EDITORIAL1 A MORTE QUE SE QUER JUSTIFICADA: MAIS UM INDÍGENA TOMBADO! Igor Vitorino da Silva
O silêncio cotidiano sobre o genocídio indígena no Mato Grosso do Sul tortura-me. O grito e ação política dos indígenas e de seus apoiadores ecoam para
muitos
cidadãos
sul-mato-grossenses
como
ação
infundada,
despropositada e inconsequente. Mais do que a indiferença política e social, como acusam muitos militantes, aterroriza-me certa cumplicidade social com o uso da violência e a celebração do extermínio social, ou seja, aceita-se e enaltecese socialmente a morte como solução para a questão indígena tanto no Mato Grosso do Sul como no resto do país. Talvez haja certo exagero na minha afirmação, ou uma “cegueira política”, dirão os conversadores, alimentada pela indignação e revolta que sinto ao ver as notícias de indígenas assassinados ou de povos que foram expropriados das condições de construírem a sua vida livre e digna, mas não há como não perceber que os povos indígenas constituem os seres “matáveis” do desenvolvimentismo projetado pelo Estado Brasileiro em articulação com tecnocracias, grandes empresas, elites econômicas e oligarquias políticas locais/regionais. A percepção social dos povos indígenas como entraves, gargalos, usurpadores, aproveitadores e bloqueadores do “sonhado progresso e
1 Os editores da revista Ofaié cedem de seu editorial de lançamento para dar espaço, neste ato simbólico, ao manifesto do historiador e professor de história no Campus Nova Andradina Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Mato Grosso do Sul, Sr. Igor Vitorino da Silva. Acreditamos que o presente manifesto encerra de maneira eloquente e clara nossas angústias e preocupações quanto à questão indígena no Estado do Mato Grosso do Sul. Registrese neste ato que o texto do professor Igor Vitorino da Silva anuncia, igualmente, o sentido ético e crítico de nossa linha editorial, sentido político este de que nos imbuímos ao criar a Revista Ofaié. Por essa razão a publicação do manifesto faz a vez de editorial.
desenvolvimento” minimiza e negligencia as forças sociais e políticas descomunais e perversas que ceifam-lhes dia-a-dia o direito de viver em suas terras
ancestrais.
Essas
imagens
sociais
depreciativas
difundidas
pedagogicamente, de maneira descontextualizada e generalizada, por parte das mídias nacional e local, associadas aos interesses dos grandes proprietários, buscam descredibilizar socialmente a luta sediciosa e crítica dos indígenas. Não é à toa que se ouve gente simples ou bem educada pelos botecos e palácios de qualquer cidade do país afirmando: Invadiram a propriedade alheia! Eles queriam o quê? Carinho? Tiveram o que mereciam. Esses bandos de marginais, bandidos, falaciosos! Tem que matar mesmo! Oziel Gabriel será mais um? Transformá-lo-emos em mais um corpo a compor os índices do extermínio histórico da população indígena brasileira? Aceitaremos o discurso de que fora uma simples fatalidade? Creio que o debate não pode paralisar-se na discussão sobre se as Forças Públicas de Segurança podiam ou não ter levado as armas para a desocupação, mas, pelo contrário, deve-se avançar na problematização (e visibilidade pública) se, realmente, o que levou ao seu uso foi a compreensão etnocidária, que é partilhada infelizmente por vários indivíduos e grupos sociais sul-matogrossenses e brasileiros, de que o corpo indígena não vale nada e que é um corpo eliminável, um corpo que pode ser imolado em nome da sagrada propriedade e da soteriologia desenvolvimentista. Esse holocausto está tão arraigado e justificado socialmente que não se discute e nem se percebe uma grande incoerência patente na imagem de indígenas, que resistem com pedras e foices às forças de segurança que exigem o cumprimento da ordem judicial com bombas de efeito moral, treinamento policial para momentos de crise e armas de fogos para “segurança” da tropa. E qual é a incoerência? Desproporcionalidade de força e organização entre a resistência
indígena
Terena
e
as
forças
de
segurança
pública.
Desproporcionalidade vivida no dia da resistência que significa enfrentamento da
violência dos jagunços, da estigmatização negativa da mídia, do preconceito social, do peso da corrupção e da articulação política e econômica de proprietários de terras com membros dos poderes judiciário, legislativo e executivo e a mídia nacional, denunciados diariamente por movimentos sociais, pesquisadores personalidades políticas e ONG’S. A morte do indígena Terena Oziel Gabriel nos impõe uma grande questão política: houve incompetência e ineficiência das forças policiais ou uma operação de extermínio indígena? A justiça não se fará apenas punindo os culpados e apurando-se os fatos, mas, sim, produzindo ações que levem a sociedade brasileira a repudiar e a combater a prática social, corriqueira e rotineira, de eliminação física e social de indivíduos e grupos sociais indesejáveis ou descartáveis para o “bom funcionamento da vida social”. Como construir uma ordem social democrática respeitável se alguns grupos sociais e indivíduos querem se colocar acima dela e colocar outros fora dela? Ou melhor, como falar em império da lei se há cidadãos mais iguais do que outros? Não seria essa a primeira violência a ser combatida? A violência do monopólio privado da Justiça e dos Direitos? Solidarizo-me com a população indígena sul-mato-grossense que resiste sem medo e destemor, dando a vida e o sangue, contra o poder instituído que lhes nega o direito de viver.
REIS, Leonardo Borges. A copa é de quem? Copa do Mundo como custo social. Revista Ofaié, Nova Andradina, v. 1, n. 1, p. 9-21, jan./jun. 2013.
A COPA É DE QUEM? COPA DO MUNDO COMO CUSTO SOCIAL Leonardo Borges Reis1 RESUMO: Trata-se de apontar os impactos sociais dos chamados mega-eventos esportivos. O marco referencial para a análise crítica da copa do mundo de 2014, que ora se apresenta no artigo, identifica as principais características impostas pela acumulação flexível do capital através das políticas de FIFA. Num segundo plano apontamos brevemente a ontologia da ludicidade, para então traçar os efeitos do futebol enquanto cultura de massas. Em outras palavras, com a modernidade a iniciativa governamental retira do esporte sua ligação orgânica com a sociedade, produzindo um campo heterônomo, de controle social, que ao final acaba por regular a sociedade nos parâmetros estruturados pela Indústria Cultural. PALAVRAS-CHAVE: Copa do Mundo; Futebol, Acumulação Flexível; Cultura de Massas.
“O senso de lealdade irracional para com algum tipo de comunidade sem sentido é uma espécie de aprendizado de subordinação ao poder e ao chauvinismo”. Noam Chomsky
Gostaríamos de falar, inicialmente sobre a magnitude social e emocional que os esportes assumem na sociedade em que vivemos 2. Para evitar mal entendidos (na medida do possível) devemos tomar o assunto da maneira mais clara possível, sem pretender com isso a redução do fenômeno, é claro, manifestadamente complexo. Pode-se dizer, sem muitos problemas teóricos, que vivemos em uma sociedade que prioriza de maneira exagerada os esportes, afinal de contas, gastamos horas em frente as mídias (televisão, internet, revistas, etc), discutindo assuntos relativos ao futebol, copa do mundo, olimpíadas, etc. Tal discussão absorve quase que a totalidade da vida ordinária do brasileiro médio, em outras palavras, não estar informado sobre o mundo esportivo é um fator de isolamento social na contemporaneidade. Imaginem então, quando alguém 1 Mestre em Ética e Filosofia Política pela UNESP – Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso do Sul. 2 O presente artigo foi originalmente concebido como uma palestra, a qual teve lugar durante o evento “Mesa Retangular”, desenvolvido por meu colega, Professor Igor Vitorino da Silva, em Março de 2012. Por essa razão faz-se necessário esclarecer que a abordagem linguística, a princípio, destinou-se ao formato oral, daí o uso do vocativo em algumas passagens.
A copa é de quem? Copa do Mundo como custo social
simplesmente não está preocupado com o futebol, quando um sujeito sequer torce por algum time. Pois é, esse indivíduo se torna, ipsis litteris, um pária em nossa sociedade. Sinceramente caros leitores, existe um universo cultural vasto a ser absorvido pelas pessoas, mas os livros ficam lá, na estante como enfeites ou depósitos de pó. Gastamos uma enorme quantidade de energia mental, por exemplo, com o futebol3, “temos coisas nas quais se pode usar a inteligência, como a política, mas as pessoas não podem realmente se envolver com elas de um modo sério – e então o que elas fazem é aplicarem suas mentes a outras coisas”, tal como ocorre com o futebol. Como nos diz o velho anarquista Noam Chomsky: Fomos preparados para sermos obedientes; não temos um trabalho interessante; não existe por aí praticamente nenhum para que sejamos criativos [que nos desenvolva como seres humanos]; no meio cultural somos observadores passivos do que costuma ser algo muito superficial [Indústria Cultural]; a vida política e social é algo fora de seu alcance; está nas mãos dos ricos. Então o que sobra? (CHOMSKY, 2005, p. 140).
Para vidas heterônomas, ou seja, sem liberdade de iniciativa intelectual, política, social ou artística o que sobra (entre outras banalidade) são os esportes, estes preenchem o vazio de nossa existência social, além de funcionalmente servirem à classe dominante. Ora, se aplicamos uma enorme quantidade de nossas energias individuais nos esportes de massa, além de contribuirmos para a mediocrização de nossas vidas, serviremos muito bem ao sistema de poder vigente. Afinal, como lembra o linguista:
[...] essa é também uma das funções básicas que os esportes têm na sociedade em geral: ocupam a população, impedem-na de tentar se envolver com as coisas que realmente lhes interessariam. De fato, presumo que isso seja parte do motivo 3
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Podemos encontrar a mesma opinião em Johan Huizinga, 2010.
Revista Ofaié
pelo qual os esportes para o público são enormemente apoiados pelas instituições dominantes. (ibid., p. 141)
Para aqueles que, por ventura, consideram essa posição radical por demasia, bem, não posso fazer nada além de fundamentar filosoficamente minha postura. Para corroborar o que digo seria interessante analisar comparativamente o fenômeno em relação a outras sociedades. Logo perceberemos, aos nos distanciarmos, que o futebol enquanto esporte de massa é um algo recente na história. Aliás, ao falarmos de jogos ou de ludicidade, não devemos nos furtar ao essencial no que diz respeito a antropologia do jogo: O jogo possui um caráter profundamente estético em nossa espécie, conforme acentua o filósofo húngaro Johan Huizinga : “a própria existência do jogo é uma confirmação permanente da natureza supralógica da situação humana” (HUIZINGA, 2010, p.06). Apenas seres dotados de linguagem, seres estes que ultrapassaram a barreira do que chamamos de universo conídico4, são passíveis de desenvolver o jogo. Em outras palavras, se jogamos, brincamos ou agimos com ludicidade, como se diz é porque somos mais do que seres previsíveis e mecânicos, afinal, o jogo é irracional e nenhum determinismo (biológico, físico ou psicológico) poderia lhe dar uma função prévia. Se observamos que “o jogo se baseia na manipulação de certas imagens, numa certa ‘imaginação’ da realidade (ou seja, a transformação desta em imagens)”, bem, então devemos “captar o valor e o significado dessas imagens e dessa ‘imaginação’” (HUIZINGA, 2010, p. 07). Bem, se analisamos que por detrás de todo jogo há uma expressão abstrata da criatividade humana (da capacidade de abstração/imaginação), perceberemos que este oculta uma metáfora, decisiva para o fator cultura, o fato de o jogo existir em nossas vidas não é algo trivial, afinal, toda metáfora é jogo de símbolos ou palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria um outro
4 “O ser da impressão e o ser-assim da impressão escapam à determinação exterior”. Nós estratificamos mas também desfuncionalizamos (Castoriadis, 1985. )
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universo, um universo poético, ao lado da natureza, cuja função é de extrato primeiro da sociedade5. O jogo participa desta segunda natureza que se chama universo da cultura (ibid., p.07).
O mundo simbólico (ao qual o jogo está
incontestavelmente ligado) passa a atuar em nossas vidas como uma segunda natureza, da qual não podemos dispor, senão ao preço de desistirmos de nossa condição humana (condição esta invariavelmente simbolizadora). A ludicidade, nesse aspecto antropológico que salientamos, tem por característica fundamental o fato de ser livre e característica de nossa natureza (é claro que a natureza não a explica ou determina em última instância). Temos por direito de nascença “a evasão da vida ‘real’”6, isso nos constitui (assim como ao jogo). Nesse sentido, logo percebemos que o jogo não pertence à vida normal ou comum visto que se “situa fora do mecanismo de satisfação imediata das necessidades e desejos” naturais (Ibid., p.07). Por essa razão Johan Huizinga propõe que o jogo:
Ornamenta a vida, ampliando-a, e nessa medida torna-se uma necessidade tanto para o indivíduo, como função vital, quanto para a sociedade, devido ao sentido que encerra, à sua significação, a seu valor expressivo, a suas associações espirituais e sociais, em resumo, como função cultural. Dá satisfação a todo tipo de ideais comunitários. (ibid., p. 12).
Tal como a obra de arte, “a função lúdica se verifica especialmente quando o espírito e a mão se movem livremente” (HUIZINGA, 2010, p. 223). Afinal, tal como a linguagem o jogo e sua manifestação estética “não tem contato com
5 Para Castoriadis a função estratificadora... 6
A relação sui generis da cultura implica no fato de que “[...] a humanidade rompe desde o início a simples regulamentação biológica, aparentemente e a nossos olhos fechada sobre si mesma.
O
homem
é
o
único
ser
vivo
a
romper
o
fechamento
informacional/representativo/cognitivo no e pelo qual é outro ser vivo [...] a seiva da monada psíquica jamais de esgota” (CASTORIADIS, 1985, p. 112)
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qualquer realidade exterior a si mesmo e contém seu fim em sua própria realização” (Ibid, p. 226). Por outro lado, a seriedade técnica na organização dos esportes deixa encoberta a manifestação da vida lúdica que há por detrás de toda manifestação da criação social. Afinal, ou admitimos que tudo é jogo, que a história é uma criação deliberada do campo humano, ou cairemos sempre na “auto-ocultação da sociedade, no desconhecimento pela sociedade de seu próprio ser como criação e criatividade” (CASTORIADIS, 1985, p. 116), e, nesse caso, alguém fará as regras do jogo por nós. Se o jogo e a ludicidade não possuem significação além de si próprios é porque a significação social e seu aparato simbólico são condições ontológicas (do nosso ser, constitutivas):
“a significação emerge para recobrir o Caos, fazendo ser um modo de ser que se coloca como negação do Caos [...] a significação é finalmente puro fato que em si mesmo não tem e não pode ‘ter significação’, ela deve situar-se aquém da necessidade absoluta, como além da absoluta contingência” (CASTORIADIS, 1985, p. 105).
Frente a tal asserção devemos nos perguntar, tal como Huizinga (2010): em que medida a cultura atual continua se manifestando por meio de formas lúdicas? Em que medida o futebol ou os esportes, em geral, manifestam a ludicidade? Uma análise ligeira nos mostrará que perdemos grande parte dos elementos lúdicos que caracterizaram outras sociedades. Mas o futebol não está na ordem do dia? Perguntaria alguém. Bem, o aumento da influência do futebol em nossas vidas não significa que estejamos vivendo com maior ludicidade, ou em consonância com nossas amplas capacidades estéticas. O jogo já não é algo do qual as pessoas participam efetivamente, enquanto fruição estética livre. O futebol, assim como a maioria dos esportes modernos, tornaram-se espetáculos, objetos de um consumo passivo e alienado (repletos de regras e demasiadamente sérios). A passagem do futebol de várzea ou da
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pelada de final de semana para a existência de clubes burocratizados de competição atesta uma característica crucial das sociedades industriais modernas: a necessidade de arregimentação da vida. Conforme Huizinga (2010, p. 219), por exemplo, “a estrutura da vida social inglesa [século XIX] foi altamente favorável [à burocratização do esporte], com os governos locais autônomos encorajando o espírito de associação e de solidariedade”, num contexto da ausência de um serviço militar obrigatório, favorecendo a ocasião para o exercício físico e a arregimentação militares. A sistematização e racionalização do esporte, naturalmente, desembocam na progressiva ruína da ludicidade (fruição livre como divertimento e do prazer puros). A divisão entre profissionais e amadores institui de maneira irreversível a seriedade nos jogos que, antes de mais nada, dispunham de ludicidade na medida em que eram espontâneos e despreocupados. Na modernidade, a iniciativa governamental retira do esporte sua ligação orgânica com a sociedade, produzindo um campo heterônomo, de controle social, que ao final acaba por regular a sociedade. O esporte na modernidade desempenha o papel impeditivo ao direito “natural” à ludicidade, algo elementar a nossa condição de humanos. Talvez, senhores professores, queiramos máquinas ao invés de homens (se essa é a intenção estamos em um bom caminho). Se a organização técnica dos jogos e dos esportes se impõe à ludicidade, este processo reflete, em grande medida, a concorrência e a competição comercial de nossa vida econômica, essa viga mestra incide sobre a consciência esportiva: hoje “os negócios se transformam em jogo e, naturalmente, o jogo também se transforma em negócio” (HUIZINGA, 2010). O futebol organizado, portanto, enquanto fenômeno de uma cultura de massas, não poderia deixar de cumprir aos requisitos estruturais da chamada Indústria Cultural. Se a publicidade se apropria periodicamente de figuras modelo (Neymar, Ronaldinho, etc) isso se dá por conta da cultura (bens de consumo) estar estruturada segundo a lei do mercado. Para Edgar Morin, pensador francês,
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na Indústria Cultural “não há prescrições impostas, mas imagens ou palavras que fazem apelo à imitação, conselhos, incitações publicitárias” (MORIN, 2005, p. 109). Os chamados Olimpianos da cultura de massa sintetizam em suas vidas (vide comerciais) os tipos ideais necessários ao consumo. Os Olimpianos assim, animam a imagem da verdadeira vida: compre isto e seja um homem. Se a esfera de criação lúdica está distante do futebol, assim como dos esportes modernos, resta responder a questão que nomeia nossa intervenção: De quem é a Copa? Sabemos (ou não) que os imensos custos sociais gerados pelas obras da Copa atendem muito mais a lógica da especulação (acumulação flexível)7 do que à demanda de uma gestão local racionalizada e democrática. É ridículo observar as críticas da imprensa brasileira à organização da Copa, já que o problema não é de governo, o problema é o governo8. A questão não é a má gestão das obras da Copa do Mundo, o cumprimento dos prazos, etc., o problema é própria Copa como alternativa econômica. Os veículos midiáticos tratam a Copa como uma demanda legítima e popular, a priori, a qual restaria apenas aparar algumas arestas. Ora, o poder real de organização da vida urbana está em outro lugar meus caros, conforme David Harvey está “numa coalizão de forças mais ampla, em que o governo e a administração urbana desempenham apenas papel facilitador e coordenador” (HARVEY, 2005, p.169). Pode-se dizer que vivemos sob a era do
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“A instabilidade macroeconômica mundial surgida nos anos de 1970 e seus desequilíbrios, como a hipertrofia do capital financeiro, abalaram o crescimento dos mercados nacionais protegidos e em expansão desde o pós-1945, promovendo a utilização de inovações tecnológicas e organizacionais que, por sua vez, resultaram em novas formas de produção e de circulação de mercadorias e serviços, alimentando mudanças nos mercados de consumo. O pilar do crescimento contínuo do consumo e da produção de massa de artigos estandardizados foi então substituído por um consumo aparentemente personalizado, com mercados cujo lento e instável crescimento passou a ser atendido por um sistema produtivo ‘flexível’, ‘enxuto’ e crescentemente transnacionalizado”. (PINTO, 2010, p. 51).
8 Em outras palavras, a questão política que se salienta é o recobrimento da sociedade do seu ser como auto-criação.
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empreendedorismo urbano e, com o declínio do Estado de Bem-Estar Social, caberia aos governos locais a competência administrativa de competir pelos melhores investimentos externos (modelo empresarial). O modelo em questão pode ser resumido da seguinte forma: os municípios devem se estruturar como empresas que buscam competitividade se quiserem atrair os interesses do mercado. O poder de organizar o espaço urbano, mesmo que alvo de tensões sociais contraditórias (conjunto complexo de forças), tende de maneira precípua aos interesses do capital, aos interesses de quem investe (o Estado, mesmo com a complexidade dialética das forças sociais, ainda é o balcão de negócios da burguesia). Não construímos as cidades em função das pessoas (coletividade), mas em função de quem detém o poder econômico: “o novo empreendedorismo tem, como elemento principal, a noção de 'parceria público-privada', em que a iniciativa tradicional local se integra com o uso dos poderes governamentais locais, buscando e atraindo fontes externas de financiamento, e novos investimentos diretos ou novas fontes de emprego” (HARVEY, 2010, p. 170). A campanha entre as cidades e países para sediar eventos esportivos, tais como a Copa, são um exemplo claro da situação. A autoridade local assume o papel de facilitadora dos interesses estratégicos do desenvolvimento capitalista. A organização de grandes espetáculos esportivos de base temporária facilitam a regeneração do capital urbano sempre à espreita de boas presas, é a lógica do morcego: sugar e desaparecer. Segundo Harvey:
a atividade da parceria público-privada é empreendedora pois, na execução e no projeto, é especulativa, e, portanto, sujeita a todos os obstáculos e riscos associados ao desenvolvimento especulativo, ao contrário do desenvolvimento racionalmente planejado e coordenado. Em muitos casos, isso significou que o setor público assumiu os riscos, e o setor privado ficou com os benefícios [...] o novo empreendedorismo urbano se apoia na parceria público-privada, enfocando o investimento e o desenvolvimento econômico, por meio da construção
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especulativa do lugar em vez da melhoria das condições num território específico [...] [Nesse sentido ] Competição dentro da Divisão Internacional do Trabalho significa a criação e exploração de vantagens específicas para a produção de bens e serviços. (HARVEY, 2010, p. 172).
Deve-se acentuar, contudo, que turismo e consumo, atividades estimuladas pelo esporte espetáculo dão poucos indícios de um desenvolvimento econômico satisfatório. O importante neste cenário, da concorrência interurbana, é que
esta
(guiada
pela
lógica
dos
investimentos privados) impõe
estruturalmente certos limites aos projetos locais (por isso não devemos confundir gerencia urbana com ingerência privada). Neste quadro competitivo, a organização urbana está submetida às leis do mercado, uma vez que se submete ao poder coercitivo externo dos investidores. Além do mais, devemos ter em mente que no atual estágio do “desenvolvimento” capitalista poucos ou raros são os casos de fixação dos investimentos, já que a economia é caracterizada por fluxos de interesses. Cabe as cidades, neste papel de empreendedoras, atrair o fluxo de produção (em outras palavras, fazer o jogo dos interesses externos). Segundo Harvey: “O caráter especulativo dos investimentos urbanos deriva da incapacidade de prever exatamente qual o pacote terá ou não sucesso, num mundo de muita instabilidade e volatilidade econômica” (HARVEY, 2010, p.178). Dessa maneira a governança urbana torna-se vulnerável “às incertezas da mudança acelerada” dos mercados. Nada é mais nítido no atual empreendedorismo do que a organização ou desregulação9 em nome dos poderes externos. Dessa maneira “a ênfase na
9 Atos e leis de exceção têm criado um estado de alerta frente a direitos constitucionais considerados cláusulas pétreas “isto é, princípios intocáveis pelo próprio Poder Legislativo, podem ser abolidos ou atropelados por acordos com a FIFA [por exemplo] a recente lei número 12.462/2011, que instituiu o Regime Diferenciado de Contratações Públicas, ou simplesmente RDC, um verdadeiro atalho à Lei de licitações.” Temos ainda as isenções criadas pelo decreto 7.578/2011. Cf. Le monde diplomatique Brasil. Ano 5, número 52.
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A copa é de quem? Copa do Mundo como custo social
criação de um ambiente local favorável para os negócios acentuou a importância da localidade como lugar de regulação concernente à oferta de infra-estrutura, às relações trabalhistas, aos controles ambientais e até à política tributária em face do capital internacional” (ibid., p. 179). As corporações, nesse sentido, servem-se de condições excepcionais ou de exceção (controle do mercado de trabalho, isenção de impostos, etc.) criadas pelas governanças locais e, em geral, os riscos sociais são assumidos pelos setores públicos enquanto diminui para o capital internacional o “custo da mudança localizacional”. Como o principal objetivo da governança empreendedora é estimular ou atrair a iniciativa privada, criando as condições prévias para o gasto rentável, o governo local, de fato, acaba sustentando a iniciativa privada ao assumir parte do ônus dos custos de produção (Na linguagem comum chama-se esse processo de fomento a competitividade). Como, atualmente, o capital tende a ter maior mobilidade, resulta que crescem os subsídios locais ao capital, enquanto diminui a provisão local para os desprivilegiados, “criando uma maior polarização na distribuição social da renda real.” (ibid., p. 180). O papel hipotético da governança local, de ofertar bem-estar social no sistema urbano entra, portanto, em choque com o modelo competitivo e empreendedor. Com relação as obras da Copa, a título de exemplo, desde cedo notamos que não há um planejamento urbano abrangente neste cenário, afinal, o que está em foco é a “capacidade localizada de aumento dos valores das propriedades”, quiçá alguns empregos e o aumento da circulação sejam fatores a serem contabilizados, todavia, na produção de bens, caracterizado pelo fluxo ou giro acelerado de capital, sempre haverá algo de duvidoso quanto ao futuro da organização urbana. Para finalizar, (sob a ótica do aspecto político do tema) resta-nos apresentar uma breve análise do fator de aglutinação social estabelecido pelo futebol, no que tange principalmente, ao universo da identidade nacional. A formação de um ideário de Nação, capaz de incorporar as manifestações populares autônomas das classes baixas, que compõem as camadas sociais do
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tecido social urbano brasileiro, não é um fenômeno recente. Nada melhor do que o futebol para harmonizar os pungentes conflitos de classe que atravessam a sociedade brasileira. O futebol como paixão nacional torna-se o ópio do povo (como na paráfrase de Nelson Rodrigues), ópio este ministrado e regulado através da crescente importância que o esporte adquire desde os anos 30 em nosso imaginário. Graças ao fator de aglutinação social presente no universo mental futebolístico brasileiro, este esporte de massas servirá como luva aos propósitos de unidade nacional (Se a nação é uma comunidade imaginária, nossa nação terá no futebol um dos seus grandes eixos culturais). A presença maciça dos interesses do capital na organização urbana da Copa é em larga medida ofuscado pelo que poderíamos chamar de “civismo futebolístico”. A governança local, ciente do seu poder retórico dissuasivo utilizase em larga medida da estética mobilizadora que exerce o futebol sob nossas consciências. De fato, o joguete com o imaginário futebolístico, feito pelas governanças municipais, é visível através das campanhas publicitárias que mobilizaram as capitais brasileiras na disputa em torno da recepção dos jogos. Na tentativa de envolver os cidadãos em um evento crucial aos interesses privados surge o apelo sórdido a uma pretensa “cultura nacional”, que sabemos ser parte de um projeto antigo, artificial e heterônomo, que se consolidou na história do Estado brasileiro.
Se do ponto de vista do desenvolvimento
econômico tais projetos não se mostram duradouros, afinal, o fluxo de capitais que atravessaram os centros urbanos envolvidos na Copa serão passageiros, dada a natureza do capital especulativo envolvido (típico de investimentos acelerados e flexíveis), resta perguntar: qual lógica social envolve as lideranças locais em tais projetos além do endividamento público? Podemos citar a esclarecedora hipótese de David Harvey, segundo o qual: A criação de uma imagem urbana desse tipo também tem consequências políticas e sociais internas [...] Se todos, de punks e rapers a yuppies e haute bourgeoisie, são capazes de participar
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na criação de uma imagem urbana, por meio da sua produção de espaço social, então todos podem sentir alguma pertinência em relação a esse lugar. A produção orquestrada de uma imagem urbana também pode, se bem-sucedida, ajudar a criar solidariedade social, orgulho cívico e lealdade ao lugar [...] O empreendedorismo urbano (em oposição ao administrativismo burocrático, muito mais sem rosto) se enreda, nesse caso, com a busca da identidade local, e, como tal, abre um leque de mecanismos para o controle social. Atualmente, a famosa fórmula romana – pão e circo – candidata-se a ser reinventada e revivida, conforme a ideologia da localidade, do lugar e da comunidade torna-se central para a retórica política da governança urbana, que se concentra na ideia da união, na defesa contra um mundo hostil e ameaçador de comércio internacional e concorrência acirrada. (HARVEY, 2006, p. 183).
Em resumo, é necessário lembrar que Copa do Mundo não guarda praticamente nenhuma relação com o esporte de fato (atividade culturalmente criadora), trata-se antes de mais nada de um negócio à serviço da acumulação flexível do capital. Logo, por se tratar de negócio resta perguntar: quem sairá ganhando na jogatina? Partido alto para a o capital internacional é a resposta.
Referências CASTORIADIS, Cornelius. A instituição da sociedade e da religião. In: Os destinos do totalitarismo e outros escritos. Porto Alegre: L& PM editores, 1985. CHOMSKY, Noam. Para entender o poder: o melhor de Noam Chomsky. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. DA SILVA, Francisco Carlos Teixeira & SANTOS, Ricardo Pinto dos (ORGs). Memória social dos esportes - Futebol e Política: a construção de uma identidade nacional. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2006. HARVEY, David. Do administrativismo ao empreendedorismo: a transformação da governança urbana no capitalismo tardio. In: A produção capitalista do espaço. São Paulo: Anna Blume, 2005. HOSHINO, Thiago A. P & GORSDORF, Leandro Franklin. A lei geral dos interesses particulares. In: Le monde diplomatique Brasil. Ano 5, número 52.
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HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 6º. ed., 2010. MORIN, Edgar. Cultura de Massas no século XX: neurose (vol. 1). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. PINTO, Augusto Geraldo. A organização do trabalho no século XX: taylorismo, fordismo e toyotismo. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
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VALERIO, Raphael Guazzelli. A pedagogia anarquista: uma introdução. Revista Ofaié, Nova Andradina, v. 1, n. 1, p. 22-34, jan./jun. 2013.
A PEDAGOGIA ANARQUISTA: UMA INTRODUÇÃO Raphael Guazzelli Valerio RESUMO: Pretende-se neste artigo fazer uma breve exposição da corrente pedagógica conhecida como pedagogia anarquista, ou pedagogia libertária. Para tanto analisaremos o surgimento e o desenvolvimento da teoria política anarquista, bem como de seus principais pensadores. A seguir procura-se fazer uma síntese da proposta pedagógica libertária e, ao final, uma breve recapitulação histórica das práticas pedagógicas anarquistas no contexto brasileiro. PALAVRAS-CHAVE: pedagogia, anarquismo, autonomia, autogestão, liberdade.
Introdução Faremos aqui uma breve análise da corrente educacional conhecida como pedagogia anarquista ou, pedagogia libertária. Para tanto procederemos da seguinte forma: em primeiro lugar traçaremos uma genealogia sumária da doutrina política chamada de anarquismo ou comunismo libertário, da qual se nutre tal tendência pedagógica. Procuraremos, ainda que brevemente, fazer um pequeno histórico dos principais expoentes do pensamento anarquista no intuito de melhor compreender o lugar da pedagogia na ótica libertária. Terceiro, explanaremos acerca dos principais princípios geradores do anarquismo, aqui a educação assume papel importante. Em seguida analisaremos os princípios que animam a pedagogia anarquista propriamente dita e, por fim, parece-nos importante traçar um pouco da contribuição do pensamento libertário para a história da educação brasileira. O pensamento pedagógico anarquista foi negligenciado pelas correntes pedagógicas predominantes, oficiais e não oficiais. Ora, isso é bastante compreensível, já que, do ponto de vista da educação oficializada, isto é, encabeçada pelo Estado, a pedagogia libertária ocupa o lugar de inimigo por ter como uma das finalidades justamente a abolição do Estado e a construção de uma sociedade radicalmente nova, livre de qualquer tipo de poder e impedimento. Sob a ótica das pedagogias não oficiais, destacamos, sobretudo o
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pensamento marxista e muitas de suas correntes, o anarquismo também foi rejeitado, pois, apesar de ambas correntes teóricas terem um fim comum, qual seja, a abolição da sociedade de classes, os métodos para tanto são distintos. Como o pensamento pedagógico marxista tornou-se, entre as pedagogias contestadoras, predominante, por conta de diversos acontecimentos históricos que não cabem aqui discutir, a pedagogia libertária também foi negligenciada no pólo educacional oposto, isto é, o que visa uma transformação da sociedade. Acreditamos que as ideias pedagógicas anarquistas têm muito a contribuir para a educação na medida em que propõe valores importantes para o desenvolvimento do homem numa direção oposta àquela que é a realidade da educação contemporânea, como liberdade, autonomia e desenvolvimento integral. Prova disso é a recente recapitulação do pensamento anarquista no debate de pesquisadores brasileiros de filosofia da educação, que têm relido os clássicos anarquistas sob o pano de fundo do pensamento filosófico contemporâneo, sobretudo Foucault e Deleuze.
1 O Anarquismo
As ideias geradoras do anarquismo já podem ser encontradas no pensamento clássico grego e, até mesmo, nas primeiras comunidades cristãs, passando por pensadores medievais, como Campanella, como também entre os modernos, contudo, ele só vem a tomar corpo no século XIX, no seio da classe operária ainda nascente. Seus precursores teóricos são os mesmos que animaram o comunismo marxista, também este desenvolvido com vistas à classe trabalhadora, falamos aqui dos chamados socialistas utópicos, Robert Owen, Saint-Simon e Charles Fourier1. Estes pensadores, observando a miséria e a exploração a que estavam 1 Durante a Revolução Francesa, François Noel Babeuf, conhecido como Graco Babeuf, liderou a chamada “Conjuração dos Iguais” que tinha como uma das propostas a abolição da propriedade
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submetidos os trabalhadores europeus daquela época, desenvolveram duras críticas ao sistema político e econômico da sociedade capitalista. Estas críticas serão recapituladas, desenvolvidas e radicalizadas pelos anarquistas. Falar em uma doutrina anarquista é muito difícil, pois são vários os seus propagadores, bem como as ideias que lhe subjazem, por isso preferimos, seguindo as orientações de Silvio Gallo (GALLO, 1995) falar em princípios geradores do anarquismo que, no entanto, estão submetidos a uma ideia comum, qual seja, o da negação da autoridade e da afirmação da liberdade. O próprio termo carrega em si este sentido; do grego antigo archon, governante ou governo, e an, sem, negação, isto é, sem governante, contrário à autoridade. Deste modo percebe-se que o anarquismo está muito longe daquela concepção cotidianamente dada ao termo como sinônimo de bagunça ou desordem. Adiante veremos seus princípios norteadores que são basicamente quatro: autonomia individual, autogestão social, internacionalismo e ação direta, por ora acompanhemos um pouco do histórico do anarquismo, bem como de suas ideias por meio de seus principais pensadores.
2 Expoentes do anarquismo
Dentre os principais anarquistas destacamos Proudhon (1809-65), Bakunin (1814-76), Kropotkin (814-1912), Malatesta (1853-1932) e o pedagogo espanhol Francisco Ferrer i Guàrdia (1859-1909). Pierre-Joseph Proudhon, considerado o primeiro socialista libertário, foi quem cunhou o termo anarquia no sentido de uma doutrina política contrária ao
privada, tópica essencial para entender o projeto socialista em suas várias tendências. Assim, se o socialismo nasce efetivamente dos utópicos, Graco Babeuf pode ser considerado seu precursor mais próximo. Babeuf foi guilhotinado em 1797 durante o Diretório (1795-99).
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Estado: “Todos os partidos, sem exceção, quando querem conquistar o poder, são variedades do absolutismo” (PROUDHON apud HYAMS, 1975, p.156). De sua obra decorrem diversos princípios fundamentais que orientam o anarquismo até meados do século XX, a rejeição do Estado e da propriedade privada dos meios de produção, entendidos como perniciosos, a defesa das classes trabalhadoras e de sua organização econômica autônoma, o coletivismo, o mutualismo e, no plano político, o federalismo que substituiria uma organização política autoritária e transcendente, o Estado. Em sua obra póstuma de 1865, De La capacite politique des classes ouvrières, encontramos uma síntese de todo seu pensamento. As classes operárias em sua luta pela justiça, único princípio formal transcendente em seu pensamento, não separam problemas de ordem política, econômica e social, como fazem a economia política clássica e a organização social capitalista. A divisão social do trabalho no sistema capitalista leva a uma espoliação das classes trabalhadoras em benefício dos capitalistas. Ao isolar-se o domínio econômico do político/social, segundo Proudhon, mascara-se o fato de que o capital nada produz e que apenas o trabalho é produtivo. O sistema da propriedade capitalista, que se apropria do excedente do trabalho operário, implica a centralização estatal e a ocupação do poder pelos governantes-proprietários em todos os níveis da vida social. E vice-versa, a constituição de uma instância soberana “[...] implica uma coerção política que impede os produtores de organizarem a produção segundo seus interesses e suas vontades e leva a inelutavelmente a uma outra servidão.” (CHÂTELET, 2009, p.143). Aqui não encontramos nenhuma doutrina pedagógica stricto sensu, como na obra de Bakunin, conforme veremos, todavia, algumas tópicas lançadas por Proudhon serão fundamentais para a constituição de uma pedagogia libertária, sobretudo o que os anarquistas chamam de autogestão, isto é, a autonomia, seja ela política, econômica ou social, ora, o homem não nasce livre segundo Bakunin, mas deve aprender a sê-lo.
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A proposta bakuniana está em linha de continuidade com o pensamento de Proudhon (cf. CHÂTELET, 2009, p. 145). Assim como Marx, Bakunin também participou da chamada esquerda hegeliana e rivalizou com este durante a Primeira Internacional de onde foi expulso, junto com seus seguidores, em 1872. Seu pensamento não pode ser separado de sua ação, assim, Bakunin encarna em sua figura o anarquista por excelência, participou fisicamente da grande maioria dos combates populares em meados dos dezenove; isso explica porque sua obra é um amontoado de fragmentos, diversos textos inacabados, escritos pelo calor da hora, cartas a seus adversários e colaboradores bem como material doutrinário para os trabalhadores (manifestos, panfletos, etc.). Como aluno de Hegel, definiu para si uma dialética na qual privilegia-se a negatividade. A posição do homem é sua animalidade; a negação é a revolta contra esse estado de dependência por meio do pensamento; a negação da negação é a realização da liberdade humana pela destruição das limitações impostas pelo pensamento. (Ibid., p. 145). Para que a liberdade e autonomia humanas possam se desenvolver, três princípios devem ser negados, pois correspondem à autoridade que impede o florescimento integral da humanidade. A religião e a ideia de Deus, o Estado e propriedade privada, bem como, o sistema econômico que lhe corresponde, o capitalismo. Sua principal crítica dirige-se, contudo, ao princípio da autoridade política, o Estado. Sob qualquer forma que ele se apresente, mesmo a democracia representativa burguesa, mesmo a ditadura do proletariado de Marx, este ao decidir pela sociedade, opõe-se a ela e a coage. É preciso constituir uma força política e econômica que esteja nas mãos dos trabalhadores e que se desenvolva fora do âmbito do Estado. Aqui a educação das classes laboriosas mostra-se imprescindível. A proposta pedagógica de Bakunin é uma crítica direta ao Emílio de Rousseau. Como se sabe, o projeto pedagógico do filósofo genebrino é um marco das teorias da não-diretividade. Partindo do pressuposto de que o homem é, por
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natureza, bom e que o convívio social lhe imputa uma série de vícios, Rousseau propõe uma educação o mais longe possível da sociedade e o mais próximo possível da natureza, assim, a intervenção do professor no processo educacional deve ser mínima. Ora, para Bakunin o homem é a única potência criadora, deste modo, está nas mãos humanas tanto o vício quanto a virtude. O antagonismo se agudiza se observarmos a questão da liberdade, importante tanto para um como para outro. Em Rousseau a liberdade é natural e a sociedade é um entrave ao seu desenvolvimento, para Bakunin, pelo contrário, a liberdade só pode se inserir socialmente. No processo educacional, portanto, temos a liberdade como meio – Rousseau - e a liberdade como fim – Bakunin. Se tomarmos ela como meio temos a não-diretividade; ora, se a liberdade é natural, quanto menos o professor intervir, maiores as chances desta se desenvolver. Para Bakunin, no entanto, ocorre o oposto; se a liberdade é um dado social e a luta dos trabalhadores e das classes despossuídas existe para conquistála, esta deve ser apreendida, se possível, ensinada. A autoridade é tão boa e indispensável na educação das crianças quanto perniciosa e desnecessária quando aplicada aos adultos. Por outro lado, se tomamos a educação por um processo de crescimento, de desenvolvimento, devemos aceitar que todo desenvolvimento implica necessariamente a paulatina negação do ponto de partida à medida que nos aproximamos da meta de chegada; deve-se, pois, partir da autoridade para que seja possível chegar até a liberdade. (GALLO apud ARANHA, 2006, pp. 258-259)
3 Princípios do anarquismo
Já vimos como o anarquismo se constitui por uma negação de toda autoridade e de uma busca pela emancipação humana de todos os freios que a coagem. Deste modo, dar ao anarquismo um conjunto de ideias imutáveis, válidas para qualquer contexto, é negar-lhe seu princípio mais fundamental, a liberdade.
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Deve-se assim conceber o anarquismo como um princípio gerador, um conjunto de atitudes determinada pelas condições históricas e sociais a que cada sociedade está submetida (GALLO, 1995). Falamos então em quatro princípios de teoria e ação que são: Autonomia individual: o anarquismo concebe o indivíduo como célula fundamental de qualquer grupo ou associação, o indivíduo não pode ser menosprezado em nome do grupo. O relacionamento entre indivíduo e sociedade é dialético, o homem só pode existir enquanto membro de uma sociedade, de outro lado a sociedade só existe pelo agrupamento de indivíduos que, em sua constituição, não podem perder sua autonomia individual. A ação anarquista é social, mas sem perder de vista o desenvolvimento individual de cada membro que a compõe. Autogestão social: o socialismo libertário é contrário a qualquer poder ou instituição que esteja acima dos homens e venha a hierarquizá-los. A sociedade deve ser fruto dela mesma, isto é o que se chama autogestão. Os anarquistas são radicalmente contrários a democracia representativa, em seu lugar deve existir uma democracia participativa, onde cada indivíduo poderá tomar parte diretamente das decisões da comunidade. Internacionalismo: o aparecimento dos Estados-nação foi fruto do desenvolvimento da burguesia e de seu projeto de dominação e exploração das classes laboriosas; para os libertários uma luta política que se propõe a emancipação humana não pode estar restrita a estes dispositivos geopolíticos que chamamos de países. Daí a necessidade de uma revolução de âmbito global. Ação direta: as massas trabalhadoras e despossuídas devem gerir a revolução e a construção da nova sociedade como obra delas mesmas. Deste modo a ação direta está estritamente ligada com um projeto de educação libertária, por meio da propaganda – jornais, revistas, livros, teatro – e, principalmente da educação, formal ou informal. É o que veremos a seguir.
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4 A educação anarquista
Os anarquistas dão muito importância à educação dentro de seu projeto de transformação radical da sociedade, não somente a educação formal, a escola, mas também a educação informal, por meio do teatro imprensa e outras ações culturais realizada pelos sindicatos, associações operárias, etc. Contudo, é dentro do escopo da educação formal que a pedagogia libertária tem seus maiores desenvolvimentos teóricos e práticos. O principal ponto diz respeito à crítica da educação tradicional oferecida pelo capitalismo, tanto pelo aparelho estatal, como também pelas instituições privadas de ensino, laicas ou religiosas. O problema principal, segundo os libertários, está no caráter ideológico da educação sob o capitalismo. Para eles, a educação tem um aspecto fortemente político, isto é, ela reproduz a estrutura da sociedade; uma sociedade de classes, de dominação e exploração. As instituições escolares “ensinam” seus alunos a ocuparem seus lugares pré-determinados dentro da ordem social capitalista, deste modo, temos uma educação destinada às massas trabalhadoras e outra correspondente à educação das elites. Contra este estado de coisas, os anarquistas não rejeitam o caráter político da educação, pelo contrário, o assumem de vez, e o utilizam como objeto de transformação social. A educação deve denunciar e esclarecer as injustiças sociais, fazer os indivíduos tomarem consciência deste sistema social injusto que é o capitalismo e da necessidade de uma revolução social. O método pedagógico anarquista trabalha, como já vimos em Bakunin, com o princípio de liberdade. Retomando: temos duas maneiras de conceber a liberdade como metodologia pedagógica; uma, a concepção de Rousseau e das pedagogias liberais não-diretivas que tomam a liberdade como meio, isto é, a liberdade é um dado natural e desenvolver-se-á na medida em que a interferência do professor seja mínima. Outra, a perspectiva bakuniana, a liberdade é tomada aqui como fim, ela é construída e conquistada nas relações sociais, ora, a
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educação imersa em uma sociedade coercitiva não pode partir da liberdade, porém, deve chegar até ela. Deste modo, a educação libertária deve partir de seu oposto, ou seja, da autoridade, pois a escola não pode ser um espaço isolado de liberdade em meio à coerção social, sua ação seria inútil, pois o efeito de outros dispositivos sociais seria mais forte. Valendo-se do princípio de autoridade a escola, pode se inserir na sociedade através de sua crítica (da autoridade), no intuito de superá-la, por meio de uma desconstrução paulatina deste princípio. Como não há uma educação neutra, pois toda educação parte de uma concepção de homem e de sociedade, não podemos partir do homem livre numa sociedade anarquista, mas de um homem servil, numa sociedade de exploração, a educação anarquista então, propõe-se, não com a manutenção desta sociedade, mas em educar sujeitos comprometidos com a mudança social, não adaptados ao capitalismo, mas com a intenção de destruí-lo. A educação anarquista é, portanto, não só contrária, mas alheia ao Estado e aos sistemas públicos de ensino. Os anarquistas, através de suas críticas ao Estado, não podem aceitar um sistema de educação gerido por ele. Deste modo, divergem de algumas concepções que defendem a ideia de que o poder do Estado deixa certos espaços onde o pedagogo progressista pode se inserir e assim democratizar/transformar a educação. Ora, o Estado até mesmo permite certa democratização de algum de seus dispositivos, desde que isso não ofereça riscos à sua manutenção. Uma pedagogia libertária legítima, portanto, deve ocorrer fora do âmbito do Estado. A ideia é que a própria sociedade organize seu sistema de ensino, fora do Estado e contra ele, gerindo ela própria os recursos e debatendo propostas conforme seus interesses e desejos. Numa palavra, é o que os anarquistas chamam de autogestão.
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5 A autogestão pedagógica
O conceito de autogestão é complexo, assumiu diferentes significados no contexto de diversas pedagogias antiautoritárias que não podemos aqui discutir, contudo, é no escopo da pedagogia libertária que sua função é central. “A única visão verdadeiramente completa da autogestão, aquela que busca explorar todas as suas potencialidades, é a anarquista.” (GALLO apud ARANHA, 2006, p. 249). Para melhor compreender este conceito vamos opô-lo ao seu contrário, isto é, a heterogestão. A heterogestão é característica das sociedades, como a que vivemos hoje, onde o poder é centralizado e hierarquizado. Deste núcleo do poder, isto é, o Estado, emanam as leis, regras e prescrições, que devem ser seguidas pela sociedade. Mesmo nas sociedades democráticas, onde aparecem as divergências e a opinião pública desempenha um papel importante, ainda assim a decisão última cabe ao poder do Estado, poder fortemente solidificado, cabendo a este, no caso da educação, seu financiamento e gestão, bem como, suas diretrizes e regras de funcionamento. Deste modo, o pedagogo anarquista, como já vimos, deve recusar a função pedagógica do Estado e substituí-la pela autogestão, pois a educação estatal não está comprometida com a mudança social, pelo contrário, ao centralizar as decisões em suas mãos, o Estado se compromete com a manutenção desta sociedade, marcada pela ideologia liberal e a serviço das elites. No paradigma anarquista, a educação pública não é e nem deve ser uma função do Estado, mas sempre uma responsabilidade da comunidade, da sociedade. Assim, cada grupo social deve auto-organizar-se para construir seu sistema de ensino, definindo-lhe os conteúdos, a carga horária, a metodologia, os processos de avaliação, etc., sempre num regime de autogestão. (Ibid., p. 248).
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6 Experiências pedagógicas libertárias no Brasil
O anarquismo chegou ao Brasil no final do século XIX com os trabalhadores urbanos imigrantes vindos, sobretudo, da Itália e da Espanha. Até meados da segunda década do século passado as ideias anarquistas predominavam no seio do movimento operário brasileiro, por meio de sindicatos, associações, grupos culturais e educacionais e até mesmo clubes de futebol, sempre organizados pelos próprios operários e sem nenhuma mediação do Estado. Com a fundação do PC brasileiro em 1922 e, com a forte repressão do governo e dos patrões, o movimento libertário acabou perdendo força e ficou restrito a pequenos grupos. Porém, neste período, a atuação dos anarquistas no processo educacional dos trabalhadores foi intenso. Foram criadas diversas escolas e grupos culturais; os próprios sindicatos organizavam os projetos pedagógicos, o material usado era obra dos trabalhadores, principalmente jornais e textos traduzidos dos clássicos anarquistas. Não raras vezes esta educação era a única ofertada aos trabalhadores, pois o poder do Estado, na época, tinha apenas interesse na educação das elites. Entre as décadas de 40 e 50, José Oiticica (1882-1957), professor do Colégio Pedro II, tentou implantar em aula alguns princípios libertários; foi exilado. Contemporaneamente temos o professor, Mauricio Tragtenberg (19291998) que foi por muitos anos professor da Unicamp, ativista e pesquisador, publicou diversas de suas pesquisas. Atualmente, como já notamos, alguns pesquisadores têm lido os clássicos anarquistas à luz da filosofia contemporânea, entre eles destacamos Silvio Gallo, Margareth Rago, Edson Passetti e Alfredo Veiga-Neto.
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Considerações finais
Fizemos uma breve introdução à corrente pedagógica anarquista, analisamos alguns conceitos fundamentais para o pensamento libertário, bem como conhecemos alguns de seus principais teóricos. Entre seus principais propagadores destacamos Pierre-Joseph Proudhon e Mikhail Bakunin. No primeiro vemos surgir algumas das tópicas essenciais para a compreensão do anarquismo, no segundo destacamos sua proposta pedagógica. A proposta bakuniana de educação nos deu condições de compreender a visão pedagógica dos anarquistas, por meio dos conceitos de liberdade e autogestão. O princípio de liberdade é fundamental para pedagogia libertária, afinal, é isso que os anarquistas buscam, uma sociedade formada por indivíduos livres. No entanto, a liberdade não é um dado natural, como nas teorias liberais, o homem deve aprender a ser livre por meio da luta e da crítica sociais. Aqui o educador é fundamental, é ele quem deve, por meio de seu contrário – a autoridade – levar os educandos a superá-la e encontrar por si mesmos a liberdade, que deve ser, a um só tempo, coletiva e individual. A autogestão é indissociável deste projeto, a emancipação das classes laboriosas deve ser feita por elas mesmas. Deste modo, a educação libertária é, não apenas alheia ao Estado e aos sistemas públicos de educação, mas, contra ele. O projeto pedagógico anarquista é também um projeto político, cuja meta é a revolução social. Não nos interessa aqui discutir a aplicabilidade deste projeto (político e pedagógico), assim como não se discute sobre a utilidade de uma revolução social. Não obstante isso, em meio a um contexto de dissolução e crise das instituições, sobretudo a escola, parece ser importante pensar uma educação que se de à margem dos processos oficiais; nisto a pedagogia libertária se mostra bastante fecunda.
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Referências
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BEIJO, Marilda. Da disforia à euforia, d‘a cidade às serras. Revista Ofaié, Nova Andradina, v. 1, n. 1, p. 35-51, jan./jun. 2013.
DA DISFORIA À EUFORIA, D‘A CIDADE ÀS SERRAS.
Marilda Beijo1 RESUMO: A análise que ora se apresenta propõe um estudo sobre o percurso construtivo do personagem Jacinto no romance A cidade e as Serras, do escritor português Eça de Queirós. Para a realização da presente análise foi necessário estabelecer um panorama das características físicas, psicológicas e ideológicas do personagem na primeira fase do romance (cidade), confrontando com os mesmos dados, na segunda fase do romance (serra), percebendo as transformações sofridas pelo personagem ao longo da narrativa. PALAVRAS-CHAVE: Eça de Queirós, cidade, serra, personagem, Jacinto. “Eu penso que o riso acabou – porque a humanidade entristeceu. E entristeceu – por causa da sua imensa civilização. (...) Quanto mais uma sociedade é culta - mais a sua face é triste2.
A personagem Jacinto é construída na narrativa, por meio da óptica do narrador-personagem, José Fernandes, inicialmente, como um ser privilegiado, já que além de ser rico, de família tradicional, “nasceu num palácio” (p. 15) 3, era saudável, forte e muito bem instruído, “as letras, a tabuada, o latim entraram por ele tão facilmente como o sol por uma vidraça” (p.19) e “a sua inteligência circulava dentro das filosofias mais densas” (p. 20). Além disso, Jacinto era fruto de uma época em que se valorizava o desenvolvimento das tecnologias e das ciências e por isso defendia a ideia de que “o homem só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado” (p. 21). Para ele, viver longe do progresso das cidades seria um atraso irrecuperável. Um dia, em fevereiro de 1880, José Fernandes foi chamado pelo tio e parte para Guiães, em Portugal para ajudá-lo a administrar seus bens. No momento em 1
Doutora em Letras pela UNESP - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, atua no Instituto Federal do Mato Grosso do Sul na área de Letras: Português e suas Literaturas e Língua Inglesa.
2
Eça de Queiroz, “A Decadência do riso”, in Notas Contemporâneas, Porto: Lelo & Irmãos, 1951.
3
QUEIRÓS, Eça de. A Cidade e as Serras. São Paulo: FTD, 1995. Obs: Daqui para frente as citações do romance acima utilizado serão mencionadas apenas pelo número da página.
Da disforia à euforia, d‘a cidade às serras
que Jacinto fica sabendo da viagem do amigo “recuou com um surdo gemido de espanto e piedade: Para Guiães!... Oh, Zé Fernandes, que horror!”. Com essa atitude demonstra toda a aversão que tem só em pensar em ficar longe de uma cidade grande. Somente após sete anos de vida na província, Zé Fernandes retorna e revê Jacinto que continua morando no 202 dos Campos Elíseos, em Paris. Quando Zé Fernandes recomeça a conviver com seu amigo Jacinto é que o contraste entre cidade versus serras começa a se estabelecer mais nitidamente, já que este poderia viver feliz e tranquilamente no campo, enquanto aquele precisava da cidade, pois somente “a cidade lhe dava a sensação tão necessária à vida” (p. 26) porque “a idéia de civilização, para Jacinto, não se separava da imagem da cidade, de uma enorme cidade, com todos seus vastos órgãos funcionando poderosamente”. (p. 25). No campo, Jacinto se sentiria fora da vida, como se vegetasse apenas, não vivesse, posto que vida para ele seria usufruir de todos os pormenores existentes. Acreditava que morando no campo seria impossível demonstrar todos os seus conhecimentos, salientar toda a sua formação e sabedoria e debater sobre as leituras que fizera, enfim seria um desperdício ficar no campo, pois para Jacinto “Toda a intelectualidade no campo se esteriliza e só resta a bestialidade” (p. 26). Já no primeiro encontro com Jacinto, Zé Fernandes acompanha-o até sua casa e fica surpreso com as mudanças feitas pelo seu amigo no 202, principalmente, um elevador, “apesar do 202 ter somente dois andares” (p. 32). Além disso, Jacinto havia adquirido “confortos numerosos, um divã, uma pele de urso, um roteiro das ruas de Paris, prateleiras gradeadas com charutos e livros” (32-33). E a sofisticação ainda era maior “Na antecâmara, onde desembarcamos, encontrei a temperatura macia e tépida de uma tarde de maio, em Guiães. Um criado mais atento ao termômetro do que um piloto à agulha, regulava destramente a boca dourada do calorífero”. (p. 33). E para completar o ambiente perfeito e digno em usar todos os recursos que a modernização poderia oferecer
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“perfumadores entre palmeiras, como num terraço santo de Benares, esparziam um vapor, aromatizando e salutarmente umedecendo aquele ar delicado e superfino”. (p.33). O narrador, Zé Fernandes, fica admirado e surpreso com todas aquelas mudanças no 202 e, ironicamente, nas profundidades do seu assombrado ser, murmura: “- Eis a civilização!” (p. 33). Já por este pequeno comentário do narrador, percebe-se, claramente, que Zé Fernandes não compactua, de todo, com seu amigo Jacinto a respeito dos prazeres que a tecnologia pode proporcionar ao homem, aliás, ao homem de grandes posses materiais e não a todo homem. É evidente a ironia depositada por Zé Fernandes em sua frase de desabafo e de tom exclamativo, indicando o quanto tudo aquilo soava supérfluo, desnecessário, não prioritário e ilusório, afinal, não eram todos aqueles apetrechos que deixariam a vida de Jacinto mais ou menos feliz. Além disso, notou ainda que apesar de todo aquele conforto, sabedoria e bem estar de que dispunha, o amigo aparentava estar um pouco abatido. Assim, de forma detalhada, Zé Fernandes nos descreve a visão que teve de Jacinto: “meu amigo emagrecera; o nariz se afilara mais entre duas rugas muito fundas, como as de um comediante cansado. Os anéis do seu cabelo lanígero rareavam sobre a testa, que perdera a antiga serenidade de mármore bem polido” (p.33). Parecia estar constantemente preocupado “Não frisava agora o bigode, murcho, caído em fios pensativos. Também notei que corvovava”. (p. 33). Jacinto também deixa evidente que embora desfrute de tantas tecnologias e modernidades para a época como, por exemplo, o telefone, o telégrafo, ainda sente-se insatisfeito, pois quando questionado por seu amigo se havia acumulado civilização diz: “Sim, há confortos.... Mas falta muito! A humanidade ainda está mal apetrechada, Zé Fernandes... E a vida conserva resistências”. (p. 34). Além disso, não demonstra nenhum entusiasmo pela vida que tem levado e pelas coisas que tem feito, pois quando perguntado por Zé Fernandes, responde
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sem a “antiga vivacidade” (p. 34), encolhendo molemente os ombros que “vivera, cumprira com serenidade todas as funções, as que pertencem à matéria e as que pertencem ao espírito...” (p.34). No entanto, em nenhum momento deixa transparecer real contentamento, satisfação ou felicidade, embora defendesse a ideia de que a civilização, a vida urbana e o conhecimento aprofundado das ciências naturais e filosóficas trariam felicidade. Para reforçar suas ideias de que conhecimento científico e felicidade deveriam caminhar juntos e só por este caminho o homem poderia encontrar total satisfação em viver, em conversa com Zé Fernandes, Jacinto pede a este que faça a seguinte comparação: “Enquanto à inteligência, e à felicidade que dela se tira pela incansável acumulação de noções, só te peço para que compares Renan4 e o Grilo...” (p. 24) E acaba formulando sua argumentação concluindo: “Claro é, portanto, que nós devemos cercar de civilização nas máximas proporções para gozar nas máximas proporções as vantagens de viver”. (p. 24). Embora Jacinto acredite em teorias, como fica claro no trecho acima, não consegue aplicá-las em sua vida prática, pois não se mostra feliz, completo, satisfeito, pelo contrário, sempre está faltando algo, ou seja, a incompletude o domina, diferentemente, de Zé Fernandes que afirma: “Não me parecia irrecusavelmente certo que Renan fosse mais feliz que o Grilo” (p. 24), somente porque este era apenas um criado de Jacinto, enquanto aquele era um historiador, filósofo e filólogo francês, autor de ideias e livros muito respeitados. Nesse panorama conturbado e duvidoso Jacinto convida Zé Fernandes para o jantar. Este já se “começava a inquietar, reparando que a cada talher correspondiam seis garfos e todos de feitios astuciosos” (p. 41). Além do requinte da comida, ostras, peixe, carne, legumes, frutas e da elegância das bebidas: vinhos e champagne, “todo um aparador vergava sob o luxo quase assustador de águas 4
Neste trecho o texto de Eça de Queirós faz referência ao escritor, filósofo, filólogo e historiador francês Joseph Ernest Renan (1823-1892), comparando com o personagem Grilo, homem simples e sem instrução.
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– águas oxigenadas, águas carbonatadas, águas fosfatadas, águas esterilizadas, águas de sais” (p. 41). Tudo em nome da ciência e das tecnologias que surgiam a cada dia para beneficiar a vida do homem e, pretensiosamente, garantir-lhe a sociedade. É perceptível, contudo, o desânimo de Jacinto também durante o jantar, pois ele olhava para tudo aquilo com um jeito desconsolado e explicava o porquê de tantas variedades de água: “é por causa das águas da cidade, contaminadas, atulhadas de micróbios” (p. 41). Mesmo assim, de certa forma, percebia-se que ele estava decepcionado com os benefícios científicos que ainda, no seu ponto de vista, deixavam a desejar, já que não atendiam totalmente suas expectativas com relação aos produtos apresentados, assim acrescenta: “Mas ainda não encontrei uma boa água que me convenha, que me satisfaça... Até sofro sede.” (p. 41).
E, incoerentemente, em meio a tantos recursos via-se desprovido,
desamparado ao tentar satisfazer uma carência tão primordial e tão primária como a de matar sua sede, posto que ele sentia sede, mas a água que lhe era oferecida não o nutria. Mais uma vez, no momento do jantar, desponta em Jacinto o mesmo desinteresse e falta de ânimo ao referir-se a sopa que seria servida. Ao ser indagado por Zé Fernandes se a sopa de alcachofra e ovos de carpa era boa diz sem entusiasmo, “ - Sim...” e em contrapartida complementa: “eu não tenho nunca apetite, já há tempos... já há anos” (p. 42). A partir desse momento, Zé Fernandes começa a prestar mais atenção às atitudes do amigo Jacinto e nota que ele anda enfadado, pois sua rotina parece cansá-lo e chateá-lo. As intensas atividades sociais o desgastavam e, com o passar do tempo, constatou que Jacinto foi percebendo a futilidade das pessoas com quem convivia e a inutilidade de muitas coisas da sua tão encantada civilização. Agora, as reuniões com os amigos estavam ficando maçantes, nos raros momentos que conseguia passear pela cidade confessava a Zé Fernandes que o barulho das ruas o incomodava, e a multidão o deixava inquieto. “Jacinto
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começou a mostrar claramente, escancaradamente, ao seu Zé Fernandes, o tédio de que a existência o saturava”. (p.115) Já estava nitidamente desencantado com o seu dia a dia e, para piorar, alguns imprevistos contribuíram para afetar ainda mais o estado de ânimo de Jacinto: o rompimento no cano da sala de banho, inundando tudo, molhando os tapetes e o fato de o elevador ter quebrado, justamente no momento em que estavam levando o peixe que seria servido no jantar em homenagem ao GrãoDuque. Com tudo isso Jacinto se abatera ainda mais e estava como que “tombado para o sofá de inércia, com os pés no regaço do pedicuro! Em que lodoso fastio caíra, depois de renovar tão bravamente todo o recheio mecânico e erudito do 202, na sua luta contra a força e a matéria!” (p. 90). Diante disso, Zé Fernandes fica preocupado com o que poderia estar acontecendo com seu amigo porque percebera que Jacinto “atravessava uma densa névoa de tédio, tão densa e ele tão afundado na sua mole densidade” (p.90) que nada o comovia. Resolveu então perguntar a Grilo se ele sabia porque Jacinto andava tão “tão murcho, tão corcunda” (p. 91), ficando surpreso com a resposta do criado que disse: “- Sua excelência sofre de fartura. Era fartura! O meu Príncipe sentia abafadamente a fartura de Paris” (p.91). A curiosa resposta do criado Grilo faz Zé Fernandes refletir sobre a vida de Jacinto na cidade, “na simbólica Cidade, fora de cuja vida culta e forte (como ele outrora gritava, iluminado) o homem do século XIX nunca poderia saborear plenamente a "delícia de viver"”, (p.91) e acaba por entender que o grande mal de seu amigo era, principalmente, causado por aquele tipo de vida que estava tendo na cidade. Tudo já parecia para Jacinto sem sentido “ele não encontrava agora forma de vida, espiritual ou social, que o interessasse, lhe valesse o esforço” (p. 91). O narrador-personagem faz uma longa e detalhada descrição para argumentar o estado de alma de Jacinto e não restar dúvidas de que ele estava realmente perdido em seus descontentamentos. Compara o tédio que Jacinto
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sentia em Paris ao tédio de um leitor diante de um jornal velho, “setenta vezes relido desde a crônica até aos anúncios, com a tinta delida, as dobras roídas” (p.91). Argumenta que nada “não enfastiaria mais o solitário, que só possuísse na sua solidão esse alimento intelectual (jornal velho), do que o parisianismo enfastiava o meu doce camarada!”.(p.91). Zé Fernandes insistia com o amigo tentando ajudá-lo a sair do marasmo “o arrastava a um café-concerto, ou ao festivo Pavilhão d'Armenonville”(p.91) Contudo, nada parecia adiantar, já que Jacinto estava sempre “colado pesadamente à cadeira, (...) as finas mãos abatidas (...), conservava toda a noite uma gravidade tão estafada, que eu, compadecido, me erguia, o libertava, gozando a sua pressa em abalar, a sua fuga de ave solta...”(p.91). Como se pode perceber pelas declarações do narrador-personagem mesmo com toda a motivação de Zé Fernandes, Jacinto não reage. “Raramente, (e então com veemente arranque como quem salta um fosso) descia a um dos seus clubes, ao fundo dos Campos Elíseos”. (p.91). O desinteresse de Jacinto estava presente em todos os momentos e para a realização de todas as coisas, que antes parecia fazer com tanto gosto. “Não se ocupara mais das suas sociedades e companhias, nem dos telefones de Constantinopla, nem das religiões esotéricas, nem do bazar espiritualista, cujas cartas fechadas se amontoavam sobre a mesa de ébano” (p.91). Jacinto comportava-se tristemente como o personagem de “uma vida finda” (p.91). Antes era um homem das altas rodas da sociedade, de muitos compromissos. Agora “lentamente se despegava de todas as suas convivências. As páginas da agenda cor-de-rosa murcha andavam desafogadas e brancas”.(p.91) Dificilmente mantinha o hábito de sair “e se ainda cedia a um passeio de mail-coach, ou a um convite para algum castelo amigo dos arredores de Paris, era tão arrastadamente, com um esforço saturado ao enfiar o paletó leve,”(p.91-92) que aparentava estar enfermo e prestes a morrer.
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O fato é que Jacinto, ultimamente, não se sentia bem fazendo tudo o que sempre tinha feito durante sua vida até aquele momento. As festas não o agradavam mais, as conversas o aborreciam, os passeios o cansavam, não gostava mais de aparecer em sociedade e mesmo dentro de sua própria casa continuava não se sentindo bem. “Jazer, jazer em casa na segurança das portas bem cerradas e bem defendidas contra toda a intrusão do mundo, seria uma doçura” (p.92). No entanto, “o seu próprio 202, com todo aquele tremendo recheio de civilização” (p.92) lhe dava “uma sensação dolorosa de abafamento de entulhamento” (p.92). Percebendo este estado de morosidade perpétua em que se encontrava Jacinto, o narrador decide convidá-lo a viajar para o campo e obteve a seguinte resposta: “- Para o campo? O que? Para o campo?! Na sua face enrugada através deste berro, lampejava sempre tanta indignação, que eu curvava os ombros, humilde no arrependimento de ter afrontosamente ultrajado o príncipe que tanto amava”. (p. 92). Certo dia, enquanto esperavam ser recebidos por Madame d'Oriol, Zé Fernandes e Jacinto subiram à Basílica do Sacré-Coeur, em construção no alto de Montmartre. Ao chegarem à borda do terraço, puderam visualizar Paris envolta em uma nuvem cinzenta e fria, motivando profundas reflexões, pois a cidade tão cheia de vida, de ouro, de riquezas, de cultura e resplandecência, incluindo “o soberbo 202” ( p.95), com todas as suas sofisticações - estava agora tomada sob as nuvens cinzentas, a cidade não passava de uma ilusão. Zé Fernandes ao concordar com a opinião de Jacinto tenta convencê-lo de que a cidade não traz nada de bom a ninguém e diz: “uma ilusão! E a mais amarga, porque o homem pensa ter na cidade a base de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria”. (p. 96). E o narrador-personagem segue sua argumentação contra a cidade jogando sobre ela toda a culpa por seu Príncipe da Grã Ventura estar debilitado como está: “Vê, Jacinto! Na Cidade perdeu ele a força e beleza harmoniosa do corpo e se tornou esse ser ressequido e escanifrado ou obeso e afogado em unto de ossos moles como trapos, de nervos trêmulos
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como arames, com cangalhas” (p. 96). E acaba por desfazer a imagem forte e invencível de Jacinto, construída no início da narrativa. Agora Jacinto aparece descrito pelo narrador como um homem “sem sangue, sem viço, torto, corcunda - esse ser em que Deus, espantado, mal pôde reconhecer o seu esbelto e rijo e nobre Adão! (p. 96). Fica claro que a cidade e a civilização são as culpadas pela destruição da figura da personagem. Continuam a olhar a cidade e a fazer diversos questionamentos sobre a sobrevivência dos seres, filosofam sobre a massificação do indivíduo, a falta de personalidade, autenticidade e a obrigatoriedade em seguir os padrões e convenções sociais da época. “Na Cidade findou a sua liberdade moral; cada manhã ela lhe impõe uma necessidade, e cada necessidade o arremessa para uma dependência; pobre e subalterno, a sua vida é um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, aturar” (p.96). Critica acidamente a sociedade que “logo o enreda em tradições, preceitos, etiquetas, cerimônias, prazer, ritos, serviços mais disciplinares que os de um cárcere ou de um quartel” (p.96). O narrador continua a incitar os questionamentos fazendo perguntas retóricas as quais ele levanta e já fornece a resposta. “A sua tranquilidade (bem tão alto que Deus com ele recompensa os santos) onde está, meu Jacinto? Sumida para sempre” (p. 96). Essa estratégia é usada para que, num primeiro plano, Jacinto reflita sobre sua existência e, num segundo plano, o leitor também possa compartilhar dessas reflexões e retirar ensinamentos para sua vida por meio da observação dessas experiências. Jacinto e Zé Fernandes chegam a concordar que a necessidade de se inserir em uma sociedade capitalista, tecnológica e industrial deixa o homem escravo se seus afazeres e de seus compromissos diários, pois “nessa batalha desesperada pelo pão ou pela fama, ou pelo poder, ou pelo gozo, ou pela fugidia rodela de ouro! Alegria como a haverá na Cidade para esses milhões de seres que tumultuam na arquejante ocupação de desejar” (p.96). Discutem ainda que o desejo é algo perverso porque não tem fim, ou seja, sempre irá se desejar algo,
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sempre se estará insatisfeito e, portanto, a escravidão por meio do desejo é perpétua e isso causa consequências graves para o ser humano, pois “nunca fartando o desejo, incessantemente padecem de desilusão, desesperança ou derrota. Os sentimentos mais genuinamente humanos logo na cidade se desumanizam”! (p.96) Debatem ainda sobre as relações humanas, falsas e feitas por conveniências, impostas em sociedade para a boa convivência, mesmo que fingida. “As amizades nunca passam de alianças que o interesse, na hora inquietada da defesa ou na hora sôfrega do assalto, ata apressadamente com um cordel apressado, e que estalam ao menor embate da rivalidade ou do orgulho”. (p. 96/97). Teorizam também a respeito do amor e o que de fato a civilização faz com esse sentimento que deveria ser nobre. Em oposição a isso, o homem “civilizado” escandaliza o amor, maltrata-o, destruindo-o completamente. “E o amor, na cidade,(...) Considera esses vastos armazéns com espelhos; onde a nobre carne de Eva se vende, tarifada, como a de vaca! Contempla esse velho deus trazendo em vez do ondeante facho da paixão a apertada carteira do dote! (p. 97) E seguida discutem a essência do ser humano que deseja se saber tão poderoso, imbatível e de capacidade intelectual superior aos dos outros seres, entretanto, é ludibriado facilmente por conta de sua ganância de ser o melhor e acaba entorpecendo. A sociedade faz com que acreditem que precisam de algumas coisas inúteis, banais e supérfluas para viver, para serem aceito pelos outros e, sobretudo, para serem felizes, como se fossem robôs programados a realizarem sempre as mesmas tarefas, sempre mais do mesmo, desmontando toda e qualquer originalidade que possa querer surgir. E chegam à conclusão de que “o que a cidade mais deteriora no homem é a inteligência, porque ou lha arregimenta dentro da banalidade ou lha empurra para a extravagância” (p.97). É como se o ser humano perdesse totalmente o equilíbrio e o bom senso ao viver em meio à civilização, como se fosse contaminado por uma “densa e
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pairante camada de ideias e fórmulas que constitui a atmosfera mental das cidades, o homem que a respira, nela envolto, só pensa todos os pensamentos já pensados só exprime todas as expressões já exprimidas”, perdendo, assim, todo seu senso crítico, ficaria completamente inerte às inovações. Critica ainda a corrida entre humanos ao tentarem se destacar uns perante os outros, “ou então, para se destacar na pardacenta e chata rotina e trepar ao frágil andaime da gloríola, inventa num gemente esforço, inchando o crânio, uma novidade disforme que espante e que detenha a multidão como um monstrengo numa feira” (p.97). Enfim, nessa competição desonesta que é viver em sociedade, tendo de se aliar à hipocrisia e à mediocridade para sobreviver entre os “vencedores”, se é que existem vencedores, o ser humano vai emburrecendo e perdendo sua essência e qualquer possibilidade de realmente fazer a diferença, de fazer algo novo. “Todos, intelectualmente, são carneiros trilhando o mesmo trilho, balando o mesmo balido, com o focinho pendido para a poeira onde pisam” (p. 97). Diante do processo de reflexão que os personagens constroem, a cidade torna-se um lugar em que o ser humano é corrompido e corrompe, desfazendo qualquer possibilidade de benefício para si e para o outro. Da maneira como a cidade é mencionada pelo narrador sendo uma “criação tão antinatural onde o solo é de pau e feltro e alcatrão, e o carvão tapa o céu, e a gente vive acamada nos prédios como o paninho nas lojas, e a claridade vem pelos canos” (p. 98), é, praticamente, impossível que o ser humano, que vive em sociedade, e é fruto dela, tenha algo de bom para oferecer, por isso “as mentiras se murmuram através de arames - o homem aparece como uma criatura anti-humana, sem beleza, sem força, sem liberdade, sem riso, sem sentimento, e trazendo em si um espírito que é passivo como um escravo”. (p. 98). E a cidade é ainda mais perversa porque, continua Zé Fernandes a filosofar, “Se ao menos essa ilusão da cidade tornasse feliz a totalidade dos seres que a mantêm ... Mas não!” E, então, discute aprofundadamente a questão injusta das
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classes sociais e declara: “Só uma estreita e reluzente casta goza na Cidade e os gozos especiais que ela cria. O resto, a escura, imensa plebe, só nela sofre, e com sofrimento especiais, que só nela existem!” (p.98). O narrador-personagem demonstra para Jacinto ainda como agem as classes privilegiadas, que só desfrutam desse título por ter uma camada que se sujeita a não ter privilégio nenhum. “A tua civilização reclama regalos e pompas, que só obterá nesta amarga desarmonia social.(...) Irremediável é, pois, que incessantemente a plebe sirva, a plebe pene! A sua esfalfada miséria é a condição do esplendor sereno da cidade”. (p.98/99). Zé Fernandes aproveita todo o tempo que estão no terraço para incutir na mente de Jacinto ideias que se contrapunham a tudo que Jacinto pensava, até então, sobre as cidades e a civilização. Jacinto por sua vez, por mais que, às vezes, participasse das discussões e até ajudasse a refletir sobre os assuntos levantados, parecia ainda pouco envolvido e bastante disperso, como se pode observar no trecho: “-Tu sabes, Jacinto? Não, Jacinto não sabia e queria acender o charuto” (p. 101). Felizmente, no fim do inverno “escuro e pessimista” (p.126), Jacinto acordou certa manhã e comunicou a José Fernandes que estava de partida para Tormes. Decidiu viajar ao receber uma carta de Silvério, seu procurador, que dizia estarem concluídos os trabalhos de re-erguimento da capela para onde seriam transladados os restos mortais de seus avós que ele não conhecera, mas que o 202 estava cheio de recordações. Os preparativos para a viagem envolveram uma mudança da civilização para as serras. Jacinto encaixotou “camas de penas” (p.130), banheiras, cortinas, divãs, tapetes, livros, despachou tudo para poder enfrentar com conforto um mês nas serras. Enquanto isso, “recomeçara a amar a cidade, meu Príncipe, enquanto preparava o seu êxodo” (p.131). Partiram os dois amigos de volta a Portugal. “Que aventura, Zé Fernandes!” (p.137). As cidades passavam pelas janelas do trem: da França para a Espanha, da
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Espanha para Portugal. José Fernandes estava feliz em rever a pátria; Jacinto, aborrecido e enfadado principalmente porque, em Medina (Espanha), as malas ficaram em compartimentos errados quando foi feita a baldeação. O narrador, com o intuito de acalmar o amigo, diz-lhe que a Companhia cuidaria de tudo. E ficaram os dois só com a roupa do corpo. Enfim, chegaram a Tormes. Desembarcaram em Tormes, onde o narrador encontrou o velho amigo Pimenta, chefe da estação. Após apresentar-lhe o senhor de Tormes, indagou por Silvério, o procurador de Jacinto em terras portuguesas. Começaram então outros desastres da viagem. Silvério não os aguardava: havia partido há dois meses para o Castelo de Vide. Os criados Grilo e Anatole que, aparentemente, estariam com as 23 malas em outro compartimento, não foram encontrados, o trem apitou e partiu, deixando os dois sem nada. “E agora? As malas perdidas!...Nem uma camisa, nem uma escova!
Acalmei o meu desgraçado amigo” (p. 142).
Desesperado Jacinto lança “um olhar inquieto: - Ora essa! E o Melquior, o caseiro? .... Pois não estão aí os cavalos para subirmos à quinta? – Não! Nem Melquior, nem cavalos” (p.147/148) Não havia cavalos para atravessarem a serra, pois Melchior, o caseiro, não os esperava senão para o mês seguinte. Pimenta arranjou-lhes uma égua e um burro e ambos seguiram serra cima, esquecendo, por alguns instante, os infortúnios passados enquanto contemplavam a beleza da paisagem. O pior ainda estava por acontecer: os caixotes despachados de Paris há quatro meses não haviam chegado, e o mais civilizado dos homens estava totalmente à mercê das serras. Como ninguém os esperava, a casa não estava pronta para recebê-los, a reforma acontecia devagar, os telhados ainda continuavam sem telhas, a vidraças sem vidros. Zé Fernandes sugeriu que rumassem para a casa de sua tia Vicência em Guiães e Jacinto retrucou que ia mesmo para Lisboa. (p.152/153)
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Melchior arranjou como pôde um “jantarinho de suas Incelências5” (p.157), caseiro e simples, longe das comidas sofisticadas, das taças de cristal, dos metais e porcelanas. Uma comida que serviu para matar gostosamente a fome dos viajantes. “Exclamava Jacinto (...) estou com uma fome...Santo Deus! Há anos que não sinto esta fome.” (p.158). O senhor de Tormes regalou-se com o jantar que lhe parecera, à primeira vista, insuportável; e o caseiro, diante das manifestações de regozijo perante a comida, pensou que seu senhor passava fome em Paris. “O meu príncipe, na verdade, parecia saciar uma velhíssima fome e uma longa saudade da abundância, rompendo assim, a cada travessa, em louvores mais copiosos”. (p.158/159). E, além disso, parecia outra pessoa, rejuvenesceu e ficou mais disposto como se pode observar em sua nova descrição feita pelo narrador, “Afortunado Jacinto, na verdade! Agora entre campos que são teus e águas que te são sagradas, colhes enfim a sombra da paz! (...) Jacinto já não corcovava” (p.170). É visível, por meio dos adjetivos usados pelo narrador ao se referir a Jacinto, a transformação sofrida pelo personagem ao chegar ao campo. Perde o tom apático e doentio que havia contraído na cidade. “Sobre a sua arrefecida palidez de supercivilizado, o ar montesino, ou vida mais verdadeira, espalhara um rubor trigueiro e quente de sangue renovado que o virilizava soberbamente”. (p. 171). O príncipe da Grã Ventura retoma sua majestade: “Dos olhos, que na cidade andavam sempre tão crepusculares e desviados do mundo, saltava agora um brilho de meio-dia, resoluto e largo, contente em se embeber na beleza das coisas. Até o bigode se lhe encrespara”. (p. 171) Além de falar da total mudança de aparência de Jacinto, Zé Fernandes também relata a transformação mental ocorrida no personagem. “Era um Jacinto
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Escrito de acordo com a escrita da obra. Acredito deve-se referir ao falar “simples” do homem do campo.
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novíssimo. E quase me assustava, por eu ter de aprender e penetrar, neste novo príncipe, os modos e as idéias novas” (p. 171). Realmente ao chegar nas serras Jacinto renasceu, tornou-se um outro homem, muito mais tranquilo e feliz, demonstrando essa sua nova atitude nas pequenas coisas do dia a dia, gritava despojadamente com os empregados:“-Ana Vaqueira! Um copo de água, bem lavado, da fonte velha!”. O narrador ironiza o pedido do amigo à empregada. “- Oh, Jacinto! E as águas carbonadas? e as fosfotadas? e as sódicas? O meu príncipe atirou os olhos com um desdém soberbo. E aclamou a aparição de um grande copo, todo embaciado pela frescura nevada da água refulgente,” (p. 173). Era um outro Jacinto a quem o campo já não mais era insignificante. “Dormi hoje deliciosamente, Zé Fernandes. Tão bem, com uma tal serenidade, que começo a acreditar que sou um justo” (p. 192). Cada momento novo era uma nova e alegre descoberta. Enfim, era um homem de bem com a sua vida. Zé Fernandes, hábil observador do amigo, percebeu que Jacinto não se contentava em ser o apreciador passivo dos encantos da natureza. Ele queria participar de tudo, e lhe surgiam grandes idéias como encher pastos, construir currais perfeitos, máquinas para produzir queijos, isto é, estava se envolvendo realmente com sua nova realidade, deixando de lado aquele ser inerte de antes. Em uma das inúmeras visitas que lhe fez o narrador, Jacinto confessou que pretendia introduzir um pouco de civilização naqueles cantos tão rústicos. Certo dia, ao percorrer seus domínios, Jacinto conheceu o outro lado da serra: uma criança muito franzina viera pedir socorro para a mãe agonizante. “Que miséria, Zé Fernandes! Eu nem sonhava... Haver por aí, a vista da minha casa, outras casas, onde crianças têm fome. É horrível!” (p. 209). A partir desse momento, as decisões de Jacinto tomaram novo rumo, pois ele começou a se preocupar com o lado triste da serra, e passou a fazer caridade, reconstruir casas, dar novo alento à vida dos humildes. “- Antes de tudo, - continuava Jacinto – mande já hoje chamar esse Dr. Avelino para aquela pobre mulher ... E os remédios
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que os vão buscar logo em Guiães. E recomendação ao medico pra voltar, amanhã, e em cada dia até que ela melhore” (p. 207). Jacinto também começou a ajudar a comunidade que vivia no campo com alimentação e moradia. “Escute! E quero, Silvério, que lhe leve dinheiro, para os caldos, para a dieta (...) desejou saber por quanto ficaria cada casa... uma casa simples, mas limpa, confortável (...) queria dar a todos alguma mobília e alguma roupa”. (p. 207/208). Ao contrário do que Jacinto teorizava quando morava no 202, que a serra desumaniza o homem, ele, depois que chegou ao campo foi ficando, a cada momento, mais humano, preocupado com o próximo e, consequentemente, mais feliz. A melhora evidente do personagem Jacinto, por meio de seu estilo de vida, o faz pensar em um futuro promissor e cheio de realizações. Jacinto até se apaixona, como descreve, lindamente: “apareceu minha prima Joaninha, corada do passo e do vivo ar, com um vestido claro um pouco aberto no pescoço, que fundia mais docemente, numa larga claridade, o esplendor branco da sua pele” (p.242). A personagem Joaninha continua sendo descrita com riquezas de detalhes, o que reforça o envolvimento de Jacinto, antes um homem frio e volúvel, agora, demonstra-se um romântico. “e o louro ondeado dos seus belos cabelos, - lindamente risonha, na surpresa que alargava os seus largos lábios, luminosos olhos negros, e trazendo ao colo uma criancinha, gorda e cor-de-rosa, de grandes laços azuis”. (p. 242). De repente, a vida de Jacinto se transformaria ainda para melhor, pois agora deixaria de ser solitário, teria uma família, esposa e filhos e sua vida ganharia novos propósitos. “E foi assim que Jacinto, nessa tarde de setembro, na Flor da Malva, viu aquela com quem casou, em maio, na capelinha de azulejos, quando o grande pé de roseira se cobrira já de rosas”. (p.242). Cinco anos se passaram em plena felicidade por ver correrem por aquelas terras duas fidalgas crianças, Teresinha e Jacinto. Os caixotes embarcados de Paris
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enfim chegaram a Tormes e serviam para demonstrar o total equilíbrio do protagonista, aproveitando o que poderia ser aproveitado e desprezando as inutilidades da civilização, justificando deste modo a observação feita por Grilo: “Sua Excelência brotara” (p. 245). Certamente, Jacinto descobrira seus melhores valores: era feliz e fazia aos outros felizes. Algumas vezes Jacinto falou em levar a esposa para conhecer o 202 e a civilização, mas o projeto, por um motivo ou por outro, era sempre adiado. E, assim, ficamos com a seguinte imagem do novíssimo Jacinto que antes era considerado aquele “ressequido galho de cidade” (p. 242). Agora fora “plantado na serra, pegara, criara seiva, afundara raízes, engrossara de tronco, atirara ramos, rebentara em flores, forte, sereno, ditoso, benéfico, nobre, dando frutos, derramando sombra” (p. 242).
Referências
CANDIDO, Antônio. Entre campo e cidade. In: Tese e Antítese. São Paulo: Editora Nacional, s/d. LINS, Álvaro. História Literária de Eça de Queiroz. Rio de Janeiro: Ed. Da Livraria do Globo, s/d. SARAIVA, Antônio José. As idéias de Eça de Queirós. Rio de Janeiro: Livraria Bertrand, 1982. QUEIRÓS, Eça de. Obras Completas. Lisboa: Ed. Livros do Brasil, s/d. ______. Notas Contemporâneas. Porto: Livraria Lelo e Irmãos Editores, 1951. ______. A Cidade e as Serras. São Paulo: FTD, 1995.
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MARIANO, Lara Cardoso. O discurso ideológico na literatura de monteiro lobato. Revista Ofaié, Nova Andradina, v. 1, n. 1, p. 52-66, jan./jun. 2013.
O DISCURSO IDEOLÓGICO NA LITERATURA DE MONTEIRO LOBATO
Lara Cardoso Mariano1 RESUMO: Considerado o pai da literatura infantil no Brasil, Monteiro Lobato traz em suas obras diversos conceitos ideológicos transmitidos nas entrelinhas de suas histórias. Expressa em sua literatura ideias nacionalistas, modernistas, socialistas e revolucionárias, permitindo ao jovem leitor desenvolver um caráter crítico diante da sociedade. Por outro lado, Lobato expressa em suas obras a sua visão de mundo que envolve o racismo e o preconceito em relação ao negro e a ignorância do povo brasileiro. Baseado nisto, este trabalho tem por objetivo analisar o discurso ideológico das obras de Monteiro Lobato, propondo uma nova metodologia de trabalho que permita minimizar preconceitos por meio da contextualização histórica e da análise crítica desde os primeiros anos. PALAVRAS-CHAVE: Literatura, racismo, ideologia, Monteiro Lobato.
Introdução
Numa época em que a literatura infantil em nosso país era baseada em reproduções de obras estrangeiras, com sentido ideológico de moldar a personalidade infantil, Monteiro Lobato surge trazendo para o gênero literário ideias que mesclavam o real e o maravilhoso, dando pela primeira vez voz à criança e vida ao universo infantil. Isso representa uma ruptura com os valores tradicionais e o início de uma nova fase que mudaria os rumos da literatura infantil. Em toda sua obra, a maior parte dedicada ao público infantil, expressou interesse pelos problemas do país e pela construção do futuro. Entretanto, mesmo tendo obtido grande sucesso e revolucionado o estilo literário, estudos mostram que suas obras retratam sua visão preconceituosa em relação ao negro, reflexo da sociedade e da época em que viveu. Diante dos fatos, este trabalho tem por objetivo analisar as obras de
1 Lara Cardoso Mariano, lalitamc@hotmail.com.
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Monteiro Lobato, trazendo a tona seu lado herói e seu lado vilão no contexto histórico-literário do Brasil. Herói por ser visionário, por permitir que a criança tivesse voz dentro das histórias, por desenvolver no leitor o senso crítico, por fazer e permitir questionamentos acerca do mundo, da vida e dos problemas sociais, e vilão por deixar transparecer tão claramente suas ideias racistas desvalorizando a figura do negro e culpando o povo brasileiro pelo atraso da sociedade burguesa. Porém, ao sair do contexto histórico em que foram escritas, essas histórias encantam crianças de todas as idades, até os dias atuais. Sendo assim, ao utilizar as obras de Lobato em sala de aula, o professor tem em mãos o poder de transformá-lo em herói ou vilão, de acordo com a metodologia escolhida.
Metodologia
Mais de sessenta anos após a sua morte, Monteiro Lobato ainda é alvo de discussão entre críticos e professores e tem gerado polêmica até nos tribunais. Recentemente uma entidade do movimento negro afirmou que o livro “Caçadas de Pedrinho”, publicado em 1933, tem elementos racistas e começou uma campanha para que a obra do escritor seja retirada do Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE), do Ministério da Educação. Depois de inúmeras discussões terminarem sem acordo entre as partes, o caso foi levado ao Supremo Tribunal Federal que deverá decidir se o livro poderá ou não continuar sendo distribuído aos estudantes da rede pública de ensino de todo país. As críticas contra a literatura de Lobato não é uma coisa recente. Suas obras tem sido alvo de inúmeros debates acerca do tema racismo, principalmente. De um lado, seus acusadores afirmam que seus livros trazem uma abordagem racista, fruto de uma visão preconceituosa e escravocrata. De outro, seus defensores enfatizam que Monteiro Lobato trouxe para a literatura as ideias modernistas presentes na época valorizando a cultura nacional, o folclore, a voz
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e os sentimentos das crianças e as diferentes formas de linguagem. Assim, ao invés de disseminar ideias racistas, ele tinha por principal intenção combater a discriminação em qualquer forma em que ela estivesse presente na sociedade. Vale ressaltar que a literatura infantil de modo geral tem em sua essência elementos controversos. Seu caráter pedagógico é, sem sombra de dúvidas, uma das características mais marcantes e mais perturbadoras do gênero literário em questão. Com a intenção de moldar o comportamento infantil, transmitir valores comportamentais e sociais, transmitir informações e ensinar regras de conduta da sociedade, a Literatura Infantil acabou assumindo, ao longo da história, um papel de destaque na formação da personalidade infantil. Dotadas de ensinamentos morais e mensagens ocultas, essas histórias atuam sobre o comportamento das crianças no intuito de prepará-las para a vida adulta. No entanto, ao mesmo tempo em que ensina valores positivos, essas histórias podem ser responsáveis pela propagação de ideologias, condicionando o pensamento infantil através do medo, tornando-os passivos e inseguros diante da realidade. Isso acontece por que, ao ser lida por crianças ou para crianças, as obras literárias voltadas a essa faixa etária, muitas vezes, são utilizadas pelos adultos para dominar os pequenos por meio de ameaças, uma vez que uma das grandes características desses textos é a presença da punição ao mau comportamento dos personagens. Movidos pela imaginação e pela fantasia, a criança mergulha no mundo imaginário sem conseguir desvincular a fantasia da realidade, passando a acreditar que, se não seguirem os padrões da sociedade, poderão ter os mesmos finais dos personagens desobedientes das histórias infantis. Dessa maneira, o que deveria ser instrumento de prazer, distração e aprendizagem, assume uma função de dominação, criando, provavelmente, adultos passivos e alienados da realidade social e cultural onde vivem. Embora esses valores tenham sido incorporados na literatura para atender a necessidade de uma determinada época e sociedade, ainda hoje
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podem ter o mesmo efeito sobre o universo infantil, dependendo da intenção pedagógica que lhe são atribuídas, da metodologia de quem as aplica e do contexto onde são trabalhadas. Exemplo disso são os clássicos, os contos de fadas, as lendas e as fábulas. Segundo relatos, Charles Perrault e os Irmãos Grimm foram os principais responsáveis pelo início desse gênero literário dedicado às crianças europeias tornando-se, com o passar do tempo, universal. Estudiosos afirmam que, assim como Monteiro Lobato fez no início do século passado, a literatura infantil já agia como um veículo de transmissão ideológica desde o século XVI. Considerado por muitos o pioneiro da Literatura Infantil no mundo, Charles Perrault nasceu no berço da burguesia francesa, em 12 de janeiro de 1628, e foi um dos homens mais influentes da corte de Luis XIV . Dividido entre a vida política e literária, escreveu seu primeiro livro de literatura infantil aos 69 anos, dedicado à sobrinha do Rei. Livro este conhecido mundialmente até hoje como “As Histórias da Mamãe Gansa”, que reúne narrativas contadas pelas amas, mães, tias e avós, e que Perrault descobriu ser de grande interesse das crianças em geral. Ele, então, expressa em suas obras um retrato de sua época e da sociedade de seu tempo.
[...] Perrault retrata a sociedade de seu tempo, a sua época, em suas histórias infantis, com toda a carga existencial, fazendo desfilar nelas os nobres e poderosos, os humildes e fracos; os opulentos e despóticos, que o povo fez descender de canibais, devoradores; os fracos, compensados e fortificados pelas qualidades morais e espirituais. As intrigas das classes elevadas, dos nobres, das princesas despeitadas por não serem convidadas para os grandes acontecimentos da nobreza, dos palácios. O desenfreado despotismo dos reis, que nada respeitavam ou admitiam além de seus desejos. Suas personagens são de todos os níveis sociais; aí se agitam e transitam, com os nobres, toda classe de plebeus: pescadores, cozinheiros, camponeses, lavadeiras, revelando verdades, em seu habitat alegórico, dentro do clima dialético do século, e numa linguagem viva e plástica. (CARVALHO, 1987, p. 77)
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O mesmo aconteceu por volta do século XVIII, quando surgiram os contos dos Irmãos Grimm. De maneira geral, as obras literárias dessa época, tanto na Europa como no restante do mundo, eram repletas de características marcantes como a presença da tragédia seguida de um final feliz, ensinamentos morais, influência do cristianismo, punição ou prêmio para as mulheres, castigo pela curiosidade, preconização da sociedade patriarcal. Em seu livro “Em busca dos contos perdidos”, Marizz B. T. Mendes analisa os contos de Perrault como sendo um instrumento de reprodução da sociedade machista e patriarcal. [...] O prêmios e castigos para as boas e más ações são a base da moral ingênua, que caracteriza as narrativas de origem popular. Por essa razão, estão presente em todos os contos de Perrault, mas em três deles – Chapeuzinho Vermelho, Barba Azul, As Fadas – as mulheres recebem prêmios e castigos especiais, que mostram o modo como o sexo feminino é manipulado na sociedade patriarcal. (...) Desse modo, premiando as bem comportadas e castigando as que fogem ao padrão imposto pela sociedade, os contos vão transmitindo lições de moral para as mulheres e as crianças. (MENDES, 1999, p. 94 e 99)
Ainda segundo a autora, a literatura infantil dessa época servia como manual de conduta para as meninas estabelecendo um padrão de comportamento para toda a sua vida, incentivando a submissão, obediência e beleza. Em algumas histórias, o papel da mulher é insignificante, e em outras, como “A Bela e a Fera”, prega-se a submissão ao homem e deixa evidente a importância do padrão de beleza feminina acima de todas as outras virtudes da mulher. Assim, a maioria das histórias infantis, nesse contexto, pregavam padrões de comportamento exigidos pela sociedade da época, principalmente no que diz respeito ao universo feminino, e trazia nas entrelinhas uma ideologia machista que exigia das mulheres e crianças a obediência e a abnegação, enquanto transformavam os homens em heróis e exemplos de virtude.
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Diante disso, quando se fala em Monteiro Lobato podemos tratá-lo como um marco na história da Literatura Infantil. Embora desde o surgimento da Imprensa Régia no Brasil, em 1808, já houvessem publicações de obras voltadas ao universo infantil, só se pode falar em uma literatura específica para crianças a partir do final do século XIX, que foi quando educadores escreveram os primeiros livros de leitura para serem usados nas escolas, compostos por traduções de obras europeias, dotados de intencionalidades pedagógicas e funcionalidades sociais, transmitindo valores cristãos, morais, patrióticos e comportamentais. Segundo FERNANDES (2008), as primeiras obras literárias voltadas ao público infantil tinham a intenção de moldar o comportamento humano, assim como todas as obras existentes no mundo até então.
[...] No entre-séculos destacam-se, na Literatura Infantil brasileira, conteúdos associados às ideologias e às utopias criadas em torno da civilização e modernização da realidade nacional; servindo como instrumento de legitimação aos interesses da elite burguesa e cultural. O conjunto das obras dos pioneiros do livro infantil revela a qualidade da formação educacional recebida pelos brasileiros no final do século XIX: uma educação orientada para consolidação dos valores do sistema herdado que reúne uma mescla de feudalismo, aristocratismo, escravagismo, liberalismo e positivismo, destacando-se valores ideológicos de aparelhamento Estatal. (FERNANDES, 2008)
De acordo com a educadora e escritora, as principais características da literatura infantil nacional são a ênfase à língua falada no Brasil; incentivo ao patriotismo; o culto às origens idealizando a vida no campo, valorização da educação como instrumento de melhora de vida, transmissão de modelos culturais a ser assimilados e imitados desprezando as manifestações culturais do país, exigência absoluta de retidão de caráter, honestidade, solidariedade, fraternidade, pureza do corpo e da alma de acordo com os ensinamentos do cristianismo. Nessa época a literatura existente no Brasil desprezava a cultura e as
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tradições nacionais, e expressava a ideologia da classe dominante de seus países de origem. Isso até o surgimento do ousado escritor José Bento Monteiro Lobato que traz para o gênero literário ideias que mesclavam o real e o maravilhoso, dando pela primeira vez voz à criança e vida ao universo infantil. Vale lembrar que até então acredita-se que todas as obras que circulavam no país não eram produzidas aqui, mas importadas, traduzidas e difundidas na sociedade brasileira. Pioneiro na produção de histórias infantis no Brasil, Monteiro Lobato trouxe para a literatura as ideias modernistas presentes na época valorizando a cultura nacional, o folclore, a voz e os sentimentos das crianças e as diferentes formas de linguagem. Em toda sua obra, a maior parte dedicada ao público infantil, Monteiro Lobato expressou características do interior brasileiro e seu interesse pelos problemas do país e pela construção do futuro.
[...] Coube a Monteiro Lobato (1882-1948) a tarefa de instaurar o “divisor de águas” que separa o Brasil de ontem e o Brasil de hoje. Fazendo a herança do passado vigorar sobre o seu tempo, Lobato alcança “o caminho criador que a literatura infantil estava necessitando. Rompe, pela raiz, com as convenções estereotipadas e abre as portas para as novas idéias e formas que o nosso século exigia. (COELHO apud FERNANDES, 2008)
Lobato traz para a literatura um mundo mágico que encanta crianças de todas as idades, despertando a curiosidade própria dessa faixa etária. Ele não só escrevia as histórias, mas por meio da personagem principal de suas obras, a Boneca Emilia, transmitia opiniões, críticas e sua própria visão de mundo influenciando na formação do caráter crítico e investigativo da infância. E foi neste contexto que José Bento Monteiro Lobato criou as aventuras de uma turminha especial pelos quatro cantos do Sítio do Pica-pau Amarelo e sua mais célebre habitante, a boneca Emilia, que nasceu dos retalhos da saia de Tia Nastácia e foi vestida do espírito crítico, visionário e aventureiro de seu próprio criador. Numa mistura entre sonho, fantasia e realidade, Lobato narra em sua
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obra aventuras das mais variadas, daquelas que normalmente só poderiam existir no mundo da fantasia, como se fossem possíveis de existir na realidade cotidiana. Por meio de uma linguagem fluente, coloquial, objetiva, despojada e sem retórica, constrói um universo maravilhoso, paralelo ao real, que conquista e encanta crianças de todas as idades. Porém, embora a fantasia seja a principal característica da obra lobatiana, em momento algum ele deixa de lado a lógica realista e racional, pois permite à criança viajar pelo encanto de seus livros sem quebrar o vínculo com a realidade, ao trazer o leitor de volta ao mundo real depois de viajar pelo mundo maravilhoso que ele tão bem soubera criar. Dessa forma, em sua obra, o racional sempre acaba predominando sobre o maravilhoso e fantasioso. Um exemplo disso é a forma como narra trechos de “Reinações de Narizinho”: [...] Toda perturbada, ia responder, quando uma voz conhecida a despertou: _ Narizinho, vovó está chamando! A menina sentouse na relva, esfregou os olhos, viu o ribeirão a deslizar como sempre e lá na porteira a tia velha de lenço amarrado na cabeça. Que pena! Tudo aquilo não passara de um lindo sonho (MONTEIRO LOBATO, apud COELHO, 1984, p.96 e 97)
Isso ocorre, provavelmente, porque Lobato tinha a consciência de que a criança era diferente dos adultos e tinha pensamentos e visões de mundo próprios da faixa etária. Um ponto característico da Literatura Infantil de Monteiro Lobato é a ambiguidade presente, em grande parte de sua obra, nas atitudes de seus personagens. Ao mesmo tempo que citava, num caráter referencial, os fatos da realidade social de sua época, expressava em sua escrita as críticas ao governo, ao sistema capitalista, à sociedade em geral e às atitudes humanas, que Lobato considerava estupidez. No entanto, embora sua real intenção ao abordar tais temas fosse a critica, ele utilizava, para isso, as sátiras e o humor, o que fez com que, muitas vezes, as pessoas interpretassem erroneamente suas colocações atribuindo a ele os rótulos de racista e preconceituoso.
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A principal intenção de Lobato ao escrever era mudar a consciência das pessoas, trazendo-as para a realidade dando-lhe o poder, por meio do conhecimento, de mudar os rumos de sua própria história e da história da humanidade. Inconformado por não ter sido interpretado pelos adultos da maneira como ele gostaria, sendo muitas vezes criticado pela seu modo de ver o mundo, Lobato passa a acreditar que os adultos o ignoram, o que o leva a se dedicar ao público infantil que, a seu ver, por não terem uma opinião formada a respeito da vida, seria mais fácil de ensinar-lhes as coisas que ele julgava imprescindíveis para um mundo melhor e para a construção de um futuro justo e menos desumano. Sendo assim, Lobato criou o Sítio do Pica-Pau Amarelo como palco para as aventuras e peripécias de seus personagens, ora permanentes, ora ocasionais, que eram, na realidade, reflexo de sua própria personalidade, de suas ideias sociais ou políticas e de seus pontos de vista levantando a crítica dentro da sua obra. Como, por exemplo, na fala de Emilia no último capítulo de suas memórias onde o escritor expressa sua tristeza ao constatar as injustiças sociais: [...] Eu era uma criaturinha feliz enquanto não sabia ler e portanto não lia os jornais. Depois que aprendi a ler e comecei a ler os jornais, comecei a ficar triste. Comecei ver como é na realidade o mundo. Tanta guerra, tantos crimes, tantas perseguições, tantos desastres, tanta miséria, tanto sofrimento... Por isso acho que o único lugar do mundo onde há paz e felicidade é no sítio da Dona Benta. Tudo aqui corre como num sonho. (LOBATO, 1952, p. 141)
Ou, ainda, quando a boneca fala da maneira cruel como os homens de bem são tratados pela sociedade enquanto os homens “maus” são enaltecidos e beneficiados pelo sistema: “[...] Quando vejo certas mães baterem nos filhinhos, meu coração dói. Quando vejo trancarem na cadeia um homem inocente, meu coração dói. Quando ouvi Dona Benta contar a história de Dom Quixote, meu coração doeu várias vezes, por que aquele homem ficou louco apenas por excesso de bondade. O
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que ele queria era fazer o bem para os homens, castigar os maus, defender os inocentes. (...) Quantos homens não padecem nas cadeias do mundo só por que quiseram melhorar a sorte da humanidade? Aquele Jesus Cristo que Dona Benta tem no oratório, pregado na cruz, foi um. Os homens do seu tempo que só cuidavam de si, esses viveram ricos e felizes. Mas Cristo quis salvar a humanidade e que aconteceu? Não salvou coisa alguma e teve de aguentar o maior dos martírios. (Ibid., p. 140 e 141)”
Trechos como esses e muitos outros encontrados em sua obra demonstram claramente a crítica de Lobato ao Sistema Capitalista, à exploração do homem pelo homem, seu desencantamento com a humanidade. “Seu humorismo reflete amargura e pessimismo” (CARVALHO, 1987, p. 150). Emília é o escritor em forma de boneca. Questionadora, líder, mandona, obstinada, curiosa, franca. Retrato do seu eu-inconsciente. E embora ela seja a principal personagem de suas histórias, acredita-se que todas as personagens criadas por ele tragam um pouco da sua essência. A grande discussão surge acerca da Tia Anastácia. Sem dúvida a mais polêmica de suas personagens. Representante da raça negra, na figura folclórica da preta velha, simboliza a gênese do povo brasileiro visto por Lobato como ignorante, puro, ingênuo, supersticioso e dotado de cultura popular. “[...] Tia Nastácia, essa é a ignorância em pessoa. Isto é... ignorante, propriamente, não. Ciência e mais coisas dos livros, isso ela ignora completamente. Mas nas coisas práticas da vida é uma verdadeira sábia. [...] Eu vivo brigando com ela e tenho lhe dito muitos desaforos – mas não é de coração. Lá por dentro gosto ainda mais dela do que dos seus afamados bolinhos.” (LOBATO, 1952, p. 145)
Lobato criou a personagem inspirado em “Anastácia”. Negra que vivia com ele e trabalhava como cozinheira e babá de seus filhos. No início do século XX, era comum ter nas casas de fazenda a figura da negra velha, gorda, solitária e ignorante. Tia Nastácia e todos as outras personagens do sítio foram criadas dentro do contexto histórico em que Lobato viveu, retratando sua própria vida desde a infância. Neto de fazendeiros escravocratas, a figura do negro foi
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constante na vida do escritor, assim como o preconceito racial e os ideais de embranquecimento, muito comum na sociedade pós-abolição. Na voz da Emilia, Lobato desrespeita não só a figura da cozinheira negra, mas também a cultura que ela representa. Ele retrata o negro na posição de escravos, ou ex-escravos, atribuindo-lhes cultura inferior, posições subalternas, ignorância e submissão ao branco, mesmo que logo em seguida venham as represálias e os pedidos de desculpas. O último capítulo das Memórias da Emilia mostra claramente a voz do autor incorporada na personagem. Assim, diante da forma como Lobato descreve a Tia Nastácia, ele é facilmente interpretado de forma errônea como racista, sendo alvo de críticas até os dias atuais. Frases como “só não compreendo por que Deus faz uma criatura tão boa e prestimosa nascer preta como carvão”; e “Isso me leva a crer que a tal cor preta é uma coisa que só desmerece as pessoas aqui neste mundo” (LOBATO, 1952), fez com a sociedade entendesse que suas histórias eram preconceituosas e transmitiam ao público infantil uma visão deturpada da raça negra, quando na realidade, ele estava apenas sendo realista ao retratar o negro diante da visão real que a sociedade escravocrata da época impôs. Mais do que recreação, a literatura lobatiana, tanto para adultos quanto para crianças, está repleta de valores ideológicos em suas entrelinhas. Em uma época em que a literatura nacional transmitia uma visão romântica da sociedade brasileira, ocultando a realidade e mostrando ao leitor um Brasil idealizado, Monteiro Lobato choca os seus contemporâneos intelectuais ao apresentar uma literatura desmascarada, escancarando a verdadeira situação rural do país, o descaso das autoridades, os conflitos econômicos, sociais e políticos. Influenciado pelas ideias, principalmente, de Friedrich Nietzsche e também pelos ideais humanistas e renascentistas da época, Lobato deu voz ao povo brasileiro, à mulher, à criança e ao folclore trazido pelos mais diversos personagens que habitavam o Sítio do Pica-Pau Amarelo. Uma de suas intenções,
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com isso, era transformar as crianças em cidadãos conscientes e críticos capazes de, um dia, governar o Brasil que estava em fase de modernização. Vivendo entre o fim de uma sociedade escravocrata e o início de um estado novo, passando pela ditadura da era Vargas, Lobato era um visionário, modernista, humanista, dotado de ideais socialistas e passou a vida lutando contra as injustiças sociais e políticas de um sistema que ele considerava impróprio e ineficaz. Passou partes de sua vida no exterior de onde voltou entusiasmado com a tecnologia e as modernidades que conheceu, as quais queria aplicar no Brasil. Alem disso, foi um amante da pátria, pregou a liberdade e a revolução sendo considerado, inclusive, inimigo da Sociedade pelo governo Vargas, chegando até a ser preso. Sonhador e idealista, acreditava que o Brasil não evoluía devido ao atraso de seu povo e, por isso, acreditava que a disseminação da cultura e das ciências eram as armas necessárias à revolução modernista. Diante disso, viu nas crianças uma possibilidade de mudança e encheu as páginas de seus livros de informações e ideologias com a intenção de obter, no futuro, adultos críticos, intelectuais e capazes de realmente transformar a sociedade quebrando os dogmas do sistema vigente até então. Sua obra, como veremos nos trechos que seguem, ao mesmo tempo que diverte, ensina política, ciências, geografia, história e várias outras coisas necessárias a educação dos pequenos leitores.
Considerações Finais
“Há dois modos de escrever: um, é escrever com a idéia de não desagradar ou chocar ninguém (...) Outro modo é dizer desassombradamente o que pensa, dê onde der, haja o que houver – cadeia, forca, exílio.” Disse Monteiro Lobato em carta a João Palma Neto, pouco antes de sua morte. Ele, certamente, optou pelo segundo modo e disse, sem medo das críticas e sem medir conseqüências, tudo que pensava acerca do mundo, dos homens, da política e da sociedade em
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geral. E, de fato, acabou pagando um alto preço pelas verdades que publicou e escancarou em seus artigos, livros, entrevistas e cartas. Inconformado com a situação de seu país, começou a escrever seus livros colocando as suas personagens na linha de frente desses problemas: expressou em cada uma a sua visão de mundo, seu descontentamento com o descaso do governo e sua indignação com a sociedade brasileira marginalizada e oprimida. Entretanto, ao analisar a fundo suas obras, pode-se perceber que, apesar de ser um herói nacional, Lobato imprimia em seus livros e artigos a saga de uma sociedade preconceituosa em relação ao negro, com ideias racistas que nada mais eram do que reflexo da época em que viveu. Porém, nota-se uma grande ambiguidade em suas obras. Ao mesmo tempo em que criticava o negro, ele mostrava para as crianças, através de suas personagens, que o negro também tinha qualidades e que as personagens de cor branca também falhavam. Ao compor os enredos de suas histórias, Lobato criou a Tia Nastácia como símbolo da raça negra espelhada em uma ex-escrava que viveu com ele como cozinheira e babá de seus filhos. O escritor, através das falas da Emilia, ora se dirigia a ela com carinho e gratidão, ora com descaso e humilhação. Diante de suas impressões racistas, colocadas em evidência nos atos de suas personagens, Lobato foi vitima de inúmeras críticas quanto a sua influência nociva ao desenvolvimento da personalidade infantil. Críticas essas que ainda hoje refletem no universo literário sendo pauta de debate entre profissionais da educação chegando, atualmente, aos tribunais. Críticos literários acreditam que a literatura de Monteiro Lobato pode ser nociva a formação ética e moral da criança, uma vez que atribui ao negro uma posição inferior a do branco e está repleta de agressões verbais a esta raça tão desmerecida diante da sociedade. A análise crítica da biografia do autor e de algumas de suas obras
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mostra que, de fato, Lobato evidencia em sua obra uma visão preconceituosa em relação ao negro e se dirige as personagens dessa raça de uma forma pejorativa e repleta de valores racistas. Entretanto, vale ressaltar que, enquanto seus livros forem “jogados” nas escolas com o puro intuito de divertir os pequenos leitores, as ideias racistas do autor continuarão se perpetuando na formação moral da infância brasileira. Sendo assim, o papel da educação na luta contra o preconceito é contextualizar historicamente as obras do escritor, atribuindo-lhe o caráter didático, mostrando para as crianças os motivos reais que levaram Lobato a criar tais histórias, desmistificando as funções pejorativas de alguns de seus personagens, utilizando-os como exemplo daquilo que NÃO se deve fazer. Dessa forma, ao invés de reforçar o preconceito, suas histórias criam uma inversão de valores agindo de forma positiva no processo de valorização da cultura afro-brasileira e africana. Banir a literatura de Lobato das salas de aula não só não resolve o problema como privaria os pequenos de conhecer a riqueza das suas histórias que encantaram tantas gerações e fazem parte da nossa cultura e da história de nosso país. Assim, ao escolher sua metodologia de aula, cada professor se transforma em um criador de ideologias e formador de personalidades. E, assim, assume para si a função de transformar Monteiro Lobato em herói ou vilão diante da sociedade e da formação do caráter dos futuros governantes de nossa nação.
Referências
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OLIVEIRA, Mariana. STF debate se há racismo em livro de monteiro lobato usado em
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FERREIRA, Aline. CARVALHO, Márcio. Reflexões sobre a utilização dos ditongos /ay/, /ey/ e /ow/ em contextos fronteiriços. Revista Ofaié, Nova Andradina, v. 1, n. 1, p. 67-83, jan./jun. 2013.
REFLEXÕES SOBRE A UTILIZAÇÃO DOS DITONGOS /AY/, /EY/ E /OW/ EM CONTEXTOS FRONTEIRIÇOS: DA LINGUAGEM FALADA À DEFINIÇÃO GRAMATICAL Aline Ferreira
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Márcio Palácios de Carvalho 2
RESUMO: O presente texto faz uma reflexão sobre o uso dos ditongos /ay/, /ey/e /ow/ no português falado em Corumbá e Ponta Porã, ambas as cidades estão localizadas em regiões fronteiriças do Estado de Mato Grosso do Sul, tal reflexão é feita através da comparação da realidade da língua oral e com cinco definições contidas em manuais didáticos utilizados para o ensino de português no referido Estado. Com isso, pretende-se sensibilizar os profissionais da área da educação, no sentido de levarem em consideração alguns eventos da oralidade durante o ensino aprendizagem da língua materna. Por meio da análise de vinte entrevistas realizadas, dentro da perspectiva Sociolinguística, nas cidades estudas revelou que o processo linguístico de monotongação ocorre com frequência, sendo que em algumas variáveis linguísticas os índices alcançaram 60%, e as variáveis extralinguísticas apresentaram índices acima dos 50% sendo que a segunda faixa etária alcançou 77% de alteração em sua estrutura, o que indica um forte processo de variação linguística em zona fronteiriça de MS, o que contrapõe com as definições encontradas nos manuais, em que há um apagamento do processo linguístico em estudo. O não reconhecimento dos fenômenos linguísticos presente na fala faz com que os brasileiros fronteiriços passem a reconhecer uma única variedade como adequada. Para tal discussão foram utilizados autores como Castilho (2004), Bortoni-Ricardo (2005), Bueno (2009), Geraldi (1999), Lemle (1984), Monteiro (2000), entre outros. PALAVRAS-CHAVE: Fronteira, Ensino e Português Falado.
Introdução
O presente trabalho tem como objetivo mostrar o uso real e contextualizado dos ditongos /ay/, /ey/e /ow/ no português falado em regiões fronteiriças de Mato Grosso do Sul. Com isso, pretende-se contrapor os dados
1 Professora da Escola Militar em Campo Grande - MS. Graduada em Letras habilitação Português/Espanhol, pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Especialista em Tradução Português Espanhol pela Universidade Gama Filho. Contato: alinespanhol@hotmail.com 2 Professor do Instituto Federal de Mato Grosso do Sul – Campus de Nova Andradina. Graduado em Letras Português/Espanhol, pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Mestrando em Letras pela mesma instituição, na Unidade Universitária de Campo Grande – MS, bolsista da CAPES. Contato: marcio.carvalho@ifms.edu.br
Reflexões sobre a utilização dos ditongos /ay/, /ey/ e /ow/ em contextos fronteiriços
coletados nas comunidades, com a visão normativa contida nos manuais didáticos mais utilizados pela rede púbica de ensino de Mato Grosso do Sul. O estudo é realizado à luz da Teoria da Mudança e Variação Linguística, cujo principal representante é o Norte-americano Willian Labov, essa ciência leva em consideração o contexto social do falante, mostrando que a linguagem é heterogênea, diversificada e possível de ser analisada. Os dados apresentados nesse estudo são compostos por: a) vinte entrevistas realizadas em Corumbá e em Ponta Porã, ambas as cidades estão localizadas em regiões de fronteira. Sendo que, primeira faz fronteira seca com Pedro Juan Caballero – Paraguai, a segunda cidade está localizada a menos de 10 quilômetros de Puerto Quijarro – Bolívia. b) cinco definições encontradas nos manuais didáticos com regras de utilização dos ditongos /ay/, /ey/ e /ow. Os resultados apresentados tanto nas entrevistas como nas definições dos livros didáticos nos revelam a distância entre a veracidade dinâmica e flexível da língua falada com a realidade da língua consolidada e estandardizada nos livros didáticos. A respeito disso, Travaglia (2002) muito bem nos alerta que, as nossas aulas de Português afasta a língua da vida a que ela serve e se torna algo artificial, sem significado para o aluno, já que as gramáticas normativas registram uma realidade que não faz parte do contexto em que os alunos estão inseridos. Neste cenário fronteiriço, tem-se a pretensão de revelar algumas peculiaridades da região rica do ponto de vista linguístico, mas que não são trabalhadas na sala de aula, pois não estão em consonância com as regras prestigiadas pela gramática normativa. Assim, este texto contribui para sensibilização dos professores no sentido de levarem em consideração alguns eventos da oralidade durante a aprendizagem de língua materna, tornando o processo de ensino prazeroso e produtivo, já que o ponto de partida é o meio em que o aluno está habituado.
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Para uma melhor orientação, o trabalho foi divido em cinco partes, a primeira parte trata do aporte teórico-metodológico usado no texto. A segunda apresenta a relevância da teoria da sociolinguística para o ensino. A terceira e a quarta parte discutem e apresentam os resultados encontrados nos manuais didáticos e nas entrevistas de campo. Finaliza-se, o texto apresentando as referências bibliográficas que usadas como embasamento teórico para o estudo.
Aporte teórico-metodológico
O modelo de estudo adotado nas entrevistas foi o método desenvolvido pela Sociolinguística Variacionista Laboviana. Essa a linha de pesquisa parte do princípio de que não se pode desvincular o falante do seu meio social, os resultados quantitativos são obtidos através de narrativas sobre o cotidiano do informante. Para conseguir a fala de modo espontâneo, o pesquisador direciona as perguntas de modo com que o informante se envolva emocionalmente, colocando a atenção no assunto que está sendo narrado. Dessa maneira, ele desvincula dos padrões impostos e quase solidificados pela herança da gramática normativa. Com essa abordagem é possível coletar dados linguísticos sobre o vernáculo de uma comunidade de fala. Em relação aos ditongos /ay/, /ey/ e /ow/, foram elencadas cinco definições encontradas nos manuais didáticos utilizados no ensino de português no Estado de Mato Grosso do Sul. A análise mostra que o modo como tal assunto é apresentado não contempla a realidade linguística, tão diversificada nas localidades fronteiriças. A linguagem falada, por sua vez, sendo um objeto flexível usado por indivíduos em contextos diferentes está sujeita a inovações e variações que atendam às necessidades específicas dos falantes, nas mais diversas situações de comunicação, portanto, não podem ser vista e nem estudada como algo estável.
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Reflexões sobre a utilização dos ditongos /ay/, /ey/ e /ow/ em contextos fronteiriços
De acordo com Geraldi (1999) a postura do educador em relação à linguagem na sala de aula é de extrema importância. Para ele, o professor deve ter em vista que a linguagem é uma forma de interação humana. Por meio dela, o sujeito que fala pratica ações que não conseguiria levar a cabo, a não ser falando; com ela o falante age sobre o ouvinte, constituindo compromisso e vínculos que não preexistiam à fala. Diante da heterogeneidade do português falado no espaço fronteiriço, é apresentada uma seção destinada à sociolinguística e suas principais finalidades. A escolha por este ramo da linguística se deu porque ela entende que as mudanças que ocorrem nas línguas são inerentes ao sistema linguístico, e às variações são fenômenos culturais motivados por fatores linguísticos e sociais (MONTEIRO, 2000).
A relevância da sociolinguística na prática pedagógica
Reconhece-se a pluralidade cultural característica do Brasil, entretanto, nossa sociedade ainda é marcada pelo preconceito linguístico, que faz com que os estudos da diversidade linguística fiquem à margem da prática pedagógica, Bagno (2007). No ambiente escolar, predomina a abordagem da língua padrão sob as regras gramaticais, apresentadas quase como uma verdade absoluta, neste sentido, a língua é tida como algo intangível. Os objetivos do ensino da Língua Portuguesa devem ser reformulados, pois apenas quando a língua passa a ser vista como processo dinâmico é que se consegue vislumbrar uma prática pedagógica compromissada com o efetivo aprendizado dos alunos. A heterogeneidade do Português Brasileiro é inegável, por esse motivo a variação linguística precisa ser reconhecida e legitimada, e o primeiro passo é
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fazer com que as variantes saiam do campo da observação e passem a serem tidas como objeto de estudo, como bem propõem os PCN’s (1998):
No ensino-aprendizagem de diferentes padrões de fala e escrita, o que se almeja não é levar os alunos a falarem certo, mas permitir-lhes a escolha da forma de fala a utilizar, considerando as características e condições do contexto de produção, ou seja, é saber adequar os recursos expressivos, a variedade de língua e o estilo às diferentes situações comunicativas: saber coordenar satisfatoriamente o que fala ou escreve e como fazê-lo, saber que modo de expressão é pertinente em função de sua intenção enunciativa [...] a questão não é de erro, mas de adequação às circunstâncias de uso, de utilização adequada da linguagem (p.31).
À luz da teoria sociolinguística o professor adquire papel de mediador, levando o aluno à reflexão do sistema linguístico usual, ampliando, sua competência discursiva. O docente orienta o aprendiz quanto ao emprego das variedades nas diferentes esferas de comunicação. Trata-se, portanto, de uma adequação de linguagem. A variante adquirida no contexto pessoal e familiar não será substituída por outra, e sim empregada em contextos específicos, (LEMLE, 1978). Tendo em vista que grande parte dos alunos não reconhecem a real funcionalidade do estudo de língua materna na escola, uma vez que a oralidade se afasta significantemente do proposto nos manuais didáticos, o professorado tem o desafio de aliar a teoria à práxis, direcionando o educando à percepção, entendimento e posicionamento ante as variações da língua. Dessa forma, preconceitos são quebrados e a pluralidade linguística passa a ser vista como fenômenos inerente ao próprio sistema linguístico, (Ibid.). Conceitos como “certo” e “errado” são substituídos por “adequado” e “inadequado” tendo como referência o contexto comunicacional. Tal posicionamento é eficaz inclusive para evitar traumas no educando, (Ibid.), haja vista que ao deparar-se com a aceitação da variante aprendida em
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circunstâncias sociais pessoais diferentes, o aluno é poupado da estigmatização. Além disso, não se sente obrigado a abandonar seu dialeto para submeter-se a uma única variante (a língua padrão), o que ocasionaria, caso ocorresse, um trauma socio-psicológico devido ao afastamento linguístico de sua família e meio social. Mesmo dentro de uma localidade, há uma série de fatores que contribuem para a utilização de outras formas linguísticas. Além, da forma elegida como padrão a ser seguida e utilizada nos manuais de ensino, por exemplo, diferenças de ordem socioeconômica; grau de instrução, idade, sexo, ocupação profissional entre outros (CAMACHO, 2001). A escola, sendo um espaço que recebe indivíduos oriundos de diferentes classes socioeconômicas, impõe a variante prestigiada como se os alunos já a dominassem, e alguns deles usam estratégias linguísticas que não estão de acordo com a eleita, assim acabam tendo sua variedade linguística estigmatizada. Isso ocorre, porque o sistema posto como tal privilegia, mesmo que sem intenção, um ensino baseado no método tradicional com lista de exercícios e textos que não condizem com a realidade dos alunos. Pensar em ensino de português numa abordagem sociolinguística é incorporar e valorizar expressões que antes, o ensino formalista encarava como erradas, assim o ensino estará mais próximo da realidade do aluno. Mas para que isso ocorra é necessário que os professores conheçam as riquezas linguísticas existentes em cada sociedade, e as usem como ponto de partida para atingir o objetivo maior da escola, que é ensinar a norma padrão da língua, sem menosprezar a modalidade de fala que o aluno traz do seu meio social. Para comprovar as diferentes formas enunciativas presentes nas fronteiras do MS, a próxima seção mostra o uso variado dos ditongos coletados através de entrevistas com os moradores das cidades fronteiriças escolhidas para o estudo.
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Resultados dos ditongos /ay/, /ey/ e /ow/ no português falado em regiões fronteiriças
Conforme já anunciado, dedica-se essa parte do texto à análise e discussão dos resultados obtidos nas entrevistas realizadas nas cidades de Corumbá e Ponta Porã. Os dados apresentados pela análise das entrevistas revelam que existem diferenças no uso das variantes linguísticas realizadas pelos ditongos em ambas as localidades. Cegalla (2008, p. 25) traz a seguinte exemplificação de ditongo ‘‘é a combinação de uma vogal + semivogal, ou vice-versa, na mesma sílaba’’, por exemplo; pai, rei, pão, fui, herói, sério, quando. E subdividem em a) orais como em: pai, pouco, Jeito, em b) nasais: mãe, pão, põe, muito (mῦito), bem (bẽi), em c) decrescentes (vogal + semivogal) como em: pauta, meu, riu, etc. em d) crescente (semivogal + vogal) como em: gênio, pátria, série quantia entre outras palavras. Tal definição encontrada em Cegalla beneficia apenas um estado estático do nosso idioma, deixando de fora o processo histórico da língua. Em Latim, por exemplo, os ditongos eram /au/ ‘‘paucu’’ e ‘‘lauru’’, depois de um período de mudanças passaram a ser grafados e pronunciados com /ou/ como em pouco e louro. E, agora há uma tendência de reduzir em /o/ como em ‘‘poco’’ e ‘‘loro’’. Com esse apontamento histórico, a escola traria para as salas de aula a noção de que a língua é uma entidade em constante transformação, assim o aluno ia perceber que a fala que ele usa, segue uma tendência do sistema linguístico, mas por questões sociais e políticas a forma privilegiada pelo ensino, ainda não acompanha a fala. Como pontua Camacho (2001), as diferenças linguísticas são motivadas por diferenças de ordem socioeconômica, como o nível de renda familiar, grau
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Reflexões sobre a utilização dos ditongos /ay/, /ey/ e /ow/ em contextos fronteiriços
de instrução escolar, de ordem sociobiológica, como idade e sexo, entre outros fatores os quais podem ser apresentados isolados ou combinados entre si. Diante do exposto, para que o estudo revelasse a realidade linguística das localidades
estudadas
foram
utilizadas
variáveis
linguísticas
como
o
levantamento da classe morfológica das palavras que contém os ditongos e as variáveis sociais como: gênero, idade e grau de escolaridade do falante. Com a análise das entrevistas foram coletadas 1331 palavras/ditongos, sendo que a maioria sofreu o processo de monotongação. O gráfico 1 - mostra apenas os ditongos na forma reduzida, ou seja, das 1331 palavras/ditongos 783 ou 59% correspondem à variante não padrão e 548 ou 41% correspondem à variante padrão da língua.
verbos 35%
adverbios 4% adjetivos 9% numerais 6%
pronomes 12%
substantivos 34% Gráfico 1 - Refere-se apenas aos ditongos ay/, /ey/ e /ow que sofreram redução na sua forma original.
De acordo com o gráfico-1 há uma tendência de redução nos ditongos no português falado em regiões fronteiriças de MS. Nessas localidades é mais significativo o uso de variantes como: caxa; pexe; poco; primero. Em relação à classe morfológica das palavras, constatou-se que quase todas sofreram algum tipo de variação, mas os substantivos, seguidos dos verbos O gráfico 1 - Refere-se apenas aos ditongos ay/, /ey/ e /ow que sofreram redução na sua forma original.
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e dos pronomes, de acordo com os resultados, são os mais propensos à monotongação dos ditongos. A respeito desse processo, Bueno (2009) e Tarallo (2007) comentam que o processo de monotongação não ocorre aleatoriamente, nem por acaso, mas sim, condicionado pela realidade linguística e social do falante e também pelo contexto de uso concreto da língua. Diante dos resultados, verifica-se que a realidade linguística dos moradores das regiões fronteiriças é bem diferente da realidade prescrita nos manuais escolares. O que nos leva a interferir que as definições das gramáticas isolam o falante do seu contexto de uso da língua. A seguir, os resultados de acordo com o cruzamento dos ditongos coletados nas entrevistas e a variável escolaridade dos moradores das localidades pesquisadas. Regular
Desvio
Total
473
591
1064
44%
56%
100%
78
189
267
29%
71%
100%
Escolarizado
Não Escolarizado
Tabela 1. Distribuição dos dados de acordo com o cruzamento dos ditongos e a variável escolaridade dos informante
A tabela 1 revela que no interior das comunidades estudadas, tanto os moradores que frequentaram ou frequentam o sistema escolar como os que não tiveram oportunidade de frequentar, utilizam ambas as variantes. Conforme os dados há uma inclinação para uso da variante não padrão, haja vista que os informantes escolarizados também usaram algumas formas linguísticas que o ensino normativo abomina. Bagno (2007, p.58) mostra, com base em suas pesquisas, que o fenômeno da monotongação ocorre tanto no português padrão como no português não
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padrão e acrescenta que o problema está na confusão que é feita entre a língua falada e a língua escrita, os livros didáticos insistem dizer que a fala tem que ser o espelho da escrita, em virtude dessa noção, cria-se uma lacuna nas aulas de língua materna gerada por um ensino de raiz tradicional. Quando se trata de ensino de português, as gramáticas ainda ocupam espaço privilegiado nas aulas, e por detrás de algumas definições há um forte sentimento de estratificação social, e, sobretudo, de ‘‘diferença social’’. É quando as gramáticas registram que certos usos são características da linguagem popular (CASTILHO, 2004). Infelizmente, definições como as de Pasquale (1998), que diz ‘‘os ditongos devem ser pronunciados apropriadamente nos vários momentos da vida’’, e logo em seguida uma lista de palavras chamando a atenção para pronúncia certa, não contribui para aproximar o educando da variante de prestígio, pelo contrário, o aluno pensa que só existe uma forma certa de expressar: a que ele não domina, talvez seja por isso que os alunos falam ‘‘eu não gosto de português’’. Na tabela a seguir, mostra os dados encontrados no cruzamento entre os ditongos e a faixa etária coletados nas entrevistas realizadas nas cidades de Corumbá e Ponta Porã.
10 a 25 anos
26 a 40 anos
41 ou mais
Regular
Desvio
Total
179
284
463
39%
61%
100%
78
161
210
29%
77%
100%
285
373
658
43%
57%
100%
Tabela 2. Distribuição dos dados de acordo com o cruzamento dos ditongos coletados nas entrevistas e a faixa etária dos informantes
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Nas comunidades estudadas, o fenômeno da redução dos ditongos ocorre em todas as faixas etárias. Entretanto, a segunda faixa etária, que corresponde aos informantes de 26 a 40 anos foi a que se destacou com 77% das ocorrências, seguida da primeira e da terceira com 61% e 57% respectivamente. Diante dos dados expostos acima, evidencia que o processo de monotongação está enraizado no português falado nas cidades pesquisadas, e só deixa de ocorrer quando os falantes apresentam um alto monitoramento na linguagem. Por estarem em uma região de fronteira, as cidades pesquisadas apresentam uma indefinição e instabilidade sociolinguística, nesses contextos a língua sofre influência à mudança a partir da interação dos falantes e da influência dos meios de comunicação, em particular o rádio e a televisão, de um e de outro lado da fronteira (CALVET, 2007). E o ensino regular não leva em conta a realidade linguística dessas localidades, pelo contrário, as ignoram, cabendo ao professor adotar uma postura interacionista e trabalhar a partir do conhecimento do aluno, apresentando outras variantes linguísticas características das regiões estudadas e de outras localidades do país. A seguir será mostrado o uso dos ditongos de acordo com a distribuição com a variável social ‘‘sexo’’ do informante.
Masculino
Feminino
Regular
Desvio
Total
250
354
604
41%
59%
100%
303
424
722
42%
58%
100%
Tabela 3. Distribuição dos dados de acordo com o cruzamento dos ditongos e a variável sexo dos informantes
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Reflexões sobre a utilização dos ditongos /ay/, /ey/ e /ow/ em contextos fronteiriços
Na tabela acima, observa-se que tanto os informantes do gênero masculino como os do feminino utilizam formas reduzidas dos ditongos, em que as diferenças em relação à variável sexo não mostraram ser relevantes quando se trada da variação com os ditongos, o uso foi bastante equilibrado por ambos os gêneros. Paiva (2003) argumenta que as diferenças mais evidentes entre a fala de homens e mulheres se situam no plano lexical, durante a análise das entrevistas notou-se que alguns vocábulos referem ao campo semântico do amor/carinho são típicos na fala feminina, enquanto os homens tendem a evitar palavras que expressam sentimentos e emoções. A respeito das diferenças entre a utilização de léxicos distintos, Monteiro (2000) acrescentam que é ‘‘quase uma tendência universal o fato de que as mulheres procuram evitar construções estigmatizadas e privilegiam as formas de prestígio’’, ou seja, a diferença entre a fala masculina e a feminina está relacionada ao papel que as mulheres desempenham na sociedade, e não há fatores biológicos. No próximo tópico, discutem-se os resultados encontrados em relação aos manuais didáticos utilizados no processo de ensino de português em contextos fronteiriços, nele serão apresentadas algumas definições e classificações sobre os ditongos /ay/, /ey/ e /ow/.
Resultados encontrados nos manuais didáticos sobre os ditongos /ay/, /ey/ e /ou/
Devido à resistência já mencionada quanto às variações do Português Brasileiro, grande parte dos manuais aborda o assunto de maneira sucinta, tratando tão somente um tipo de variação, exclui-se quase que unanimemente o fenômeno da monotongação.
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Revista Ofaié
Em Griffi (1996), o ditongo é definido como “o encontro de uma vogal e uma semivogal ou de uma semivogal e uma vogal”. O assunto é encerrado após a classificação dos ditongos em crescentes e decrescentes, os ditongos /ey/ e /ow/ não são explorados individualmente. Observa-se que, apesar de fazer parte da unidade de fonética, não há análise propriamente dita quanto à produção dos sons, o que constitui uma explicação simplificada, superficial e que dá margem a dúvidas em contextos mais complexos. Em um segundo exemplo, Sarmento (2009) diz que “ditongo é o encontro de uma semivogal (som fraco) e uma vogal, ou vice-versa, na mesma sílaba”. Nesse caso, o ditongo /ey/ sequer é exemplificado. Como exemplo do ditongo /ow/ há a palavra couro, entretanto, sem nenhuma ressalva quanto à monotongação na linguagem oral. Outro manual de Cereja e Magalhães (2010) conceitua de maneira superficial o encontro vocálico em questão: “É o encontro de uma vogal e uma semivogal. Pelo fato de uma semivogal sozinha não pode constituir sílaba, não se pode dividir o ditongo silabicamente”. Acompanhada da explicação, seguem dois exemplos de palavras: canção e faixa. Nota-se que não há menção aos demais ditongos da língua portuguesa, inclusive a classificação de ditongo crescente e decrescente não é explorada neste manual. Por fim, encontramos em Nicola (2009) uma avaliação mais “completa” por mencionar o fenômeno da monotongação na produção dos ditongos /ey/ e /ow/: Muitas palavras que, na escrita, apresentam ditongo, na fala, são pronunciadas com monotongo, ou seja, com um único som. Pense em beijo, cheiro, peixe, pouco, roupa, couro, por exemplo; a pronúncia mais comum dessas palavras é /beᴣo//, /ᶘero/, /peᶘe/, /poko/, /Ropa/, /koro/, respectivamente (NICOLA, 2009 p.87). O manual traz ainda uma citação de Bagno (2007) da obra “A língua de Eulália”, na qual se explica a diferenciação existente na realização dos dois
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Reflexões sobre a utilização dos ditongos /ay/, /ey/ e /ow/ em contextos fronteiriços
fonemas, enfatizando que EI se transformará em E apenas diante das consoantes J, X e R. Constata que em se tratando de ditongos, os manuais didáticos em sua maioria apresentam definições simplificadas, insuficientes e que não exploram as manifestações da língua em sua totalidade. Apesar de ser tema fonético, não verificamos estudo aprofundado do plano sonoro, o que estimula a visão arbitrária e normativa do código linguístico.
Considerações finais
Diante dos resultados obtidos nas entrevistas, e com a análise dos manuais didáticos, percebe que há uma lacuna entre a realidade linguística e os conceitos defendidos nos manuais didáticos, isso traz como consequência um ensino fragmentado que não leva em consideração o contexto no qual o falante se encontra. Para preencher os espaços nas aulas de português, o professor pode trabalhar com recursos linguísticos que estão presentes na própria comunidade, dessa maneira, o aluno considerará a escola como parte integrante da realidade, e no decorrer do ensino incorporará novos usos linguísticos, sem fazer juízo entre uma forma e outra. Em relação aos dados obtidos com os moradores das cidades de Corumbá e Ponta Porã, constata-se que o uso dos ditongos nessas localidades é variado, o que não é novidade, já que a heterogeneidade linguística é a principal característica de todas as línguas faladas, a variação nas cidades estudadas tende a inclinar para o uso dos ditongos de forma reduzida. Nesse estudo, tanto os informantes que possuíam algum grau de instrução, como aqueles que não frequentaram a escola utilizam os ditongos
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monotongados, o que não contempla o ideal estabelecido pelos manuais didáticos, ou seja, nessas localidades o uso na forma não padrão é frequente na linguagem oral. O mesmo acontece com as outras duas variáveis extralinguísticas estudadas. Na variável idade a segunda faixa, que compreende indivíduos entre 26 a 40 anos, foi a que mais se destacou apresentando uma percentual de 77% de um total de 1331 ditongos coletados por através das entrevistas. Já com a variável idade, percebe que a diferença entre a fala dos homens e das mulheres está no plano lexical e isso fez com que ambos apresentassem percentuais de variações parecidos. Em relação às variáveis linguísticas, notou que quase todas as classes de palavras apresentaram o processo de monotongação, entretanto, para esse estudo ficou comprovado que os substantivos estão mais propensos a inovações. Os manuais que foram analisados mostram uma realidade que não faz parte do português falado na fronteira, e nem em outras localidades, pois suas definições tomam como ponto de partida que todo aluno já possui a norma padrão e usam os ditongos como estão prescritas nos manuais, as exceções que foram encontradas só servem para aumentar a divisão das pessoas que sabem ‘‘falar português’’ e aqueles que não sabem. Com esses resultados espera-se contribuir para compreender o fenômeno da linguagem, mostrando que as variações existem e são utilizadas no cotidiano das pessoas, se o uso de determinada maneira de falar ainda não foi reconhecido pela norma padrão como sendo digna de ser, é somente uma questão de tempo. Referências
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CASA, Volmar Meia. O estado de bem-estar e a crise do sistema de produção. Revista Ofaié, Nova Andradina, v. 1, n. 1, p. 84-95, jan./jun. 2013.
O ESTADO DE BEM-ESTAR E A CRISE DO SISTEMA DE PRODUÇÃO Volmar Meia Casa1
RESUMO: As mudanças econômicas, políticas e sociais que se colocaram em curso, tanto nos países de economia central quanto nos países periféricos, a partir dos anos 1970 provocaram, principalmente no cenário dos países de economia central, um movimento de reorganização do capital que desencadeou um questionamento acerca dos princípios e ações do modelo de Estado voltado para a promoção do bem-estar social. PALAVRAS-CHAVE: Neoliberalismo; Estado; Walfare State; Fordismo; Tayorismo.
O Minimalismo do Estado enquanto argumento de enfrentamento da crise
A redefinição do papel do Estado, que ganhou curso nos países de economia central, bem como nos de economia periférica, principalmente após os movimentos de reestruturação produtiva, encontra-se atrelada aos rearranjos estruturais que puseram em cheque o modelo de Estado de bem-estar social durante as décadas de 1960 e 1970. Os anos de 1970, particularmente, são marcados, segundo Corrêa (1997), pela proeminência de alguns limites organizativos do trabalho nos moldes de produção fordista. Estes limites configuram-se como fortes empecilhos ao sistema de acumulação do capital. O contraponto deste período se expressa, no campo político, pela existência do discurso liberalizante e, no campo econômico, pelo crescente movimento de mundialização do capital. Para concretizar-se este movimento exige a existência de um Estado menos dedicado às preocupações sociais do que o Welfare State. O Estado de bem-estar social surge no cenário do pós-Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945) como um sistema de seguridade social que amplia a sua incumbência, dentre outras medidas, em ofertar gratuitamente um mínimo de
1 Professor de Filosofia do Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia – Campus de Nova Andradina -MS. E-mail: volmar.casa@ifms.edu.br
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serviços e de benefícios aos seus cidadãos. A materialização desses serviços e benefícios se deu por intermédio da promoção de políticas sociais apresentadas como medidas necessárias para conter as desigualdades sociais propaladas pelo capitalismo industrial que teria concentrado exacerbadamente a renda, a produção, o lucro e o consumo em mãos de uns poucos agentes sociais. No entanto, fiel ao seu interesse classista e sustentado pelo sistema de produção fordista que objetiva a produção e o consumo massificados, o Estado de bemestar ao intervir sobre a economia e sobre o mercado não o faz sob o toque da promoção da igualdade social como base prioritária de suas políticas. Mesmo em seu advento, permanece forte o teor classista do Estado de bem-estar social na medida em que o controle que este passa a exercer sobre a economia se justifica como medida para “manter o processo global de acumulação da riqueza capitalista e fazer frente às crises econômicas e ameaças sociais” (FALEIROS, 1991, p. 26). O objetivo maior das políticas do Welfare State, segundo Faleiros, continuava sendo permitir que os capitalistas mantivessem as suas taxas de lucros. A manutenção das taxas de lucro é a única medida de que o capital dispõe para evitar a crise do sistema de produção capitalista (COGGIOLA, 1996). Neste tocante, ao atuar como um protetor do capital o Estado procura estribar suas ações em um discurso ideológico que mascara o seu interesse classista como defensor e representante da burguesia. Em sua versão social o Estado de bemestar, contrário ao princípio do laissez-faire, legitima-se por suas ações políticoeconômicas e sociais. Em tese, o Estado social – ao pretender socializar o acesso à educação e à saúde - caracteriza-se, por ser um agente pretensamente redutor das desigualdades sociais e por ser um intervencionista, agindo sobre o setor econômico objetivando dar estabilidade ao sistema produtivo. Além de reservar para si as execuções de políticas sociais o Estado de bemestar atua como um regulador do capital mediante “o controle da moeda, do crédito, da poupança, da mão-de-obra e dos juros” (FALEIROS, 1991, p. 27). A
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atuação do Estado de bem-estar simultaneamente em duas frentes – como protetor do capital e promotor social – aumentará, principalmente ao pretender sustentar o pleno emprego, os gastos públicos da máquina estatal mediante a ampliação de seus serviços sociais. Esta medida mergulha os países de economia central, adeptos do modelo de Estado social, em uma pesada carga fiscal a partir da década de 1970. No modelo de bem-estar social o Estado intervém na economia mediante uma política fiscal e monetária e promove a oferta de bens e serviços sociais diversos. A eficácia de um país encontra-se, nesta ótica, estritamente relacionada ao progresso social do mesmo. O pleno emprego é tido como o carro chefe deste modelo de Estado visto que assegura salário, portanto mercadoria, aos trabalhadores; o salário, por sua vez, geraria demanda – pois daria à massa trabalhadora um maior poderio de consumo, o que reforçaria a oferta de produtos e serviços movendo assim a economia. A classe burguesa concebia, neste período, que a intervenção econômica do Estado asseguraria a reprodução da força de trabalho e a própria persistência do capitalismo. Para Paiva, o Estado de bem-estar antes de se configurar como agente propagador da igualdade social caracteriza-se mais como uma “reposta à necessidade de segurança sócio-econômica” (Ibid., p. 171), sentida pelos países de economia central. A resposta à necessidade de segurança é obtida mediante a subjugação das formas de organização e execução do trabalho aos pressupostos racionalizadores do fordismo. A organização do trabalho em bases fordista e taylorista sustenta política e ideologicamente o Welfare State, uma vez que, no plano social, massifica a produção e o consumo e, no plano econômico, intensifica o processo de acumulação de capital e ampliação dos mercados às custas da alienação do trabalhador. Neste contexto, “os programas sociais aparecem aí como força reguladora, disciplinadora e amenizadora de conflitos, condição para a extração da mais-valia
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e estabilidade na valorização do capital” (PAIVA, 1991, p. 171). Mesmo sem eliminar as diferenças de classe social o modelo de Estado de bem-estar, ao querer promover conjugadamente desenvolvimento econômico e social, objetivava assegurar níveis mínimos de redistribuição de renda capazes de ofertar “ao homem comum segurança contra os riscos aos quais a vida, a moderna em especial, permanentemente o expõe – como desemprego, doenças, invalidez” (Ibid., p. 170). A onipresença do Estado de bem-estar social pode facilmente ser notada, segundo Faleiros, uma vez que ele “deve manter os mecanismos do mercado de trabalho e as relações capitalistas de produção ao mesmo tempo em que regula as atividades do mercado e da produção e atende à prestação de serviços e benefícios como direito de cidadania” (Ibid., p. 26). A manutenção e a regulamentação do mercado de trabalho e do atendimento às necessidades sociais básicas, mediante subsídios e programas de benefícios sociais que o Estado de bem-estar pretende levar a cabo por intermédio do processo de produção fordista, entram em crise com as novas formas de produção difundidas pelas inovações tecnológicas. Em que consiste esta crise? Qual é sua especificidade? Como observamos anteriormente, no cenário pós-Segunda Guerra o Estado capitalista assume algumas obrigações que o tornam um forte interventor e regulador da economia. Estas obrigações vinculavam-se ao setor da produção e ao setor social. Em esfera produtiva o Estado desempenhava o papel de controlador dos ciclos econômicos através de políticas fiscais e monetárias. Em esfera social o Estado assume a função de promotor de políticas sociais no campo da educação, da saúde, da habitação e da seguridade social. O Estado ao atuar nas frentes econômica e social configura-se como um Estado dedicado à promoção do bem-estar social. Entretanto, como observam Peroni (2003) e Faleiros (1991), o Estado de bem-estar não chega a disseminar-se por todos os países. Sua concentração maior ateve-se aos países de economia
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central. Mas, até mesmo nestes países o acesso aos benefícios sociais básicos do modelo de produção fordista – saúde, educação e moradia – não foi alcançado por todos. Os poucos ganhos que os trabalhadores e seus dependentes dos países de economia periférica alcançaram com o fordismo, as dificuldades de se garantir o pleno emprego, a maximização da atuação do Estado no setor econômico, a rigidez da produção do modelo fordista e o aumento dos gastos públicos mergulharam o Estado de bem-estar social em uma crise de legitimação e em uma crise fiscal. Neste contexto, Peroni (2003) aponta que se intensificam os ataques contra a rigidez do modelo fordista de produção. A crescente utilização das tecnologias microeletrônicas nos setores de produção passa a requerer um tipo de trabalhador polieficiente capaz de responder às exigências por um tipo de produção mais flexível e racional. Em meados da década de 1970 estava-se diante da emergência de uma reestruturação do modo de produção e de um novo controle sobre o trabalho. Os defensores da nova ordem imperiosamente pretendem ocultar as contradições e construir uma atmosfera na qual se conceba o capitalismo como algo para o qual não há alternativa. Esta ação é acompanhada de uma série de medidas reestruturativas que pretendem fazer sucumbir às vitórias obtidas pelos trabalhadores, ao longo da história de sua organização como classe social, em nome da supremacia de um mercado hegemônico. Esta crise, de ordem estrutural, na qual mergulharam os países de economia central, requeria a urgência de se promover uma desregulamentação do Estado interventor. A partir do final da década de 1970 o Estado capitalista passa a sustentar a ideologia neoliberal como medida apaziguadora da crise estrutural na qual entrara durante a vigência do Estado de bem-estar social. A ideologia neoliberal trata primeiro de restringir a ação do Estado no campo econômico. No entanto, a formação dos blocos econômicos e a competição
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internacional impelem os Estados a manterem constantes ações intervencionistas no setor econômico a fim de protegerem os seus mercados. A política neoliberal, na realidade, não minimaliza a ação do Estado na esfera econômica. Pelo contrário, as manobras dos capitalistas fazem com que a ação do Estado torne-se mínima justamente na esfera social desmontando as conquistas que os trabalhadores haviam obtido durante a vigência do Estado de bem-estar (PERONI, 2003). A tônica neoliberal procura conferir maior mobilidade ao capital financeiro. Este, por sua vez, com o emprego das micro-tecnologias nos setores de produção se encontra sujeito a migrar, com certo grau de facilidade, de uma região para outra mais rapidamente. É esta realidade, segundo Peroni (2003), que não isenta o Estado de sofrer crises econômicas. E são justamente estas crises ou a ânsia de contê-las - não deixando que estourem - que fazem com que o Estado continue intervindo sobre a economia regulando o funcionamento dos mercados. É neste sentido que Peroni (2003) afirma que o Estado neoliberal é máximo para o capital na medida em que é mínimo para as políticas sociais. O Estado neoliberal, na concepção da autora, é fortemente classista - o que pode se atestar devido à proteção e às intervenções que este opera no mercado em favor do grande capital. Peroni (2003) faz perceber a existência de um duplo movimento de reestruturação do papel do Estado. Com a reorganização do modelo fordistakeynisiano - que fortalecia o capital industrial - temos, de um lado, o Estado objetivando fortalecer-se para fazer frente à competição internacional e, em contrapartida, por outro lado, expande-se em ritmo galopante o capital financeiro, sobre o qual o Estado não possui quase nenhum controle. Desta feita, a crise que se vivencia a partir da década de 1970 deve ser vista, para Peroni (2003), muito mais como uma crise do modo como se organizava a produção do que propriamente como uma crise do modelo político adotado pelo Estado de bem-estar social. Corroborando com esta observação
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Frigotto (2003) nota que a crise que o mundo vivencia a partir da década de 1970, na qual põe em cheque o modelo do Estado de bem-estar, corresponde a mais uma das cíclicas baixas enfrentadas pelo modo de produção capitalista ao longo de sua história. Contudo, a peculiaridade desta crise corresponde ao fato de que ela, parafraseando o autor, caracteriza-se pela decadência do socialismo real e pelo esgotamento de uma versão do modelo capitalista de acumulação ancorado no fordismo e no taylorismo. Para Frigotto (2003), a crise que se estende entre as décadas de 1970 a 1990 é uma crise estrutural e não conjuntural. O que desencadeia a crise, para o autor, não são propriamente os elementos políticos-jurídicos, expressos pela forma de governo e pela legislação do Estado de bem-estar social, mas as relações sociais de produção travadas entre os trabalhadores representantes da força de trabalho bruta e os detentores dos meios de produção. A intervenção estatal na economia, conforme Frigotto (2003), não pode ser o elemento motivador da crise justamente porque foi graças a esta intervenção que o Estado do pós-crise de 1929 e do pós-Segunda Guerra Mundial conseguiu superar aquelas fases de crise do capitalismo industrial. Portanto, partindo deste pressuposto, o argumento segundo o qual o Estado deve deixar de intervir no setor econômico para que consiga superar a crise de produção é deveras falacioso. O argumento em defesa do Estado minimalista, segundo Frigotto (2003), não possui sólida sustentação uma vez que aquilo que fora apontado como solução para a crise de 1929, isto é, a ação político-econômica interventora do Estado, é - durante a década de 1990 - apontado como fator da crise. Considerando-se a objeção de Frigotto (2003) à insólita ideia de existência de um Estado mínimo podemos inferir que o elemento que infla a crise, a partir dos anos de 1970, é a necessidade de se determinar novas formas pelas quais os detentores dos meios de produção poderão manipular as forças produtivas de maneira que possam obter um maior usufruto e uma melhor apropriação da mais-valia e acumulação do capital.
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Para Frigotto (2003), as fases críticas que conduzem o capitalismo à experimentação de diferentes ciclos periódicos de crise não devem ser explicadas pelas políticas econômicas regulamentadoras do Estado, este não seria o elemento desencadeador da crise. O elemento que desencadeia as fases críticas do sistema capitalista é de ordem estrutural e, graças a este motivo, é possível conceber, segundo Frigotto, que a crise decorre “do movimento cíclico da acumulação capitalista” (2003, p. 62). Assim, o que se assiste na atualidade, quando se fala em reforma do Estado e modernização da economia, é uma nova forma de reorganização do processo de acumulação do capital. Esta reorganização caracteriza-se pela subjugação do trabalho e do trabalhador aos pressupostos organizativos de um novo modelo produtivo: o toyotismo que, em parte faz frente ao modelo taylorista/fordista – que serviu como substrato à produção durante a vigência do Estado de bemestar social - e em parte o perpetua. Antes de adentrarmos ao terreno das rupturas e continuidades existentes entre os modelos taylorista/fordista e toyotista, gostaríamos de ensaiar algumas considerações em torno da crença dos ideais neoliberais concebidos como argumento para a superação da crise.
A supressão do Estado de bem-estar social e a prevalência dos pressupostos Neoliberais
O Estado de bem-estar social surge como uma resposta à crise de 1929 que é, segundo Frigotto (2003), uma crise de superprodução. No entanto, suas ações mais concretas se efetivam após os episódios da Segunda Guerra Mundial. Para evitar o colapso do sistema capitalista argumentou-se, na época, em defesa da intervenção econômica do Estado. Fazendo alusão à concepção marxiana do materialismo histórico o autor aponta que no plano supraestrutural o Estado do
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pós-Segunda Guerra começa a traçar medidas de estabilidade e recuperação econômica dos países afetados pelos episódios econômicos e políticos ocorridos na Europa durante a Segunda Grande Guerra.
O Estado de Bem-estar vai desenvolver políticas sociais que visam à estabilidade no emprego, políticas de rendas com ganhos de produtividade e de previdência social, incluindo seguro desemprego, bem como direito à educação, subsídios no transporte (FRIGOTTO, 2003, p. 70 - 71).
No Estado de bem-estar o fundo público financia o capital privado bem como as políticas públicas. Como resultado desta ampla política pode-se constatar entre as décadas de 1970 e 1990 o mergulho do Estado em uma crise fiscal, que é segundo Frigotto (2003) uma crise de natureza estrutural. Esta é, por sua vez, uma crise na forma como o Estado garantia a reprodução do capital, ou seja, mediante uma ação de controle das esferas públicas e, consequentemente, retração da esfera privada. No período pós-Estado de bem-estar o fundo público continua a financiar a reprodução do capital privado e da força de trabalho, mas não mais se compromete com as políticas sociais. Esta mudança é provocada, em grande parte, pelo movimento de internacionalização do capital que ganha força com as novas tecnologias empregadas no setor industrial.
Os sinais de esgotamento do modelo de desenvolvimento fordista, enquanto regime de acumulação e regulação social, coincidem, paradoxalmente, com um verdadeiro revolucionamento da base técnica do processo produtivo, resultado [...] do financiamento direto ao capital privado e indireto na reprodução da força de trabalho pelo fundo público (FRIGOTTO, 2003, p. 77).
As novas tecnologias requerem um modelo de produção mais flexível e dinâmico que não esteja ancorado na rigidez dos modelos taylorista e fordista. É
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arriscado acreditar que as novas tecnologias sejam o elemento exclusivo propagador da crise (COGGIOLA, 1996). Não se pode negar, nisto, o desenvolvimento histórico das relações de propriedade. A ação das novas tecnologias sobre a produção deve ser entendida mediante a sua inserção no quadro das mudanças históricas que configuram – a partir das três últimas décadas do Século XX - o sistema de produção e de apropriação embasado no antagonismo de classes.
A questão das novas tecnologias deve ser vista, no quadro da crise histórica mais profunda do capitalismo, como uma tentativa extrema do capital de se adaptar às condições de sua própria crise e, ao mesmo tempo, de sair dela através do único método que o capital conhece: a recomposição da taxa de lucros por meio do aumento da mais-valia, ou seja, por meio do aumento da exploração do proletariado (Ibid., p. 125).
As novas tecnologias impulsionam a passagem da automação do trabalho de uma base mecânica para uma base microeletrônica - automatização. Frigotto (2003) entende que este processo, automação-automatização, é uma tendência natural do sistema capitalista. O impacto da informatização técnica do processo produtivo é muito forte sobre o trabalho. A divisão do trabalho, o processo de qualificação do trabalhador e a quantidade de horas trabalhadas são afetadas por esta mudança.
Ao mesmo tempo em que se exige uma elevada qualificação e capacidade de abstração para o grupo de trabalhadores estáveis (mas não de todo) cuja exigência é cada vez mais se supervisionar o sistema de máquinas informatizadas (inteligentes!) e a capacidade de resolver, rapidamente, problemas, para a grande massa de temporários, trabalhadores ‘precarizados’ ou, simplesmente, para o excedente de mão-de-obra, a questão da qualificação e, no nosso caso de escolarização, não se coloca como problema para o mercado (FRIGOTTO, 2003, p. 77).
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O que temos assistido após a remodelação dos pressupostos organizativos do trabalho em suas fundações fordista, e com o retorno dos ideais liberais, é a propagação de uma nova estratégia de acumulação do capital. Em suma, para os neoliberais a crise existente após a vigência do período do pleno emprego – que corresponde aos anos dourados da economia, 1945 a 1975 - é fruto dos desvios das leis naturais do mercado provocados pela forte intervenção econômica do Estado de bem-estar. Como medida para colocar a realidade em seu devido eixo os neoliberais, impulsionados pelos governos de Thatcher (1979-1990) e Reagan (1981-1989), postulam o Estado minor mediante a regulação do mercado pela livre iniciativa. Contudo, o que se pôde presenciar durante a década de 1990 foi uma submissão das políticas dos países periféricos aos ditames do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (BM) que se constituíram em fiéis depositários dos ideais econômicos neoconservadores. Assim, o que deve se observar nas medidas reformistas do Estado sob a ótica do ideário neoliberal é o propósito ideológico das mesmas. O interesse delas não é promover a saída da crise, mas recompor os mecanismos de reprodução do capital através de um acirrado aumento da exclusão social como se assiste atualmente na Europa.
Referências
COGGIOLA, Osvaldo; KATZ, Cláudio. Neoliberalismo ou crise do capital? São Paulo: Xamã, 1996. CORRÊA, Maíra Baumgarten. Reestruturação produtiva e industrial. In: CATTANI, Antônio David (org.). Trabalho e Tecnologia: dicionário crítico. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. FALEIROS, Vicente de Paula. O que é política social. São Paulo: Brasiliense, 1991. FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a crise do capitalismo real. São Paulo: Cortez,
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2003. PAIVA, Vanilda. Educação e bem-estar social. Educação & Sociedade: Revista de Ciência da Educação, Campinas: CEDES, ano XII, n.39, p. 161 – 200, ago. 1991. PERONI, Vera Maria Vidal. Política educacional e papel do Estado: no Brasil dos anos 1990. São Paulo: Xamã, 2003.
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MILAGRES, Diogo Chadud. Pro dia nascer feliz, documentário de João Jardim. Revista Ofaié, Nova Andradina, v. 1, n. 1, p. 96-105, jan./jun. 2013.
Pro dia nascer feliz, documentário de João Jardim Diogo Chadud Milagres RESUMO: A presente resenha do documentário de João Jardim, Pro dia nascer feliz, confronta as Leis da Educação Básica vigentes no Brasil com a realidade vivida nas escolas. A partir da experiência de diversos setores comunitários, procuramos entender de que modo as leis são encaradas ou cumpridas. A resenha também busca entender a relação alunos/professores, alunos/alunos e professores/professores retratada pelo documentário. PALAVRAS-CHAVE: Educação, Políticas Públicas, João Jardim.
Segundo o dicionário Michaelis a palavra sociedade define um espaço em que determinados indivíduos estabelecem relações culturais. O conceito de sociedade leva a um contexto de relações humanas que geram dependência mútua entre indivíduos, dependência esta que se estrutura tanto pelo caráter unitário das funções que cada membro desempenha, como pela interiorização das normas de comportamento e valores culturais dominantes. Para um convívio pacífico e organizado, cumpre à a sociedade estabelecer um conjunto de Leis para reger o comportamento humano nas mais diversas situações, permitindo ou restringindo tudo o que for inerente ao contexto da lei. No que se denominam Políticas de Educação Básica, são referenciadas leis importantes para o contexto educacional brasileiro. São elas: a Lei do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional– LDB, de 1996, e a Constituição Federal de 1988, em particular o Capítulo 3, Seção I, Da Educação. Os objetivos de nossa resenha são estabelecer uma relação com a realidade cotidiana da escola por meio do exercício de leitura de diferentes objetos de pesquisa – o texto e o cinema, e desenvolver a percepção dos diferentes níveis de apreensão da realidade escolar por meio da comparação do discurso oficial e da vida cotidiana.
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Entre os objetos de análise mobilizados por nossa resenha, situamos a coletânea das leis, parâmetros e documentos que estabelecem as chamadas Políticas de Educação Básica, tão caras à compreensão da realidade figurada no documentário Pro dia nascer feliz, de direção, edição e roteiro de João Jardim e produzido por Flávio R. Tambellini. A partir destes instrumentos, nas próximas páginas procurar-se-á explanar sobre a temática da lei e a realidade, juntamente com as leis referenciadas e os depoimentos contidos no filme.
Breve resumo do contexto das leis educacionais
A Constituição Federal de 1988 tem como principais temas em relação à educação, a escola pública e a escola privada, o financiamento da educação escolar, o ensino religioso obrigatório ou facultativo, e as atribuições legais das instâncias federativas. Fica garantido que a educação se constitui legalmente em um direito social, ao lado do acesso à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, entre outros direitos difusos. Nesse aspecto, a Constituição de 1988, chamada também pela alcunha de Constituição Cidadã, vem ao encontro dos conceitos básicos veiculados pelos Direitos Humanos da ONU. Na seção da educação, que compreende os artigos 205 a 214, a Constituição compreende uma série de direitos, como o repasse de recursos dos Estados (no mínimo 18%) e dos Municípios (não menos que 25%). A educação é um direito e a lei determina o dever de garantir esse direito através do Estado e da família. O dever para com a educação escolar está não só na oferta de vagas, mas na permanência das crianças e dos adolescentes na escola. Nesse sentido a educação é regida por uma base de princípios que contemplam a igualdade não só de acesso como, também, de permanência na escola; a defesa da liberdade como fundamento da prática educativa e cultural; o respeito à diversidade de concepções pedagógicas; e o ensino público gratuito e de qualidade. A Constituição prevê, ainda, que a educação escolar tem por finalidades o pleno
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desenvolvimento da pessoa, o preparo para o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho. Para implementar tais critérios fica estabelecido o Plano Nacional de Educação, articulado com as diversas instâncias do poder público, que visa, entre outras ações, erradicar o analfabetismo, um dos mais graves problemas sociais que ainda persistem no Brasil. O Estatuto da Criança e do Adolescente - que surge no Brasil em 1990 acompanhando a onda no século XX de criação de diversos da infância - abre espaço para essa parcela populacional até então pouco respaldada pelo Estado de direito. O estatuto segue duas frentes: a de proteção devido às condições formativas psíquicas, físicas e emocionais do indivíduo que se enquadra na condição de criança e adolescente, e as medidas sócio-educativas, no caso de cometimento de delitos e crimes. Em resumo, as medidas de proteção que o ECA dispõe são: a família tem o dever de criar e educar os filhos, de maneira que estes somente sejam separados do ambiente familiar quando suas necessidades fundamentais estiverem sob risco ou em situação de perigo. O ECA estabelece que a autoridade constituída dará encaminhamento adequado ao menor que, em razão de abandono, maus tratos, violência ou outros fatores que atentam contra seus direitos, foi retirado do convívio familiar. A família, em conjunto com a comunidade, obrigatoriamente, matriculará e manterá menores em idade no ensino fundamental e, em caso de negligência por parte dos responsáveis, estes serão indiciados. O Estado e a sociedade deverão criar condições efetivas para que se efetue o devido cuidado da saúde do menor, incluindo orientação e tratamento médico, psicológico, psiquiátrico nos casos, por exemplo, de envolvimento dos menores com o consumo de álcool e drogas. Como medidas socioeducativas, o fundamento doutrinário do ECA inspira a necessidade de recuperar o menor infrator e, portanto, em lugar de medidas meramente penais, devem ser adotadas medidas de caráter socioeducativo, justamente visando à recuperação dos indivíduos e sua reintegração social. As medidas socioeducativas são: advertência por escrito por
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meio de um termo legal que envolve o menor em questão e os seus responsáveis, impondo a eles deveres e obrigações; reparação de danos, na qual o menor e os responsáveis são obrigados a ressarcir os prejuízos causados; prestação de serviços à comunidade, obrigando o menor a ressarcir socialmente o erro cometido individualmente e internação em estabelecimento educacional, que é uma medida adotada em casos extremos, privando o menor de sua liberdade. A LDB de 1996, instituída no governo de Fernando Henrique Cardoso dispõe, em resumo os seguintes pontos: distingue educação enquanto processo geral de formação, envolvendo os mais diversos agentes sociais da educação escolar, objeto específico da legislação que visa disciplinar seu funcionamento; estabelece que as finalidades da educação escolar devem contemplar o desenvolvimento do educando, o preparo para o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho; estipula que o dever do Estado para com a educação é compartilhado com a família e a sociedade, sobretudo na oferta e no atendimento dos educandos em faixa etária do ensino fundamental, obrigatório e gratuito; prevê que a educação nacional estará organizada em sistemas escolares, cuja competência de administração, fiscalização e financiamento está a cargo da União, dos Estados e Distrito Federal e dos Municípios; constitui a educação escolar em dois níveis: a básica, que envolve a educação infantil, o ensino fundamental, o ensino médio e o ensino superior – além das modalidades de educação profissional, educação especial e educação de jovens e adultos; exige titulação em nível superior aos profissionais da educação para seu efetivo exercício em todos os níveis da educação básica, inclusive, na educação infantil e no ensino fundamental da 1ª a 4ª série; estipula percentual mínimo de investimento em educação escolar para cada nível administrativo da federação, cabendo à União 18% e às demais instâncias 25%; assegura oferta de educação escolar às comunidades indígenas, inclusive em sua própria língua materna; determina, ainda, aos órgãos competentes em nível federal o dever de formular o Plano Nacional de Educação.
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Da abstração jurídica à realidade do documentário
Logo no início, o documentário de João Jardim desponta uma propaganda de 1962 que retrata alguns jovens cometendo delitos e o locutor, ao fundo, pergunta se a escolaridade não permitiria uma vida melhor a esses jovens. É que na época, assim como ressalta o locutor, de 14 milhões de jovens em idade escolar, metade não frequentava as aulas, prenunciando o que a Lei estipularia anos depois com a obrigatoriedade dos pais em matriculem seus filhos em escolas da rede municipal, estadual ou em instituições particulares, estas últimas acessíveis somente para quem fazia parte de uma sociedade específica e fechada, como militares (e os Colégios Militares), adventistas (e os Colégios Adventistas), judeus (e os Colégios Judaicos), ou simplesmente para quem tinha dinheiro para pagar exorbitantes mensalidades. Logo em seguida, Jardim demonstra que mais contemporaneamente, em 1996, apesar de 97% das crianças em idade préescolar começarem a frequentar as escolas, 44% a abandonam até o 9º ano. Segundo o MEC, ainda, metade dos que frequentam a escola não sabem ler ou escrever corretamente. João Jardim filma a cidade de Manari, uma das cidades mais pobres do Brasil. A filmagem encontra-se com Clécia, de 13 anos, que descreve as condições precárias de sua escola, tais como a falta de papel higiênico nos banheiros. Outra entrevistada de Manari é Valéria. A aluna, com olhar de jovem romancista e sonhadora – letrada que é, lê mais livros que muitos alunos descendentes da high society – apesar de tudo reclama de como as condições precárias da cidade a impedem de sonhar com meritocracia. Os colegas a consideram diferente, porque ela gosta de estudar. Parece gostar muito de poesia, logo já mostra uma coletânea de Vinícius de Moraes (Poesia Completa e Prosa). A jovem é também uma assídua leitora de Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade.
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O preconceito começa nas declarações de Valéria a respeito de como seus professores tratam as redações e escritos de poesia feitos por ela. As notas de suas poesias não são boas na escola, e ela diz que tal fato é atribuído aos professores que a criticam, pois julgam que ela havia copiado aquelas notas e poesias de algum lugar – se nem banheiro tem a escola, de onde acessaria a Internet, a aluna?. Ou será que no subterrâneo de Manari há alguma Biblioteca muito bem equipada, pertencente a alguma sociedade secreta, da qual Valéria faz parte? João Jardim registra que em Manari não há Ensino Médio. Os estudantes que insistem em concluir o ensino Médio saem de ônibus – quase sempre em péssimas condições – para outra cidade próxima. Durante duas semanas de filmagens, Valéria só conseguiu viajar para estudar três vezes. Em uma dessas idas à escola, reclamou da professora de Química, que nunca comparecia à aula. Uma amiga de Valéria, chamada Viviane, diz que a professora não conhece os alunos, as notas, por exemplo, são iguais tanto para os mais aplicados, como Valéria, quanto para os desistentes. Mariana sonha em fazer alguma carreira que, em seu íntimo, é uma escape para outros mundos, outras realidades: “Quero fazer Relações Internacionais, ou Turismo”, afirma. A próxima realidade analisada é a da cidade de Duque de Caxias, periferia da ex-capital do Brasil, Rio de Janeiro. O colégio observado é o Colégio Estadual Guadalajara. O comércio de drogas fica próximo ao colégio. As entrevistas começam com Uanderson, que divaga em uma lenda urbana – que, no entanto não é surreal em seu contexto, o tráfico de órgãos, no mesmo patamar mundial que o tráfico de drogas e armas – sobre o medo de um dia ser raptado e seus órgãos retirados para o tráfico de órgãos. Os bandidos ainda deixariam 500 reais junto ao corpo, para despesas com o velório. Repete-se a cena onde o professor falta e não deixa substituto. Os alunos do 2º ano sào dispensados. O interior das salas de aula do colégio são precárias, mais uma cena chama atenção:
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as janelas estão cobertas de grades, de formato cilíndrico, com espaçamento e cor metálica que lembram as grades de um cela de cadeia, uma prisão. A diretora do estabelecimento, Maria Helena, fala do caso do aluno Deivisson, que ofendeu uma professora. Em uma cena no Conselho de Classe as professoras definem o futuro de Deivisson, se ele deve ou não ingressar no Ensino Médio. A desinformação sobre o que regem as Leis como LDB e ECA causa contradição entre os professores. Um dos profissionais (Prof.ª Helenita, de História) até muda de opinião quanto à aprovação de Deivisson, observando o argumento das colegas que o aprovam. Depois de ser comunicado de que havia sido aprovado, com o jeito debochado – já visto muitas e muitas vezes nos rostos de outros alunos - ele afirma, quando o repórter pergunta o que ele aprendeu na disciplina de História no 9º ano: “Nada”, rindo com os demais colegas. O próximo destino é Itaquaquecetuba, a 50 Km da capital paulista. A escola é a EE Parque Piratininga II. “É a periferia da periferia, aqui”, alguém afirma. “Não dá para ir a um cinema ou outra atividade recreativa. Porque não tem dinheiro”. Ao contrário das outras escolas mostradas, essa é muito bem estruturada, um ponto de referência para a população local. No entanto, Carol – uma aluna do Piratininga II – volta a mostrar o mesmo problema já visto aqui. Faltam professores, e não há um sistema eficiente de reposição de professor substituto. Os alunos são dispensados com frequência por falta de professores. A professora de Literatura ressalta que a carga horária é muito alta, para um trabalho que envolve tantos laços psicológicos fortes com os alunos, e que falta por puro cansaço mental e físico. Ela vai ao psiquiatra mensalmente. Segundo tal depoimento, o Estado deturparia a visão da educação ao divulgar apenas os resultados dos estabelecimentos “promissores”. Por exemplo, para a Secretaria de educação do Estado de São Paulo, a aprovação do aluno é simples, basta que a nota seja maior ou igual à média, que é 6,0, em geral. Mas para reprovar um aluno, é preciso preencher documentos diversos para justificar a reprovação (como se a palavra do professor não valesse de nada), além do mais,
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baixos índices de aprovação incidem sob a perda de benefícios tais como o chamado bônus. Em 2011, o bônus salarial do professorado foi péssimo, e a realidade veio à tona: o ensino no Estado de são Paulo, que já estava em condições precárias, caiu mais uma vez de qualidade. A Professora Suzana vai além. Ela pensa que o modelo educacional está defasado. “O mundo aí fora está muito mais interessante que aqui”, afirma. Nesse sentido, o professor estaria bem preparado, mas para moldes educacionais antiquados, não para os alunos do século XXI. Em seguida, filma-se o trânsito no Bairro paulista Alto de Pinheiros, uma região que se tornou nobre com terrenos valorizados após a obra de retificação do rio Pinheiros, para diminuir as enchentes e aumentar a habitabilidade (sic) do loca. Retrata-se agora o Colégio Santa Cruz, colégio da alta classe média paulistana. Uma aluna que é acompanhada na entrada ao colégio ressalta a importância da escola exigir do aluno além das disciplinas eletivas. Pois a vida vai exigir dela “lá fora”. Enquanto a Professora Antonieta ministra aula, os alunos parecem, na maioria, prestar a máxima atenção. Menos de um minuto de filme e duas alunas interagem espontaneamente com a aula. Ciça e algumas colegas falam sobre a barreira social entre a classe média alta e os problemas da periferia. Elas enxergam o conceito de ajudar ao próximo como uma imposição capitalista de hierarquia. O mais rico deve ajudar o mais pobre. Por que não seria o contrário? Uma delas fala que as alunas do Colégio Santa Cruz e os vendedores de bala nos semáforos estão em dois mundos diferentes. Uma colega diz: “Mas o mundo é o mesmo para vocês dois. Esse é o problema”. Thaís, de 15 anos, ficou em recuperação em algumas matérias e está apreensiva, uma atitude diferente em relação àquela tomada por Deivisson, de Duque de Caxias. Ela diz que alguns alunos até ameaçaram sair da escola. Mas, diferentemente das escolas públicas vistas até agora, eles possuem consciência da importância de estar em um colégio tão bom como o Santa Cruz. Seis meses antes, a entrevista com Thaís demonstra sinais de que esta estaria depressiva,
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talvez por muita pressão por parte da escola, dado o tradicionalismo dos métodos e a exigência por parte da sociedade e dos pais. Tais exigências estariam em contradição com algumas liberdades que são necessárias à adolescência. Uma aluna, em entrevista, sentada ao lado de Thaís, chega a chorar quando fala que, provavelmente, por causa de seu excesso de estudo, tenha sido menos cortejada pelos meninos de sua idade, sendo preterida pelas colegas, daí a existência de uma espécie de bullying. Na sequencia fílmica uma aluna reclama de outra que não a deixou entrar em uma festa. No dia seguinte, esfaqueou-a no corredor da escola. A esfaqueada morreu. Quem matou queria que a vítima morresse: “Porque não dá nada, sendo de menor (sic)”, diz a infratora, entre uma risada e outra. As salas de aula estão sucateadas nessa escola. Alguns alunos aparecem contando histórias de grave violência contra diretores, professores e até vítimas de assaltos. Alguns trabalham no tráfico. Um deles, em entrevista, diz não ter medo de morrer, na verdade não tem expectativa de vida: “Não acredito muito na escola. Amanhã nem sei se vou estar vivo ou morto”. Finalizam dizendo “até os políticos roubam milhões, mas não são presos! Nós não vamos roubar? Só que somos presos, eles não”. A esperança num projeto de educação, quase perdida com as cenas de Jardim, é retomada com a intertextualidade de Valéria, sobre o poeta Gonçalves Dias, e sua obra Canção do Exílio: “Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá”. Valéria fez sua canção do exílio, para a cidade de Manari: “Minha terra, porventura, merece tal descrição: Lá a vida é menos dura, qualquer um lhe estende a mão. O céu é menos cinzento, lá não tem poluição. Só existe um argumento que me parte o coração: Ver o povo madrugar e seguir para o roçado Mas se a chuva não chegar, perde o que se foi plantado. Eu, agora exilada, só me resta descrever: Aqui não encontro nada que me motive a viver.
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Revista Ofaié
Mas falar da minha terra, ah! Isso me dá prazer. E mesmo aqui tão distante tenho algo pra pedir Quero agora nesse instante voltar para Manari Pois não quero morrer sem de lá me despedir”.
O contraste entre o direito e a prática deste torna-se evidente, encontramos aqui a grande contribuição de João Jardim em seu documentário, o poder de contraste dado pelo documentário excede qualquer retórica genérica sobre os direitos à educação. Sob um regime educativo tecnicista, em que se exige do aluno metas, prazos e objetivos para se passar no vestibular, os ideais humanistas da Constituição acabam por se esvair. Pro dia nascer feliz revela o quanto estamos distantes dos dispostos da LDB e da Constituição Federal de 1988, quanto ao dever da escola de fornecer o “pleno desenvolvimento da pessoa”, o “preparo para o exercício da cidadania” ou a “qualificação para o trabalho”. A prática diária da vida escolar não permite ou não efetiva uma política de valorização do professor. Fala-se em direitos dos alunos, recursos para construção de escolas, materiais, mas uma política salarial séria, por exemplo, não é nem de longe discutida, tal seria, ao nosso entender, o suporte mínimo para a garantia das premissas constitucionais. Com depoimentos emocionantes e assustadores, Pro dia nascer feliz revela uma realidade que não é passada pelos governos à população. O que se apresenta pelos governos são imagens midiáticas de falsa perfeição, de uma satisfação geral com o sistema educacional brasileiro. As dificuldades encontradas pelos professores são enormes, quase intransponíveis. O fato é que a profissão, com o esquecimento do respeito às leis que dizem muito sobre direitos humanos, está a mercê de uma realidade inabordável pela abstração jurídica. Resta-nos lutar pela conscientização dos novos docentes e da sociedade para o exercício da autocrítica.
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