Quem somos antes do amanhecer Por João Batista (JB) Março - 2015 Ninguém passa por mim. Obrigo as pessoas a darem a volta no quarteirão. A passarem de largo, a metros de distância. Temem que eu desabe sobre elas e se atrasem para o trabalho. O medo faz da gente uns velhos que desconfiam até mesmo do vento parado na calçada. Admiro a criança que invade canteiros, pula cercas e arrebenta barragens. Mas crianças estão livres para brincar somente à tarde. Eu ponho limites a essas ruas. Domino os semáforos, as placas, os estacionamentos, os bares, as varandas. Determino entradas e saídas. Alvarás para o mundo. Eu divido a cidade e suas rotinas, suas éticas, suas perversões. Veja como é fácil manipular as pessoas: nada além de cimento, areia, tijolos e musgo. E um pouco de água para não dizer que não sou flexível. Dividindo a manhã: muro. Fronteira entre o ontem desprezível e o acordar pela metade. Como se divide o tempo em minutos, segundos e respirações, desunidos somos em sentir, pensar e agir, embora cabeça, tronco e membros estejam ligados por nervuras encadernadas à carne. Abandonei na madrugada insalubre a boa vontade de viver a vida como se ela requeresse isso de mim. Como se fosse um dever seguir a luz que se alumia atrás de montanhas brilhantes, condenando as trevas deixadas (senão feitas) por minhas mãos ainda sem furos, as mesmas que agora estão no bolso, mas que geralmente se ocupam de quebrar lâmpadas ou pagar passagens de ônibus. A minha perna direita convenceu a esquerda para atravessarem a rua, juntas. Penso que é preciso olhar para os dois lados antes de fazer isso. Numa esquina liquefeita em desacordos, raramente existem ruas, no máximo, atalhos para desfiladeiros sem curvas. Guardo ainda essa prudência: mantenho os olhos abertos desde que nasci. Parede. Cortina. Divisória. Alambrado. Cerca. Lamenta-se muito ter que partir. Deixar o descompromisso para trás. Deixar o sonho, a fuga e a felicidade. Deixar a loucura, os gritos, os passos incoerentes, os pulos sobre os arames. Há um dia a ser feito em horas. Uma hora repetida oito vezes. Talvez a chance de acinzentar-se ao meio-dia seja pequena, ou um aglomerado de fogos mate qualquer aceitação. Talvez um cão ladra saudando minha presença, mas logo se lembrará que não tem o direito de opinar. Já esqueci das vivências anteriores a esta data. Até lembro dos espinhos nos pés, mas agora não sinto dor nenhuma. Dizem que possuía segredos engavetados atrás de risos infantis, mas nessa época ainda não era vivo. Uma vida é assim: fósforo e circunstância, e nada além das 06h30min. Somos divisão. Acordamos em pedaços sem sincronia. Árvores negam-me a sombra, enquanto somos esquartejados no deserto do cotidiano. Os assassinos estão livres e almoçam comigo. Mantemos certa despretensão em tudo que fazemos ou pensamos. Um cumprimento, uma palavra, um agradecimento, uma aceitação. Mas ao menor suspiro do sol, o olho se inflama de terror, a boca fornalha ódios e as mãos se engasgam de tanto desejo por vingança. As muralhas invisíveis são as mais intransponíveis. E se a retina estiver encoberta pelas escamas do dia anterior, é o que basta para a pele se petrificar de erros e culpas. Pêndulo. As sobras de ontem não garantem o café da manhã. Um homem que vive de madrugadas carrega o machado roubado. Uns juntam-se em camas. Outros dividem cômodos e salários. Outros ainda se amordaçam, dizendo-se livres. Eu
desmonto-me na noite, esmiuçando e ajuntando pedras para estancar uma hemorragia chamada aurora.