Ouvir escrever vestir e fazer

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ouvir, escrever, vestir e fazer


FICHA TÉCNICA

Editor: Maria Seixas Redacção: Miguel Esteves Cardoso Capa: Joana Valadão Ilustrações: Joana Carvalho Joana Valadão Impressão: Qualquer Ideia


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CRÍTICA DE POP:

NEM CRÍTICA NEM POP

COMO SER UM CRÍTICO DE ROCK UM GUIA PRÁTICO

O LIVRO NEGRO DA MÚSICA POP: OS PIORES DE ‘70

COQUE O ROCA, IDENTIFIQUE O FRIQUE: GUIA DA FAUNA MUSICAL LUSITANA (PARTE 1)

DAR AZO A UM JAZO OU ARES DE MUZAQUE OU MOZART: GUIA DA FAUNA LUSITANA (PARTE 2)

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UM ROCK-TESTE CIENTÍFICO:

QUE ESPÉCIE DE ESPÉCIE FAZ VOCÊ?



CRÍTICA POP: NEM CRÍTICA NEM POP E para aclarar o ar, e desocupar o espaço, algumas palavras pensadas acerca do que impensadamente eu e outros fazemos, ao escrever recados destes, com este tamanho e esta regularidade, sobre a música Pop. Pop é um exercício parasitário, trivial, inteiramente Ou antes: E não quer isto dizer que apoie os músicos portugueses mos, empapando jornais e revistas com ácidas lágrimas de não serem reconhecidos como os génios fabricantes contrário: também eles, na sua maior e mais comovente parte, não possuem a noção grandiosa da sua própria trivialidade. Sabem que devem ser “cultura”, mas não sabem que a cultura devem ser. Tudo isto levou, em Portugal, a um ponto de absurdo empolamento da música Pop. Há música Pop a mais nas telefonias, música Pop a mais na televisão, música Pop a mais nos jornais, música Pop a mais nos recintos de recreação, música Pop a mais no pequeno espaço que alguma vez lhe podiam fazer: estão a levá-la a sério,

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a ler-lhe, no encanto instantâneo, laivos terroagonia. Estão a roubar-lhe o seu pequeno lante, a sua natureza descartável — estão a amplificar a sua importância até reben -tar o balãozinho que é o Pop. -

seu escasso segundo de vida, embriagada nos alcoóis gasosos da sua suprema, e apetecível, irresponsabilidade. -

seu escasso segundo de vida, embriagada nos alcoóis gasosos da sua suprema, e apetecíve, irresponsabilidade. nos pouquíssimos casos onde excepcionalmente alguma contribuição mais duradoura anos, só houve duas — os Talking Heads e os Joy São apenas discos — e não há melhor encarnação do Pop do que o single — e é apenas música Pop, e os músicos Pop são apenas músicos Pop. Daqui a seis meses nada restará. Nada restará senão outros discos, outra música, outros músicos... Pop!

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Pop, que determinado disco é “indispensável”, o prazo de validade dessa “indispensabilidade” uma memória curta, uma esperança gigantesca e uma capacidade inusitada para o exagero: a e o desplante de acompanhar-lhe as modas. Não deveria ser aquilo que, em Portugal, inglória e maioritariamente tenta ser: doutoral, pedagógica, tecnicista, informada, séria, isenta, ser aquilo que os músicos portugueses desejam menor e, sendo a música Pop uma arte popular

músicos ou das editoras, nem tão pouco sua professora de religião e moral. Em Pop uma opinião vale tanto como outra. O mais que se pode pedir é que esteja bem expressa, e se divirta um pouco, exaspere um por ser humano tentar valorizar o nosso esforço, mas isso não quer dizer que não comece por -

, 02-04-82

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COMO SER UM CRÍTICO DE

ROCK


UM GUIA PRÁTICO AO JORGE FALLORCA ALGUMA COISA SE APRENDE, AFINAL, COM O EXERCÍCIO

— ISTO EMBORA NADA TENHA A VER COM CRÍTICA, NEM POP, E MUITO A VER COM PORTUGAL.

DA CRÍTICA POP EM PORTUGAL

Com o honroso e abnegado intuito de fomentar o

-

autor destas linhas a maior sumidade neste campo desde a morte de Nero, autoriza-se assim o leitor a cumprindo-as rigorosamente, sob pena de fracassar

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PRIMEIRO BOM CONSELHO: COMO CRITICAR UM DISCO A plebe tem por hábito pensar que a primeira Nada podia estar mais longe da verdade. De

pelo que deve ser deixado aos veteranos. Em primeiro lugar, 89,6 por cento de todos os discos editados no mundo, isto segundo um apurado estudo levado a cabo pela Norma como a palavra aponta com toda a correcção pegue, nem pegar neles traz a mínima ponta.

redacção. “Execrável”, “hediondo”, “péssimo”, “merdoso”, “sinistro” e “medonho”

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INSTRUMENTOS CRÍTICOS

DO BOTA-ABAIXO -

Iníquo: Guarde este para os terrores, e juntelhe, quan

conhecimento geral: Ávol:

-

feitamente Barry Manilow;

Macareno, malino, marfuz e molesto: Estes s foram expressamente introduzi-

Vicioso: os registos de Neil Diamond e de Engelbert

renitente e

los em casos de menor gravidade; Desabrido:

Metuendo, insano, diro e daninho: Apli-

caracterizar as obras de músicos que exibem

cam-se com ex vorantes que, coitadinhos, surgem com a mais mente por um lugar ao sol, mas baixando, com

como se fossem qualidades; Imprestável, infausto, indecoroso, inútil, improbo: Estas cinco palavras terão levado -

caso óbvio de Júlio Iglésias.

tensiva;

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INSTRUMENTOS CRÍTICOS

DO BOTA-ACIMA

Nunca é demais recomendar, contudo, que os iniciados e aspirantes se cinjam estrita-

, recorra então, sem peias, ao seguinte mas que não pode ser usado em qualquer outra eventualidade, sob pena de prisão, e que revelo aqui com a maior trepidação, desconhecida desde que Einstein se pôs a viriam da divulgação da sua Teoria Especial

Há duas coisas que nunca deveria escrever: a primeira é “a não perder” e a segunda é “indispensável”. Sabe-se que “indispensável” quer dizer algo sem o qual não se pode abso-

De resto, abusem liberalmente dos sinónimos que de seguida se relatam:

, de Leonard Cohen, não há disco algum que corresponda os discos Rock são dispensáveis, uns mais que outros.

Avantajado, balístico e pindárico:

-

nando-se es

-

contudo ser extensivas ao jazz mais efusivo e ao Rock mais sublime;

Outra palavra excessivamente abusada é -

Cutuba, egrégio, superno e mirífico: Esta quadrilha emprega-se, geralmente após um

a tudo o resto. Não quer dizer “porreiro”. Não quer dizer “até se ouve bem, o raio do disco”. Evite-a sempre que a tentação for avassaladora, reservando-a justamente para

ou da Joni Mitchell; Opimo, ilustre e excelso: A aplicar em vez do vul

conjuntos: os Velvet Underground, os Doors, os Talking Heads ou os Joy Division. Caso

i.e., UB40, Black Uhuru ou Wailing Souls.

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MÉTODOS DE

AGIGANTAMENTO SUCESSIVO cada vez maior da sua pomadinha injectável predilecta, ir arranjando maneiras de exaltar e

já alguma vez realizou desde a aurora de Atenas“. Passada uma semana, aparece um outro

.

O primeiro é o método que consiste no seguinte: “O disco Y é, juntamente

por quaisquer equívocos por nossa incúria

de pôr nos píncaros da lua da semana passada, a produção cultural mais importante O segundo é o método se de duas maneiras: por

Y, dizemo-lo sem qualquer laivo de forçado encarecimento, é indubitavelmente a obra da qual a Humanidade, na sua memória de centenas de séculos, mais se deve orgulhar. Ao pé deste segundo álbum dos Rancids, conjunto Pop originário do Baixo Tennessee,

. Faz-

Por , insere-se antes do começo da prosa a seguinte tanga: “Por

Tellado, etc., etc...”

implacável controlo, um depravado incógnito conseguiu fazer passar pelas malhas até aqui invioláveis da nossa Segurança um texto que

Por pura bravata, dispensando a necessidade da simplesmente que, depois do assombro causado pelo disco X da semana passada, até este disco Y, que não é nada mau, parece

vilíssimo disco, das quais tanto a Redacção analisá-lo, passando doravante a dedicar-se completamente. De seguida, passamos a o 13

.


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CRÍTICA DE ROCK

SEM AUDIÇÃO Ensinada a manipulação do bota-acima e do bota-abaixo, é importante agora frisar

: A capa, dum modo geral, revela aproximadamente 75 por cento do conteúdo. nacional. Se for mais grossa que um maço de cigarrilhas e não se conseguir dobrar num torno, o disco é de edição americana. Os que restam, são de edição britânica. Se por acaso lhe calhar algum com caracteres franceses ou por ventura

Last. Em qualquer das hipóteses, não tem de perder tempo. Se for um desenho abstracto, é música de vanguarda e deve dizer-se bem; embora, valha Deus, não se peça a ninguém, nem a um cão, que a ouça. E por aí a fora, segundo o princípio válido de que quem fez a capa tentou captar lá o raio de mensagem

CRÍTICA DE ROCK

COM AUDIÇÃO Mas vamos supor que o leitor, não tendo dominado estes princípios basilares, se obriga a escutar o conteúdo. Neste caso, precisa de um . Aliás, nós, os

Existem dois métodos abreviados de ouvir um disco: o primeiro é conhecido pela O primeiro baseia-se no princípio sólido segundo o qual os álbuns arrancam sempre com a melhor canção, colocando a pior de todas entre a segunda e quinta do segundo lado. Como tal basta ouvir os dois extremos, graduando-se assim o meio é comprovadamente mediano.

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habilidade, evita-se até a trabalheira de aturar os esforços líricos da pancalhada que foi

tudo se estiverem escritas numa língua estrangeira, é porque é daqueles discos cuja apreciação está sujeita a um curso intensivo num workshop de semiótica aplicada em Gdansk. Se as notas forem curtas, é quase certo que não há nada a dizer sobre o estupor inclu-

se, sendo iniciado, ainda se vir forçado a de perto. Se a faixas forem muito curtas, é Pop. Se forem muito longas, é Pompa. Se o vinil for colorido, é Punk.

disco é curto e logo pode escrever que é banhada, barrete, atentado ao consumidor. Se o espaço for pequeno, pode dizer que se trata dum trabalho excessivamente ambicioso, que tenta ser mais do que é.

Se incluir uma folha com as letras, passe uma volta dos “temas” focados. Todos os temas reduzem-se, com proveito, aos dois maiores do Sexo e da Morte e, portanto, com alguma

cadinho. Se não conseguir, é porque o disco não é mau de todo, e aí é que a porca torce o rabo. mente o disco em questão, não lhe consegue descobrir defeitos/virtudes. Dá assim a imagem

estrias religiosamente ouvidas, defendendo-se do frio das suas águas-furtadas com várias capas de

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A FASE DA REDACÇÃO

ou do . Sendo um pouco mais para o rasco, resta-lhe fotocopiar o e pedir a um amigo que faça a tradução. Finalmente reconhecendo-se abertamente como sendo de todo abaixo de cão, terá de cingir-se, miserável mas conscientemente, a copiar do . Não “homessa, mas que rica obra!” ou “Yah meu, este vinil está uma naice”. Caso esteja a copiar do

COMO ARRANJAR UM JORNAL QUALQUER

Mas não é tão fácil como isso tudo.

ou seja, um meio de comunicação social que o acolha e publique.

Nada lhe garante

Ao contrário do que se costuma dizer, não é absolutamente necessário começar na ou no . E, não se esqueça, mesmo que a Voz do Gaiato e os restantes periódicos lhe fechem todas as portas, há sempre a hipótese do .

e agradecia que me fornecessem dois exemplares de cada um dos vossos lançamentos mais recentes”, nada lhe garante que saia de lá com os cobiçados pratos vinílicos sob o braço.

De qualquer forma, nunca olvide que

seguro dizer-se correspondente em Portugal do , ou estafeta ibérico do . Caso não pegue, então terá de bulir verdadeiramente para arranjar poiso num dos jornais reconhecidos.

parte integrante do meio. Interessa-lhe um jornal por duas fundamentais

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COMO ARRANJAR UM JORNAL LEGÍTIMO Eis as maneiras de proceder mais aconselhadas: -

após a publicação da entrevista sensacion-

cubra uma revista estrangeira que ninguém

disco”, “Paul McCartney: Fui eu que paguei a Hinckley para disparar sobre Lennon” ou,

uma passe de acesso permanente ao Banana Power ao colaborador habitual de um jornal,

aparece, galhardo, lá na Redacção, dizendo

publicação. Apareça então lá na Redacção com um texto previamente preparado, se possível com uma frase de Barthes em epígrafe, dizendo que o ex-colaborador Rock deles está em tribunal por ter aceite quarenta escudos e

desgraça alheia, etcetera, etcetera, sente-se responsável para com o jornal e, como paga, decidiu oferecer a sua colaboração na secção de Rock durante período ilimitado.

single do Vítor Espadinha.

amigo aí residente que lhe envie um texto para a Redacção. Não há quem resista a um correspondente em Nassau, Buckingham Palace, no Kremlin ou na Casa Branca. Títulos sugeridos: “Eu dancei o Samba-Funk com a Princesa Diana enquanto Carlos servia as bebidas”; ou “Kossiguine tem a colecção de

a hipótese de lhe poder saltar para o poleiro;

seguintes pessoas: Mick Jagger, Paul McCaEnvia uma carta ao jornal dizendo-se agente literário e oferecendo, para publicação, a cobiçada entrevista. Passados escassos dias

Ferro”; ou “Reagan nomeia os Ramones para a pasta dos Negócios Estrangeiros”.

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COMO TER BOAS RELAÇÕES COM AS EDITORAS

em folha valem muito mais, e eis mais um argumento a favor reputada, compra um disco importado e, na semana seguinte,

Dado que lhe interessa sacar o maior número de discos, seja qual foi a sua qualidade, é conveniente apresentar-se sempre extremamente curioso e zeloso em relação aos lançamentos. Por exemplo, espiando departamento de promoção, diz, numa voz de grande espanto

música em Portugal.” Os promotores, deliciados ou julgando-o o disco com o maior dos prazeres. Convém sempre adoptar inicialmente uma imagem de intenso poderio e de irrefutável mando lá no seu jornal. Por exemplo, querendo abarbatar em LP que os promotores não lhe querem dar, diz: “Isto era para as páginas centrais, com chamada na 3

Se um deles lhe dis-

um número 1 em Londres e é patrocinado exclusivamente por

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Dylan e Ramalho Eanes”, Diga sempre que sim, sob pena de levar menos material para o alfarrabista. 4 O pior que pode fazer é dar a entender que é um especialista que só gosta de certa música, pois assim restringirão cruelmente o número de discos que lhe oferecerão. Crie a impressão de ser um indivíduo que tanto gosta de Marco Paulo como dos Cabaret Voltaire, como de Lutoslavski, como de Paulo de Carvalho, como de Anthony Braxton e acrescente as quatro palavrinhas mágicas: “Desde

a qual o mau também pode ser bom desde que esteja bem feito. Por isso, diga imediatamente: “Eu gosto de tudo, desde que esteja editado”. Depois desta primeira impressão, a estratégia muda. Entretanto no seu jornal ou foram muito leve e ignorantemente referidos. seguinte. Apareça inconsolável na editora, segurando um feixe de uns papéis quaisquer gritando: “Entreguei um texto de 24 linguados e os gajos só

Censurado e cortado, lutando árdua e dignamente por dar aquela primeira página ao recente registo daquela banda de

contra os fascistas lá do seu jornal. 20


COMO AUFERIR UM BOM VENCIMENTO negociado com o seu marchante de discos um razoável preço para a compra a peso dos álbuns sacados. Este aspecto é importante porque, ao contrário do que Talvez por ser uma criatura privilegiada entre a classe

maçada de ter de ir para o cinema, estar lá encafuado

disco, basta colocá-lo no prato, começar a escrever e que o disco. Isto porque os ouvidos são excelentes, na medida em que facilitam ao proprietário deles fazer outras coisas mais importantes enquanto eles vão captando revendável ou trocável — pelo menos bastante mais do que meio bilhete de cinema. dos jornais acham mal pagá-la ao preço das outras. Mas a venda dos discos sacados, mesmo com licença de vendedor ambulante, não é a única maneira de Há também o recurso ao chamado “payola”.

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COMO TIRAR PARTIDO DO “PAYOLA” “Payola” é, numa frase, o dinheiro que se recebe como suborno para dizer maravilhas dum disco. Ora orientar bimento dele, arrisca-se que a sua cotação payolesca incitar a nação a comprar o álbum do Andy Williams sob a pena de serem destruídos por uma bomba nuclear.

sublinhar a urgente indispensabilidade de possuir a , recentemente editada, dos Boney M, a população já está prevenida. E por aí fora, até perder todo o seu valor payolar, e ninguém estar disposto a oferecer-se payola para a promoção de discos bons, diabo agarrado a uma máquina de escrever, venha dizer que são uma maravilha, para se venderem. Por isso, resigne-se desde já ao triste facto de ir apenas receber de qualquer valor. “direito que nem um fuso / torto que nem um garfo”. Consiste em adoptar uma proporção próxima dos 12/1 e faz-se assim: diz-se “a verdade” durante doze álbuns, meu!

num permanente paraíso sensorial.

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E, como manda o lema, depois de torto que nem um álbuns. Este método também é conhecido pelo processo BBC, no qual foi inspirado. Sabe-se que durante a

que chegasse uma altura em que fosse mesmo preciso divulgar uma falsidade. Resultado: ninguém acreditava propaganda alemã, e toda a gente acreditava em tudo

DEPOIS: A ESCALADA FINAL nome, começará a ser convidado para os beberetes deixar de escrever nos jornais, porque a sua reputação arrasta-se sempre uns bons anos atrás da sua realidade. Uma vez implantado como convidado obrigatório em ninguém removerá o seu nome daquelas cruciais listas de convidados.

em direcção ao

que se segue. Esse sim,

e mais beberetes.

, Novembro/Dezembro 1981

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O LIVRO NEGRO



DA MÚSICA POP: OS PIORES DE ‘70

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AO NUNO RODRIGUES

“ANTES DE MERGULHAR PARA UMA DÉCADA NOVA, CONVÉM SEMPRE UMA ANTERIOR.” E a música popular verdadeiramente vil e execrável, quem se lembra dela num mundo tragicamente obríveis elevam o meu gosto ao nível de uma arte e, como de calibre, merecem uma certa consideração. Uma canção entranhadamente má, daquelas irredimíveis, é sempre preferível a uma canção simplesmente mediana ou menos má. Porque provoca, tal como fará uma canção excelente, uma — um

dela. A canção mediana, deixando-nos indiferentes, não faz nada disto, é uma obra manifestamente infeda mazita, ou da medíocre — mas daquela absoluta e integralmente hedionda sob todos os possíveis

egável. Daqui a trezentos anos uma boa charanga execravelmente mas parida dirá mais aos sociólogos se conhece através da sua patologia, o mesmo aplicaDa década de 70, felizmente, foi prolífera em bostas o patologista do Pop. Porque há duas categorias de vileza: aquela que é voluntária e aquela que é involuntariamente produzida. A primeira está muito escassamente repre-

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levar a cabo um trabalho de qualidade, excederam impensavelmente terríveis — que vamos descobrir Urge, por isso, organizar uma eleição dos Piores Mo-

uma maior unanimidade em discriminar o merdoso do que em determinar o sublime. Aqueles que são adversários nos louvores são muitas vezes colegas no bota-abaixo. Como primeira contribuição para esse urgente estudo do Pop infalivelmente nauseabundo, apresento a minha lista para a década de 70. Para efeitos de criteriosa selecção, escolhi discriminar da seguinte maneira as obras referidas: Uma bosta Duas bostas

Um balde Embora os trabalhos assinalados com uma, duas ou um lugar de honra em qualquer volume dedicado cotadas com os verdadeiros

que devem ser consideradas do género.

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1970

australiano Rolf Harris. clássico — o autor não descurou um único aspecto que faz com que o António Calvário pareça um Bruce lhes pouco para o merecimento da glória máxima.

foram apenas muito maus e não conseguiram ir além desse importante limiar de náuseas que Rolf Harris

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1971

Orquestra “Manuel de Falla”. Maestro: Wlado de los rios “Adaptação

Uma notável melhoria em relação ao ano anterior, foi indubitavelmente o ano dos Middle of The Road, candidato sério ao estatuto de pior conjunto de toda

além das obras citadas, também publicou em 71 a versão de “It’s Impossible” do notório Perry Como. Em segundo, mas honroso lugar, está o cantor e composi-

a solo, sempre produzindo resultados coerentes de do famigerado Waldo de los Rios, responsável pelo digno de menção em qualquer lista que se preze.

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1972

Embora 72 só visse o aparecimenpode dizer-se, com autoridade indisputável, que foi o ano mais nauseabundo da década. Riqueza que se explica, sobretudo, pela abundância de famílias cantantes ou quatro tomos da História. Não se menospreze a sua representação na lista acima delineada

dum “Crazy Horses”, dum “Why” ou dum “Too Young”. Nenhuma delas, porém, se aproxima do “Desiderata”, enunciada pelo já

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lendário Les Crane com uma solenidade ressonante jamais vista, e trabalhada por coros angélicos verdadeiramente insuportáveis. um pouco atrás de nível de Crane, é também um marco da música universalmente detestada de sempre. mente a Bell, responsável por sumidades do Pop patológico como a família Partridge, os Dawn e o Victor, abaixo de forma em 72, apoia-se somente na perfeição anti-estética dos grotescos Sweet, os primeiros genuínos


1973

Não houve um único clássico em 73, embora as listas de vendas estejam minadas de pequenas monstru-

das suíças desmesuradas no notável Alvin Stardust, nome que não é de esquecer nos anais do mau gosto,

e dos Sweet. A banda Mud, será, dentre todos os canduma falta de qualidade crónica. Note-se ainda o duo Peters and Lee em que aparece o primeiro cego completamente destalentoso da história da música.


1974

dos Bay City Rollers, saturando o mercado com produtos com“Shang-a-Lang” embora sejam de considerar outros pitéus a Bell consolidava ainda a sua reputação com os purgantes dos célebres Showaddywaddy. Mas o clássico-dos-clássicos canção que ainda hoje se ouve em recintos como o Texas Bar quando desembarcam marinheiros do país vizinho. Mas não se pode esquecer o heroísmo musical das Paper Lace, felizao pé da qual Corin Tellado passa por Ernest Hemingway. E repare-se no regresso sorrateiro através do desperdício dum John Denver já irredimivelmente abandalhado.

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1975

Embora não faltasse estrume nos

de 75, foram poucas

todavia, consegue sobressair com um clássico que bem merece o Balde acima assinalado. Nunca a música Country desceu tão

mais machista de sempre. O caso de “Una Paloma Blanca” é -

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1976

Seria preciso esperar mais um ano para que aparecesse algo

autoras dum dos piores singles de sempre. Em 77 viriam as conhecidas Baccara, mas em 76 o monopólio do pior-que-

de Tina Charles, talvez a mulher menos atraente desde a padeira de Aljubarrota, que conseguiu marcar com fatalidade o Dance”, ambas de uma vileza ímpar. As banhas triunfam ainda conhecem simplesmente por Demis, e cuja obra gravada não necessita de comentários.

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1977

é usurpado pelas conterrâneas Baccara com um dos épicos basilares do som de efeito vomitório. Quem não se recorda com viva náusea daquelas vozes a cantar “yecch chirsl can o regresso da RCA Victor, cruelmente lançada para a obscuridade na Liga dos Péssimos nos anos anteriores, depois de ter conhecido tanta notoriedade com nomes como os Middle of the Road no princípio da década. Mas o ano pertence aos Brotherhood of Man, grupo de imitadores dos Abba, que já no

muito pior. Os Abba haviam começado com “Fernando” e

77 foi ainda o ano dos Boney M, responsáveis mais do que qualquer outros por atrasar o progresso da música popular

estava para vir...

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1978

taneamente para depositar bostas de uma envergadura tremenda. Não contente com os prejuízos causados em parceria

emissão sonora produzida pela vibração das cordas vocais

quando comparado com Dean.

aqui inédita de inépcia e de pretensiosismo. E não poderíamos lage People, mestres já lendários do de cariz “ai lula!”.

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1979

Num ano pobre de paupérrimos, cabe a Patrick Hernandez a mais deslumbrante inglória, através do retumbante “Born To Be Alive”, que feriu mais sensibilidades do que todas as na galeria de desonra. Só por um esforço sobrehumano é galardoada com um bem merecido Balde. Os Bee Gees, cujos de órgãos masculinos vitais, parecem falar dessa operação em nojo, na nossa memória e que nos deve merecer o máximo desrespeito, por muito que não nos custe.

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CONCLUSÃO Evidentemente que cada cabeça, cada sentença — e que a bosta está nas narinas de quem a cheira — mas creio que a maior parte dos títulos apontados se encontra acima da discussão. a trabalhos que ganharam aceitação junto do público — ou seja, para efeitos sociológicos, importa sobretudo estudar as bostas populares. As bostas impopulares não surpreendem ninguém. Quando alguém descobrir a relação entre a música boa que não é popular e a música má que não é impopular é porque se enganou. amplamente habilitados, acho que o

para pior obra

crassa, preenchendo todos os possíveis critérios de boçalidade e

o disco com facilidade logo ao primeiro acorde, não suscitando assim qualquer hesitação ou incerteza da parte do ouvinte. E, como todas as

de teimosas recaídas memoriais — tal como uma reacção Pavloviana. É isto que faz um clássico.

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Mas repare-se, em conclusão, como a música intransigentemente péssima tem uma funperfeita de um padrão subjecmar com agradável precisão os nossos preconceitos. Ou seja: ao estarmos convictos da miséria -

além disso, a música má ajudanos a apreciar aquela que temos por boa. A música boa, ouvida depois da má, é enriquecida pelo factor alívio. Ou seja, serve de termo extremo de comparação e pode assim reforçar o amor por aquilo que vemos ser o oposto. é também um factor de unidade entre melómanos. O ditado diz que “gostos não se discutem” — mas também é verdade dizer que, no que diz respeito aos desgostos, eles podem-se disNeste aspecto, a editora que mais causa do Pop, aquela que mais consistentemente tem lançado obras desprovidas de qualquer valor, é sem dúvida a Bell. Creio aliás que nunca editou um único disco de qualidade, pelo que merece plenamente a . Maio/Junho 1981 42


COQUE O ROCA, IDENTIFIQUE O FRIQUE GUIA DA FAUNA MUSICAL LUSITANA PARTE I


AO PAULO MORAIS

“DE REPENTE, EM PORTUGAL, HAVIA TRIBOS MUSICAIS, CADA UMA

COM AS SUAS PRÁTICAS E ROUPAGENS. ASSIM REFLECTIA-SE O PAPEL CADA VEZ MAIS IMPORTANTE QUE A MÚSICA ROCK DESEMPENHAVA NA (BOA OU MÁ) VIDA DA JUVENTUDE PORTUGUESA. DAÍ TER SIDO NECESSÁRIO FAZER UM LEVANTAMENTO ESTRITAMENTE CIENTÍFICO DESSAS NOVAS ESPÉCIES APARECIDAS ENTRE A EX-CONSERVADORA FAUNA MUSICAL LUSITANA.”

dum , ou um nanuque com

, ou

com a sua preocupante ignorância lendo este valioso Guia sempre pronto na sua carteira e nunca mais cismará ou um Que quererá dizer ela com essa de eu mandar pinta de gadores que elaborou o presente estudo organizou-o segundo este modelo:

O leitor poderá assim passar por “boa onda” nos círculos

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PUNQUES , , caria. O feminino é

. -

Exemplos: Sex Pistols, Damned, Clash, Fado de Alcântara. -

por correntes de autoclismo. No dorso uma mensagem socialmente relevante: , etc. Cospe e vomita por ingestão das suas bebidas favoritas: Lavax

manhã em cabines telefónicas de machado em punho. , a hiena de Sete Rios.

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Folqueiros

ou

de montanhas e riachos, seja a favor da legalização da marijuana e da ilegalização

de 1876 do Dakota, e saiba equiparar meta-

poderão protestar, mas não entra tão bem

nas incorruptas por Omo, colares de pequede lã de lama, contendo semente de alpista e

da Estrada Marginal, pedindo boleias para hortas de erva, ou ainda no metropolitano, armados em artesãos Katmanduianos. xercem em Katmandu, Joe Hill, John McLaughlin quando veste fato branco, os poetas Beat antes de enriquecerem, Bob Dylan quando

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Nanuques frieza glacial da música.

quase exclusivo de instrumentos elec-

Numan, John Foxx. geral aspecto fúnebre, como um cadáver caído num tanque de lixívia. Roupa ao IBM ou NASA. Porte de quem engoliu um

faleceram; e ainda em centrais termonu2001 e onde quer que existam tomadas. Gary Numan, o computador do I.N.E., H.A.L. do , Ramalho Eanes, e Werner Von Braun.

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Tutónios tons, preto e branco. ou . Reggae e melodias do Rock’n’Roll. Vocais lectos regionais ingleses e crioulo da Jada marginalidade e da monotonia da vida no movimento “Rock against Thatcher”.

uvas, chapéu empada-de-galinha, calças branco, tolerando-se o vermelho em tutónias principiantes. Dança como quem corre os 100 metros sem sair do vezes em conjunção com uma ou outra anfetamina para manter o andamento. Bairro Alto e festas musicais africanas, e dá o seu pezinho no Jamaica. -

camisolas, assim como as bandeiras muTutónio Pereira, Skálidas Barreto, Amílcar

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Nu e i ve s . -

mais empenhadas, por vezes originais, embora lacónicas e ambíguas. Exemplos lídimos: Police, Pretenders, Dire Straits, Ramones. sapatos de ténis brancos, ou camisa sobre o largo com a fralda de fora. Cabelo curto, borbulhas. Afectam um ar de profundo e exist-

berância desgostante dos travoltas ou o pulapula contagioso dos tutónios. Dançam com os abertas como quem está num cacilheiro instável, acompanhando a música com um movimento estudado e pendular dos braços, ao modo dum Falam com preguiçosos monossílabos, arrastando os com o ar sisudo de quem já tudo viu clarecidos, como a sua própria sala de estar, onde podem ouvir rádio. Quando saem gostam limpa-pára brisas e desdenham muita gente ao mesmo tempo. -

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Travoltas ta sorridente.

120 pancadas por minuto, vozes de melaço morno, com um grau elevado de análise socide

.

a camisa aberta, expondo o medalhão astrológico que traz ao peito bronzeado,

invariavelmente ceroulas de mousse

o Silva lá do contencioso ou da Mafalda dancers alfacinhas, fotonovela a cores, com uma “sugestão” de ginger

sobre as

de Lisboa e Cascais que

modo seguro de os evitar. aos outros, colhendo sorrateiramente ideias das fotonovelas, assim como

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Rocas vem do local onde tudo começou, quando Cabo da

clássico, colheita Gene Vincent, os meioversão Status Quo, enquanto que os

preto com o maior número de fechospossível, jeans profusamente

, 20-6-80

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DAR AZO A UM JAZO OU ARES DE MUZAQUE OU MOZART GUIA DA FAUNA MUSICAL LUSITANA PARTE II

Depois de ter passado o País a pente de cal lusitana, podemos hoje oferecer-vos, leitor, mais uns valiosos subsídios para o -

propostas por Zlaty Amaral e Jean-Luc Godard em carta dirigida ao , seguiremos assim:

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Jazos

passam a vida a assobiar o “Misty”, isto porque são uns obcecados por melodia e não compreendem que uma música inaudível e insuportável pode factor: conhecem-se todos uns aos outros, bebem mas dizem que é

3. As variantes são muitas. Fundamentalmente, há os e os . São mais raros os Diquecis e os , apreciadores do Dixieland e do Rag

casa não vale a pena e deliciam-se

alguns levam para lá um termo e um saco-cama para não perder tempo -

cadinho e daí recomendar-se que se olhe possível saber só de ouvido. considerada desejável nos círculos entendidos. O uniforme é rigoroso: impera cientemente grandes para albergar um ou dois exemplares do , uma

Weather Report em termos abusivos e falando das melhores maneiras de se evitar a tropa. Há também o Louisiana, em Cascais, onde se abundam os jazos que se recusam a apor o nome em

em corpo inteiro, uma bobina clandestinamente gravada num concerto de Modern Jazz Quartet em Paris, várias tabletes de -

Vivem no Bairro Alto, o equivalente

velhos. Da camisola e da barriga, a maior que houver — se possível até aos joelhos. Sapato de carneira, meias de basebol e calças axadrezadas completam o trajo. Em geral, quanto mais magrizela é o

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cães chamados Dizzy ou Duke e re-

mais considera os gordos reaccionários. Os reaccionários identificam-se facil-

são Billie Holiday, Bessie

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Klássicos contemporânea há mais de cem anos e futurista há cento e cinquenta. Erus , os apreciadores de De Falla, Sor, Rodrigo e outros compositores bem adaptados ao bacalhau; os , que privam duma concepção Purcelliana e britânica; os Serras ou ros Tigres triângulo, também chamado “ferrinho”; e os , os que são aqueles que sabem assobiar a composição “4:33” de John Cage de cor. Esta composição, para um número

champôs. Ou seja: dos compositores cujos nomes a ralé inauguração do café Vienense que não chegou a ser

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em Tchaikovsky, por ser o fruto mais proibido.

os sinais fundamentais. Quanto mais Eru, mais se nota a camisinha de manga curta. Trazem sempre uma pasta

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para dar aquela pinta de abarrotanço documen-

sobre o outré. Quanto a batutas coça-costas não há consenso, embora os Erus não as consintam senão no convívio familiar. Há ainda outros adereços protocolares:

limão na Brasileira, se possível com um ar contempla-

e fazem concha com a mão sobre o ouvido, tentando destrinçar o estruturalista , isto em esboço ou em traço grosso. O que lhes é vedado é mostrar que experimentam o mais exíguo prazer, bater o pé, dança nas coxias com as companheiras ou gritar “Ganda merda!” a meio do segundo andamento. Podem, sim, mas só no intervalo, opinar que a interpretação “presta serviços” ou “se escuta não sem proveito”, conforme tenham gostado ou não. Escondemse na cave da Livraria Buchholz, olhando para as capas bate com os penantes lá em cima. Compram um disco de Xenakis e depois vão comprar o livro que lhes explica o que compraram. agora a sair da longa noite Mahleriana para emergir na ser totalmente interior, o que de todo proíbe bustos de Beethoven.

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Muzaques -

clareza,

ou

.

e interpretados em órgão Hammond e/ou acordeão. Gostam do Pop tocado por orquestras província ou por qualquer banda que não seja a original.

casa, embora seja mono se pode ouvir música em casa enquanto cola cromos da 1976 Sendo um bicho caseiro, apenas se podem dar alguns pormenores acerca da sua apresentação. Vestem-se ao jeito de mestre-escola, usando uma camisola roxa de ora em ora, quando se sentem mais jovens, mais “no vento”. As gravatas são obrigatórias, estampadas com magnólias

espiolhar a casa onde nasceu Johann Strauss, grande músico e percursor de Waldo de los Rios e Paul Mauriat. -

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Emepêbês Bossanovus Veracruzae

, etc. sileira, ou seja, todos aqueles nomes que nunca foram capa dum ou duma . Wanderlei Cardoso, Nelson Ned e Roberto Carlos são tabu, mas Ivan Lins, Gal Costa, Maria Bethânia, Simone e a pandilha são obrigatórios. palhinhas da Madeira que diz ter pertencido ao Jorge Ben, os jeans reza “Não são Staroup”, o cabelo deixado secar ao vento, a camisa tropical e os sapatos brancos não deixam escapar nenhum. Andam dum modo que lhes é único, que consiste num jingão balouçante, mãos nos bolsos da calcinha colonial com cotovelos em pseudo, assobiando uma melodia de Chico Buarque. Falam um interessante dialecto,

Afectam a musicalidade brasileira, o que não acintoso. Só se permitem aceitar as lusitani-

dizem gostar porque pensam que é uma forma agradável de retribuir o interesse. A despensa goiabada e de sumo de caju, que apenas ina mamar leite de coco do seio materno. As salas de estar querem-se sobre a Estufa Fria, o mais Dias Dançarinos possível, com objectos 57


Tupi oriundos, de facto, de S. Tomé e Príncipe. pequeno indício de soturno portuguesismo e é fatal que vista uma camisa estampada com ananases quando a alma se inclina para a lusitana lamechice. músicos baianos de Vila Nova de Mil-fontes dedilham o violão distraidamente enquanto os clientes caem e piram-se depois de dez brasileira sem carne seca. Falam alto, dizendo que já admiram Milton Nascimento há vários lustros, “ainda era ele gaiato, já eu o conhecia”, ou comentando as transas da telenovela, que hora e que, prova cabal disso, é que ainda minutos do episódio 34.

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UM ROCK-TESTE CIENTÍFICO: QUE ESPÉCIE DE ESPÉCIE FAZ VOCÊ? Dylan pré-cristão mas pós-protesto, bate as disprofessor Karinha, de Lausanne, mostram que o cérebro médio não consegue comportar mais do que um verdadeiro amor. Logo, é possível que o sr. X goste dos Specials, mas no fundo

pensámos, mas o problema é este: enquanto as fronteiras, que outrora dividiam os diversos se desmoronam num “burro-em-pé” constante

mas no fundo o que ele é, é um skazista tresloucado. E por aí a fora.

gamente, tudo era simples: gostava-se de Folk, ou de Fado, ou de Soul, ou de Pop. Hoje, já se

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parte do leitor, pois que os resultados podem abalar os preconceitos, destruir a imagem

violas semi-psicadélicas, irrompendo de ora em ora para um Reggae-de-raiz ligeiro, desde que

traste rondando as ruas, incapaz de conciliar o

músicos consagradíssimos. Até aqui, porém, nada havia a fazer. Mas...

dos Boney M. Como pode voltar a enfrentar a tertúlia do café, a brigada das gabardinas com

No Laboratório de Análises Rockómanas OnGenebra, acaba de ser divulgado um estudo

culturalmente adaptado para a sensibilidade portuguesa por um assistente do prof. Karinha que preferiu permanecer anónimo, mas não pode: é o dr. Krasso e pode ser insultado

determinar as lealdades latentes do indivíduo,

Lausanna L36 7HJ. 59


Mas havia sempre aqueles que não sabiam a que tribo pertenciam, pelo que se lhes facilitou a identificação através de um teste...


A ideia que eu faço dum paraíso terrestre é estar em casa, com os pés por baixo do gato, a ouvir um disco... viola que dura seis horas e vinte minutos; de sons de ribeiros de Tennessee a gorgolejar

pirata do Lou Reed, gravado em 1967 por um

Seu tivesse de passar o resto da minha vida numa ilha deserta com uma só pessoa, escolhia de caras... o Ian Gillan, que me podia ensinar a criar uma boa colónia de caspa e a desenvolver uma barriga de cerveja aceitável nos círculos Hard-Rock; a Joni Mitchell, aqui há uns anitos atrás; dos Blondie; a Catarina Valente, preferivelmente de tanga e

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Cá para mim, o único instrumento que me mexe nos cordelinhos, que verdadeiramente me afina é... o berimbau do Alto Volta; a seringa; o órgão eléctrico com efeitos orquestrais, palberimbaus do Alto Volta e um engraxador de sa-

Estou preparado a defender até à carnificina que o grande clássico do Rock and Roll é indubitavelmente... “Smoke on the Water”, tenho a impressão que é assim que se chama, ou “Water on the Smoke”, só sei que é bem porreirinho, tenho a impressão que sim; o coro das baleias choramingas em “Farewell terceiro ronco; o próximo disco dos Dire Straits; “Nel Blu del Pinto de Blu” na versão Marino Marini; 62


Na minha opinião, a ambição dum músico que se preze deve ser sempre... morrer afogado num barril de cerveja, depois de um solo de viola de seis horas e vinte minutos para abrir a sede; respeitar a natureza; andar com o cabelo bem curto e bem cortado;

sinfonias no órgão Hammond.

A função primordial da música é sobretudo... abrir a sede; dar a sensação de pés descalços numa pradaria de mimosas naturais, vacas ecológicas e lavradores sem corantes; com bostas verdadeiras e moscardos despoluídos; fundamentalmente criar uma atmosfera semiologicamente neutra, e , curiosamente, não isenta de sedimentos

não estão a falar.

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À parte a música contemporânea, também aprecio alguma clássica, realçando... lembro é aquela do anúncio da cerveja Sagres; o barroco neandertal; os Velvet Underground; aquele disco que o João Strauss fez para o Clube Popular do Disco.

Os textos têm a sua importância na música popular. Os temas mais apropriados ao estilo são, no entanto... ver com cerveja, e desde que tenha porrada... mas, geralmente, acho que o que interessa é a qualidade da... uh... música; elegias aos rouxinóis do Tibete ou, quando muito, ropolitano nova-iorquinas, com esboços breves dos entroncamentos;

letra pioneira do “Adios muchachos, compañeros de mi vida”. 64


Quando gosto duma música, a minha expressão favorita, aquela que penso melhor traduzir o meu estado de espírito enlevado é... uh; simplesmente ecológico, companheiro!; yah... dá para ouvir...; isto é que é música! Isto sim! O resto é conversa, vão sas, que eu não vou nessa história! Isto é que é o que é!

Quando vou a um concerto, vou sobretudo para... o solo de viola entra na quarta hora de duração; cado rural da música e reviver a atmosfera pura de Woodstock, mostrar o meu silencioso desprezo pelo acontecimento; ver se corresponde ao disco.

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RESULTADOS CIENTÍFICOS DO TESTE

a análise relevante: A)

tem salvação. Mesmo num teste que se quer isento de juízos de valor. B) e todas as outras coisas que rimam com “monótono”.

menos a chulé do que o cidadão médio. Mas não tem salvação. C)

provido de escolaridade obrigatória, que julga que o Rock começou em 1977. E tem muita razão, mas isso não quer dizer que tenha salvação, porque não tem. D) me esqueci de comprar o Steradent líquido, descanse! , 31-10-80

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