖.


49

As11

personagens

planas

diferenciam-se

das

personagens

redondas

por

permanecerem inalteradas no decurso da história, e isso lhes possibilita ―serem reconhecidas com facilidade sempre que aparecem‖ e serem ―facilmente lembradas pelo leitor‖. Em contrapartida, embora a presença das personagens planas pareça ser meramente funcional, elas são tão importantes quanto as personagens redondas. Moisés desenvolve o conceito de Forster sobre as personagens: A personagem redonda corresponde, assim, a uma projeção, ou símbolo, de nosso "eu profundo", e um alter-ego livre para concretizar a impossível evasão, que morremos sem ao menos iniciar, tão presos estamos ao condicionamento exterior. Por meio de sua ação, temos a ilusão de nos realizar, de nos conhecer melhor, e vamo-nos compensando das frustrações da vida cotidiana. Ao contrário disso, a personagem plana dá-nos a impressão paradoxal de falsa, paradoxal porque igual a todos nós socialmente, e falsa porque não se espera da arte que nos retrate tão superficialmente, em razão de os leitores procurarem no romance não aquilo que são, e, sim, o que desejariam ser. (1967, p. 234)

Planas, redondas, principais ou secundárias, personagens, tendo completa ou parcial empatia do leitor, são sempre o primeiro elemento que vem à mente dele no momento em que se lembra da obra. A complexidade da contemporaneidade, que não só é visível na organização política do planeta e nos valores em voga, mas também na configuração da vida do próprio leitor e dos romances produzidos neste contexto, suavizam tais classificações rígidas. Mas, não as anulam, pois são ainda importante ponto de partida para o estudo. Em relação ao espaço onde acontece a história: depende do tipo de história que se quer contar, bem como o tempo e as personagens que vão compor a narrativa. Fisicamente, pode ser formado por uma localidade ou várias, e, para este tópico não há um critério a ser obedecido pelo autor. Moisés (1967, p. 177), diz que a quantidade de ação presente na narrativa condiciona-se pelo deslocamento topográfico feito com as personagens. Quanto mais localidades existirem no romance, mais necessário rever a constituição do drama, ―sem o qual o romance não se organiza.‖ Assim, o tipo de espaço escolhido, bem como a quantidade de tempo em cada 11

localidade

são

fatores

que

determinam

o

ritmo

da

Respeitando o uso do gênero feminino feito pelo autor para a palavra personagem.

história

e,


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consequentemente, a carga emocional necessária para cada momento, que causará o pretendido efeito estético no leitor. Contudo, um romance não é formado apenas por partes constitutivas. Ele possui o que Aristóteles (1966, p. 78) chama de verossimilhança, que, de acordo com o nível de afastamento ou semelhança com a realidade, se divide em externa e interna. A verossimilhança externa é referente ao nível de aproximação que a obra tem com a realidade, os elementos e referências que o leitor pode encontrar que fazem parte de seu mundo. A verossimilhança interna diz respeito à elaboração formal do texto, da coesão na ordenação dos fatos dentro da própria história, que é um universo criado, e, obviamente, com suas próprias leis. Um texto literário é o resultado de uma boa articulação entre os elementos constitutivos (tempo, espaço, personagens), feita de modo verossímil. Assim, não só ao romancista, mas a qualquer criador de textos literários cabe usar adequadamente os melhores recursos de tempo e espaço, a fim de organizar, nas palavras do autor, os ―conflitos ou células dramáticas‖ de forma harmonica e verossímil, tanto interna quanto externamente. Mostrando nada além do necessário em todos os aspectos, o autor procura trazer, criativamente, novas perspectivas sobre a vida e o homem contemporâneo.


51

5

ROMANCES GRÁFICOS: UM VERDADEIRO CONTRATO COM DEUS Na verdade, eu não era só fanático pelo modelo literário do conto; era também um frustrado escritor sério e um também frustrado pintor sério. Conseguia fazer as duas coisas razoavelmente bem, mas não o suficiente para firmar meu nome. Então, acho que as sete páginas do Spirit são o fruto bem sucedido dessas duas frustrações – ataquei o texto como se fosse um Dostoievsky jovem, e no desenho fui deixando o pincel exacerbar o que o texto sugeria. (Will Eisner)

A expressão, cuja tradução no Brasil varia de ―romances gráficos‖, ―novelas gráficas‖ e ―narrativas gráficas‖, a depender da editora, do público ao qual se quer atingir, do tipo e do tamanho da história, possui diferentes definições. Por exemplo, Roberto Guedes, em seu livro A era de bronze dos super-heróis (2008, p. 207), a define: ―o termo graphic novel em geral é usado quando querem se referir a uma publicação de quadrinhos voltada para um público maduro, ou ainda àquelas edições que compilam histórias curtas que compreendem um arco maior anteriormente publicada em gibis (...).‖ Paulo Ramos 12 e Diego Feigueira13 apresentam uma explanação mais voltada ao aspecto editorial: Entendemos que graphic novel seja uma forma usada editorialmente para se referir a determinadas produções, prioritariamente norteamericanas, que se valem da linguagem dos quadrinhos para narrar histórias mais longas, (auto)biográficas ou não. Trata-se de um rótulo aceito comercialmente e, por isso, difundido e almejado. (2011, p. 19)

Roberto Elísio dos Santos 14, na matéria intitulada O caos dos quadrinhos modernos, publicada na revista Comunicação e Educação, se refere aos romances

12

Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos (SP), doutor, professor adjunto do Departamento de Letras. Universidade Estadual de Campinas, Campinas (SP), doutorando em Linguistica no Instituto de Estudos da Linguagem. 14 Jornalista e professor da Faculdade de Comunicação Social do Instituto Metodista de Ensino Superior. 13


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gráficos como uma mídia mais contextualizada com as tendências da época de seu surgimento e ascensão: Contemporâneos dos videoclipes, da computação gráfica e do controle remoto (zap), estes quadrinhos de autor, ―com temática adulta‖, investem na multiplicação dos focos narrativos, na densidade psicológica dos personagens (que aumentam de número), na ruptura da linguagem tradicional de HQ, na velocidade em que os fatos ocorrem e na quantidade de informações (visuais e verbais) transmitidas ao leitor, contando com personagens conhecidos (...), ou criando novos. (1995, p. 2)

Seguindo a tendência da Era de Bronze, que trouxe novos e diferentes personagens e tramas mais desenvolvidas e engajadas com a realidade do mundo, Will Eisner, colocando em prática suas habilidades gráficas e literárias já consagradas em The Spirit, lançou, em 1978, uma obra que seria a precursora dos romances gráficos. A obra A contract with God and other tenement stories (Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço), de Will Eisner, trouxe impresso na capa a expressão A graphic novel by Will Eisner (Um romance gráfico de Will Eisner). Vale lembrar que Eisner, embora tenha popularizado o termo, não foi o primeiro a utilizálo: de acordo com Guedes (2008, p. 208), Richard Kyle já o havia feito na edição número dois do boletim CAPA-alpha, de 1964, e a expressão apareceu em mais outras três produções alternativas antes do livro de Eisner. Figura 14– Capa de Um contrato com Deus, romance gráfico de Will Eisner15

15

Imagem disponível em http://perpetuaexistencia.blogspot.com.br/2012/05/um-contrato-com-deus-eoutras-historias.html, acessado em 31/08/2012, às 01:09.


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Eisner usou o termo romance gráfico para diferenciar sua obra das demais histórias em quadrinhos existentes no mercado, tanto na forma quanto no conteúdo, atraindo, assim, a atenção do leitor literário. Não só pelo uso da expressão, mas pela preocupação de relacionar o conteúdo a elementos artísticos ou literários, manifestações socialmente aceitas e, como tais, interessantes para agregar conotação positiva. No caso específico da literatura, contribuiu nesse sentido a intenção dada por Will Eisner, um de seus principais propagadores, e a tradução romance gráfico, que vincula o termo ao universo literário. (RAMOS e FIGUEIRA, 2011, p. 19)

De acordo com Guedes (2008, p. 207-208), Um contrato com Deus é uma coletânea de pequenas, maduras e complexas histórias de pessoas comuns do mundo real. Diante da não-aceitação de seu editor em publicar o livro, o ―mestre do claro e escuro‖ Will Eisner, via conversa telefônica, convenceu-o, dizendo-lhe que não se tratava de uma história em quadrinhos, mas de uma ―graphic novel‖ (romance gráfico), ou seja, algo ―muito mais sofisticado que um simples gibi‖. Com espaço e tempo bem desenvolvidos, e personagens com crível descrição psicológica, Um contrato com Deus apresenta verossimilhança interna e externa: ao mesmo tempo em que os quatro contos que compõem a obra formam uma totalidade coesa dentro de sua linguagem verbal e gráfica, a obra recria uma realidade identificável com o mundo real da época em que se passa a história: os Estados Unidos após a crise de 1929. Apesar de não ser uma história de super-heróis, o próprio conceito popularizado por este trabalho influenciou diretamente os quadrinhos posteriores de super-heróis nos Estados Unidos. Enquanto a expressão graphic novels ganhava popularidade no território norte-americano, na Europa, embora não houvesse uma diferenciação na nomenclatura, narrativas gráficas mais longas já eram produzidas, como As aventuras de Tintin, do desenhista belga Hergé, e Asterix, dos franceses Albert Uderzo e René Goscinny. As novas tendências artísticas nos quadrinhos de super-heróis passaram a despertar a atenção de um público de maior idade. Exemplos máximos deste modelo são Batman – The dark knight returns (Batman – o cavaleiro das trevas), de Frank Miller, que apresenta um Batman/Bruce Wayne com mais de 50 anos, solitário e vingativo, habitando um ambiente pós-moderno, cujas características políticas e


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econômicas lembram a realidade norte-americana do período da Guerra Fria; Batman – Year one (Batman - Ano um), de Frank Miller e David Mazucheli, que reconta a origem do personagem em uma perspectiva mais psicológica; e Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, maior desconstrutora do gênero, entre outros. No Brasil, a editora Abril foi a primeira a estampar tal termo na capa de uma revista, na série graphic novel, que iniciou em 1988, e trazia, em cada edição, uma compilação de histórias especiais dos principais heróis da Marvel e da DC Comics, bem como outras histórias fechadas, de diferentes editoras. No prefácio do primeiro número da série, chamada de X-Men – O conflito de uma raça, o diretor editorial Waldyr Igayara associa o trabalho com outras formas de arte, distanciando-o do que se conhecia até então sobre quadrinhos. Temos assistido, nos últimos anos, a uma revolução no mundo das histórias em quadrinhos. De veículo de comunicação virou também literatura ilustrada... Ou arte pura com maiores explicações... Nesta posição, ganhou o ‗status‘ merecido para tomar um chopinho com o cinema, o teatro, a pintura, a filosofia e a própria literatura (com quem até se confunde). (1988, p. 4)

Roberto Elísio dos Santos 16 (1995, p. 2) salienta as diferenças entre a narrativa dos romances gráficos e as HQs do formato convencional: ―de maneira diferente das HQs tradicionais, cuja trama se assemelha ao conto – forma de narração normalmente objetiva; personagens com papéis definidos; situação básica resolvida no final -, a graphic novel apresenta muitos plots e diferentes narradores.‖ A literariedade destas histórias em quadrinhos chamadas de romances gráficos, razão motivadora deste trabalho, se dá nestes critérios citados pelo autor e pelo arranjo bem feito entre a parte gráfica e a parte verbal, componentes primários dos quadrinhos. Assim, a leitura eficaz de romances gráficos como literatura é feita pela observação

atenta

das

sutilezas

presentes

nestas

duas

formas,

que,

harmonicamente, formam uma totalidade.

16

Jornalista Doutorando em comunicação ECA-USP, professor da faculdade de Comunicação Social do Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo do Campo, São Paulo. Em matéria publicada na revista Comunicação e educação, São Paulo, (2): 53 a 58, jan./abr. 1995. Disponível em: http://biblioteca.universia.net/html_bura/ficha/params/title/caos-dos-quadrinhosmodernos/id/52520316.html. (Acessado em 11/01/2012.)


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Figura 15 – Capa de X-Men – O conflito de uma raça17

Entre temáticas diferenciadas e adaptações de clássicos da literatura para o formato quadrinhos, com boa harmonia entre partes constitutivas, verossimilhanças e capacidade de criação, a última década é marcada pelo crescimento do número de leitores e de profissionais interessados em produzir narrativas gráficas cada vez mais próximas da literatura. O gênero já conquistou, até mesmo no Brasil, um espaço considerável. De acordo com Eisner (1989, p. 138), ―parece que atrair um público mais refinado está nas mãos de artistas e escritores sérios de quadrinhos, dispostos a correr o risco do ensaio e erro.‖ As obras publicadas na década de 80 e as posteriores, que apresentavam tramas mais profundas e personagens mais desenvolvidos, sendo estes superheróis ou não, foram fundamentais para que o leitor literário contemporâneo pudesse encontrar quadrinhos literários nas livrarias e até nas bibliotecas das escolas, quando estes antes eram encontrados apenas nas bancas.

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Imagem disponível em http://www.universohq.com/quadrinhos/museu_graphic_novel.cfm, acessado em 31/08/2012, às 01:20.


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WATCHMEN: SOB O CAPUZ À meia-noite, todos os agentes e superhumanos saem para prender qualquer um que saiba mais do que eles. (Bob Bylan - Watchmen, capítulo I, página 32)

Watchmen (―Vigilantes‖) é um romance gráfico da editora norte-americana DC Comics (proprietária de personagens como Superman, Batman e Mulher-Maravilha), escrito por Alan Moore e ilustrado por Dave Gibbons. A obra f oi lançada nos Estados Unidos, originalmente, entre 1986 e 1987, em doze edições, sendo relançada diversas vezes nos anos seguintes, no formato original mensal ou encadernado único. Suas características desconstrutoras do próprio gênero fizeram-no ganhar prêmios como Kirby 18 e Eisner 19, bem como obter uma homenagem especial no tradicional Prêmio Hugo 20 de Literatura, além de ser a única obra em quadrinhos lembrada pela revista Time como um dos 100 melhores romances, desde 1923. De acordo com Roberto Guedes (1998, p. 194), Watchmen surgiu a partir da dissolução de uma editora de quadrinhos chamada Charlton Comics, que teve seus principais personagens adquiridos pela já renomada DC Comics. O então editorchefe da editora, Dick Giordano, convocou o jovem escritor inglês Alan Moore para roteirizar um título semanal com os novos personagens. Entretanto, Moore pensou em apenas uma história, com início, meio e fim, o que impossibilitaria a comercialização semanal das histórias dos novos heróis. O editor-chefe não gostou da idéia de provavelmente usar apenas uma vez os novos personagens, porém, ―já era tarde para Giordano retificar sua decisão em relação ao projeto de Moore, que se tornou uma das maiores obras em quadrinhos de todos os tempos: Watchmen.‖ (GUEDES, 2008, p. 194).

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Popularmente referido como Kirby Award, foi uma premiação de quadrinhos, concedida entre 1985 e 1987. O nome é uma homenagem ao quadrinhista Jack Kirby. 19 Prêmio voltado às melhores obras em quadrinhos do ano anterior. O nome é uma homenagem ao quadrinhista e teórico Will Eisner. 20 Prêmio voltado às obras de fantasia ou ficção científica. O nome é uma homenagem a Hugo Gernsback, fundador da revista de ficção científica Amazing Stories.


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Alan Moore, até então com pouca experiência em roteirizar personagens famosos para editoras grandes, teve a idéia de criar uma história fechada, adulta, um drama conduzido por questões históricas, filosóficas e morais, no qual os heróis existem de verdade no contexto global mundial de 1985, e sua existência afeta diretamente a sociedade, a cultura das massas, a política, a economia, as artes e o avanço tecnológico. Watchmen foi publicado em doze capítulos, divididos em doze edições, cujos títulos são: I- À meia noite todos os agentes...; II - Amigos ausentes; III - O juiz de toda a terra; IV- Relojoeiro; V- Temível simetria; VI - O abismo também contempla; VII - Irmão dos dragões; VIII - Velhos fantasmas; IX - As trevas do mero ser; X - Dois cavaleiros estavam se aproximando; XI - Contemplai minhas realizações, ó poderosos...; e XII - Um mundo forte e adorável. Os títulos fazem referência à literatura (Bíblia Sagrada, William Blake, Eleanor Farjeon, Percy Shelley); a famosos teóricos (com trechos de Nietzsce e Carl G. Jung), e à música (trechos de canções de Bob Dylan, John Cale e Elvis Costelo). Figura 16– Capas de Watchmen


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A obra conta a história de um grupo de super-heróis às voltas com a violência urbana, a hostilidade da população, o seu papel na sociedade em meio ao medo da iminente Terceira Guerra Mundial, e seus diferentes valores morais, éticos e os dilemas, definidos pela história de cada um. Nesse universo ficcional, assim como na vida real, as histórias em quadrinhos de super-heróis existiram. As próprias histórias do Superman, na Era de Ouro, realmente publicadas na revista Action Comics, serviram de inspiração para o surgimento dos supostos heróis reais da história de Watchmen. Uma síntese satisfatória, embora não completa, sobre o surgimento dos heróis está nas últimas páginas do primeiro capítulo de Watchmen: um trecho da autobiografia de um dos ex-combatentes do crime, Hollis Mason. Ele era um policial que, não satisfeito com o trabalho da polícia e vendo que poderia fazer mais pela sociedade, adotou um uniforme e o nome de Coruja, e tornou-se integrante da primeira formação do grupo de heróis, nos anos 50. Na história de Watchmen, Hollis já está na terceira idade e aposentado, e publicou o livro, de título Sob o capuz: Para mim, tudo começou em 1938, ano em que inventaram os superheróis21. Eu era velho demais para ler gibis, ou pelo menos para fazer isso em público sem comprometer minhas chances de promoção, quando a primeira edição de Action Comics foi lançada. Durante as minhas rondas, observei um bando de garotos lendo a revista e não pude resistir a dar uma folhada. Se alguém me visse, eu explicaria que só estava tentando manter um bom relacionamento com os jovens da comunidade. (...) Seja como for, basta dizer que li aquela história umas oito vezes antes de devolver a revista ao guri de quem eu havia arrancado. (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 37)

Influenciados pelos gibis de super-heróis que realmente existiram àquela época, cada aventureiro que aparecia servia como motivação para o surgimento de outros. O próprio Hollis Mason foi um exemplo: A reportagem sobre o segundo caso era mais detalhada. O assalto a um supermercado havia sido evitado graças a intervenção de ―um homem alto, com compleição de campeão de luta livre, usando capuz negro, capa e um laço em volta do pescoço.‖ Esse ser extraordinário atravessou a vitrine enquanto o roubo estava em andamento e atacou um dos assaltantes com tanta selvageria que os 21

Não ao acaso, o autor (e personagem) localiza o surgimento de seu grupo Minutemen, primeiros heróis da realidade da narrativa, justamente no início da Era de Ouro, época real, mas vivida por ele e seus companheiros na ficção de Watchmen.


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outros imediatamente largaram as armas e se renderam. Relacionando esse incidente com o anterior, os jornais redigiram a notícia sob a manchete ―Justiceiro Encapuzado‖. E assim foi batizado o primeiro aventureiro mascarado fora dos quadrinhos. Lendo e relendo aquele artigo, eu soube que deveria ser o segundo. Havia encontrado minha vocação. (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 34)

Na realidade de Watchmen, os heróis têm razões diversas para fazer o que fazem. Geralmente, são razões próprias de cunho político ou simplesmente moral: A resposta a essa pergunta, suponho, foi o que me levou a ser um policial. Foi também o que me transformou, tempos depois, em algo mais do que isso. (...) Sei que as pessoas sempre tiveram dificuldades em entender o que leva alguém a agir da maneira como eu e os outros agimos, o que nos motivou a fazer as coisas que fizemos. Não posso responder pelos demais, e imagino que nossas respostas sejam diferentes, mas no meu caso a explicação é bem clara: eu apreciava a idéia de aventura e me sentia mal se não estivesse fazendo o bem. Já ouvi todas as teorias psicológicas a respeito, bem como as piadas, rumores e insinuações, mas tenho como líquido e certo que me fantasiei de Coruja e combati o crime porque era divertido, porque era algo que precisava ser feito e porque eu tinha muita vontade de fazer aquilo. (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 37)

O momento histórico em que se passa a história principal de Watchmen é 1985, ocasião real da Guerra Fria, a semelhança com o contexto real desta época é um aspecto genuíno de verossimilhança externa da obra. Na história, o presidente Nixon havia conduzido os Estados Unidos à vitória na Guerra do Vietnã, conseguindo, assim, permanecer no poder por muitos anos. Somando-se a isso, há a existência de um poderoso personagem chamado Dr.Manhattan (nome verdadeiro Jonathan Osterman), com poderes de controlar a matéria e a energia, enxergar seu passado e futuro, teleportar-se e estar em mais de um lugar simultaneamente. Com sua presença, o país se torna a principal potência mundial, e o desenvolvimento tecnológico, resultado do trabalho do Dr. Manhattan em prol do país, que traz larga vantagem para os americanos na Guerra Fria, possibilita o precoce aparecimento de carros elétricos. No meio urbano, o meio de transporte mais usado e viável são os dirigíveis, e o petróleo não é mais a principal fonte de energia.


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Na história de Watchmen, a existência de heróis de verdade, tendo como ponto máximo o Dr. Manhattan, mais poderoso do que o Superman dos quadrinhos, que influenciou Hollis Mason, fez com que o gênero quadrinhos de super-heróis se tornasse, com o tempo, na história de Watchmen, obsoleto, dando lugar a revistas em quadrinhos com sangrentos contos de piratas, que, não ao acaso, pareciam imitar a realidade do país durante a Guerra Fria. A verossimilhança externa é feita duplamente: a nossa realidade é referenciada pela história em quadrinhos principal e pela história em quadrinhos dentro da história principal, a inovadora metalinguagem dos quadrinhos. A revolta da população e a greve da polícia, motivados pela existência dos super-heróis de verdade e pelo fato de serem mascarados e estarem acima da lei, tiveram como conseqüência a Lei Keene, que obrigava os mascarados a registrarem-se no governo, o que provavelmente lhes colocaria na condição de submissão ou lhes tiraria liberdade de agir. Assim, alguns se aposentaram e revelaram sua verdadeira identidade secreta para lucrar com a atenção dos meios de comunicação (como o primeiro Coruja Hollis Mason, Sally Juspeczyc, a primeira Espectral, e Adrian Veidt, o Ozymandias), continuaram seus trabalhos sob a supervisão do governo (como o Dr. Manhattan e Edward Blake, o Comediante), ou aposentaram-se no anonimato (como Dan Dreiberg, o segundo Coruja, e Laurie Juspeczyk, a segunda Espectral). Houve ainda a opção de continuar as atividades na condição de fora-da-lei (no caso, Walter Kovacs, o Rorschach): - Estou dizendo que não precisamos fazer alarde sobre o caso [o assassinato do Comediante]. Não precisamos de nenhum vingador mascarado se metendo no assunto. Vamos investigar com discrição. Mas, para o público, é melhor que o caso caia no esquecimento. - Sei não. Acho que você leva esse papo de justiceiro muito a sério. Desde que a Lei Keene foi aprovada em 1977, só os doidos com apoio do governo estão na ativa. E eles não interferem. - Eles não. Mas e o Rorschach? O Rorschach nunca parou. Nem depois que ele e os outros caíram em desgraça. Ele é perigoso como uma víbora e tem dois assassinatos nas costas. Isso foi apenas um simples homicídio. Se o cara se meter, vai sair cadáver pelo ladrão... (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 10)

Conforme o diálogo acima, no qual dois policiais mencionam Rorschach, a trama é movida pelas desconhecidas causas da morte de um dos heróis, o


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Comediante, em 1985. O ocorrido leva Rorschach, o único mascarado em atividade, a investigar o caso, buscar pistas, e ir ao encontro de seus ex-companheiros já aposentados, a fim de alertá-los sobre o que ele desconfia existir: um possível ataque sistemático aos mascarados, provavelmente organizado por criminosos presos por eles no passado. Diário de Rorschach, 13 de outubro de 1985, 20:30. Encontrar Veidt me deixou um gosto ruim na boca. Ele é mimado e decadente. Traiu até mesmo suas próprias hipocrisias liberais. (...) Dreiberg não fica atrás: um fracassado lamuriando-se no porão. Por que restam tão poucos de nós na ativa e sem desvios de personalidade? O primeiro Coruja [Hollis Mason] é dono de uma oficina. A primeira Espectral é uma puta velha e inchada morrendo num asilo na California. Capitão Metrópolis foi decapitado em um acidente de carro em 1974. O Mariposa está num hospício no Maine. Silhouette aposentou-se em desgraça. Foi morta seis semanas depois por alguém querendo vingança. Dollar Bill foi baleado. Justiceiro Encapuzado sumiu em 1955. O Comediante está morto. Só restam dois nomes na minha lista. Ambos moram no centro Rockefeller de pesquisas militares. Eu vou até eles. Vou avisar o homem indestrutível [Dr. Manhattan] que alguém planeja matá-lo. (MOORE e GIBBONS, 25, p. 25)

Contudo, o assassinato do Comediante é apenas parte integrante de um plano de destruição em massa organizado por Adrian Veidt que, durante anos, e com o nome de Ozymandias 22, fez parte do grupo de heróis. Este, considerado o homem mais inteligente do mundo por ser intelectual autodidata em todas as ciências, previu, ainda no início de suas atividades como mascarado, as conseqüências, em longo prazo, de todas as decisões políticas dos Estados Unidos, e elaborara um plano para evitar a Terceira Guerra Mundial: Pela primeira vez, compreendi genuinamente que a Terra poderia morrer. Reconheci a fragilidade do Mundo em tempos de perigo crescente... Mas o que eu poderia fazer? Meu primeiro passo foi me afastar para analisar o problema de uma nova perspectiva, ampliando ao máximo meu entendimento. Vi o ocidente e o oriente embrenhados numa espiral armamentista, a suspeita e o medo aumentando com os mísseis, tornando cada vez mais remota a chance de desarmamento. Aos poucos cheguei ao cerne do dilema. (...) Os dois lados reconheciam as implicações suicidas do conflito nuclear. No entanto, não podiam se esquivar delas sob pena do oponente tirar proveito. (...) Dada a matemática da situação, cedo ou 22

Referência a um poema de Percy Bysshle Shelley, e apelido dado ao faraó Ramsés II.


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tarde o conflito seria inevitável. (...) Eu previ que no fim dos anos 70 a decadência seria total. Isto me deixava dez anos para criar a fortuna e a reputação que me levariam além desse ponto, me garantindo o poder e a influência necessários. (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 367-368)

Adrian, além de conseguir tirar de ação o poderoso Dr. Manhattan, anulou todo e qualquer empecilho que pudesse desestruturar seu plano. Como recurso para seus propósitos, teve sua inteligência, o passar dos anos, sua fortuna oriunda da fama que obteve como celebridade após revelar sua identidade secreta, e as tecnologias genéticas que desenvolvera. Seu plano, controverso por destruir diversas cidades do mundo todo e causar inúmeras mortes, tinha como meta eliminar a possibilidade de haver qualquer guerra, visto que faria as autoridades russas e americanas verem forçadamente a necessidade de unirem-se para garantir a segurança do planeta: - Eu gerei um monstro, clonei seu cérebro a partir de um sensitivo humano, enviei a Nova York e matei metade da cidade. (...) Ninguém duvidará de que a Terra teve contato com uma força tão aterradora que deve ser repelida e todas as antigas animosidades postas de lado. (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 389-390)

Movido pelo princípio de que os fins justificam os meios, Adrian põe o plano em prática de forma infalível, e instiga seus ex-companheiros de combate ao crime quanto à moralidade do ato que acabara de fazer: - Eu consegui! Eu salvei a Terra do inferno, como disse Ramsés: ―Canaã está devastada, Ascalão tombada, Gezer em ruínas, Yenoan reduzida a nada, Israel está desolada, sua semente não existe mais, e a Palestina tornou-se viúva do Egito... Todos os países unificados.‖ (...) Vocês vão me denunciar, desfazendo a paz pela qual milhões morreram e arriscar uma investigação subsequente? (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 399-400)

Adrian executa seus planos tendo uma futura visão de um mundo utópico. E, embora tenha demonstrado frieza e inteligência racional além do comum, é representado, visualmente, com uma expressão melancólica e apreensiva, sempre a olhar para o horizonte. Na primeira oportunidade de diálogo com Dr. Manhattan após a execução do plano, ele verbaliza esta insegurança mascarada:


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- Olá, Jon. Eu esperava uma chance de podermos conversar. Jon... Eu sei que as pessoas me julgam insensível, mas consigo sentir cada morte. (...) O que é significativo é que eu sei que lutei sobre o dorso de inocentes mortos para salvar a humanidade... Mas alguém tinha de assumir o fardo desse crime hediondo e necessário. (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 406 – 407)

A história encerra-se com diversas cidades destruídas pela explosão de ondas causada pela morte do monstro, que fora teleportado, e as duas potências, Estados Unidos e Rússia, unindo-se pela segurança do planeta perante ameaças que ninguém sabia explicar. Era o fim da Guerra Fria, e a garantia de uma realidade completamente livre de qualquer guerra. Entretanto, na última parte do diálogo entre Adrian e Dr. Manhattan, este último refere-se à realidade como algo ainda inacabado, e impossível de ser encerrado em si mesmo: -Adeus, Adrian. - Jon, espere. Antes de partir... Eu agi corretamente, não? Deu certo no fim. - No fim? Nada chega ao fim, Adrian. Nada. (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 407)

Tal fala cumpre-se com o fato de que Rorschach, antes de ir com Coruja ao encontro de Adrian para impedi-lo, colocou, na caixa de correio, seu diário, que conta minuciosamente toda a história: Última anotação. Vou mandar o diário aos únicos em quem confio. Digo a Dreiberg [Coruja] que preciso checar minha caixa postal. Ele acredita. Quer eu esteja vivo ou morto, se você estiver lendo isto agora, vai saber a verdade: seja qual for a natureza desta conspiração, Adrian Veidt é o responsável. Esforcei-me para ser compreensível. Acredito que tracei um quadro aterrador. Aprecio seu apoio recente e espero que o mundo sobreviva até isto chegar às suas mãos, mas tanques estão em Berlim oriental e o fim está próximo. Quanto a mim, de nada me arrependo. Vivi a vida sem concessões, e agora avanço rumo às sombras sem me queixar. Rorschach, 1 de novembro de 1985. (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 334)

Tais anotações chegam às mãos de um editor de jornal que está enfurecido por não ter mais notícias sensacionalistas de tragédias e guerras para pôr em seu jornal, visto que o mundo vive na mais completa paz... ―Nada chega ao fim.‖


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A história, difícil de ser sintetizada devido à sua complexidade e grande número de referências e auto-referências, chegando ao uso da meta-história em quadrinhos ao referenciar dados reais precisos sobre o mundo e os quadrinhos de cada época dentro da própria história principal, é um marco na história dos quadrinhos de super-heróis, e aproxima-se mais de um romance do que de propriamente uma história em quadrinhos. Assim, a obra apresenta características para

ser

estudada

dentro

da

perspectiva

da

teoria

da

literatura,

mais

especificamente seu tempo, seus personagens e seu espaço, e a relação que se estabelece entre tais elementos de forma a constituir um texto original com uma linguagem inovadora, tal qual é feito com os romances, porém, dentro das especificidades que possui uma narrativa gráfica. As categorias de análise acima serão priorizadas, embora existam outras. Tal escolha justifica-se pela própria dimensão do trabalho.

6.1 AS PARTES DO RELÓGIO Na verdade, terem chegado aqui foi um feito soberbo, dadas as dificuldades. Deve ser desorientador. Esta busca leva ambos a regiões morais e intelectuais tão inexploradas e desconhecidas quanto o terreno que os cerca agora. Claro que o gelo por onde deslizam é escorregadio e mais fino do que aparenta. Esperemos que não se descuidem e se excedam. (Watchmen, página 348)

Antes de estudar as partes constitutivas e a literariedade de Watchmen, é importante ler a obra como tal: um romance gráfico. Watchmen, com sua complexidade e alto nível de aprofundamento em todos os aspectos, é, antes de um roteiro para uma história em quadrinhos, uma trama completa que cabe dentro do que se entende por romance. Obviamente, assim como não é qualquer narrativa que pode ser considerada literatura, não é qualquer história em quadrinhos longa e fechada que pode ser considerada um romance gráfico. Para ser as duas coisas, romance e gráfico, é


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necessário que estas duas características – visual e verbal – estejam muito bem elaboradas e harmonizadas. A parte visual precisa comunicar-se com a parte escrita. E, diferente do que diz o senso comum, representar visualmente não significa anular o imaginário do leitor, tampouco sua capacidade de construir sentidos a partir do que vê. Imagem também deve ser lida, interpretada, o que muda é a forma de ler. Para isso, é necessário que o leitor esteja atento ao que é mostrado, pois nada é representado por acaso dentro de um fragmento narrativográfico quando há características literárias. Um bom exemplo disso é o diálogo presente no capítulo VIII de Watchmen. Na primeira tira de quadrinhos da página, as imagens fazem o leitor logo perceber que se trata de uma conversa por telefone entre dois personag ens que já apareceram anteriormente na história, logo, facilmente identificáveis, Hollis Mason e Sally Juspeczyk. - Alô... É a Sally? Sally? Oi, tudo bem? Eu... Hollis. Hollis Mason. - Hollis? Nossa, desculpe. Não reconheci sua voz. Há quanto tempo! Como tem passado? Todos esses anos, você guardou meu número e esperou até a gente estar no fim da vida pra me ligar? - Bom... Esta é uma ocasião especial. Um cortiço pegou fogo na noite passada. As vítimas foram salvas por um dirigível. O piloto usava óculos de proteção. Tinha uma mulher com ele. (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 245)

O leitor comum de quadrinhos vai ter, como primeiro impulso, a ação de seguir lendo o diálogo e olhar superficialmente para as figuras. Mas a igual importância de imagem e texto nas narrativas gráficas requer que o leitor não ignore elementos ―chave‖ nos cenários, neste caso, nas casas de ambos os falantes desta ligação telefônica. O primeiro quadro possui a fala inicial de Hollis. O personagem sequer aparece por inteiro, dando maior destaque ao cenário que mostra um boneco dourado e quadros na parede, que são como que páginas de jornal. Aqui, o casamento entre imagem e texto consiste justamente em juntar esta conversa telefônica (verbal) com a presença proposital destes objetos no cenário (visual). O boneco é do próprio Hollis Mason vestido de Coruja, que era sua identidade como vigilante mascarado. O item é dourado, o que significa que o passado tem muito valor para Hollis.


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Figura 17– Sutilezas visuais 1

No além-livro, o leitor conhecedor da história dos quadrinhos vai identificar, neste objeto, uma referência à Era de Ouro que, de fato, existiu na realidade (metahistória em quadrinhos, verossimilhança externa). Há, ainda, na mesma imagem, uma coruja de enfeite, no mesmo lado do quadro em que Hollis aparece ao telefone. O jornal que aparece na parede é justamente desta época na qual, regularmente, uma colaboração importante do Coruja para com a Polícia era notícia. Assim, um simples jornal estar em destaque na parede da sala da casa do personagem é uma sutileza visual amplamente significativa. No segundo quadro, da fala de Sally, no asilo onde mora, há a presença de um frasco com a letra ―N‖. É um frasco do perfume ―Nostalgia‖, cuja marca pertence a Adrian Veidt, o vigilante que, após abandonar aposentar-se da carreira de mascarado, passa a ter uma vida confortável a partir dos lucros de seus produtos e de sua imagem. O nome do perfume, Nostalgia, casa-se com o cabelo grisalho de Sally e com as imagens na parede, que são de uma mulher jovem que esbanja sensualidade. Trata-se da própria Sally, nos anos 50, época em que, ao mesmo tempo em que fazia parte dos guardiões mascarados junto com Hollis Mason, era conhecida e cobiçada por sua beleza. A fala melancólica de Sally (verbal), somada às imagens dela jovem e bonita, seu cabelo grisalho e a presença de um facho de luz que vem da janela e que ilumina os seus retratos antigos (visual), contextualiza o tipo de vida que ela e Hollis


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levam nos presentes dias: vivem sozinhos e dão grande valor ao passado, de forma nostálgica, por meio de objetos de grande valor sentimental e emotivo. Figura 18– Sutilezas visuais 2

A última fala de Sally, aparentemente comum, não pode ser ignorada. Ela diz: ―Todos esses anos, você guardou meu número e esperou até a gente estar no fim da vida para me ligar?‖. Aqui, a ex-heroína mostra saber do interesse afetivo que Hollis tivera por ela durante o tempo em que estiveram no mesmo grupo de combatentes do crime e nunca o manifestou, por pensar ser inconciliável com suas vidas de justiceiros mascarados, e por Sally já estar comprometida com o próprio empresário. Tal interesse é expresso em outros momentos da história, mas este é o único instante em que Sally revela, indiretamente, para o próprio Mason, saber disso. No terceiro e último quadro, há uma visão em primeira pessoa de Hollis, que está sentado em uma poltrona, ao telefone, segurando um cigarro aceso na mão esquerda, e assistindo televisão. Quando o recurso da primeira pessoa é utilizado, é porque se deseja que o leitor esteja dentro do personagem, sinta o que ele sente, e veja com seus olhos. O leitor se transforma no personagem. Há um contraste de significados: nos dois primeiros quadros, há imagens estáticas e imutáveis, que se referem ao passado, que também é estático e imutável nas lembranças dos personagens. Neste quadro, há a presença da televisão, representando o presente.


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Em pleno ano de 1985, época em que a televisão já fazia parte das residências da maioria da população, Hollis e Sally ainda mantêm viva a década de 50 por meio de ícones imóveis dentro de seus lares. Figura 19– Sutilezas visuais 3

A presença proposital de objetos também é artifício do romance. Shüler (1989, p. 35) diz que Mario de Andrade ―adotou no romance técnicas de narrativa cinematográfica, move o foco da narrativa como se fosse uma câmera. Nos objetos enfocados e nos cortes feitos, o romance incorpora técnica narrativa próxima do cinema.‖ Logo, no caso de romances gráficos, é a mesma técnica, porém, ainda mais literal: o enquadramento funciona, realmente, como uma câmera, justamente pelo fato de o gênero também ser feito de imagens. Para ler Watchmen e qualquer romance gráfico como romance, é necessário ter o olhar atento para a sua parte gráfica da mesma forma que para a parte verbal, pois, assim, como no romance, mostra-se apenas o necessário: o arranjo coerente entre estas duas partes assegura a literariedade da obra.


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6.1.1 Os tempos mudando Os tempos, eles estão mudando... (Bob Dylan, cantor, compositor e escritor norteamericano)

Em Watchmen, o tempo é uma das principais marcas de literariedade. Como é um romance gráfico, a parte visual, tão importante quanto a parte verbal, deve situar o leitor no tempo. Existe um elemento de referência ao tempo histórico, que é fixo do decorrer da história: o relógio, marcando cinco para a meia-noite, que aparece diversas vezes. Há, também, cenas e objetos sutis cuja forma lembra um relógio com um ponteiro marcando cinco para meia-noite, tais como: o smile com uma mancha de sangue, símbolo do comediante em um bottom, na capa da primeira edição; uma gota de chuva em uma poça, na capa da edição numero 5; uma marca de dedo sob uma superfície de vidro empoeirada na capa da edição número 7; o radar do painel de um avião, na capa da edição numero 10; uma mancha na neve que cobre a instalação de Adrian Veidt no Ártico, na capa da edição número 11; e o próprio relógio, ensanguentado, na capa da edição número 12. O relógio é uma marca clara de tempo histórico, referido por Moisés (1967, p. 182). Além do objeto, há a presença sutil de capas de jornais, cartazes nas paredes e muros da cidade, e o diário de Rorschach, sempre datado. A já referida habilidade leitora se faz necessária para que haja interpretação mínima quanto à construção temporal da obra. Quanto à parte verbal, há, nos próprios diálogos, dados temporais de dias e anos, tudo a serviço de situar o leitor na linha de tempo cronológica com os respectivos fatos e sua ordem de acontecimento, tanto os da vida real como os acontecimentos ficcionais da própria história de Watchmen. O tempo psicológico, que, nas palavras de Moisés (1967, p. 182), difere do cronológico por ser ―subjetivo‖, enquanto o outro é ―objetivo‖, é medido ―pela intensidade de sensações e vivências, de forma a fugir da ordem exata em que aconteceram para fixar-se a tais eventos por si só em sua relevância‖. Watchmen, embora tenha o relógio como elemento chave, apresenta o tempo psicológico em sua forma narrativo-gráfica. Eisner (1989, p. 39) diz que ―o número e o tamanho dos


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quadrinhos também contribuem para marcar o ritmo da história‖. Assim, um meio constante de marcação de tempo no decorrer de toda a história é o tamanho e a forma dos quadros. Geralmente, quadros menores justapostos indicam uma ação ocorrendo em uma quantidade menor de tempo, enquanto quadros mais amplos sugerem uma cena mais demorada. A intensidade de momentos como marcador de tempo aparece em diversas formas. Uma delas é o próprio livro Sob o capuz, de Hollis Mason: Embora me ressentisse do velho pelo montante de culpa pressão e recriminação a que havia submetido meu pai, imagino que o simples fato de passar os primeiros 12 anos de vida nas proximidades do meu avô tenha estampado indelevelmente em mim um certo conjunto de valores morais. (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 36)

Há, ainda, a definição de tempo na perspectiva do Dr. Manhattan, que vê passado e futuro como algo único: ―Não existe passado. Não existe futuro. Percebe? O tempo é simultâneo, uma joia intrincada que os humanos insistem em enxergar um lado de cada vez, embora a estrutura interna seja visível em todas as suas facetas.‖ (MOORE e GIBBONS, Watchmen cap. IX, 1999, p. 6) O diálogo de Sally Juspeczyc com sua filha Sally, respectivas primeira e segunda Espectral, é um exemplo do que Forster (1969, p. 22) diz ser organizado em ―pináculos memoráveis‖, visto que, de acordo com o autor, ―parece haver algo mais na vida além do tempo, algo que pode convenientemente ser chamado de ―valor‖, mensurável não por minutos ou horas, mas pela intensidade‖. Sabe, agora só restam três Minutemen [primeira formação dos heróis, dos anos 50]. Eu, Hollis Mason, e o pobre Byron Lewis, no hospício em Maine. Engraçado... Eddie era o mais novo. Sempre dizendo que éramos velhos. Que ia enterrar todos. Sabe, era típico do Eddie. Sempre falando como se estivesse acima de tudo, como se nunca fosse acontecer com ele. Ele era o Comediante. Sempre achou que iria rir por último. (...) Laurie, eu estou com 65 anos. A cada dia o futuro parece mais sombrio. Mas o passado, mesmo as piores partes [referência à tentativa de estupro do Comediante com a personagem], vai ficando cada vez mais brilhante com o passar do tempo. (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 44)


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O diário que Rorschach escreve no decorrer da obra, também é outro exemplo dessa forma constante de referenciação temporal presente no decorrer da história. Embora sempre datado, a ênfase são sempre são os momentos: Diário de Rorschach, 16 de outubro de 1985 - (...) No cemitério, cruzes brancas se enfileram, marcas de giz numa lousa gigante. Faço última visita em silêncio, sem alarde. Edward Morgan Blake. Nascido em 1924. Comediante por 45 anos. Falecido em 1985, enterrado na chuva. É o que acontece conosco? Uma vida de conflitos sem tempo para amigos... E no fim só nossos inimigos deixam rosas. Vidas violentas terminando violentamente. Dollar Bill, Silhouette, Capitão Metrópolis... Nós nunca morremos na cama. Não é permitido. Algo da nossa personalidade, talvez? (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 65-66)

O tempo metafísico ou mítico, a que Moisés (1967, p. 182) define como sendo ―mais relacionado ao transcendente‖, e ―o tempo do ser, o tempo imutável, ―anterior à história e a consciência‖, no qual são contadas as histórias míticas e religiosas dos povos‖, também é um recurso utilizado na construção da narrativa de Watchmen. O recurso aparece, com maior evidência, nas referências históricas e míticas que formaram o caráter moral do personagem Ozymandias (Adrian Veidt). Assim como Dr.Manhattan imagina o próprio tempo como uma ―jóia intrincada‖, formada por presente e passado como se fossem um só, Adrian imagina a antiguidade e o presente como algo único, atemporal, a ser salvo da destruição. Seus planos utópicos de unificação do mundo, tendo a si mesmo como elemento centralizador em um mundo dividido em dois pela Guerra Fria, eram nada mais do que imitação daquilo que figuras históricas tentaram fazer em seus tempos. O único ser humano com quem eu sentia afinidade havia morrido 300 anos antes de Cristo. Alexandre da Macedônia. Eu o idolatrava. Morreu aos 33 anos, dominando a maior parte do mundo civilizado. Governando sem barbárie!(...) Houve mortes, é verdade... Talvez desnecessárias, mas quem há de julgar? (...) Eu decidi pautar meu sucesso no dele. (...) Queria ter algo a lhe dizer quando o encontrasse no saguão das lendas. (...) Alexandre havia apenas ressuscitado uma era de faraós. A sabedoria deles, realmente imortal, me inspirava agora! (...) No entanto, os maiores segredos dos faraós foram confiados a seus servos, enterrados vivos ao lado dos amos. (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 354-355)


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Contudo, na figura do Dr. Manhattan, aparece a forma singular do manuseio dos três tempos: cronológico, psicológico e mítico. O personagem, que é o único que tem superpoderes, consegue enxergar seu passado, presente e futuro como sendo apenas um elemento, referencia clara à Teoria da Relatividade, de Einsten, em cuja epígrafe, no capítulo IV de Watchmen, o cientista diz que, se soubesse de antemão dos inconvenientes causados pela descoberta do átomo, teria se tornado relojoeiro. Curiosamente, Johnathan Osterman, o Dr.Manhattan, é filho de um relojoeiro e herdara a profissão do pai. Este, com a popularização dos pressupostos da Teoria da Relatividade em 1905, temeu que sua profissão de relojoeiro se tornasse obsoleta. O início do capítulo IV de Watchmen apresenta um exemplo de fusão dos três tempos nas lembranças do Dr. Manhattan, cuja configuração de visão temporal difere da humana justamente devido ao fato de o personagem, mesmo fazendo referências cronológicas precisas, concentrar-se na intensidade de momentos específicos, conforme referido por Forster (1969, p. 22), e não necessariamente na ordem cronológica em que aconteceram: A fotografia está na minha mão. É a foto de um homem e uma mulher [o próprio Dr. Manhattan, quando ainda tinha forma de ser humano comum, e sua primeira namorada]. Eles estão num parque de diversões, em 1959. Em doze segundos eu solto a fotografia na areia aos meus pés e me afasto dali. Ela já está caída doze segundos no futuro. Dez segundos agora. A fotografia está na minha mão. (...) Sete segundos agora. É outubro de 1985. Estou em marte. É julho de 1959. Estou no parque de Palisades. Quatro segundos. Três. Estou cansado de olhar a fotografia. Abro meus dedos. Ela cai na areia aos meus pés. Eu vou contemplar as estrelas. Elas estão muito distantes, e sua luz leva tanto tempo para nos alcançar... Só o que vemos das estrelas são suas velhas fotografias. (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 109)

Porem, é importante salientar que a satisfatória compreensão de tais trechos transcritos apenas se dá pela leitura atenta das próprias páginas referidas, devido à característica gráfica que completa a narrativa verbal. Tais considerações permitem concluir que a construção do tempo da narrativa gráfica Watchmen seja visto como elemento literário por excelência. Alan Moore e Dave Gibbons, renomados profissionais dos quadrinhos modernos, fazem uso de pressupostos de autores da teoria da literatura para elaborar a complexidade temporal de Watchmen, visando a causar diferentes efeitos no leitor.


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6.1.2 Quem vigia os vigilantes? Quis custodiet ipsos custodes? (―Quem vigia os vigilantes?‖ - Juvenal, 60-127 AC, filósofo romano. Watchmen, p. 414)

Os personagens de Watchmen são, ao contrário do que aparece nos quadrinhos anteriores de super-herois, o que Forster chama de ―reais não por serem como nós (embora possam sê-lo), mas porque são convincentes‖ (1969, p.48). Alan Moore e Dave Gibbons apresentaram, tanto no aspecto psicológico construído pelos diálogos

quanto no aspecto de representação

gráfica, personagens

com

características que fogem daquilo que o leitor espera ver em uma história de superheróis. O próprio termo ―super-heróis‖ não é usado na obra, pois é substituído por equivalentes como ―vingadores mascarados‖, e ―aventureiros fantasiados‖, visto que, no contexto da história, a exemplo da nossa realidade, super-heróis são tidos como elementos pertencentes somente ao mundo da literatura e dos quadrinhos. Entendamos, inicialmente, o que vem a ser personagens de romance de acordo com Moisés (1969, p. 226-227): ― "pessoas" que vivem dramas e situações, à imagem e semelhança do ser humano, "representações", "ilusões", "sugestões", "ficções", "máscaras", de onde "personagens" (do lat. persona, máscara).‖ Watchmen partilha desta mesma consideração na condição de romance: enquanto na Era de Ouro os heróis tinham como características principais extrema confiança e segurança, e esbanjavam um condicionamento físico adequado para o que faziam, além de a maioria ter superpoderes, a obra de Alan Moore e Dave Gibbons apresenta apenas seres humanos, com problemas, dilemas e frustrações humanos, e que, de fato, usam máscaras. O motivo do uso das máscaras não está justificado pelo simples fato de fazer o que é considerado o ―bem‖ devido a algum trauma enfrentado no passado, típico dos primeiros super-heróis. Mas situa-se no limite entre a esta inclinação ao altruísmo tradicional e até mesmo ao egoísmo, chegando ao ponto de ter como razão o comum ato de evasão da difícil realidade que, a maioria destes personagens, enquanto imitações críveis de seres-humanos, vivencia.


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O primeiro Coruja, Hollis Mason, é reconhecido por ser íntegro e ter tido efetiva contribuição para a polícia;

justifica suas ações por meio do gosto pela

aventura e pela vontade de fazer o bem. Figura 20– Hollis Mason (Coruja I)

O segundo Coruja, Dan Dreiberg, basicamente segue seus passos. Vive sozinho e sua atividade de lazer, aos sábados à noite, é beber cerveja com o primeiro Hollis e, com ele, ter conversas nostálgicas. Dan é um intelectual, entendedor de pássaros e tecnologia avançada, a qual ele usava para desenvolver suas armas de combate ao crime. Tal qual Batman, Dan tem um lugar secreto em sua casa, onde guarda todos os equipamentos que desenvolveu. Porém, diferente de Batman, ele aparece em Watchmen com uma forma física pouco convencional para um herói uniformizado: a barriga saliente fica evidente enquanto Dan está uniformizado. Há momentos de Watchmen em que fica exposto até mesmo o complicado desempenho sexual do solitário Dan, que nada fez em vida além de intelectualizar-se e continuar a obra do primeiro Coruja Hollis Mason. Figura 21 – Dan Dreiberg (Coruja II)


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Edward Blake, o Comediante, é movido por motivos de benefício próprio. É imoral e tem uma percepção pessimista da realidade. Não sabendo como aceitar e compreender os dilemas próprios e os problemas mundiais, ele é um personagem depressivo e desesperado, visto que ri da realidade e se torna uma paródia dela em vez de usar seu campo de ação enquanto vigilante para transformá-la. O personagem, quando descobriu todo o plano de Adrian Veidt (fato que o levou a ser assassinado pelo mesmo), desesperou-se e consumiu excessiva dose de bebida alcoólica, chegando a invadir, à noite, a casa de um dos já regenerados vilões que prendera diversas vezes no passado para sentar aos pés de sua cama e ―desabafar‖, em meio a um choro desesperado. Ele não tem ideais na vida, nem como pessoa nem como vigilante. Diferente de Adrian Veidt/Ozymandias, que possui determinação e visão utópica de mundo, que o fizeram chegar ao extremo de querer assemelhar-se a Alexandre e Ramsés II em seu próprio tempo. Figura 22 – Edward Blake (Comediante)

Figura 23 – Adrian Veidt (Ozymandias)


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Sally Juspeczyc, a primeira Espectral, em atividade nos anos 50, usava sua imagem de combatente do crime para promover sua beleza e lucrar com ela. Como um sintoma de baixa auto-estima, opta por ser reconhecida apenas superficialmente pelos meios de comunicação e pelo público masculino, que a idolatrava. Tal fama, embora tenha a feito sentir-se realizada, encerrou-se com sua aposentadoria, e, na história principal de Watchmen, ela vive em um asilo. Sua filha, Laurie Juspeczyc, a segunda Espectral, sofre por não ter feito escolhas, pois se tornou o que sua mãe desejava. Sally, estendendo sua tendência narcísica de comportamento, quis reproduzir a figura de si mesma na filha Lauren, enquanto esta crescia. Submeteu-a a treinamentos para fazê-la tornar-se uma vigilante, o que faz a moça sentir-se frustrada na idade adulta. Laurie não pôde cultivar amizades, e o pouco que pôde conseguir fazer, no aspecto de estabelecer vínculos, fracassou. Figura 24 – Sally Juspeczyc (Espectral I)

Figura 25 - Laurie Juspeczyc (Espectral II)

Ao mesmo tempo em se relaciona com o poderoso Dr. Manhattan, depois da primeira crise entre o casal ela se envolve com o frágil Dan Dreiberg, o segundo


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Coruja. O ódio de sua própria vida, gasta no trabalho de prender bandidos, aumentou quando descobriu que Edward Blake, o Comediante, que havia tentado estuprar sua mãe depois de uma reunião dos vigilantes nos anos 50, é seu pai biológico. Dr.Manhattan, o único personagem que possui poderes, antes do acidente nuclear que alterou sua forma de vida, apenas havia estudado, tornando-se um grande cientista. Porém, a exemplo de Laurie, esta era a profissão que seu pai, relojoeiro frustrado, quis que ele seguisse. Figura 26 – Dr. Manhattan

Na história principal de Watchmen, Dr. Manhattan é um ser que não envelhece, e tem poder sobre todas as coisas, chegando a considerar estar acima de todos os seres humanos. Porem, tal ego o faz pensar em ter poderes de uma divindade, mas sua sabedoria é falha no quesito de relacionamento com as pessoas. Ele deixou sua primeira namorada por ter perdido o interesse nela em virtude do tempo, visto que, diferente dele, ela é humana e envelheceu. A situação com Laurie Juspeczyc não foi diferente: Você acha que foi nossa primeira discussão? Dan, você não sabe o que é viver com ele... O jeito como ele olha as coisas... É como se não se lembrasse do que são e não ligasse para elas... Pra ele este mundo, o mundo real, é como andar pela neblina, é como se as pessoas fossem sombras... Apenas sombras na neblina. Hoje, por exemplo! Eu fui embora depois de 20 anos. E sabe o que ele deve estar fazendo? Sua grande reação emocional? Está se arrumando pra entrevista ou observando quarks grudando em gluínos. Talvez as duas coisas. (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 83)


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Por fim, Walter Kovacs, o Rorschach, que fazia parceria com o Coruja Dan Dreiberg no combate ao crime. Rorschach possui um caráter inalterável na história, constrói para si mesmo uma moral maniqueísta. Para ele, existe o bem e mal, o honesto e o corrupto: Diário de Rorschach, 12 de outubro de 1985 – (...) As ruas são sarjetas dilatadas cheias de sangue e, quando os bueiros transbordarem, todos os vermes vão se afogar. A imundice de todo sexo e matanças vai espumar até a cintura e as putas e os políticos vão olhar para cima gritando "salve-nos"... E eu vou olhar para baixo e dizer "não". Eles tiveram escolha, todos. Podiam ter seguido os passos de homens honrados como meu pai ou o presidente Truman. Homens decentes, que acreditavam no suor do trabalho honesto. Mas seguiram os excrementos de devassos e comunistas sem perceber que a trilha levava a um precipício até ser tarde demais. E não me digam que não tiveram escolha. (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 7)

Implacável e impiedoso com os criminosos, Rorschach é considerado um sociopata desequilibrado. Durante o dia, enquanto não está ativo como vigilante, ele anda pelas ruas a observar tudo que acontece. Caracterizado como um mendigo, ele leva uma placa com a frase ―o fim está próximo‖, e é visto como um indigente inofensivo. Não usa um uniforme convencional de herói, apenas sapatos velhos, calça, sobretudo e chapéu, além da máscara com as manchas simétricas que se movem o tempo todo, conforme o calor do rosto. Seu nome é uma referência a um teste psicológico23. Vive em um pequeno apartamento, pouco se alimenta e quase não dorme, e não mantém constância nos hábitos de higiene. Não possui qualquer vínculo social, tampouco amoroso, visto que apresenta ter repulsa a tudo que for referente à sexualidade. Durante sua infância, sofreu agressões de todos os tipos por ser filho de uma prostituta, e presenciara a mãe em momentos de contato sexual, sendo depois agredido por atrapalhá-la. O personagem põe sua integridade 23

O nome Rorschach é uma referência à Prova de Rorschach, elaborada pelo psiquiatra suíço Hermann Rorschach em 1921. Consiste de 10 lâminas com borrões de tinta que obedecem a características específicas quanto à proporção, angularidade, luminosidade, equilíbrio espacial, cores e pregnância formal. Estas mentais que, por sua vez, fazem parte de um complexo de representações que envolvem idéias ou afetos, mobilizando a memória de trabalho. É um teste projetivo que consiste em obter, por meio destas manchas, um diagnóstico psiquiátrico do paciente a partir do tipo de lembranças às quais elas lhe remetem. A simetria do Teste de Rorschach é análoga à personalidade maniqueísta do personagem. (fonte: http://www.rorschach.com.br/prova-derorschach.php - acessado em 15/06/2012, às 21:00.)


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acima de tudo, tornando-se incorruptível, embora seus métodos e seu jeito antisocial não sejam bem vistos por seus companheiros vigilantes, à exceção do Coruja, com quem fizera parceria no combate ao crime. Figura 27 – Valter Kovacs (Rorschach)

Para todos os personagens principais, torna-se difícil fazer qualquer tipo de classificação precisa quanto à célebre definição de Forster (1969, p. 53) e Moisés (1967, p. 234), quanto a serem planos ou redondos. Embora pareçam às vezes previsíveis, são planos até o ponto de serem facilmente lembradas pelo leitor, porém, sua forma humanizada de ver o mundo e lidar com problemas remete a características de personagens redondas, que, por natureza, apresentam densidade psicológica. Alan Moore e Dave Gibbons apresentaram detalhamentos na construção psicológica dos personagens por meio de ações, falas e sutilezas visuais em suas representações. Rorschach, por exemplo, embora não tenha sofrido qualquer transformação de comportamento até sua morte, no final da obra, é psicologicamente bem desenvolvido e verossímil, tanto dentro da história ou como seria na vida real, e possui as características apresentadas por Moisés (1967, p. 234) para personagens redondas: ―Por meio de sua ação, temos a ilusão de nos realizar, de nos conhecer melhor, e vamo-nos compensando das frustrações da vida cotidiana. Rorschach pode ser o extremo que faz aquilo que a moral do leitor não o permite fazer. Em contrapartida, o Dr.Manhattan, demonstra um comportamento racional previsível até a edição número IX. Após perder o interesse na raça humana e exilar-se em Marte, é Laurie Juspeczyc que o convence a voltar para a Terra e ajudá-los a deter Adrian Veidt e seu plano de destruição em massa. Esta cena dos dois personagens em Marte, por ter enorme carga emocional e mostrar a mudança


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inesperada do Dr.Manhattan, até então tido como personagem completamente plana, é uma das mais expressivas de toda a obra. A descrição, em romances gráficos é feita pelas lentes do próprio olhar do leitor atento às sutilezas da arte gráfica, que é feita para reproduzir expressão, caracterizar ambientes, sons, cheiros, e ações com suas respectivas durações. A caracterização dos vigilantes, elemento importante na interpretação textual da modalidade narrativo-gráfica, é feita por Dave Gibbons em formato realista. Foge, pois, do modelo comum das histórias em quadrinhos. Enquanto heróis geralmente apresentavam musculatura que beirava ao desproporcional e poses heróicas clichês, Watchmen apresenta cidadãos comuns, com postura e movimentos próprios de sua personalidade humana. Assim sendo, a complexidade e o detalhamento dos personagens de Watchmen, feito pela precisa arte gráfica de Dave Gibbons, bem como da própria trama, tornam inviável qualquer tentativa categórica de classificá-los. Isto ocorre devido à obra ser parte de um gênero literário-gráfico sofisticado que, mesmo que esteja ainda em ascensão, foge de qualquer modelo convencional de construção narrativa.

6.1.3 Na cidade, no Antártida, no alto mar, em Marte...! Seria um mundo mais forte, um mundo forte e adorável onde morrer. (John Cale, músico britânico – Watchmen, p. 412)

Por fim, o espaço. Como as histórias em quadrinhos são feitas de recurso verbal e gráfico, a parte descritiva do romance concentra-se na parte gráfica: Watchmen tem como cenário principal Nova Iorque, com toda a devida caracterização correspondente a um lugar violento e caótico, onde impera o medo e a tensão típicos de um momento de expectativa por uma guerra mundial que pode acontecer a qualquer momento. Porém, mudanças drásticas de localidade acontecem: a cena das lembranças do Dr.Manhattan acontece quando este está exilado em Marte, após perder completamente o interesse na vida humana. Ele é o principal personagem no aspecto de romper as limitações de espaço, pois pode se teleportar para qualquer lugar, e a natureza de cada lugar em que ele se faz


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presente é apresentada como elemento que leva à introspecção e à reflexão sobre o que se passa na história: Em minha opinião, é um fenômeno exageradamente valorizado [a vida humana]. Marte se vira bem sem um único microorganismo. Veja: agora estamos sobre o pólo sul. Sem vida alguma, mas com degraus de trinta metros de altura, forçados pela areia e o vento a mudar sempre a topografia, fluindo ao redor do pólo em ondas de milhares de quilômetros. Diga-me... Que benefício um oleoduto traria a essa paisagem? (MOORE e GIBBONS, 2005, p. 291)

De Nova Iorque a Marte, a história tem sua conclusão na Antártida, onde estão as instalações de Adrian Veidt com todas as tecnologias necessárias para pôr seu plano em prática. Porém, o recurso máximo de ―pluralidade geográfica‖ mencionado por Moisés (1969, p. 176-177), e que implica em o autor aumentar a ação com o risco de deixar a desejar no desenvolvimento dramático, se dá pela presença dos Contos do Cargueiro Negro, que é uma história dentro da história principal. Há um personagem secundário, sem nome, um garoto negro que permanece sentado ao lado da banca de jornais e revistas. Durante toda a história de Watchmen, enquanto o jornaleiro, também secundário, interage com a realidade como um cidadão com suas próprias percepções leigas sobre o que acontece no mundo, o menino permanece na mesma posição, lendo uma revista em quadrinhos chamada Contos do Cargueiro Negro, que é uma sangrenta história de piratas. Isto seria um exemplo da tendência que, no universo de Watchmen, supostamente seguiram as histórias em quadrinhos, que não mais apresentavam super-heróis.


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Figura 28 – Personagens secundários

O leitor que lê Watchmen lê, simultaneamente, de forma intercalada com a história principal, a revista Os contos do Cargueiro Negro, que está nas mãos do garoto. Há uma sobreposição de balões de fala e trechos narrativos entre as duas histórias. Por vezes, a fala ou pensamento de um pirata aparece dentro de um quadro pertencente à história principal, bem como o contrário, e, em vários momentos, há uma justaposição de quadros: um da história pirata, outro da história principal, cuja quantidade, de ambas, depende muito do que acontece nelas. O que faz com que isso não torne a narrativa confusa é a incrível semelhança entre o lugar-cenário da Guerra Fria, pertencente à história principal, e a barbárie pirata nos mares, pertencente à revista lida pelo garoto, um exemplo de verossimilhança interna. E a aproximação das duas narrativas com o contexto real da época, um exemplo de verossimilhança externa.


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Figura 29 – Justaposição das duas histórias

A realidade pirata parece imitar a realidade política mundial de 1985. Assim, Watchmen

possui

pluralidade

geográfica,

e

pluralidade

espacial,

ambas

perfeitamente harmonizadas. De acordo com Forster (1969, p.30), ―muitos romancistas tem o sentido de lugar‖, e ―muito poucos tem o senso de espaço‖. Assim, Watchmen constitui uma narrativa muito à frente de seu tempo. Nos critérios de tempo, personagens, espaço e narratividade, ao mesmo tempo em que faz referência ao próprio gênero (meta-linguagem), é uma desconstrutora dele, e serviu de influência para muitos quadrinhistas nos anos posteriores.


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NADA CHEGA AO FIM... (OU CONSIDERAÇÕES “FINAIS”) Conjuminado à enorme aceleração tecnológica que antecipamos para o fim do milênio, este mosaico catódico evasivo e alternante desvela uma era de novas sensações e possibilidades. Uma era do concebível tornado concreto... E de milagres corriqueiros. (Watchmen, página 347)

A obra Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbons, por fazer uso de elementos constitutivos (personagens, espaço e tempo) com uma narratividade verossímil, e de evidente característica re-criadora da realidade, rapidamente tornouse um divisor na história das histórias em quadrinhos. Embora histórias em quadrinhos não possam ser consideradas literatura devido ao uso da arte gráfica em sua composição, esta semelhança de Watchmen com o gênero literário romance a faz ser um romance gráfico por excelência, embora, no meio acadêmico, ainda exista certa resistência ao reconhecimento dos quadrinhos como uma possível forma contemporânea de narrativa literária. Tal constatação não remete à ideia de superioridade e inferioridade entre duas artes narrativas diferentes: quadrinhos não têm a obrigação de estarem próximas ou assemelharem-se muito ao gênero romanesco, pois possuem diferentes partes constitutivas. Porém, estudar um romance gráfico dentro da perspectiva da teoria da literatura é uma forma de ampliar a área de estudos desta última. Os trabalhos de Forster e Massaud foram, em sua época, importantes precursoras do que temos hoje na área de estudos literários. Curiosamente, a estrutura de Watchmen está de acordo com o que os dois autores falam no aspecto de natureza do gênero romance, como era vista nas primeiras décadas do século XX. E Watchmen foi publicado entre 1986 e 1987, fora desta época. Isto justifica a ideia de que a literariedade nos quadrinhos não ocorre apenas dentro dos fundamentos contemporâneos de narrativa romanesca. Quanto a possíveis resistências ao estudo de narrativas gráficas dentro de uma perspectiva literária, é preciso ter cuidado para não julgar ou condenar todo um


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gênero por meio de suas exceções. Forster (1969, p. 9) é categórico em dizer que ―os livros devem ser lidos (má sorte, porque isso toma muito tempo)‖, e que esta ―é a única maneira de descobrir o que eles contêm‖, o que seria evidentemente uma forma justa de estudar a literatura de forma séria e criteriosa como deve ser. Por que não aplicar tal máxima aos quadrinhos? Por que julgar todo um gênero vendo apenas aquelas exceções, que aparecem destacadas nas bancas devido a adaptações cinematográficas pífias ou novas linhas de brinquedos de seus personagens? Não seria o mesmo que, no caso do romance, esquecer-se dos autores sérios e julgar todo o gênero tendo como base os livros de auto-ajuda disfarçados de romances, que fazem tanto sucesso comercial? Forster (1969, p. 21) ainda diz que ―o máximo divisor comum a todos os romances‖, aquela característica que todos possuem por natureza, é a de contar uma história. E os quadrinhos? São diferentes? Tamanha é semelhança que algumas modalidades de quadrinhos podem ter com o romance que podem, além de serem estudados dentro da teoria da literatura, até partilhar dos mesmos pressupostos em diversos aspectos. Um exemplo é o que Moisés fala a respeito do potencial mimético e narrativo do romance: O romance pode, mais do que o conto, a novela e a poesia (mesmo a de caráter épico, segundo o nosso entendimento da matéria), apresentar uma visão global do mundo. Sua faculdade essencial consiste em recriar a realidade: não a fotografa, recompõe-na; não demonstra ou reduplica, reconstrói o fluxo da existência com meios próprios, de acordo com uma concepção peculiar, única, original. (MOISES, 1969, p. 165)

E se, no início da citação acima, fosse usada a palavra ―gráfico‖ ao lado da palavra romance? Haveria alguma diferença na ideia? Dentro de tudo que já é sabido sobre o grande potencial narrativo dos quadrinhos, consolidado pelo surgimento dos romances gráficos e tão defendido por autores como Will Eisner, Scott McCloud e Álvaro de Moya, não é possível dizer que o gênero pode ter tais características, antes definidas apenas para o romance? Moisés (1967, p. 172) fala sobre a fronteira que deve ocupar o romance enquanto obra de arte. Além de partilhar de mesmos pressupostos da teoria do romance, o potencial artístico dos romances gráficos é tamanho que pode até levar o gênero a correr os mesmos perigos do romance. Podem pender para um extremo


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de apenas entreter, ou podem representar a realidade a ponto de intelectualizar-se e perderem a característica (re) criadora para tornarem-se registradoras, o que é trabalho da História, e não das artes. São questões importantes, que devem ser pensadas com seriedade no meio acadêmico. Moisés, em 1969, época de seu livro A criação literária: prosa I, chega a referir-se ao então futuro do romance como algo relacionado ao surgimento de novas modalidades narrativas ou até mesmo à extinção do gênero: Em qualquer hipótese, não poucos críticos e ensaístas entraram a pensar no fim da Literatura ou no seu colapso enquanto expressão duma forma de cultura e de sociedade em transformação. Com isso, ou o romance desaparecerá como tal, ou sofrerá modificações que o adaptem aos padrões em formação. A técnica, acoroçoando o aperfeiçoamento da imagem visual e musical, através do cinema e da televisão, condiciona o aparecimento de formas inadequadas à linguagem escrita, capazes de acelerar o desprestígio da imagem literária. O romance, graças ao papel que representa desde o Romantismo, é a fôrma literária que mais agudamente testemunha a metamorfose verificada nas atividades artísticas modernas. (MOISES, 1969, p. 164)

Das epopeias ao conto popular, passando pelas cantigas medievais, até o florescimento no século XVIII, o romance passou por diversas mudanças. Cada época com seus próprios elementos constitutivos, e sempre a (re) criar a realidade do homem em seu tempo. Assim, muito antes de cogitar o desaparecimento dele, é necessário considerar as diversas influências que ainda exerce sobre ele mesmo e outras formas narrativas, fazendo-as ter, a exemplo de Watchmen, características tão singulares a ponto de poderem ser submetidas a estudos da teoria da literatura, sem que isso implique qualquer conflito entre os dois gêneros. Mudanças paulatinas são inevitáveis. Embora Watchmen seja, essencialmente, uma história sobre super-heróis, a caracterização destes em todos os aspectos nada mais é do que o extremo do desespero e da solidão do homem contemporâneo que, tendo que se haver com complicadas questões existenciais próprias, mascara-se, assume outra identidade, fora da lei, justamente para não estar de acordo com o triste contexto político e social que o faz sentir-se desta forma. A fuga da própria realidade é característica do homem contemporâneo que estabelece vínculos com mais facilidade no meio virtual do que na realidade. Embora pessoas uniformizadas façam parte do mundo das


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histórias em quadrinhos, as motivações dos personagens de Watchmen são críveis no ponto de vista humano e real. E é justamente esta a questão fundamental: a harmoniosa junção entre esta característica criadora inteiramente verossímil com os clássicos elementos constitutivos é que faz a literariedade dos romances, característica compartilhada por Watchmen, diferenciando-a de qualquer outra história em quadrinhos de super-heróis publicada até então. O mundo como era no século XIX não é o mesmo mundo da contemporaneidade. A tecnologia, os valores, os vínculos humanos, o ritmo da vida, todos são diferentes. Logo, o leitor – ou consumidor – também é diferente. Assim, levado pela natural capacidade de engajamento com a realidade, o romance também já não é o mesmo. Não só o romance, mas as modalidades narrativas todas passam por mudanças substanciais com o passar dos anos. Exemplos não faltam para constatar-se que as próprias histórias em quadrinhos já não são como eram à época de suas primeiras circulações em forma de tiras de jornal. Schüler (1989, p.12) fala da importância deste rompimento dos procedimentos de criação literária que estão em voga, pois isso possibilita a libertação do peso da tradição, além de colocar novos fundamentos e reinventar caminhos. Isto não implica na extinção de um gênero para o surgimento de outro. É fato que a contemporaneidade caracteriza-se pela pluralidade – ou coexistência – narrativa. A influência, ou até a quase fusão entre dois gêneros, exemplificada pelos primeiros quadrinhos adultos, em especial por Um contrato com Deus e outras histórias de cortiço, cujo conceito estendeu-se para os quadrinhos de super-heróis, a exemplo de Watchmen, gera gêneros diferentes que, naturalmente, irão exigir critérios diferenciados para seu estudo. É uma busca que tem seu início na visão de leitores atentos à sua realidade, e, tais quais à velocidade, ou melhor, à simultaneidade da vida na contemporaneidade, os novos gêneros precisam ser reinventados para poder atender as particularidades dos tempos que correm. O presente momento é marcado pelo florescimento de histórias em quadrinhos literárias, e elas são um exemplo da incrível jornada que fizeram os quadrinhos até sua aproximação com o romance. Por isso, não é possível estudar um gênero como se ele fosse fixo, tivesse um fim em si mesmo, pois o mundo não é assim. ―Nada chega ao fim, Adrian. Nada.‖


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