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Conheci Anthon Serge nos anos 1990, em meio aos trabalhos e sempre foi multifacetado. Nessa época já era editor e diretor de uma revista cultural e musical, de circulação nacional. Antes havia feito grandes obras de artes, pinturas à óleo, que foram parar no exterior Jornalista, editor, fotógrafo, multi-instrumentista, compositor, artista plástico, pesquisador, estudante de Geografia, conhecedor e profissional de Eletricidade, escritor carioca. O cara não sossega. Em meio às pesquisas, pôs-se a escrever "Tombos & Sonhos" livro de ficção onde retrata um comportamento mental e saudoso, nos remetendo ao passado vivido. Lição de aprendizado, para não cometermos erros no futuro. Mergulha em perguntas que não se têm respostas. Segundo o autor: nem tudo precisa ser explicado e nem tudo precisa ser entendido. Será que existe vida após a morte? Será mesmo que nossa mente nos remete a tudo isso? Será que poderemos nos perdoar pelo que fizemos de errado? Será mesmo que quando você se defronta com o espelho, aquela imagem é mesmo o reflexo de sua imagem? Essas e outras incertezas... Poderemos mudar ou não o modo de pensar ao ler "Tombos & Sonhos". De uma coisa tenho certeza: nos remete ao inconsciente. Indiscutivelmente, um livro para refletir sobre a vida. "Tombos & Sonhos" é um livro de ficção, baseado em fatos reais, garante o escritor, e tendo testemunhas como prova. Anthon empresta algumas de suas histórias para o personagem fictício 'Valentim'. Atento às coisas que aconteceram em sua vida, se propôs a colocar relatos de pessoas próximas que dão veracidade aos ocorridos. Elias Nogueira - Jornalista e Escritor
Houve uma época em que éramos mais ingênuos e acreditávamos em ideologias e crenças. Ele achava que seu caminho era a música, e eu pensava um dia me tornar um escritor. Bem, depois de muitas canções compostas por ele, e de alguns livros por mim publicados, concluímos que o destino ganhou uma mãozinha e dependeu bastante da nossa bem-vinda ingenuidade. Você precisa acreditar, para valer, em seus sonhos. Agora, ele resolve experimentar os livros. Vem com uma novela sobre reencarnações e dúvidas existenciais, aproveitando sua incrível história de tombos sucessivos. O título (Tombos e Sonhos) não é à toa: foram 87 acidentes que resultaram em traumas diversos, perda do baço etc. Acidentes com sua motocicleta foram uma constante. Não sabe quantas motos já teve. Uma vez, em Saquarema, atropelado (ele, junto com a moto) foi arremessado a uns dez metros, caiu em pé e saiu andando. Coisa meio sobrenatural. Daí, sua inspiração para escrever esse livro de estreia. Anthon coloca para o leitor as dúvidas e questiona: Teríamos uma data certa para morrer? O destino existe, ou apenas se trata de sorte ou azar? Sorte ele sempre teve. Muita. Embora continue ainda um tanto cético. Ele confessa que procura explicação em seus sonhos. Anthon é um sonhador contumaz. Contudo, a sorte e as premonições, às vezes, como as aparências, também enganam. Aprendera que saber interpretar os sonhos era mais importante que sonhar. E o atual sonho de Anthon é ser um autor lido. Lido por quem acredita que a vida sem os seus mistérios não tem graça, e que, para cada tombo há uma nova maneira de se levantar. Marcio Paschoal - Escritor, Biógrafo
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Anthon Serge
Tombos & Sonhos
Primeira Edição
Editora 3
Capa: Raphael Shammon Agosto de 2016
SUMÁRIO Prefácio
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Capítulo 1
O início de tudo
Capítulo 2
O acidente
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Capítulo 3
O sonho
19
Capítulo 4
Nathália
25
Capítulo 5
O ensaio
32
Capítulo 6
Encontro inusitado
37
Capítulo 7
A alegria de estar com todos
43
Capítulo 8
Belas Artes e Música
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Capítulo 9
Quando o sonho não é mais um sonho 60
Capítulo 10
Meu pai e a Contadora
76
Capítulo 11
Os irmãos
82
Capítulo 12
Descobrimento
85
Capítulo 13
Chico e Eduardo
97
Contato: furobasico@gmail.com Whatsapp: (22) 98828-0041
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Prefácio
O tempo é mesmo relativo
Ao passado voltamos sempre que nos lembramos de alguém, de algum lugar, de algum fato ou até mesmo quando um cheiro, de alguma forma, nos remete às lembranças. Viajar no tempo nunca foi problema quando se trata de ir a um passado recente desta vida vivida. Embora não possamos fazer nada para mudar o acontecido, aprendemos com nossos erros e nos tornamos seres humanos melhores. Contudo, ainda assim, fica o sofrimento de não ter tomado a decisão certa, de ter se deixado levar pelas circunstâncias, pelo comodismo. Como prever que aquela estrada não nos levaria onde sonhávamos chegar. Se soubéssemos das consequências, certamente, não teríamos dado o passo seguinte e mudaríamos o nosso futuro e o futuro daqueles que viveram conosco, de alguma forma, aquela situação. E, de certa forma, serão todos cúmplices da decisão tomada por um, embora o futuro reserve 5
para cada qual, um destino diferente. Se essa existência pode ser a consequência de outras vidas, então sinaliza que erramos inúmeras vezes e voltamos para consertar, mesmo sem saber o quê. Até mesmo pode ser considerado estarmos sempre tentando nos livrar dos resquícios de uma personalidade problemática, trazida, encarnada, enraizada de outras existências. Já parou para se olhar profundamente no espelho? De fato é você que está ali se olhando? Nunca passou pela sua cabeça que aquela pessoa te olhando é uma outra pessoa e que você está num corpo estranho? Alguém já te disse que você parece outra pessoa, ou que está mudado? Já te disseram que você se parece com alguém ou lembra alguém que você nunca viu? Alguma vez você conversou com uma pessoa estranha e te pareceu que já havia conhecido aquela pessoa de tão natural que foi aquele papo? Depois de um acidente quase fatal é comum as pessoas voltarem à vida de forma diferente do que eram antes do acidente. Não que elas sintam isso, mas algumas pessoas do seu relacionamento vão perceber mais que outras. Será que são elas mesmas que voltaram ou voltaram outras pessoas em seus corpos? Existem acidentes, inclusive filmados e expostos em redes sociais, onde pessoas saem ilesas, numa situação, praticamente, impossível de se safar. Acontece com uns, com outros não. Teríamos uma data certa para 6
morrer? O destino existe ou apenas se trata de sorte ou azar? Quantas vezes você se viu em dificuldades, sem saída, e pediu a Deus que te salvasse, e, de repente, a situação muda e você consegue respirar aliviado. Foi Deus que te salvou? Olhando para o céu, sabendo que o planeta terra é pequenininho em relação a outros milhões de vezes maiores; sabendo que o nosso sol é minúsculo em relação a outras estrelas; sabendo que a via láctea, que tem bilhões de estrelas como o nosso Sol, é tão imperceptível, ridiculamente pequeno, quando se trata de universo, fica a pergunta: Será que Deus realmente ouve os zilhões de pedidos, segundo-a-segundo, que os habitantes da terra lhe fazem? Seria possível? Ou é apenas o desejo de que isso aconteça? Onde estaria Deus no universo? Contudo, milagres acontecem. Como acontecem os milagres? Quem os faz? Essas são as dúvidas de todos, perguntas sem respostas. A ciência, à medida que avança em seus estudos vai desvendando alguns e também descobrindo outros desconhecidos mistérios, como os buracos negros. Sempre fui um curioso e leitor de assuntos ligados ao desconhecido. Preciso estar aprendendo constantemente sobre alguma coisa, qualquer coisa, desde que ache interessante, claro. E nesse sentido vou adquirindo certa desconfiança quanto às coisas que leio e co7
mentam como se fossem verdades absolutas. Estive acidentado diversas vezes, geralmente, em acidentes de motocicleta, mas também em acidente em cachoeira, acidentes em casa, acidentes de carro etc. Não vou afirmar que tenho sorte, pois ainda não associei sorte à destino, mas posso afirmar que a cada acidente a gente muda um pouco. Só de motocicleta foram 87 acidentes, muitos batendo fortemente com a cabeça em alguma coisa, como laterais de carros, meio-fio, e até atravessando o vidro frontal de um carro indo parar no banco de trás. Sou um sobrevivente sim, entretanto o assunto é muito mais profundo. Devo ter mudado muito. E mudei mesmo, segundo minha primeira esposa. O sofrimento de um acidente, durante e pós, tanto para quem é a vítima de fato, quando para os seus familiares, é algo de tamanho inexplicável. Uma over dose de sentimentos ruins que levam o corpo físico à exaustão beirando, muitas vezes o colapso. Meu nome é Valentim Braga e essa é a história que me lembro de minha vida.
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Capítulo 1
O início de tudo
Era o ano de 1972. Vivíamos no regime militar, muita coisa não se podia falar, entretanto existia uma certa ordem junto à população civil. Nas escolas estudávamos, além do currículo escolar normal, Educação Moral e Cívica e OSPB (Organização, Social e Política Brasileira). Quando a professora entrava na sala de aula, os alunos se levantavam e só podiam se sentar quando ela autorizasse. Para perguntar alguma coisa, levantávamos o dedo. Ninguém conversava em sala de aula. Existia um respeito aos professores e aos funcionários das escolas. Ao chegar no Científico (hoje Ensino Médio), poderíamos optar pelo Ensino Profissionalizante e já sair do segundo grau com uma profissão. Por falta de uma melhor opção, fiz Administração e estudei Sistema Binário (linguagem dos computadores). É bom lembrar que naquela época não existiam microcomputadores, notebooks, tabletes e nem tão 9
pouco celulares. Os computadores existentes eram do tamanho de uma ou duas salas inteiras, meros bancos de dados, com fitas rolando, usados principalmente por grandes instituições, como os bancos. Fora os estudos, sempre gostei de desenhar, era uma coisa natural. Nada ligado à escola convencional, pública, que frequentei. Embora tivesse boas notas em Educação Artística, não era por ali, por aquele conteúdo frágil que iria enveredar. Desenhar era como falar ou cantar, uma coisa que saia sem grande esforço. Aos 14 anos fui trabalhar de Office Boy numa agência de propaganda. Estudava de manhã e às 13:00 horas pegava no serviço. Passado alguns meses, já com alguma intimidade com as pessoas, decidi faltar às últimas aulas da escola (que, geralmente, eram de Educação Física ou de Música, e não reprovavam) para chegar um pouco mais cedo no trabalho - na hora da saída do almoço do pessoal -, para sentar na prancheta do desenhista e ficar ali, tentando fazer as coisas que o observava fazer nas minhas passadas, idas e voltas. Fiquei sem almoçar muitas vezes só para treinar fazer aquelas linhas com caneta nanquim; as colagens dos textos com aquela cola fedorenta (que chamavam de meleca); e a colagem do papel manteiga finalizando a arte-final. Em algumas semanas já tinha pegado a manha do assunto e fazia tudo sem nenhuma ajuda, mas poucas pessoas sabiam disso. 10
Numa sexta-feira chuvosa, o carro do desenhista quebrou num lugar sem muitos recursos e ele conseguiu um telefone emprestado de um botequim para avisar que não ia trabalhar, pois estava longe e explicou a situação. E, foi naquela sexta-feira que o telefone da agência não parou de tocar com os clientes passando anúncios para serem publicados no sábado e no domingo nos Jornais: O Globo, O Dia e Jornal do Brasil. Um desespero total do pessoal, sem arte-finalista para fazer as devidas artes. E, os anúncios teriam que ser levados e mostrados para os clientes antes de serem publicados. Ligaram para alguns free-lances, mas todos estavam ocupados. Naquele desespero, já à beira de começarem discussões apimentadas, me ofereci. Disse que sabia fazer e que já vinha treinando há semanas. Na falta de opção melhor, desespero e sem saída, me desafiaram dizendo: 'Então senta e faz'. Ao desafio, meus joelhos bateram, minhas mãos tremeram. Naquele primeiro impacto suei frio. Todavia, ao sentar na cadeira do desenhista a tremedeira deu lugar a uma consciência profissional que não saberia explicar de onde veio. Parecia que tinha feito aquilo a minha vida inteira (talvez até tenha feito em outra vida...). As pessoas em volta se olhavam e calavam-se. De repente um silêncio tomou conta da agência e só se ouvia: 'passa essa arte para ele'; 'já terminou a arte da Gillette!'; 'foi ele que diagramou esse texto?`; 'diz pro nosso desenhista que o cliente aprovou'... Eu fazia parte daquele 11
todo... Tive a sensação de estar em casa. No final do expediente o chefe me chamou em sua sala e disse o seguinte: 'Cara, você salvou o dia. Não tínhamos como sair dessa sinuca. Íamos perder muitos clientes para outras agências. Não posso te contratar como Arte-Finalista, pois já temos um, você sabe. Mas posso te promover a Assistente, o que você acha?`. Não sabia o que responder, o que falar, me segurei para não gaguejar. Balancei a cabeça sinalizando que sim enquanto a voz se acomodava novamente em minhas cordas vocais: - ‘Acho bom’, respondi. Aceitei, claro, e daquele dia em diante começou minha carreira como Arte-Finalista. Eu tinha 14 anos, quase 15, e ganhava como gente grande, nem tanto quanto um adulto, porém muito mais que um adolescente. Convivia com adultos, participava de conversas de adultos, saia para almoçar com adultos. Evitava falar sobre coisas de pessoas da minha idade para não parecer criança. Tinha medo de ser mandado embora apenas por ter falado alguma criancice. Então, quando não entendia alguma coisa fingia que estava sabendo. Quando falavam de sexo, ou faziam alguma brincadeira que tivesse sexo no meio, abaixava a cabeça e fingia estar concentrado em algum desenho. Eles me cutucavam, eu sabia que era pilha, mas não me atrevia a responder ou dar opinião sobre o que eu não tinha conhecimento. Foi nessa fase, com a cabeça baixa, que comecei a desenhar perfis de 12
mulheres. Inicialmente com lápis 6B, pois podia sombreá-los, dando-lhes um contorno com relevo. Depois só em naquim mesmo, com técnica própria. Havia um certo perfil que me encantava particularmente. Esse tinha um narizinho fino e pequeno, os lábios finos e o queixo ligeiramente avantajado. A testa era comprida. Não era um perfil de uma pessoa comum, ou de uma etnia conhecida, era mais. Era como se fosse uma paixão antiga, um amor que eu não via há anos, séculos, milênios, uma saudade interior doída. Alguém muito próximo, certamente. Depois de um tempo era só esse perfil que conseguia desenhar. Fiz muitos quadros em nanquim com ele. Aquela pessoa ficou na minha cabeça por anos, mas a vida seguiu e os desenhos ficaram em algum lugar, com alguém... no lixo, em alguma parede, não sei. 1976 Passados alguns anos, fui assumir a direção artística de uma agência de propaganda que ficava no bairro de São Cristóvão, zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Era o mesmo tipo de trabalho, mas os tempos haviam mudado e precisávamos fazer todas as artes na sexta-feira para entregá-las no sábado até o meio dia a fim de serem publicadas nas edições dos jornais de domingo. Pauleira! Começávamos às 8 da manhã da sexta-feira e terminávamos, quando o movimento 13
era bom, às 11 da manhã do dia seguinte, sábado. E, aí, os Moto-Boys saiam correndo para entregá-las nas redações dos jornais. Muita adrenalina, muita revisão de texto, muito cuidado com tudo, mas tudo muito rápido - equipe afinadíssima. Numa dessas madrugadas (não tão longas, pois terminamos às 4 da manhã), depois de tomar alguns cafés com o pessoal, peguei a moto e fui para casa. Na saída da Rua São Cristóvão, esquina com a rua do canal, um carro que havia avançado o sinal me pegou de frente. Daí para a frente o que vou contar é o relato de quem viu o acidente e me contou, ou contou para alguém que me contou depois. Até hoje não sei como aconteceu de fato. Um enorme vazio.
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Capítulo 2
O acidente de moto
Às 4 da manhã, praticamente, não tem ninguém na rua, principalmente naquela área onde existem mais lojas de peças de automóveis do que residências. Eu gostava de correr de moto, era a minha diversãozinha pessoal. Minha Yamaha RD 350 (na verdade uma RD 250 modificada) tinha até amortecedor de direção, além de amortecedores traseiros importados. A moto voava. Eu me sentia o próprio Johnny Cecotto (campeão de motovelocidade daquela época). Pelos relatos, eu estava à mil, abrindo para fazer a curva, com a moto bem inclinada (como os pilotos fazem nas corridas de motocicleta), quando o Corcel II, que avançou o sinal, me pegou. A pancada foi tão violenta que atravessei o vidro da frente do carro indo parar no banco de trás. Passei como uma bala pela motorista (era uma mulher) ficando a moto cravada no motor do veículo. Era um carro quatro portas. Saí pela porta 15
traseira xingando, exigindo que a moto fosse consertada numa autorizada Yamaha. Sacudi a cabeça para tirar um pouco dos cacos de vidro do cabelo; reparei nos cortes nos dedos, nos braços e nas pernas; na calça e camisa rasgadas; olhei o que restou de mim no espelho retrovisor lateral do carro e apaguei. Acho que a ambulância demorou em chegar pela falta de pessoas na rua naquele momento. Acredito que tanto eu, quanto a motorista, tenhamos ficado por ali por uma meia hora ou mais, até que alguém passasse, visse, e desse parte na delegacia - que não ficava longe dali. De nada me lembro desse acidente, nem de perto dele. O que acabei de descrever foi o que me contaram, ou contaram para alguém da minha família que me contou depois, não sei, não lembro. A última memória que tenho é de ter ligado a motocicleta, ainda na garagem da agência. Nem de ter saído com ela à rua tenho alguma recordação. A única lembrança real que tenho, foi de ter levantado de uma maca (que estava dentro de um lugar, que poderia ser um hospital), pegar minha bolsa (que estava pendurada na cabeceira dessa maca), colocar a camisa rasgada (que também estava na mesma cabeceira) e me dirigir até a saída desse lugar. Era um lugar escuro, como se faltasse luz e tivessem ligado alguma fonte de energia secundária. Não era um breu, era uma iluminação fraca. Dava para ver a luz forte que trans16
bordava pelas laterais da porta onde parecia ser a saída. Essa luz me atraia e caminhei naquela direção. Ao abrir a porta fui invadido por uma claridade intensa, branca, muito branca, que não me deixava enxergar nada além. Protegi minha visão colocando a mão direita à frente, enquanto a esquerda sustentava a bolsa com meus documentos, meu material de trabalho, minhas canetas naquim, minha vida profissional, meus pertences. Queria ver o que havia lá fora, onde estava, que lugar era aquele. Um monte de perguntas vinha à minha cabeça, principalmente, o que teria acontecido e por que fui parar ali? Que bairro era aquele? Alguém deveria estar preocupado comigo e me procurando. Quanto tempo estive dormindo? Embora quisesse sair dali correndo e ir para casa, havia uma questão sinistra me impedindo de dar o passo seguinte, um medo danado de estar fazendo a coisa errada. Não tinha certeza se tinha mesmo que ir para casa, sair dali, ou, se deveria voltar e descansar mais um pouco naquela maca. Estava me sentido pesado, cansado, sofrido e triste, muito triste. Foram segundos decisivos entre a vontade de ir embora, atravessando simplesmente aquela porta, numa sensação leve de liberdade e, a culpa, por algum motivo, de me livrar daquela cena, daquele lugar feio, sofrível e escuro. A razão me fazia voltar para a maca, sem nenhuma explicação, apenas voltar. Voltei. Mas voltei devagar, sem pressa, sem vontade de voltar. Voltei por que tinha que voltar. Fui, esbarrando 17
na parede, como se caminhasse me desviando de alguém ou de alguma coisa no caminho. Não havia nada, só mesmo a parede esverdeada e suja. De longe fui avistando meu corpo, ele estava lá, deitado, muito machucado, imóvel, parecia dormindo profundamente. Entendi a situação, percebi que estava fugindo daquela dor, daquele corpo quase mutilado que eu não queria mais. Queria me sentir leve, como me senti quando abri aquela porta e recebi aquela claridade corpo adentro. Olhei para eu deitado, era eu, e eu era forte, pegava ondas grandes no surf, malhava alteres na academia. Eu não era um cara de desistir facilmente, não desistiria. Me curvei diante daquele corpo, olhei a minha cara suja de sangue e entendi que deixaram na minha mão, para eu decidir. ‘Vamos continuar, meu caro!’, falei comigo mesmo. Voltei para o meu corpo, para a minha maca e acho que depois disso, sonhei.
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Capítulo 3
O sonho
A gente nunca sabe se sonhou de fato ou se aquilo que aconteceu foi uma coisa que você apenas pensou um dia. Ficam uns pedaços sem fim definido. Mas, tem sonhos que são tão reais que a gente fica querendo que eles não acabem nunca. E, se, em um desses momentos, alguém tenta te acordar, é uma tragédia! É uma droga!! A gente fica querendo voltar na mesma cena, mas aí, já era, fica-se montando a história do jeito que nos convém. Em sonhos reais, tem-se a vontade de dormir para sempre, principalmente, se forem sonhos bons, de amor, com pessoas bacanas, lugares bonitos, situações diferentes da vida que se leva na vida real, - onde existem pessoas ruins, situações difíceis, lugares impossíveis de se viver em paz, e por aí vai. Depois que tive a consciência de ter voltado para meu corpo, entrei num sonho profundo e fui parar num 19
lugar onde existiam pouquíssimas pessoas, parecia uma vilazinha de alguma cidadezinha do interior. Via pessoas nas ruas, mas tinha a impressão de que ninguém me via, ou quase ninguém. Apenas uma moça veio falar comigo. Perguntou se tinha me mudado naquele dia para aquele lugar e com quem morava. Disse que queria me levar num lugar especial, onde haveria pessoas inteligentes que resolviam qualquer tipo de problema. Pegou na minha mão, e antes que eu pudesse responder-lhe a primeira pergunta, caminhou comigo por aquela ruazinha distinta de paralelepípedos. Rua limpa, muita limpinha, não tinha sujeira alguma, nem no chão, nem nas calçadas, nem lixo algum. Tive a sensação de lhe responder alguma coisa em pensamento, pois não me lembro de ter aberto a boca para pronunciar palavra alguma. Queria ter-lhe dito que morava com meus pais e que achava que estava me mudando para aquele lugar naquele dia. Contudo, no fundo, não tinha certeza de nada, nem de morar com meus pais e nem, tão pouco, de ter pais. Na verdade nem sabia onde era a minha casa. Veio-me a dúvida de não ter ido embora porta afora, na ocasião da claridade, por não saber, de fato, para onde ir, onde morava, onde era a minha casa. Fomos andando e nos olhando e olhando a paisagem que não me era estranha. A moça (uma mulher que beirava a minha idade, no máximo 20 anos) não era linda, também não era feia, comum, normal. Era agradável. Me sentia bem em sua companhia. Me sen20
tia seguro segurando sua mão. Parecia haver mais gente por ali, essa era a sensação, de não estarmos sozinhos, mas na verdade, não via claramente ninguém, talvez vultos, sombras. Também parecia que andávamos durante dias, embora não tenha aparecido nenhuma noite nesse caminho. Quando eu cansava, ela procurava uma pedra para sentarmos, mas eu não sentia a dureza de uma pedra. Me senti excessivamente cansado em determinado momento, e aí nos deitamos no chão mesmo. Ficamos ali, olhando para cima sem dizer nada, apenas descansando. Quando me senti melhor, levantei e continuei andando. Ela parecia saber de tudo, mas não dizia nada. Nos comunicávamos pelos olhos, pelo pensamento, sei lá. Sem muitas palavras, ia entendendo, mais ou menos, aquela coisa estranha. Não tinha razão para ter medo. Era meio solitário, só eu e ela, uma pessoa que eu confiava, mas nunca havia visto antes. Uma amiga nova que resolveu do nada me levar para conhecer um outro lugar, com pessoas interessantes. E eu, sem mais nem menos, estava me deixando levar. Diferente do meu eu contestador, que sabia ser. Parecia um outro eu, ou, o outro lado da minha moeda, até então desconhecido por mim. Devia ser um lugar, realmente, especial e muito escondido, pois não chegava nunca. Ela dizia que era assim mesmo, levava um tempo para chegar lá e todo mundo que ia pela primeira vez reclamava da distância e do tempo. Ela parecia acostumada, já havia feito o 21
trajeto algumas vezes e logo não faria mais, iria para outro ponto, outro lugar. Isso ficou claro, mas não dito. Apenas sei. Perguntei se não iríamos nos ver mais, depois que chegássemos, ao que me respondeu que não sabia, não sabia muito mais que eu. Entretanto deixou claro que ali tudo era possível, não existia limite algum, assim como o universo, que desconhecemos seus limites. Aos poucos comecei a ouvir outras vozes e a perceber que estávamos chegando em algum lugar, onde haviam outras pessoas, não muitas, mas todas fazendo alguma coisa. Não tinha ninguém parado. Um senhor, careca, se aproximou de mim e disse que eu precisava voltar. Ela largou a minha mão, assustada. Ele continuou decisivo: -’Você precisa voltar. Seu lugar não é aqui. Leve-o de volta. Precisa Voltar!!’. Meus olhos se abriram. Acordei. Reconheci o local. Sabia que minha bolsa e minha camisa rasgada estavam na cabeceira da maca. Sabia que havia uma porta que precisava atravessar no fim do corredor. Havia outra maca ao meu lado; pessoas sofrendo, gemendo; pessoas feridas em pé no corredor; era um hospital e eu conhecia aquele hospital, - já estivera ali em outra circunstância, era o Souza Aguiar, no Centro da Cidade do Rio de Janeiro. Levantei da maca com dificuldade. Estava zonzo e com o corpo doído. Vi cacos de vidro presos na pele, muito sangue coagulado nos bra22
ços e pernas. Coloquei a camisa e senti arrastá-la em algo nas minhas costas, - seriam também cacos de vidro, imaginei. Peguei minha bolsa e sai andando pelo corredor, escorando-me na parede. Não vi nenhum médico, nenhum enfermeiro. Abri a porta do hospital e sai à rua. Era noite. Bem de frente havia um ponto de táxi. Entrei no primeiro da fila, disse para me levar para casa. Dei o endereço de Laranjeiras, era a única coisa que vinha na minha mente naquele momento: Rua Belizário Távora, 467, apto 207. Devo ter apagado no táxi. Só me lembro de ter chegado numa porta com o número 207, amparado pelo braço do motorista (que queria receber a corrida), bati na porta, e quando alguém abriu, caí no chão, desmaiado. Acordei no dia seguinte na cama de outro hospital. Iluminado, tudo limpinho, um quarto bonito, com aquela pessoa dizendo 'a mamãe está aqui...'. Confesso que se ela não tivesse pronunciado esta frase-chave não a distinguiria de qualquer outra pessoa. O diagnóstico foi de amnésia temporária. Os médicos disseram que eu perderia algumas lembranças para sempre e outras iriam sendo recordadas aos poucos. Também existia a possibilidade de memórias plantadas de acordo com os relatos das pessoas, ou seja, me mostrariam fotos e com a ajuda das pessoas iria formando um novo banco de memórias. Foi o que aconteceu - memória parcial, porém algumas coisas do passado se apagaram para sempre. 23
O por vir era assustador. Se redescobrir foi constrangedor, tanto para mim, quanto para algumas pessoas. Descobri que meus pais eram separados. Tinha 4 irmãos, 3 (homens) do mesmo pai e mãe e uma irmã fruto do relacionamento do meu pai com outra mulher. Sobre minha infância, me contaram que nasci e passei toda essa fase numa vila, no Centro da Cidade do Rio de Janeiro, a Vila Rui Barbosa. Morávamos na Travessa Bem-Te-Vi. Era uma Vila toda de paralelepípedos. Foi nessa travessa, quase em frente a nossa casa, que tive um gravíssimo acidente quando criança: fora atingido na cabeça por uma barra de ferro. A pancada aconteceu centímetros acima da fonte, quase me levando à óbito. Surpresa maior ainda, foi saber que era casado. Havia me casado há pouquíssimo tempo, e morava no bairro de Botafogo. Segundo minha esposa (que não reconheci e ainda hoje não me lembro dela): saiu um homem para trabalhar e voltou outro, completamente diferente. Nosso casamento terminou meses depois por pura incompatibilidade. Certamente eu era outro homem.
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Capítulo 4
Nathália de 1979 a 1984
Já havia batido com a cabeça em acidentes de moto muitas vezes. Naquela época não era obrigatório o uso de capacete, ninguém usava capacete. ‘Capacete pra quê?’. ‘No calor infernal do Rio de Janeiro, usar capacete é querer derreter o cérebro’. ‘A cabeça fica molhada e nós homens, ficamos todos carecas’ ,- essas eram as desculpas dos motoqueiros. Alguns anos mais tarde passei a trabalhar como desenhista free-lance. Fora o trabalho fixo que tinha na agência, tinha também meus clientes particulares, onde desenvolvia projetos diferentes daqueles que a agência se propunha a fazer. Na agência era Arte-Finalista, para os meus clientes fazia trabalhos de Desenhista mesmo (ilustração, painel, logotipos, jornais, revistas etc). A coisa estava crescendo de tal forma que já não estava dando conta de fazer tudo que arranjava e precisava cumprir os prazos de entrega definidos pelos cli25
entes. Precisava de mais um, alguém para me ajudar naquele momento. Lembrei-me de um camarada, o Felipe, que conheci lá no meu início de carreira e que, soube, havia montado um escritório de criação, mais ou menos fazendo a mesma coisa que eu estava fazendo e, soube também, que estava com poucos clientes. Fui visitá-lo e lhe contei minha situação. Ele aceitou dividir os serviços que passaria para o seu escritório, mas pediu que tratasse dos assuntos relativos à criação direto com sua desenhista, a Nathália, que naquele momento, por algum motivo, ainda não havia chegado. Dois dias depois fui levar uns trabalhinhos básicos para a Nathália fazer. Não era muita coisa, mas eram coisas que me tomariam muito tempo e eu tinha horário para cumpri na agência, além de ter outros trampos que me renderiam mais dinheiro. No horário que fui hora do almoço -, o Felipe não estava, e me apresentaram a Nathália. Sensação estranha de falar com uma pessoa que você pensa já ter conhecido. Sempre fui brincalhão e descontraído, ainda mais quando o assunto abrange criação, ideias, essas coisas bobas de artista. Mas confesso não conseguir ser brincalhão naquele momento, com aquela pessoa. Não podia arriscar falar 'te conheço de onde?`, pois ia parecer uma cantadinha básica, ridícula. Então fiquei na minha, tentando lembrar dela enquanto conversávamos e lhe passava os assuntos do trabalho. Pedi apenas que aprontasse para 26
o dia seguinte e que me ligasse assim que estivesse tudo feito para eu ir buscar. Mal acabei de falar e ela pegou a minha mão, virou-a com a palma para cima, olhou nos meus olhos e anotou, com sua canetinha, o seu telefone de casa. Completamente desarmado, só lhe disse: 'Então tá!'. Super sem graça fui saindo. Nunca me senti tão envergonhado, sem atitude. Estranho!! Anotei, posteriormente, como de costume, seu telefone na minha agenda. Não liguei para a casa dela no dia seguinte, liguei para o escritório. Marquei e fui lá pegar o serviço pronto que ela havia deixado na recepção. Nunca mais levei nada para eles, nem os vi mais. Passado um tempo, um ano ou mais, não tenho certeza, o trabalho na agência já não me satisfazia como profissional e eu já estava ganhando bem mais como desenhista autônomo. Achei que estava na hora de sair de casa, ou melhor, tirar o escritório de criação de casa e montar uma empresa de verdade, uma agência de criação. Tinha os clientes, tinha dinheiro e tinha a vontade, e assim o fiz. As coisas estavam indo muito bem, graças a deus, rotina pauleira, muito trabalho, prazos curtos, mas gostava, era a minha vida. Já tinha secretária, office-boy, contador, administrador, faturista, entretanto, eu, ainda era uma peça chave, pois era quem arranjava os clientes e quem fazia o trabalho de criação. Precisava dar um passo mais largo para crescer e iria ter que escolher entre colocar um Contato (vendedor) para arranjar 27
mais clientes ou colocar um outro Desenhista para me ajudar nas criações. Ainda não dava para contratar os dois, tinha que ser um ou outro. Decidi contratar um desenhista. Coloquei anúncio no jornal para selecionar um profissional. Acreditem, não apareceu ninguém. Sai folheando minhas anotações para ver se tinha o telefone de alguém conhecido que quisesse trabalhar e avistei o telefone da Nathália. Já havia passado muito tempo. Será que aquele ainda era o telefone de sua casa? Não tinha nada a perder e ela foi rápida quando precisei. Liguei: - 'Alô, Nathália? Sabe quem está falando?', perguntei. - 'Sei', respondeu, e disse o meu nome. Só tínhamos nos falado uma vez e ela lembrou da minha voz. Começou ali um relacionamento profissional incrível. Tínhamos muito em comum. Ela parecia minha versão feminina. Desenhávamos juntos, tínhamos o traço de desenho bem parecido. Vendíamos bem. Ganhamos muito dinheiro e a agência ia de vento em popa. Nossos outros relacionamentos é que não estavam fluindo bem. Ela com problemas com o noivo e eu com problemas com minha segunda esposa. Nathália fazia Yoga e gostava de meditar. Às vezes até entrava numa de acompanhá-la, mas era só de brincadeira. Até que um dia me fez a seguinte proposta: -'Se te mostrar um lugar diferente de todos que você conhece, onde exista uma paz imensurável, num outro plano espiritual, você tem coragem de vir comigo?'. Res28
pondi que não tínhamos tempo para viajar, e nem poderíamos deixar nossos pares sozinhos nos únicos dias que tínhamos para dar-lhes a atenção devida - sábados, domingos e feriados. Nathália sabia ser convincente, era uma vendedora nata: - 'Vamos viajar à noite, todos os dias, durante nossos sonhos', explicou. Pegou na minha mão e saiu caminhado comigo até o corredor, fora do escritório, para que os funcionários não ouvissem. Mas, aquela pegada de mão me remeteu à moça que me conduzira naquela ruazinha da vila. Seria a mesma pessoa? Não podia ser! Depois de tanto tempo trabalhando juntos se revelar daquela forma. Aqueles segundos enlouqueceriam qualquer ser humano, um nó ruim de desenrolar no cérebro. Ela sabia exatamente o que estava fazendo. E me disse a frase mágica que me remeteu a um estado mental quase hipnótico: - 'Você precisa voltar'. Naquele instante, juro não saber se estava acordado ou dormindo, ou se existia alguma diferença entre esses dois estágios. Não conseguia distinguir em qual realidade estava vivendo. - 'Me belisca’, implorei. Ela beliscou. - 'Caralho!! Que porra é essa?', esbravejei. Nathália, não se alterava com nada. Apenas disse o seguinte: 'Vou te ensinar a chegar lá novamente. Depois é contigo. Você é que vai decidir o que fazer, tudo bem?`, notificou-me. ` -’Tudo bem nada, você vai ter que me explicar que por29
ra é essa. Estou ficando maluco? Você já me conhecia e não falou nada? De onde você veio? Que lugar era aquele? Por que aquele careca lá me mandou voltar?’, respondi desconfiado. Na paz e segurança que sempre me transmitiu, Nathália foi ponderada, abaixou a cabeça, pediu que abaixasse o tom da voz e falou: - ‘Vou te explicar tudo, desde o início, mas não agora, não aqui. Vamos voltar ao trabalho e no final do expediente, quando todos forem embora, conversamos. Tudo bem?’, perguntou. - ‘Tudo bem`, respondi. Não preciso dizer que durante as horas seguintes daquele dia não consegui produzir coisa alguma. A ansiedade me dava sede, fome, angústia e tudo mais de esquisito que se possa imaginar. No final do expediente sentamos para conversar. Me fez prometer ouvir, sem fazer perguntas. Disse que havia aprendido com uma outra pessoa que os sonhos podem nos levar à lugares nunca antes imaginados. Poderiam ser lugares onde, de certa forma queríamos estar mas nunca fomos, como também lugares que nem imaginamos existir. Tudo iria depender do desenvolvimento de cada um. No nosso caso, naquele episódio, estava num lugar que ela não conhecia e eu apareci ali. Sentia que deveria me levar a outro ponto, onde haveria pessoas que pudessem me ajudar e foi o que fez. Por isso, não sabia muito mais do que eu naquele momento, apenas me conduziu, com paciência, pois achava que 30
era o que eu precisava: paciência, tempo e repouso. Não duvidei de suas palavras, pois não existia nenhuma explicação melhor. Afinal de contas, havia acontecido comigo e eu era a testemunha de que ela esteve lá e estava também ali, na minha frente, me contando tudo. Existia um processo para o aprendizado e eu não queria saber de mais nada a não ser desse processo. Nathália tinha o dom da paciência e da explicação. Me fez entender que existem dois mundos e ambos são reais. No entanto, um depende do outro para existir. Tínhamos que continuar trabalhando, pois necessitávamos do trabalho para sobreviver, além de estarmos dando emprego para outras pessoas, que tinham famílias, e, que todos, de alguma forma precisavam que o nosso escritório desse certo. No período da noite, tínhamos os nossos compromissos com a família, esposa, namorado, noivo, amigos, parentes, enfim, toda uma vida social que também era importante. Durante o sono começava o outro mundo, que não interferiria no nosso mundo diurno. Também, não existiria no futuro - depois de termos conseguido alcançar o estado inicial de consciência, - a necessidade de programarmos qualquer tipo de encontro, pois estaríamos automaticamente conectados para sempre.
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Capítulo 5
O ensaio
A primeira coisa a fazer foi combinar o sincronismo. Cada um em sua casa, deitando para dormir na mesma hora, fechando os olhos na mesma hora, tudo sincronizado. E no dia seguinte comentaríamos nossos sonhos até que um dia o sonho de cada um fosse o mesmo. Quando chegássemos nesse grau de sincronismos poderíamos decidir para onde ir e quando voltar. Parecia coisa simples, mas não era. As outras pessoas da família interfeririam em nossos horários. Tinha minha esposa, e seria complicado tentar lhe explicar que precisava dormir às 22:00 horas em ponto pois precisava me encontrar com minha desenhista, num projeto maluco de um sonho doido e ridículo. Ela, por sua vez, morava com o pai, e tinha o noivo que ia todos os dias buscá-la. Também não seria tarefa fácil convencê-lo sobre esse projetinho mequetrefe. Enfim, seria necessário eliminar a interferência. 32
Mas, como? Partimos para o Diazepan. Tomaríamos o remédio para dormir na mesma hora e assim dormiríamos de qualquer maneira, mesmo com outras pessoas no entorno. Alegaríamos forte dor de cabeça e assim conseguiríamos nos deitar na mesma hora, fechar os olhos no mesmo instante e tentar dormir. Nas primeiras noites apagamos como pedras e nada havia para lembrar. Mas, com o passar dos dias, os nossos organismos foram se acostumando a dormir mais cedo e acordar mais cedo. Uma semana depois paramos de tomar o Diazepan e continuamos a dormir na hora que havíamos combinado. Foram muitas noites tentando. E, então, numa dessas noites dormidas sem o uso do remédio nos encontramos de fato. Daí por diante começamos a sonhar um com o outro, e como já havia acontecido, não haviam palavras, tudo era compreendido, tudo era fácil e leve. Não sentíamos peso algum, nem de estarmos juntos (independente de termos outros relacionamentos), nem de peso de corpo em si, já que nossos corpos eram frutos de nossas imaginações. Éramos do jeito que queríamos e imaginávamos ser. Não existia frio ou calor, não existia molhado e seco, poluição, barulho, nada. Era nada e tudo junto. Estava tudo ali, mas nada estava de fato ali. Tínhamos essa consciência. Era um sonho real, mas era um sonho. Poderíamos decidir ficar sonhando para sempre ou voltar33
mos, se assim quiséssemos. Também havia a opção de um voltar e o outro continuar no sonho. Ter essa consciência era o princípio de tudo para passarmos para a fase seguinte. Durante 3 meses fomos nos acostumando a nos ver durante os sonhos. Já não combinávamos mais o horário de dormir, nos encontrávamos a qualquer momento, até em sonecas curtas durante o dia. Existia um laço que nos unia. Não existia atração física. Não tínhamos desejo de sexo, éramos como se fosse uma coisa partida em duas partes. Nathália me conduziu aos lugares onde mais frequentava e se sentia protegida. Existia o perigo de não mais voltar. Por isso tínhamos de ter sempre a consciência de que aquilo era só um sonho, um sonho real, mas um sonho apenas. No momento em que sua mente fizesse daquilo a sua realidade você corria o risco de ficar por lá para sempre e morrer. Precisamos dos dois mundos para manter-nos vivos. Aqueles passeios passaram a se tornar rotina, como ir a padaria comprar pão no dia-a-dia do cotidiano de qualquer um. Eu queria mais. Queria estar em outro lugar, um lugar que não conhecesse. Nathália receava. Achava que ainda não estava pronto para alçar voos maiores. Ir ao desconhecido não é tarefa fácil. Tudo o que se imagina pode ser lembrado e reconstruído, mas algo desconhecido de sua mente pode não ter uma saída fácil, pode ser um enigma, um algoritmo compli34
cado para quem não estudou esse assunto. Sei que ela tentou de tudo para me impedir, porém era maior que eu. A vontade sem controle nos leva a lugares perigosos. Bloqueei Nathália em minha mente naquela noite e voltei naquela vilazinha onde nos encontramos pela primeira vez. Havia alguém, como eu, precisando de orientação. Não pensei duas vezes, peguei em sua mão e disse que o levaria a um lugar onde existiam pessoas inteligentes que poderiam ajudá-lo. Era um senhor. Caminhamos, como antes, durante dias. Ele se cansava, sentávamos. Nos olhávamos. Ele parecia entender. Reclamava da distância e do tempo. Deitou-se, como aconteceu comigo, e chorou. Choramos juntos. Levantamo-nos e continuamos a caminhada até chegar naquele pequeno povoado. O sujeito careca não estava lá. Dessa vez haviam portas, muitas portas, todas fechadas. As pessoas que lá estavam não pararam seus afazeres para nos dar atenção. Achei que deveria deixá-lo ali. Pensei que, talvez, esse deveria ser o meu propósito. Não consegui fazê-lo. Precisava falar com alguém, queria alguma informação para que pudesse ir embora em paz, ciente do dever cumprido. Me dirigi a uma das portas, a do meio, fui decidido a abri-la, e iria abrir todas se não obtivesse alguma informação. Quanto mais andava em sua direção, mais distante a porta ficava de mim. Me dirigi para outra porta, a primeira da esquerda (seguindo o raciocínio da ordem numérica). 35
Consegui chegar até ela, mas não consegui abri-la, estava trancada. Dei-lhe umas pancadas, podia estar emperrada. Não abriu. Quis derrubá-la. Não consegui. O senhor que conduzi até ali me pediu para tentar, deixei. Pediu que me afastasse um pouco. Me afastei. Ele bateu na porta, educadamente, como se bate em qualquer porta de pessoas estranhas. A porta se abriu e ele entrou. Segundos depois aquela porta desapareceu. Algumas pessoas pararam o que estavam fazendo e olharam para mim. Olhei-as também, uma a uma, não estavam me recriminando, apenas me desconheciam, ou conheciam, quem sabe lembraram-se de mim. Pedi licença para sentar, precisava muito descansar. Estava exausto. Acabei deitando naquele lugar e deu-me uma vontade enorme de tirar uma soneca. Me lembrei que já estava dormindo e que aquilo era um sonho. Era a tal da consciência da qual Nathália havia alertado. A sensação de paz era tão grande que deu vontade de ficar por ali, mas consciente, abri os olhos e acordei. No dia seguinte, Nathália chegou no escritório, pegou suas coisas e disse que estava indo embora. Não quis dar maiores explicações. Entendi que o motivo foi a minha traição, por tê-la bloqueado. Sabia que não haveria volta e não adiantaria tentar convencê-la do contrário. Perdi Nathália para sempre. Décadas mais tarde, soube por terceiros, que se casara e tivera 4 filhos.
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Capítulo 6
Encontro inusitado
Mesmo sem a ajuda da Nathália continuava 'nas nuvens' como diziam meus novos amigos de sonhos. Íamos à praia, viajávamos para o Havaí para pegar ondas - as maiores que a gente pudesse imaginar; íamos ao Egito brincar de subir e descer das pirâmides; pulávamos do Pão de açúcar direto na Praia Vermelha, tudo que queríamos e podíamos fazer fazíamos, afinal, tudo não passava de um sonho e quanto mais maluco fosse melhor. Acordava saciado de tanta maluquice e com uma disposição enorme para trabalhar. Numa noite, voltando para casa, na entrada do viaduto que vai dar no elevado que desemboca no túnel Santa Bárbara (Catumbi), à noite, dois elementos munidos com uma barra de ferro fizeram sinal para que parasse minha moto. Era um assalto. Não tinha para onde fugir. Na velocidade que vinha, se reduzisse me derrubavam; se acelerasse teria uma chance de pas37
sar e foi essa a minha decisão. Acelerei, abaixei a cabeça para receber a pancada e não pensei em mais nada. Nessa época já era obrigatório o uso do capacete, graças a deus. Tomei uma porrada que minha cabeça bateu nas costas e a boca ficou arrebentada. Bati também em mais alguma coisa ou neles. A moto passou cambaleando, mas consegui retomar o controle e acelerei. Não olhei para trás. Consegui chegar em casa. Minha boca precisava levar uns pontos, estava bem ruinzinha. Minha esposa me levou para o hospital Souza Aguiar. Lá, reconheci os dois bandidos que me acertaram. Os dois estavam deitados em macas, um com as tripas para fora e o outro gemendo de dor. Estavam acordados. Eu os vi, mas eles não me viram. Também se vissem penso que não iriam me reconhecer - acredito - por conta do capacete. Tive vontade de comunicar ao policial de plantão que foram aqueles dois, os bandidos, que tentaram me assaltar, mas a situação deles perecia muito pior que a minha. Deixei quieto. Depois dos pontos, já em casa, na madrugada, minha cabeça doía. Não havia sinal de hematoma, também não era sintoma de dor de cabeça que remédio pudesse curar. Era uma dor de cabeça que apenas incomodava e não me deixava dormir. Não conseguia deitar a cabeça no travesseiro - olhar para baixo doía. Tive que passar aquela noite sentado, vendo televisão. Volta e meia a cabeça tombava para frente, querendo pegar no sono, mas logo a levantava forçando-me a 38
ficar acordado. Nesses micro-sonos de segundos, vinham flashes de acontecimentos que não saberia dizer se eram futuros ou passados. Lembro-me do enterro de alguém com muitas pompas; um senhor andando no que seria uma espécie de praça, abaixando-se para pegar uma moeda. A figura não me era estranha, mas não era pessoa de minha convivência. O sono foi maior que a dor e acabei dormindo ali sentado, como fazem os velhinhos. Fui tomado por esse sonho estranho. Estava distante, como observador apenas, não queria interferir naquela cena curiosa. O senhor desceu de uma carruagem chique, caminhou durante alguns minutos naquele chão de terra batida e quando tirou a mão do bolso, deixou cair, sem querer, uma moedinha. Ficou ali parado, olhando para o chão, tentando achá-la, parecia importante. De longe vi onde tinha caída a moeda, pois caiu e rolou para perto do mato. Ele estava, exatamente, de costas para a moeda e o calcanhar do seu sapato iria empurrá-la, sem querer, para dentro do matagal. Não tinha como não ajudá-lo e gritei: - 'Ei! Não se mexa! Eu sei onde está sua moeda! Espere!', me aproximei, peguei a moeda, olhei-a rapidamente e vi que tinha a imagem de uma criança, e lhe entreguei. - 'Vejo que falas bem o português', comentou. - 'Eu moro no Brasil', respondi. - 'E como vão as coisas naquela república?`, pergun39
tou-me, como quem conhecesse bem o nosso país. - 'Não posso lhe dizer nada sobre isso Senhor, aliás, eu nem deveria estar aqui. Desculpe por ter me intrometido no seu passeio, mas reparei que essa moedinha era importante para o Senhor e não pude deixá-la se perder no mato. Foi um prazer conhecê-lo. Apenas uma curiosidade... que lugar é esse e em que ano estamos? ', indaguei. - 'Ora, pois, estamos às margens do Rio Sena, em solo Francês. Hoje é dia 2 de dezembro de 1891, dia do meu aniversário. Completo 66 anos! A moeda é uma lembrança distante, de quando ainda era criança, obrigado!, agradeceu-me. E continuou: - 'Diga-me, qual o seu nome? De que lugar do Brasil vens?` perguntou-me. Respondi que era do Rio de Janeiro e meu nome era Valentim Braga. - 'Nome curto esse seu', debochou... e pronunciou-se: - 'Meu nome é Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Bragança, e também nasci no Rio de Janeiro', concluiu. - 'Precisa ir Senhor, está muito frio aqui, cuidado com sua saúde...', recomentei e saí andando... fugindo. Fui me afastando assustado, andando ligeiro, depois corri, corri muito, não conseguia parar de correr estava assombrado. Não entendi como e nem por que fui parar naque40
la história. Aquele senhor era Dom Pedro II, no exílio, há 2 anos, depois de ter sido banido com sua família pelos republicanos, sob o comando do Marechal Deodoro da Fonseca. Só soube disso e de outras coisas que relato abaixo depois que acordei, pois naquele momento estava apavorado dentro de um sonho inexplicável - ainda correndo de medo. Estive com Dom Pedro II três dias antes da pneumonia levá-lo ao óbito. Tinha pouca idade para a sua aparência que apontava para um homem de mais de 80 anos. Me arrepio sempre que lembro disso. Depois desse sonho, curioso, fui ler sobre ele e descobri que era de uma cultura ímpar, pouquíssimos governantes do mundo tinham cultura similar. Falava 12 idiomas: grego, latim, inglês, francês, italiano, provençal, alemão, tupi, guarani, hebraico, sânscrito e árabe, além de profundos conhecimentos científicos. Contudo, era um homem sofrido, perdera sua esposa um mês após serem banidos do país que adorava e onde havia nascido. A Imperatriz Teresa Cristina, de 67 anos morreu de desgosto. Preocupou-me esse sonho em particular, pois tive a compreensão de que não estava pronto ainda para lugares desconhecidos. De alguma forma, por algum motivo, fui parar em uma situação nunca antes imaginada, sem minha razão, sem minha permissão, sem meu controle. Uma sensação estranha de estar mexendo no que não deveria ser mexido. Na hipótese de se 41
acrescentar alguma informação ao fato histórico, durante o fato histórico, poderia mudar o passado, e consequentemente o futuro. O fato histórico impressiona pelos detalhes. Quando lê-se que a Família Real recebia (durante 48 anos) a importância de 67 contos de réis por mês - de 1841 a 1889, deve-se levar em conta que esse montante era mais que suficiente para sustentá-la, com certo luxo, e ainda fazer de Dom Pedro II um mecenas das artes e ciência. Nosso governante ajudou muita gente. Um desses amigos privilegiados foi o químico e médico francês Louis Pasteur, que além de inventar a vacina contra a raiva, também inventou (e lhe deu nome) a pasteurização do leite - prolongando a vida útil desse produto e diminuindo a mortalidade que crescia pelas bactérias oriundas do mesmo. Só para finalizar a curiosidade: O Marechal Deodoro da Fonseca, ao assumir a presidência da república, aumentou seu próprio salário para 120 contos de réis por mês - quase o dobro do que recebia toda a Família Imperial.
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Capítulo 7
A alegria de estar com todos
Me veio um pensamento intuindo que quanto mais batia com a cabeça em acidentes de moto, mais profundos eram os meus sonhos. Cheguei a pensar que essas porradas haviam esbarrado em algum botão dentro do meu cérebro que, de alguma forma, acendeu uma luz verde indicando um caminho novo. Como pude sonhar com Dom Pedro II? E o sonho era muito real, como se estivesse conversando com alguém acordado. Não era mais aquela coisa de se comunicar pelo pensamento, do entender sem precisar ser dito, não, era real, era de verdade. Fiquei impressionado com a realidade das imagens coloridas e não pastéis como nos sonhos anteriores. A figura dele... perfeita, era ele. Certamente não era minha imaginação, pois nunca havia visto foto de Dom Pedro naquela época de sua vida, nem imaginaria como seria de fato. Aliás, nunca pensei em Dom Pedro II em 43
nenhum momento de minha vida e nunca me interessei pelo assunto 'Império'. O lugar onde conversamos... poderia descrevê-lo em detalhes. Até o cheiro me deixou impressionado, tinha cheiro. Cheiro de rio, de umidade, de terra molhada, de orvalho, cheiro da noite, cheiro do perfume que ele usava, o qual conseguiria identificar se conhecesse mais desse assunto. Depois da minha perplexidade com a realidade daquele sonho fiquei intrigado com as possibilidades que poderia atingir. Se encontrei Dom Pedro II, poderia encontrar qualquer pessoa que desejasse, inclusive entes queridos que já partiram desta vida. Fui tomando consciência de que ainda estava dormindo e ainda estava correndo, morto de medo por ter tocado em objeto existente (a moedinha). Fiquei com medo de acordar com o dedo podre. Pensando em todas essas coisas... acordei. Encontrei-me deitado no sofá, com travesseiro sob minha cabeça e coberto por um edredom. Minha esposa, certamente, deve tê-los colocado durante a noite. A dor de cabeça havia passado. Levantei e fui ver a moto que estava com o guidom empenado, precisava consertá-lo para ir trabalhar. Tinha muito serviço pela frente e um trabalho especial que me daria um lucro fabuloso, precisava caprichar. Estava acostumado a me desligar dos sonhos para 44
poder seguir a vida normalmente. Isso era imprescindível para uma existência saudável. Sonho é sonho, realidade é realidade. São dois mundos diferentes, todos nós temos essa consciência. Entretanto, naquele dia, após desempenar o guidom da moto, fui para o trabalho ainda pensando em tudo o que tinha acontecido naquela noite, naquele medo. Ao chegar no trabalho dei um click e me desliguei do assunto. Embarquei na criação e fiz o meu melhor. Ganhei o cliente e aquela graninha esperada foi direto para minha conta bancária. Muito bom ganhar dinheiro!! Com essa pequena fortuna em mãos resolvi procurar uma casa na Região dos Lagos para ter aonde ir nos finais de semana. Folheei muitas páginas de jornal, revistas e não aparecia nada que me interessasse. Por que não partir para a Região dos Lagos e procurar, pessoalmente, nos locais onde considerasse bacana de ter uma casa? Comentei com minha esposa (Viviane) da possibilidade de comprarmos uma casinha em Saquarema e que gostaria de, no final de semana, dar um pulinho por lá a fim de dar uma procurada. Ela topou e assim partimos de moto, claro, para a Região dos Lagos na sexta-feira. Muitas casas com placa de 'Vendo' no trajeto à beira mar, nenhuma com telefone. Paramos no centro da cidade e fomos a uma imobiliária. Nos indicaram 4 casas. Vimos, não agradaram. Almoçamos num barzinho e depois de 'pergunta aqui, pergunta ali' fomos parar no 45
meio do mato, numa casa que tinha acabado de ser construída por um marido (um motorista de táxi de Niterói) para a esposa. Construíram durante anos, juntos. Depois de pronta ele enfartou e morreu. Segundo a esposa: 'Fomos muito felizes aqui. Os melhores anos de nossas vidas. Espero que vocês sejam tão felizes quanto fomos nesta casa'. Fechamos o negócio. Uma casinha de 2 quartos, terreno de 450 m2, quintalzão. Tinha uma mangueira linda, uma laranjeira e dois coqueiros - um grande e um anão. Aquilo para mim era o paraíso. Era também a última casa de uma rua sem saída e com pouquíssimas residências. Moradores mesmo, na rua toda, só tinham três, as demais casas eram de veranistas. Dei o sinal, em dinheiro, para a senhora e marcamos para a semana seguinte, no cartório da cidade, finalizarmos a compra. Ela precisava retirar seus móveis e utensílios e eu precisava providenciar, pelo menos: uma cama, colchão, lençol, travesseiros, mesa, cadeiras, geladeira, fogão, talheres, baldes, química para limpeza, panos, rodo, vassoura, pasta de dente, sabonete, ou seja, precisava comprar tudo que uma casa precisa para funcionar. Seria uma semana tumultuada. A fortuna que havia conquistado com meu trabalho já não parecia ser tão grande assim. Deu para pagar a casa, mas o resto ficou meio capenga. Tive que vender a moto para completar o orçamento dos utilitários da 46
residência. Mas tudo bem, tinha uma casa pronta para ser habitada. Outro problema que surgiu, e até então não havia passado pela minha cabeça, era: Quem vai tomar conta desta casa quando estivermos no Rio trabalhando? A casa sozinha iria ser depenada, claro!! Tinha que ter uma solução e tinha que ser rápido. Viviane voltou para o Rio, pois também trabalhava e não poderia faltar - era vendedora de loja no Shopping Rio Sul. Fiquei em Saquarema durante aquela semana e rapidamente fiz muitos amigos. Como precisava fazer uns reparos no banheiro, me indicaram um camarada ali do local, o Eduardo. Depois de resolver o problema, fomos tomar umas cervejas. Conversando, Eduardo contou-me que estava procurando lugar para morar enquanto sua casa estava sendo construída. Estava fazendo-a aos pouquinhos, devagar, juntando dinheiro para comprar material. O inacreditável estava acontecendo. Disselhe que, se quisesse, poderia morar lá em casa, pois eu e Viviane só viríamos mesmo nos finais de semana e precisava de alguém que tomasse conta da casa para que não ficasse abandonada. Ele topou. Eduardo foi o irmão que Deus me mandou. Somos amigos até hoje. Sem veículo, a vida ficava lenta para mim. Depender de ônibus ou táxi para me locomover numa cidade que sempre está travada não me fazia feliz. Tinha que mergulhar no trabalho para poder comprar outra 47
motinha... Motinha, não, tinha que ser uma boa motocicleta, pois agora tinha uma estrada para pegar todos os finais de semana. Os sonhos profundos estavam diminuindo e tudo indicava que não mais apareceriam. Parei de pensar e sonhar, agora tinha um novo foco, a casa em Saquarema. Meses mais tarde, antes de chegar o verão, consegui comprar uma senhora motocicleta, Honda CB 900 Bol D’Or. Só existiam duas iguais em todo território nacional e uma era minha. Era um cavalo de raça, um avião - tinha barulho de avião. Quatro cilindros cromados. Meu Deus!! Não existia ninguém nesse mundo mais feliz que eu. Casa em Saquarema e uma Bol D’Or. O que mais um ser humano gostaria de ter? Eu tinha tudo. E aí os sonhos profundos voltaram. O primeiro dessa série de sonhos profundos foi com todos os meus parentes que haviam morrido; todos os parentes que estavam vivos; todos os meus amigos (até amigos do meu início de trabalho, quando era Officeboy); todos os meus vizinhos, enfim, todos estavam na minha casa de Saquarema numa grande festa de inauguração da piscina. Os já falecidos tinham um lado do rosto pintado de branco, para distingui-los dos vivos, mas só eu via isso. Era uma grande festa e eu estava muitíssimo feliz, tão feliz que não queria que aquele sonho terminasse nunca. Era muita felicidade, com todos se dando bem, con48
versando... Parecia uma enorme família de gente educada, sem problemas, sem discussões. Eu estava ali, no meio dos meus, rindo. A casa era bem maior que a casa que comprei (e que não tinha piscina). Tinha um quarto para cada convidado. Para as crianças reservei quartos com beliches - elas adoraram. Para os mais velhos, disponibilizei quartos no primeiro andar, no mesmo plano da sala, sem degraus, para que não tropeçassem. Camas de viúva para os solteiros; camas de casal, extra larga, para os casados. A festa estava farta, tinha muito de tudo. Cardápio especial para os veganos, cardápio especial para os carnívoros. Poderiam pedir o que quisessem, quantas vezes desejassem. Tinha muita gente, muita. Gente que cruzou comigo em alguma esquina da vida estava lá. Não tinha naquela festança ninguém mais feliz que eu. De repente, senti um sacudir... abri os olhos e tudo aquilo acabou: - 'Valentim, acorda! Acorda!, você está dormindo há dois dias’, balançou-me Viviane. Minha esposa tinha ido visitar sua mãe no dia anterior, domingo, e resolveu dormir por lá. Deixou-me dormindo. Depois, mandou recado pela secretária eletrônica dizendo que na segunda-feira iria direto para o trabalho. Chegou em casa à noite, quando me encontrou ainda dormindo. Tive a certeza que se ela não me acordasse não acordaria mais, nunca mais, pois em nenhum momen49
to de minha vida me sentira tĂŁo feliz como me senti naquele sonho. Tentei voltar por diversas vezes naquele sonho, mas nunca mais sonhei com aquelas pessoas juntas, nem com aquela festa mĂĄgica.
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Capítulo 8
1990 - Belas Artes e Música
Depois de rever os mortos felizes, toda vez que morria alguém, seja parente ou amigo próximo, era eu quem sonhava e que transmitia aos vivos como estava a pessoa que fez a passagens do mundo dos vivos para o mundo dos idos. Virou rotina. Quando alguém morria, já sabia que ia sonhar com aquela pessoa e as pessoas que conviviam comigo também sabiam e, imediatamente, vinham me pergunta coisas como '...e aí, como é que o fulano está?`. Pior é que as coisas começaram a ficar ruins aqui no mundo dos vivos e acordados por conta da política do país. Estamos falando de 1990, quando o Governo Federal segurou o dinheiro de todo mundo deixandonos apenas com R$ 50,00 cruzeiros (ou seria cruzados, não lembro qual era a moeda vigente, mas era uma coisa assim). Praticamente minha agência fechou do dia para a noite, a minha e a de todos os outros. 51
Aliás, muitas empresas fecharam as portas. Para minha sorte havia um cofre no meu escritório onde guardava algum dinheiro - nunca fui de deixar dinheiro em banco - coisa de filho de português que esconde dinheiro debaixo do colchão. Então, no meio daquela crise financeira, tinha um bom dinheirinho para custear alguma coisa que me desse algum lucro. Comecei a pintar quadros à óleo para passar o tempo, não havia muito o que se fazer com o mercado parado do jeito que estava. Também andei esculpindo em argila algumas peças pequenas e médias. O espaço que era destinado à minha agência de propaganda virou um atelier. Tive que mandar os funcionários embora, pois não havia trabalho para eles e ficou apenas o Chico, o officeboy, que na verdade morava no escritório - lá era a sua casa. Não dava para mandá-lo embora - virou filho, amigo, da família. A fase seguinte foi correr atrás de vender os quadros e as esculturas que nessa etapa já estavam fundidas em bronze. Entrei em um leilão de obras de arte e vendi bem uma peça. Isso me animou a continuar procurando compradores. Um marchand que esteve no leilão, ficou de ir no meu atelier para conhecer outras obras, e foi. Gostou, queria fazer negócio, mas faleceu dias depois. Saiu no jornal. Não desanimei e acabei vendendo quadros para os ex-clientes da agência; para lojistas; para síndicos de condomínios etc. 52
No princípio não estava acreditando muito no que estava acontecendo. Era um mundo novo que estava se abrindo, onde um artista plástico (em plena crise financeira do país) estava vivendo de vender sua modesta arte. Um dia me bateu à porta um sujeito querendo vender um violão, um Ovation. Era um vendedor insistente e acabou me vendendo aquele instrumento. Eu tinha um violão usado, que no intervalo entre uma pintura e outra, aproveitava para tocar e compor alguma música. Não gostava de tocar músicas dos outros, preferia fazer as minhas. E, foi assim, testando aquele violão com uma composição minha que agucei o interesse daquele vendedor. Conversamos muito sobre música (ele também era músico) e sobre artes plásticas, durante horas. Seu nome era Nosbor. Durante aquele papo o sujeito me confessou que sempre quis pintar um quadro, mas que não levava jeito para a coisa. Me fez uma proposta, inicialmente indecorosa, mas que depois me interessou porque resolvia todos os meus problemas. Na maior cara de pau (e para ser vendedor tem que ser mesmo cara de pau - coisa que eu não sou) me disse o seguinte: Eu compro as tintas, compro as telas, você pinta os quadros, eu assino o meu nome e vendo. Do que vender te dou 30%. Naquele exato momento a vontade foi de pular no pescoço dele e apertar. Como alguém tinha coragem de propor isso a outra pessoa? Me segurei, respirei fundo e disse que ia pensar no as53
sunto -, com ar meio de deboche. Com a mesma cara de pau de quem fez a proposta, avisou-me que passaria no dia seguinte para saber a resposta. Sinceramente, não achei que apareceria mais. Mas, apareceu. Naquela noite que antecedeu minha resposta, pensei nos prós e contra da proposta. Na verdade não queria fama, estava trabalhando para ganhar algum dinheiro até que a crise passasse. E também tinha o lado cômodo da coisa, pois não teria que me preocupar com vendas, - que, aliás, é um saco, ainda mais num mercado cheio de não-me-toques como é o mercado das artes plásticas. Pensei e cheguei a conclusão que esse trabalho a dois podia realmente dar certo, onde cada um faria o que sabia fazer de melhor. No dia seguinte, quando Nosbor apareceu, argumentei que aceitaria na base do meio-a-meio. Eu pintava, ele vendia e dividiríamos o lucro. Ele aceitou. Era um vendedor esperto, jogou baixo para eu subir a proposta - sabia, no fundo, que partiria para o meio-a-meio. Em um mês pintei mais de 40 telas e com a mesma rapidez que eu as pintava ele as vendia. No segundo mês mais uma leva grande de telas entreguei-lhe para vendas e as telas sumiam, voltava o dinheiro. Vendemos esculturas para boites famosas da época, para órgãos públicos, para universidades, partidos políticos etc. Telas, vendemos para todos os cantos do Brasil e até para o exterior. Com o dinheiro das obras comprei mais duas casas em Saquarema. Transformei aquela primei54
ra casa em uma fundição de bronze onde eu e alguns ajudantes, fundíamos as esculturas. O melhor disso tudo é que não precisava mais do escritório do Rio, que entreguei para a imobiliária, e passei a viver entre a casa de Saquarema (onde o Chico ficou morando junto com o Eduardo) e meu apartamento no Rio. Outra mudança radical foi não precisar mais ficar preso a horários. Trabalhava quando queria e na hora que achasse melhor, o que significava o fim de qualquer casamento. Eu e minha esposa não nos encontrávamos mais. Ela precisava cumprir seus horários, como empregada de loja, e, eu tinha a vida solta, como o diabo gosta. Mais um casamento que foi para o espaço. Comecei a fumar, beber e andar com muitos músicos da noite, todos amigos do Nosbor. Frequentava a vida noturna de todos os lugares da cidade do Rio de Janeiro (zona norte e zona sul) e da Região dos Lagos. Gastava horrores de dinheiro; tinha conta em muitos bares. Isso não me atrapalhava em nada, pois continuava produzindo obras de arte durante o dia. Muitas vezes, de porre, pegava a moto no meio da noite no Rio de Janeiro e ia para Saquarema. Não sei como chegava vivo, nem que santo vinha pilotando assumindo minha forma. Não lembrava de nada no dia seguinte, nem de ter pego a estrada, nem de como cheguei em casa. Quando chegava, dormia do jeito que estava, ou seja, dormia de casaco de couro, capacete e botas. Foi aí que os sonhos profundo voltaram a acon55
tecer. Eram diferentes dos outros, muito diferentes. Lembro de tudo. Largava aquele corpo bêbado na cama de meu quarto em Saquarema e partia para uma viagem em busca da luz do sol. Ficavam todos os utensílios pesados. Colocava uma camiseta, chinelinho de dedo, bermuda e ia para a praia pegar onda. Não ali, em Saquarema, ia para o Havaí, Califórnia, Taiti e por aí ia, para qualquer lugar longe dali, longe de qualquer coisa que me remetesse à vida que eu estava levando. Eram sempre tardes em meus sonhos, nunca noites. E, nessa alegria, entre uma ida e uma vinda, conheci uma jovem surfista com quem passei a pegar ondas mais frequentemente. Não quis saber seu nome, também não disse o meu. Descansávamos na areia e a conversa fluía sobre points novos, sobre alimentação natural, sobre vida saudável. Era o avesso do que vivia no mundo dos acordados. Entendi que tinha uma vida ruim na terra dos vivos e que estava me matando por nada ou por dinheiro. Embora trabalhasse com pinturas e esculturas (que adorava fazer), tinha, por outro lado, um vazio imenso que tentava preencher com bebida, amigos, festas e coisas desse tipo. Ali sozinho, com uma moça imaginária que nem sabia o nome, me sentia muito mais feliz do que com aquele monte de gente em volta, bebendo, fumando, falando alto, cantando. Era hora de mudar. Mas, como dizer para todos os amigos da noite: `Gente, parei, não dá mais’. Como? 56
Também ninguém havia me levado para a gandaia na marra. Fui por que quis e gostei muito durante um tempo, mas estava na hora de mudar de vida, de voltar a ter saúde para continuar vivo. Antes de essa despedida acontecer algumas coisas bacanas aconteceram e me guiaram a um novo horizonte. Algumas de minhas músicas eram tocadas frequentemente pelos amigos músicos nas noites e uma dessas canções acabou chegando a uma gravadora que a incluiu no disco de uma banda famosa. Não foi apenas uma inclusão simples, foi a música que deu nome ao disco e foi a música de trabalho daquela banda naquele ano de 1996. Ganhei uma bolada de dinheiro de uma vez só, fora o dinheirinho que aparece mensalmente em minha conta até hoje. Esse é o tal do direito autoral, que paga mal, mas paga. Se esse acontecido tivesse ocorrido nos Estados Unidos, com o sucesso que a música fez, eu estaria rico, muito rico. Mas, tudo bem, não dá para reclamar. Fui deixando de lado as artes plásticas e apostando minhas fichas na música profissional, aquela que paga direitos autorais. O Nosbor e eu viramos grandes amigos/irmãos. Tornou-se, por competência, um dos maiores marchands do mercado de artes do Brasil. Aquele ambiente noturno e aquelas pessoas frequentadoras de bares e inferninhos fui deixando de ver, deixando de aparecer, até que viraram apenas lembranças de um tempo transitório, que às vezes dá sau57
dade. Por conta daquela composição fui parar numa editora multinacional para assinar contrato de ‘compositor’. Era o emprego dos sonhos de qualquer um. Para as pessoas que me rodeavam, inclusive a família, virei um vagabundo que não cumpria horário nenhum, trabalhava tocando violão no banheiro e dizia que fazia música para os outros gravarem - doideira, né? Compus muitas músicas, até secar o assunto dentro de mim. Música parece fórmula matemática. Depois de um tempo é uma questão de rimas, frases melódicas, refrões com apelo popular e prestar atenção nos acontecimentos do dia-a-dia para não deixar passar a oportunidade de fazer alguma coisa em cima do lance. Compus sozinho e também com outros compositores famosos do cenário nacional. Além disso, escrevi, como jornalista, sobre música, autores, artistas, mercado, dentre outros assuntos. Promovi encontros de autores musicais, conhecido como Confraria Oficial dos Compositores, onde todos nós passamos a ver o rosto daquele camarada que só conhecíamos pelo nome que vinha abaixo dos títulos das músicas, impresso nas contracapas dos discos. Nesses encontros (todos patrocinados por editoras, sociedades de direito autoral, algumas gravadoras, fabricantes de instrumentos musicais e lojistas) os autores subiam ao palco e cantavam alguns de seus sucessos. O Chopp era por conta 58
dos patrocinadores e a entrada era franca, aberta ao público. A intenção inicial era formar novas parcerias, consequentemente, novas músicas. Entretanto negócios vultosos foram fechados nessas noites, como a contratação de autores exclusivos por editoras; a mudança de sociedade de alguns autores; venda de editoras etc. Foram 14 Encontros da Confraria Oficial dos Compositores entre a cidade do Rio de Janeiro (RJ) e a cidade de Salvador (BA). A música estava em mim 24 horas por dia. Tudo que fazia estava ligado à música. Sonhava compondo e acordava com músicas prontas. Alguns compositores diziam que nós, autores, éramos como antenas que captavam a música que estava no ar. Acredito que somos antenas, mas que sentimos a música que sopram em nossos ouvidos. Algumas vêm em pedaços, mas muitas vêm inteiras - letra e melodia, como se alguém tivesse cantarolado no pé do seu ouvido. Foram mais de 20 anos vivendo só de música. Um dia cansei.
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Capítulo 9
Quando o sonho não é mais um sonho
O mercado musical é um dos piores redutos de picaretas existentes nesse país. Claro que como em todo mercado existem os bons e os maus profissionais. Quando se lida com o sonho de alguém, entra-se numa camada de sentimento muito profunda, como: na esperança, no sonho de se tornar alguém famoso, rico, bemsucedido etc. Só a música tem esse poder de iludir alguém tirando-a da realidade e remetendo-a ao estrelato (em seus sonhos e pensamentos) do dia para a noite, sem precisar, necessariamente, de escolaridade, dinheiro ou apadrinhamento político. Mas é tudo mentira! Não há sucesso sem dinheiro, sem investimento, sem os mecenas envolvidos na música. Não se iludam. Durante essa fase da minha vida, onde a música me consumia, com frequência, sonhava com pessoas cantando, pessoas compondo comigo; instrumentos 60
variados; minhas músicas tocando em rádios, televisões, filmes etc. Era isso o tempo todo, todos os dias. Só existia um assunto: música. Particularmente, me interessava o mundo dos compositores, os verdadeiros criadores da música. E, esse mundinho estava ali, na palma da minha mão, onde conhecia quase todo mundo, desde o humilde compositor aos mais consagrados; dos editores das multinacionais aos presidentes das associações de compositores. O glamour ficava por conta da outra metade da música, a metade conhecida do público: os intérpretes e suas gravadoras. Compor não é tarefa difícil. Junta-se uma melodia com uma letra e tem-se uma música. Difícil é encontrar as palavras certas ou aquela nota que vai emocionar o ouvinte. Aquela palavra que faltava para fechar uma composição ia buscar nos sonhos e muitas vezes achava-a. Por vezes sonhei com conversas minhas com autores já idos, como Adelino Moreira, Efson, Adalto Magalha, Gastão Lamounier dentre outros. Muitos deles eram conhecidos meus, outros tão pouco sabia que existiram como autores musicais. Como membro de sociedade de direito autoral, esbarrava com muitos compositores na época das eleições de diretorias e mesmo em dias comuns quando ia pegar um adiantamento (advance) a fim de pagar alguma conta. Isso era e ainda é uma conduta comum nesse meio. Adelino Moreira conheci quase no final de sua vida. Efson, esbarrava 61
quase todos os dias em frente ao Amarelinho (restaurante na Cinelândia, Centro da Cidade do Rio de Janeiro) ou por ali, perto do Teatro Rival; com Adalto, na Sadembra (sociedade de direito autoral) sempre no final do mês quando ia receber sua parte e eu ia visitar algum amigo da diretoria. Gastão foi meu parceiro. Adelino, quando o conheci, já andava com dificuldade, apoiando-se numa bengala e era muito emotivo. Compôs mais de 300 músicas para Nelson Gonçalves - todos os seus maiores sucesso, além de outro tanto de músicas para outros artistas. Como jornalista e músico, entrevistei-o para uma revista de música em certa ocasião, na sede da Sbacem (sociedade de direito autoral a que pertencia e que já fora presidente) e lembro de tê-lo feito chorar. Naquela entrevista tentei conduzilo ao passado, fazendo-o lembrar de suas dificuldades como autor musical, de mostrar suas músicas. Contoume toda sua vida e como conseguiu chegar ao grande cantor Nelson Gonçalves. Depois, emocionado ainda, confidenciou-me como foi tê-lo como parceiro a vida inteira. Ia falando e chorando ao mesmo tempo. Tínhamos que fazer pausas para que bebesse água e se recompusesse. Levamos uma tarde inteira conversando e gravando para depois eu converter aquelas mais de 5 horas de matéria falada em um texto que não desmerecesse sua obra. O resultado final ficou ótimo!! Matéria de capa da revista. Meses depois soube de seu falecimento. Acho que aquele choro fora de saudade e de 62
saber de seu dever cumprido, com muita dignidade, para a tarefa que Deus lhe dera nessa vida. Adelino não era apenas um dos autores que eu recorria nos meus sonhos em busca da palavra certa para terminar uma música, não, ficamos amigos e conversávamos sobre muitas outras coisas. Fora ourives, entendia muito dessa arte que aprendera com seu pai, em Portugal. Tinha um restaurante, tipo rodízio de carnes, em Campo Grande (RJ), que comprou com dinheiro da música e que lhe sustentou durante as vacas magras que a música sempre passa, principalmente nos anos finais de sua vida, quando suas músicas não mais tocavam nas rádios. Nos meus sonhos, era lá, nesse restaurante que nos encontrávamos para botar a prosa em dia sobre o mercado musical, o modismo, a nova safra de cantores e compositores. Ele gostava de Caetano Veloso cantando e, na época da entrevista, ainda sonhava em vê-lo gravando uma de suas músicas. Ainda hoje, quando estou em crise existencial é para aquela churrascaria que vou passar algum tempo, saborear um bom churrasco e conversar com um sábio da música popular. Antes que me esqueça: Adelino, um dos grandes autores da música popular brasileira era português. O fato é que eu estava afinado com meus sonhos e a realidade não me parecia diferente. Achei que poderia arriscar passos em outros caminhos e a música deixou de me iludir de um dia para o outro. Não queria 63
mais saber de melodias e letras com rimas; daquele mercado tendencioso; das panelinhas; da vigarice; das pessoas que se aproveitam dos sonhos alheios para encherem seus bolsos... Cansei daquilo tudo. Enfim, sem mais pensar em música, agora queria apenas viver meus sonhos e entrar nos sonhos dos outros. Queria tentar entrar no sonho da minha mãe, da minha namorada, dos meus amigos, dos meus irmãos, dos meus clientes e ajudá-los, positivamente claro, em suas decisões. No princípio hesitei por considerar errado, nem que fosse por segundos, entrar na cabeça dos outros. Depois me perdoei por tentar fazê-lo. E, se conseguisse? Não existia qualquer obrigação de influenciar ninguém em nada, poderia ser apenas um observador, como o era em tudo até o momento. A curiosidade me fascinava mais do que a lógica. Na verdade não tinha nenhuma certeza de que iria funcionar. Talvez funcionasse só para mim. Fosse só um sonho, minha imaginação fértil vagando por aí, passando 8 horas do sono inventando aonde ir e o que fazer. Não tinha nada a perder, então por que não tentar? E, se desse alguma coisa errada, não tinha que me preocupar, ninguém poderia me acusar de nada. O que poderia dar errado? A primeira experiência foi com minha recente namorada, Mônica, claro, era a pessoa mais próxima naquele momento. Resolvi visitá-la, em seus sonhos. Ela não era o tipo de mulher que eu pudesse dizer que tinha sonhos especiais e que, de vez em quando conversava 64
com mortos ilustres como D. Pedro II. Não estava preparada para esse tipo de informação. Era terráquea mesmo, com os pés fincados na realidade dos acordados. Tinha acabado de passar no vestibular para a faculdade de informática e estava muito feliz. Da minha parte, estava nessa entressafra, saído da música e procurando o que fazer para ganhar algum dinheirinho. Tinha uma remuneração mensal dos direitos autorais que me segurava bem as contas, mas com o tempo sabia que a grana ia diminuindo. As músicas vão tocando menos nas rádios e o autor tem que fazer novas composições para ir mantendo sua existência. A tendência é que novas músicas substituam as antigas e assim infinitamente. Então, aqueles sucessos dos anos 30, 40, 50 60, 70, 80, 90 etc, já não sustentam mais nenhum autor, pois não tocam mais e se não tocam o compositor não recebe. O fato é que eu estava de bobeira e não tinha nada para fazer. A cabeça estava livre, preocupada, claro, mas livre para pensar no que quisesse. Resolvi sonhar com minha namorada, ir lá em sua casa, cutucá-la durante seu estágio de descanso profundo e fui. Não era uma noite comum na cidade do Rio de Janeiro, pois estava frio quando me deitei, adormeci e vaguei. Fui visualizando seu quarto - todo trancado, portas e janelas. Entrei transpassando tudo, afinal estava sonhando e sonhando tudo é possível, incluindo aí aparecer em qualquer lugar por mais trancado que es65
teja. A vi deitada, coberta, segurando um travesseiro debaixo do braço e um outro, menor, entre suas pernas. Faltava-lhe um travesseiro na cabeça. Estava no chão. Me pareceu que ia acordar com dor no pescoço, pela posição que estava. Peguei o travesseiro do chão e coloquei-o debaixo de sua cabeça, devagar, não queria acordá-la. Ela resmungou alguma coisa, a princípio me assustei, depois achei que estava falando dormindo - muito comum em algumas pessoas. Sussurrei que estava tudo bem - ela pareceu me ouvir. Abriu os olhos, sonada, mas não assustada, indagou-me o que eu estava fazendo ali. Naquele momento achei engraçado e tranquilizei-a falando pausadamente: "Isso é um sonho, você está sonhando. Logo vai amanhecer. Durma". Ela fechou os olhos e dormiu novamente. Resolvi colocarlhe as meias, pois também estavam no chão e aquela madrugada me parecia ter esfriado mais. Coloquei-as, lentamente, com cuidado. Um movimento brusco poderia acordá-la, talvez. Mesmo assim, ela mexeu com os pés, abriu os olhos novamente. Fiz sinal de silêncio com o dedo vertical na frente da boca, fechei-lhe os olhos com os dedos e ela voltou a dormir. Fiquei mais alguns minutos por ali a vendo dormir e fui embora. Me deu vontade de andar pela madrugada e passei num bar, onde tocava um antigo amigo, o Marinho, também fiquei só por alguns minutos ouvindo sua música, não queria interrompê-lo, fiz-lhe sinal que passaria depois, enquanto ele cantava, e voltei para casa. De 66
manhã acordei cansado, muito cansado e dolorido, como se tivesse feito muita ginástica. Doía-me as pernas, os braços, a coluna e até os dedos. Que dor nos dedos!! Fui tomar um banho quente para ver se melhorava. Também me senti um tanto enjoado e não consegui tomar café, nem comer pão. Era um mal estar conflitante. Entendi que tinha feito alguma coisa que me tirou energia, que essas coisas precisam de uma melhor explicação para continuar a serem feitas e que o tempo da ação era um fator importantíssimo. Uma noite inteira, aproximadamente as oito horas do sono profundo equivaliam há alguns segundos de visita. Isso demandava um esforço imensurável. Foi cansativo. Me deu vontade de procurar a Nathália, certamente ela teria a resposta para as minhas dúvidas. Mas o orgulho foi maior que eu, além do mais ela havia me bloqueado para sempre e, nesse caso, teria que tentar um contato telefônico ou pessoal. Melhor deixar quieto. Deixei. Tinha que ser pela lógica. Nunca havia feito contato tão íntimo com pessoas vivas, do mundo dos acordados. Nunca havia tocado, nem deslocado algo real durante um estágio de sonho e isso certamente me tirou a energia vital. Corri risco e precisava me preparar para ações futuras, progressivas, até que o meu eu, físico e mente, estivesse em alinhamento com o meu eu, do mundo dos sonhos. Não liguei para Mônica no dia seguinte, não queria dar bandeira. Tinha que ficar na minha e esperar 67
que ela tocasse no assunto. Se é que ela ia tocar no assunto ou lembrar de alguma coisa! Se é que eu estive em seu quarto de fato. Ela acordou mais tarde do que o normal, pois me ligou às 11 horas da manhã dizendo que havia acordado com uma forte dor de cabeça: - 'Acordei com uma enxaqueca danada. Você esteve aqui ontem à noite, de madrugada?', perguntou-me, com a voz ainda sonada. - 'Não, claro que não', respondi - 'Ah, tá! Então sonhei contigo', explicou - 'Que bom', respondi, - "Tome uma Neosaldina, depois a gente se fala, tudo bem', continuei. - 'Ai, minha cabeça! Tem certeza que você não veio aqui, né?`, insistiu. -`Claro que não', afirmei. -'Ah tá. Então a gente se fala depois', concluiu. Mesmo querendo comemorar minha façanha - e comemorei internamente, claro, sem dar um grito, no silêncio da minha alegria, - fiquei preocupado com as consequências que aquela visita havia causado em mim e nela. Precisava de respostas. O corpo só cansa quando demanda um grande esforço físico ou fica acometido de forte emoção durante um longo tempo. Massa muscular e sentimento não pareciam estar em sintonia. Precisava me preparar mais, tanto fisicamente, quanto emocionalmente, para 68
as coisas que viriam pela frente. A alimentação fazia parte dessa nova etapa. Tudo o que fosse pesado deveria ser retirado da minha dieta, como carnes e massas. O jeito era partir para a alimentação natural, à base de verduras; água e peixes, também frutas antioxidantes. Um verdadeiro sacrifício para quem gostava de saborear um bom churrasco. Era uma mudança de vida e sabia disso. Estava me preparando para uma experiência perigosa que não teria êxito se não houvesse uma dedicação total da minha parte. Meu mundo foi ficando mais solitário do que já era. Não tinha como falar dessas coisas para as pessoas acordadas, vivas. Com todos os problemas que o mundo dos acordados tem, no mínimo iam me rotular como maluco, e, uma vez rotulado, já era, para o resto da vida você será 'o maluco'. No mundo dos sonhos todos tinham suas viagens, às vezes tínhamos os mesmos sonhos, às vezes não, mas não era uma turma real. Tirando a Nathália, de fato, não conhecia ninguém do mundo dos acordados que tivesse alguma coisa para trocar comigo sobre esse assunto. Os idos, provavelmente, eram também frutos da minha imaginação. Minha pretensão de atuar no mundo real dos acordados, só que dormindo, me assustava tanto quanto me desafiava a ver onde isso poderia dar. Eles estariam descansando seus corpos e mentes num ambiente que eu frequentava com alguma experiência. No início, meu foco pretensioso, se destinava ape69
nas em entrar em seus sonhos para estudar as possíveis alterações que eu poderia fazer, na intenção de orientá-los em direção da paz interior. Tinha que escolher, a dedo, quando e quem iria visitar. Teria que ser uma escolha precisa para não entrar na cabeça dos outros na hora errada, quando estivessem em confrontos pessoais ou com outras pessoas. Não queria participar de brigas de namorados, dramas familiares ou problemas no trabalho, pelo menos não naquele primeiro momento. Queria visitar pessoas de bem com a vida, felizes, sem grandes problemas existenciais. Tinha a esperança de que uma dessas pessoas poderia se tornar uma companhia futura. Na realidade, me sentia muito solitário nesse caminho onde não tinha a menor ideia de onde ia me levar. Tinha medo de, em algum momento, precisar de ajuda e não poder contar com ninguém. Naquele dia, mais tarde, lá pelas 17h00min horas Mônica voltou a me ligar querendo marcar uma saidinha. Sugeriu um bar, discordei, estava querendo já partir para a limpeza do corpo e barzinho não combinava com nada do que havia definido. Mas foi insistente, queria sair. Marcamos então num restaurante de comida natural. Disse-lhe que queria experimentar esse novo conceito de alimentação e ela não reagiu negativamente. Ficamos de nos encontrar as 20h30min horas na porta do restaurante. Confesso que passei o dia inteiro sem comer nada, na dúvida do que comer. Minha dieta 70
começou no momento que decidi partir para essa proposta. Então era, como se diz popularmente, 'calça de veludo ou bunda de fora', 'ou tudo ou nada', 'se é para fazer, faça-o direito, com todas as normas, como manda o figurino'. Na hora marcada estávamos lá, na porta do restaurante. Entramos. Peguei imediatamente o cardápio e li do primeiro ao último item. Nada me agradava. Ela, depois de também ter conferido o cardápio, resmungou: 'tem certeza que você quer comer aqui?'. Dizer o quê naquela situação? Respondi que queria experimentar coisas mais saudáveis, mas que realmente não tinha a menor ideia do que pedir. Depois de explicarmos ao garçom que era nossa primeira vez naquele ambiente, deixamos que ele sugerisse o que comeríamos. Algumas coisas não agradaram pelo nome, ficamos com o que conhecíamos. Enquanto a comida não chegava, ela tocou no assunto novamente: - 'Eu acho que sonhei com você essa noite. Meio estranho, pois parecia que você estava no meu quarto. Não sei o que você fazia lá, mas me mandou dormir'. Mônica me olhou nos olhos, deu um sorriso debochado, e continuou: - 'Eu acordava e você me mandava dormir novamente', e sorriu novamente... - 'Não conseguia abrir os olhos. Parecia que estava bêbada de sono', comentou desconfiada. Dei uma de gostoso e larguei essa: 71
- 'Hum, sonhando comigo, hein! Você está apaixonada?', brinquei. - `Apaixonada sempre fui, bôbo! E sonhar com você, já sonhei outras vezes, mas dessa vez foi diferente, foi como se você estivesse ali, no meu quarto, tomando conta de mim', emendou. - 'Claro que estava tomando conta de você. Quem mais iria tomar conta de você dormindo?', brinquei. - 'Essas coisas acontecem, de sonhar com pessoas próximas, principalmente quando estamos nos relacionando mais intimamente. Que bom que foi um sonho e não um pesadelo', debochei. Nós não estávamos namorando há tanto tempo assim, não havia tempo para nos conhecermos tão bem. Nossa relação não tinha nada de profundo. Gostava dela e sentia que ela gostava de mim, mas era um início de relacionamento, não tínhamos aquela confiança necessária para abrir certas intimidades, falar de coisas secretas, coisas que casais com longo tempo de relacionamento compartilham. Namorico de final de semana que se estendeu por mais algumas semanas. Já tinha, inclusive, passado da data de validade, porém, como não era um relacionamento que exigisse nada, pois não havia cobrança alguma, de nenhuma das partes, foi ficando. Eu nem sabia se ela gostava de comida vegetariana ou se preferia coisas mais pesadas. Naquela mesa, naquele momento, estávamos dando um passo em direção ao destino de nossas vidas, juntos ou separa72
dos. Mônica tinha os números como fator principal de sua vida. Adorava cálculos e era aficionada pelos binários, a linguagem dos computadores. Pura lógica. A matemática binária é a matemática exata, onde não há fração ou dízimos. 0 e 1, simbolicamente significam: apagado e aceso, certo e errado, sim e não. Nessa leitura não é considerado nada que não seja uma explicação exata. Foi aí que ela me pegou. Não adiantaria inventar historinhas para convencê-la de que não estive com ela naquela noite. Mas também não dava para dizer a verdade por ser tão absurda quanto uma mentira deslavada. Depois das brincadeiras tentando desviar do assunto, ela me encostou na parede dizendo a seguinte frase (olhando no meu olho e segurando na minha mão com força, como se quisesse quebrar meus dedos ou coisa parecida): -'Legal. Adoro essas brincadeirinhas, mas eu te vi e falei com você. Você me colocou as meias e o travesseiro debaixo da minha cabeça. Eu, por algum motivo, não conseguia abrir os olhos, mas sentia tudo e quero saber como foi que você entrou na minha casa que estava toda trancada, inclusive as janelas. Quando acordei conferi tudo. Não tinha por onde você entrar!' , esbravejou. Tinha que arranjar uma resposta decente antes que ela, de fato, me quebrasse os dedos. Estava aflita por respostas. Diante de tanta certeza decidi lhe contar 73
sobre os sonhos que tive. Primeiro lhe pedi calma, pois tudo poderia ser explicado: - ‘Claro que não estive no seu quarto, não fisicamente. Mas, posso ter estado em seus sonhos ou nos meus sonhos. Também já tive sonhos como esse que você teve... sonho tão real que a gente acorda impressionado...’ Ela foi afrouxando meus dedos até largá-los. Abaixou a cabeça, como se quisesse que eu lhe contasse uma outra história. Ficou decepcionada. Achei por um momento que podia contar-lhe toda a verdade, mas temi uma reação de decepção maior. Certamente ela preferia que tivesse lhe contado que invadira sua casa na madrugada. Por pior que parecesse, seria mais fácil de compreender. Não pude parar por ali, tinha que ter um desfecho convincente para aquele enredo e arrisquei contar-lhe do sonho que tive com Dom Pedro: - ‘Uma vez, tive um sonho tão real que fiquei um mês impressionado. Sonhei com Dom Pedro II, na França...’ Suspirei fundo, demonstrando que ia começar a contar uma longa história. Nesse instante Mônica deu uma gargalhada daquelas de chamar a atenção de todo o restaurante. Brincando, me chamou de palhaço e mudou de assunto: - ‘ Palhaço! Tá bom! Já me convenceu. Vamos jantar?, descontraiu-se. A comida havia chegado, me salvando de querer contar-lhe outras histórias. Jantamos salada completa 74
com atum. Uma delícia (melhor que tofu ou carne de soja - primeira sugestão do garçom), saí do restaurante com uma sensação de fome. Nos despedimos na porta de sua casa. Me desafiou a subir, para conhecer seu quarto, de verdade. Desconversei. Foi difícil dizer-lhe adeus. Não terminei o relacionamento, mas sabia que ela não iria mais me ligar e nem eu para ela. Havíamos entrado em lacunas delicadas de cada um. Do meu lado, achei produtivo tentar me abrir e ver a reação de outra pessoa. Percebi que seria muito difícil compartilhar alguma coisa sobre o que estava vivendo com alguém do mundo dos acordados, havia uma grande distância entre nós. Precisava ter mais cuidado com essas coisas, pois dependendo da situação, poderiam até me internar num sanatório. Nem tudo é compreendido e nem tudo precisa ser explicado. Cada ser segue por um caminho, só seu, e cabe apenas a este as devidas explicações, do jeito que lhe convier.
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Capítulo 10
Meu pai e a Contadora
Podia ter deixado Mônica mais perturbada se tivesse lhe contado o que aconteceu com meu pai e sua Contadora num episódio vivido por nós três. Como eu era filho de pais separados e tinha cinco irmãos (três homens do mesmo pai e da mesma mãe, uma irmã por parte de pai e uma irmã por parte de mãe) e nenhum deles fazia qualquer média com os velhos, resolvi tentar dar-lhes alguma atenção passando algum tempo em suas casas. Nunca apareci de surpresa, sempre ligava avisando que ia passar o final de semana. Em algumas ocasiões me descartaram por terem compromissos, acredito. Mas isso não me afastava deles, pelo contrário, compreendia, afinal de contas as pessoas têm suas vidas e nem sempre estão dispostas ou prontas para agregar outra pessoa em sua residência, mesmo que seja apenas por um final de semana. Eram meus pais e eu os respeitava. 76
Meu pai era um sujeito difícil de conviver. Ora estava de bom humor e nada o abalava, ora estava agressivo e qualquer palavra o irritava, típico bipolar. Havia se casado 6 vezes depois de minha mãe, que fora sua primeira esposa. Independente de ser mulherengo, que o era de fato, era um homem trabalhador e criativo. Filho de portugueses, encarava qualquer tipo de serviço. Foi dono de algumas empresas, porém, como começou a trabalhar muito cedo, aos 12 anos, colocou em sua cabeça que aos 40 anos iria se aposentar, mesmo sem pagar o INPS (naquele tempo era assim, depois é que virou INSS). Dizia que iria conseguir um jeito de não depender do governo para se aposentar e teria conseguido mesmo. Comprou vários imóveis na intenção de alugá-los e viver dessa renda. Não tinha luxo algum. Não bebia, não fumava, não gostava de festas, ou seja, não tinha gastos com supérfluos Entretanto tinha muitos amigos duros, sem dinheiro; antigos amigos que não deram certo em seus trabalhos e viviam lhe pedindo ajuda, seja financeiramente, seja em forma de emprego em suas empresas. O que acontecia na sequência dessas histórias já era de se prever: não pagavam o que deviam e/ou acabavam despedidos por justa causa, por abandono de emprego, por excesso de faltas, enfim essas coisas. No final de sua vida tinha apenas uma namorada, que lhe acompanhou até no velório, amigos nenhum. Os imóveis havia dado aos filhos anos antes de morrer - para que não houvesse 77
briga por herança. Escolheu a dedo o imóvel de cada filho e cada um recebeu o seu no momento que ele convencionou que seria o mais adequado. Para cada filho, intimamente, ele dizia: Você é o filho que eu mais gosto. Mas, lembrando da reação de Mônica quando afirmou ter me visto em seu quarto, acredito que, antes de me encontrar, se alguém tivesse lhe perguntado se eu estive em seu quarto naquela noite, ela teria jurado que sim. No momento em que estava decepcionando-a enveredando para outra situação, veio-me à cabeça o ocorrido com meu pai num desses finais de semana que fui passar com ele. Era uma manhã de segunda-feira e estávamos acordando. Eu já vestido e preparando o café da manhã; ele ainda na cama, acordado, mas ainda deitado, quando o interfone tocou. Atendi, era a Clarinha, sua contadora, perguntando se meu pai estava em casa. - ’Está sim’, respondi e liberei a entrada. Fui ao quarto e o avisei que a contadora estava subindo. Meu pai deu um pulo assustado: - ‘Clarinha, aqui, segunda-feira de manhã! Deu merda!!’, comentou. - ‘Vista-se logo pai, de repente você vai ter que sair correndo, né?’, aconselhei-lhe. - `Já fez o café?, perguntou. - ‘Tá pronto, vai tomando que abro a porta’, respondi, já me encaminhando, rapidamente, para a recepção. 78
Abri a porta e fiquei esperando o elevador chegar. Clara não parecia estar ali para resolver problemas de trabalho, pois não estava vestida, como sempre estivera, com roupas de quem ia trabalhar. Estava à vontade, de bermuda, camiseta, óculos escuro e bolsinha tipo ‘vou à praia’. - ‘Onde ele está’, perguntou-me. - ‘Está na cozinha tomando café’, respondi. E, se dirigiu para lá, e eu atrás. Chegando na cozinha agradeceu ao meu pai pela ajuda que lhe dera naquela madrugada: - ‘Você sumiu!! Eu vim aqui te agradecer pela força que você me deu e a toda a minha família naquele acidente. Queria ter lhe agradecido naquele momento, mas, de repente, você sumiu. Achei que íamos nos encontrar mais tarde...’, declarou. Meu pai me olhou, como quem quisesse dizer ‘do que é que essa mulher está falando?’ Levantou os ombros e abaixou-os, e me olhou dizendo: ‘Então não deu merda no trabalho?’, surpreso. Ela também me olhou e perguntou: - ‘Que merda? Que trabalho é esse?’ O velho seguiu dizendo: - ’Clarinha, eu não sei do que você está falando. Estive aqui o final de semana inteiro. Ontem até acabei adormecendo mais cedo. Estava vendo um filme com meu filho e apaguei. Acordei agorinha com você me agradecendo por alguma coisa que eu fiz ontem. Por favor, vamos começar do começo. O que aconteceu ontem e 79
o que foi que eu fiz para você me agradecer?’, perguntou. - ‘Sérgio (meu pai se chamava Sérgio), eu bati com o carro ontem, no centro da cidade de Teresópolis. Foi uma batidinha leve, mas o cara, o dono do carro batido, queria me matar. Estavam no meu carro, meu pai, minha irmã e meu filho. Nós saímos do carro para ver o estrago que fiz. Foi uma besteira, mas o camarada queria que eu pagasse, naquela hora, R$ 1.500,00 reais de prejuízo. Partiu pra cima de mim quando lhe disse que não ia pagar nada, que não tinha dinheiro. Seguraram o cara e foi aí que você apareceu e me disse para ficar calma, voltar para o carro com minha família e ir embora que você ia resolver. Foi exatamente o que fizemos. Entramos no carro e fomos embora enquanto você conversava com aquele doido. Antes de descermos a serra, por eu estar nervosíssima, resolvemos procurar algum lugar para tomar um café, tomar um calmante, dar um tempo até que os ânimos se acalmassem. Também ficamos pensando em você, onde você estaria; se deu tudo certo; saber, enfim, do desfecho daquele lance. Achamos que você iria entrar em contato, nos procurar, sei lá! Agora você vem me dizer que esteve aqui o tempo todo com seu filho? Não foi só eu que te vi, foi minha família toda. Como pode?` - `Clara, nem sei o que te falar. Deve ter sido alguém muito parecido comigo, só pode ser. Juro, por tudo que é mais sagrado que não fui eu que estive lá te ajudan80
do. Isso é sério. Estive aqui mesmo. Dormi cedo, só se fui lá em sonho, mas nem isso posso afirmar pois não lembro com o que sonhei. Ainda bem que tudo deu certo, ainda bem que estão todos bem`, concluiu.
Depois de me lembrar desse episódio fico convencido que esse negócio de se transportar durante o sono é hereditário. Entretanto, tenho absoluta certeza que meu pai morreu sem saber que tinha esse dom. Devem ter acontecido outras situações como essa, e, certamente, ele não soube explicar. Também não contou para ninguém por achar maluquice dos outros. O mais engraçado disso tudo é que sempre sonhei com todos os idos da minha família, também com amigos e até pessoas que nem conhecia. Muitas vezes para atender alguém que pediu, a fim de saber se estavam bem. A única pessoa que até hoje não consegui sonhar foi com ele, Seu Sérgio. Porém tenho certeza que onde quer que esteja, está bem.
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Capítulo 11
Os irmãos
Visitei meus irmãos durante as madrugadas frias de julho, da cidade do Rio de Janeiro, um a cada dia. Tinha que fazê-lo. Não mexi em nada, apenas passei por seus quartos e rezei por eles. Deus, onde quer que esteja não me punirá por querer protegê-los. Nunca fomos muito próximos, embora irmãos, tínhamos cada um a nossa turminha distinta. Ao crescermos, na fase da adolescência, cada um descambou para uma atividade diferente. Acabei optando em passar mais tempo morando na casa de meu pai (quando não estava casado) ou minhas avós, que moravam sozinhas. Achava que fazer-lhes companhia seria útil. Minha mãe não reclamava, então eu ia. Os outros 3 filhos, talvez dessem menos trabalho do que eu sozinho. (A quarta filha de minha mãe só viria a nascer décadas mais tarde). Não tinha nenhum problema de relacionamento com meus irmãos, só pensávamos de maneiras dife82
rentes, eu respeitava isso. Eu queria estudar e trabalhar, sempre quis, tanto que comecei a trabalhar, como já contei, com 14 anos. Eles, nessa idade, pensavam em praia, em rua e coisas normais de adolescentes. Tínhamos apenas essa lacuna, difícil de preencher com uma só palavra. Rezei sim para eles, seus filhos e esposas. As notícias que minha mãe me contava sobre suas vidas não me deixavam à vontade. Problemas familiares com suas esposas e filhos; problemas financeiros; falta de paciência em determinadas situações; crises de meia idade etc. Já não éramos jovens, tínhamos envelhecido. Eu, o mais velho, estava beirando os 40 anos. O tempo voo e eu os perdi pelo caminho. Não os via fazia tempo. Ao entrar em seus quartos percebia algo que traziam do tempo da juventude: utensílios expostos, seus troféus, suas esquisitices. O desejo de ser alguém que estava num poster preso na parede; um recorte de revista fazendo crer ser alguma coisa sonhada e não acontecida; a vontade de ter feito coisas que ainda pensava ter tempo de fazer um dia. Todos estavam parcialmente calvos e de cabelos esbranquiçados. Ali, vendoos dormir diante dos meus olhos, pensava em todos os conflitos familiares que tivera durante toda a minha existência. Cada um deles representava uma parte da minha vida e eu da vida deles. Queria poder ter interferido em suas escolhas para colocá-los em estradas mais amenas, mas entendo, hoje, que o caminho a ser se83
guido fomos nós que escolhemos seguir. Não é a falta de maturidade da infância ou a rebeldia da adolescência que vai mudar o rumo da sua história, não é mesmo! Existe um momento na vida, a hora da guinada, onde a gente faz o que precisa fazer, e, é aí que determinamos o chão por onde passaremos. Também nunca é tarde para se arriscar em novos caminhos, precisa apenas de coragem. A satisfação de sua vida só é dada a você. ‘Esse nariz é meu e eu o coloco onde quiser’, ouvi isso certa vez de uma colega de escola. Cá com meus botões, pensei, ‘mas se você quebrar o nariz, embora a dor seja sua, será sua mãe que terá que fazer-lhe os curativos; gastar dinheiro com farmácia; preocupar-se com médico etc. São as consequências que mais incomodam. Precisamos fazer as coisas que desejamos sem deixar rabo de fora. Viver dependendo dos outros gera satisfação alheia, obrigatória. Viver em sociedade é estar constantemente sendo vigiado e julgado. Quem quer liberdade precisa se retirar do convívio social. Só os selvagens vivem em liberdade.
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Capítulo 12
Descobrimento
Depois de voltar a ver meus irmãos também visitei alguns primos, tios e, finalmente, minha mãe, que já beirava os 90 anos - lúcida de pedra. Ninguém me ligou para dizer que sonhou comigo. Certo dia voltei a namorar meu violão e ao desencapá-lo percebi uma corda rompida e as demais muito velhas. Precisei comprar um novo encordoamento e fui até o Centro da Cidade onde, na Rua da Carioca, existem dezenas de lojas de instrumentos. Conhecia todas e todos os seus respectivos proprietários, foram clientes meus quando fazia pautas para uma revista de música. As coisas que o destino escreve em linhas sinuosas é que nos deixam de cabelo branco. Encontrei o Marinho num desses estabelecimentos - também comprando encordoamento - que se dirigiu a mim me surpreendendo: - 'Qualé Valentim, ficou de voltar lá no bar naquela noi85
te, te esperei, e você não apareceu!', cobrou o velho amigo. - 'Que noite? Quando foi isso?', perguntei, já com medo da resposta. E ele descreveu a noite que passei no bar onde tocava, depois de ter saído do quarto de Mônica. Fiquei sem palavras. Como seria possível ele ter me visto? E se alguém mais me viu? Como poderia ser verdade uma coisa que acontecera apenas em meus sonhos? Na pior das hipóteses, eu estaria me materializando em dois lugares, já que meu corpo ainda estava na cama dormindo. Fiquei assustado e quis saber mais. Dei uma de esquecido e incentivei um relato: - 'Ando com a cabeça cheia de problemas. Devo estar surtando. Como é que eu estava vestido, você se lembra?', perguntei. - 'Lembrar assim, não lembro não. Mesmo porque você não entrou no bar, fez sinal lá de fora, e também eu estava tocando, né? Não deu para focar em você', explicou. - 'Claro. Você tem razão. É que não consigo me lembrar de ter passado lá. Eu devia estar saindo de alguma furada, de cabeça cheia, me desculpe', desenrolei, me desculpando. - 'Vou fazer uma turnezinha pela Região dos Lagos começando nesse final de semana. Dez bares. Quer fazer um duo? Não é muita grana, mas dá pra pagar as contas. Vamos?`, convidou-me entusiasmado. Pensei, rapidamente, e vi que não tinha nada à 86
perder, mesmo por que naquele momento não tinha nada para fazer e aceitei o convite. Já nos conhecíamos há bastante tempo e o repertório não tinha nenhum mistério. Tocávamos algumas músicas juntos (as mesmas de sempre) e depois ele faria um set sozinho e eu, depois, faria outro. No final, tocávamos novamente juntos a saideira. Foi muito legal voltar a respirar música. Viajamos no carro do Marinho que já estava todo montado com os equipamentos (amplificador, caixas, pedestais, microfones, cabos etc). Levei apenas uma mochila com roupas e meu violão. A parte estranha ficou por conta da alimentação e bebidas. Ele, normal, bebendo e comendo tudo que podia e lhe era oferecido, e eu, me segurando para não embarcar nessa. Sucos, frutas e saladas eram a base da minha alimentação. Peixe, de vez em quando, pois era caro. Ficamos pouco mais de três semanas tocando em bares de várias cidades e no final pegamos estrada de volta em direção ao Rio. Passando por Bacaxá (bairro de Saquarema que beira a estrada) pedi que parasse o carro e avisei que ia ficar por ali mesmo. Tinha que ver minha casa que andava esquecida com meus amigos Eduardo e Chico. Era uma segunda-feira, à noite, e o local estava vazio, parecia um bairro fantasma. Não passava ônibus e minha casa ficava distante dali. Não havia outro jeito, tive que ir andando mesmo. Bom para pensar e ver a paisagem que continuava igual - nada havia mudado 87
parecia que o tempo havia esquecido aquele lugar. Não pisava em Saquarema há um bom tempo. Devo ter levado um pouco mais de 40 minutos caminhando com mochila pesada e instrumento. Embora a cidade seja pacífica e pouco se sabe de assaltos ou coisas que aconteçam de violência, fui andando meio ressabiado, pois as coisas podiam ter mudado, nunca se sabe. Cheguei no portão de casa cansado. Percebi que estava rolando uma festinha, em plena segunda-feira. Tinha muita gente. Eduardo me avistou de longe e veio em minha direção com um copo de cerveja extra na mão: - 'Tá sumido hein! Veio à pé?', comentou, me entregando o copo. - 'Vim de outras bandas, depois te explico. O que é que está rolando aqui?', perguntei. - 'É a despedida de solteira daquelazinha ali. Ela está bancando tudo, até o churrasco...', informou apontando para uma menina morena, baixinha. - 'Legal, né? Diferente. Não estou bebendo, não. Não estou podendo. Vou deixar o violão lá no quarto e a gente conversa. Cadê o Chico? ', comentei devolvendo-lhe o chopp. - 'Tá por aí', declarou, tentando localizá-lo. Ao retornar do quarto, vi alguém apontando para mim e falando alguma coisa com uma mocinha que estava vindo em minha direção: - 'Você que é o dono da casa? Aquele rapaz ali disse 88
que era você ', perguntou-me afirmando. - ‘Sou sim. No que posso te ajudar?, perguntei. - ‘Moço, estou estourando de dor de cabeça. Você teria algum remédio aí na sua casa?’, pediu-me. -'Não sei se tem, vou ver, mas se não tiver, posso ir na farmácia comprar', respondi. Procurei no armário do banheiro e não tinha. Peguei a moto do Chico emprestado (que estava chegando naquele momento) e perguntei se ela queria vir junto para escolher o remédio que estava mais acostumada a tomar. Aceitou meu convite e saímos em direção a Vila (bairro de Saquarema - praia - onde os turistas mais frequentam e o único lugar com vida noturna naquela época do ano). Passamos na farmácia, compramos o remédio e estava indo pegar a moto quando ela me disse que queria ir embora para sua casa. Me ofereci para levá-la: - `Te levo, sem problema, não me custa nada! Mas antes, preciso comer alguma coisa e não estou podendo comer churrasco, nem beber bebida alcoólica. Você me acompanha?`, convidei. Ela aceitou o convite e fomos a um restaurante, ali mesmo na Vila. Aquele rosto não me era estranho, mas não conseguia encaixá-lo em nenhuma situação vivida. Enquanto conversávamos, ficava tentando imaginar onde teria visto aquela menina que parecia não ter mais de 17 anos. Parecia alguém muito distante, entretanto 'o muito distante' não combinava com sua possí89
vel idade: - `Quantos anos você tem? Não minta', perguntei. - `17`, respondeu. Na bucha, acertei! - ´Vou fazer 18 daqui há dois meses', completou. - `Você nasceu aqui em Saquarema ou é de outro lugar?`, inquiri. - 'Nasci aqui mesmo. Nunca saí de Saquarema', respondeu. E nesse instante o garçom chegou. Peguei um cardápio e dei outro para ela escolher. Pedi o previsto, era o que tinha: salada mista com atum, e devolvi o cardápio para o garçom que ficou esperando ela fazer seu pedido. Fixei meus olhos no seu rosto, enquanto estava lendo o cardápio. Tinha que tentar me lembrar de onde era que eu a conhecia. Ela pediu um Caldo de Camarão e virou-se para entregar o cardápio para o garçom. Nesse momento ficou de perfil para mim e, imediatamente, fui remetido ao passado com todos os desenhos de perfis que fizera durante anos da minha vida. Ela, sem dúvida alguma, era a mulher que desenhei e que durante muito tempo foi alvo dos meus desejos e das minhas insônias. Era aquele perfil, exatamente, aquele perfil. Como podia ser? Fazendo uns cálculos rápidos, por alto, naquele momento, nada se encaixava, pois ela, provavelmente, ainda nem havia nascido quando realizei os desenhos. Se eu contasse para ela, naquele momento, que eu a desenhava quando era adolescente ia ficar parecendo uma cantada barata e antiga, ou pior, coisa de maluco. Para 90
piorar a minha pretensa explicação, não tinha nenhum desenho para provar o que eu iria dizer. Portanto, naqueles segundos que permaneci com cara de bocó procurei não deixar que percebesse o meu espanto. Também não podia ficar fazendo perguntas, como um investigador, por que não pareceria uma coisa normal. O jeito era jantarmos e torcer para nos encontrar novamente. Talvez lhe convidar para algum show, evento, pensei. Mas a nossa diferença de idade era muito grande e poderia pegar mal. Não sabia o que fazer. Precisava da continuidade daquilo; precisava saber por que o perfil que me rodeou durante tanto tempo estava ali, na minha frente, falando comigo. Depois de jantarmos levei-a a sua casa. Na despedida perguntou meu nome: - 'Obrigado pela gentileza, pelo remédio e pelo jantar. Qual é mesmo o seu nome?`, perguntou. - `Valentim`, respondi. Ela sorriu, pareceu gostar do meu nome. Por obrigação tinha que perguntar o seu nome também: - 'Que falta de educação a minha. Desculpe não ter me apresentado antes. E qual é o nome da mocinha bonita?', perguntei. Abriu-me um sorriso enorme, depois ficou séria. Voltou a me dar um sorriso e respondeu: 'Valentina'. Me assustei! Devo ter feito cara de bocó de novo, sei lá. Ela foi andando em direção à porta de sua casa e fiquei ali congelado olhando a menina murmurar al91
guma coisa que não consegui ouvir direito. Não conseguia ouvir mais nada, não focava em mais nada e não entendia mais nada. Fiquei sem ação. A cabeça parecia que ia explodir. Enquanto o sangue descia, liguei a moto e parti para casa. Com medo de cair, de me acidentar, não passei de 50 km/h. O lado inteligível de tudo aquilo é que agora eu sabia onde morava a mulher do perfil que eu desenhava e que seu nome era o feminino do meu. A sensação de que algo estava por acontecer me angustiava, por não conseguir saber se era coisa boa ou ruim. Voltei para a festinha que acabou ao amanhecer com um monte de gente bêbada, alguns passando mal e muita sujeira por toda a casa. Estava muito cansado e precisava dormir, mas estava com medo do que viria no meu sonho. Fiquei com medo de dormir para sempre e não mais voltar. Por precaução, antes de dormir, pedi para o Eduardo me acordar lá pelas seis horas da tarde: - 'Eduardo, quebra um galho pra mim. Se eu não acordar até as 18:00 horas, joga água na minha cara, me sacode, grite no meu ouvido, faça qualquer coisa, mas não me deixe dormir por mais tempo, por favor', supliquei. Agora sim, poderia dormir em paz, com a garantia de que estaria de volta às 18 horas. Não poderia ser apenas coincidência ter comprado uma casa em Saquarema, mesma cidade onde ela nascera e também dela se chamar Valentina. Não conseguia pensar 92
em mais nada, porém estava morto de cansaço e meu corpo pedia cama. Na minha cabeça, entretanto, só havia: Valentina. O Chico ainda não havia chegado e o Eduardo comentou, preocupado, que ele havia saído com uma mulher que não era dali, e que parecera estranha. Mesmo morto de cansado, resolvi sair de moto, dar uma rodada para ver se o encontrava pelas redondezas. Eduardo ficou em casa esperando. Já era dia, sol à pino nascendo. Meus olhos não estavam aguentando ficar abertos com a mistura de claridade e sono. De repente, um som alto de freada e a pancada violenta vinda de trás. Apaguei. Acho que entrei em sono profundo, não sei. Alguém me estendeu a mão e me puxou para cima dizendo: - 'Demorou, hein! Finalmente encontrou ela?`, questionou-me. - 'Por favor, me faça recordar. Não lembro de nada, nem sei onde estou', declarei. - 'É assim mesmo, leva um tempo. Daqui a pouco volta tudo novamente e você volta a ser quem você é', explicou-me. - 'E quem eu sou?`, implorei. - 'Calma. Vamos com calma. Nós ajudamos as pessoas a viver. Toda vez que uma alma primitiva aparece, essa alma precisa de um tempo para adaptar-se a vida humana. Trata-se de uma alma em formação, isso leva 93
tempo e paciência. Só a paz dos Anjos pode fazê-la evoluir. Temos que repetir tudo inúmeras vezes até que aquelas mentes captem alguma coisa dita. São teimosos e preguiçosos. Se irritam com muita facilidade. O desconhecimento e a falta de interesse são coisas primitivas. Para evoluírem precisam da companhia de pares que os acompanhem durante parte de sua existência. Depois então, num segundo estágio, já adaptados, poderão seguir sozinhos e evoluírem por si próprios. Somos esses pares, acompanhantes. Você desceu para encontrar Valentina. Desceu primeiro, muitos anos antes, para preparar-se para o que viria. Sua missão começa agora que a encontrou', posicionou-me. - 'A ficha ainda não caiu. Não tenho lembrança alguma disso. Você é o meu suporte? Puxou-me segundos antes do acidente que sofri há pouco. Existe um corpo lá no chão, não é?, questionei. - 'Não mais no chão. Está num hospital sendo operado. O tempo aqui é diferente do tempo vivido. O tempo lá voa. Uma vida inteira na terra dos humanos pode corresponder há alguns minutos aqui. O tempo intermediário é o tempo dos sonhos, é por ele que nos comunicamos. Você precisa voltar. Tem pouco tempo. Precisa voltar', insistiu. A frase que já ouvira antes se repetira. - 'Não, não vou. Quero mais explicações. Estou ficando doido. Isso não pode estar acontecendo comigo', supliquei, mas de nada adiantou. Logo estava no quarto de 94
um hospital vendo meu corpo deitado, cheio de tubos e fios. Sabia que não adiantaria querer sair do hospital, pois a claridade me faria voltar. Estava consciente. Sentei-me numa cadeira que havia no quarto e fiquei por ali, olhando para o meu corpo que parecia bem. Não tive noção de tempo. Era dia, mas já estava escurecendo. Eduardo e Chico chegaram. Ouvi a conversa deles. Estava hospitalizado há 4 dias. Tinha sido operado e perdera o baço, além de ter tido uma fissura no crânio. Me encontrava no Hospital Regional de Araruama e aquele era o primeiro dia para receber visitas de parentes. Tinha, na verdade, duas opções: Acreditar naquele sonho absurdo sobre almas primitivas, voltar para o meu corpo e prosseguir com a missão que supostamente teria, ou, sair pela porta da frente do hospital em direção à claridade e acabar com todo aquele tormento. Simples assim. Confesso que já estava tendendo a ir embora, porta afora, quando Valentina entrou no quarto. Travei. Passou a mão nos meus cabelos e pronunciou as palavras que definiriam minha sorte: - Tão lindo! Meu anjo não pode morrer! Pronto. Agora eu sabia o que devia fazer. Tinha que pular dentro daquele corpo, acordar e dizer: Oi, voltei!! Mas existiam complicações inesperadas. Um médico acabara de entrar no quarto para conversar com os meus responsáveis. Perguntou quem era meu parente para o Chico, que lhe respondeu que os meus parentes 95
moravam no Rio e que não tinha o contato deles. Tentaram se comunicar com minha mãe, mas não conseguiram o telefone: - 'Ele não tem anotado o telefone de ninguém da família, certamente os tem de cabeça. Fiquei ligando ‘pra um e pra outro’ para conseguir o telefone da mãe dele, mas não consegui. Também não sei se ia adiantar, pois pelo que sei ela está com 90 anos e, de repente, não ia aguentar uma notícia dessas. Mas, o que está acontecendo. Ele vai ficar bom, não vai?', perguntou. - ' Vocês são amigos', questionou o médico. - 'Somos mais que amigos. Somos irmãos. Moramos todos juntos', explicou Chico. - 'Bom, ele vai ficar bom sim, mas poderá acordar com alguma falha de memória. Pode ser que não se lembre do acidente e das coisas mais recentes que aconteceram. Então, fiquem preparados para ajudá-lo. A operação foi bem sucedida. Ouve uma ruptura de baço, que teve que ser retirado. Vai ter que se submeter a um tratamento. A fissura no crânio é que pode deixar essa sequela - a perda de memória', concluiu. Olhei para o rosto de Valentina e vi sua decepção. Ela estaria pensando que eu não a reconheceria, pois nosso contato havia sido na noite do acidente. Senti sua tristeza, sua desilusão Abriu a porta do quarto e foi embora. Não tive outra opção: aproximei-me da cama e deite.
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Capitulo 13
Chico e Eduardo
Nesse dia, de primeira visita, apareceu muita gente, pessoas da mesma festa certamente, pois não reconheci quase ninguém. Embora só pudesse entrar de dois em dois no quarto, o rodízio era constante. Havia gente no quarto, desconhecidos, quando abri os olhos. Foi uma festa. Os enfermeiros pediram que mantivessem a calma, pois eu estava voltando aos poucos e que logo dormiria novamente, estava sedado. Também não podia desapontar o médico que havia feito aquele diagnóstico de que eu não me lembraria de nada, e soltei um: -'Onde estou? O que aconteceu?`, só para constatar que ele estava certo, mas parei por aí. Eduardo, praticamente, expulsou todas as visitas do hospital. Fechei os olhos novamente e dormi. No dia seguinte acordei cedo e com fome. Deram-me sopa de alguma coisa, - comida de hospital, geralmente, não tem gosto de nada, e não desceu. Forcei. Precisava ficar 97
bom. À tarde, apareceram apenas Chico e Eduardo. Sentia-me bem dentro do possível - estava de volta. Logo vieram me informar que fora um atropelamento. Um carro, dirigido por um senhor de idade (acompanhado de sua esposa), não havia me visto (por conta do brilho do sol em seu vidro) e arremessou longe eu e a moto. Foram eles mesmos que chamaram a ambulância e estavam tratando de todos os assuntos referentes ao hospital e à moto. Esse motorista estava esperando para falar comigo do lado de fora do quarto. Fiz sinal de ‘OK’, com o dedo, indicando que ele podia entrar, não queria falar para não dar a entender que estava bem. Afinal de contas, estar bem naquele momento não seria nada normal. O senhor adentrou o quarto dizendo que o seguro iria pagar todo o prejuízo e que já estavam avisados. Pediu desculpas. Acho que ficou receoso de darem parte dele na delegacia. Fiz sinal com o dedo, novamente, que estava tudo bem. Acho que ficou aliviado. O médico não deixou mais ninguém ficar por perto. Logo estávamos sozinhos, eu e a enfermeira me dando pílulas. Três dias depois já estava falando feito uma matraca e querendo tomar café. Serviram-me Cevada - um líquido preto, igual ao café, porém com gosto horroroso. Cuspi: - 'Que coisa é essa? Eu queria café!', resmunguei malcriado. Aquilo fazia parte da dieta que tinha que me sub98
meter e pelo jeito iria ser um grande problema. Precisava ficar bom logo então mentalizei que tudo era remédio, daí para frente encarei Cevada, Rubraton, Rarical e todas as 'coisas ruins' que me fariam ficar bom. Uma semana depois me encontrava em casa, em Saquarema, sentado na varanda e pensando na vida. Ganhei uma cicatriz enorme, que me atravessava o abdômen e que ainda repuxava um pouco. Não podia pegar sol para não dar quelóide. Chico e Eduardo cozinhavam bem e se revezavam. Volta e meia eu também ia para a cozinha fazer alguma coisa - basicamente sopas. As horas iam passando, os dias nascendo e terminando. Sabia que meu destino estava chegando. Em algum momento Valentina iria aparecer e o destino traçado para nós, enfim, iria se cumprir. Estava calmo e ciente de tudo que deveria fazer. Dali para frente a minha vida seria orientá-la, educá-la, ajudá-la, compreendê-la... Dias mais tarde apareceram umas meninas amigas do Chico, uma outra que disse ser sua noiva e uma outrazinha ainda, se dizendo namorada do Eduardo -, todas conhecidas de Valentina -, para visitar-me. Não as conhecia, mas pelo que falavam eram frequentadoras daquela casa. Estive muito tempo fora e as pessoas me conheciam de ouvir falar, pessoalmente mesmo, ninguém ali sabia quem eu era. Minha fama me antecedia. Perguntei-lhes sobre Valentina, se elas a conheciam. Disseram que sim, que ela pretendia me visitar, mas 99
estava sem jeito, era muito introvertida. Pedi então que lhe avisassem que eu estava intimando-a a comparecer naquela casa - no clima de brincadeira, claro. No dia seguinte ela apareceu, cedo, muito cedo, às 6 horas da manhã. Bateu à porta, todos estávamos dormindo. Chico abriu. Disse que veio me visitar. Chico encaminhou-a ao quarto onde eu dormia. Valentina abriu a porta silenciosamente, passou a mão na minha cabeça e sussurrou: -'Acorda meu anjo', suavemente, como uma brisa soprando. Abri os olhos, esbocei-lhe um enorme sorriso e lhe respondi: -'Até que enfim você apareceu!'. Sentou-se na minha cama, olhou-me nos olhos durante alguns minutos e deitou-se ao meu lado. Adormecemos juntos. A casa toda estava adormecida, todos em sono profundo. Não se ouvia uma mosca. Parecia que a paz estava no entorno protegendo os habitantes daquele casulo. Nossas almas deviam estar precisando se recuperar do susto e faltava a última peça para fechar a caixa - Valentina. Foi o sono dos anjos. Acordamos, todos, no final da tarde, já com o sol indo dormir. Todos com muita fome e muita sede. Todos nós um tanto doloridos muscularmente. Entendi que era o final de um ciclo e o início de outro. Minha vida daquele dia em diante seria em Saquarema. Meus problemas e minhas alegrias estariam vinculados à Valentina e àquele lugar. Naquele mesmo dia Chico me informou que estava de partida, pois havia aceitado o desafio de sua noi100
va de irem arriscar a vida nos Estados Unidos. Foi uma surpresa e uma despedida dolorida - era como um filho para mim. Mais surpreendido fiquei quando Eduardo, pegando carona na coragem de Chico me disse que também estava indo embora. A casa que estava construindo aos poucos, durante anos, sem pressa, enfim havia ficado pronta e estava se mudando para lá junto com sua namorada. Era realmente o final de um grande ciclo. Para um sujeito da cidade grande, acostumado com vida noturna, encontros em esquinas com amigos, papo de trabalho com colegas de empresa e todo o murmurinho que disso deriva, morar num lugar que não tem nada para fazer, nem ninguém para trocar ideias era desolador. Minha turminha era Chico e Eduardo, isso por que vivíamos juntos na mesma casa, agora não mais. Ficamos somente eu, Valentina e o vazio. Vinte anos se passaram. O vazio havia sido preenchido. Histórias incríveis aconteceram diante de nossos olhos à revelia. Não temos o poder de controlar o tempo, nem as histórias que nascem, e, nascem todos os dias, de todos os modos e jeitos. Vinte anos parece muito, entretanto foi ontem. Nada mudou, apenas o mundo. O sentimento amadurece, o sofrimento adormece, a saudade é esquecida em algum lugar dentro da gente. Eu vivo em paz, descobri a paz, mas até isso cansa. Estou muito cansado, morto. Minha missão está cumprida. Enfim livre. 101
Fim 102