NÓS: sociedade, cidade e mobilidade no Largo Treze

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JÉSSICA CAVALCANTE SCHUSSEL

NÓS: sociedade, cidade e mobilidade no Largo Treze

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Arquitetura e Urbanismo.

ORIENTADOR: Prof. Dr. Luiz Guilherme Rivera de Castro

São Paulo 2016


Aos meus pais, por me darem a vida e por darem a vida por mim.


AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, por tudo que sou. A todos os mestres que passaram na minha vida, mas em especial, aos Guilhermes (Luiz Guilherme Rivera de Castro e Guilherme Motta) que me orientaram esse ano, pelos ensinamentos e pela eterna paciência. A toda minha família, pelo suporte incondicional, de perto ou de longe. A todos os meus amigos, que sempre estiveram comigo, pelas risadas, pelos colos, pelas danças, pelas bebidas, pelas conversas, por caminharem ao meu lado. Seria impossível nomear todos, ainda bem.



As pessoas são solitárias porque constroem muros ao invés de pontes (Antoine de SaintExupéry).


RESUMO

Esse trabalho final de graduação discute a relação entre sociedade, cidade e mobilidade, com ênfase na região do Largo Treze, no bairro de Santo Amaro, em São Paulo. A partir da leitura de autores de diferentes áreas do conhecimento, bem como da análise do território e de suas lógicas sociais e urbanísticas, faz-se um exame da mobilidade e do espaço público no Largo Treze e propõe-se, como exercício projetual, a requalificação urbana da área e a construção de um novo terminal de ônibus. Busca-se levantar e estudar as características urbanas e sociais do Largo Treze, procurando compreender como a mobilidade, tão importante e central para o local, influencia na sua morfologia urbana e no seu espaço público e, a partir dai, projetar sobre o território. Conclui-se que o trato da cidade não é função exclusiva da arquitetura e do urbanismo, mas sim que ele deve ser conjunto com outros campos da ciência, como a sociologia e a antropologia. E que a atividade prática requer o aparato da pesquisa teórica e vice-versa. Palavras-chave: Mobilidade urbana. Cidade. Sociedade. Largo Treze. Santo Amaro.


ABSTRACT

This final graduation paper discusses the relationship between society, city and mobility, with emphasis on the region of Largo Treze, in the neighborhood of Santo Amaro, in the city of SĂŁo Paulo. Based on the reading of authors from different areas of knowledge, as well as the analysis of the territory and its social and urban logics, an examination of the mobility and the public space in Largo Treze was made, and it is proposed, as a design exercise, the urban redevelopment of the area and the construction of a new bus terminal. It seeks to study the urban and social characteristics of Largo Treze, trying to understand how the mobility, so important and central to the place, influences in its urban morphology and in its public space and, from there, design on the territory. We conclude that the treatment of the city is not an exclusive function of architecture and urbanism, but rather that it must be combined with other fields of science, such as sociology and anthropology. And that practical activity requires the apparatus of theoretical research and vice versa. Keywords: urban mobility. City. Society. Largo Treze. Santo Amaro.



SUMÁRIO

TU................................................................. 15 ELES............................................................. 21

O não-lugar.............................................................................. 22 A cidade genérica e o shopping center................................. 26 O novo urbanismo................................................................... 31 A mobilidade sobremoderna................................................. 38

ELA............................................................... 45

A mobilidade na cidade.......................................................... 46 Os três planejamentos............................................................ 48 As noções de mobilidade........................................................ 49 Os modais em São Paulo......................................................... 57

NÓS............................................................... 65

A história de Santo Amaro.................................................... 66 O projeto................................................................................... 69

EU................................................................. 85 VÓS(ES)....................................................... 91

Referências Bibliográficas..................................................... 92



TU uma introdução a ti, leitor, sobre esta monografia


Essa monografia, resultado do trabalho final de graduação, aborda a relação entre sociedade, cidade e mobilidade no Largo Treze, em Santo Amaro. Propõe como objeto projetual um novo terminal de ônibus juntamente com o tratamento urbano para o eixo que contém o atual terminal, e que conecta a estação Santo Amaro da CPTM ao Largo Treze, passando pela linha lilás do metrô. As sociedades ocidentais estão em constante mudança e estamos entrando em uma nova fase da modernidade, que testemunha uma enorme mutação nas maneiras de pensar e agir, no desenvolvimento da técnica e da ciência, nas relações sociais e nas desigualdades produzidas, na economia e na política. Tais mudanças sociais implicam transformações na forma de nossas cidades, como as concebemos, produzimos e gerimos. E, como será visto ao longo dos capítulos, a mobilidade é uma questão central para todas essas transformações, seja gerando-as socialmente ou adaptando-as urbanisticamente. Atualmente, a maneira como as cidades estão organizadas demonstra que suas concepções são respostas às implementações das infraestruturas sobre o território, cujas lógicas são independentes e completamente diferentes das do planejamento urbano. O ideal seria buscar o equilíbrio entre mobilidade e forma urbana, onde as infraestruturas de transporte se transformassem em instrumentos a serviço de cidades adensadas, conectadas e sustentáveis. A mobilidade urbana tratada de maneira técnica e quantitativa é, em geral, entendida como a quantidade de viagens realizadas pela população e cuja solução se restringe, portanto, em ampliar vias e implementar obras de infraestrutura de transportes necessárias, mas nem sempre suficientes. Segundo Angélica Alvim* , o cenário urbano contemporâneo requer uma ampliação do conceito de mobilidade, a ser entendido como um fenômeno de ordem social, econômica e política. A mobilidade urbana, na contemporaneidade, deve ser entendida como a [*] Angélica Alvim é arquiteta e urbanista. Mestre e Doutora pela FAUUSP. Professora e pesquisadora da FAU Mackenzie, Coordenadora Geral de PósGraduação Stricto Sensu da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Diretora da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (gestão 2013-2014) e atual diretora da FAU Mackenzie.

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capacidade de locomoção do cidadão entre diferentes espaços, por meio de distintos modos de transportes, incluindo também o modo pedonal, na realização de suas atividades, cotidianas ou não, em tempo e com qualidade (ALVIM, 2013, n.p.). Mobilidade urbana é um direito do cidadão. Direito esse que faz parte do direito à cidade que nos fala David Harvey** , um direito coletivo, reivindicado por movimentos sociais urbanos no mundo inteiro. Trata-se de reivindicar algum poder configurador nos processos de urbanização, na maneira como nossas cidades são feitas e refeitas. Se o tipo de cidade que queremos está vinculado ao tipo de pessoas que queremos ser, aos tipos de relações sociais que queremos ter, então o direito à cidade reivindica “a liberdade de fazer e refazer a nós mesmos e as nossas cidades, (...) é um dos nossos direitos humanos mais preciosos, ainda que um dos mais menosprezados.” (HARVEY, 2014, p. 28). Apesar de a região do Largo Treze ser ricamente ocupada, ainda há muito o que se fazer para que ela se torne a cidade que queremos. O bairro de Santo Amaro era, até 1935, um município separado de São Paulo, com origens datadas de 1560 e, portanto, possui sua própria lógica de crescimento com o centro no Largo Treze, onde há a Catedral de Santo Amaro. Além disso, o Largo Treze é uma importante centralidade da Zona Sul de São Paulo que a conecta ao centro da cidade. Trata-se do principal nó de conexão intermodal da zona sul, possibilitando o deslocamento da população para o centro da cidade, onde trabalham, ou para os equipamentos públicos da região, como por exemplo o Poupatempo Santo Amaro. No entanto, nenhum dos meios de transporte disponíveis na região estão devidamente conectados: nem entre si nem com os principais equipamentos urbanos. O eixo Leste-Oste, que liga a estação Santo Amaro da CPTM, ao Largo Treze é mais uma ruptura no tecido urbano da cidade. São 1200 m de extensão, que hoje são utilizados como estacionamento dos ônibus do terminal, espalhados pelo viário. O eixo é uma ligação muito importante, especialmente para pedestres, apesar de isto ser desconsiderado no trato do espaço [**] David Harvey é um geógrafo britânico, nascido em 1935, marxista e formado na Universidade de Cambridge. É professor da City University of New York e trabalha com diversas questões ligadas à geografia urbana.

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público, fato constatado pelo próprio desenho urbano da área: as vias são feitas para automóveis e ônibus, não existem atrativos, acessibilidade ou passagens para pedestres, a falta de iluminação pública e os muros que cercam as grandes glebas tornam a travessia insegura. Há também a questão do próprio terminal de ônibus que, além de deteriorado, já está subdimensionado e é hoje uma barreira para o pedestre cruzar o local no sentido Norte-Sul. Por isso a proposta tem como objeto arquitetônico um novo terminal Santo Amaro. Portanto, o objetivo geral desse trabalho final de graduação é levantar e estudar as características urbanas e sociais do Largo Treze, procurando compreender como a mobilidade, tão importante e central para o local, influencia na sua morfologia urbana e no seu espaço público. E o objetivo específico do trabalho é propor uma requalificação urbana do Largo Treze, com novo viário, novo Terminal Santo Amaro e articulação deste com outros modais, além de um novo desenho urbano do eixo de ligação entre a estação Santo Amaro da CPTM e o Largo Treze. Procurando atingir tais objetivos a metodologia utilizada foi a leitura do território, das lógicas sociais e urbanísticas nele presentes, bem como dos sistemas de mobilidade ali inseridos. Essas leituras foram feitas através de mapas, cartografias, levantamentos fotográficos, observação local, levantamento de dados técnicos, e de autores de diferentes campos do conhecimento. Da leitura de cada autor foi feita uma análise em relação ao projeto e ao local onde ele está inserido.

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ELES cidade e sociedade, espaços públicos e cidadãos: tratados separadamente, quando são os próprios reflexos


Cidade e sociedade, espaços públicos e cidadãos. Tratamos, usualmente, esses elementos e construções como se fossem distantes um do outro, ou mesmo completamente separados. Parece que as cidades se constroem sozinhas, que os espaços públicos são criados e mantidos naturalmente, e que os problemas devem ser sempre resolvidos pelos outros cidadãos, pelos governos, enfim, por eles. A realidade, no entanto, quando estudada nos revela o contrário. Cidade e sociedade, espaços públicos e cidadãos se constroem e se modificam mutuamente, são reflexos uns dos outros. Este capítulo trata dessa relação que, apesar de tão visceral, parece invisível aos olhos leigos e, por isso, será visto aqui através dos olhos de antropólogos, cientistas sociais, arquitetos e urbanistas.

O não-lugar Uma das principais obras que discute a relação entre cidade e sociedade foi escrita por Marc Augé* e intitula-se Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Trata-se de uma interpretação para a atual sociedade, através dos espaços por ela criados. Augé chama a atual sociedade de “supermodernidade”, composta por três excessos: do tempo, do espaço e do indivíduo. O excesso do tempo é o que nos parece ser a aceleração deste. Segundo Augé essa aceleração da história se deve não por uma maior rapidez do tempo em si, mas pela multiplicação dos acontecimentos e pela superabundância de informações. “A superabundância factual é que constitui problema, e não tanto os horrores do século XX (...)” (AUGÉ, 2001, p. 31). O excesso do espaço trata da superabundância espacial, que gera mudanças de escala e de parâmetros, e cria os não-lugares. O conceito de não-lugar será desenvolvido adiante, mas uma primeira abordagem, segundo o antropólogo, é:

Os não-lugares são tanto as instalações necessárias à circulação acelerada das pessoas [*] Marc Augé é um antropólogo francês, nascido em 1935, especializado em etnologia. Foi professor e diretor (1985-1995) da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) de Paris, além de pesquisador e diretor do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS).

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e bens (vias expressas, trevos rodoviários, aeroportos) quanto os próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os campos de trânsito prolongado onde são alojados os refugiados do planeta. (Ibidem, p. 36) Por último, o excesso do indivíduo, não trata apenas da cada vez maior individualização do mundo, mas também dos fatos de singularidade (dos objetos, dos grupos, das pertinências etc.), “que constituem o contraponto paradoxal dos processos de relacionamento, de aceleração e de deslocalização muito rapidamente reduzidas e resumidas, às vezes, por expressões como ‘homogeneização – ou mundialização – da cultura’.” (Ibid, p. 41). A “supermodernidade”, portanto, compõe um mundo prometido à individualidade, à passagem, ao provisório e ao efêmero. Ela “impõe, na verdade, às consciências individuais, novíssimas experiências e vivências de solidão, diretamente ligadas ao surgimento e à proliferação de não-lugares.” (Ibid, p. 86). Mas, afinal, o que são não-lugares? Para explicar este conceito, Augé primeiro define o lugar antropológico. Trata-se de uma construção concreta e simbólica do espaço, de escala variável. Ele é identitário, relacional e histórico. Identitário porque o lugar de nascimento constitui identidade individual. Relacional porque num mesmo lugar coexistem elementos distintos e singulares, cujas relações e identidades compartilhadas conferem a ocupação do lugar comum. Histórico, enfim, por ser o lugar que os antepassados construíram. O lugar antropológico é também um lugar geométrico, composto por três formas espaciais simples que constituem as formas elementares do espaço social. Geometricamente falando, tratase da linha, da intersecção das linhas e do ponto de intersecção. Concretamente são os itinerários, eixos ou caminhos que conduzem de um lugar a outro, os cruzamentos e praças onde as pessoas se encontram, e os centros mais ou menos monumentais, políticos ou religiosos. Itinerários, cruzamentos e centros não são, contudo, noções absolutamente independentes. Elas coincidem parcialmente. “Um itinerário pode passar por diferentes pontos notáveis que constituem locais de ajuntamento.” (Ibid, p. 55).

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O não-lugar é o oposto do lugar antropológico. De acordo com o antropólogo:

Um espaço que não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico definirá um não-lugar, isto é, de espaços que não são em si lugares antropológicos e que, contrariamente à modernidade baudelairiana, não integram os lugares antigos: estes, repertoriados, classificados e promovidos a “lugares de memória”, ocupam aí um lugar circunscrito e específico. (Ibid, p. 73). O não-lugar possui duas realidades complementares, porém, distintas: espaços constituídos em relação a certos fins, como transporte, trânsito, comércio, lazer, e a relação que os indivíduos mantém com esses espaços. Enquanto os lugares antropológicos criam um social orgânico, os não-lugares criam uma tensão solitária. Ou seja, o espaço do não-lugar não cria nem identidade, nem relação, nem história, mas sim solidão e similaridade. São percorridos e, portanto, são medidos em unidades de tempo. O espaço da supermodernidade, portanto, só trata com indivíduos, mas estes só são identificados, socializados e localizados na entrada ou na saída. Trata-se de um paradoxo: “o jogo social parece acontecer mais noutros lugares do que nos postos avançados da contemporaneidade (os não-lugares).” (Ibid, p. 102). Entretanto, o não-lugar nunca existe sob uma forma pura. Existe o não-lugar como lugar, já que lugares se recompõem nele, assim como relações são reconstituídas. As “’astúcias milenares’ da ‘invenção do cotidiano’ e das ‘artes de fazer’” (Ibid, p. 74) de Michel de Certeau podem abrir no não-lugar um caminho para si e aí desenvolver suas estratégias. Como já foi discutido, de acordo com Marc Augé a supermodernidade, procedente simultaneamente das três figuras do excesso (superabundância factual, superabundância espacial e individualização das referências), encontra sua expressão completa nos não-lugares. Perante isso, tanto o local do projeto quanto o objeto em si se encaixam na definição de Augé de nãolugares. O objeto por ser uma “instalação necessária à circulação acelerada das pessoas e bens” (Ibid, p. 36), no caso um terminal

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intermodal; o local por ser um vazio, sem identidade, sem relações e sem história. O entorno, no entanto, é a própria definição de lugar antropológico. A descrição que Augé faz das cidades francesas, transcrita a seguir, ilustra quase fielmente o bairro de Santo Amaro:

As mais modestas cidades francesas e até mesmo as aldeias sempre comportam um ‘centro’ onde ficam próximos os monumentos que simbolizam um a autoridade religiosa (a igreja), outro a autoridade civil (a prefeitura, a subadministração ou a administração nas cidades mais importantes). A igreja (católica, na maioria da regiões francesas) fica situada numa praça por onde passam, frequentemente, os itinerários que permitem atravessar a cidade. A prefeitura nunca fica longe, mesmo quando acontece de ela definir um espaço próprio e de haver uma praça da prefeitura ao lado da praça da igreja. (Ibid, p. 62). O histórico do bairro, que será abordado no capítulo “NÓS”, e o mapa a seguir, que localiza esses pontos, comprovam a característica de lugar antropológico de Santo Amaro.

Imagem 1: praça da prefeitura, prefeitura, igraja e praça da igreja, em sentid horário. Fonte: Google Maps; Acervo e elaboração da autora.

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O projeto, portanto, trata do não-lugar como lugar: do não-lugar inserido no lugar, da cicatriz viária no meio do centro histórico de Santo Amaro; da necessidade de possibilitar o lugar no não-lugar, de permitir, por meio de um espaço público de qualidade, que a “invenção do cotidiano” abra caminhos onde a passagem, a fluidez, a rapidez e a efemeridade são impostas e necessárias. Afinal, “O lugar e o não-lugar são, antes, polaridades fugidias: o primeiro nunca é completamente apagado e o segundo nunca se realiza totalmente – palimpsestos em que se inscreve, sem cessar, o jogo embaralhado da identidade e da relação.” (Ibid, p. 74).

A cidade genérica e o shopping center Outro autor que discute a construção da cidade e seus espaços é Rem Koolhaas* . Em seu livro La ciudad genérica, originalmente publicado em 1995, ele discorre sobre as características que possuem as metrópoles mundiais; ou pelo menos a maioria delas. Para isso, ele faz um contraponto com as cidades tradicionais, ou cidades específicas, como denomina o arquiteto. Segundo o autor, cidades como Paris, por exemplo, possuem uma identidade muito forte. Essa identidade provém tanto do meio físico, quanto da história, do contexto. De acordo com Koolhaas, “Cuanto más poderosa es la identidad más aprisiona, más se resiste a la expansión, la interpretación, la renovación y la contradicción.” (KOOLHAAS, 2008, p. 08). Koolhaas entende a cidade tradicional como Augé entende o lugar antropológico: identitário, relacional e histórico; e, para o arquiteto, a identidade centraliza, insiste em uma essência, em um ponto. A cidade genérica, ao contrário, liberta-se da prisão do centro, do coração da identidade. Trata-se de uma cidade sem história, “Es igual de emocionante – o poco emocionante – en todas partes. Es ‘superficial’: al igual que un estudio de Hollywood, puede producir una nueva identidad cada lunes por la mañana.” (Ibidem, p. 12). É uma cidade fractal, cujo módulo estrutural simples se repete [*] Rem Koolhaas é um arquitetoe teórico holandês, nascido em 1944, formado na Nederlandse Film en Televisie Academie (Academia Neerlandesa de Cinema e Televisão) em Amsterdã, na Architectural Association School of Architecture em Londres e na Cornell University em New York. É professor de arquitetura e desenho urbano na Universidade Harvard.

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interminavelmente. De acordo com Koolhaas, estar sempre em trânsito, em movimento, deslocando-se, está se tornando uma situação universal e isso implica na maior importância das infraestruturas e da necessidade de flexibilização destas.

El plano urbano alberga ahora sólo el movimiento necesario, fundamentalmente los coches; las autopistas son una versión superior de los bulevares y las plazas, que ocupan más y más espacio; su diseño, que aparentemente busca la eficacia automovilística, es de hecho sorprende sensual, una pretensión utilitaria que entra en dominio del espacio liso. (Ibid, p. 16) Enquanto as cidades específicas continuam debatendo sobre os erros cometidos por arquitetos, como por exemplo criar redes e mais redes pedonais elevadas cheias de braços que levam de um lugar a outro como uma solução para o problema da congestão, as cidades genéricas disfrutam da enorme proliferação das infraestruturas de conexão, como plataformas, pontes, túneis, estradas. O local do projeto e o objeto do projeto são ambos característicos da cidade genérica de Koolhaas: trata-se do aproveitamento de uma infraestrutura já existente (a avenida Padre José Maria), não só para melhorar o trânsito dos ônibus, mas principalmente para proporcionar o caminhar e o pedalar com qualidade; além da criação de uma ponte (o novo terminal de ônibus), que permite mais rapidez para os ônibus e mais fluidez em nível para os pedestres. Ou seja, é um projeto cuja temática trata da “situación de estar en tránsito” (Ibid, p. 20) e cuja proposta “disfruta de los benefícios de sus inventos (plataformas, puentes, túneles o autopistas)” (Ibid, p. 29). Apesar disso, o projeto não nega seu entorno que, no caso, é caracterizado como cidade específica ou como lugar antropológico, como já foi visto. Ao contrário, ele parte do seu entorno para ser gerado e pretende não só fazer parte dele, como também melhorálo. O projeto em si não se propõe ser genérico mas ao contrário, e apesar da sua característica de não-lugar e de cidade genérica, quer se tornar relacional e histórico; específico.

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Imagem 2: Cartografia do caminho percorrido pelos pedestres entre a estação da CPTM e o Largo Treze. Fonte: Google Maps; Acervo e elaboração da autora.

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O mesmo autor, em um livro mais recente, Mutations (originalmente publicado em 2001), aborda, entre outras questões, a lógica do shopping center e seu impacto nas cidades; como hoje em dia todos os aspectos da vida urbana foram transformados, às vezes até substituídos, por ela. Centros históricos, subúrbios, ruas, estações de trem, museus, hospitais, escolas são moldados pelos mecanismos e espaços de shoppings, tendo o comércio, a lógica da compra, como seu principal atrativo. Mas quais são os mecanismos e os espaços que os shopping centers criaram? De acordo com Rem Koolhaas o inventor do shopping center, Victor Gruen, entendia que áreas públicas abertas não eram ideais para pedestres, devido ao clima. Sua ideia foi, então, estabelecer espaços públicos cobertos, climatizados e completamente protegidos do clima; e assim criou-se o shopping center: um espaço fechado, sem janelas, que simula o espaço público com a conveniência de uma atmosfera controlada.

Gruen not only designed the mall to be “the largest weather-protected space in the entire area”, but knew that the artificial climate would guarantee that the mall would become “not only a meeting ground but also, in evening hours, the place for the most important urban events”. (KOOLHAAS, 2001, p. 132). De acordo com o arquiteto, o shopping center mudou radicalmente tanto a experiência da vida pública como a arquitetura em si. Por mais que nós neguemos ou recusemos, o shopping se tornou um dos únicos meios onde experimentamos atividades públicas. Deixamos de usar o espaço urbano, a rua, a calçada, os parques, as praças, como espaços públicos e passamos a utilizar os shoppings. “Shopping malls have replaced the parks and squares that were ‘traditionally the home of free speech’.” (Ibidem, p.154). O shopping center é, segundo Koolhaas, em muitos casos, o que determina, sustenta e até mesmo define uma instituição ou uma cidade. A região do Largo Treze possui uma intensa vida urbana nas áreas públicas, ruas, calçadas e praças, relacionada especialmente ao comércio formal e informal, apesar da enorme quantidade de shoppings centers presentes na área. Trata-se de uma das poucas áreas na cidade de São Paulo que ainda possui esse caráter, e assim

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acredito que deve ser mantido. O Largo Treze é uma resistência à lógica do shopping center exposta por Koolhaas. Nessa área o espaço público e aberto, que foge do controle climático, é mais do que utilizado: ele é fundamental. As lógicas sociais, econômicas e urbanas ali presentes só são possíveis através da ocupação contínua e crescente que os usuários fazem desse espaço. Tal ocupação é tamanha que ultrapassa os limites das calçadas, praças e ruas exclusivas de pedestres, invadindo os leitos carroçáveis. O que falta na região, se é que assim pode-se dizer, é um espaço público de qualidade. Daí a importância de tratar o eixo proposto em projeto: de transformá-lo em um espaço público, aberto, verde e convidativo para o pedestre; de não definir completamente os usos; de liberar a cota do térreo na área do terminal para o pedestre; de manter as características locais, e não substituí-las.

Imagens 3, 4, 5, 6, 7: comércio popular no Largo Treze. Fonte: Acervo da autora.

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O novo urbanismo Um terceiro autor, François Ascher* , discute em seu livro Os novos princípios do urbanismo, a relação entre cidade e sociedade. Discorre sobre as três modernidades e suas respectivas revoluções urbanas e, a partir da análise da última delas, propõem os novos princípios do urbanismo. De acordo com o autor, as formas que as cidades assumem, sejam elas projetadas ou espontâneas, refletem as lógicas das sociedades que as produzem e acolhem. Portanto, o urbanismo precisa compreender muito bem a lógica estabelecida na sociedade contemporânea para poder pensar, planejar e gerar nossas cidades. As sociedades modernas têm por princípio essencial a mudança. Elas foram produzidas pela interação de três dinâmicas socioantropológicas: individualização, racionalização e diferenciação social. A individualização é definida como a representação do mundo de acordo com cada indivíduo e não de acordo com o grupo ao qual esse indivíduo pertence. A racionalização é a substituição da tradição pela razão no momento de tomar decisões. E a diferenciação social é o processo de diversificação das funções tanto dos grupos quanto dos indivíduos no interior da sociedade. “Esses três processos alimentam-se reciprocamente e produzem sociedades cada vez mais diferenciadas, formadas por indivíduos simultaneamente mais parecidos e mais singulares, com possibilidades de escolha mais complexas.” (ASCHER, 2001, p. 23). Ascher divide as sociedades modernas em três grandes períodos de modernização, que possuem características próprias e afirma que, a cada uma dessas fases, corresponde uma mudança profunda na concepção, produção, utilização e geração de territórios, em especial de cidades.

A primeira modernidade e sua revolução urbana suscitaram novas concepções, que classificaremos [*] François Ascher (1946-2009) era um urbanista e sociólogo francês, formado em ciências econômicas e doutor em estudos urbanos e ciências humanas. Especializado nos estudos dos fenômenos metropolitanos e de planejamento urbano.

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como paleurbanismo, e as primeiras utopias; a segunda modernidade e sua revolução urbana produziram os modelos e deram nome ao urbanismo. A terceira modernidade e sua revolução urbana fizeram emergir novas atitudes diante do futuro, novos projetos, modos de pensar e ações diferenciadas; é o que chamaremos de agora em diante de ‘neourbanismo’ ou de ‘novo urbanismo’ (...). (Ibidem, p.61). A primeira modernidade ocorreu entre o final da Idade Média e o começo da revolução industrial. Suas principais mudanças foram a transformação do pensamento e do lugar da religião na sociedade, a emergência do Estado-nação, o desenvolvimento das ciências e a expansão do capitalismo mercantil e em seguida do industrial. A revolução urbana que acompanhou a primeira modernidade foi o aparecimento da cidade “clássica” no lugar da cidade medieval, com o Estado construindo avenidas e praças, transformando muralhas, redefinindo e separando o público do privado, inventando calçadas e vitrines (Ibid, p. 24). A segunda modernidade cobre o período da revolução industrial, onde a produção de bens e serviços está subordinada às lógicas capitalistas, o pensamento técnico ocupa um lugar central na sociedade, e nasce o Estado do bem-estar. A revolução urbana correspondente a essa fase da modernização é a do urbanismo moderno, que organiza as cidades com base nos princípios estabelecidos na indústria, transformando o conceito de especialização em zoneamento, que será levado ao extremo por Le Corbusier e a Carta de Atenas. Como as novas cidades devem se adaptar às novas exigências de produção, consumo e trocas, a mobilidade das pessoas, das informações e dos bens assume um lugar de destaque. Para isso são construídas malhas de grandes vias de circulação, redes de água, de saneamento, de energia e de comunicação. O desenvolvimento de transportes urbanos teve papel decisivo na formação de bairros residenciais de alta renda, de bairros industriais para fábricas e operários, na ampliação dos territórios urbanos, nos grandes conjuntos habitacionais, nos bairros monofuncionais das periferias. Outra importante mudança nas cidades foi a criação das linhas de transporte coletivo, bem como uma série de serviços públicos

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(escolas, hospitais, banheiros, correios, equipamentos esportivos etc.) a partir do desenvolvimento do Estado de bem-estar. Segundo Ascher,

As cidades e o urbanismo conheceram, assim, uma verdadeira revolução em relação às antigas cidades e concepções arquitetônicas e espaciais da primeira revolução urbana para chegar, por fim, a um urbanismo fordista-keynesianocorbusiano, expressão de uma racionalidade simplificadora com seu planejamento urbano, seu zoneamento monofuncional, suas armaduras urbanas hierárquicas, adaptado à produção e ao consumo de massa em centros comerciais, suas zonas industriais e sua circulação acelerada e uma materialização também do Estado do bemestar com seus equipamentos coletivos, serviços públicos e habitações sociais. (Ibid, p. 28-29). A terceira modernidade é a que estamos vivendo agora. É o período de que tratou Marc Augé, já citado aqui. Trata-se de uma fase de modernização acelerada, que transforma rapidamente a sociedade, tornando-a cada vez mais racional, mais individualista e mais diferenciada. As mudanças que estão ocorrendo ressaltam “(...) o fato de que a sociedade moderna se libera de um racionalismo que se tornou demasiado simplista e de suas certezas, e que ela desprendese das formas de pensamento messiânico ou providencial que ainda marcavam a própria ideia moderna de progresso.” (Ibid, p. 31). A racionalização na terceira modernidade se transforma em reflexão ou, como diz Ascher, em “refletividade”, que é a reflexão antes, durante e depois. “Não se trata mais de simplesmente mobilizar conhecimentos prévios a certas ações, mas examinar permanentemente as escolhas possíveis e reexaminá-las em função daquilo que elas já produziram.” (Ibid, p. 32). Outra característica dessa fase é a emancipação dos limites espaciais e temporais, através do desenvolvimento de novos meios de transporte e armazenagem de pessoas, informações e bens. Não há mais a necessidade do encontro físico, assim como ações não precisam acontecer simultaneamente. Os novos meios

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de transporte e comunicação trazem outra consequência: a possibilidade de escolha da localização da moradia e de outras atividades, mudando a natureza do “local”, que já “não é herdado ou imposto, porém é resultado das lógicas reflexivas, das decisões que são tão mais complexas quanto maiores forem os meios de deslocamento ou de telecomunicações disponíveis a indivíduos ou organizações.” (Ibid, p. 38). A individualização também se acelera na nova modernidade. Os indivíduos fazem cada vez mais escolhas, dando origens a perfis de vida e de consumo cada vez mais diferenciados, tornando menos perceptível o pertencimento a grupos sociais. Assim também a diferenciação social se torna cada vez mais complexa. Ela é resultado de muitos fatores, entre eles a mobilidade física das pessoas e das informações, já que torna possíveis contatos e trocas mesmo que não haja proximidade. Os indivíduos começam a pertencer a muitos grupos sociais, se tornam socialmente plurais (Ibid, p. 42). Essas e outras tantas mudanças abordadas por Ascher (a emergência da sociedade hipertexto, a estrutura social em rede, o capitalismo cognitivo, a economia urbana etc.), levaram à terceira revolução urbana. Cinco grandes mudanças caracterizam essa revolução: “a metapolização, a transformação dos sistemas urbanos de mobilidade, a formação do espaço-tempo individual, a redefinição das relações entre interesses individuais, coletivos e gerais, e as novas relações de risco.” (Ibid, p.62). A metapolização é um duplo processo de metropolização e de formação de novos tipos de territórios urbanos, as metápoles. O primeiro processo resulta da globalização e do aprofundamento da divisão do trabalho em escala mundial. Estes tornam as aglomerações urbanas mais competitivas, precisando oferecer um mercado de trabalho amplo e diversificado, serviços de alto nível, boas conexões internacionais, além de muitos equipamentos e infraestruturas. As metápoles, por sua vez, são “(...) vastas conturbações, extensas e descontínuas, heterogêneas e multipolarizadas.” (Ibid, p. 63). A transformação dos sistemas urbanos de mobilidade está ligado tanto aos transportes urbanos quanto às tecnologias de informação e comunicação (TICs). Estas, ao contrário do se imagina, não

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substitui aqueles, “(...) o presencial, os contatos diretos continuam sendo meios de comunicação privilegiados; a acessibilidade física e a possibilidade do encontro são mais do que nunca as principais riquezas das zonas urbanas.” (Ibid, p. 65). Entretanto, as TICs transformam o sistema de mobilidade urbana e as estruturas espaciais quando, por exemplo, o comércio eletrônico substitui a mobilidade do consumidor pelo transporte da informação via internet e pelo deslocamento do entregador. “Isto pode acarretar modificações importantes na localização de uma parte do comércio, já que os bens de consumo não precisam estar disponíveis nos centros comerciais de alugueis caros, mas sim em entrepostos próximos a plataformas logísticas.” (Ibid, p. 66). A maior individualização da terceira modernidade pressupõe mudanças na maneira como os cidadãos organizam seu território e emprego do tempo. O maior controle do indivíduo sobre seu espaço-tempo gera mudanças no meio urbano, como por exemplo uma crise na concepção e no funcionamento dos equipamentos e dos serviços públicos. Assim como o mercado privado precisa se ajustar e conceber um marketing cada vez mais personalizado, os serviços públicos precisam responder à falta de atualização diante da diversificação das necessidades sociais, já que foram inicialmente pensados para servir a todos. O transporte público é o maior exemplo dessa crise:

Nas metápoles, com efeito, os cidadãos se deslocam cada vez mais em todas as direções, a toda hora do dia e da noite, de formas diferenciadas e mutantes a cada dia ou temporada. Os deslocamentos pendulares domicílio-trabalho, tornaram-se minoritários, assim como os deslocamentos concêntricos. De fato, os transportes públicos, trens, bondes, ônibus clássicos foram concebidos segundo o modelo fordista, baseado em um princípio de repetição, de produção em massa e de economias de escala: o mesmo transporte, no mesmo itinerário, para todos, simultaneamente. Este tipo de transporte continua sendo eficiente, inclusive do ponto de vista ecológico, nas zonas densas e nos grandes eixos. Porem, isso só representa uma parte minoritária e decrescente dos transportes. Os habitantes das metápoles

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que não dispõem de transporte individual, particularmente do automóvel, tornam-se deficientes, pois a cidade lhes é menos acessível com o transporte coletivo clássico, embora ela lhes seja cada vez mais indispensável. (Ibid, p. 70-71). A quarta característica da terceira revolução urbana, a redefinição das relações entre interesses individuais, coletivos e gerais, pressupõe a fragilização dos vínculos sociais, mas também sua multiplicação e variabilidade. “Essa evolução tem múltiplas consequências que conformam a terceira revolução urbana moderna.” (Ibid, p. 72), entre elas novas formas de segregação social, que são produzidas por diversos fatores. Um desses fatores é o desenvolvimento dos meios de transporte: as possibilidades de escolha das localizações residenciais aumentaram, provocando agrupamentos de pessoas em bases que podem ameaçar a coesão social e urbana, de acordo com Ascher. E assim surgem bairros privados cercados de muros, um fechamento espacial tanto quanto uma fragmentação social. Por fim, a terceira revolução urbana assiste ao aumento da violência urbana. Dado que o progresso da técnica ao mesmo tempo em que abre novas possibilidades, aumenta os estragos que pode provocar, a atual sociedade tem dificuldade em achar novas formas de regulação e, por isso, os delitos se ampliam. “A terceira revolução urbana moderna, que se esboça com a nova fase de modernização das sociedades ocidentais, produz mudanças profundas nas formas de concepção, implementação e gestão das cidades.” (Ibid, p. 81) A essas novas formas de concepção, implementação e gestão das cidades, Ascher deu o nome de “neourbanismo”. De maneira resumida, o neourbanismo é um urbanismo de dispositivos que elaboram, discutem e negociam planos; um urbanismo reflexivo, onde a análise está presente antes, durante e depois da ação, tornando o projeto um instrumento de conhecimento e de negociação; um urbanismo de precaução, que dá lugar às controvérsias e considera as exigências do desenvolvimento sustentável; um urbanismo convergente, cuja concepção e realização dos projetos é resultado de múltiplos fatores, com lógicas diferentes porém combinadas entre si; um urbanismo reativo e

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flexível, compatível com as dinâmicas da sociedade; um urbanismo multifacetado, composto por elementos híbridos e soluções múltiplas; um urbanismo estilisticamente aberto; um urbanismo, enfim, multissensorial, que enriquece a urbanidade do lugar. Tratase de um “caminho particularmente ambicioso, que necessita de mais conhecimento, mais experiências e mais democracia.” (Ibid, p. 98). O projeto apresentado neste trabalho final de graduação (TFG) possui, ou ao menos tenta, alguns dos princípios propostos por François Ascher e seu neourbanismo. Em primeiro lugar o próprio tema do objeto, ou seja, mobilidade urbana, transportes urbanos, intermodalidade é para o autor de extrema importância:

(...) reforço do papel dos transportes e das diversas redes que, mais do que nunca, asseguram a eficiência do conjunto dos sistemas urbanos metapolitanos. Os lugares de conexão entre diferentes redes assumem uma importância crescente e transformam a intermodalidade nos transportes em desafio-chave das dinâmicas urbanas.” (Ibid, p.86). Segundo porque o projeto possui diferentes escalas, proporciona diferentes espaços de diferentes sociabilidades e interações: a escala do pedestre como principal força no eixo horizontal, enquanto a escala do ônibus impõe presença quando mudamos de nível no eixo vertical; os espaços onde predomina a vegetação arbórea, os espaços onde predomina o esporte seja ele individual ou não, os espaços de interação com o outro, os espaços verdes resultantes de clareiras nas massas arbóreas para maior tranquilidade e introspecção, os espaços cívicos, os espaços de passagem, os espaços de espera e os espaços de encontro. São “espaços múltiplos de n dimensões sociais e funcionais, (...) propícios tanto à intimidade quanto às mais variadas sociabilidades.” (Ibid, p. 90).

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Figura 8: diagrama dos espaços do projeto. Fonte: Elaboração da autora.

Outro princípio do neourbanismo é o de elaborar respostas específicas a cada situação. Por maiores que tenham sido as tentativas de basear o projeto em alguma solução já existente, em dar-lhe forma e funcionalidade de acordo com referências anteriores, foi apenas a partir do estudo do tecido urbano, suas dinâmicas sociais e urbanas, do funcionamento dos modos de transporte que ali existem que o projeto ganhou partido arquitetônico e forma. Essas questões serão explicadas nos capítulos seguintes.

A mobilidade sobremoderna Em outro livro, Por uma antropologia da mobilidade, Marc Augé discute a relação entre cidade, sociedade e mobilidade. Quando trata da mobilidade, o francês refere-se a um campo muito maior do que o da mobilidade urbana: ele aborda o que chama de mobilidade “sobremoderna”. Para discutir tal conceito, suas causas e consequências, o antropólogo primeiro explica os paradoxos do mundo contemporâneo. São cinco. O primeiro paradoxo é o espaço-temporal, no qual as medidas do espaço e do tempo mudam: o espaço terrestre se reduz e o tempo dos homens se acelera. O segundo trata-se da perenidade do presente, quando a aceleração do tempo nos impede de lhe perceber o movimento. “Nós oscilamos entre nostalgia e consumo bulímico da atualidade.” (AUGÉ, 2010, p. 08). O terceiro paradoxo refere-se ao espaço social, onde muitos enclausuramentos ocorrem num mundo onde tudo circula e uniformiza-se. Deste paradoxo tem-se a urbanização do mundo e as megalópoles, ou o que o autor chama de “mundo-cidade” e “cidades-mundos”, conceitos que serão explicados adiante. O quarto paradoxo é econômico, no qual

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a separação entre países tende a se reduzir, mas dentro dos países, a separação entre os mais ricos dos países ricos e os mais pobres dos países pobres se intensifica. O quinto e último paradoxo é o do conhecimento: enquanto a ciência não para de progredir em um ritmo acelerado, aumenta o fosso entre a elite do saber e aqueles que não conseguem nem mesmo acessá-lo. Uma das muitas consequências de todos esses paradoxos do mundo contemporâneo é o que Augé chama de mobilidade “sobremoderna”, onde “sobre” designa a superabundância de causas, o que complica a análise dos efeitos. Ela exprime-se nos movimentos de população (migrações, turismo, mobilidade profissional), na comunicação geral instantânea e na circulação dos produtos, das imagens e das informações. “Ela corresponde ao paradoxo de um mundo onde podemos teoricamente tudo fazer sem deslocarmo-nos e onde, no entanto, deslocamo-nos.” (Ibidem, p.15-16). De todos os paradoxos mencionados, o mais importante aqui é o terceiro, o do espaço social. A urbanização do mundo é a tradução espacial da mundialização, entendida como a globalização (extensão do mercado liberal e desenvolvimento dos meios de circulação e de comunicação) e a planetarização (consciência planetária, tanto ecológica como social). Tal fenômeno apresenta dois aspectos distintos e complementares: o crescimento dos grandes centros urbanos e o aparecimento de filamentos urbanos que soldam umas nas outras as cidades existentes ao longo de vias de circulação, de rios e de costas marítimas. A urbanização do mundo gera o que Augé chama de “mundocidade”, e o crescimento dos grandes centros urbanos geram as megalópoles, ou “cidades-mundos”. O “mundo-cidade” é dado pela circulação ininterrupta dos homens, dos bens e das mensagens; as “cidades-mundos” são enclausuradas de mil maneiras, e nelas se encontram toda diversidade e toda desigualdade. São dois aspectos contraditórios da urbanização, mas indissociáveis:

(...) como as duas faces de uma mesma moeda: de um lado, o mundo é uma cidade (a ‘metacidade virtual’, de que fala Virilio), uma imensa cidade onde trabalham os mesmos arquitetos, onde se encontram as mesmas empresas econômicas e financeiras, os mesmos produtos..., de outro, a

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grande cidade é um mundo, onde se encontram todas as contradições e os conflitos do planeta, as consequências do fosso crescente entre os mais ricos dos ricos e os mais pobres dos pobres, o terceiro mundo e o quarto mundo, as diversidades étnicas, religiosas e outras. (Ibid, p. 43). A urbanização manifesta, portanto, as contradições do sistema da globalização, cujo ideal de circulação de bens, ideias, mensagens e seres humanos está submetido às relações de força que se expressam no mundo. A mobilidade urbana também revela essa dupla tensão e, consequentemente, uma dupla dificuldade: “(De um lado) A vitalidade da grande cidade mede-se pela importância dos fluxos que nela entram e saem. De outro lado, geograficamente, a cidade expande-se e desloca-se.” (Ibid, p. 40-41). Ou seja, as metrópoles e megalópoles são tão importantes quanto forem a intensidade dos seus fluxos, e para que eles funcionem e sejam eficientes, a mobilidade urbana precisa ser bem pensada e bem planejada, além de integrada. E isso dificulta-se cada vez mais com a expansão e o deslocamento da própria cidade, tanto geograficamente, quanto em termos de população. Na articulação entre essas duas faces contraditórias da urbanização, da uniformidade de um lado e da diversidade de outro, se formam zonas vazias na cidade. “É na articulação do mundo cidade e da cidade mundo que se situam as zonas vazias e porosas (...), essas zonas que são a face invisível da mundialização ou ao menos a face que não podemos, não queremos e não sabemos ver.” (Ibid, p. 44). E essas zonas vazias, muitas vezes, se situam próximas das instalações de mobilidade como estradas, vias férreas, aeroportos, etc., que fazem o trânsito das desigualdades entre e dentre cidades, e ao mesmo tempo as uniformizam, já que todas elas possuem as mesmas instalações. Essas zonas vazias, que podem estar nas margens das cidades ou no meio de seus tecidos urbanos consolidados, que segundo Augé são os postos mais avançados da transformação urbana e onde assemelham-se as megalópoles, são a forma nua do “não-lugar”. De acordo com o autor,

São espaços onde não se pode vislumbrar nenhuma relação social, onde nenhum passado

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partilhado se inscreve, mas, ao contrário dos nãolugares da sobremodernidade triunfante, não são mais espaços de comunicação, de circulação ou de consumo. (Ibid, p. 37). Os vazios urbanos são descompassos no espaço urbano, e testemunham tanto as fissuras do tecido social quanto as disfunções da cidade, ambas consequências de uma mudança de escala da atividade humana e do descentramento dos lugares onde ela acontece. Concluindo,

Mundo cidade e cidade mundo, filamentos urbanos, vias de circulação e meios de comunicação: o espaço urbano é hoje um espaço complexo, emaranhado, um conjunto de rupturas num fundo de continuidade, um espaço de extensão de fronteiras móveis. (Ibid, p. 87). Para além dos paradoxos do mundo contemporâneo explicados por Augé, a maior contradição da cidade é que o seu desenvolvimento parece fazê-la desaparecer. “(...) nós temos o sentimento de ter perdido a cidade, mesmo que aí não exista nada mais senão ela.” (Ibid, p. 92). Isso se dá pela proliferação dos vazios urbanos e dos não-lugares, frutos da contradição da uniformidade com a diversidade. Como já foi dito, o objeto projetual deste trabalho final de graduação é um não-lugar, e o espaço urbano onde ele está contido (e que também foi objeto de projeto), é um vazio. Trata-se, portanto, de um projeto cujo objeto abriga a diversidade da cidade apesar da sua temática (mobilidade urbana), uniformizá-la. Ou seja, o objeto (um terminal intermodal), é igual em todas as metrópoles e megalópoles, não em termos de forma, mas de funcionalidade. Entretanto, a intenção é transformá-lo em um espaço em que seja possível uma nova ocupação por seus usuários, que seja criada uma nova relação entre eles e o espaço ali proposto. Um espaço que existe em toda grande cidade do mundo, mas que tem, na diversidade que o utiliza e habita, suas próprias lógicas e dinâmicas sociais.

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Figura 9: perspectiva isométrica do eixo tratado no projeto. Fonte: elaboração da autora.

A importância do tema da mobilidade urbana para uma cidade como São Paulo é enorme. Não apenas para que a cidade internamente flua, e pessoas, bens e informações se desloquem com qualidade e agilidade, mas também porque “As cidades mais importantes não podem mais ser analisadas hoje sem levar em consideração todos os equipamentos que as religam e as prendem à rede mundial de comunicação e circulação.” (Ibid, p.37). “O urbanismo é, a cada dia mais, concebido em função da necessidade de uma redefinição das relações entre interior e exterior. A ligação com outros lugares faz parte do novo urbanismo.” (Ibid, p. 38), e é sobre isso que se trata o exercício projetual deste TFG.

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ELA mobilidade urbana: mais do que uma logística de transportes, é um direito indispensável


Hoje, mais do que nunca, movimentar-se é um direito. Deslocar-se é ter direito de acesso a bens, a serviços, a moradia, a trabalho, a lazer, a relações sociais. É direito de escolha pessoal, sobre o que se quer fazer e quando se quer fazer. A mobilidade urbana está no centro das principais discussões urbanas, especialmente em cidades como São Paulo. O Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), defende na Carta Direito à Cidade (2013) que o uso do solo urbano, a habitação e a mobilidade são funções urbanas indissociáveis, que demandam políticas públicas (planejamento de transportes públicos e planejamento urbano), articuladas e um planejamento contínuo. Neste capítulo trataremos das definições de mobilidade urbana segundo diferentes autores, e faremos um breve histórico da mobilidade e dos transportes na cidade de São Paulo.

A mobilidade na cidade Manuel Herce* é um dos principais autores contemporâneos a discutir mobilidade urbana e cidade. Em seu livro Sobre la movilidad en la ciudad o autor nos mostra como e porque as mudanças na sociedade e nas cidades afetam a mobilidade. Segundo Herce, as cidades hoje são territórios onde se intercalam usos, onde se misturam espaços centrais com espaços periféricos; territórios de diversas atividades, que mudam constantemente e que, mais do que atrair usuários (e portanto gerar mobilidade), dependem dessa atração. Por isso então a crescente importância e necessidade de construção de infraestruturas. Herce entende a mobilidade como um direito, o que implica dedicação a todas as formas de movimentar-se, mas em especial

las formas que consumen menos energía y crean menos dependencia, y obliga a poner el acento en el tipo de infraestructuras que se ofrecen, en sus características y efectos, y en la gestión del espacio publico urbano. (HERCE, 2009, p. 23). [*] Manuel Herce é professor de Urbanismo e Ordenaçao do Território, e diretor do departamento de Transporte e Território da Universidade Politécnica da Catalunha. Foi diretor de urbanismo da área metropolitana de Barcelona e do Órgão de construção da Vila Olímpica da cidade.

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O autor acredita que para garantir esse direito deve haver intervenção da administração pública, afim de promover a oferta de espaços públicos adaptados a cada modo de transporte, o que necessariamente implica em uma grande mudança de enfoque, afetando a maneira que até hoje se planeja o transporte urbano. Muitas são as transformações sociais que alteraram o modelo de mobilidade. Segundo Herce as principais foram o aumento do trabalho autônomo e a diversificação dos lugares de trabalho, a tendência a um maior equilíbrio na distribuição das viagens ao longo do dia, a tendência ao maior uso do transporte privado durante os finais de semana, o encarecimento do uso do automóvel, e a maior consciência social sobre o custo energético e ambiental que os veículos motorizados geram. Compreendendo justamente essa necessidade de adaptar os espaços públicos a cada tipo de modal e percebendo que o eixo escolhido para ser tratado em projeto não era adaptado ao pedestre, seu principal usuário, e que os ônibus ocupavam todo o local, é que o projeto foi então pensado para organizar os fluxos, dar acessibilidade ao pedestre e ao ciclista, e compactar o espaço que os ônibus ocupam na área. As imagens a seguir demonstram como está a área agora e qual é a proposta de projeto, com ênfase nos viários de cada modal.

Figuras 10 e 11: situação atual da área de intervenção (acima) e viário novo proposto (abaixo). Fonte: Mapa Digital da Cidade (MDC); elaboração da autora.

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Os três planejamentos No cenário brasileiro, um dos maiores autores sobre mobilidade urbana é Eduardo Vasconcellos*. Em seu livro Mobilidade Urbana e Cidadania ele discute três grandes planejamentos: o urbano, o de transportes e o de mobilidade. O planejamento urbano é o que gera códigos e leis de uso e ocupação do solo. O planejamento de transportes é o que define a infraestrutura de circulação (ruas, calçadas, vias férreas e terminais) e os veículos e serviços que serão ofertados (veículos, linhas, frequência de viagens). Por fim, o planejamento da mobilidade define como a estrutura viária será utilizada por pessoas e veículos; faz parte dele o código de trânsito, a engenharia de tráfego, a educação e a fiscalização. Vasconcellos defende que as três técnicas estão intimamente ligadas pois as decisões de uma afetam as outras. O autor também faz propostas a cada um desses planejamentos. No que concerne o planejamento urbano, Vasconcellos aponta que transformações urbanas, como mudanças no uso do solo e o espraiamento das cidades com o incentivo do uso do automóvel, levam a transformações na mobilidade.

De maneira geral, as medidas a serem adotadas dever tem dois objetivos centrais: criar um espaço ambientalmente saudável e com acessibilidade equitativamente distribuída. Nos dois casos, o caminho é a reordenação do crescimento urbano, submetendo-os a novos condicionantes, o que implica conflito aberto com direitos e costumes estabelecidos, como a propriedade privada da terra e a geração impune de externalidades como a poluição atmosférica. (VASCONCELLOS, 2012, p. 158). Quanto ao planejamento do transporte, Vasconcellos propõe a construção de novas calçadas ou renovação das antigas, com cuidados técnicos de pavimentação, inclinação e capacidade, bem [*] Eduardo Vasconcellos é engenheiro, sociólogo e doutor em Ciências Políticas (políticas públicas) pela USP. É assessor da ANTP (Associação Nacional de Transportes Públicos) e Diretor do Instituto Cidade em Movimento.

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como espaço para acomodação de bicicletas, seja por sinalização seja pela construção de ciclovias. Sugere também a mudança na oferta do transporte público, que deve ser feita através de três políticas associadas: fisicamente, por meio de novos modos de transporte, como veículos, vias exclusivas de ônibus, terminais, ciclovias e áreas de pedestres; operacionalmente, por meio da reorganização das ofertas espacial e temporal dos serviços; e economicamente, através de uma estrutura tarifária que facilite o uso dos sistemas e sua interconexão com outros meios. Por fim, as propostas do autor para o planejamento da mobilidade sinalizam a redistribuição do espaço de circulação (o que significa dar maior espaço ao maior número de usuários, no caso pedestres, ciclistas e transporte coletivo), assim como a melhoria na segurança não só do pedestre mas a prevenção de acidentes também e, por fim, a priorização do transporte público e a melhora no seu desempenho. De acordo com Vasconcellos, todo estudo de circulação deve ter em conta, para o planejamento da mobilidade, seis objetivos: fluidez, segurança, acessibilidade, nível de serviço, custo do transporte e qualidade ambiental. Dentro do que foi possível avaliar e propor no exercício projetual deste TFG, todos esses objetivos foram considerados e atingidos.

As noções de mobilidade Em sua tese de doutorado, Fabiana Izaga** discute, entre outras coisas, as noções de mobilidade e transporte urbano, além de infraestrutura e forma urbana, através do fenômeno da metropolização, da mudança dos sistemas de mobilidade e do aumento da velocidade dos transportes. Segundo a autora, as áreas metropolitanas estão manifestando uma crescente dispersão de núcleos, apresentando vazios e polígonos de urbanização que, juntamente com a redução das densidades e a [**] Fabiana Izaga é arquiteta urbanista (USU-RJ), doutora em Urbanismo (Prourb/FAU-UFRJ), Mestre em História da Arte (PPGAV/Eba-UFRJ), especialista em História da Arte e da Arquitetura no Brasil (PUC-Rio). É professora adjunta (FAU-UFRJ), pesquisadora em mobilidade urbana e projeto urbano. Obteve o prêmio “Mauricio Abreu de Teses -IPP/PMRJ”. É vice-presidente do IAB-RJ.

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terceirização contínua da atividade econômica, leva a necessidades crescentes de mobilidade e acessibilidade. Cidade, forma e tecido urbanos e mobilidade estão, portanto, intimamente ligados. De acordo com Izaga,

As cidades e o movimento são muitas vezes vistos como coisas distintas, pertencentes a lógicas antagônicas, que relaciona a primeira ao que é estático e o segundo ao que é ativo. Contudo, a ideia do movimento sempre esteve no seio das dinâmicas econômicas, sociais e urbanísticas da sociedade, a ponto de podermos considerar que as cidades existem por causa do movimento. (IZAGA, 2009, p. 23). Para discutir sobre mobilidade, acessibilidade e transporte urbano, Izaga recorre a alguns interlocutores, como Merlin e Choay, Vasconcellos, Herce, entre outros. A autora inicia a discussão com a definição do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa para mobilidade, como “a possibilidade de mover algo... possibilidade de ir para outro lugar rapidamente”. De acordo com Merlin e Choay, autores do dicionário do urbanismo, a mobilidade é a “propensão de uma população a se deslocar...mensurada (no interior da aglomeração) frequentemente pelo número médio de deslocamentos em um dia da semana por pessoa ou por família” (MERLIN & CHOAY, 2005, p. 542 apud IZAGA, 2009, p.27). Eles também definem acessibilidade como a possibilidade de acesso a ou a partir de um lugar; e deslocamento, como o movimento de uma pessoa de uma origem a um destino. A autora também coloca em questão que as mobilidades urbanas devem ser tratadas sob duas novas problemáticas: as modalidades e a utilização. Em relação à problemática da modalidade, não se trata tanto do surgimento de novos modais ou das evoluções tecnológicas, mas sim da diversidade e do surgimento de novos conceitos, cuja ênfase está em uma nova maneira de abordar os cruzamentos das redes (o que possibilitou o surgimento do conceito “polo de trocas” em contraposição ao de “terminal de transportes”). Já a problemática da utilização

tem vários aspectos, cujas consequências (...) vêm operando uma verdadeira mudança de paradigma

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na abordagem das mobilidades urbanas. O primeiro deles está na dimensão informacional dos transportes, que vem passando de uma concepção da pura informação e sinalização para uma concepção mais completa da informação. (...) O segundo aspecto deste eixo reside no desenvolvimento dos serviços no espaço-tempo do transporte, destacando-se uma abordagem renovada dos tempos e das temporalidades. (...) O terceiro aspecto da utilização está na sua dimensão cultural. Com o reconhecimento desta dimensão no transporte urbano, abrem-se novas possibilidades para o serviço em si do transporte, onde não se pode esquecer que a afeição popular é um fator decisivo da eficácia dos transportes coletivos. Ou seja, embora os transportes coletivos possam ser reconhecidos por viabilizar os deslocamentos obrigatórios diurnos, há ainda muito a ser explorado pelo seu lado lúdico. (IZAGA, 2009, p. 30-31). O conceito de mobilidade possui muitas noções dentro de si, pois o movimento é uma questão social, uma questão de desenvolvimento econômico e uma questão urbana; e, por isso, necessita que os limites setoriais ligados ao transporte sejam superados. Este novo entendimento de mobilidade, que foi rapidamente apropriado pelo campo das políticas públicas, “abre um novo campo para a arquitetura e o urbanismo direcionados aos projetos dos espaços da mobilidade.” (Ibidem, p. 41). No que concerne o transporte urbano, as atuais dinâmicas urbanas colocam em movimento uma série de novas técnicas de transporte e estocagem, onde o automóvel individual, os transportes ferroviários de alta velocidade, os transportes aéreos e as telecomunicações possuem uma importância maior. Existem alguns problemas principais ligados ao transporte urbano, tais como o predomínio do automóvel e sua dependência, o congestionamento nas áreas urbanas, e os desafios de um sistema de transporte multimodal no meio urbano. Os dois primeiros problemas são amplamente conhecidos e discutidos, não sendo portanto o foco nesta monografia. Entretanto, a expansão contínua das áreas urbanizadas aumenta os custos de

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construção e operação dos sistemas de transporte coletivo, que passam a ter que cobrir áreas mais extensas, cujas demandas nem sempre viabilizam sua implementação, devido à baixa densidade. Como ressalta Izaga,

A falta de planejamento e as ações descoordenadas entre o uso do solo e os transportes, também têm induzido à urbanização das áreas periféricas, onde seus moradores correm o risco de ficar isolados sem transporte, ou que eles estejam disponíveis a custos acessíveis e convenientes. (Ibid, p. 57). Os principais desafios relativos ao sistema de transporte urbano multimodal estão na própria forma das aglomerações contemporâneas, cujo desenvolvimento está cada vez mais orientado para suprir as necessidades individuais ao invés das coletivas. A saturação das redes de circulação pelos automóveis limita a eficácia dos transportes coletivos, que no caso do Brasil são hoje principalmente constituídos pelo sistema de ônibus. As tentativas de resolver essa problemática passam desde a limitação do uso do automóvel, pela circulação exclusiva do transporte coletivo, ao incentivo do uso de outros modais, como a bicicleta, “inaugurando novos marcos para uma longa reflexão sobre os espaços públicos e as mobilidades urbanas.” (Ibid, p. 58). É importante entender que a redistribuição das atividades sobre o território e principalmente a dispersão dos empregos mudou, e muito, os fluxos nas cidades. No Brasil, e em outros países em desenvolvimento, os desafios para o sistema de transporte urbano multimodal são maiores, já que não apenas suas cidades ainda possuem grandes áreas por urbanizar, como também

As infraestruturas de transporte, quando existem, são em sua maioria antigas e obsoletas, localizadas em partes do território esvaziado pelos processos de desindustrialização, enquanto as novas áreas urbanizadas têm no automóvel o seu principal modo de deslocamento. (Ibid, p. 59). Enfim, a conectividade do sistema de transporte urbano multimodal implica em um desafio de gestão do transporte público, que deve considerar a transferência entre modais, quando em geral eles

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funcionam independentemente uns dos outros. Um outro conceito, tratado por Fabiana Izaga e de grande relevância para esta monografia, é o de nós de fluxos urbanos e os novos projetos das gares ferroviárias. As novas gares são consideradas como um lugar urbano onde se juntam territórios, e onde a articulação das escalas (edifício, bairro, cidade, território), e a sobreposição de suas temporalidades (políticas, atores, representações), recolocam a questão da arquitetura da mobilidade no contexto atual das redefinições do projeto urbano de cidade. Assim, Izaga assinala que o significado do termo “gare” evoluiu do conceito do edifício destinado simplesmente à recepção dos viajantes, e passou a ser associado a múltiplos espaços destinados a saída, chegada e troca, formando “polos de trocas multimodais”. É neste sentido que a autora

(...) emprega o termo “lugar-gare” e “lugarmovimento” (estas duas acepções são utilizadas para indicar a confluência do meio urbano e dos transportes, como também como resposta ao conceito de “não-lugar” empregado por Marc Augé), não como um edifício isolado, mas como um lugar público formado de diversas entidades espaciais, um todo de espaços suscetíveis de realizar uma mediação entre a dimensão do deslocamento, ligado ao distanciamento, e aquele doméstico, no interior do qual cada um pode encontrar sua ancoragem. (Ibid, p. 82). Por fim, o que todos esses novos conceitos, noções e investigações parecem apontar é que a territorialização das redes ligadas ao movimento não se limita apenas à integração física, urbanística e paisagística das infraestruturas, mas aborda também a articulação de escalas, a hierarquização e a interconexão das redes de transporte e circulação, na qual a forma urbana é o que determina a arquitetura da circulação e a gestão dos fluxos. Segundo Fabiana Izaga, o fato de os espaços destinados ao movimento serem ancorados no território traz dificuldades, dado que se trata da união de diferentes lógicas atuando sobre eles. Os problemas ocorrem tanto porque cada uma dessas lógicas necessita de um recorte territorial próprio, como também porque

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dificilmente quem concebe as grandes estruturas leva em conta as características do meio onde elas se inserem. “Isto conduz a que, em geral, o encontro entre territórios e redes técnicas seja marcado pela ausência de articulação entre escalas, independentemente do impacto e do tamanho das infraestruturas.” (Ibid, p. 80). Dito isto, o que costuma acontecer é que a escala predominante é a dos fluxos que a infraestrutura conduz, e não do território onde ela se insere, impondo-se sobre este, seja ele urbanizado ou não. No caso do projeto deste trabalho final de graduação e do território onde ele se assenta, a transição de escalas foi um desafio. A escala da infraestrutura (o novo terminal de ônibus) de fato condiz com o fluxo que ela conduz, assim como seu partido formal se deu para melhorar a fluidez e a rapidez dos ônibus. Entretanto, a primeira decisão do projeto, o partido conceitual dele (elevar a plataforma de ônibus do térreo), foi tomada pensando na escala dos pedestres e para permitir que o território fosse atravessado e tomado por eles, como acontece em toda sua adjacência. A transição entre essas escalas é feita não apenas pelos meios de circulação vertical, mas também através do espaço público criado abaixo do terminal e ao longo do eixo tratado, que transita entre diferentes velocidades (trem, metrô, ônibus), em diferentes velocidades (a pé ou de bicicleta), além de possuir espaços de lazer, de encontro, de retiro e de eventos, como já foi explicado anteriormente. Foi uma tentativa de criar o que se tem chamado de “pontos-derede”. Trata-se de uma ideia oriunda do campo dos transportes e que vê os espaços ligados ao transporte urbano, em especial seus pontos de saída e de chegada, como privilegiados no território em relação aos locais de serviços das redes, à acessibilidade, à localização e ao ambiente urbano. Segundo Izaga,

Fundada no princípio da nodalidade (...), o conceito sinaliza o interesse no cruzamento de linhas de transporte e na reflexão da interface entre os seus diferentes modos. Coloca ênfase também na oposição entre repouso e movimento, conduzindo à pesquisa sobre os locais de espera e os serviços que pode haver em uma estação, ligados ao comércio e à informação ao passageiro. (Ibid, p. 81). O ponto-de-rede deve responder, igualmente, finalidades múltiplas,

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desde as atividades locais até outras atividades que possuem relação direta com os fluxos tratados no projeto. Neste sentido, um ponto-de-rede não é apenas um elemento da infraestrutura, mas uma outra forma urbana, resultado de interações diversas e múltiplas, consequência das tensões entre lógicas distintas, demonstrando tanto a lógica da rede, quanto as características do seu local de implantação. O processo de criação de um ponto-de-rede não foge aos princípios gerais de complexidade das formas urbanas, mas mesmo assim possui suas próprias lógicas, e sua dimensão circulatória o diferencia dos demais elementos do tecido urbano. Nota-se aqui, novamente, a semelhança com o projeto proposto: ele possui em seu partido conceitual e formal, tanto a lógica da rede quanto as características do seu local de implantação, já que foram ambas as lógicas que definiram os partidos em si. E mesmo assim, é um elemento que se diferencia, e muito, do tecido urbano.

Figura 12: Perspectiva isométrica do terminal proposto. Fonte: elaboração da autora.

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O autor que criou o conceito de ponto-de-rede, Agnès Sander, citado na tese de Izaga, também fala da noção de “cabeça de rede”, que é destinada a dar reconhecimento, visibilidade e legibilidade à infraestrutura, a partir do exterior, em seu ponto de acesso (Ibid, p.81). A estrutura estaiada, com mastros de mais de 40 metros de altura, e a cobertura central, com suas membranas atirantadas, à semelhança de velas em um barco, contrastam completamente com o entorno baixo, de pequenos sobrados e galpões industriais. Mas essa decisão foi precisamente para tornar este nó de mobilidade visível e reconhecido de longe, dada a sua importância para o bairro e para a zona sul de São Paulo.

Figuras 13, 14 e 15: fotos das maquetes elaboradas para o estudo do impacto visual da estrutura e das coberturas. Fonte: Elaboração e acervo da autora.

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Depois de definidos os conceitos e noções de mobilidade, acessibilidade e de transporte coletivo público, é importante entender a história dessas questões na cidade de São Paulo, seus atores e sua dinâmica atuais.

Os modais em São Paulo Em sua dissertação de mestrado, Yara Baiardi* diz que os modos de circular no território desta cidade são resultado tanto das políticas públicas adotadas nas últimas décadas, como também da ausência delas em âmbito federal, estadual e municipal (BAIARDI, 2012, p. 33). Além disso, a dinâmica da mobilidade urbana depende de uma série de agente e órgãos públicos, como por exemplo a CPTM, o Metrô, a CET, entre outros, e também de interesses políticos e privados. A cidade de São Paulo possui um conjunto de redes de modais diferentes, que se sobrepõem, se interligando por vezes sim e por vezes não. Os principais deles são o trem, o metrô, o ônibus, o automóvel, a bicicleta e o pedestre. Entender a história de cada um desses modais é importante para compreender a atual dinâmica do movimento na cidade. As linhas férreas no Brasil tiveram um importante papel de desenvolvimento em algumas cidades. A cidade de São Paulo, por exemplo, era um importante entroncamento ferroviário, com uma localização privilegiada, entre o porto de Santos e as cidades produtoras de matéria-prima no interior do estado. Por conta disso, especialmente entre 1850 e 1950, as linhas férreas tinham o protagonismo na mobilidade tanto de pessoas quanto de cargas (Ibidem, p. 34) Como os fazendeiros eram os maiores empreendedores e investidores das linhas férreas, quando a crise econômica de 1929 os atingiu, elas se tornaram obsoletas e passaram para o controle do governo federal. Quando Juscelino Kubitschek se tornou presidente do país, [*] Yara Baiardi é Arquiteta e Urbanista (2006), Mestre (2012) e doutoranda pela Universidade Presbiteriana Mackenzie em regime de co-tutela com a Leibniz Universität Hannover. Atualmente desenvolve projetos urbanos e pesquisa na área de mobilidade urbana e espaço público. Desde 2014 leciona nas áreas de Urbanismo e de Planejamento Urbano e Regional.

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o governo incentivou a indústria automobilística norte-americana a se instalar e se desenvolver no Brasil, e o sistema ferroviário como política pública de transporte de coletivo de passageiros passou a ser abandonado. A partir de 1992 as linhas férreas da Região Metropolitana de São Paulo passaram a ser gerenciadas pela CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) (Ibid, p. 38). O outro sistema sobre trilhos que existe em São Paulo é o metrô. “A cidade de São Paulo foi a primeira cidade no Brasil a ter o serviço de metrô disponibilizado à população.” (Ibid, p. 38). A empresa, Companhia do Metropolitano de São Paulo, conhecida como Metrô, foi constituída em 1968 e está subordinada à Secretaria dos Transportes Metropolitanos (STM), que faz parte da área de infraestrutura do governo estadual. Atualmente, o Metrô de São Paulo possui cinco linhas em operação. Ao todo são 68,5 quilômetros de rede, 61 estações e 154 trens. Em 2010, foi inaugurado o primeiro trecho da Linha 4-Amarela, a primeira a ser operada em regime de concessão. Em agosto de 2015 teve início a operação comercial do Monotrilho da Linha 15 – Prata, um sistema de transporte inédito no Brasil. O metrô está integrado à CPTM nas estações Luz, Pinheiros, Tamanduateí, Brás, Palmeiras-Barra Funda, Tatuapé, Corinthians-Itaquera e Santo Amaro e aos outros modais de transporte na cidade de São Paulo. Diariamente, a malha metroviária transporta cerca de 4,7 milhões de passageiros (METRÔ). De acordo com Yara Baiardi, “A história de atuação dos ônibus em São Paulo é longa e tortuosa. De maneira geral, surgiu como concorrente às linhas de bondes, fixas no território, e foi fundamental na expansão desenfreada do território urbano.” (Ibid, p. 40). O sistema dos ônibus na cidade funciona baseado na articulação entre terminais de ônibus, pontos de parada e corredores exclusivos, num sistema tronco-alimentação implantado em 2003. De acordo com Baiardi,

O tronco seria o subsistema estrutural destinado a atender altas demandas e integrar diversas regiões às áreas centrais da cidade. No tronco é onde se localizam os corredores de ônibus e circulam veículos de médio e grande porte.

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Já o subsistema local seria a malha estrutural que atenderia aos deslocamentos internos nos subcentros, com linhas operadas por ônibus comuns e veículos de menor porte, como micro e mini ônibus, e alimentaria o tronco. (Ibid, p. 42). Os terminais são áreas onde as linhas têm seu ponto de chegada ou de partida, bem como servem de parada, descanso e troca de motoristas, entre outras funções estruturais que dão suporte ao sistema. Em São Paulo são, ao todo, 28 terminais municipais e um intermunicipal. Quanto às paradas, existem 19 mil demarcadas por um totem metálico ou de madeira ou eventualmente por uma cobertura, distribuídas por todo o território. Já os corredores são faixas exclusivas para ônibus e foram criados para distribuir melhor os veículos nas vias, evitar a competição por espaço nas vias com os veículos particulares, e melhorar a regularidade dos ônibus na rede, sistema baseado no modelo do BRT da cidade de Curitiba (SPTrans). O planejamento e programação das linhas, frota, fiscalização, arrecadação, contratação e remuneração das empresas operadoras está sob o comando da SPTrans desde 1995. Por último, além do sistema municipal de ônibus, existe o sistema intermunicipal de ônibus, comandado pela EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos). Trata-se de uma empresa controlada pelo Governo do Estado de São Paulo e vinculada à Secretaria de Estado dos Transportes (assim como o Metrô), que fiscaliza e regulamenta o transporte metropolitano de baixa e média capacidade nas três Regiões Metropolitanas do Estado de São Paulo (Ibid, p. 43). Com relação ao automóvel, seu protagonismo no sistema de transporte na cidade começou a partir dos anos 1950, com a adoção do modelo viário baseado no Plano de Avenidas (elaborado na década de 1930 e implantado na década de 1940 com o então prefeito Prestes Maia), e com a ajuda econômica e do desenvolvimento industrial do governo norte-americano, em detrimento do incentivo e modernização contínua do transporte público (Ibid, p. 46). O incentivo ao transporte individual motorizado continua sendo o principal investimento, tanto em termos de economia (incentivos fiscais para a compra de automóveis, por exemplo), quanto em termos de infraestrutura (com a contínua construção de vias, viadutos, marginais etc.). Baiardi explica que:

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(...) a opção pela circulação sobre pneus permitiu a construção de loteamentos longe do Centro, dispersos e sem infraestrutura, de baixa densidade principalmente se comparado ao padrão anterior concentrado em torno dos trilhos. (...) Observase também o fenômeno de segregação urbana no espaço, atrelada ao afastamento da população dos serviços e investimentos públicos. (Ibid, p.46). Apesar de o automóvel ser um dos principais meios de transporte em São Paulo, sua integração com o transporte público é tímida. Atualmente, a prefeitura criou o programa E-Fácil, onde o usuário deixa o veiculo num estacionamento localizado ao lado das estações contempladas, a um preço acessível, e recebe dois bilhetes para usar no Metrô, CPTM ou ônibus da SPTrans. A tarifa de integração vale por 12 horas (Ibid, p. 50). A engenharia de tráfego é de responsabilidade da empresa pública Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), e sua função é “planejar e implantar, nas vias e logradouros do município, a operação do sistema viário, com o fim de assegurar maior segurança e fluidez no trânsito.” (CET). O modo de transporte mais utilizado na cidade de São Paulo é o pedonal. Segundo a última pesquisa Origem e Destino (OD), de 1997, são oito milhões de viagens realizadas a pé pelos paulistanos. Trata-se do modo mais sustentável de movimentar-se, o que é refletido na melhoria da vida urbana, na qualidade do ar, na saúde pública, na promoção da inserção social e na redução dos índices de violência e de criminalidade. Entretanto, “(...) é tratado de forma restrita pelos responsáveis por administrar e planejar a cidade, perdendo qualidade na principal infraestrutura urbana em que ocorre a caminhada: a calçada.” (Ibid, p.52). De acordo com Ermelina Malatesta, citada por Baiardi,

Os pedestres foram lançados a toda sorte de descontinuidades, desinformação, rampas, buracos, desníveis, intermináveis esperar, sustos, medos cujo fenômeno ressalta a importância de rever paradigmas do desenho urbano, direcionando-os para o seu caráter ambiental e de valorização da paisagem através da qualificação dos espaços e da infraestrutura da caminhada, concebendo-a como um ecossistema próprio que,

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ao abrigar a forma mais orgânica de transporte, integra-se ao ecossistema urbano da cidade de São Paulo, (...). (Ibid, p. 52). No Brasil, existe o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) que estabelece as normas de circulação em toda rede viária do país. Segundo o CTB, a calçada é o local para o exercício do modo de transporte a pé, parte da vida junto às edificações e completamente separada do leito viário. As calçadas são separadas em três faixas: duas laterais que abrigam mobiliário urbano, sinalização e vegetação, e uma central que comporta o fluxo de pessoas e, por isso, deve ser livre de obstáculos. A responsabilidade da construção e da manutenção das calçadas são do proprietário do imóvel lindeiro a ela. Por fim, o último modal a ser tratado aqui da cidade de São Paulo é a bicicleta. Por ser um modo de transporte econômico e sustentável em comparação aos modos motorizados, a bicicleta tem sido cada vez mais incentivada pelo governo municipal, e utilizada pelos cidadãos (houve um aumento no número de viagens por bicicleta no município de São Paulo de acordo com os resultados das últimas pesquisas de Mobilidade do Metrô). A atual gestão da prefeitura do município tem investido na ampliação e adequação das infraestruturas cicloviárias da cidade. Atualmente, São Paulo possui 464 quilômetros de vias com tratamento cicloviário permanente, sendo 433,7 Km de ciclovias/ ciclofaixas e 30,3 Km de ciclorrotas. Entre os terminais de ônibus e estações de trem e metrô existem 6247 vagas em bicicletários e 121 paraciclos públicos instalados. Além das infraestruturas permanentes, a cidade possui 120 Km de ciclofaixas operacionais de lazer, que funcionam aos domingos e feriados, das 7h às 16h. Para completar o sistema cicloviário existem dois programas públicos de bicicletas compartilhadas, o Bike Sampa e o CicloSampa, que oferecem mais de duas mil bicicletas de empréstimo para a população (CET). Cada um dos modais aqui tratados possui um agente, um ator público envolvido. Os principais deles – CPTM, Metrô, SPTrans, EMTU e CET – são independentes entre si, sendo de esferas governamentais distintas ou não, dificultando a integração modal em todos os níveis, especialmente o operacional. Além disso, não só o leque envolvido na mobilidade urbana é maior do que esses quatro agentes, como

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também os modais acabam competindo e se sobrepondo, tornando a mobilidade urbana de São Paulo fragmentada. Dado que o local do projeto já possui todos os modais citados, mas que não só não estão conectados entre si, como alguns deles possuem fluxos desorganizados e que se atrapalham uns aos outros, o objetivo do projeto, como já foi dito, é organizar esses fluxos e melhorar a qualidade de circulação de todos os meios de transporte, em especial os de uso coletivo e os não motorizados.

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Nร S um nรณ para nรณs


O Terminal Santo Amaro, localiza-se no distrito de Santo Amaro que, juntamente com os distritos Campo Belo e Campo Grande, compõem a subprefeitura de Santo Amaro. De acordo como o IBGE, o distrito de Santo Amaro possui uma área de 15,60 Km2 e uma população, no último censo, de aproximadamente 71 mil habitantes, totalizando 45 habitantes por hectare.

Figuras 16 e 17: localização da subprefeitura de Santo Amaro em São Paulo. Fontes: https://multigraphias.wordpress.com/2011/05/08/mapa-1-politico-admcdr/ e Google Earth; elaboração da autora.

A história de Santo Amaro Localizada a aproximadamente 20 quilômetros do Centro, a região de Santo Amaro sempre teve uma dinâmica urbana própria, característica de sua história. A origem do bairro de Santo Amaro remete a uma missão jesuíta à margem do rio Jurubatuba (atual rio Pinheiros, desde 1950). Na década de 1560, “o padre José de Anchieta observou que era possível constituir ali um povoado devido ao numero de índios catequizados e colonos instalados na região. Rezou uma missa com a imagem do santo e a aldeia ficou oficialmente conhecida como Santo Amaro.” (BAIARDI, 2012, p. 72). Ao longo de dois séculos, no período entre 1600 e 1840, o local

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passou por uma série de transformações políticas, econômicas e sociais: em 1609 formou-se a sociedade para a Fábrica de Ferro de Jeribatiba; em 1686 a capela lá existente foi elevada a freguesia de Santo Amaro; em 1827, Dom Pedro I determinou o assentamento de imigrantes alemães para o povoamento da região; por fim, em 1832 foi elevada a Vila de Santo Amaro (Ib idem, p. 72). A região de Santo Amaro produzia parte da batata, da marmelada, da farinha de mandioca, do milho, da carne, da madeira, da areia e das pedras que eram consumidos na cidade de São Paulo. Por isso, foi construída a estrada Carris de Ferro, que ligava as duas regiões, e que foi finalizada em 1866 (Ibid, p. 73). Entre os anos de 1832 e 1935, ou seja durante um século, Santo Amaro foi elevado a município. Quando da inauguração do Aeroporto de Congonhas, em 1934, o município foi extinto e incorporado novamente ao município de São Paulo, uma vez que era importante para a cidade ter um aeroporto do porte de Congonhas. “Em 1913, a linha de Carris de Ferro foi substituída pelas linhas do bonde da Light, que em 1968 foi desativada.” (Ibid, p. 73). Ao longo dos anos do século XX um conjunto de transformações e construções do território impulsionaram o crescimento do bairro ao redor do núcleo original: as construções das barragens da Light, que criaram as represas Guarapiranga em 1907, e Billings em 1924; a eletrificação dos antigos bondes a vapor em 1913; a construção da autoestrada Washington Luís em 1928; a construção da Avenida Santo Amaro em 1950; e por fim a construção da estação Santo Amaro da CPTM em 1986. Entre o fim do século XIX e início do XX, Santo Amaro consolidouse como um polo de emprego industrial, já que foram construídas grandes indústrias ao longo das imediações da linha férrea dos rios Pinheiros e Tietê. No auge deste processo industrial, diversas vilas operárias começaram a surgir na zonal sul da cidade de São Paulo, abrigando os operários que chegavam de vários estados do Brasil e do interior paulista. (Ibid, p. 74).

Por fim, na história do bairro, destaca-se a região do Largo 13 de Maio, centro comercial e serviços do distrito, e atualmente local de referência para a população da periferia do extremo sul de São Paulo. Foi implantado sobre uma elevação

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topográfica que domina a várzea do Rio Pinheiros. Fruto de uma nucleação espontânea, o largo e seus arredores aglutinam uma série de serviços. Antes da implantação do terminal de ônibus na Avenida Padre José Maria era possível ter uma abertura visual em direção ao Rio Pinheiros por esse eixo. (Ibid, p.75).

Figura 18: mapa de Santo Amaro em 1958. Fonte: http://www.geoportal.com.br/ memoriapaulista/

Figura 19: mapa de Santo Amaro em 1974. Fonte: Gegran.

Figura 20: mapa de Santo Amaro em 1994. Fonte: Emplasa.

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O projeto O Largo Treze é, como dito, uma importante centralidade da Zona Sul de São Paulo que liga, pelo Terminal Santo Amaro, através de várias linhas de ônibus, a periferia da zona sul até o centro da cidade, pelo Terminal Bandeira, no Vale do Anhangabaú, ou pelo Terminal Princesa Isabel, na praça Princesa Isabel. Trata-se do principal nó de conexão intermodal da zona sul. Ali estão duas estações de metrô (Santo Amaro e Largo Treze), uma estação da C.P.T.M. (Santo Amaro) e o Terminal de ônibus Santo Amaro. De dez corredores de ônibus que existem na cidade de São Paulo, três passam pelo Terminal Santo Amaro: Jardim Ângela/Guarapiranga/ Santo Amaro, Parelheiros/Rio Bonito/Santo Amaro; e Santo Amaro/Nove de Julho/Centro (SPTrans). A estação Santo Amaro da CPTM é uma das 8, dentre 89, que integra o sistema ao Metrô. O programa Ciclovia Rio Pinheiros tem apenas 5 pontos de acesso nos 21,5 Km de percurso paralelo ao rio, sendo um deles a estação Santo Amaro da CPTM (sendo que esta não possui bicicletário).

Figura 21: Mapa dos transportes públicos coletivos na área de intervenção. Fonte: Google Earth; elaboração da autora.

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Destes pontos, especialmente do terminal de ônibus, a população da zona sul se desloca para o centro da cidade, onde trabalham, ou para os equipamentos públicos da região, como por exemplo o Poupatempo Santo Amaro. No entanto, nenhum desses modais está devidamente conectado: nem entre si nem com os principais equipamentos urbanos. O eixo Leste-Oeste, que liga a estação Santo Amaro da CPTM ao Largo Treze, é mais uma ruptura no tecido urbano da cidade, tornando-se uma barreira, como são hoje os rios e as linhas férreas, do que uma conexão de fato. São 1200 m de extensão, que hoje são utilizados como estacionamento dos ônibus do terminal, espalhados pelo viário. Além do número de vias ser muito maior que o necessário, as áreas entre elas estão completamente descuidadas. Tal eixo é uma ligação muito importante, especialmente para pedestres, apesar de isto ser desconsiderado no trato do espaço público, fato constatado pelo próprio desenho urbano da área: as vias são feitas para automóveis e ônibus, não existem atrativos, acessibilidade ou passagens para pedestres, a falta de iluminação pública e os muros que cercam as grandes glebas tornam a travessia insegura. São aproximadamente 5 Ha de área subutilizada dentro de um bairro e de uma região onde há muitos equipamentos e infraestrutura (SESC, Poupatempo, SENAI, shoppings, universidades, escolas públicas e privadas para todas as idades, hospitais, UBS e outros equipamentos de saúde, clubes, comércios e serviços, igrejas, órgãos públicos, transporte) e faltam espaços públicos, abertos e verdes (num raio de 3 Km há apenas uma praça). A partir do estudo do bairro de Santo Amaro, da localização do atual terminal urbano Santo Amaro e dos fluxos de ônibus, pedestres, carros e ciclistas, o intuito do projeto do TFG é propor um novo terminal urbano de ônibus, e a qualificação do espaço público do eixo que passa por ele e liga a estação Santo Amaro da CPTM ao Largo Treze.

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Figura 22: Diagrama do fluxo de carros. Fonte: MDC; elaboração da autora.

Figura 23: Diagrama do fluxo de ônibus. Fonte: MDC; elaboração da autora.

Figura 24: Diagrama do fluxo de pessoas. Fonte: MDC; elaboração da autora.

Figura 25: Diagrama de todos os fluxos acima. Fonte: MDC; elaboração da autora.

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Figura 26: Mapa dos principais equipamentos da região. Fonte: MDC; elaboração da autora. 1.Expotransamérica/2.CitybankHall/3.Teatro Alpha/4.Correios/5.Hospital da Luz/6.Escola Estadual Professor Alberto Conti/7.Paço Cultural Júlio Guerra/8. Subprefeitura de Santo Amaro/9.Hospital Regional Sul/10.Senai Ary Torres/11. Poupatempo Santo Amaro/12.SESC Santo Amaro/13.Uninove/14.Shopping Largo Treze/15.Escola Estadual Paulo Eiro/16.Unisa/17.Centro esportivo municipal Joerg Bruder/18.Largo Treze de Maio - Catedral de Santo Amaro/19.Hospital Santo Amaro/20.Hospital Saúde Secular/21.Nova 25 de março

Para melhora dos fluxos e conexões da região, visando especialmente o pedestre, alguns trechos do viário urbano foram refeitos, atravessando quadras de maneira a possibilitar ao pedestre a ligação direta entre o terminal urbano e os principais equipamentos do entorno. O segundo passo foi determinar o local que os ônibus ocupariam. Dada a falta tanto de espaço público livre e verde quanto de conexão entre os dois lados (norte e sul) do eixo, foi decidido que o nível do solo deveria ser ocupado pelos pedestres. O ônibus, portanto, ou ficaria num nível acima ou no subsolo. A segunda opção tinha a grande desvantagem de necessitar de um sistema de exaustão potente para ser possível que os passageiros ficassem num ambiente fechado com tantos ônibus juntos. Por conta disso, ficou decidido que a plataforma dos ônibus seria elevada.

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Figura 27: Diagrama do partido projetual. Fonte: Elaboração da autora.

Depois do viário refeito e da plataforma elevada, foi desenhado o terminal em planta, a partir do estudo das linhas de ônibus que por ali passam. Como as principais linhas de ônibus que alimentam esse terminal chegam a ele e saem dele pela mesma via (ou pela avenida Adolfo Pinheiro ou pela marginal Pinheiros), foram feitas duas pistas em formato de U. Dessa maneira os ônibus não se cruzam nem entre si nem com pedestres ou outros modais de transporte e a plataforma de desembarque de uma linha é a de embarque da outra, facilitando a troca entre passageiros.

Figura 28: Diagrama do partido formal do projeto. Fonte: Elaboração da autora.

Como o intuito de elevar o terminal de ônibus era proporcionar um espaço livre para o pedestre, enchê-lo de pilares que sustentassem as plataformas não poderia ser uma opção. Dado que as pistas dos ônibus teriam uma carga muito alta, tanto pelo peso quanto pelas forças de aceleração e frenagem destes, foi decidido usar soluções estruturais de pontes viárias. A solução escolhida foi o estaiamento. Cada uma das plataformas é sustentada por um conjunto de quatro pilares de concreto armado que possuem, cada um, seis estais. Estes são elementos de aço galvanizado com alta resistência à tração, que possuem cabos compostos por feixes de cordoalhas paralelas. Eles são encarregados de transferir os esforços do tabuleiro (no caso a plataforma de ônibus), para os mastros (pilares). Os pilares têm 46,50 metros de altura e possuem uma seção circular que varia entre dois metros de diâmetro na base até 50 cm de diâmetro no

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término. Cada um desses pilares é coroado com uma peça metálica, chumbada no concreto, onde se ligam os estais. A ancoragem dos estais nos pilares é fixa e feita através do chumbamento das cordoalhas. Já a ancoragem no tabuleiro é regulável (para ser possível a manutenção da estrutura) e as cordoalhas são tensionadas individualmente. As pistas onde os ônibus fazem as curvas possuem uma estrutura independente do estaiamento, sendo sustentadas, cada uma, por cinco pilares de seção circular de 2,00 m de diâmetro. A circulação vertical dos pedestres é feita por dois elevadores, duas escadas fixas e duas escadas rolantes para cada plataforma. Já a circulação vertical dos ônibus é feita por rampas de inclinação de 10%.

Figuras 29, 30 e 31: detalhes da solução estrutural e isométrica diagramática do funcionamento da estrutura do projeto. Fonte: Elaboração da autora.

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O formato do terminal determinou uma praça central, que tem restaurantes, cafés e outras atividades. O espaço embaixo das rampas de acesso dos ônibus às plataformas foi utilizado para as áreas técnicas do terminal (como vestiários e refeitório para os funcionários, administração das empresas operantes, guichê etc), banheiros públicos e comércio voltado para as ruas paralelas do terminal. A praça central mencionada acima precisava de uma cobertura, que sombreasse algumas áreas, mas que permitisse a entrada de sol também. Decidiu-se que esta cobertura será feita de membranas de policarbonato, presas em cabos de aço atirantados nos pilares principais do terminal. Abaixo dessa praça foi criado um estacionamento para os ônibus, que hoje ocupam todo o espaço público da área. Para a área de espera dos passageiros, foi definida uma cobertura de estrutura metálica, também atirantada nos pilares, com acabamento em vidro. Trata-se de uma “cobertura borboleta”, com uma viga-calha central, que recolhe a água, que desce pelos pilares. Depois de projetados terminal e praça, e refeito o viário local, criouse a possibilidade da existência de um parque linear ao longo de todo o eixo estudado. Esse parque une, através do espaço público, a estação Santo Amaro da CPTM ao Largo Treze, local de intenso movimento e comércio. O parque possui atividades e recintos organizados de acordo com a lógica do uso do solo adjacente a ele: na zona da estação da C.P.T.M. há uma grande área verde e massas arbóreas, já que é um local de passagem de pedestres e ciclistas que chegam ou saem da estação, e indústrias ocupam as glebas do perímetro. Em seguida, uma série de atividades como pistas de skate, quadras poliesportivas, anfiteatro aberto, locais de convivência para crianças e idosos, estão propostas ao lado da área mais residencial. No centro do terminal está a praça já descrita e, no final do parque, já próximo ao Largo Treze, tem-se novamente uma área mais verde. Nas páginas seguintes estão os desenhos técnicos do projeto, todos de elaboração da autora.

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EU minha conclusĂŁo (nĂŁo) final


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A cidade é um ilusão. Como utopia realizada, ela não existe em parte alguma. Mas os termos dessa ilusão (transparência, luz, circulação) fazem alusão ao que poderia, talvez, existir um dia (um mundo unificado e plural, transparente a ele mesmo, que evidentemente não existe, não é nem mesmo concebível hoje, mas cuja hipótese dá um sentido à nossa história). Marc Augé, mobilidade.

Por

uma

antropologia

da

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Após as leituras e os diálogos aqui articulados, as análises do território do Largo Treze, a coleta de dados e a proposição projetual, entendo que os principais objetivos colocados como meta para este trabalho final de graduação foram alcançados. Entretanto, não escreverei aqui uma conclusão final desta monografia. Em primeiro lugar, porque não acredito que haja conclusão de fato, especialmente sobre um assunto tão complexo quanto o que foi tratado aqui. Em segundo lugar porque não vejo necessidade em resumir, mais uma vez, tudo que já foi dito. A síntese das questões teóricas aqui expostas está no projeto proposto. Este capítulo será, por tanto, uma reflexão pessoal sobre todo o processo do TFG e, ao contrário das afirmações de uma conclusão, os questionamentos que permanecem. Tratar de mobilidade urbana significa tratar de cidade, e isso significa tratar de sociedade. Ficou claro, durante esse quase um ano de pesquisa e projeto, que trabalhar com cidade não é fácil. Sempre projetamos na cidade e isso por si só já é um desafio. Mas projetar com a cidade e para a cidade, eu diria que beira o impossível. São tantas as variáveis a serem consideradas que é como resolver uma equação polinomial (mas sem as regras e a receita básica, já que estamos tratando de um campo humano e não de um campo exato). E, claro, nunca todas as questões são solucionadas. Temos então que escolher os ângulos que vamos olhar, os problemas que vamos tratar, os agentes que vamos ouvir. Isso significa que nossa pesquisa e nosso projeto sempre serão incompletos e sempre serão parciais. As leituras dos autores aqui citados, bem como do território escolhido para projeto e das lógicas nele instaladas mostraram quão íntima é a relação entre sociedade, cidade e mobilidade. Mostraram que trabalhar com um é trabalhar com todos, que modificar um é modificar os outros, num ciclo que parece não ter fim. E, pelo visto, não tem mesmo, já que parece que este ciclo faz parte da (ou é a própria) História. E assinalaram, principalmente, que o campo da arquitetura e do urbanismo não pode, não deve e nem mesmo consegue ser tratado sem interdisciplinaridade. Faz parte o estudo da sociologia, da antropologia, da engenharia e de muitos outros campos do conhecimento.

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Os processos de pesquisa, leitura e projeto apontaram também, ao mesmo tempo, a dificuldade e a necessidade que é unir teoria e prática, pesquisa e projeto em arquitetura e urbanismo. Dificuldade porque não só, erroneamente, tratamos os dois campos separadamente, mas também porque uni-los deixa ambos muito mais complexos. Necessidade justamente por essa complexidade que emana dessa união, o que torna o desenvolvimento da arquitetura e do urbanismo mais próximo do real. No entanto, todos os diálogos com os autores me fez questionar o papel da arquitetura na sociedade e o meu futuro papel como arquiteta e urbanista. Dado que os projetos de arquitetura e urbanismo, seja quando tratam de mobilidade urbana ou não, afetam nossas cidades e suas formas urbanas, e que estas afetam as relações sociais e a sociedade como um todo, que direito temos nós, arquitetos, de nos colocar acima de tudo isso (mesmo quando consideramos todos os fatores que podemos e mesmo quando temos a melhor das intenções) e transformar todas essas dinâmicas? Como ou por que nos dizemos conhecedores o suficiente para ditar o uso que o solo deve ter, para estabelecer os programas e as necessidades de um novo empreendimento ou da requalificação do espaço público? Claro, se não projetamos nada, se não influenciamos na forma urbana e na sua gestão, não exercemos o que talvez seja a principal “função” da nossa profissão. Entendo, que a “solução” para esse dilema é conciliar o máximo possível teoria e prática e, especialmente, transformar o campo do planejamento, do projeto e da gestão das cidades cada vez mais interdisciplinar. Talvez seja tudo uma grande ilusão. E sim, propor a demolição do atual terminal de ônibus, a construção de outro, a transformação do eixo viário em um parque, a imposição de alguns usos ao longo dele, tudo isso foi apenas um exercício acadêmico. Mas ele é feito, diariamente, no mundo todo, transformando todas as sociedades.

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VĂ“S(ES) os interlocutores que fizeram dessa monografia um diĂĄlogo


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