ASSOCIAÇÃO EDUCACIONAL LUTERANA BOM JESUS/IELUSC CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
JORNALISMO
PROJETO DE MONOGRAFIA
JORNALISMO LÍQUIDO Uma análise crítica e propositiva entre a Carta de Pero Vaz de Caminha e a imprensa pós-moderna
João Batista da Silva
Joinville (SC) 2008
JOÃO BATISTA DA SILVA
JORNALISMO LÍQUIDO Uma análise crítica e propositiva entre a Carta de Pero Vaz de Caminha e a imprensa pós-moderna
Trabalho de monografia apresentado ao Curso de
Comunicação
Social
da
Associação
Educacional Bom Jesus/Ielusc, como requisito para obtenção do título de Bacharel em Jornalismo, sob a orientação do professor Gleber Pieniz.
Joinville (SC) 2008
TERMO DE APROVAÇÃO
JOÃO BATISTA DA SILVA O aluno _____________________________________________________, regularmente matriculado na 8º período do Curso de Comunicação Social, apresentou o presente Trabalho de Graduação, obtendo a média final 10 dez __________ ( _____________________________________________ ), tendo sido considerado aprovado.
21 de ________________ 8 novembro Joinville, ____ de 200__
Prof. Jacques Mick Prof.ª Valdete Daufemback Niehues
Orientador: Gleber Pieniz
Ă€ minha mĂŁe. E aos gatos em geral.
IV
E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertarĂĄ. JoĂŁo 8:32
V
RESUMO
Os contextos sociais, econômicos e históricos do jornalismo na pós-modernidade são discutidos neste trabalho de maneira a desenhar um plano de fundo onde estão superpostos a imprensa e os dilemas próprios de seu tempo, contribuindo para a melhor compreensão do que seja esse jornalismo. As relações metafóricas entre a Carta de Pero Vaz de Caminha e a imprensa servem como elementos paradigmáticos às características do jornalismo na contemporaneidade. Valendo-se dessas relações, inicia-se a discussão crítica e propositiva sobre as noções de verdade e objetividade no fazer jornalístico, a importância da autonomia dos sujeitos no processo comunicativo, a definição do jornalismo no contexto do mercado, os desafios éticos da imprensa e, por fim, os vínculos da mídia na economia global. Com os temas abertos, o trabalho busca somar-se ao debate atual sobre a democratização da mídia e a valorização do jornalismo como instituição democrática, à discussão acerca da autonomia dos indivíduos, às opiniões acadêmicas sobre o futuro do jornalismo e às formulações, ainda em curso, do entendimento a respeito do tempo pós-moderno.
Palavras-chave: Jornalismo; Sociedade; Pós-Modernidade; Democracia.
VI
SUMÁRIO
SOBRE A TRAVESSIA OU A BUSCA DA HIPERMETÁFORA
8
1. TERRA À VISTA
16
2. TUPI OR NOT TUPI
31
3. BAZAR DA MÍDIA
51
4. NÁUFRAGOS, TRAFICANTES E DEGREDADOS
65
5. A SERVIÇO DO REI
77
CONSIDERAÇÕES FINAIS E OUTROS INÍCIOS
91
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
96
VII
SOBRE A TRAVESSIA OU A BUSCA DA HIPERMETÁFORA
Parto do porto da palavra. Um parto temporão, fora do tempo próprio, perto das perigosas monções dos dias quentes. Tão logo os meses de gestação se cumpriam, paria-se em águas academicamente turvas os contornos de uma aventura com a cara do piloto que a conduz, bem como com seu olhar míope insistente em desembaçar o longe, mesmo mal enxergando o perto. É um partir solitário: sem saudações, lamentos ou despedidas. E silencioso: apenas o remo da escrita barulhando a água, tal qual a pedra que, jogada no rio por uma criança, pula feito peixe. Depois do partir, só há o devir. Da potência ao fato, só há um ato: remar. Remar conforme sinaliza, na praia, o orientador com seus mapas e gestos: faróis. Há um horizonte a perseguir, mas antes dele há a travessia. Para um imperito canoeiro, mais do que chegar lá é experimentar o atravessar em si. Não sei nadar nem mergulhar. Sigo: assumo os riscos desta empreitada. Parto em barco alheio. Feito por outros. A modo de quem quer ganhar tempo, queimo uma etapa e valho-me dos barcos parados, abandonados e ancorados, ou ainda daqueles desacreditados que repousam às margens do cais do tempo. O que interessa aqui é minha travessia, meu andar, caminhar, passagem. Se fossem na terra, seriam meus passos únicos em terreno já conhecido, empoeirado. Mas em águas correntes, os pés descansam enquanto o mar me atravessa e eu, embarcado, confronto seus rios de águas que jamais se repetirão. O que em terra firme são quilômetros, metros e polegadas, no mar as medidas são outras: léguas, milhas, braças. Não me julgue, portanto, pela capacidade de construir barcos, porque o mais que sei fazer é improvisar uma precária jangada capaz de me distanciar a poucos metros da margem. Ou, nem tanto. Não resistiria ao balanço das ondas no alto-mar, nem ao afago indelicado de ventos tempestivos. Seria um náufrago em potencial. Me considere um jangadeiro possível, me julgue pela capacidade de travessia, de condução. Pelo meu remar e meu equilibrar-se sobre tábuas flutuantes. Se vacilo ou faço boas manobras, o necessário é que permaneça lúcido, capaz de divisar a distância das terras: daquela que deixei e daquelas onde poderei chegar. No mais, me agrada a visão de águas por todo lado: me vejo ilha. Uma ilha pequena e redundante, mas que consegue o grande feito de desviar por momentos o curso formal das correntezas. Uma ruptura no andar viciado das marés. Há muitos barcos no porto. E muitos são seus donos e construtores. Conheço alguns, com outros converso, para outros apenas aceno e outros, ainda, ignoro. Com alguns, entro no
barco e passeio, com outros passo de largo. Marx, Habermas, Bourdieu, Freire, Baudrillard, Chauí, Bucci, Bauman, Kant, Gramsci, Caminha, Karam, Melo, Adorno, Benjamin, entre muitos. Com alguns tenho contato direto, que conhecia só de ouvir falar, e agora os vejo ali, trabalhando em suas bem arquitetadas embarcações. Sobre outros sei da fama pelo falar de atravessadores, de requisitados informantes como Chauí, Moretzsohn e Melo. Longe dos frankfurtianos, está o barco de Nietzsche: um navio-fantasma sempre a assombrar. Já coloquei meu pé direito sobre a borda dessa nau, mas me pareceu um barco sem fundo. Temerário, recuei. Quem sabe numa próxima tentativa. Os barcos dos gregos também estão ali, adornados com alegorias e temas diversos. Os gregos são clássicos, são pioneiros na arte da engenharia das palavras, dos conceitos e dos fundamentos. Não há barqueiro moderno que não recorra a eles para a feitura de suas naves, ou simples canoa, que seja. Visito barcos que sequer sei quem são os donos. Visito com os olhos, de passagem, a modo de quem espia, vê a luz acesa e não se encoraja a entrar. Barqueiros e marujos são muitos prosadores. Para alguns deles é preciso tempo e paciência proporcionais a suas infindáveis, complexas e misteriosas histórias. Não tome, porém, meu desconhecimento como ato voluntário, mas como a imprudência de querer, num só olhar, abarcar todo o mundo. Conforme percebo os rios que compõem o mar, faço os devidos reparos. Não tenho a primazia de todos os saberes, mas os que pretensamente possuo, densos ou esparsos, junto à força com que movimento o remo. Assim, o barco navega. Tenho uma carta nas mãos. Nas mangas, nada. Trago comigo a Carta de Pero Vaz de Caminha
documento conhecido de velhos e novos navegadores, bem como a figura de seu
autor. Tal escrito será minha baliza retórica para versar e controversar sobre o jornalismo no mundo contemporâneo, tendo como referenciais teóricos, direta ou indiretamente, os barqueiros já mencionados, dentre outros que aparecerão. Serei eu ali no barco, com meus pensamentos, o texto caminiano e demais escritos, a tentar compreender o sol, as montanhas, aves e as ilhas ao redor, além das fronteiras que se avizinham anunciando horizontes possíveis. Tenho a Carta de Caminha como paradigma ao estatuto jornalístico na atualidade. Emergem do texto caminiano temas e conceitos que ilustram características paralelas ora congruentes, ora concorrentes, da paisagem contextual da mídia hoje, em relação imediata à paisagem outrora trazida por Caminha. Não se trata da comparação cartesiana de elementos comuns, das diferenças e semelhanças entre um e outro referente, mas da discussão dessas semelhanças e diferenças, afloradas tanto do texto caminiano quanto do texto jornalístico, que soma-se ao debate atual do amadurecimento da democracia, do processo de democratização 9
da mídia e das correntes teóricas que esforçam-se em entender os contextos sociais da contemporaneidade. De posse da carta-mapa de Caminha, entro no barco. Antes do remar propriamente dito é preciso esclarecer em que águas navegaremos. Como já deu-se a entender, o presente trabalho salienta alguns temas do jornalismo e sua inscrição no mundo contemporâneo. O contemporâneo refere-se à natureza do pós-moderno, uma atualidade que não tem nome próprio nem grafia certa. Ou, melhor, até tem muitos nomes, mas todos são tão instáveis como igualmente válidos. Seja rio, mar ou oceano, essa atualidade não trata de águas que já passaram, mas que estão passando. E este trabalho pretende captar esse movimento tal qual a fotografia pára a ação, colocando em perspectiva os ditames próprios do jornalismo que dialogam na história pela distância até a Carta de Caminha e os temas que ali são relevados. Ora, eu escolhi a lente sociológica de Bauman para tirar essa foto e, me apropriando de conceitos do campo jornalístico, fazer todas as correlações propostas. Enquanto o sociólogo polonês dá subsídios a minha busca particular da metáfora perfeita
a hipermetáfora ,
Moretzsohn patrocina a minha crítica marxista ao jornalismo e Chauí e Freire me dão a dose necessária de idealismo e responsabilidade sobre o que digo. A esses autores empreitada
esteios da
junta-se o tom pessimista, apocalíptico e truncado da minha própria escrita.
Culpem Saramago, os marxistas, os dramas europeus (e os dramas em geral) e a igreja por isso. A contemporaneidade pós-moderna é de difícil e, talvez, de desnecessária definição. Considerando que a época histórica em que estamos vivendo é posterior ao período chamado de idade moderna ou modernidade, é salutar que, à falta de um nome específico, rapidamente o paliativo de era pós-moderna ou pós-modernidade se estabeleça. Foi Jean-François Lyotard, em sua obra A condição pós-moderna, o primeiro a usar e expandir o termo no sentido de demarcar uma ruptura entre dois tempos, a partir da abertura dos limites das artes e da literatura e da fragmentação da ciência como pólo da verdade. Já outro filósofo francês, Gilles Lipovetsky, refere-se ao contemporâneo como hipermodernidade, algo que se define não pela ruptura com a modernidade mas como sua excrescência pós-moralista, onde os estatutos morais, sociais e políticos foram à falência. O sociólogo espanhol Manuel Castells, em sua épica trilogia Sociedade em rede, trabalha com a idéia de uma sociedade informacional que contrapõe-se à sociedade industrial da era que a antecedeu. Em Jean Baudrillard, o pósmoderno fica sob a insígnia da sociedade de consumo. Além desses termos, há ainda quem fale de modernidade tardia, modernidade reflexiva, era pós-fordista, sociedade fluída ou 10
sociedade pós-tradicional. Todas as denominações podem ser validadas, no sentido de que cada uma encerra em si ao menos uma faceta da complexidade contemporânea, mas nenhuma pode ser universalizada à compreensão dessa complexidade. Um traço comum na conceituação do pós-moderno é que ela sempre parte e se polariza contra uma expressão da era moderma, a modo de quem busca uma definição para o hoje, considerando-o como um ontem tardio e, por extensão, o amanhã, como um presente precoce. Daí, temos vários jogos de contrários: produtivismo x consumismo, indústria x informação, tradição x aventura, racionalismo x relativismo, unidade x fragmentação, verdade x ficção, ordem x caos, permanência x aceleração, solidez x liquidez, entre outros. É Bauman que, notando a ambivalência que forma a realidade pós-moderna, onde conceitos contrários coexistem num mesmo espaço, formula a idéia de modernidade líquida
conceito transversal
à extensão do trabalho que aqui apresento , às vezes também grafada como modernidade ambivalente, sociedade líquida ou sociedade líquido-moderna. A modernidade líquida em Bauman corresponde ao real ambíguo da pós-modernidade, múltiplo em faces e em formas, que a todo instante se rearranja e se reconstrói, sem tomar consistência ou adquirir solidez, onde tudo o que é sólido se desmancha no ar . Ele define um novo aspecto da modernidade propriamente dita (por assim dizer, da modernidade moderna ), em contraponto ao aspecto anterior da modernidade sólida, coerente e racional. Líquido-moderna é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir .1 Outrossim, é em Bauman que o termo pós-modernidade sai da marginalização e ganha popularidade e crédito, em parte devido à produção profícua do autor, outra parte por sua lucidez e amplitude ao tratar do tema que é, por si só, desafiador. Até que o distanciamento histórico permita precisar melhor a constituição do mundo pós-moderno, como uma continuidade da era que a precedeu ou como um tempo de identidade própria, provisoriamente a alegoria do estado líquido das coisas, da metáfora da água, da natureza do volúvel e do fluído, nos empresta hoje um sentido eficaz e coerente no entendimento do que seja o contemporâneo. Posteriormente, ela até pode se firmar como a melhor representação, a mais próxima possível, do que tipificou nossa atualidade. A despeito desse cenário social, imerso em água, fumaça e neblina, o foco neste trabalho não é discutir sobre suas modulações e amarrações, mas apenas perceber sua evidência através de um entre muitos setores em que
1
BAUMAN, Zygmunt, Vida líquida, p. 7
11
ele aparece miniaturizado: na comunicação, na mídia, no jornalismo. Este trabalho, pois, aborda reflexões sobre o jornalismo num mundo líquido-moderno. Se no contexto social são muitas as metáforas e os conceitos que revelam uma mesma face, no campo estrito da mídia e do jornalismo em particular, também há diversas concepções que se esforçam em representá-lo. Para o sociólogo Octavio Ianni, em Enigmas da modernidade-mundo, a mídia atual expressa a figura do príncipe eletrônico
espécie de
Maquiavel contemporâneo. Conforme diz Caio Túlio Costa sobre a concepção de Ianni, essa entidade nebulosa ,
É a face globalizada da indústria cultural, é a onipresença da mídia que regula e desregula, instaura e tira, manda e desmanda num mundo onde a informação não corre solta nem totalmente livre, porque corre desigual. É tanto a mídia das corporações quanto dos blogs , dos jogos de tensões, das versões, dos fatos, da propaganda, do merchandising, da moda, dos costumes da ausência de valores.2
O conceito maquiavélico de Ianni remete com facilidade a outra figura: a do Grande Irmão em George Orwell. Costa cita também a noção de informação assimétrica trabalhada pelo economista Joseph Stiglitz:
Ao explicar a questão da assimetria da informação nos mercados econômicos, Stiglitz iluminou outra face do mesmo problema, cuja raiz se desnuda quando se sabe melhor, a partir dele próprio, que as imperfeições da comunicação, mesmo sob o domínio das mais portentosas técnicas da mídia, são pervasivas , onipresentes, não só na economia, mas na comunicação como um todo. Assimetria quer dizer ausência de igualdade, falta de simetria, ou seja, uma disparidade, uma discrepância, uma desigualdade. Um lado sempre tem mais informação do que o outro no processo de comunicação.3
Sobre o jornalismo e além dele, poderíamos ainda recorrer ao deserto do real em Slavoj Zizek, aos elementos de labirintos, reinos, felinos e espelhos recorrentes na obra de Borges, à cegueira branca em Saramago, aos moinhos de vento em Cervantes e a tantas outras imagens capazes de caracterizar nosso tempo e as instituições que nele se inserem. Dos mitos e fábulas gregas aos contos e verbetes próprios desta época, parece que não há limites para a criação de alegorias e estampas a retratar tantas realidades e imaginários. As águas pósmodernas são, como vistas, turbulentas, profundas e, às vezes, tão enganosamente tranqüilas e
2 3
COSTA, Caio Túlio. Modernidade líquida, comunicação concentrada, p. 21 Idem
12
rasas. Seja como for, ou como parecem ser, é nelas que navego e, pelo navegar, delas tiro o meu pescado
a matéria-prima que procura dar consistência a este projeto.
Lanço, pois, meus anzóis às águas. No rio-texto de Caminha há muitos peixes. Muitos temas poderiam ser extraídos dali para dar sustento a diversos debates acerca do jornalismo e da mídia. Eu, pescador infante, fisgo apenas cinco. Eles alimentarão minha palavra neste trabalho. Até peguei outros é verdade, mas tive que fazer escolhas e dispensas. O cesto monográfico tem seus limites e, para não rompê-lo e não correr o risco de perder o pescado, é preferível ater-se às limitações, independente do tamanho da fome e da pretensão. Cada remada é um capítulo, um peixe, um esforço em discutir o tema prometido. Um olhar que procura medir a distância até Caminha e a proximidade até nós mesmos. Com base no que o escrivão português vê e, assim como lhe parece, relata, o primeiro capítulo traz uma discussão sobre o tema da verdade, conceito recorrente em debates da área jornalística e que freqüentemente junta-se a novas perspectivas e angulações da profissão. O ideal iluminista da verdade
concebida como única e harmoniosa
não ecoa no mundo
contemporâneo porque o projeto racionalista que o sustentava não se completou ou foi suplantado pela máquina do capitalismo imperialista. Multifacetada e difusa, a verdade hoje não está atrelada a um sistema de valores, como o da teologia ou o do racionalismo, mas a diversos sistemas que são confluentes, quer sejam contrários ou complementares entre si. Nesse contexto, que tem como pano de fundo, entre outros, a precarização das instituições e a despolitização dos indivíduos, o jornalismo também se reconfigura como parte de um modo de produção, mas continua com o discurso antiquado da verdade em sua fala, onde critérios como objetividade e imparcialidade mostram-se anacrônicos. Ocorre que o discurso não só se contradiz com a prática jornalística, como também não considera o conjunto plural de verdades oriundas de divergentes setores sociais. Daí a busca da autonomia pelo indivíduo e o redimensionamento da função do jornalista como instância do exercício prático a favor da democracia e da reabertura do espaço público. Na marola da abordagem do primeiro, o segundo capítulo pesca na cena do contato inicial entre portugueses e indígenas, conforme as indicações caminianas, a necessidade da comunicação entre um sujeito e outro se inaugurar a partir do diálogo recíproco, do entendimento e da compreensão, de modo a não promover uma relação de sujeição ou dominação de um sobre o outro. Entre os dois, o jornalismo se dá como mediador e equilibrista, como contrapeso regulador das diferenças. Paulo Freire e Zygmunt Bauman dão, nesse capítulo, subsídios imprescindíveis para sustentar a idéia de emancipação do homem e 13
sua recolocação como sujeito político, de modo que a comunicação humana, e a comunicação do jornalismo em particular, seja instrumento de libertação e espaço reflexivo. A cartilha de exploração e domínio ditada pelos portugueses à época da colonização inaugurou uma relação de paternalismo que não se comunica com esse ideal. À condição do não-diálogo e do que ele deve ou pode ser ganha, no terceiro esforço do remador, uma representação: a configuração do jornalismo numa sociedade de consumo. Na contemporaneidade, as relações dialógicas dão lugar para ações de compra, as carências sociais sucumbem às necessidades econômicas dos mercados, o cidadão atua como consumidor e o estatuto da publicidade antecede o do jornalismo. Os valores da democracia, mesmo inscritos no discurso neoliberal, não são praticados nem promovidos, pois a fala do neoliberalismo é, antes de tudo, falaciosa. Tal como ilustra o relato de Caminha, a relação econômica prescindiu à relação comunicativa: pensamentos, palavras e idéias foram substituídos pelo trânsito de colares, pulseiras, espelhos, arcos e flechas. No rastro de todas essas inversões, a insatisfação das pessoas é um traço comum e o jornalismo, também um produto à venda, perde muito de seu sentido histórico e social. Parece que a única maneira de controlar a insatisfação é continuar consumindo, sem perder nenhuma edição dos jornais. No quarto capítulo, o peixe traz à boca a palavra ética. O tema atravessa praticamente toda a história humana. Da mitologia à religião, da religião à ciência, da ciência à filosofia, da filosofia ao empirismo: de Platão a Santo Agostinho, de Santo Agostinho a Kant, de Kant a Nietzsche, de Nietzsche a Heidegger, de Heidegger a Habermas. Mas a pretensão aqui é bem mais singela do que fazer um tratado da epistemologia ética: é tão somente (o que para mim representa muito no âmbito do meu precário conhecimento) atravessar o círculo do jornalismo com algumas indicações dos conflitos éticos internos da profissão, tanto em relação, é claro, aos seus compromissos e estatutos como também ao ambiente exterior, onde a mídia e toda a sociedade jogam com os próprios dilemas e valores. Esse debate emerge quando Caminha relata sobre a presença de degredados na comitiva portuguesa descobridora do Brasil, e também sobre a rebeldia de tripulantes nessa comitiva. Rebeldes, criminosos e serviçais dividem na expedição de Cabral espaço com religiosos, capitães, mercadores e oficiais. Esses tipos traduzem uma estratificação social, uma ordem, uma hierarquia de valores. Os que desafiam a ordem são punidos; os que a elogiam são gratificados. A personificação do jornalista moderno, ora em Caminha, também pode estar na figura dos degredados que esse descreve. Tudo depende do porto de onde partem as referências do que queremos ver. Se do ponto de vista do indígena ou do português, sob o olhar europeu ou americano, a partir do 14
criminoso ou de quem o julga, a partir do colono ou do colonizado. Ou ainda, conforme referentes que fujam a esse tipo de polarização. O problema permanecerá aberto, como veremos. No último capítulo, enfim, a uma distância considerável das margens, daquelas que ficaram para trás e das que se mostram à frente, procuro prestar um serviço ao leitor, da mesma forma que Caminha faz seus préstimos ao rei D. Manuel. Em A serviço do rei , com o cesto cheio, mais pela pequena quantidade que suporta do que pela abundância em si, há o esforço em retratar as articulações da mídia contemporânea com as elites econômicas e políticas que, direta ou indiretamente, as representam. Estatísticas e fatos recentes comprovam a construção de uma hegemonia midiática imediatamente atrelada a grupos hegemônicos do capitalismo. Esses grupos, formados por esdrúxulas fusões e incorporações, definem uma elite dominante que exerce forte influência sobre a grande mídia e assegura ao jornalismo uma dependência econômica que lhe é perniciosa. Sim, o jornalismo precisa de financiadores, mas isso não significa que deva ficar de joelhos diante deles, anulando os próprios conceitos de independência, autonomia e autenticidade. Se neste capítulo há uma melhor contextualização sobre o campo de atuação da mídia, há também, em paralelo, outras informações sobre o contexto em que Caminha faz suas anotações, o que existe além da carta em si e as explicações de algumas ausências e incoerências. E as adjacências caminianas só contribuem à fala de quem diz que há mais coisas entre o céu e a terra do que a nossa vã filosofia pode imaginar e, ademais, acredita que outros céus e terras são possíveis. À objeção desses capítulos versarem sobre a circularidade do quadrado ou a quadratura do círculo, esclareço que, de fato, não invento a roda, mas contribuo com um impulso que a faz girar. No campo acadêmico, o girar corresponde a um movimento reflexivo e epistemológico que deva ser constante e afluir-se além do academicismo. Na prática jornalística, o girar verbaliza um parar para pensar sobre o que se faz cotidianamente em meio ao frenesi operacional. Para mim, agora, o girar representa a ação do remo na água, o que me permite o ensaio da travessia. Os cinco capítulos, somados a esta introdução e às considerações finais que findarão o trabalho a título de conclusão, valem ainda a alegoria do milagre da multiplicação dos peixes e dos pães. Com uma pequena corruptela do texto bíblico, que trata de cinco pães e dois peixinhos, trago no cesto cinco peixes e dois pãezinhos. Deus queira que possam servir de alimento a outros navegadores em jornadas semelhantes. Parto, pois, à mesa, ao partir do pão e dos peixes. Este é o meu corpo dado por vós . E por mim mesmo. 15
1. TERRA À VISTA Jornalismo à deriva da (busca pela) verdade
Restaram ainda uns pedaços dos destinos que não cumprimos. Nós: nortes contrários. Temporais sem âncoras e sem itinerários. PATRÍCIA HOFFMANN (In: A inexatidão das rotas)
Caminha não anda, escreve. Não entrevista, observa. Não critica, relata.Vê apenas. E descreve o que vê, conforme lhe parece. Conforme lhe aparece aos olhos um mundo novo. Novas cores, novas peles, seres outros. A fotografia no olhar vira uma carta no papel, o registro em positivo do que lhe atravessa a retina. Escreve com a pena colorida. De papagaio, talvez. De papagaio de pirata. Ou tupiniquim? Se com pena colorida de papagaio de pirata, não se sabe, o certo é que Caminha rabiscreve ali, sob a sombra de uma palmeira onde canta o sabiá. Já dizia o poeta, sabe-se, mas o escrivão foi o primeiro a testemunhar: Andamos por aí vendo o ribeiro, o qual é de muita água e muito boa. Ao longo dele há muitas palmeiras, não muito altas; e muito bons palmitos. Colhemos e comemos muitos deles .1 Caminha, o primeiro ladrão de palmito do Brasil, não percebeu o sabiá, mas ele estava lá. Não duvide, por que ele também não duvidou:
Outras aves não vimos então, a não ser algumas pombas-seixeiras, e pareceram-me maiores bastante do que as de Portugal. Vários diziam que viram rolas, mas eu não as vi. Todavia segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de infinitas espécies, não duvido que por esse sertão haja muitas aves!2
Caminha não poderia dar conta de tudo também. Além do mais, depois veio Gonçalves Dias e colocou palmeiras, sabiás, terras e bosques tudo numa só canção. E viu Deus que o negócio ficara bom. O escriba português, porém, não estava para completudes. Não era um flâneur benjaminiano, muito menos um Gulliver swiftiano. Nem muito ao céu, 1
CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a el rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil, p. 12-13. Conforme texto base da edição Carta a El Rei D. Manuel, editora Dominus, São Paulo, 1963. Disponível em <http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/carta.html> O documento foi impresso sem paginação. Deve-se considerar a numeração de páginas como a seqüência ordinária de folhas. Salvo outro registro, todas as referências à Carta neste trabalho são baseadas nessa versão. 2 Ibidem, p. 9
nem muito ao inferno, Caminha era um comissionado, o barqueiro do purgatório. Tinha as preces de Frei Henrique e as bênçãos de D. Manuel. Desde a primeira linha de seu escrito, Caminha esclarece que não irá carregar muito na tinta
aquela que desliza pela pena de
papagaio:
Senhor, posto que o Capitão-mor desta Vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta Vossa terra nova, que se agora nesta navegação achou, não deixarei de também dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que para o bem contar e falar o saiba pior que todos fazer! Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade, a qual bem certo creia que, para aformosentar nem afear, aqui não há de pôr mais do que aquilo que vi e me pareceu. Da marinhagem e das singraduras do Caminho não darei conta a Vossa Alteza porque o não saberei fazer e os pilotos devem ter esse cuidado.3
Pero Vaz de Caminha dá ao destinatário, rei D. Manuel I, e a quem interessar possa, mostra da parcialidade e da subjetividade presente em todo o relato. E aqui entro com as correlações jornalísticas (mas o canto do sabiá sempre ao fundo, perceba). Ele indica ao leitor que apenas um ponto de vista é ali considerado. Afirma-se que D. Manuel tinha afeição pela pessoa de Caminha, e que este era bem quisto nas Cortes de Lisboa por seu ofício de escrivão. As anotações de Caminha estão formatadas como carta e isso indica a pretensão do relato ser lido dentro de uma relação de cumplicidade e familiaridade entre leitor e escritor. Exceto bancos e escritórios de cobrança, ninguém escreve cartas para estranhos. Outrossim, quando a relação é amistosa entre os dois, ou quando o emissor busca credibilidade e respeito junto ao leitor, coisas obscuras, desagradáveis ou comprometedoras não aparecem na escrita. A tinta acaba, o papel termina, o espaço fica limitado, a paciência se esgota. Justificativas formais e informais respondem sobre o que não se dará conta a Vossa Alteza ou sobre aquilo que é da responsabilidade alheia, que cabe aos pilotos fazerem. O escrivão se adianta em dizer que da marinhagem e das singraduras do caminho não irá comentar, mas alguns eventos expostos ficam sem melhores explicações na escritura caminiana, como a origem dos degredados e a fuga de marinheiros:
Creio, Senhor, que, com estes dois degredados [bandidos] que aqui ficam, ficarão mais dois grumetes [marinheiros], que esta noite se saíram em terra, desta nau, no esquife [barco longo e estreito],
3
Ibidem, p. 1
17
fugidos, os quais não vieram mais. E cremos que ficarão aqui porque de manhã, prazendo a Deus fazemos nossa partida daqui.4
Do que Caminha deixou de esclarecer, outros dois documentos remetidos da esquadra de Cabral não contribuem para dissipar a neblina: a Carta do mestre João Faras e a Relação do piloto anônimo. João Faras, bacharel em artes e medicina, limitou-se em curta missiva ao rei português ao relato das primeiras coordenadas astronômicas e cartográficas nas terras brasileiras. Já o piloto anônimo, talvez não quisesse se identificar porque assumiu o risco de comentar sobre algum incidente de viagem: E no dia seguinte pela manhã levantamos âncora e com grande tormenta andamos correndo a costa para o norte para ver se encontrávamos algum porto, onde a dita armada ficasse , e sobre a semente do mal que aqui foi plantada: E nestes dias que estivemos, determinou o Capitão dar a saber ao nosso Sereníssimo Rei o achado desta terra e de deixar ali dois degredados e condenados à morte que tínhamos levado na dita armada para tal fim .5 Fala-se à boca pequena, porém, que o piloto anônimo não era nem piloto, nem anônimo. Tratava-se de outro escrivão da armada cabralina, João de Sá, que assumiu o anonimato em troca de quantia não revelada. Lendas a parte, o não-dito de Caminha encontra eco nos escritos dos demais tripulantes que, em tese, dariam conta de outras notícias. É a gênese do dito pelo não-dito. Natureza correlata da informação parcial, da notícia sem contexto e da verdade precária que até hoje habita os noticiários. O missivista português é bom escritor. Ora poético, ora prosador. Ora exato, ora vago. No tempo certo, é cronológico, linear. Sempre atento nas descrições. Domina com elegância sua pena de papagaio. Inspirado nas cores das araras e nos traços abstratos riscados nos corpos nus das moças nativas, Caminha não escreve, desenha. Um desenho fácil de ler, onde se sobrepuja o visual, o sensível, o sublime. Nada de guerra ou sangue, nada de flechas contra espadas. Caminha pinta ao rei o paraíso na Terra, e ao índio o céu cristão:
E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o Ele nos para aqui trazer creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar a
4
Ibidem, p. 12. As palavras entre colchetes são minhas. Como regra extensiva a todo o trabalho, essas inserções serão assim marcadas quando da necessidade de expressar sinônimos, de definir termos do português quinhentista ou de contextualizar a citação. 5 Trechos de Relação do piloto anônimo, relato de autoria incerta que faz referência ao descobrimento, mas é extensivo à viagem de Cabral à Índia e seu retorno a Portugal, sobre a qual se ocupa em grande parte. Texto parcial disponível em <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000147.pdf>, baseado no livro Os três únicos testemunhos do descobrimento do Brasil, de Paulo Roberto Pereira. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999. Junto com as cartas de Caminha e Faras, a Relação do piloto anônimo forma a tríade documental que versa sobre o achado da terra brasileira.
18
santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim!6
Há o retrato de uma realidade camuflada em figuras de linguagem, escondida atrás de discursos, legitimada pelas aparências de formatos e de ideologias. Caminha deixa claro que alguns fatos e observações não aparecerão em seu relato epistolar. Um tanto pelas coisas que ele não viu, outro pelas que não lhe pareceram interessantes, segundo seu particular ponto de vista e sua singular condição de súdito. A partir desses indicativos e suas sugestões, estabelecemos, numa comparação pertinente, tendo em vista a narrativa de Caminha como uma espécie de protojornalismo, que nem essa virtude
a de assumir uma posição
o
jornalismo na pós-modernidade tem, obcecado que está por manter a casca da objetividade em sua linguagem. O termo
protojornalismo
expressa aqui a natureza de um trabalho
primitivamente jornalístico exercido por Pero Vaz de Caminha em seu relato noticioso , antes mesmo do estabelecimento dos aspectos que regem a profissão de jornalista e o trabalho de imprensa. O prefixo proto- (do grego prõtos) refere-se a um elemento de formação de palavras que exprime a idéia de primeiro, anterior.
Firmado na concepção mitológica da verdade, o jornalismo contemporâneo se alia ao frágil discurso da imparcialidade e da objetividade. O autor da notícia não é um agente exterior ao objeto noticiado. Seu olhar, sua experiência, seu sentimento revêem, reavaliam e reconstróem o objeto. Caminha, como jornalista-viajante ou jornalista-turista, vê o Novo Mundo com fascínio, admiração, espanto, preconceito. Tal subjetividade não pode ser sublimada do relato. É ela, aliás, que dá efervescência, movimento e vida ao texto. Traz ebulição à palavra caminiana. A notícia, por sua vez, não pode ser analisada fora do contexto de edição. O fato em si pré-existe ao texto, mas se torna visível e relevante pelo viés da produção jornalística. A subjetividade presente no processo editorial compromete a objetividade ideal que busca dizer a verdade sobre os fatos, e nada além deles. De acordo com Sylvia Moretzsohn,
O conceito de objetividade é apropriado pelas empresas jornalísticas e passa a constituir uma referência de profissionalismo nessa área, o que ajuda a encarar o jornalismo como técnica, ocultando seu caráter 7 político e a trama de interesses na qual essa atividade se exerce.
6 7
CAMINHA, Pero Vaz de, op. cit., p. 10 MORETZSOHN, Sylvia. Jornalismo em tempo real: o fetiche da velocidade, p. 56-57
19
A objetividade só pode existir enquanto impossibilidade. E a imparcialidade, enquanto pretensão. Quando se sabe que a realidade jornalística é, na verdade, apenas um recorte subjetivo da realidade, fica claro que o critério de decisão sobre a agenda do que fica fora e o que vai ser notícia passa pelo olhar pessoal do editor, da postura política e de mercado adotada pela empresa jornalística
a corte superior. E antes disso ainda, na sugestão de pauta,
no texto do repórter, na diagramação das matérias na página, a ordem das notícias num telejornal. Conforme faz observar as anotações de Caminha, a frota portuguesa navegou durante dias pela orla brasileira sem aportar definitivamente em nenhum lugar. Buscava um porto seguro para atracar e descansar. Ele escreve:
E fomos de longo da costa, com os batéis [bateiras] e esquifes amarrados na popa, em direção norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde nós ficássemos, para tomar água e lenha. Não por nos já minguar, mas por nos prevenirmos aqui. E quando fizemos vela estariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali aos poucos. Fomos ao longo, e mandou o Capitão aos navios pequenos que fossem mais chegados à terra e, se achassem pouso seguro para as naus, que amainassem [recolher velas].8
Os portugueses não estavam absolutamente tranqüilos com a presença dos índios na praia, que observavam a movimentação dos barcos dos visitantes. Uma pequena comissão navegara em barcos pequenos para ver os nativos mais de perto e localizar um bom lugar para atracar. Os tripulantes deveriam criar um clima amistoso com os
selvagens . A frota
principal seguia em frente:
E velejando nós pela costa, na distância de dez léguas [50 km] do sítio onde tínhamos levantado ferro [ancorado, pela primeira vez], acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. E as naus foram-se chegando, atrás deles. E um pouco antes do sol-pôsto amainaram também, talvez a uma légua do recife, e ancoraram a onze braças [22 metros de profundidade aproximadamente].9
Antes de aportarem, o Brasil era visto à distância (cerca de 30 quilômetros, como sugere o relato da Carta) e, no olhar do escrivão, era apenas um grande monte, muito alto e redondo
o Monte Pascoal, como havia chamado o capitão-chefe. Embora longe da terra, os
pilotos arriscavam uma definição: a ilha. As primeiras impressões do lugar que estavam por 8 9
CAMINHA, Pero Vaz de, op. cit., p. 2 Idem
20
descobrir foram baseadas meramente em aparências, a partir de certos referentes que, por convenção ou conhecimento empírico, indicavam outros, mesmo sem saber, ver ou sentir:
E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de terra, estando da dita Ilha [de São Nicolau, no arquipélago de Cabo Verde] segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas [ou cerca de 250 quilômetros em relação à costa brasileira] os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que a mareantes chamam botelho, e assim mesmo outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam furabuchos.10
Segundo texto do jornalista e escritor Eduardo Bueno, os botelhos eram como tapetes flutuantes balançando nas águas translúcidas de um mar que refletia as cores do entardecer ou grandes algas que dançavam nas ondulações formadas pelo avanço da frota imponente . O rabo-de-asno era outra espécie de planta marinha: um emaranhado de ervas felpudas que nascem pelos penedos do mar . Os furabuchos, por fim, eram as aves da anunciação , conforme explica Bueno,
Se ainda restassem dúvidas [da proximidade de terra], elas acabariam no alvorecer do dia seguinte, quando os grasnados de aves marinhas romperam o silêncio dos mares e dos céus. As aves da anunciação, que voavam barulhentas por entre mastros e velas, chamavam-se furabuxos [sic]. Após quase um século de navegação atlântica, o surgimento dessa gaivota era tido como indício de que, muito em breve, algum marinheiro de olhar aguçado haveria de gritar a frase mais aguardada pelos homens que se fazem ao mar: "Terra à vista!".11
Todos esses sinais davam o indicativo de terra próxima. Além disso, o nível do mar cada vez mais baixo representava um lugar que, aos poucos, emergia do oceano e alçava-se ao céu. E quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos em direitura à terra, indo os navios pequenos diante
por dezessete, dezesseis, quinze, catorze, doze, nove braças
até meia
légua [2,5 quilômetros] da terra, onde todos lançamos âncoras, em frente da boca de um rio .12 Índices como esses levaram à descoberta da Terra de Vera Cruz
muito mais que uma
pequena ilha como se presumira: um novo continente. As aparências que no começo se mostraram enganosas aos tripulantes e à Caminha remetem ao conhecido Mito da Caverna , de Platão,13 quando consideramos o contexto no 10
Ibidem, p. 1 BUENO, Eduardo. A viagem do descobrimento: a verdadeira história da expedição de Cabral, p. 7 12 CAMINHA, Pero Vaz de, op. cit., p. 2 13 O texto encontra-se na obra A República (livro VII) 11
21
jornalismo atual. As aparências ganharam status de realidade, enquanto a realidade factual em si é mero elemento secundário da linguagem como produtora de um discurso sobre a realidade. Muniz Sodré esclarece que as ideologias estão na base desse processo:
Os materiais de uma ideologia são a linguagem e seus recortes práticos, denominados discursos . Quase sempre se achou que a linguagem refletia uma realidade dada a priori e que os discursos organizavam os reflexos , com vistas à comunicação, à compreensibilidade. Hoje, porém, fica bastante claro que a linguagem cria, mais do que reflete, a realidade.14
Moretzsohn vai além: O sentido se produz na interpretação, que é inseparável da ideologia .15 Para os marinheiros experientes os sinais vistos eram claros; para os de primeira viagem, nem tanto. Perde crédito a arcaica teoria do espelho, segundo a qual as notícias são como são porque a realidade assim as determina. A afirmação da imprensa informativa no século XIX consolidou o paradigma da objetividade na ambição de separar os fatos das opiniões. O jornalismo era de um funcionamento absolutamente técnico, tal qual os teares ingleses da Revolução Industrial. Já no século XX, a noção de verdade no conteúdo noticioso transparente na objetividade dos relatos serve mais como condição estratégica para legitimar os fatos e dissociar as ideologias por trás das opiniões sobre os acontecimentos. Enunciados e enunciadores isolam-se num mundo desestabilizado pela guerra, como se os primeiros não fossem afetados por esta última. A fotografia torna-se ícone da representação que tem na imagem o suporte da reflexão fiel da realidade. Apesar do espelho despedaçado, o jornalismo ainda se vê com as bases de uma pretensa objetividade. O processo de despolitização, a mercantilização das notícias, a prioridade por apelos sensacionalistas, os recursos narrativos diversificados, a publicidade patrocinando o trabalho de imprensa, a urgência dos imperativos econômicos, entre outros fatores recentes, abala qualquer sustentação do discurso jornalístico como transparência do real, do verdadeiro, do fato puro. Em semelhança à armada cabralina em busca de porto seguro na costa brasileira, o texto discursivo do jornalismo pós-moderno (grande mídia16 à frente) faz rodeios sobre a verdade, circunavega a verdade, elogia a verdade, se aproxima da verdade mas, a partir de um
14
SODRÉ, Muniz. O globalismo como neobarbárie, in: Por uma outra comunicação/Dênis de Moraes (org.), p. 22 15 MORETZSOHN, Sylvia, op. cit., p. 95 16 Entenda-se como grande mídia o conjunto das principais redes de comunicação de massa do mundo (e do Brasil, particularmente neste trabalho) que, sob a égide da propriedade cruzada dos meios de informação, opera com canais de televisão, emissoras de rádio, serviços de internet, controle de jornais e revistas, agências de notícias e casas editoriais, e que está invariavelmente atrelado a elites econômicas, políticas e culturais.
22
processo de auto-referência, não considera mais a verdade como algo a ser perseguido. Em seus conceitos arroga a si mesmo como a Verdade, não admitindo contestação. Embarcada nas redações, grande parte dos jornalistas apenas olha para fora e diz haver terra lá na frente, onde árvores balançam com força. Não exploram a realidade, não descem do barco e caminham pela praia. Seguros do conhecimento a priori sobre o mundo, não abandonam a certeza prévia (falsa objetividade) dada pelas sombras na parede da caverna de Platão e ignoram uma realidade exterior. Esta exige envolvimento, toque, imersão, enfrentamento e é conhecível somente por quem está no lado de fora, e não por quem só a olha pela janela das aparências. Em sua discussão sobre a verdade, Zygmunt Bauman aponta:
Toda teoria da verdade segue o modelo de Platão, em ser uma teoria sobre por que e como os poucos escolhidos conseguem, mas também, e talvez acima de tudo, uma teoria sobre por que todos os outros não conseguem fazer o mesmo sem serem guiados e por que tendem a resistir à direção e permanecer dentro da caverna, em vez de explorar o que é visível somente à luz do sol, no lado de fora.17
Richard Rorty comenta que a noção de verdade trata-se de um endosso às crenças aceitas, numa atitude que adotamos para com o que é dito ou acreditado, e não entre o que é dito e a realidade .18 Isso pode ser uma afirmação de que a verdade se estabelece a partir de uma relação com o Outro, e não de alguma coisa (notícia, fato, acontecimento, por exemplo) com esse Outro. A verdade estabelecida por uma relação de reciprocidade e de aceitação e não de acordo com a realidade. A partir dessa perspectiva, a descrição que Caminha faz em seu relato adquire mais sentido quando entendida na construção da aceitação e do favorecimento que o escritor busca com seu leitor primeiro (o rei português) mais do que na construção do próprio relato. Além da função de endosso, algo que Rorty não considerou, o expediente da verdade
19
tem uma função que condiciona qualquer outra, a função da
controvérsia. Ora, é essa função que nos importa, já que no campo jornalístico é o jornalista quem media as contrariedades dentro de um sistema de poder, num jogo de forças políticas, sociais e econômicas. Conforme Bauman,
A noção de verdade pertence à retórica do poder. Ela não tem sentido a não ser no contexto da oposição adquire personalidade própria 17
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade, p. 144 RORTY, Richard apud BAUMAN, Zygmunt, ibidem, p. 142 19 Da expressão A verdade é somente um expediente na nossa maneira de pensar , de JAMES, William apud BAUMAN, Zygmunt, idem. 18
23
somente na situação de desacordo, quando diferentes pessoas se apegam em diferentes opiniões, e quando se torna o objeto da disputa de quem está certo e quem está errado e quando, por determinadas razões, é importante para alguns ou todos os adversários demonstrar ou insinuar que é o outro lado que está errado. Sempre que a veracidade de uma crença é asseverada é porque a aceitação dessa crença é contestada, ou se prevê que seja contestável. A disputa acerca da veracidade ou falsidades de determinadas crenças é sempre simultaneamente o debate acerca do direito de alguns falar com a autoridade que alguns outros deveriam obedecer, a disputa é acerca do estabelecimento ou reafirmação das relações de superioridade e inferioridade, de dominação e submissão, entre os detentores de crenças .20
Sendo a concepção da verdade dinamizada a partir de centros institucionalizados de poder como o estado, a igreja, a escola e a mídia, aqueles que contracenam com tal concepção não conseguem contrapor-se à altura, pois não dispõem das mesmas estruturas de transmissão de informações. A opinião contrária a uma crença institucionalmente legitimada torna-se inferior ou falsa à medida que não se afirma no contexto do jogo social. Pero Vaz de Caminha e sua Carta representam pólos irradiadores de poder, governo e linguagem respectivamente, e tentam impingir aos nativos uma autoridade e cultura superiores, impondo-se como agentes colonizadores e dominadores sobre um Outro que não se identifica nem endossa a verdade que trazem nos barcos. Em contraposição à simplicidade de uma carta manuscrita, a mídia atual dispõe de um conjunto diversificado de meios. Ela informa sobre os fatos que acontecem do outro lado do mundo ou da rua, apelando para os efeitos sensíveis da imagem, do som e do movimento. A noção do leitor de olhar é reduzida ao ver somente aquilo que é mostrado, excluindo outras possibilidades e quase anulando uma atitude crítica e controversa sobre a realidade. Na crítica lúcida de Marilena Chauí, não restam muitas opções para a manifestação do controverso: Testemunhas, participantes, protagonistas, entrevistados, ouvintes, espectadores, leitores, a nós restam apenas sentimentos e emoções, porque a opinião é emitida de um lugar outro, o lugar do saber como lugar do poder.21
A troca de atores no jogo de poder e a flexibilização dos valores comum à pósmodernidade fazem com que a função noticiosa do jornalismo fique subjugada pelas instâncias que controlam o lugar das falas sociais, tornando o próprio jornalismo um centro de
20 21
Ibidem, p. 143 CHAUÍ, Marilena. Simulacro e poder: uma análise da mídia, p.11
24
poder camuflado pelos direitos de liberdade de expressão e de interesse público. Segundo Chauí, O resultado dessa situação foi duplo: de um lado, a notícia é apresentada de forma mínima, rápida e, freqüentemente, inexata e, de outro, deu-se a passagem gradual do jornal como órgão de notícias a órgão de opinião, ou seja, os jornalistas comentam e interpretam as notícias, opinando sobre elas. Gradualmente desaparece uma figura essencial do jornalismo: o jornalismo investigativo, que cede lugar ao jornalismo assertivo ou opinativo. Os jornalistas passam, assim, a ocupar o lugar que, tradicionalmente, cabia a grupos e classes sociais e a partidos políticos.22
O jornalismo pós-moderno não tem dado voz à pluralidade de verdades, um espaço para o contraditório. A grande mídia irradia sempre informações vindas de um mesmo centro de poder (a maioria das notícias são oriundas de fontes oficiais) que está afinado com os interesses de mercado e as ambições políticas de elites dominantes (tal aspecto terá uma abordagem particular no quinto capítulo deste trabalho). Apesar de existirem inúmeros títulos de diários e periódicos, não há entre eles uma diferença capital. Para limitar-se ao meio impresso, segundo a Associação Nacional de Jornais (ANJ) em 2006 o Brasil tinha 3.076 títulos de jornais de diversas periodicidades. Quanto às revistas, a Associação Nacional dos Editores de Revistas (Aner) registra quase quatro mil (3.833) em 2007, entre edições regulares e especiais.23 Generalizar seria ação irresponsável, mas a grande parte dos títulos segue o fluxo contínuo ditado pela concorrência e pelo fetiche da velocidade . O lado das outras vozes pode ser percebido, e ainda assim sem muita ressonância, em mídias alternativas que figuram em jornais de bairros, televisão/rádios comunitárias, sites, blogues e publicações de pequena tiragem. Uma parte da realidade é revelada nesses meios, mas isso parece não preocupar a grande imprensa: pelo contrário, a idéia da existência de um contraponto passa a reafirmar a ideologia democrática pregada nos balcões das empresas jornalísticas. Bauman assinala, A pluralidade das verdades deixou de ser considerada um irritante temporário, logo destinado a ser deixado para trás, e porque a possibilidade das verdades de que diferentes opiniões podem ser não apenas simultaneamente julgadas verdadeiras, mas ser de fato simultaneamente verdadeiras.24
22
Ibidem, p. 12-13 Para jornais, ver <http://www.anj.org.br>, e para revistas <http://www.aner.org.br> 24 BAUMAN, Zygmunt, op. cit., p. 147-148 23
25
A noção de que as verdades são múltiplas de fato não incomoda mais, visto que, conforme Chauí,
A vitória do pilar da regulação (Estado e mercado) opera no sentido de esmagar o pilar da emancipação e para isso destrói a autonomia racional do pensamento, das artes, da ética e do direito.25
A pós-modernidade liquidificou princípios e relativizou a importância de grandes debates. A magia da imagem da televisão, os cadernos floridos dos jornais, os sites pipocando de cores e efeitos e os recortes fantasmagóricos das revistas são as novas gaivotas voando sobre o mar. O texto raso em folhas secas indica, ao contrário de outrora, que a terra firme ainda está longe. E pior, nem se tem o objetivo de chegar lá. O caráter do jornalismo contemporâneo, que mistura elementos da ficção com elementos da realidade, tem a televisão à frente desse processo. Sua imagem e a linguagem supostamente atestam a credibilidade do jornal. No enredo televisivo, os fatos são reinventados e ganham carga de sensacionalismo, de dramaticidade, de legitimidade e de singularidade a ponto dessa realidade recontada e ficcionada tornar-se mais real do que é de fato e de verdade. Passa-se a acreditar mais no que se vê na janela da mídia do que na janela de nossas casas. De modo geral, as notícias são apresentadas com seus referentes básicos de difícil localização e apreensão, como a idéia de onde, como e por que ocorreu certo fato. Essa falta de contextualização, ou sua melhor evidência, ocorre pela ausência da referência espacial e temporal nos relatos jornalísticos, sobretudo os televisivos. É a noção de atopia (espaço) e acronia (tempo) a que se refere Chauí:
Pela atopia das imagens, desconhecemos as determinações econômicas e, pela acronia das imagens, ignoramos os antecedentes temporais e as conseqüências dos fatos noticiados, não podemos conhecer seu verdadeiro significado. (...) O paradoxo está em que há uma verdadeira saturação de informação, mas, ao fim e ao cabo, nada sabemos, depois de termos tido a ilusão de que fomos informados sobre tudo. (...) É este o significado profundo e preciso da atopia e da acronia: ausência de referenciais concretos de lugar e tempo ou seja, das condições materiais, econômicas, sociais, políticas, históricas dos acontecimentos. Em outras palavras, essa ausência não é uma falha ou um defeito dos noticiários e sim um procedimento deliberado de controle social, político e cultural.26
25 26
CHAUÍ, Marilena, op. cit., p. 23 Ibidem, p. 50
26
O atopismo e o acronismo na comunicação têm a publicidade como ferramenta e a indústria cultural como suporte. A propaganda mostra-se como informação e, dispensando slogans, apóia-se em fatos para obter aceitação e credibilidade. Ela assume do jornalismo a credibilidade pertinente a esse, mas não a responsabilidade em mediar entre as categorias da verdade e da falsidade. Como diz Chauí: Para que algo seja aceito como real, basta que apareça [função publicitária] como crível ou plausível .27 Na produção cultural isso ganha concretude, sobretudo pela indústria do audiovisual representada em filmes, novelas, séries, documentários, programas de entretenimento e jornalísticos em geral. Para os padrões de imprensa da atualidade, o relato do escrivão comissionado pelo rei português é mais um expediente publicitário do que informativo. Pode relacionar-se aos anúncios oficiais do governo brasileiro, que supervalorizam sempre a natureza exuberante do país e a alegria cativante de seu povo. Caminha teria a investidura de um trabalho protojornalístico, mas sua pena de papagaio borrou aquilo que poderia ser um desenho mais fiel e preciso do que via. Apesar de oficialesco, o escriba não deixa de ser crível: tem a confiança do rei e a competência para o serviço designado. Apenas não transparece sua responsabilidade com as verdades, mentiras ou contradições emergentes ao seu relato, que se afirma num procedimento de querer impressionar. A informação mesclada com o entretenimento, na formação do chamado infotenimento, também resguarda o jornalismo de certo compromisso com sua responsabilidade social. Ele dedica-se meramente numa preocupação com a diversão, o lazer, o lúdico e o passatempo do público, produzindo alienação quanto a uma atitude política de intervenção no real, o distanciamento em relação às problemáticas sociais e o pessimismo quanto a instituições, conceitos, ideologias e propostas decisivas ao desenvolvimento da democracia. À falta de discernimento dos conflitos da realidade, sublimase a hipersensibilidade à ficção, à fantasia e ao real construído pela imagem da TV, dos jornais ou do cinema. Para Chauí, perdemos a autonomia e nos acostumamos a perceber a realidade de longe, tal qual o rei D. Manuel lendo em Portugal a carta de um Caminha, já morto, sobre um mundo distante: Vivemos sob o signo da telepresença e da teleobservação, que impossibilitam diferenciar entre a aparência e o sentido, o virtual e o real, pois tudo nos é imediatamente dado sob a forma da transparência temporal e espacial das aparências, apresentadas como evidências. (...) Volátil e efêmera, hoje nossa experiência desconhece qualquer sentido
27
Ibidem, p. 8
27
de continuidade e se esgota em um presente sentido como instante fugaz.28
Falta-nos o tipo de autonomia em pensar/conhecer/fazer que Paulo Freire sugere em Pedagogia da autonomia,29 num movimento idealizador à ação prática e política em favor de um projeto social. Isso contracena diretamente com o elogio ao individualismo na pósmodernidade, que reduz a ação do indivíduo em satisfazer desejos pessoais e em aderir à catequese da mídia e ao discurso consumista. Os valores condensados como referência pela modernidade dão lugar, na pós-modernidade, ao estado líquido das preferências individuais. A busca pela verdade
imperativo do jornalismo
dá lugar ao atendimento ao cliente
outrora o cidadão da pólis, outrora o agente transformador freiriano. Nesse processo, no entender de Chauí, configura-se o estímulo ao narcisismo e a infantilização da mente dos sujeitos. Um retrato próximo da mudança de estados pode ser observado numa rápida passagem aos slogans adotados pelo jornal A Notícia nas duas últimas décadas pelo menos. No início dos anos 90 se mantinha o Compromisso com a verdade , numa alusão direta à responsabilidade com um dos principais estatutos do jornalismo. Ao fim da década, o mote mudou para Catarinense de verdade . Esse podia ser lido de dois modos: um jornal que arroga o domínio da verdade referente
atributo que, ao menos no slogan, permanecera ainda como
e celebra sua afirmação na cobertura jornalística estadual. O outro sentido é de
uma provocação irônica ao concorrente gaúcho RBS, não era, pois
o jornal Diário Catarinense
que, por ser do grupo
catarinense de verdade . Confirmando uma tendência ao
monopólio regional, em 24 de agosto de 2006, o grupo RBS comprou o jornal joinvilense. De imediato o slogan deixou para trás seu tom déjà vu e passou a traduzir com mais nitidez o espírito no novo século: Traduz o seu mundo era a frase fashion que acompanhava então o título do jornal. A verdade não era mais nem uma metáfora na publicidade do diário. Foi substituída pela responsabilidade de traduzir para o leitor o próprio mundo desse. Não interessava mais o mundo exterior e suas complexidades, mas somente o mundo pessoal do sujeito, como se esse, feito criança, fosse incapaz de ler, conhecer e traduzir a si mesmo e seu mundo. O sujeito-leitor é o rei. Portanto, a César o que é de César e a D. Manuel o que é de D. Manuel. No começo de 2008 a idéia de tradução deu lugar a de evolução , quando A Notícia mudou seu tradicional formato standard para tablóide. A mudança foi justificada pelo grito de guerra Porque seu mundo evolui . Não há certeza sobre se o mundo do público 28
Ibidem, p. 33 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessário à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. 29
28
realmente evoluiu, mas o fato é que o tamanho do jornal diminuiu. Se o mundo do leitor era tipificado pela figura do jornal, então é lógico afirmar que o mundo do leitor também diminuiu, embora a noção de evolução esteja ligada a um ideal de crescimento, desenvolvimento e melhoria. A lógica aristotélica, porém, não resiste ao ambiente pósmoderno, onde a única certeza parecer ser a certeza da mudança. Hoje, nem a memória do slogan permanece. Ela não dura além da próxima campanha publicitária do jornal. De Catarinense de verdade a Porque seu mundo evolui há o abandono de um referencial e a adesão a um compromisso com o leitor, em atender seus desejos como consumidor, através de uma relação que simula cumplicidade e proximidade. Isso não é privilégio de A Notícia, mas reflete transformações exponenciais em todo conjunto da mídia. Há uma convergência para o mundo do leitor, relevando seu eu , sua individualidade e intimidade, seu desejo narcisista de ver-se e reconhecer-se pelo jornal, na imagem midiática. É uma comunicação à la Caminha que, mais preocupada em impressionar seu leitor, encurta, diminui e limita o registro sobre o mundo que mostra-se à frente. No caso de Caminha, de fato um Novo Mundo à sua frente, mas descrito sob o apelo da autoridade real. Na atualidade, é o jornalismo sob o apelo comercial, na construção ou na tradução de um mundo de amenidades ao leitor. A pena de papagaio de Pero Vaz de Caminha escreve um relato paradigmático à realidade contemporânea, conforme um perfil comentado por Bauman: É o homem moderno que pensa ser possível excluir determinadas realidades e construir um mundo segundo as próprias preferências, à semelhança de uma determinada idéia preconcebida .30 Se o escrivão quinhentista se identifica com o homem moderno , por outro lado não se comunica com o sujeito de Freire que, perseguindo o ideal heideggeriano da verdade, busca saber
Como desocultar verdades escondidas, como desmistificar a farsa ideológica, espécie de arapuca atraente em que facilmente caímos. Como enfrentar o extraordinário poder da mídia, da linguagem da televisão, de sua sintaxe que reduz a um mesmo plano o passado e o presente e sugere que o que ainda não há já está feito. Mais ainda, que diversifica temáticas no noticiário sem que haja tempo para reflexão sobre os variados assuntos.31
A tipificação de Freire é de um sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como
30 31
ORTEGA y GASSET, José apud BAUMAN, Zygmunt, op. cit., p. 153 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia, p. 156-157
29
inconclusão em permanente movimento na História .32 Na plataforma da pós-modernidade, a grande mídia como poder dominante, e o jornalismo como sua instância particular, não pode completar tal relação e fazê-la prosperar se obrigar seu leitor a um constante estado de vigilância e desconfiança sobre o conteúdo produzido, de condicionar a mente a funcionar epistemologicamente todo o tempo , conforme diz Freire. Veremos adiante que há a necessidade de um rompimento nesta condição, visto que a mídia, a comunicação e o jornalismo não são figurantes, mas protagonistas de qualquer diálogo onde se pretenda colocar em perspectiva a soma de diferentes atores, mundos e realidades participantes da construção social. Penas de papagaios não servem à escrita. Nem de araras, periquitos, jandaias ou afins. A que mais comumente servia ao ofício de escribas e copistas era a de ganso. Havia a de cisne mas, por ser muito cara, só era usada em ocasiões especiais. Dizem que a de peru era a melhor, do ponto de vista técnico. Na falta de gansos ou perus, podiam-se usar ainda as penas de corvo, águia, coruja ou falcão. Algum ganso da cidade do Porto muito provavelmente foi sacrificado para servir ao mister de Caminha e de outros escrevinhadores. O suporte da escrita, entretanto, não é a central preocupação. Seja tinta no papel ou pixels no monitor, é o texto (no sentido mais amplo do termo) que nos chama à interpretação. E seus subtextos, intertextos e contextos incitam à análise. É no espaço em branco entre uma linha e outra que respira toda potência de desvelamento de múltiplas verdades e realidades. Nenhuma pretensa clareza deve ficar imune à dúvida.
32
Ibidem, p. 154
30
2. TUPI OR NOT TUPI O jornalismo líquido-moderno promete um diálogo impossível
Sempre riu daqueles que falavam com plantas, até a conversa que alguns humanos mantêm com animais lhe parecia estranha e acima de tudo cômica, não há possibilidade disso ser concreto, isso é monólogo de gente vazia . RUBENS DA CUNHA (In: Enxergar o que não existe)
Sabemos: Caminha escreve para o rei. E o jornalismo? Para quem o jornalismo fala? Para quem escreve, reporta ou jornaliza? Televisão, rádio, jornal, revista e internet bombardeiam incessantemente seus respectivos públicos com toda sorte de informações, num circuito frenético de produção bastante descompassado com o tempo de percepção e de leitura.
A variedade de meios, a segmentação cada vez mais refinada de público e a
diversidade de abordagem de inúmeros temas podem sugerir a quantidade de informação que uma pessoa recebe diariamente. No mesmo instante, também dão a impressão de que os emissores das mensagens estão falando sozinhos. O tempo de resposta é incompatível com o tempo de produção. Absorver as informações, processá-las e tomar uma posição crítica diante delas tornou-se tarefa árdua, não só pela perda de credibilidade das fontes, mas também pela superficialidade dos conteúdos. Pesquisa feita neste ano pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) estabelece o ranking das instituições mais confiáveis. A imprensa aparece na quinta colocação. Forçadas Armadas, Igreja Católica, Polícia Federal e Ministério Público, nessa ordem, estão à frente. Políticos e partidos seguram a lanterna da desconfiança. Na mesma pesquisa, quando se pergunta sobre os meios mais importantes para se informar, a tríade clássica televisão-rádio-jornal, nessa seqüência, aparece na ponta. A tríade seguinte, nada clássica, é, antes, inusitada: internet na quarta posição, reunião de igreja na quinta e revistas na sexta. Em outro estudo de nível mundial, capitaneado pela rede BBC e pela agência Reuters, já dava conta em 2006 do descrédito sofrido pela imprensa como fonte de informação: 55% dos entrevistados não confiam nas informações obtidas através da mídia; 80% disseram que a mídia exagera na cobertura de notícias ruins; 64% raramente encontram na grande mídia as informações que gostariam de obter;
45% não acham que a cobertura da mídia seja acurada; 44% disseram ter trocado de fonte de informação no último ano por haver perdido a confiança nos veículos.1 Os números revelam que os brasileiros estão descontentes com a grande mídia nacional e reiteram a necessidade de uma mudança em prol do direito à informação de qualidade. Eles dão relevo à tendência da mídia em estabelecer uma comunicação impositiva, verticalizante, que não dialoga com as reais demandas do público. Se as pessoas não reificam mais a figura da mídia como ideal de confiança e informação, o jornalismo
Homer
Simpson , conforme denuncia Moretzsohn,2 continua a protagonizar um diálogo de cartilha com o público, reafirmando o compromisso de dar o que as audiências pedem através da reificação do clichê e do cotidiano, sob a égide da simplificação. Ao considerar o público como bobo da corte, a mídia ou o jornalismo reifica a si mesmo e escamoteia a reverência devida a uma corte superior
a do mercado. Comenta Moretzsohn:
Esse tipo ideal do espectador médio assiste aos singelos conselhos que pontilham as bem-intencionadas reportagens sobre os cuidados cotidianos para uma vida saudável: para controlar o colesterol, prevenir a hipertensão, combater o stress, bastaria cortar o cigarro e o álcool, combater o sedentarismo, alterar os hábitos alimentares numa palavra, mudar o estilo de vida. É tudo tão simples, dependente de uma escolha autônoma e individual pois afinal a sociedade não é mais que a soma de indivíduos , que só resta a Homer consolar-se com pizza, hambúrguer, batatas fritas e cerveja, olhar desolado a barriga balofa derramada sobre o cós das calças e mergulhar em um profundo sentimento de culpa até desabar no sono, roncando esparramado no sofá, latas de cerveja amassadas e restos de embalagens de comida espalhadas pelo tapete.3
O clássico modelo de comunicação de Shannon e Weaver,4 embora eficiente para explicar o processo comunicacional, não consegue dar conta da dinâmica da informação atualmente. Sobretudo com o advento da internet, os conceitos de emissor e receptor ficaram cada vez mais fluídos e menos identificáveis, como são próprios da natureza líquida e 1
A pesquisa da AMB refere-se ao Barômetro de Confiança nas Instituições Brasileiras, disponível em <http://www.amb.com.br/portal/docs/pesquisa/barometro.pdf>. A pesquisa da BBC, realizada pela GlobeScan, está reportada em <http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=380IMQ002>, em artigo de Venício Lima para o Observatório da Imprensa. 2 A designação refere-se a uma fala de William Bonner para tipificar o público médio do Jornal Nacional. Aqui Moretzsohn faz um revide a essa comparação. 3 MORETZSOHN, Sylvia. Pensando contra os fatos, p. 245. 4 Os matemáticos norte-americanos Claude Shannon e Warren Weaver publicaram em 1949 a Teoria Matemática da Comunicação, através da qual estabeleceram um modelo linear de comunicação. Tecnicamente simples, o modelo considera o esquema Fonte Transmissor Ruído Canal Receptor, por onde transita a mensagem. Apesar de proveniente do campo estrito da matemática, o formato pode ser entendido como referência em qualquer campo onde operam fluxos informativos.
32
inconstante da vida na pós-modernidade. As mensagens, se outrora foram claras e minimizadas de ruídos, ou seja, de linguagem mais formal, objetiva e técnica, sem o acervo de alegorias textuais e audiovisuais e sem a interferência de assessores, agências, colunistas e reprodutores da informação, hoje mostram-se criptografadas por uma linguagem mais elaborada, mais estetizada e metafórica. Do estado bruto à versão final, as notícias passam por inúmeros modos de edição. Tal manuseio revela ou esconde as ideologias e as intenções de seus produtores. Nas entrelinhas, nos subtextos e nas variações de abordagens jornalísticas também existem mensagens compondo ali outros sentidos e significados. O receptor, se antes apenas absorvia a informação, hoje a reconfigura e a redistribui, se estabelecendo também como fonte e emissor de mensagens. No contexto atual da comunicação, mais difusa e rizomática, a mídia em geral e o jornalismo em particular poderiam rever suas funções e retomar a confiança e a credibilidade por ora perdidas ou não mais reconhecidas. O jornalismo, como instituição, tem uma herança histórica que lhe é favorável e lhe dá crédito, porém, essa parece não ser mais alimentada e reproduzida na contemporaneidade. Tornou-se comum ver, no âmbito na mídia ou a ele referente, textos jornalísticos que, à revelia do interesse público, ignoram seu compromisso social. Em veículos de comunicação, espaços editoriais são utilizados para derrubar governos, achincalhar instituições, condenar pessoas e forçar a relevância de fatos e debates insignificantes. A própria pesquisa da BBC referida anteriormente, por exemplo, foi citada em matéria da TV Globo através do Jornal Nacional mais como auto-elogio. A emissora destacou o fato de ela mesma obter a liderança na pesquisa em termos de confiança das empresas de comunicação e também a relevância de a imprensa ter recebido maior credibilidade do que o governo. Só não divulgou os outros números da pesquisa e nem considerou que o governo recém saíra do
escândalo do
mensalão que a mídia mesmo ajudara a construir.5 Perdeu-se o horizonte ético mas, antes disso, perdeu-se a capacidade de dialogar sobre essa perda, sobre possíveis ganhos ou sobre avanços necessários. O jornalismo tenta dialogar com seus agentes, com seu público, mas não consegue. Há um mar de incompreensão, descontentamento e desconfiança quebrando atrás de si e impedindo qualquer conversa. O mesmo aconteceu quando dos primeiros contatos dos índios com a comissão portuguesa. Anota Pero Vaz de Caminha, com sua pena de ganso (agora podemos supor com mais assertividade):
5
Conforme artigo de Venício Lima no Observatório da Imprensa em nota já referida anteriormente.
33
Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel [bateira]. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles o depuseram. Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa.6
Tal qual Cabral e sua comitiva frente a um mundo novo, jornalismo e realidade parecem não falar a mesma língua. Deslocado de sua terra natal, a um mar de distância dos nobres valores palacianos que definem o trabalho noticioso com transparência, credibilidade e responsabilidade, o jornalismo discursa como se não estivesse inserido no mundo, com se fosse um elemento exterior à realidade, um escrivão português em terras brasileiras, desconectado de suas referências. Neutralizada a fala, a convivência, o entendimento e o contato são viabilizados através de simulacros baseados em trocas simbólicas e concretas. O diálogo como ação comunicativa torna-se impossível. A comunicação dá lugar à troca de mercadorias, produtos e presentes:
Somente arremessou-lhe um barrete [gorro típico dos marujos] vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer aljôfar [tipo de jóia], as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza. E com isto se volveu às naus por ser tarde e não pode haver deles mais fala, por causa do mar.7
Com as penas de papagaio recebidas de presente dos indígenas, o mistério da pena com que Caminha escreve volta à superfície, embora a inclinação seja fazer justiça ao ganso português. Mas às aves, as penas, e ao jornalismo, as responsabilidades. Cabe entendermos como a falta de diálogo de outrora ainda traduz hoje uma comunicação desqualificada. Ao invés de comunicação, temos comunicados . Mensagens oficiais chegam cruas ao público, sem vida e sem sentimento. Sempre as mesmas fontes, as falas previsíveis, as velhas notícias todos os dias. Nos jornais impressos, não é difícil encontrar matérias transcritas diretamente de releases enviados por assessorias. Na televisão, acha-se especialista para opinar e dar dicas sobre tudo, enquanto faltam analistas que atuem verdadeiramente como mediadores da informação. O sentimento do público é costumeiramente ativado quando vê-se humor na ridicularização de outras pessoas e nas competições televisivas em programas de auditório, ou nos dramas individuais exaltados em produções jornalísticas, esportivas e de entretenimento, 6 7
CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a el rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil, p. 2 Idem
34
os quais, espetacularizando o choro e o sofrimento alheio, transformam a emoção num expediente circense. Como a comunicação da grande mídia é irradiada a partir de um centropalco, operada quase unilateralmente por elites dominantes, não pode haver diálogo. O silêncio do interlocutor, mais uma condição do que uma ação, ou sua indiferença ao comunicado aparece como postura crítica imediatamente possível mas, a longo prazo, infrutífera. A resposta social a este antidiálogo é a descrença da mídia e do jornalismo como entidade democrática e a indiferença diante dos debates públicos e políticos. O extremo imediato a tal resposta poderia ser a domesticação do pensamento pela crença irrestrita na mídia. Nos dois casos, um mesmo fim: a despolitização ou a infantilização social. Os produtos ofertados pela mídia e particularmente pelo jornalismo contemporâneo dão o tom em cores e formatos diversos à natureza do fútil, do superficial e do descartável comuns à era pós-moderna. No quebrar das ondas, eles fazem o barulho que abafa um possível diálogo democrático e libertador entre os entes da comunicação: público, organização jornalística, jornalistas, governo, instituições, patrocinadores e fontes. Por outro lado, morre na praia a busca por direitos básicos, inclusive o direito à informação de qualidade. Numa perspectiva que beira o fatalismo, Bauman explica,
É por essa razão que o advento da sociedade líquido-moderna significou a morte das principais utopias da sociedade e, de modo mais geral, da idéia de boa sociedade . Se a vida líquida estimula algum interesse pela transformação social, a reforma postulada tem como principal objetivo empurrar a sociedade ainda mais em direção à rendição, uma a uma, de todas as suas pretensões de um valor próprio.8
Da esperança de uma fala crítica da comunidade, temos uma resposta cínica, que denuncia o descrédito de seus interlocutores. De acordo com José Marques de Melo, é preciso aprender a pedagogia da comunicação presente na pedagogia de Paulo Freire, a fim de que o homem exerça o papel de sujeito da comunicação e não puramente o de objeto, o de um mero receptor de mensagens. A leitura de Melo em 1981 sobre o trabalho de Freire é absurdamente atual. O ideal democrático e a educação emancipadora de Paulo Freire ainda hoje, passados quarenta anos da publicação de Pedagogia do oprimido, caminha mais no campo do idealismo do que da prática. Embora a alfabetização básica seja ampla,9 o analfabetismo funcional e o analfabetismo digital, entre outras deficiências sociais, impedem 8 9
BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida, p. 19-20 Conforme as estatísticas do Censo 2000, realizado pelo IBGE, a taxa de analfabetismo no país é de
13,63%.
35
avanços na recente democracia brasileira.10 Não obstante, assim como entre portugueses e índios, ainda uma elite dominante, capitaneada por grandes empresas e pelo governo, fala uma linguagem diferente da compreendida pela maioria da população e não dialoga com suas reais carências. Para completar, a mídia, que deveria esclarecer sobre a realidade, acaba apenas fazendo barulho no apego a fenômenos e fatos circunstanciais quando deveria dar conta de processos e contextos. Assim, incentiva o desentendimento e prejudica o diálogo possível entre setores conflitantes da sociedade. Uma rápida ilustração desse cenário é o período das eleições municipais em 2008: democracia e cidadania são termos que se relevam não só nas campanhas, mas também nos noticiários. A festa da democracia só existe durante o pleito e depois some das pautas, com se o voto fosse o único expediente representativo de uma sociedade democrática. Após dois anos no limbo, o discurso retorna à mídia, na forma do patriotismo emergente às eleições majoritárias que soma-se ao ufanismo verde-amarelo da Copa do Mundo de futebol. A frágil democracia brasileira parece ter uma razão de ser. Desde o início do descobrimento , o embrião democrático nascia com uma forte relação de paternalismo, que persiste até hoje, embora já seja a democracia uma garotinha desajustada mas, em todo caso, presente. Considerando os cânones históricos oficiais, seu espírito nasceu em alguma praia de Porto Seguro, na Bahia, ou talvez mais ao norte, no litoral pernambucano. O certo é que, mesmo imatura, ainda nem chegou a determinados recônditos do país, nem grande nem pequena, nem plena nem parcialmente, assim como a energia elétrica, a alfabetização e a medicina convencional. Em seus comentários sobre Freire, Melo afirma: A inexperiência democrática funda-se, entre outros fatores, na inexperiência da comunicação .11 Ele ainda relembra a crítica de Freire em Educação como prática da liberdade,12 O Brasil nasceu e cresceu sem experiência de diálogo. De cabeça baixa, com receio da Coroa. Sem imprensa. Sem relações. Sem escolas. Doente. Sem fala autêntica .13 Se for levado em conta o que os livros didáticos de história dizem acerca do nascimento do Brasil quando à época de seu descobrimento pelos portugueses, então o país nasceu literalmente com problemas de diálogo, conforme nos indicam as anotações de 10
O analfabeto funcional refere-se ao indivíduo que, embora saiba ler e escrever sentenças simples, não tem a habilidade de leitura, escrita, cálculo e interpretação necessárias à participação social e ao seu desenvolvimento nos diversos campos do conhecimento e da vida em comunidade. O analfabetismo digital é um conceito novo, mas podemos entender como a incapacidade ou a dificuldade do sujeito de obter informações através de sistemas como a Internet, de lidar com meios digitais, novas tecnologias e novas linguagens baseadas em uso de computadores. 11 MELO, José Marques de. Comunicação e libertação, p. 29 12 Ver em FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. 13 FREIRE, Paulo apud MELO, José Marques de, op. cit., p. 29
36
Caminha. A conversa comprometida pela linguagem incompatível e pelo som demasiado do quebrar das ondas força um contato estabelecido por sinais, numa espécie de cerimônia mímica:
Somente arremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que [Nicolau Coelho] levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas que querem parecer de aljôfar, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza. E com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar.14
O Brasil funda-se sob a marca de uma relação de domínio exercida pelos portugueses, por serem os nativos gente apaziguada e de grande inocência . Tal domínio reflete a autoridade e a força da Coroa Portuguesa que, ao longo do período colonial, afirma a condição paternalista através de mecanismos de obediência, controle, punição e dependência, onde a religião, as armas e o poder econômico são seus maiores representantes. O exercício de uma pedagogia do medo , da opressão e da repressão ao diálogo talvez nem fosse necessário contra um povo que se via amedrontado até com a presença de galinhas. A pena de Caminha, em tom anedótico, registra: Mostraram-lhes [aos índios] uma galinha; quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a mão. Depois lhe pegaram, mas como espantados .15 No contexto em que todo domínio tende a criar uma condição de subordinação, a própria estrutura sócio-econômico-cultural é determinante para estabelecer as relações comunicativas. Comenta Paulo Freire,
Assim vivemos todo o nosso período de vida colonial. Pressionados sempre. Quase sempre proibidos de falar. A única voz, no silêncio a que éramos submetidos, que se poderia ouvir, era a do púlpito. As restrições às nossas relações, até as internas, eram as mais drásticas. Relações que, não há dúvida, nos teriam aberto possibilidades outras no sentido de indispensáveis trocas de experiências com que os grupos humanos se aperfeiçoam e crescem. Relações que vão levando os grupos humanos, pelas observações mútuas, a retificação e o seguimento de exemplos. Somente o isolamento imposto à Colônia, fechada nela mesma, e tendo por tarefa bastar as exigências e os interesses, cada vez mais gulosas da Metrópole, revelava claramente a verticalidade e a impermeabilidade antidemocrática da Corte.16
14
CAMINHA, Pero Vaz de, op. cit., p. 2 Ibidem, p. 3 16 FREIRE, Paulo apud MELO, José Marques de, op. cit., p. 30 15
37
O diálogo não se desenvolve em um ambiente de repressão, mas também não floresce num terreno onde as relações humanas, sob certos aspectos, se firmam por uma condição de comodidade e conforto. Se há uma relação de subordinação entre senhor e escravo, soberano e súdito, nobre e plebeu, dominador e dominado, há nessa esteira paternalista um relacionamento que não tem no diálogo ou na comunicação recíproca sua diretriz de desenvolvimento. Se o jornalismo pós-moderno é omisso na função de colocar em seu campo de mediação os setores de interesses divergentes da sociedade e confrontá-los com responsabilidade, por outro lado patrocina, direta ou indiretamente, um comodismo que pode ser entendido como indiferença ou aceitação do status quo, capaz de tornar incipiente qualquer diálogo em favor do avanço da democracia e da cidadania. Isso ocorre na medida em que o noticiário dá espaço a pavonices midiáticas do mundo da moda ou do entretenimento, por exemplo, em descompasso com o destaque dado a assuntos de notável interesse social que, de quase invisíveis na grande imprensa, parecem ser de pouca relevância ou necessidade. Enquanto houver um desnível em relação ao lugar a partir do qual cada interlocutor aparece com sua fala, o germe da opressão ou, no mínimo, da imposição, se faz presente por parte daqueles que detêm as condições técnicas, tecnológicas, econômicas e políticas favoráveis a uma comunicação que se dá num palco privilegiado. No campo midiático, o desequilíbrio de condições opera a favor de um sistema de dominação cultural, coação de poder e, num ponto de vista mais drástico, da manipulação da informação e sua conseqüente influência na formação da opinião pública. Conforme Melo, a reprodução da opressão é característica comum a todos os povos que sofreram o processo de colonização e, dentre outras causas, tem suas origens relacionadas ao exercício contínuo da fala impositiva ou, como denomina, na prática da incomunicação . Em sua leitura de Freire, cita: A sociedade dependente é, por definição, uma sociedade silenciosa. Sua voz não é uma voz autêntica, mas um simples eco da voz da metrópole .17 Melo conclui com facilidade, O colonizado é um silencioso, é alguém que não tem voz própria, que fala pela fala do opressor .18 Que legitimação tem a mídia para atuar e falar em nome da sociedade, senão a resposta da própria sociedade em favor dessa legitimação? A fala de um povo subjugado só pode ser autenticada por seus indivíduos ou por representantes legítimos designados para tal. De certa forma o papel de imprensa exercido por Caminha poderia se encaixar nesta condição, não fosse o fato de ele representar os interesses da Coroa. Valendo-se dessa analogia, a medida com que a imprensa contemporânea representa o interesse da Coroa ou o 17 18
Ibidem, p. 31 MELO, José Marques de, op. cit., p. 31
38
interesse do povo mostra-se um questionamento pertinente. Se a fala social não encontra eco nos canais de comunicação, é suspeito a mídia outorgar para si o direito de falar em nome dos anseios do público, a despeito de possuir suposta credibilidade para tal ou de ter adquirido, através do tempo, uma auto-referência que lhe torne possível tal imposição. O professor Venício Lima, em seus estudos das relações de poder e mídia no Brasil, esclarece que a mídia vem arrastando para si a prática de funções que notadamente eram funções tradicionais dos partidos políticos. Segundo explica,
No Brasil, embora a crise dos partidos seja tema de controvérsias, existe razoável consenso sobre a histórica inexistência de uma tradição partidária consolidada. Torna-se, assim, mais fácil o exercício pela mídia de algumas das tradicionais funções dos partidos, como por exemplo: - construir a agenda pública; - gerar e transmitir informações políticas; - fiscalizar as ações de governo; - exercer a crítica das políticas públicas; - canalizar as demandas da população.19
Ora, o partido político é uma instituição legitimada pelos estatutos da democracia, que tem no voto o instrumento prático dos eleitores elegerem seus representantes. É evidente também que as condições pós-modernas estabeleceram a mídia como palco central das falas políticas que, tornando-se públicas, adquirem visibilidade e significado. Mas, de fato, ninguém elegeu a mídia para atuar como ator político. Ninguém votou em um jornal para este ser um representante político no parlamento. Se os índios ou mesmo a tripulação das naus tivessem elegido Caminha como escrivão do descobrimento , certamente o teor da Carta seria diferente, ou não haveria carta nenhuma já que, do ponto de vista do índio, não há descobrimento algum. No contexto atual, se a mídia é tida como instância política, necessariamente ela deveria passar pelo crivo de seus eleitores . Não é o que ocorre:
As empresas de mídia são hoje atores econômicos fundamentais como parte de grandes conglomerados empresariais articulados em nível global. Além disso, pelo poder que emana de sua capacidade única de produzir e distribuir capital simbólico e pela ação direta de seus concessionários e/ou proprietários, se transformaram também em atores com interferência direta no processo político.20
É o poder do capital que parece legitimar a posição privilegiada da mídia. De certa forma, é um novo tipo de colonização. Mantém-se instaurada certa elite dominante que, pelo 19 20
LIMA, Venício A. de. Mídia: crise política e poder no Brasil, p. 56. Ibidem, p. 59
39
pressuposto de estar em condição de dominar, progride no entrave ao estabelecimento da democracia plena e prolonga indefinidamente seu esforço de imposição sobre a maioria subordinada. Embora este seja um panorama mundial, Lima não deixa de observar que condições históricas específicas deixaram o país mais carente do benefício democrático à medida que mais dependente das organizações midiáticas para ser ouvido em seus direitos:
Consolidou-se, portanto, entre nós um sistema de mídia concentrado, liderado pela televisão e, em boa parte, controlados por grupos familiares vinculados às elites políticas regionais e locais. Essas características específicas é que fazem com que no Brasil o poder da mídia assuma, potencialmente, proporções ainda maiores do que em outros sistemas políticos.21
A busca por uma outra comunicação mostra-se necessária se a perpetuação do poder oligárquico não corresponde ao ideal de grande parte da sociedade. Melo observa na pedagogia de Freire a natureza de uma pedagogia da comunicação , capaz de servir de base para transformações sociais e libertar o homem da cultura do silêncio . Segundo comenta,
[A pedagogia de Freire] é também uma pedagogia libertadora. (...) Comunicação e liberdade são fenômenos coincidentes. Não dicotomizados. A comunicação só se faz autenticamente com liberdade. Por sua vez, a liberdade só se conquista pela comunicação.22
O medo da liberdade pode ser um obstáculo à comunicação efetiva, ao diálogo criador. Uma sociedade que não tem um referencial histórico de democracia e só conhece a opressão exercida pelas elites dominantes, cada qual em sua época, pode preferir a conveniência do silêncio e da aceitação da condição de oprimida. Mas este é, por conseqüência, um sentimento próprio de quem sempre esteve em situação de dependência. É uma espécie de síndrome de abstinência da dominação: o escravo que, sem intimidade com a liberdade, não sabe o que fazer quando se torna livre. Um retrato sinistro dos indivíduos numa sociedade pós-moderna é que, mesmo sendo escravizados, dominados e dependentes do mercado, da mídia ou do trabalho, não se reconhecem nessa condição, absorvidos pelos discursos de liberdade de expressão, independência financeira, autonomia de pensamento, livre acesso aos produtos culturais, entre outras promessas do neoliberalismo. Para Bauman, a liberdade no estágio pós-
21 22
Ibidem, p. 61 MELO, José Marques de, op. cit., p. 32
40
moderno significa uma antiliberdade que toma forma pela individualidade privatizada e despolitizada:
Nesse imaginário que virou realidade, o indivíduo é liberado; tornouse realmente livre, isto é, livre para usar a seu bel-prazer os recursos de que dispõe, não mais dependente de quaisquer recursos alheios. A promessa do Iluminismo de que não há nada que a espécie humana não possa conseguir com seus próprios recursos se tiver o tempo necessário para acumular conhecimento também foi privatizada, como tantas outras coisas. A liberdade humana traduziu-se em liberdade de cada um dos seus indivíduos.23
A essa liberdade individualizada, Bauman dá crédito ao ensaísta britânico Isaiah Berlin quando esse a batiza de liberdade negativa , no sentido de meramente expressar as possibilidades de escolha do indivíduo numa sociedade onde a regulação do estado é mínima e a mão invisível do mercado reina soberana, sob a prática laissez faire do neoliberalismo. À falta de um senhor para servir ou de um novo projeto político do estado para aderir, as pessoas tornaram-se escravas da própria liberdade e procuram dar, cada uma por si, sentido a sua condição. O dar sentido concretiza-se geralmente no ato de compra: a liberdade expressa exclusivamente pela liberdade de consumo. Esse aspecto da vida pós-moderna é oposto ao ideal moderno da liberdade do ser humano, baseado num projeto coletivo e que traduzia a
Liberdade que tinha como elemento primordial a capacidade de dar às coisas uma forma tal que os membros da espécie não fossem mais impedidos de agir de acordo com o mais humano de seus dons naturais: o poder de fazer juízos racionais e se portar segundo os preceitos da razão.24
O projeto da modernidade, no entanto, não se completou. Para Jean-François Lyotard, foi devido à falência do pensamento racionalista. Para Jürgen Habermas, por ser tal projeto, em si mesmo, inacabado e incompleto. Ou ainda, talvez pela ausência de alternativas à dualidade entre apocalípticos e integrados (ou entre utopia e realismo, teoria e prática, serenidade e alarmismo) estabelecida por Umberto Eco. Independentemente das razões, a liberdade do ser humano, substituída pela do indivíduo, transformou-se numa ilusão, numa inviabilidade no contexto da pós-modernidade. Ao menos enquanto a vida livre do laissez faire operar. Para Bauman, é preciso resgatar o discurso interrompido do bem comum capaz
23 24
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política, p. 74 Ibidem, p. 77
41
de repolitizar a liberdade individual em prol da instituição de uma sociedade livre e, por conseguinte, potencialmente democrática:
A sociedade não pode fazer felizes os seus indivíduos: todas as tentativas (ou promessas) históricas nesse sentido geraram mais miséria que felicidade. Mas a boa sociedade pode e deve tornar livres seus integrantes, não apenas livres de um ponto de vista negativo no sentido de não serem coagidos a fazer o que não fariam por espontânea vontade mas positivamente livres, isto é, no sentido de serem capazes de fazer algo da própria liberdade, de serem capazes de fazer coisas... E isso significa primordialmente poder influenciar as condições da própria existência, dar um significado para o bem comum e fazer as instituições sociais se adequarem a esse significado.25
A busca pela autonomia do indivíduo em Bauman, que sugere o arranjo de uma sociedade autônoma, converge à busca pela libertação do homem em Freire, que remete a resignificação do sujeito capaz de modificar seu ambiente social. Para Melo, esta é a primeira barreira a ultrapassar: o homem que descobre sua própria condição e, comunicando com outros e consigo mesmo, sente a necessidade e luta pela mudança. Para Freire, é nesse movimento que a práxis é exercida. Em sentido latente, práxis pode ser entendida como o processo através do qual conceitos e teorias se convertem em experiência prática ou se aplicam a uma realidade. No campo da sociologia, refere-se, sobretudo, à atividade intelectual exercida pelo homem capaz de interferir na realidade social, transformando-a. É essa acepção empregada por Freire quando diz: A práxis é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo .26 Melo avança mais neste conceito e acentua que,
Trata-se, portanto, de uma práxis comunicativa: agindo e pensando sobre o mundo, com os outros homens, é que se vislumbram caminhos para a sua transformação. (...) Isso corresponde a dizer que sua função precípua é a de romper e desmantelar a cultura do silêncio .27
A comunicação por ora operada pela mídia contemporânea busca pretensiosamente alinhar o pensamento do público aos ideais prometidos pelo capitalismo da vida líquidomoderna, onde tudo é possível e fácil de adquirir, desde que se tenha um mínimo de recurso para pagar e grande parcela de liberdade para abdicar. Publicidade, jornalismo, indústria cultural, moda, enfim, o conjunto de instâncias que define um sistema de dominação não age em seus diversos campos sociais e midiáticos para transformar a situação dos que são por ele 25
Ibidem, p. 112 FREIRE, Paulo apud MELO, José Marques de, op. cit., p. 33 27 MELO, José Marques de, op. cit., p. 33 26
42
coagidos, mas se esforça por manter o domínio e rechaçar qualquer tipo de desequilíbrio que lhe possa ser prejudicial. Um exemplo recente desse esforço de dominação foram as peripécias sobre a estréia da TV digital no país. Em 2005, o ministro das Comunicações Hélio Costa prometia aos paulistanos que eles poderiam assistir a Copa de 2006 já com a tecnologia da TV digital em seus televisores. Assistiram o vexame da seleção canarinho no bom e velho sistema analógico. O prometido sinal só veio em 2007, numa transmissão oficial e simbólica ocorrida em São Paulo para um público de duas mil pessoas, a grande parte políticos e empresários. Além disso, os famosos conversores ficaram numa faixa de preço bem acima do anunciado pelo ministro. E o pacote de vantagens trazido pela digitalização multiprogramação
interatividade, mobilidade,
não teve eco junto às emissoras e empresas de telecomunicações. Após a
incipiente transmissão, quase seis meses se arrastaram para o modelo digital dar um novo passo. Em abril de 2008, o sinal chegou a Belo Horizonte, inaugurado pela nanica RedeTV!. Só a partir de maio a cruzada pela implantação da TV digital ganhou impulso e alcançou outros grandes centros como Brasília e Rio de Janeiro através do canal de freqüência UHF. A expectativa é que até 2013 o sinal digital esteja presente em todo território nacional.28 Os grandes grupos de mídia são apontados por especialistas, estudiosos, acadêmicos e entidades representativas da sociedade civil organizada por retardarem o processo de transmissão da TV digital no país, por fazerem lobby junto ao governo e órgãos reguladores e por minimizarem seus benefícios à população. Além de governo e empresários estarem debatendo sobre o novo sistema à revelia do interesse público, privilegiando os interesses privados do setor de telecomunicações e radiodifusão, divulgam e destacam que o grande trunfo da digitalização é alta definição de imagem. É comum ver nos jornais o conceito de TV digital tido como sinônimo de TV de alta definição . Por trás do discurso que dá demasiada importância ao avanço tecnológico, esconde-se o temor de a sociedade ter a oportunidade histórica de acabar com a concentração dos meios de comunicação no Brasil e, no vácuo desse avanço, democratizar o acesso à informação, promover a inclusão digital e dinamizar a produção cultural. A convergência digital traz a possibilidade de agregar numa mesma infraestrutura as tecnologias da informação, que têm como suporte as redes de telecomunicações, de radiodifusão e de informática. Textos, vídeos, áudios, imagens e dados em geral podem circular pela via digital de maneira a definir uma nova acessibilidade aos serviços públicos e à produção independente e descentralizada de materiais, pois fogem à lógica convencional onde 28
Com informações retiradas em <http://tvdigitalnobrasil.wordpress.com/2007/12/09>, <http://pt.wikipedia.org/wiki/Televis%C3%A3o_digital_no_Brasil> e <http://www.fenaj.org.br/>
43
indústrias e governos controlam o acesso, a produção e a recepção dos conteúdos. Qualquer pessoa pode ser um produtor de cultura e, para divulgá-la, não precisará da benevolência de grandes grupos de mídia, pois a internet se afirma cada vez mais como um imprescindível canal difusor. Na televisão aberta, maior veículo de comunicação de massa do país,
Um exemplo de oportunidade em novos modelos de negócios é através da interatividade, possível com a digitalização. Durante a exibição dos programas, produtos e serviços podem ser comercializados aos telespectadores em tempo real. As novas tecnologias possibilitam ainda a programação simultânea de conteúdos e a portabilidade.29
Entretanto, grupos tradicionais de mídia são resistentes em abandonar o modelo empresarial que adotaram, sustentado em grande parte pela publicidade, prevendo perdas econômicas. Daí a importância de o governo, a despeito de qualquer interesse setorial, definir marcos regulatórios transparentes sobre as condições de atuação da TV digital no Brasil. A universalização dos recursos de comunicação, de acesso pleno, de qualidade e gratuito, deve nortear as políticas públicas do setor, sob o risco do sonho da autonomia social pela convergência se arrastar ainda por muitos anos devido a privilégios concedidos a grupos privados. Se alheio ao debate político e econômico a respeito da convergência, o cidadão comum fica restrito à possibilidade de assistir a novela ou a partida de futebol com uma melhor imagem. Numa sociedade onde a mídia ocupa papel central, é imprescindível ao desenvolvimento democrático que os meios de comunicação também sejam democratizados, a fim de que o direito à informação de qualidade seja garantido tanto quanto o direito à educação ou ao trabalho. Melo informa que,
Ao analisar o processo de desenvolvimento da sociedade brasileira, Paulo Freire considerou especificamente o papel dos meios de comunicação de massa na passagem da sociedade fechada para a sociedade aberta . Por um lado, ele chama a atenção para a função massificante desses veículos, contribuindo para alienar o cidadão, e estimulando-o para a adoção de postura acrítica diante da vida. 30
Diz Freire: Excluído da órbita das decisões, cada vez mais adstritas a pequenas minorias, [o cidadão] é comandado pelos meios de publicidade, a tal ponto que em nada
29
MARINI, Ana Rita. O caminho da autonomia passa pela convergência. MídiaComDemocracia Revista do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, nº 2, p. 4-9, junho de 2006 30 MELO, José Marques de, op. cit., p. 40-41
44
confia ou acredita, se não ouviu no rádio, na televisão ou se não leu nos jornais .31 Mas ele mesmo reconhece e relativiza esse viés determinante da mídia, considerando que o mass media também foi importante para a educação e para a transição democrática na sociedade aberta pós-ditadura. Por outro lado, continua a apelar para a criticidade do leitor frente aos noticiários:
Parece-nos indispensável a análise do conteúdo dos editoriais, a propósito de um mesmo acontecimento. Por que razão os jornais se manifestam de forma diferente sobre um mesmo fato? Que o povo então desenvolva o seu espírito crítico para que, ao ler jornais e ao ouvir o noticiário das emissoras de rádio, o faça não como mero paciente, como objeto de comunicados que lhes prescrevem, mas como uma consciência que precisa libertar-se.32
O diálogo com a sociedade é exigência de toda democracia autêntica. Sem diálogo, há opressão. Se há opressão, todo intento de comunicação é exercido para incentivar a passividade dos sujeitos oprimidos. A ausência de reciprocidade
troca inerente ao diálogo
faz com que as iniciativas de mudanças sejam mínimas e dificilmente as serão por parte de quem controla. É o público que, reconhecendo-se sujeito da comunicação, deve romper e rejeitar toda forma de manipulação e imposição das informações, de modo a compreender as relações comunicativas e sociais e, assim, atuar ativamente sobre o mundo.
O que caracteriza a comunicação é, pois, o diálogo. Essa relação dialógico-comunicativa implica num acordo entre os sujeitos em torno dos signos ou seja, um acordo em torno daquela dupla dimensão do signo, o significante e o significado, mediatizados pelo referente (o objeto). Ora, para que haja esse acordo torna-se indispensável uma permanente articulação dos sujeitos que se comunicam, numa tentativa de lograr a compreensão do conteúdo da comunicação.33
Este acordo não refere-se a um status tácito de acomodação, mas de um confronto produtivo, um bom combate : a comunicação estabelecida a partir do mesmo patamar, horizontal, com objetivos comuns, onde a polarização sujeito-objeto desmantela-se em favor de um movimento sujeito-sujeito, ou seja, entre os sujeitos que se comunicam . A percepção dos produtos da comunicação, o resultado da leitura dos textos e subtextos do noticiário sem a inocência de um interlocutor desavisado e a consciência de que a grande mídia lamentavelmente ainda é instrumentalizada pelos poderes dominantes produz, no embate com 31
FREIRE, Paulo apud MELO, José Marques de, op. cit., p. 41 Idem 33 MELO, José Marques de, op. cit., p. 45 32
45
as experiências e os conhecimentos dos indivíduos, a capacidade de distinguir entre o que lhes é ou não nocivo, o que precisa ser criado ou aperfeiçoado, o que cada um, como cidadão, pode exigir e reivindicar dentro dos limites da democracia. Mas não é só do encargo do público o atuar sobre o mundo, a iniciativa da comunicação. Conforme já dito, o diálogo se dá pela reciprocidade da fala. O jornalismo como instituição e o jornalista como agente comunicativo também têm lá suas responsabilidades na articulação dos sujeitos que se comunicam para protagonizar qualquer transformação social possível. Retomando o viés argumentativo de Bauman, podemos conceber o papel do jornalismo e da mídia num contexto mais amplo, como correlato ao da ágora grega. A ágora era a praça principal da pólis e se definia como o espaço público onde o cidadão exercia sua cidadania através das discussões políticas. Esse espaço ou esfera de discussão pública (que depois ganha teorização e análise em Habermas) é representativo do ideal democrático praticado na Grécia antiga. Do espaço físico ao virtual, encerrado hoje pela mídia como praça para onde confluem idéias, interesses e relações, a ágora do jornalismo pode delimitar uma interface de comunicação entre o público e o privado domínios separados pela despolitização dos indivíduos na pós-modernidade reaproximando esferas cruciais à autonomia da sociedade, bem como a de seus membros. De acordo com Bauman,
Sem a ágora, nem a pólis nem seus membros poderiam alcançar e muito menos preservar a liberdade de decidir o sentido do bem comum e o que se deveria fazer para atingi-lo. Mas a esfera pública/privada [ágora] como qualquer cenário ambivalente ou terra de ninguém (ou melhor, qualquer terra com donos demais, de propriedade disputada), é um território de constante tensão e luta, tanto quanto espaço de diálogo, cooperação e compromisso.34
A integridade da ágora jornalística pretendida aqui, porém, foi solapada de sua função um tanto pela privatização dos interesses em discussão, outro tanto pela privatização do próprio espaço público. A urgência, nesse sentido, diz Bauman, é fazer a ágora retomar a eclésia [designação do ambiente político grego (exterior) em oposição ao doméstico (interior)] , isto é, restaurar a politização no lugar onde o público e o privado se encontram:
Não será coisa fácil, considerando o perigoso estado atual da esfera públio-privada, da qual o público recuou para buscar abrigo em lugares politicamente inacessíveis e o privado está a ponto de retirar-se para a própria auto-imagem. Para adaptar a ágora aos indivíduos livres e à sociedade livre, é preciso interromper ao mesmo
34
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política, p. 93
46
tempo sua privatização e despolitização. É preciso restabelecer a tradução do privado para o público.35
Isso define um processo necessário de redemocratização da mídia como espaço de discussão, onde o jornalista, no caso específico do jornalismo, é seu principal operador. O papel desse profissional no contexto dialógico da comunicação não está tanto para o cidadão da ágora grega, embora o jornalista seja também, em suma, um homem da pólis. Ocorre que o exercício de sua tarefa jornalística parece mais próximo da figura do educador em Paulo Freire. E, diga-se de passagem, a escola ou o estatuto da educação em Freire tem certa correlação com aquele espaço político grego. O que nos importa de imediato é entender o jornalista como agente de libertação e transmissor do saber, colocando numa perspectiva mais ampla o caráter eminentemente técnico da profissão. Contra aquilo que Freire concebe como educação bancária , através da qual o educador, em lugar de comunicar-se, deposita conteúdos
preestabelecidos
no
educando ,36
ele
sugere
a
prática
da
educação
problematizadora que,
Nega os comunicados e dá existência a comunicação. (...) O educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando, que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos. (...) O pensar do educador somente ganha autenticidade na autenticidade do pensar dos educandos, mediatizados ambos pela realidade, portanto, na intercomunicação.37
Na educação bancária não há a mobilidade de posição entre educador e educando. Enquanto um pensa, o outro é pensado. Enquanto um prescreve, o outro obedece. Enquanto um escolhe, o outro adapta-se. Enquanto um é sujeito, o outro é objeto. É uma relação promotora do antidiálogo, da comunicação imposta e instrumentalizada pela cartilha. Freire primeiramente nota a importância de reconhecer essa natureza, de dialogar sobre a negação do próprio diálogo , para superar a dualidade fixa educador-educando e, posteriormente, agir com a educação problematizadora. Essa é, num nível mais global, a gênese de uma comunicação também problematizadora, capaz de gerar criticidade, politização e consciência sobre a realidade. O jornalista-educador, não em oposição ao seu público-educando, mas em diálogo com esse, sendo por vezes também público assim como o público por vezes também é jornalista, não deve se constituir como mero operador de comunicados ou depositante de 35
Ibidem, p. 113 MELO, José Marques de, op. cit., p. 34 37 FREIRE, Paulo apud MELO, José Marques de, ibidem, p. 36 36
47
conteúdos. Deve assumir-se como agente histórico e social, um ser transformador, comunicante e pensante que não domina apenas a técnica de seu ofício mas sabe refletir sobre ela e para além dela. Para Freire a reflexão é o pensar certo , o movimento dialético que considera a presença do outro na comunicação:
A grande tarefa do sujeito que pensa certo não é transferir, depositar, oferecer, doar ao outro, tomado como paciente de seu pensar, a intelegibilidade [sic] das coisas, dos fatos, dos conceitos. A tarefa coerente do educador que pensa certo é, exercendo como ser humano a irrecusável prática de inteligir, desafiar o educando com que se comunica e a quem comunica, produzir sua compreensão do que vem sendo comunicado. Não há intelegibilidade [sic] que não seja comunicação e intercomunicação e que não se funde na dialogicidade. O pensar certo por isso é dialógico e não polêmico.38
A inteligência na comunicação preconiza a inteligência dos atores da comunicação e a capacidade desses em absorver e compartilhar novos saberes. Mas isso parece não combinar bem com o personagem Homer Simpson, trazido à tona por Moretzsohn no início desse capítulo. Se para Freire ensinar é uma especificidade humana, o jornalismo, como um humanismo, também o é. Ambas as tarefas partilham da mesma responsabilidade de não somente compreender ou narrar o mundo, mas de intervir nele. E isso, agora, parece não combinar com outro personagem: Caminha. O narrador caminiano é mero narrador. Não se envolve, não se insere e nem se reconhece no mundo a sua volta. Caminha escreve e só. E ponto. Como se o descobrimento pudesse existir para além de sua escrita, como se esse não fosse construído pelo correr de sua pena de ganso (?) no papel. Em sua carta ao rei, Caminha nos informa da inexistência de um diálogo consistente com os nativos, embora observe que, mesmo precariamente, houve certo entendimento. Ainda assim, tal compreensão não foi fruto de um processo de comunicação improvisado, mas deu-se na substituição da condição comunicativa pela relação econômica, baseada na troca de bens materiais (cena inspiradora do capítulo seguinte deste trabalho). A desvantagem para os índios nessa relação era compensada pelo vislumbre frente às novidades portuguesas que exerciam sobre eles enorme sedução. Relata o escrivão:
Viu um deles umas contas de rosário, brancas; fez sinal que lhas dessem, e folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço; e depois tirou-as e meteu-as em volta do braço, e acenava para a terra e
38
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia, p. 42
48
novamente para as contas e para o colar do Capitão, como se dariam ouro por aquilo.39
Os colonizadores fizeram prevalecer a condição de dominadores. Parte daí o sentimento de que um sujeito se impõe sobre outro quando anula sua fala, rompe a horizontalidade do diálogo e, valendo-se do poder econômico (estratificado verticalmente), coloca-se numa posição de domínio. Com a grande mídia, ocorre um efeito duplo: além do poder econômico, do capital em si, o lugar de onde fala é, por excelência, campo de produção de capital simbólico. É evidente que o processo de comunicação não está isento dos condicionamentos sócio-culturais. Mas a comunicação integral, criadora e libertadora acontece na medida em que cada pessoa é capaz de colocar-se diante dos condicionamentos e, numa ação empática e não opressora, pode fazer valer sua participação. Os efeitos desse confronto só mostram-se negativos quando a ação de um interlocutor pretende a sujeição do outro. A transposição do ideal comunicativo encarnado pelo jornalismo ao ideal econômico do mercado na base pós-moderna é temática do próximo capítulo, na tentativa de navegar sobre a operacionalização desse processo. No contexto do que Bauman denomina sociedade líquido-moderna, o jornalismo contemporâneo promete e não cumpre a função de dialogar com a sociedade. Pelo menos, não plenamente. Se considerarmos a atuação da grande mídia, os grupos tradicionais de comunicação agem mais na plataforma econômica para se firmar como instância de poder do que para promover a comunicação aberta e responsável, de igual para igual, com os indivíduos. A preocupação com a sustentabilidade financeira está a priori da potencialização do diálogo. A presença do capital especulativo de investidores e agências por trás das redações
faceta a ser aborda em capítulo posterior
corrobora com essa premissa. A
comunicação de igual para igual representa um imperativo de qualidade. Significa dar voz, sem qualquer privilégio, entre os setores conflitantes da sociedade, inclusive a própria mídia. Exterior ao círculo da grande mídia, opera hoje um circuito de informação que ganhou consistência, sobretudo com a popularização da internet. Há exceções na TV aberta e fechada, nos veículos impressos, nas rádios comerciais e numa infinidade de sites e blogues de conteúdos interessados em promover um diálogo mais próximo com a comunidade, a partir da percepção de suas carências históricas. Por outro lado, é massivo o efeito sedutor de programas e de produtos midiáticos que, neutralizando a faculdade dialógica do público,
39
CAMINHA, Pero Vaz de, op. cit., p. 3
49
apelam para o sentimento, para o olhar e para a simpatia, principalmente durante o intervalo comercial. O agente que operacionaliza a informação dentro deste sistema
o jornalista
tem
neste drástico cenário a função de devolver a fala ao povo , redimensionando seu próprio papel de comunicador na construção do diálogo com a sociedade. A responsabilidade de transformação não recai somente sobre este profissional. Passa por empresários da mídia, partidos políticos, órgãos do governo, entidades diversas e pelos próprios cidadãos. Enquanto o ensino formal tem o objetivo clássico de formar sujeitos autônomos, o ensino das escolas de comunicação tem a tarefa de formar profissionais competentes no trabalho de mediação. A busca da libertação acenada por Freire, que atualmente pode ser encarada de um modo ainda mais sublime, parece ser um desafio a nunca ser abandonado. Conforme Bauman, é parte de pouca coisa que resta,
Os destinos da liberdade, da democracia que a torna possível, ao mesmo tempo em que é possibilitada por ela, e da educação que produz a insatisfação com o nível de liberdade e democracia até aqui atingido são inextricavelmente ligados e não podem ser separados um do outro. Pode-se ver essa conexão íntima como outra espécie de círculo vicioso mas é nesse círculo, e só nele, que as esperanças humanas e as chances da humanidade se inserem.40
Se o direito à fala é amputado por um dos interlocutores, o diálogo é improvável. Então, a insatisfação pelos ideais democráticos não alcançados é, antes de tudo, a insatisfação pelo obstáculo à fala que denuncia tal insatisfação. Se o jornalismo e a mídia de modo geral não puderem ser uma ilha capaz de restabelecer as rotas de um novo movimento de comunicar, um diálogo possível, então resta ao sujeito reconhecer-se como oprimido e insatisfeito e tentar a mensagem na garrafa . Lançar a voz engarrafada, porém não muda, no mar da modernidade líquida. Essa mensagem poderá inaugurar uma nova faceta ao jornalismo, tal qual Freire inaugurou uma nova à pedagogia.
40
BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida, p. 23
50
3. BAZAR DA MÍDIA O jornalismo numa sociedade de consumo
O mundo é esta loja autorizada para a venda do meu cordame a anatomia de um musgo que dança numa cabeça de lama RAMONE ABREU AMADO (In: Pulmão de Narciso)
Os portugueses trocavam espelhos por arcos; os nativos, flechas por pentes e, dessa forma, se entendiam, criavam um relacionamento amistoso, minimizavam as desconfianças mútuas. Evitavam o confronto, a controvérsia, o embate. Português e índio faziam, respectivamente, o papel de vendedor e cliente. Algumas vezes as funções se invertiam: mudava-se o lugar que cada um ocupava atrás do balcão. A compreensão entre eles se dá na base de uma troca econômica, que substitui a relação humana do diálogo. Para os índios, os objetos portugueses tinham um valor simbólico, quase espiritual, de deslumbramento. Nisso os tripulantes lusos levavam vantagens. Eles tinham a noção que o valor comercial das bugigangas era desprezível e suas vantagens na relação não eram necessariamente econômicas. Em troca de presentes baratos, tinham o benefício da passividade, da simpatia e do carisma dos indígenas. É o que transparece no relato de Caminha:
Levava Nicolau Coelho cascavéis [chocalhos] e manilhas [pulseiras]. E a uns dava um cascavel, e a outros uma manilha, de maneira que com aquela encarna quase que nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas em troca de sombreiros e carapuças de linho, e de qualquer coisa que a gente lhes queria dar.1
E no jornalismo, que tipo de trocas é estabelecido para haver entendimento, ao menos para suportar a presença do Outro? Quais as relações ou interações existentes entre leitor e jornalista? Entre o leitor-cliente e o jornalista-vendedor? Tem o jornalista ou a empresa jornalística a noção do que o seu público necessita? Ou sabe o público as motivações que levam o jornalismo a destacar, a vender, a expor nas prateleiras midiáticas certos assuntos e outros não? Qual o nível de dissimulação entre um e outro agente? O atributo jornalístico de primeiramente comunicar e informar sucumbiu a uma relação puramente econômica que visa,
1
CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a el rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil, p. 4
além da própria esfera econômica, a uma primazia na cultura, na política e no conjunto social. A mudança deu início à prática do chamado jornalismo cor-de-rosa
aquele que procura
agradar a todos, que privilegia a notícia light, plastificada, superficial
já presente nos
veículos na mídia impressa e eletrônica. O predomínio editorial de matérias sobre comportamento, celebridades, dicas de bem viver, entre outros serviços, desviando o olhar daquela linha mais densa e pesada do hardnews, relacionada prioritariamente à política e à economia, procura evitar o confronto com a opinião pública ao mesmo tempo em que nega a função social elementar do jornalismo. Em troca da boa ação, Caminha e a mídia querem o sorriso, a simpatia indígena do público. A sociedade de consumo em Baudrillard é um aspecto constituinte da sociedade pósmoderna em Bauman. A cultura racional da modernidade ou aquele ideal político grego dá lugar na vida contemporânea à ação para o consumo, orientada por uma
síndrome
consumista (em contraposição ao produtivismo da era fordista) que parece encerrar no ato de compra a única participação política e democrática possível. Lugar de fazer compras é no mercado e no mercado do liberalismo vigente tudo é rapidamente considerado mercadoria disponível e produto consumível, mesmo que esses não correspondam a coisas manufaturadas. O que o mercado toca, seja o que for, transforma-se em artigo de consumo. Sentimentos, emoções, idéias, afetos e conhecimentos são alvos das novas tecnologias e das ferramentas de marketing a serviço da utopia capitalista da satisfação de todos os desejos, a favor do ideal consumista. Os avanços tecnológicos, conforme um contexto trazido por Cremilda Medina, estão atrelados às necessidades produtivas da industrialização. A primazia da tecnologia no mundo contemporâneo reforça novas necessidades de informação vindas a reboque desse processo como conseqüência natural do sistema econômico que lhe dá suporte. Daí a informação se dá como produto desse sistema, preparado ao consumo e ao comércio tal qual outro qualquer da cadeia produtiva. Assim, nas prateleiras do mercado, o jornalismo atua como mais um expositor entre tantos, que coloca seu produto
a notícia
à disposição do
público e ainda concorre com o vendedor de hambúrgueres do outro lado da rua. E o jornalista, para obter sua própria sobrevivência e a sustentabilidade econômica da empresa que representa, deve, igualmente ao concorrente, estimular seu consumidor à compra e, para tanto, toma emprestado os apelos da publicidade. Nesse sentido, conforme análise de Medina, o jornalista age como mero operador da informação ou como técnico da notícia, distanciandose daquela visão crítica e perceptiva sobre os fatos que confere ao jornalismo um papel social:
52
A observação do fato, a descrição minuciosa dos dados julgados essenciais, a busca de informações complementares de todas as pessoas representativas de uma vivência do acontecimento, a busca de opiniões especializadas de observadores científicos da realidade. Na historia da profissionalização do jornalista, cada vez mais se tornam necessários esses instrumentos técnicos e mais vai ficando sob desconfiança a simples captação perceptiva, emocional.2
Isso explica o interesse em não confrontar o cliente, mas em atender seus desejos e expectativas que não são, por sua vez, genuínas, mas alimentadas por um padrão de consumo legitimado por governos, mercados e, por fim, também pelas próprias organizações de mídia. Embora a informação seja vendida com o intento de ser um mapa de interpretação da realidade, na prática ela se transforma num artigo de bazar, tão dispensável e tão fadado à obsolescência e ao desuso como o último celular da moda. No relato de Caminha, as trocas de produtos entre portugueses e nativos foram cada vez mais comuns e continuadas. Um sentimento de insatisfação é percebido e só é atenuado no exercício de novas trocas e novos negócios. Para um leitor atual de jornal, a sensação não é diferente. Ao ver a capa de um jornal impresso, tem-se a noção de se estar a par de todos os acontecimentos. Após ler as matérias, porém, fica ainda um vazio, uma sombra, como se faltassem peças para fechar o quebra-cabeça. As trocas econômicas sobrepõem-se às relações políticas, culturais e sociais. Vimos em capítulo anterior que na política, por exemplo, os partidos perderam grande parte de sua representatividade e credibilidade; na cultura, os seus elementos intrínsecos se tornaram matéria-prima da indústria cultural; e no âmbito social, as interações entre as pessoas ficaram subordinadas ao individualismo exacerbado, tendo como base o surgimento de novas tecnologias de comunicação. O indivíduo pós-moderno é, antes de tudo, um consumidor. E um consumidor continuamente insatisfeito. É a insatisfação que faz o ideal neo-liberalista prosperar. Em sua análise, Bauman assinala com propriedade:
A não-satisfação dos desejos e a crença firme e eterna de que cada ato visando a satisfazê-los deixa muito a desejar e pode ser aperfeiçoado são esses os volantes da economia que tem por alvo o consumidor.3
É a própria sociedade de consumo que consegue tornar permanente sua insatisfação. Conforme Bauman, existem dois fatores deste efeito: (1) a depreciação e a desvalorização dos produtos de consumo e (2) a satisfação da necessidade/desejo/vontade pela criação de novas necessidades/desejos/vontades. O que acontece com qualquer produto ocorre também com a 2 3
MEDINA, Cremilda. Notícia: um produto à venda, p. 86 BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida, p. 106
53
informação, com a notícia, com o jornalismo. O jornal impresso, por exemplo, já nasce depreciado pela agenda noticiosa da televisão e da internet. Aquela função de aprofundar os conteúdos exibidos nos meios eletrônicos é prática pouco vista nos jornais. Por outro lado, eles
os jornais
se tornaram tão televisivos quanto a própria TV. Textos curtos, muitas
imagens, diagramação atraente e ênfase na cobertura local tentam alavancar a valorização do produto jornal em contraponto com seu descrédito por um público minimamente exigente pela falta de profundidade, demasiada publicidade e textos precários. Muito da resistência do jornal impresso em tempos de internet é devido à credibilidade que o meio adquiriu nestes 200 anos de imprensa no Brasil, mais do que sua capacidade de inovar e se transformar em meio às mudanças. Com a perda de um referencial vindo da era moderna, a partir de um leitor nascido na era da cultura digital, ficará difícil a sustentabilidade do jornal sem uma verdadeira reinvenção. Os fluídos da liquidez pós-moderna cedo ou tarde acabam por borrar a maquiagem de um produto. A informação precária e irresponsável hoje é denunciada pelos concorrentes e circuitos alternativos de comunicação tão logo seja divulgada na grande mídia. A desconfiança passa a ser um subproduto do jornalismo, acentuada, além da desvalorização como instância da verdade, por erros históricos, escândalos, denúncias e interesses obtusos. Daí o sentimento de que, embora cercado de informação, o que realmente interessa está ausente ou não é devidamente destacado. Na busca em procurar atender o anseio do público por coisas novas e diferentes, tanto os meios impressos quanto os eletrônicos se esforçam pela exclusividade, pela atualização, pelo atraente. Porém, antes de ser um esforço de comunicação é um esforço dentro do jogo econômico contra a concorrência, pelo domínio da audiência e pela primazia da notícia. No contexto geral da grande mídia, as inovações em termos de programas, formatos e conteúdos atendem a demanda de indicadores de mercado, baseada em pesquisas, opiniões e tendências. A promessa constante é trazer mais informação, de maneira agradável, interativa e mais próxima do público. Promessa que, além de não ser cumprida, é alimentada com novas promessas, novos programas, novos produtos. A vontade de estar bem informado só existe enquanto é substituída por outras vontades e adiada pela premência de novas necessidades, ditadas não apenas pelo conjunto da mídia ou jornalismo, mas por todo o contexto social e cultural onde, é evidente, os meios de comunicação têm papel preponderante. A grande mídia, representante de uma elite dominante, reflete em seu discurso a fala da ideologia que representa notadamente uma fala em desacordo com a prática, como é comum (embora não assumido com clareza) numa estrutura social guiada pela ambição do lucro do capital. A 54
hipocrisia, ora presente nos palanques políticos, nas pregações religiosas, nas análises científicas e nos comentários econômicos também se dá nas edições jornalísticas e nos anúncios publicitários, uma vez que faz ressoar em seus canais as próprias falas destes outros setores sociais: política, religião, ciência, economia. Com as expectativas frustradas, o consumidor pós-moderno está sempre na busca pelo novo. Concomitantemente, o novo parece ser feito cada vez mais do mesmo. Conforme Bauman,
Um mar de hipocrisia se estendendo das crenças populares às realidades das vidas dos consumidores é condição sine qua non para que uma sociedade de consumidores funcione apropriadamente. Toda promessa (de satisfação do desejo) deve ser enganosa, ou pelo menos exagerada, para que a busca continue. (...) É o excesso da soma total de promessas que neutraliza a frustração provocada pelo excesso de cada uma delas. (...) Por essa razão, o consumismo é uma economia do logro, do excesso e do lixo.4
Se na era moderna a informação era privilégio, na modernidade líquida há informação em excesso. Claude Shannon (1916-2001), co-autor da Teoria Matemática da Comunicação, dizia que informação era tudo o que diminuía a incerteza. Quanto mais daquela primeira, menos dessa última. Isso soa como anedota quando se analisa a quantidade de informação produzida em relação ao sentimento de incerteza reinante na contemporaneidade. A relação agora mudou: quanto mais informação, mais incerteza. Enquanto Bauman registra: A vida líquida [pós-moderna] é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante ,5 Castells dá o tom dessa sociedade informacional :
Trata-se de uma sociedade na qual as condições de geração de conhecimento e processamento de informação foram substancialmente alteradas por uma revolução tecnológica centrada no processamento de informação, na geração do conhecimento e nas tecnologias da informação.6
E o paradoxo está dado contra a regra de Shannon. Mas é apenas um entre muitos. Tentando traduzir em números de bytes a noção de excesso , pesquisa de Richard Wurman, publicada em Ansiedade de informação,7 mostra que a edição de um diário como o The New York Times contém mais informações do que a vida toda de um cidadão comum vivendo na 4
Ibidem, p. 108 Ibidem, p. 8 6 CASTELLS, Manuel apud BURCH, Sally. Sociedade da informação/Sociedade do conhecimento, in: Desafios de Palavras: Enfoques Multiculturais sobre as Sociedades da Informação. Alain Ambrosi, Valérie Peugeot e Daniel Pimienta (org.), p. 58. Disponível em <http://www.insme.org/documenti/wordmatters-en.pdf> 7 WURMAN, Richard Saul. Ansiedade de informação. São Paulo: Editora de Cultura, 1999. 5
55
Inglaterra do século XVII. Entre impressos, filmes e arquivos eletrônicos, todos os anos é produzido 1,5 bilhão de gigabytes de conteúdo, o que dá cerca de 250 megabytes para cada ser humano do planeta. Na internet, os números são sempre crescentes: existem mais de três bilhões de páginas disponíveis na Rede, segundo a estimativa incerta e já defasada de Wurman.8 No universo dos blogues
ferramenta decisiva nas reinvenções do jornalismo pós-
moderno , relatório divulgado pelo Technorati9 em 2004 revela que este tipo de site surgia na ordem de 8 a 17 mil diariamente. Em outras palavras, era um novo blogue a cada seis segundos numa blogosfera de quatro milhões de blogues. Porém, o mesmo relatório de 2007 traz números espetaculares: para um universo de 70 milhões de blogues na internet, 120 mil são criados por dia, à média de 1,4 blogue a cada segundo. De 2007 para 2008, o número quase duplicou: são 133 milhões atualmente. E deve-se considerar que apenas 7% da blogosfera latino-americana estão nos índices do Technorati.10 A televisão tupiniquim, com canais possíveis de se contar nos dedos das mãos na década de 90, hoje soma 34 redes no país, sem contar os canais de TV por assinatura e os independentes.11 Ainda os jornais impressos sobre sua iminente extinção
sempre na boca de profetas que discorrem
respiram com o fôlego do redescobrimento das notícias
populares e do jornalismo localizado, com a mancha da credibilidade que não sai fácil das folhas do papel-jornal e com a cultura persistente daqueles que continuam a sujar os dedos para se informar. Em 2007, a venda de jornais cresceu 11,8% no país, numa década em que teve queda de 9,1% em 2002, mas que soma contínuos aumentos desde 2004, em grande parte devido ao reaquecimento e à estabilidade da economia brasileira no período, conforme comentam representantes do setor.12 Mas dentre o mass media, a TV segue suprema. Tem mais gente com acesso à TV do que com geladeira e água encanada no país. Isso faz com que as pessoas tenham desejos de compra de outros produtos por intermédio da publicidade, do jornalismo e da programação televisiva. Por outro lado, a água encanada não virá pela televisão, pois mesmo se tratando de uma falha do poder público, a mídia não faz questão de dar espaço para discutir os rumos dos investimentos em infra-estrutura no país. Enquanto o impulso consumista é incentivado, o exercício da cidadania e o debate de políticas públicas 8
Conforme reportagem disponível em <http://veja.abril.com.br/050901/p_062.html > Empresa norte-americana que monitora, hospeda e oferece serviços de pesquisa para blogues. Desde 2002 divulga relatórios periódicos de estatísticas da blogosfera. Ver em <http://www.technorati.com> 10 Relatórios anuais disponíveis em <http://sifry.com/stateoftheliveweb>, por Dave Sifry, fundador do Technorati. Os números de 2008 estão em <http://technorati.com/blogging/state-of-the-blogosphere/> 11 Conforme estatísticas em < http://donosdamidia.com.br/redes> 12 Dados da Associação Nacional de Jornais (ANJ) com base nos índices do Instituto Verificador de Circulação (IVC). Ver em < http://www.anj.org.br/> 9
56
essenciais são desmerecidos. A inversão de valores
essa que faz a necessidade do televisor
sobrepujar a utilidade da geladeira ou a urgência da água encanada
não define apenas um
novo perfil de consumidor, perseguindo inutilmente a tecnologia, mas uma condição humana onde os indivíduos da sociedade só se reconhecem como consumidores. Para Bauman, a sociedade pós-moderna tem seus extremos limitados pelos muros do consumismo: Sociedade de consumo é uma sociedade que julga e avalia seus membros principalmente por suas capacidades e sua conduta relacionadas ao consumo .13 Os limites desses muros, porém, se movem a todo instante, como miragens no deserto:
Na hierarquia herdada dos valores reconhecidos, a síndrome consumista degradou a duração e promoveu a transitoriedade. Colocou o valor da novidade acima do valor da permanência. Abreviou drasticamente o lapso de tempo que separa não apenas o querer do obter (...), mas também o surgimento do anseio pelo seu desaparecimento, assim como a estreita brecha que separa a utilidade e conveniência das posses de sua inutilidade e rejeição.14
Novidade
está empregada aí num sentido bem amplo. Vai das novidades
tecnológicas às boas novas diárias dos jornais. Dos novos filmes em cartaz à mais recente fashion week em uma grande capital. A contínua indústria de novidade e conteúdo de todo gênero faz os suportes físicos onde circulam as informações, ou a elas permitem o acesso, protagonizarem estatísticas recordes, crescendo em paralelo ao desejo de informação, entretenimento e consumo. Em 2008, notícias deram conta de que pela primeira vez no Brasil a venda de computadores pessoais no ano passado (10,7 milhões) superou a de televisores (10 milhões). Também este ano, outra marca histórica: 135 milhões foi o número aproximado de celulares ativos, registrados pela Anatel, em julho.15 Enquanto o mercado comemora o faturamento com aparelhos telefônicos e de TV, PCs, componentes eletrônicos, eletrodomésticos e acessórios hightech de toda sorte, a produção de conteúdo se expande exponencialmente, num volume que ultrapassa o mundo dos bytes, avança na produção de sentido e na geração de valores simbólicos. No fim, se perde num mar imensurável, tão denso quanto o vácuo. Se fosse levada em conta a lógica de Shannon, a pós-modernidade seria o tempo onde as incertezas estariam reduzidas ao pó. A economia do excesso
16
comum a esta
13
BAUMAN, Zygmunt, op. cit., p. 109 Ibidem, p. 110 15 Conferir em <http://clipmarks.com/clipmark> sobre computadores e <http://idgnow.uol.com.br/indices> sobre celulares. 16 A expressão saiu a partir da leitura de Bauman, mas é em si uma contradição. Se é economia , não pode ser do excesso . Isso se aceitarmos a definição de Economia como sendo uma ciência social que administra recursos escassos para a satisfação das necessidades humanas. Regular a disponibilidades dos 14
57
era, porém, ampliou o leque de escolhas. A falta de discernimento do consumidor o faz transitar pelo caminho mais fácil e atraente. Mas não sem o sentimento de culpa por desconhecer outros caminhos, de não ter condições de usufruir de tudo o que está à disposição. A satisfação da escolha já nasce com o gene do desejo pelo não-escolhido.
A sociedade de consumo não é nada além de uma sociedade do excesso e da fartura e portanto da redundância e do lixo farto. (...) O excesso, contudo, aumenta a incerteza das escolhas que se esperava que eliminasse, ou pelo menos aliviasse ou reduzisse e assim o excesso nunca é suficientemente excessivo.17
Mesmo a satisfação pelo consumo não é satisfatoriamente satisfatória. Ela é tão transitória quanto o bem
tangível ou não
adquirido. A promessa consumista incita ao
desejo e não a sua satisfação. O descontentamento gera, por conseguinte, nova ação de compra e o acúmulo permanente do inútil: elogio pleno à futilidade do supérfluo e ao lixo. Exemplo concreto disso são as 50 milhões de toneladas de lixo eletrônico produzidos todos os anos no planeta, conforme estimativa do Greenpeace. Com ciclos de vida cada vez mais reduzidos, computadores, monitores, celulares, eletroeletrônicos e eletrodomésticos em geral são descartados tão logo apareçam novos modelos e já materializam cerca de 5% de todo o lixo gerado pelo homem. A obsolescência dos produtos atinge também a informação, reproduzindo o excesso, desperdiçando recursos e prejudicando o entendimento minimamente coerente da realidade. A incapacidade do leitor acompanhar diariamente todas as notícias geradas pelos meios de comunicação o deixa frustrado no seu desejo de compreender o mundo. Primeiro porque, embora o volume seja imensurável, a redundância é equivalente. No âmbito mundial, a origem das notícias tem por base as mesmas agências e produtores de décadas atrás. Segundo, o tempo de absorção, percepção ou leitura é desequilibrado em relação ao tempo de exposição dos conteúdos na mídia. O valor notícia é determinado pela velocidade com que ela ganha visibilidade ( A velocidade é a própria informação ),18 o instante exato entre seu aparecimento e imediato desaparecimento das pautas. Na dúvida, o leitor decide por uma meia dúzia de veículos, mas continua a sensação de estar perdendo alguma coisa . O hábito de se informar se automatiza, torna-se uma operação mecânica
recursos (naturais, materiais, humanos e tecnológicos) é preciso, pois os recursos produzidos pela natureza e pelo homem são insuficientes para atender as infinitas necessidades das pessoas. No entanto, a expressão serve para acentuar o caráter paradoxal da vida na modernidade líquida. 17 BAUMAN, Zygmunt, op. cit., p. 111 18 VIRILIO, Paul apud MORETZSOHN, Sylvia. Jornalismo em tempo real: o fetiche da velocidade, p. 125
58
semelhante ao ato de fazer compras no supermercado. Qualquer ação dialética ou dialógica é minimizada, pois os modos de produção e consumo são altamente condicionantes. No campo micro do jornalismo, onde o jornalista é agente principal, há o mesmo condicionamento na produção de notícias. O profissional tem a função de cumprir com determinado número de pautas, de atualizar constantemente seções de sites e portais, de produzir conteúdos para diferentes veículos, independentemente se leitor absorve toda a informação publicada ou, muito menos, se transforma tal informação em conhecimento necessário à criticidade. Por outro lado, o jornalista também sabe que o consumidor evita assuntos pedregosos, o que alivia o peso sobre sua produção. Como um repositor de mercado, ele está encarregado de repor as mercadorias nas prateleiras tão logo ela sejam consumidas, destacando em cartazes e faixas as devidas promoções, ofertas e afins. O jornalista Leandro Marshall resume bem a situação:
O processo taylorista e fordista de produção das notícias criou regras e convenções próprias que fazem com que o jornalista seja mero agente do processo de captação, processamento e produção das notícias. O lead tem suas regras cabalísticas; os jornais têm sua linha editorial pré-planejada; o gatekeeper obedece às regras dos valores-notícias; a imprensa obedece à lógica mercantilizada do consumo e do jornalismo cor-de-rosa, light, neutro, indiferente; e, os jornalistas apenas trabalham dentro de uma linha de produção comandada por um sistema industrial de produção de notícias.19
Há um mínimo espaço para o jornalista transitar aí com certa autonomia, permitindo oferecer ao público um plus da informação. Isto pode estar na confecção de matérias e coberturas especiais, numa pauta inusitada que foge à rotina, num texto mais bem planejado que escapa aos cortes do editor ou no risco de ir mais fundo do que a pauta solicita. São tentativas que, se concretizadas, denunciam ao leitor a possibilidade de se fazer algo diferente. A possibilidade de se ir além, de buscar uma proximidade tal com o leitor que ultrapasse a fronteira da notícia como mero produto e a defina como conhecimento e identidade do mundo. A internet trouxe uma nova condição para esse rompimento. Hoje é bastante comum os jornalistas terem blogues e sites pessoais onde ampliam assuntos e matérias publicadas nos meios convencionais. Há o toque mais personalizado da notícia, com comentários, observações e textos que, por conta da edição e da limitação de espaço físico, ficaram de fora da mídia tradicional. Também ali é possível viabilizar conteúdos específicos para aquele meio, capazes até de pautar outras mídias. O caminho, porém, já está bastante viciado e, 19
In: A notícia é quem escreve o jornalista. Disponível em <http://leandromarshall.wordpress.com/>
59
inclusive, foi incorporado pela grande mídia como sua extensão, relativizando o caráter de fuga à rotina informativa. A idéia de mostrar os bastidores da notícia, antes atraente, mostra-se gasta em sua fórmula já usada por todos os veículos. Os decanos colunistas da mídia tradicional hoje são blogueiros na internet e já não têm a mesma liberdade de aprofundar assuntos e ampliar discussões. Têm que produzir coisas novas e exclusivas, num tempo ainda mais reduzido. A experiência do público no contato com esse tipo de alternativa (blogues) não parecer ser muito proveitosa a partir do momento em que até o que era para ser espontâneo e original, agora é também editado, tem uma produção, um apelo comercial, uma mediação. Isto vale tanto para um blogue noticioso quanto para um reality show. Muitos blogues nascidos independentes hoje estão vinculados aos portais dos grandes grupos de comunicação: se profissionalizaram e adotaram um modo de produção que preza por periodicidade e atualização constante, descaracterizando aquele viés alternativo de antes. Tais práticas dão clareza ao que Bauman diz quando até mesmo as tentativas de fugir ou resistir aos domínios da mercantilização são absorvidas pelo mercado e transformadas em produto. Ao comprar o produto jornalístico o consumidor emprega, além de dinheiro, tempo, dedicação e interesse. A empresa jornalística vende a notícia como informação e conhecimento indispensáveis ao cotidiano. Os paradoxos e deficiências nesta relação são diversos. No mundo contemporâneo, são a instabilidade do jornalismo como negócio e a insegurança do leitor em vê-lo como instância crível da democracia os dois fatores que se cruzam estabelecendo um simulacro de satisfação, valendo-se aqui de termo utilizado por Jean Baudrillard em sua crítica à sociedade de consumo. Na gangorra da mídia, a volatilidade toma forma na composição dos informes, na profundidade das abordagens, na publicação de redundâncias, na superficialidade dos conteúdos. A natureza do volátil tem na raiz a idéia de voar , do ser alado, da substância que vaporiza-se, adapta-se ao recipiente onde está colocada. Uma notícia divulgada num site pela manhã já não aparece mais à tarde ou à noite. Em questão de horas uma manchete sai da condição de principal e vai para o rodapé de grandes portais, quando simplesmente não desaparece, alça vôo. Programas jornalísticos e de entretenimento na TV são criados num dia e mortos no outro. Às vezes, são ressuscitados, respiram novamente e morrem outra vez. Não há permanência. O que começa a se solidificar em pouco tempo vira lixo. As pessoas não querem se sentir cansadas e a todo instante precisam ser sensibilizadas pelo novo, motivadas para que o ato de compra não seja desestimulado. Nesse sentido, por exemplo, empresas jornalísticas empregam ferramentas promocionais para que seu produto pareça interessante. São notáveis os jornais que juntam em 60
suas edições artigos como CDs, DVDs, panelas e outras bugigangas para incrementar as vendas. Ou programas televisivos que premiam os telespectadores pela audiência. Ou revistas de informação que incorporam em suas páginas suplementos de outros títulos publicados por uma mesma editora ou grupo de mídia. Tanto um lado quanto outro acumulam em suas gavetas os subprodutos deste escambo midiático. Relação em nada diferente a que Caminha escreve: Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas, daquelas já ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, de tal maneira que os nossos levavam dali para as naus muitos arcos, e setas e contas .20 Enquanto os indígenas se deslumbram com os artefatos portugueses, num apetite insaciável por coisas sem valor, acumulam-se nos navios arcos e flechas que os capitães já não sabem o que fazer com tanto lixo. As prateleiras transparentes da mídia estão sempre cheias. Muita produção, de fontes e fornecedores diversos: assuntos que já estão prontos nas gavetas e é só embalar, outros precisando de uns retoques para ficar com cara de novo, matérias de free-lancers aguardando para serem emplacadas. Na popa do jornalismo, o volume de informações é enorme. O jornal impresso de domingo, por exemplo, demandaria do leitor uma quinzena para ser todo lido. Mas sai, vende. No final do dia sobra pouca coisa. E na segunda é peixe de todo tipo lendo jornal. Ali embrulhadinho, com os olhos vermelhos. Há certa displicência no fazer do jornalismo atual em relação ao seu público, assim como o próprio leitor não leva muito a sério tudo o que está nos jornais. Se o público está dissimulando a compreensão, no outro lado o jornalista por ora pensa: Quem vai ler tudo isso? ou, Quem vai prestar atenção a estes detalhes? . No raso, fica o dito pelo não-dito e a vida segue até a próxima edição. É assim no mundo da moda também: toda hora novas coleções, modelos bizarros, tendências de todo tipo. Quem usa aquilo no dia-a-dia? Tão logo uma coleção é lançada, em seguida vem outra e mais outra. E torna-se impossível ficar na moda . Os estilos não se deixam permanecer, não dão chance ao público de se acostumar. Como uma edição de jornal, a moda não fica, ela passa. E o não estar na moda, mesmo estando na moda, define uma condição perversa da pós-modernidade. É como se informar lendo jornal do dia anterior. Se a realidade é sempre algo acontecendo , num continuum evolutivo na concepção de Norbert Elias, o consumidor ou o leitor vê-se obrigado a acompanhar o tempo que não pára, como se um fantasma o assombrasse continuamente, deixando-o permanentemente num estado de desconforto.
Mas pode-se dizer que em nenhuma outra época o ato de escolha foi tão exacerbadamente autoconsciente como agora, conduzido como o é 20
CAMINHA, Pero Vaz de, op. cit., p. 7
61
em condições de dolorosa mas incurável incerteza, sob a ameaça constante de ficar para trás e ser excluído do jogo e impedido de obter qualquer retorno pelo fracasso em atender às novas demandas.21
Na mídia, na moda, nos relacionamentos, na política, enfim, na vida sob a expressão do consumo, o mercado se torna o habitat natural dos consumidores. E o mercado é espaço somente para comprar, vender e trocar. Uma referência em si mesmo que não aceita a relutância. Bauman faz questão de lembrar que a sociedade contemporânea é fruto da obediência e do conformismo moldado pela história moderna em sua trama militar e industrial, enquanto o espírito de rebeldia era condenado como vício. A herança da apatia praticamente autoriza o mercado a agir com supremacia, sem questionamentos. E o mercado faz valer, geração após geração, sua delegação. Uma mudança de rumo passa necessariamente pelo paradigma da educação e tem nas crianças seu elemento multiplicador. São as crianças, porém, que ocupam uma posição estratégica na cultura de consumo. O mercado trabalha na produção de um consumidor ideal a partir das crianças. Entendendo tal artimanha, conforme capítulo em que Bauman provoca o leitor a aprender a andar sobre a areia movediça , sublima-se a proposta de que a sociedade contemporânea em todas suas instâncias, lançando mão da herança moral e conformista, mova-se à formação de cidadãos, não de consumidores. Diz Bauman,
O consumidor é inimigo do cidadão. (...) A democracia não pode sobreviver por muito tempo diante da passividade dos cidadãos em função da ignorância e indiferença políticas. (...) Não são apenas as habilidades técnicas que precisam ser continuamente renovadas, nem é somente a educação voltada para o mercado de trabalho que precisa ocorrer ao longo da vida. O mesmo é exigido, e com mais urgência ainda, pela educação para a cidadania.22
Numa sociedade em contínuo processo de fragmentação é difícil promover a coesão social e comungar responsabilidades iguais. Há ações isoladas, mas a transformação consumidor-cidadão não é tida como um objetivo político importante. A economia, sobrepujando-se à política
condição característica deste tempo
faz prosperar seus
objetivos e cria consumidores todos os dias, lançando as crianças nos braços afáveis do mercado. Valendo-se do raciocínio de Thomas Cook, Bauman cita:
As batalhas travadas a respeito da cultura de consumo infantil também são batalhas pela natureza da pessoa e pelo escopo da personalidade 21 22
BAUMAN, Zygmunt, op. cit., p. 155 Ibidem, p. 165
62
no contexto do alcance cada vez maior do mercado. O envolvimento das crianças com matérias, veículos, imagens e significados oriundos do mundo do comércio, a ele referentes e com ele entrelaçados ocupa uma posição central na construção das pessoas e das posições morais na vida contemporânea.23
Embora o jornalismo não seja o maior culpado pelo incentivo à cultura consumista, é certo que a mídia ocupa papel decisivo como elemento de propagação. Claudio Tognolli, analisando pontualmente a prática do jornalismo cultural como jornalismo de celebridades , anota um movimento que pode ser estendido a todo corpo midiático:
Pois bem, nossa mídia apagou e diligentemente tem apagado fronteiras que, francamente falando, deveriam ter sido mantidas estanques. Lentamente, é o que vemos, o estatuto da cidadania virou estatuto do consumidor, e ali, nos cadernos de Cidades e todo o Brasil, o espaço tradicionalmente dedicado aos problemas da cidadania foi perdendo força para os problemas do consumismo. O que era cidadania consuetudinária virou consumo com garantias de devolução. A tribuna valorativa dos problemas do cidadão virou um grande Procon. Se foram apagadas as fronteiras entre o que era ser consumidor e o que era ser cidadão, também implodiram-se as barreiras coquetemente conquistadas e erigidas, que impunham alguns limites, ainda que também valorativos, entre o que era boa arte e o que era arte de péssima qualidade portanto, devotada ao consumo.24
Sobre o problema do consumo, sobretudo o infantil, o jornalista Eugênio Bucci considera que a imprensa
poderia ser mais crítica do que é e poderia combater o
envenenamento . Trata ele do envenenamento da mente das crianças , um dos setes pecados capitais da imprensa sugeridos pelo historiador e também jornalista Paul Johnson. Ilustrando como a mídia pode participar no circuito do consumo, Bucci comenta:
Quando a indústria dos games adota enredos de extrema brutalidade para os jogos em vídeo que são vendidos ao público infantil, não se podem culpar as reportagens pelo que se passa. Hoje, pais que se orgulham de não presentear seus filhos com espingardinhas de plástico para não ensiná-los a ter atitudes violentas orgulham-se também de poder comprar equipamentos caros que, acoplados à televisão, oferecem não apenas pistolas automáticas, mas aviões de guerra, tanques, morteiros e até bombas. (...) De outro lado, a publicidade as ensina a fumar e beber, com marcas de cigarro estampando o macacão de ídolos da Fórmula 1 e marcas de bebida patrocinando campeonatos esportivos ou atrações culturais as mais diversas.25
23
COOK, Daniel Thomas apud BAUMAN, Zygmunt, ibidem, p. 146 TOGNOLLI, Claudio Julio. Mídias, máfias e rock n roll, p. 54 25 BUCCI, Eugênio. Sobre ética e imprensa, p. 160-161 24
63
Uma resposta aos efeitos destas relações perniciosas à democracia e ao desenvolvimento da educação que capacita à cidadania passa ao largo da simples atitude de desligar a televisão, não jogar videogames, não ir ao cinema ou evitar a apologia às bebidas. Passa ao largo de fórmulas ou dicas para construir um mundo melhor . Ela passa pela atitude política do desapontamento em relação à insatisfação causada pelo consumo; pelo descontentamento ao ideal do mercado; pelo incentivo à educação que cria alternativas e possibilita escolhas. E, mais do que isso, educação que seja mantenedora das condições que tornam as escolhas possíveis e acessíveis. Considerando uma citação lembrada por Bauman A democracia está em perigo quando os indivíduos são incapazes de traduzir sua miséria privada em preocupações públicas e ação coletiva
26
é um alerta pertinente dizer que o
jornalismo corre perigo se não for ele o agente capaz de, através de seus mecanismos numa sociedade midiatizada, publicar e denunciar a miséria coletiva, sob o risco de atestar sua própria miséria e incapacidade. Enquanto a capacidade do indivíduo passa pela busca da autonomia através da educação, a do jornalista passa pela atuação prática com base em sua formação teórica, que o habilita estar um passo à frente do mercado. Se não for assim,
Como vamos produzir comunicadores sem um aparato crítico suficiente para traduzir as maquinações do discurso político, por exemplo? Prepararmos um profissional de mercado pode trazer, obviamente, o erro de um profissional feito unicamente para o mercado , para atender à demanda de um funcionalismo que tudo requer, menos a razão crítica e a análise dos dados que esse mercado de informações tão diligentemente divulga.27
O estar à frente do mercado pressupõe, ao jornalista e ao trabalho jornalístico, o estabelecimento e a preservação de alguns limites éticos. A despeito da discussão clássica que rivaliza esses limites entre a ética particular do jornalismo como instituição (aspectos deontológicos) e a ética universal do cidadão como ente social (aspectos teleológicos), seja qual for sua posição, o desafio é desvencilhar-se do peso que a ética do mercado ou do capital exerce sobre as rotinas da profissão. Valoriza-se aí, o ingrediente ético próprio do jornalismo, constituído de história, conhecimento e reflexão.
26 27
GIROUX, Henry A. e GIROUX, Susan apud Bauman, Zygmunt, op. cit., p. 164 TOGNOLLI, Claudio Julio, op. cit., p. 73
64
4. NÁUFRAGOS, TRAFICANTES E DEGREDADOS Por que o jornalismo não expurga seus males?
Ninguém se dava conta de que o mundo inteiro estava lá, ali batendo na cara. O mundo. O mundo inteiro tocando a ponta do nariz e só o que todos enxergam é a ponta do nariz. Queria que o mundo parasse. Ele faz muito barulho. FRANCINE HELLMANN
Este capítulo toma emprestado o título do livro de Eduardo Bueno, lançando no Brasil em 1998 por ocasião das comemorações dos 500 anos do descobrimento . Náufragos, traficantes e degredados: as primeiras expedições ao Brasil, 1500-1531,1 traz relatos de acontecimentos, de lendas e de personagens que protagonizaram a ainda nebulosa história sobre os primeiros trinta anos após a chegada de Cabral por estas bandas. Vítimas de naufrágios, criminosos exilados, desertores de expedições, traficantes de escravos e de mercadorias, traidores e rebeldes formam um conjunto de figuras pitorescas do período de ocupação e colonização do Brasil. Não nos interessa aqui as controvérsias históricas sobre fatos e episódios desse período, mas o uso desses personagens na tipificação do descartável na pós-modernidade, dos conflitos éticos que enredam o fazer e o discurso jornalísticos e do que eles representam à proposição de um jornalismo mais responsável, crítico, autônomo e qualitativo, segundo os ideais de autonomia, emancipação, liberdade e politização já comentados nos capítulos anteriores. Conforme nos relata a pena caminiana, depois que a frota de Cabral ancorara na baía de Porto Seguro, mandaram à terra um jovem prisioneiro para ficar entre os selvagens. Esse deveria se embrenhar na mata e observar o modo de vida dos nativos, notar seus costumes e hábitos. Caso o desgraçado viesse a morrer, pouco importava: traficantes, náufragos e degredados faziam o tipo descartável . Junto com os capitães Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias, além de Pero Vaz de Caminha, Cabral mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado, criado de dom João Telo, de nome Afonso Ribeiro, para lá andar com eles [os nativos] e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho. Fomos assim de frecha [rapidamente] direitos à praia .2 De acordo com pesquisa de Bueno, 1
BUENO, Eduardo. Náufragos, traficantes e degredados: as primeiras expedições ao Brasil, 15001531. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. 2 CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a el rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil, p. 4
Afonso Ribeiro, assassino confesso, era um dos vinte degredados vindos na expedição. Na companhia de outro criminoso, cujo nome Caminha não informa, ele seria de fato deixado no Brasil para cumprir pena de seu crime.3 Além dos dois condenados, o escrivão fala no fim da Carta a respeito da fuga e deserção de dois grumetes
a mais baixa posição dentro da hierarquia da Marinha
quando a
esquadra de Cabral já se aprontava para sair das terras brasileiras:
Creio, Senhor, que, com estes dois degredados que aqui ficam, ficarão mais dois grumetes, que esta noite se saíram em terra, desta nau, no esquife, fugidos, os quais não vieram mais. E cremos que ficarão aqui porque de manhã, prazendo a Deus fazemos nossa partida daqui.4
Caminha deixa a desejar sobre demais informações a respeito dessas sobras humanas que cá ficaram. No entanto, Bueno dá conta de outros detalhes:
Se Pero Vaz de Caminha não se refere ao destino dos degredados assunto especialmente constrangedor para ele, como se verá , relata, por outro lado, que, na noite de sexta-feira, dois grumetes desertaram da nau capitânia [navio principal], fugindo num esquife [barco pequeno]. Em um perfeito contraponto com a sina dos degredados, eles decidiram ficar por livre e espontânea vontade nas matas da baía de Cabrália. Na verdade, embora Caminha se referisse a apenas dois, talvez fossem cinco os desertores - pelo menos de acordo com a carta que Alberto Cantino enviou, em 17 de outubro de 1501, ao duque de Ferrara, Hercules D'Este. Segundo Cantino, que interrogara, nas tabernas portuárias de Lisboa, marujos recém-chegados da expedição de Cabral, "em um lugar que se chama Santa Cruz, por ser terra deleitável, de bons ares e abundante em dulcíssimos frutos, cinco marinheiros da frota d'el-Rei fugiram de bordo e nela se deixaram fícar".5
Mais adiante deste trabalho se entenderá o porquê da omissão de Caminha sobre os degredados. Dos grumetes, é possível conjecturar que, sendo eles praticamente os serviçais dos marinheiros, fazendo as tarefas mais pesadas em troca de insultos e maus tratos, o melhor a se fazer era aproveitar a oportunidade e se embrenhar com os índios em suas matas graciosas. Por conta de uma sentença oficial ou de um ímpeto pessoal, o território brasileiro era naquele momento símbolo de prisão e de liberdade. Prisão para os criminosos desterrados. Liberdade para os grumetes subjugados. Penalização para um, alívio para o outro. Os grumetes, antes úteis, agora tornados inúteis pela deserção. E os degradados, antes inúteis,
3
BUENO, Eduardo. A viagem do descobrimento: a verdadeira história da expedição de Cabral, p. 97 CAMINHA, Pero Vaz de, op. cit., p. 12 5 BUENO, Eduardo, op. cit., p. 111 4
66
agora tornados úteis pela cooperação, como observadores do povo nativo. Esse antagonismo de valores, de sentimentos contrários, de visões concorrentes e de conceitos confusos é aqui o referente paralelo à ambivalência na contemporaneidade. A ordem moderna versus o caos pós-moderno, a necessidade de segurança conflitante com a de liberdade, o cidadão transformado em consumidor, o privado que sobrepuja o público, a ética que dá lugar à estética, entre tantas outras polaridades que não se mostram mais assim extremadas, mas enviesadas, cruzadas, diluídas, líquidas. Os homens abandonados ali na então terra de Vera Cruz não fariam falta. Grumetes eram párias dentro da Marinha enquanto os degredados eram desgraçados sociais. À ausência desses, havia muitos outros para se pôr no lugar. À sombra do comando de Cabral e do poder da Coroa Portuguesa aqueles homens eram, em suma, miseráveis. Bauman diria refugos humanos e, mais que isso, diz:
A remoção desse refugo produzido nas partes modernizadas e em modernização do globo foi o mais profundo significado da colonização e das conquistas imperialistas ambas tornadas possíveis, e de fato inevitáveis, pelo poder diferencial continuamente reproduzido pela completa desigualdade de desenvolvimento (de maneira eufemística, chamada de atraso cultural ), resultante, por sua vez, do confinamento do modo de vida moderno a uma parte privilegiada do planeta.6
Em Vidas desperdiçadas Bauman trata do
problema técnico
do crescimento
populacional. Esse tipo de problema foi um dos principais motivadores para o movimento expansionista europeu. A base de ocupação dos países colonizados foi primeiramente com a presença dos indesejáveis , tais como criminosos, bandidos, órfãos e prostitutas, e depois com a chegada dos redundantes
o excesso da população, o refugo produzido pela
industrialização da Europa. Os imprestáveis do Velho Mundo migraram para o Novo Mundo. Hoje, porém, não há mais espaços vazios para abrigar do lixo, seja o humano ou o tecnológico. A condição pós-moderna preconiza, portanto, a convivência com o lixo, com o indesejável, com as sobras do mundo. O novo e o velho, o mocinho e o bandido, o português e o indígena ocupando mesmo espaço. No decorrer do tempo, cada qual fica irreconhecível. O novo só é novidade enquanto é anunciado como tal. No outro dia, cai na obscuridade do antiquado, no lugar das coisas redundantes, dos excessos inúteis e incômodos. A natureza do descartável é uma espécie de princípio elementar da vida na era pós-moderna. Pessoas, sentimentos, valores e instituições são definidos como mercadorias e, dessa forma, adquirem data de validade e prazo de consumo próprios. Pela presença do novo, há o lixo do antigo, a 6
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas, p. 6
67
sobra do desnecessário e o descarte do que saiu de moda. Não obstante, o período de obsolescência é cada vez mais curto a fim de fazer girar cada vez mais rápido as engrenagens do mercado, do capital e da indústria. A notícia, bem perecível por excelência ganha, na pós-modernidade um caráter ainda mais frágil, impulsionado pela maneira cada vez mais acelerada com que a informação é transmitida. O jornal já nasce obsoleto e a
atualização
se mostra como imperativo
indispensável à compreensão do mundo a todo instante. Conforme Costa,
Nessa modernidade líquida, os conceitos e interesses se amoldam ao sabor das ondas, aos altos e baixos e às discrepâncias das profundezas para exibir uma superfície plana, que cobre extensivamente todo o planeta com seu abraço que afaga e afoga. (...) Passada a modernidade sólida ela pode ter nascido com Descartes e morrido por volta dos anos 80 do século XX, quando os conceitos tinham consistência e substância , surgiu um novo mundo no qual os conceitos e os valores são relativos, principalmente na comunicação.7
Num cenário de relativização, o jornalismo se segmenta, descarta certos tipos de leitores, descarta fontes, descarta informações, descarta certos critérios de noticiabilidade,8 define outros e, a reboque, despreza também critérios éticos que deveriam nortear o trabalho jornalístico. Tudo em cumprimento da pressa do mercado e não do interesse legítimo do público ou em função da responsabilidade social da qual o jornalismo e o jornalista estão encarregados. É a volatilidade da era do descartável que, mais do que jogar fora bens produzidos, significa ser capaz de atirar fora valores, estilos de vida, relacionamentos estáveis, apego a coisas, edifícios, lugares, pessoas e modos adquiridos de agir e ser .9 Parece evidente que a temporalidade efêmera da informação deixa sem contexto histórico os eventos seqüenciais da realidade. Pessoas, coisas e lugares existem sem memória, sem essência, como se não fizessem parte de um conjunto de transformações, como se tivessem um fim em si mesmos. Tal qual náufragos, degredados e desertores, permanecem desterritorializados, vítimas daquele processo que Chauí denominou de acronia e atopia, segundo o qual os fatos são notificados sem seus referentes precisos de tempo e de espaço. Contrariando o discurso neoliberalista, Moretzsohn ainda argumenta que,
7
COSTA, Caio Túlio. Modernidade líquida, comunicação concentrada, p. 20. Paper publicado na Revista USP, v. 66, p. 178-197, 2005. 8 Como intensidade, clareza, ineditismo, interesse humano, proximidade, relevância científica e social, etc, reiteradas por autores como Nilson Lage, Nelson Traquina e Francisco Karam. 9 MORETZSOHN, Sylvia. Jornalismo em tempo real: o fetiche da velocidade, p. 26
68
A desregulamentação e a flexibilidade atuais não representam libertação alguma, apenas uma nova forma de lidar como o tempo para economizá-lo e daí extrair a mais-valia. Da mesma maneira, a fuga da cultura ao relógio, que costuma ser apresentada também como libertação, inclusive e especialmente pela mídia, esconde um novo e invisível aprisionamento.10
Dentro das redações, os jornalistas estão presos pela técnica e pelo compromisso primeiro com a ideologia do capital. Discutir ética nas redações hoje é atrapalhar um modo de produção jornalística que tem urgência em atender a demanda do mercado e não de uma necessidade pública que priorize a informação completa, contextualizada e crítica. Refletir sobre o que se está fazendo requer um tempo que a redação não dispõe, amarrada que está a uma técnica de produção urgente em prazos, padrões e formatos. Isto não quer dizer que é preciso parar as máquinas, mas que é necessário incorporar a ética no fazer jornalístico sem comprometer a técnica e, sobretudo, sem comprometer o interesse público na produção de notícias. Ora a técnica, num ofício, é campo restrito do profissional ou especialista, mas sendo o jornalista um agente que atua na esfera pública como mediador e interlocutor, ou seja, que compartilha ou confronta valores éticos de diferentes grupos (inclusive de outros profissionais), é razoável pensar que, num ideal democrático, a técnica não prescinda valores, padrões e estatutos éticos socialmente reconhecidos. Para o jornalista Eugênio Bucci,
A ética, nessa perspectiva, é o campo em que se estabelece o sentido comum social de um fazer específico: é o campo em que se definem os benefícios comuns que devem ser promovidos por esse fazer específico e os limites além dos quais esse fazer não está autorizado a ir. À luz dessa comparação, se voltarmos ao jornalismo, verificaremos que, nele, a técnica e a ética não pertencem a territórios separados, mas estão no mesmo lugar.11
Já conforme a análise criteriosa de Kunczik:
Na auto-imagem dos jornalistas, o termo profissional tem três sentidos: primeiro, o oposto de aficionado; segundo, a qualificação por meio da capacitação especial; e, terceiro, um código de conduta que dá prioridade aos interesses da clientela receptora. Além disso, pode-se identificar dois tipos de normas jornalísticas profissionais: as normas técnicas (obtenção rápida de notícias, habilidade para redação e edição etc.) e as normas éticas (obrigação para com os receptores, valores como a responsabilidade, a imparcialidade, o cuidado, a justiça, a objetividade etc., cf. Breed, 1995).12
10
Ibidem, p. 39 BUCCI, Eugênio. Sobre ética e imprensa, p. 48 12 KUNCZIK, Michael. Conceitos de jornalismo, p. 37 11
69
Pensando o jornalismo, porém, como estatuto da cidadania e ferramenta para a construção e consolidação da democracia, a criação de normas é insuficiente se não houver o envolvimento de todos que participam do processo e se, nesse conjunto, houver a concessão de privilégios por conta de interesses terceiros. Conforme diz Bucci,
A ética jornalística não se resume a uma normatização do comportamento de repórteres e editores; encarna valores que só fazem sentido se forem seguidos tanto por empregados da mídia como por empregadores e se tiverem como seus vigilantes os cidadãos do público.13
É dessa relação que a liberdade de imprensa se concretiza como princípio, a despeito do jornalismo estar inserido num contexto capitalista. Para José Arbex Júnior, o problema da mídia
o conjunto ético que esta deveria preservar e a capacidade institucional de
transformação social que poderia encarnar
não é uma questão estrita ao campo da mídia,
mas um problema que tem que ser resolvido pela sociedade.
Enquanto houver a mercantilização do mundo, das pessoas e idéias que é o que existe no neoliberalismo este tipo de coisa vai continuar se refletindo no jornalismo. Enquanto o jornalismo for tratado como um produto como outro qualquer, como sabonete, camisa, sapato, carro, esse problema vai continuar existindo. O problema é restituir ao jornalismo a noção de sua responsabilidade social.14
O encontro da ética com a técnica constrói o espírito profissional no jornalismo, conforme considera Kunczik. O jornalista, também participante da sociedade da qual reclama Arbex, tem como atribuição imediata na operacionalização de seu trabalho restrito às redações, buscar o equilíbrio constante dos dois elementos constituintes da profissão e procurar antever as ameaças e situações potencialmente prejudiciais a esse equilíbrio. O domínio dos aspectos técnicos necessários ao jornalista, tais qual a noção do tempo de produção, a capacidade intelectual para o exercício da profissão, o saber lidar com o excesso de informações, a consideração dos processos de edição e publicação de materiais e a dependência tecnológica dos sistemas de informática, entre outros, conflita permanentemente com a necessidade dos aspectos éticos preceituados pela profissão. Entra aí a mediação dos conflitos de interesses entre setores diversos da sociedade, as atitudes frente às pressões do mercado, a consciência da mídia como esfera pública de debates e o entendimento do próprio 13
BUCCI, Eugênio, op. cit., p. 12 ARBEX JÚNIOR, José apud PADILHA, Sônia. Uma visão além do pragmatismo, in: Jornalismo Investigativo/Dirceu Fernandes Lopes e José Luiz Proença (orgs.), p. 62 14
70
trabalho jornalístico como ainda carente de regulamentação específica e que não valoriza a formação acadêmica. No equilíbrio dessas forças, o jornalismo ganha uma base qualificada capaz de convidar a sociedade a exigir dele mesmo maior compromisso e responsabilidade. Se isso se reproduzir para outras esferas sociais além da mídia, significa que é a sociedade que passa a exigir das instituições que a representam seus próprios limites éticos. A crise das instituições públicas na contemporaneidade porém, é um empecilho a tal condição. Conforme Arbex, esse é o problema no Brasil, porque não existem instituições públicas que imponham esses limites [como o uso de grampos ou disfarces na reportagem]. O povo brasileiro, hoje, vive uma espécie de terra de ninguém no campo da Ética .15 Terra de ninguém também era o Brasil à época do descobrimento . Isso do ponto de vista dos portugueses, que ali representavam uma instituição: a Coroa Portuguesa. A comunidade lusitana não estava preocupada com possíveis desvios éticos e morais que porventura a expedição viesse a cometer, desde que os benefícios econômicos por ela prometidos fossem trazidos na viagem de retorno. Voltando à figura dos degredados, Caminha comenta sobre o serviço que eles prestariam no reconhecer dos modos de vida dos nativos. Mas os índios não aceitaram com facilidade a presença dos estranhos. Descartados pelos portugueses, os infelizes criminosos também foram recusados pelos índios, que os devolveram aos descobridores. O leva-e-traz se repetiu algumas vezes, até os índios certificarem-se da presença amigável de seus visitantes. Diz um trecho da Carta:
Voltamos, e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com eles, o qual levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse. Não trataram de lhe tirar coisa alguma, antes mandaram-no com tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, que lhe desse aquilo E ele tornou e deu aquilo, em vista de nós, a aquele que o da primeira agasalhara. E então veio-se, e nós levamo-lo.16
A ordem de Cabral era que eles fossem com os indígenas e lá permanecessem: E o Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias [capitão de uma das naus] que fossem lá à aldeia e que de modo algum viessem dormir às naus, ainda que os mandassem embora .17 Prisioneiro do compromisso técnico e da responsabilidade ética e social, o jornalista é o degredado contemporâneo. Ele está desterrado da modernidade, onde a concepção de verdade era sólida. Ela, agora, em outro território, abre-se para versões e representações 15
Ibidem, p. 67 CAMINHA, Pero Vaz de, op. cit., p. 5 17 Ibidem, p. 9 16
71
multifacetadas. Não admitindo as novas implicações e exigências de seu trabalho, esse degredado resigna-se em buscar a redenção servindo como instrumento à instituição que, mesmo opressora, também pode lhe libertar. Colocando-se com mediador entre nativos e portugueses, o degredado-jornalista assume uma posição de risco. Tem a credibilidade desgastada porque carrega erros históricos sobre os ombros. Não consegue atender razoavelmente bem uma ou outra demanda e manter-se equilibrado no jogo entre senhores é tarefa árdua. Em vez de lutar por maior autonomia e independência, o jornalista pós-moderno dispensou a ética de seu barco profissional e afiliou-se a uma postura de etiqueta
aquela
que, mesmo transparecendo a figura do bom moço, não traduz as reais intenções dele com o mundo. Segundo Bucci, a eticidade presente nas normas de etiqueta refere-se a uma estética de comportamento, a um receituário de boas maneiras frente aos poderes constituídos e à sociedade e não representa, pois, nenhuma ação inquiridora da realidade que possa perturbar a ordem vigente:
A etiqueta é a pequena ética pela qual se estrutura a gramática dos cerimoniais. Ela pacifica, erguendo-se pelos gestos que representam, ritualizam e reafirmam as relações sociais e de poder: para o rei, os súditos se curvam; do bispo, beija-se o anel; os talheres sempre de fora para dentro. (...) Ela não se pergunta do poder. Ela não inquire nem deixa inquirir.18
Fica claro aí o processo de subordinação ao qual o jornalismo está submetido. Trata-se de cumprir as regras de um código de conduta corporativo em detrimento do código de ética profissional, mais aberto e flexível mas não menos exigente, para transparecer um boa imagem diante do patrão e diante do público
seu cliente. Ou, para valermos da analogia,
diante do português e dos selvagens. A vitória contra a etiqueta ocorre quando, a partir da adoção de uma postura ética, a cidadania é incentivada, criando um ambiente de conflito, ao menos no campo do jornalismo, onde a conivência com arbitrariedades é rechaçada. Ainda de acordo com Bucci, nas decisões cotidianas do jornalismo, sempre alguém sai ganhando e alguém sai perdendo. E isto não é só em relação ao público que está fora das redações, mas entre os próprios funcionários, colegas de profissão. Nesse ambiente interno, temos o repórter que faz um texto coerente e completo, mas temos também o editor que deturpa esse mesmo texto, mudando o enfoque, inserindo palavras, parágrafos e novas idéias. Temos uma manchete que é mudada para atender certo sensacionalismo à revelia do autor ou do contexto. Temos ainda uma matéria que não sai para dar espaço à publicidade fechada na 18
BUCCI, Eugênio, op. cit., p. 10
72
última hora. Entre outras coisas, essas são decisões que o público desconhece, mas que afetam diretamente o modo de processar a informação. Os produtores de informação sabem disso e relegam a último plano o debate sobre o que rege suas decisões. E toda decisão jornalística é, em suma, uma decisão de efeitos éticos . O problema é que, conforme observa Kunczik, os jornalistas não estão preparados para assumir a responsabilidade das conseqüências de suas ações. Segundo um estudo citado pelo autor, a maioria dos jornalistas atua segundo uma ética de valores absolutos quando precisa assumir a responsabilidade pelas conseqüências não-intencionais de suas reportagens. Quem toma as decisões de acordo com essa diretriz
ou seja, despreza, em nome de valores
universais, os efeitos de ações específicas e imediatas
geralmente tende a negligenciar as
conseqüências, potencialmente negativas, geradas por seu trabalho. Comenta Kunczik,
A ação eticamente responsável significa que ela diz respeito não somente à seleção dos meios para se alcançar um fim especifico, mas também à comparação de valores isto é, os objetivos finais entre si e aos possíveis efeitos de um determinado curso de ação não apenas no tocante à consecução de seus próprio objetivo imediato ou final em uma seqüência direta, mas também diretamente ou através dos canais indiretos sobre os outros valores. O ator eticamente aceita a responsabilidade pelas conseqüências, intencionais ou nãointencionais, da ação.19
Para minimizar essa deficiência, é crucial agregar ao trabalho jornalístico, além de uma boa performance na técnica que o ofício exige, os aspectos éticos a ele relacionados. A partir do ponto de vista de Kunczik, a liberdade irresponsável dos meios de comunicação pode tornar-se muito perigosa não somente ao estatuto da cidadania, mas também à própria permanência do jornalismo como fator de credibilidade no âmbito social e na arena mercadológica. Ao contrário do que se poderia imaginar, Kunczik adverte que a profissionalização do jornalista, entendida como algo além da melhoria na formação acadêmica, não é absolutamente desejável para equilibrar os pesos entre técnica e ética: Nas democracias, não é desejável a profissionalização completa do jornalismo. (...) O resultado seria uma forte homogeneização dentro do jornalismo, assim como maior resistência à crítica leiga .20
19 20
KUNCZIK, Michael, op. cit., p. 41 Ibidem, p. 52
73
Quando há homogeneidade no campo jornalístico, há a perda de autonomia de seus agentes
os jornalistas. O jornalismo, não custa repetir, se define sempre como campo de
conflito, e os jornalistas precisam configurar terreno neutro onde possam tomar as decisões. Daí a necessidade da ética, daí a necessidade de assumir responsabilidades. Dentro da profissionalização indesejável , o fetiche da velocidade denunciado por Moretzsohn também é considerado por Kunczik como elemento preponderante nas coberturas precárias do jornalismo atual. Encarar a velocidade da informação e a pretensa necessidade de atualizar o mundo a cada dia como algo nocivo à percepção da realidade e à visão histórica do mundo pode ser um primeiro passo em direção a autonomia profissional do jornalista e a autonomia da construção de pensamento de seu público. Na proposta de Kunczik,
Seria muito mais útil para a realização da autonomia profissional reduzir a importância da atualidade no trabalho jornalístico. Caso se considerem valiosas somente as notícias de atualidade, as notícias cuidadosas, completas e bem-investigadas continuariam sendo a exceção. A escravidão à atualidade prejudica todas as outras normas jornalísticas, como a investigação cuidadosa, e aumenta a probabilidade da crítica leiga. (...) O passo mais importante para se melhorar qualitativamente o jornalismo seria livrá-lo da pressão da atualidade.21
Embora se faça jornalismo, os critérios do trabalho jornalístico na pós-modernidade atendem às exigências da ética do mercado e às subjetividades dos indivíduos, e não da ética pertinente à profissão e ao profissional. Inexiste a ponderação acerca dos efeitos éticos e conseqüências públicas que as decisões dentro das redações acarretam sobre a credibilidade do jornalista, do veículo para o qual trabalha e sobre a percepção da realidade por parte do público. O que Bucci chama de síndrome da auto-suficiência é uma noção cristalizada nas redações de que o jornalista está referenciado por ele mesmo, que sua decisão é inquestionável pois, no aspecto eminentemente técnico, ninguém mais pode tomar aquela decisão. Na verdade, é uma ética convergente à própria arrogância do jornalista e restrita ao modo industrial de fabricar notícias. Desconsidera-se aí o mais importante: a presença de outros no outro lado. Quando a imprensa nega a si mesma e ao cidadão o direito à discussão ética e o dever da auto-análise, desrespeita aquele que a sustenta e a legitima. O bom jornalismo e o cidadão são as primeiras vítimas dessa arrogância e dessa negligência. A autonomia não pode ser confundida com a auto-suficiência. Agir de forma autônoma significar considerar as responsabilidades que o jornalismo exige em relação aos outros. Do 21
Ibidem, p. 52
74
contrário, quando o jornalismo imagina bastar-se a si mesmo como referência, ocorre a tirania contraponto imediato à democracia. Comentando Barry Bingham, Kunczik cita: Não se pode ter uma imprensa livre se ela se comporta irresponsavelmente. A idéia de que nossa missão seja tão alta que ninguém possa questionar nosso desempenho é ilógica .22 No otimismo aparentemente exagerado do professor Francisco Karam, enquanto expressões como interesse público, relevância social, autonomia, liberdade de escolha e direito de saber estiverem sempre subindo à superfície nos debates do campo jornalístico, haverá uma utopia a ser perseguida por um jornalismo mais equilibrado. Ele anota: O fato de se tratar de uma utopia, entretanto, não nos faz deixá-la de lado, tal como a utopia da plenitude democrática em todas as instâncias ou a da felicidade individual plena .23 Posteriormente à partida da expedição de Cabral do Brasil nada se soube quanto ao destino dos grumetes desertores. Com relação aos degredados, no entanto, eles reapareceram dois anos mais tarde em Lisboa e suas contribuições à Coroa ficaram eternizadas nas crônicas oficiais. Segundo o informe de Bueno,
Vinte meses após seu comovente choro na praia [quando os criminosos foram deixados no Brasil], Afonso Ribeiro e seu companheiro foram resgatados pela expedição que D. Manoel mandara para reconhecer a nova terra - e na qual ia, como piloto, o florentino Américo Vespúcio. Levados de volta para o reino, os dois condenados tiveram que comparecer perante o tabelião Valentim Fernandes para dar um depoimento minucioso sobre sua permanência de quase dois anos na Bahia.24
De acordo com determinações do rei D. Manoel, qualquer degredado poderia retornar a Portugal se pudesse cooperar com informações importantes sobre o lugar do exílio. Os préstimos dos criminosos não só renderiam a absolvição pelos crimes praticados como também uma gratificação em dinheiro. Bueno nota que os dois condenados em questão não foram os únicos degredados da frota de Cabral a prestar bons serviços para a Coroa. Outros foram deixados na Etiópia e no Quênia, por exemplo, e puderam contribuir com muitas informações para as novas expedições portuguesas. Porém, entre todos os degredados, foi Afonso Ribeiro que cumpriu um papel histórico sem igual:
22
BINGHAN, Barry apud KUNCZIK, Michael, ibidem, p. 49 KARAM, Francisco José. A ética jornalística e o interesse público, p. 247 24 BUENO, Eduardo, op. cit., p. 112 23
75
Foi a partir do relato de Ribeiro que Américo Vespúcio redigiu a carta Mundus Novus - na qual rebatia frontalmente a tese de Colombo de que as terras recém descobertas eram parte das Índias. De todo modo, como se verá, Vespúcio não baseou sua teoria apenas no relatório que obteve, em primeiríssima mão, deste degredado, mas serviu-se também da conversa que mantivera algumas semanas antes com o próprio Pedro Álvares Cabral.25
Muitas contradições, lendas e polêmicas rondam a figura de Vespúcio. A América foi batizada com a versão feminina de seu nome, muito embora fora Cristóvão Colombo o descobridor por direito do continente. Vespúcio fez relatos de quatro viagens feitas às terras americanas. O certo, porém, é que esteve no Brasil em duas ocasiões: 1501 e 1504. A carta Mundus Novus, resultado da primeira viagem, teve mais de 40 edições em seis línguas. Os relatos da segunda viagem inspiraram o escritor Thomas Morus a escrever o clássico A Utopia. O livro de Morus trata do ideal de uma sociedade perfeita tipificada em uma ilha distante. O projeto fantasioso do escritor carregou no termo utopia , um neologismo à época, a noção de delírio e de impossibilidade. Mas a utopia do jornalismo, aquela relevada antes por Karam, trata de possibilidades, de ações realizáveis em terras próximas. Talvez nem tão próxima como a ilha de Fernando de Noronha (inspiração à literatura de Morus) e nem tão distante e mítica como a Atlântida de Platão mas, ainda assim, um lugar existente, onde o papel de instituições, como a do jornalismo, pudesse ser aperfeiçoado. Quem sabe ainda haja tempo para o jovem degredado de outrora se converter agora em velho sábio. O futuro do jornalismo poderá estar encarnado nele. Nas experiências, nos conhecimentos e nos relatos capazes de contribuir à escritura de um mundo novo , tal qual Afonso Ribeiro cooperou com informações para uma nova cartografia no tempo das navegações. Ao jornalista contemporâneo não seria o caso de desertar dos próprios valores, mas reconhecer as falhas e, mesmo às duras penas, perseguir o equilíbrio ético e a utopia personificada na profissão. Se o criminoso, a despeito de seus atos errados, perdesse a oportunidade de tornar-se útil novamente, teria o mesmo fim obscuro dos grumetes. Nesse caso, redimir-se será mais urgente que libertar-se. Não está no veneno o próprio antídoto?
25
Ibidem, p. 113
76
5. A SERVIÇO DO REI A elite dominante domina a grande mídia
Ele também carrega uma gaiola dentro de si, uma prisão, seu luto pessoal. VANESSA BENCZ (In: A gaiola no pássaro)
O relato de Pero Vaz de Caminha se tornou a fonte mais confiável, mais bem redigida e detalhada sobre os primeiros dias no Brasil. É necessário fazer tal reconhecimento, embora logo se verá que o que Caminha fez não foi gratuito. As cartas de Vespúcio ganharam fama e publicidade nos idos de 1500 mas, no decorrer no tempo, perderam credibilidade devido às imprecisões nos dados e à precariedade na escrita. Mesmo da frota de Cabral, muitos outros registros foram feitos por religiosos, fidalgos, nobres, escrivães e até por tripulantes. Esses escritos, tanto oficiais como pessoais, de uma forma ou de outra desapareceram ou perderamse nos arquivos de Lisboa. O próprio Caminha não era o escrivão oficial da armada de Cabral cargo ocupado por Gonçalo Gil Barbosa ; cada navio da frota tinha lá seus próprios cronistas. O que chama a atenção é, além do fato de o texto caminiano ter-se preservado, a qualidade profissional da redação do escriba, se comparado ao amadorismo de outros relatos da ainda recente arte de reportar as viagens marítimas. No entanto, essa característica não foi casual nem espontânea: tinha uma intencionalidade. Pero Vaz de Caminha escreve seu relato sobre o achamento do Brasil a partir de um ponto de vista bem particular, mas não o bastante para que esteja desvinculado dos interesses da Coroa Portuguesa. Nem seu feito é um ato voluntário de benevolência para com o rei. Acenando com uma escrita atraente, Caminha objetiva uma benesse da Coroa. O interesse pessoal, escamoteado entre elogios e saudações, aparece no fim da Carta:
E pois que, Senhor, é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro o que d´Ela receberei em muita mercê. Beijo as mãos de Vossa Alteza.1
1
CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a el rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil, p. 12-13.
Conforme esclarece o texto de Bueno, Caminha queria que D. Manoel perdoasse seu genro, Jorge Osouro [sic], que fora condenado ao degredo na insalubre ilha de São Tomé, na África, em frente à costa do atual Gabão. Osouro [sic] fora condenado por ter assaltado uma igreja e ferido um padre em 1496 .2 Isso explica também uma questão anterior: o fato de Caminha não falar muito sobre os degredados que ficaram no Brasil. Se ele cometesse algum deslize a respeito da índole daqueles criminosos, estaria comprometendo seu projeto pessoal. Essa trama por trás do relato talvez não comprometa substancialmente o relato em si, mas abre precedente para relativizar a credibilidade e o pretenso profissionalismo de quem o escreveu. Não é uma conclusão definitiva, mas é uma possível: Caminha não escreve bem porque quer bem informar, mas porque quer impressionar seu primeiro leitor, quer seu relato destacado dentre as muitas cartas que D. Manoel receberia e, assim achar mercê diante da Vossa Alteza . As segundas intenções permeando as entrelinhas da Carta desconstroem aquela imagem romântica de Caminha a escrever na praia de Porto Seguro, sob a sombra de uma palmeira e ao som do canto do sabiá. Frondosas palmeiras, gorjeantes sabiás, papagaios esverdeados e araras multicores compunham a paisagem da praia mas, como Bueno sugere em seu livro, Caminha não escrevia ali.3 A bordo da nau Capitânia, empunhando a provável pena de ganso, sentado na bancada do convés sujo e pálido contrastante ao bonito sol de sexta-feira que assomava-se radiante sobre a provisoriamente batizada Ilha de Vera Cruz, Caminha se dispunha a relatar o que vira. Ao longe, quem sabe, o trinar das aves; por perto, o tagarelar redundante de papagaios dos marinheiros. Quando os portugueses deram vista da terra brasileira e cá perceberam seus habitantes, foram movidos pela curiosidade e estranheza. Pasmem: o rei não está nu; os índios estão. O assombro é crível a Caminha, desacostumado à nudez assim tão crua em contraponto aos europeus tão bem agasalhados. A paisagem do Velho Mundo, adornada pelo mercantilismo e recatada pela religiosidade, desfigurava-se diante do cenário virgem e inexplorado que oferecia-se aos olhares lusitanos. Esse assombro pode ser correlato ao jornalismo contemporâneo, onde não se reconhece mais a realidade crua, sem editorialização, sem maquiagem, sem enfoques, sem mediadores. No entanto é a mídia hoje que, mediando o real, dá a ele sentido e existência, conforme um ponto de vista próprio. O fato natural , sem edição, por assim dizer, não existe mais, se é que chegou a existir. Algo que Caminha procura dar relevo em seu texto é esse aspecto impressionista e paradisíaco do Brasil tão logo aqui aporta. Se todos assumirem esse mesmo ponto de vista em sua leitura, muitas outras 2 3
BUENO, Eduardo. A viagem do descobrimento: a verdadeira história da expedição de Cabral, p. 114 Cf. BUENO, Eduardo, ibidem, p. 113
78
angulações ficarão de fora. O olhar diferente será por certo ignorado, desconfiado, desautorizado. A despeito de outros olhares, o que importa para o escrivão é atrair o olhar benevolente de D. Manoel. De resto, também, Caminha está a serviço do rei. Relata o que vê com a predisposição de destacar o que deseja o colonizador, baseado nos hábitos e costumes portugueses. Sua visão etnocêntrica o faz deslumbrar sobre o significado daqueles corpos nus e pintados, tão naturais e inocentes. Praticamente convidando-se à catequese real:
A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de roque [torre] de xadrez. E trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põe estorvo no falar, nem no comer e beber.4
Caminha foi designado escrivão da frota de Pedro Álvares Cabral, encarregada de erguer um posto comercial nas Índias, onde ele seria o futuro contador. Prático com as letras e os números, ele tinha a estima do rei português pelos serviços contábeis prestados à Corte. Interessava ao escriba um retrato agradável, não necessariamente fiel, da terra de Santa Cruz e dos acontecimentos que ali se sucederam quando do achamento . Caminha estava para a Corte Portuguesa como a grande imprensa está hoje para as elites dominantes. Tais elites, na concepção marxista daqueles que detêm a propriedade dos meios de produção, tanto industrial como do simbólico, têm na mídia sua representação, uma espécie de súdito, comprometidas numa condição de mútua dependência. Conforme nos faz crer o texto de Bueno, o empreendimento das grandes navegações era muito oneroso ao governo. Sobre a expedição de Cabral, especialmente cara, a Coroa não podia financiá-la sozinha. Por isso, D. Manoel, como antes fizera seu antecessor D. João II, estava associado ao capital privado .5 Banqueiros, duques, mandatários estrangeiros e mercadores particulares tinham investimentos diretos ou indiretos na missão que envolvia onze navios e duas caravelas. Antes de qualquer benefício ao povo português, D. Manoel tinha o compromisso com seus financiadores. Embora os donos de jornais e entidades representativas dos meios de comunicação atestem em seus discursos o mote da informação a serviço da sociedade e, no campo
4 5
CAMINHA, Pero Vaz de, op. cit., p. 3 BUENO, Eduardo, op. cit., p. 27
79
específico do jornalismo, o estatuto dos deveres deontológicos inerentes à profissão implique pensar o fazer jornalístico sempre em processo de aperfeiçoamento, o contexto da globalização na modernidade líquida
terreno onde impera a relativização dos valores
faz
com que a distância entre discurso e prática seja cada vez mais abissal. O espaço público de debates protagonizado pela mídia está tomado pelos interesses privados de grandes empresas e corporações. O ideal jornalístico proposto neste trabalho torna-se mais distante, mas não menos necessário. Conglomerados de mídia passaram a concentrar em si a agenda de discussões centrais da democracia moderna. Desempenhando funções que avançam os limites exclusivos da mídia, as organizações estendem seus tentáculos nos diversos ramos da atividade humana e privilegiam interesses estabelecidos além das fronteiras da comunicação social. O professor José Francisco Karam, em A ética jornalística e o interesse público, discute conseqüências e perspectivas do jornalismo no cenário onde mídias cruzadas no campo da comunicação (rádio + TV + jornal + revista + telefonia + internet + tecnologias) e além desse (mídia + bancos + investidores + governos + indústrias + outros), assumem responsabilidades distantes daquele compromisso primeiro com a informação e com o público. Não deve ser surpresa se uma empresa trabalha aqui com publicidade e propaganda e investe acolá na indústria de agrotóxicos. Neste movimento há a homogeneização da agenda pública de debate, de prioridades e de construção da realidade, na busca do que Karam considera como a promoção de um pensamento único aliado e benéfico aos pólos de poder. Há a privatização do espaço público, que compromete a democracia. (...) Desse modo, o consenso passa a ser produzido pela elite que domina os grandes conglomerados, articulada com as instituições públicas ou privadas vinculadas ao poder econômico e político , diz Karam.6 A mídia passa a exercer papel de escola, de igreja, de Estado e de juiz. E o que é pior, ganha legitimidade para isso. Como o rei, ganha reverência. A pluralidade é diminuída, o conflito é escondido e a produção de consenso é estimulada. As possibilidades de lucro e a influência que os meios de comunicação têm na política e na sociedade, fazem com que o interesse na aquisição de empresas de mídia por diferentes setores da economia cresça e estabeleça diferenciais competitivos relevantes em mercados nacionais e globais. Qualquer compromisso social do jornalismo e da mídia em geral fica, neste contexto, subordinado a projetos econômicos diversos.
6
KARAM, Francisco José. A ética jornalística e o interesse público, p. 235-236
80
Se o trabalho protojornalístico realizado por Caminha já estava comprometido com os centros de poder
Coroa Portuguesa e Igreja
desde a época da chegada dos portugueses em
terras brasileiras, a concentração da propriedade dos meios de comunicação nas mãos de poucos, a ingerência de outros setores na produção jornalística e a tendência à internacionalização não são características necessariamente novas. Embora bastante claras na atualidade, elas são herança do processo de globalização econômica iniciado lá pelo final da década de 60 e que ganhou aceleração nos anos 90 e agora, na primeira década do século XXI, mostra-se como um movimento contínuo e irreversível. Na avaliação de Caio Túlio Costa, a indústria da comunicação consolidou mudanças radicais em suas estruturas no limiar deste século, onde companhias globais ganharam posições de domínio na mídia através de incorporações, fusões e aquisições diversas envolvendo empresas, marcas e veículos jornalísticos. Apenas meia dúzia de conglomerados é responsável por mais de um terço da receita total entre as cinqüenta maiores companhias de mídia do mundo. São elas a Time Warner, que uniu-se à gigante da internet America Online (AOL) em 2000; a Walt Disney; o grupo francês Vivendi, que incorporou o Canal Plus, a Seagram (da indústria de bebidas, dona da marca Chivas Regal) e a rede norte-americana NBC (ligada à General Electric); o grupo Viacom, ao qual pertencem as emissoras CBS e MTV e os estúdios de cinema da Paramount; a alemã Bertelsmann, dona de uma das maiores editoras do mundo (Random House) e do selo musical BMG em parceria com a Sony; e, completando o sexteto, a australiana News Corporation, do magnata Rupert Murdoch, que opera com TV (Sky, DirectTV, Fox), cinema (20th Century Fox) e, além de uma infinidade de revistas, editoras e jornais (como o The Sun e o The Wall Street Journal), também como investidora do time de beisebol Los Angeles Dodgers. Não bastasse a participação transversal e monopolizadora em diversos setores da economia e da cultura, três destes grandes grupos têm direção familiar: Viacom (de Summer Redstone), Bertelsmann (de Carl Bertelsmann) e News Corporation (de Sir Keith Murdoch, pai de Rupert Murdoch). Somam-se ao trio outros dois grupos que estão entre as maiores empresas familiares do mundo: Thomson Corporation (Canadá), do ramo de jornais, e Dogus (Turquia), de Ayan Sahenk, com presença em mídia, tecnologia, setor automotivo e de serviços financeiros.7
7
COSTA, Caio Túlio. Modernidade líquida, comunicação concentrada, p. 2-3. Disponibilizado em <http://www.dnabrasil.org.br/site/publique/media/Midia%20Paper%201.pdf> e não mais disponível. Paper publicado na Revista USP, v. 66, p. 178-197, 2005. Informações complementares foram retiradas dos sites das empresas.
81
Apesar da queda da monarquia, o reinado dos grupos familiares continua e a concentração no mercado da mídia internacional amplia-se cada vez mais. Fugindo do campo estrito do jornalismo ou da comunicação em geral, corporações monopolistas dominam a cadeia produtiva da indústria cultural como a do cinema, por exemplo, e se posicionam estrategicamente em áreas específicas da economia global como a de suprimentos de informática ou de tecnologias para transmissão de dados. A Sony Corporation, multinacional japonesa proprietária dos estúdios MGM e Columbia Tri-Star, além de forte participação na indústria de eletroeletrônicos, formou em 2001 com a companhia sueca Ericsson a Sony Ericsson Mobile Communications para fazer frente à produção de aparelhos celulares no mundo. Seguindo o exemplo da concorrência, a Nokia, gigante finlandesa das telecomunicações, fundiu-se em 2006 com a Siemens, companhia alemã de produtos eletrônicos e de geração de energia, na formação da Nokia Siemens Networks. O apetite dos grandes grupos parece insaciável. Com base nos estudos de Sally Burch, Osvaldo Leon e Eduardo Tamayo,8 Costa informa que nos meados dos anos 80 era em torno de cinqüenta o número de corporações midiáticas transnacionais. No início da década de 90, ficou reduzido a 27. E inaugurou o novo século com menos de dez.9 A tendência oligopólica mundial, encabeçada pelos conglomerados já citados estabelecidos nos Estados Unidos, na Europa e no Japão tem, numa segunda hierarquia, setenta outras empresas de mídia espalhadas por diferentes países e continentes, segundo Costa. São redes de televisão e de rádio, grupos editoriais, agências de notícias, empresas de publicidade, institutos de pesquisas, jornais diários, provedores de internet, entre outros segmentos que exercem influência nacional ou regional e que controlam nichos específicos no mercado de comunicação. No plano latino-americano tem-se a rede Televisa no México, o grupo Cisneros na Venezuela, o Clarín na Argentina e as Organizações Globo no Brasil. França, Itália, Canadá, Austrália, Portugal, Espanha, Rússia entre outros países, também mantêm em seus quintais potências midiáticas que, direta ou indiretamente, se relacionam e prestam reverências ao seleto grupo dos conglomerados de alcance global. No país, a situação parece um microcosmo do que acontece em nível mundial. Oligarquias regionais e controle familiar formam o dueto da administração nas empresas de mídia. Dados do Instituto de Estudos e Pesquisas em Comunicação (Epcom) divulgados pelo
8
A obra do trio referenciada por Costa é BURCH, Sally; LEON, Osvaldo e TAMAYO, Eduardo. Se cayó el sistema Enredos de la sociedad de la informacion. Quito: Agência Latino Americana de Información, 2003. 9 COSTA, Caio Túlio, op. cit., p. 4.
82
Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) em 2008 revelam que 271 políticos entre prefeitos, deputados estaduais e federais, governadores e senadores, são sócios ou diretores de empresas emissoras de rádio e televisão, condição não permitida pela Lei. O maior volume vem de prefeitos, os quais podem exercer controle local sobre os veículos conforme suas bases eleitorais. A pesquisa leva em conta os vínculos diretos e oficiais dos políticos com as emissoras e não registra as relações informais através de parentes e laranjas que retratam outra grande parte da promiscuidade entre parlamentares e meios de comunicação.10 De um tipo de privilégio a outro, sobre a participação de famílias na mídia, Costa revisa:
No Brasil, nas três últimas décadas do século passado, eram dez grupos familiares que controlavam a quase totalidade dos meios de comunicação de massa: Abravanel (SBT), Bloch (Manchete), Civita (Abril), Frias (Folha de S.Paulo), Levy (Gazeta Mercantil), Marinho (Globo), Mesquita (O Estado de S.Paulo), Nascimento Brito (Jornal do Brasil), Saad (Bandeirantes) e Sirotsky (Rede Brasil Sul).11
Como segue o autor, na virada do milênio, a família Bloch saiu de cena devido a problemas de gestão e à falta de habilidade em acompanhar seus concorrentes, principalmente a Globo. A Gazeta Mercantil e o Jornal do Brasil, bem como a gestão do grupo Estado, foram para o controle do empresário e investidor Nelson Tanure. Das dez famílias, seis atravessaram o amanhecer do novo século e sobreviveram. Mas com uma diferença: têm agora à sua sombra a participação do capital estrangeiro em seus ativos. A Globo, por exemplo, virou sócia do grupo de Murdoch na Sky Brasil. O grupo da Folha de S.Paulo cedeu 20% de seu capital para a Portugal Telecom. O grupo Abril, por sua vez, tem ações negociadas por fundos de investimentos norte-americanos. Políticos, famílias e, agora, investidores. Da herança patriarcal à abertura econômica mundial, ciclo onde se inserem o processo de consolidação da internet como negócio, a dissolução das fronteiras geográficas nacionais e a inserção de novas tecnologias que operam em plataformas multimídias, o estatuto de um jornalismo responsável e isento também cai na teia das grandes corporações: emaranhado difícil de desatar. Se fosse possível o jornalismo navegar ao largo desse processo, seria como se Caminha pudesse escrever seus relatos sem a tutela da Coroa ou, mesmo tendo, tivesse a liberdade de escrever o que quisesse. Empresas e
10 11
Conforme informativo divulgado em <http://www.fndc.org.br/> COSTA, Caio Túlio, op. cit., p. 5
83
investidores de setores da economia exteriores à comunicação configuram um elemento novo na teia midiática, segundo observa Costa,
É que empresas cuja, tradição não se encontra na indústria da comunicação (nem na indústria da distribuição e, muito menos, na indústria do conteúdo) começam a dominar um sistema tradicionalmente tocado por famílias ou empresas cujas marcas impuseram-se, principalmente, pela construção de conteúdos, mesmo quando dominavam toda a cadeia, da produção à distribuição.12
Exemplo disso é a francesa Vivendi, vinda do ramo do comércio de água, os jornais Le Fígaro e L Express, que dividem as prateleiras do grupo Dassault com armamentos e aviões de combate, e ainda um outro grupo francês, o Lagardère, que detém participação no Le Monde e também é do ramo de armamentos, além de fusões entre grupo de origens diversas já citadas anteriormente. No Brasil, o grupo Docas Investimentos, do já mencionado Nelson Tanure, tem em sua carteira, além de jornais, editoras (Peixes e Três) e canal de televisão (CNT), também armazéns portuários, empreendimentos imobiliários e até academias de ginástica. O movimento de adensamento e concentração das empresas midiáticas, atraindo para si empresas provenientes de outros segmentos além, é claro, das incorporações restritas ao próprio setor, não é, contudo, produto direto da convergência digital protagonizada pela internet. De acordo com o trio Burch, Leon e Tamayo,
A força motriz da atual concentração midiática e cultural é a busca incessante do lucro. (...) O que impulsiona as grandes empresas a sair de seus marcos nacionais rumo à conquista dos mercados globais é o afã de obter os maiores ganhos no menor tempo possível, sem meditar sobre os meios que irão empregar para conseguir seus fins.13
Costa relativiza a solidez de tal argumento pois,
A questão dos maiores ganhos é imanente ao próprio sistema da indústria cultural. Os meios para obter determinados fins (os lucros) estão inseridos na indústria da cultura, independentemente do formato da mídia, desde que ela se estabeleceu enquanto indústria de escala, no século XIX.14
12
Ibidem, p. 8 BURCH, Sally; LEON, Osvaldo e TAMAYO, Eduardo apud COSTA, Caio Túlio, ibidem, p. 7 14 COSTA, Caio Túlio, op. cit., p. 7 13
84
Seguindo uma sugestão do autor, explicação mais consistente encontra refúgio na idéia de irracionalidade e cegueira moral da competição de mercado abordada por Bauman. Conforme o sociólogo polonês,
A desregulamentação universal a inquestionável e irrestrita prioridade outorgada à irracionalidade e à cegueira moral da competição de mercado , a desatada liberdade concedida ao capital e às finanças à custa de todas as outras liberdades, o despedaçamento das redes de segurança socialmente tecidas e societariamente sustentadas, e o repúdio a todas as razões que não econômicas, deram um novo impulso ao implacável processo de polarização, outrora detido (apenas temporariamente, com agora se percebe) pelas estruturas legais dos estados do bem-estar, dos direitos de negociação dos sindicatos, da legislação do trabalho e numa escala global (embora, neste caso, de modo muito menos convincente) pelos primeiros efeitos dos órgãos internacionais encarregados da redistribuição do capital.15
A abordagem também ganha respaldo em Octavio Ianni, naquilo que chama de desterritorialização:
Os novos conglomerados empresariais atuam por cima dos Estados e vinculam suas atividades a um cenário mundial, atendendo à nova demanda do capitalismo e ignorando as fronteiras formais de cada país. Formam-se estruturas de poder econômico, político, social e cultural internacionais, mundiais ou globais descentradas, sem qualquer localização nítida, neste ou naquele lugar, região ou nação.16
Para Robert McChesney, a pressão capitalista em prol da desregulamentação neoliberal no campo da mídia,
Significa o relaxamento ou a eliminação de barreiras à exploração comercial e à propriedade concentrada de meios de comunicação. Não há nada inerente à tecnologia que exija o neoliberalismo; novos meios digitais poderiam ser usados, por exemplo, simplesmente para melhorar a comunicação pública, caso a sociedade preferisse fazê-lo. Contudo, com os valores neoliberais, a televisão, que foi uma reserva não comercial em muitas nações, tornou-se repentinamente sujeita à evolução comercial multinacional. Ela está no centro do sistema de mídia global emergente.17
15
BAUMAN, Zygmunt, O mal-estar da pós-modernidade, p. 34 IANNI, Octavio apud KARAM, Francisco José. A ética jornalística e o interesse público, p. 231 17 McCHESNEY, Robert W. Mídia global, neoliberalismo e imperialismo, in: Por uma outra comunicação/Dênis de Moraes (org.), p. 223 16
85
Fosse apenas motivado pelo desenvolvimento tecnológico a sua época, D. Manuel teria atrasado o movimento das grandes navegações. A busca pelo ouro em terras desconhecidas e desregulamentadas no Novo Mundo o fez correr e concorrer com expedições espanholas, holandesas e inglesas, entre outras. O que se testemunha atualmente define uma nova campanha marítima na luta pela hegemonia, agora no mar das informações e nas ondas da internet, onde a figura de Caminha está tipificada no jornalismo e o conjunto da mídia nas naus que relativizam as distâncias entre continentes. A nova aventura tem, no mercado, sua bandeira e, pelo capital, sua reverência. A promoção do mercado como referente global suprime em grande parte a utilidade dos elementos regulatórios dos estados nacionais como leis e instituições ou, numa perspectiva mais otimista, os tornam flexíveis, maleáveis e contornáveis. A flexibilidade dos conceitos é mais um componente da condição pós-moderna. Ela permite aos conglomerados atuarem no contexto mundial passando por cima de qualquer marco regulatório. Ou seja, as regras podem ser mudadas enquanto o jogo ainda acontece. Foi através desse tipo de facilidade que a legislação brasileira passou a permitir, a partir de 2002, a participação do capital estrangeiro sobre a propriedade de empresas jornalísticas nacionais, limitada à cota máxima de 30%. A mudança constitucional foi forçada pelos grupos de mídia carentes de crédito para pagar dívidas e valorizar seus ativos. Francisco Karam vê na sociedade regulada pelo mercado um entrave à democracia:
Os conglomerados adquiriram um peso desproporcional e tornam-se privilegiados no contexto de uma sociedade civil mundial . Superam os partidos políticos, os sindicatos, os movimentos sociais e as administrações públicas, restringindo a liberdade do debate democrático e gerando um oligopólio.18
O peso das decisões democráticas antes depositado em instituições públicas e políticas migrou para a área econômica. A economia é o altar onde reina o deus mercado, feito onipresente em nível planetário pelos avanços tecnológicos da mídia e pelo processo de globalização com um todo. A perspectiva futura, nesta condição, é temerária. Irrompe-se aquilo a que se chama de incentivo ao pensamento único ou à produção de consenso. Redução dos gastos públicos, controle da inflação, redução de impostos, privatizações, luta contra o aquecimento global, práticas ecologicamente corretas, flexibilização de taxas alfandegárias, reformas políticas e constitucionais são alguns exemplos de temas que habitam o universo do
18
KARAM, Francisco José, op. cit., p. 231
86
pensamento único. Através da mídia, eles ganham ares de palavras de ordem e imperativos de ação imediata. De acordo com Karam,
Em tal cenário, a mídia integra-se perfeitamente, sem muito peso na consciência, considerando que seu negócio da comunicação é mais um entre outros no processo de produção do capital. No entanto, as conseqüências da informação ou desinformação jornalística são relevantes do ponto de vista da formação da cidadania e do acesso democrático e imediato a diferentes setores sociais onde se produzem ações e declarações enfim, eventos de qualquer ordem que beneficiam ou prejudicam as pessoas, isto é, a vida individual e a sociabilidade.19
Estaria o jornalismo alijado de seu sentido histórico, de seu ideal como forma de conhecimento e como mediador angular das discussões no espaço público? Ou, valendo-se da pergunta que Karam esforça-se em responder com responsabilidade: Protegida pelo acervo econômico-financeiro vinculado ao poder político, poderia a informação jornalística cumprir, no início do novo milênio, as finalidades para as quais apontaram os códigos éticodeontológicos profissionais durante ao século XX? .20 Na proposição do jornalista José Luis Martínez Albertos, o discurso jornalístico pertence à modernidade e não à pós-modernidade lugar onde a construção de uma sociedade livre e autônoma está sufocada pelos imperativos neoliberais. A posição tradicionalmente ocupada pelo jornalismo e pelos jornalistas dará espaço a uma outra coisa definida, no que Martínez arrisca-se a dizer, como sendo a provisão on line de material de consulta para navegar pelo ciberespaço, que substituirá vantajosamente o trabalho social que até agora as sociedades modernas encomendavam aos jornalistas .21 O pensamento é de extremo pessimismo e, além não encontrar sustentação própria, permanece indefinido sobre o que virá após 2020, ano em que Martínez prevê o fim dos jornais impressos e, de quebra, a queda da própria instituição do jornalismo. Já para Costa, o jornalismo perdeu proeminência e não será mais o principal ator no espetáculo da comunicação :
A desagregação da esfera pública se traduz num jogo de comunicação entre múltiplos agentes que mimetizam facetas e técnicas da imprensa e as usam segundo as respectivas necessidades e interesses. Hoje, para que algo vire notícia, independentemente desse algo próprio, existe o trabalho planejado e profissional de lobistas, assessores de imprensa, analistas corporativos, assessores governamentais, blogs de analistas independentes, informações dispersas nas redes corporativas e 19
Ibidem, p. 232 Ibidem, p. 230 21 ALBERTOS, José Luis Martínez apud KARAM, Francisco José, ibidem, p. 237 20
87
acadêmicas, além das outras fontes tradicionais de informação. Nos lances de tensão nos quais se dá formato às notícias e ao espetáculo que a envolve na mídia, cada jogador atua com o seu peso e sempre de forma assimétrica.22
Mais ponderado, Ignacio Ramonet registra: Se nos perguntamos sobre os jornalistas e seu papel na atual concepção dominante do trabalho informativo, podemos concluir que está em vias de extinção. O sistema informacional já não os quer . Ele coloca, porém um elemento condicional, a título de ser o peso fiel da balança: Se o jornalismo responder a uma pergunta, poderá não se extinguir: em que ele pode ajudar a resolver os problemas contemporâneos? .23 Karam caminha na trilha deixada por essa questão. No balanço das ondas do mercado, entre os altos e baixos das marés econômicas, uma conseqüência social natural poderia ser o cinismo do qual trata Peter Sloterdijk, a neobarbárie globalista retratada por Muniz Sodré, o descrédito relacionado à garantia dos direitos civis, a pasteurização do conhecimento ou, entre outros fins, o fim da história de Francis Fukuyama.24 Karam procura resgatar a própria noção humanista pertinente ao jornalismo e, mais ainda, presente no humano:
Neste sentido, o humano, como mediação representativa do concreto, pode contribuir tanto para a elucidação do mundo como para a sua construção e a afirmação efetiva de valores universais. O jornalismo, como forma de mediação da realidade e do conhecimento em movimento (...) também reflete e projeta o mundo. Sua realização implica igualmente desmitificar os discursos contraditórios e, muitas vezes, cínicos presentes no negócio mundial da produção informativa, que une informação isenta e lucratividade exacerbada, envolve interesse público e preservação de interesses de anunciantes, implica imparcialidade, mas também a sociedade de empresas da mídia com empresas de outros setores da produção, como se viu.25
A mídia, o jornalismo e o negócio da comunicação em geral devem ser o centro de uma discussão onde seja possível pensar seus limites, no sentido de constantemente reavaliar o papel social da imprensa e, além, pensar sobre o enovelado contexto onde ela está inserida, nas vias onde se cruzam o interesse corporativo e o público. É indispensável, de acordo com Karam, que o indivíduo, em sua individualidade como sujeito humano e em sua coletividade como ente social, se sinta representado através da mídia, essa entendida como palco democrático. Karam sai em defesa da ética do discurso de Habermas, como base moral 22
COSTA, Caio Túlio, op. cit., p. 19 RAMONET, Ignacio apud KARAM, Francisco José, ibidem, p. 239-240 24 Referência ao trabalho dos autores citados: para Sloterdijk, ver Crítica da razão cínica; para Sodré, O globalismo como neobarbárie in:Por uma outra comunicação/Dênis de Moraes (org.); e para Fukuyama, O fim da história e o último homem. 25 KARAM, Francisco José, op. cit., p. 244-245 23
88
mínima para que a sociedade perceba e se relacione com suas complexidades de modo mais autônomo.
Nessa perspectiva, haveria lugar para uma racionalidade não mais instrumental, mas procedimental de tipo ético . Nela, a argumentação moral geraria uma ética da responsabilidade convicta, que apontaria a fundamentação para que qualquer argumento e convencimentos sociais fossem minimamente honestos e operativos, em que os códigos deontológicos teriam papel relevante, desde que se aplicassem seus princípios. O espaço público em que atua a mídia não dispensaria, assim, a participação de todos, e seus argumentos e interesses poderiam expressar-se livre e equitativamente por meio dele.26
A ética habermasiana contracena com a postulada pelo mercado (ética do capital) na medida em que retira dessa seu potencial cínico e desarticula sua estratégia retórica, provocando necessariamente uma simetria entre o que se fala e o que se faz. Não se trata da prescrição de normas e regras morais, mas de um referencial ético capaz de dar impulso à ação comunicativa, a práxis outrora falada por Freire. Ao jornalismo cabe somente o esforço de permanecer jornalismo, referenciar-se em seus estatutos e, continuamente, tecer novas tensões dialéticas capazes de reafirmar a necessidade da democracia plena. A utopia jornalística ainda pode ser encarada como um projeto leitores, da sociedade
dos jornalistas, das empresas, dos
ao menos enquanto o homem for humano, demasiadamente humano.
Karam faz lembrar algo interessante: Até mesmo o mercado, a globalização, o totalitarismo, o pensamento único, expressões deste mundo, têm na vida cotidiana limites operativos, como a rebeldia, a indignação, a paixão, elementos que permanecem humanos .27 Beijo as mãos de Vossa Alteza ,28 termina o relato do missivista português. Sinal de paixão, reverência, medo, gratidão ou mera formalidade? Sim, força do hábito, do costume, do ato convencional. Deveria o jornalismo prostrar-se de joelhos frente ao discurso das elites, sejam econômicas, políticas ou midiáticas? Não seria mera prática de etiqueta, de modos à mesa . Parece que o eldorado democrático não se encontra na mídia, assim como o da liberdade não está no indivíduo ou o do capitalismo no acúmulo de riquezas. Os elementos não precisam estar hierarquizados, eles podem comunicar-se, serem complementares. O consumidor não precisa reverenciar-se ao consumismo, ou a democracia ao mercado, ou o mercado ao capital. Cada qual se estabelece e se firma conforme o confronto com seus
26
Ibidem, p. 246 Ibidem, p. 248 28 CAMINHA, Pero Vaz de, op. cit., p. 13 27
89
contrários. Beijando a mão real, talvez Caminha se pegasse imaginando num beijo nas mãos das moças tupiniquins. Anota o escrivão, até com certo pudor: Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam .29 Mas ele não se permitiu à paixão, ao envolvimento, ao despudor, ao risco. E muito menos se permitiu ao desvio do olhar: a paisagem era atraente. Perdeu, no entanto, a oportunidade de usar um elemento que está poucos metros à frente de qualquer olhar atento: a imaginação. Aí, aliás, algo que foge a qualquer domínio globalizante. O escrivão que fora mestre da balança da Casa da Moeda do Porto deixou pesar seu relato para o lado do rei e para si próprio. Seu projeto pessoal prosperou, embora ele mesmo não tenha testemunhado:
Não se sabe o efeito que a narrativa exerceu sobre D. Manoel. Sabe-se apenas que, ao ser informado que Pero Vaz fora morto no ataque dos árabes à feitoria de Calicute, o rei atendeu ao último desejo do primeiro cronista do Brasil: Jorge Osouro [sic] foi perdoado de seu crime em 1501.30
A Carta de Caminha é uma perspicaz alegoria para um simples pedido de extradição. Toda metáfora tem um preço , anuncia o texto de abertura do livro de Tognolli.31 Caminha pagou com a própria vida e, dessa maneira (e talvez só por essa), sensibilizara a Coroa ao resgate de Jorge Osório. Repetindo a pergunta de Ramonet mencionada antes: E o jornalismo, o que ele tem para oferecer?
29
Ibidem, p. 4 BUENO, Eduardo, op. cit., p. 114 31 TOGNOLLI, Claudio Julio. Mídias, máfias e rock n roll, p. 11 30
90
CONSIDERAÇÕES FINAIS E OUTROS INÍCIOS
O movimento das grandes navegações representou a busca de novas informações sobre as novas fronteiras do mundo. A descoberta de novas fronteiras atualizou a cartografia mundial. Da mesma forma, numa escala inferior, a título de uma curta travessia, esse projeto que por ora se conclui, representou a atualização, mais pelo viés sociológico e político do que pelo puramente jornalístico, de conhecimentos acerca das fronteiras da imprensa na contemporaneidade, de seus limites éticos e operacionais e de suas funções sociais e democráticas. Não representou, porém (e seria demasiada pretensão num ensaio acadêmico), o desenho de um novo mapa para o jornalismo, muito menos a concepção de uma nova geografia teórica para o campo da comunicação. Apenas realçou alguns meridianos e paralelos da planta jornalística que se tornaram trópicos referenciais à determinação de um redimensionamento do papel da imprensa. Se outra forma de comunicação é possível, ela não deve prescindir de inovações técnicas e de linguagem, mas também não deve perder de vista o ideal democrático. Entender o jornalismo como um módulo estamental da democracia demanda compreender as circunstâncias sociais, políticas, econômicas e institucionais que lhe dão suporte. Apesar dele falar no palco dos meios de comunicação, atinge e influencia com sua fala toda a sociedade, assim como por ela é influenciado. Apresentar, pois, os problemas da democracia, como a precarização de suas instituições, corresponde a também falar de problemas intrínsecos ao campo da comunicação. Nesse sentido, a proposta que esse trabalho teve de colocar em perspectiva temas relevantes ao jornalismo e à mídia comprova a necessidade de que qualquer abordagem estrita ao campo deve considerar sua transversalidade disciplinar. Essa dependência contextual e epistemológica parece ser uma das fragilidades no esforço acadêmico que há em compor uma teoria do jornalismo, bem como justifica a falta de consenso na elaboração dos estatutos éticos e regulatórios da profissão. Daí, muitas teorias, manuais e conceitos não darem conta da completude teórica que a área exige não dialogarem plenamente com a prática profissional e, ainda, não revelarem as dinâmicas sociais que permeiam tais teorias, manuais e conceitos. É a partir desse tipo de percepção, da contribuição do trabalho ao campo jornalístico e ao entendimento do contexto social que lhe dá origem, que o esforço empregado nesse projeto valida a combinação, numa mesma plataforma, de referenciais bibliográficos oriundos de
diferentes áreas, do campo estrito do jornalismo, passando pela literatura, história e política, até o campo maiúsculo da sociologia. A título de justificativa, é certo que a faceta tecnológica que tem a internet como alavanca se mostrou escassa, para não dizer ausente, nessa combinação. Um tanto pelo paradigma da tecnologia engendrar um caminho próprio dentro da pós-modernidade e, outro tanto, pela bibliografia especializada requerida pelo tema. Além, é claro, de extrapolar a limitação estrutural e até física do ensaio monográfico, bem como a minha própria limitação de conhecimento. Sobre a plataforma referida, ela definiu-se pela aplicação de recursos estilísticos, pela escolha do ensaio como forma e pelo uso do texto caminiano como referencial retórico, criando um conjunto que pretensamente conferiu ao trabalho um aspecto de originalidade. Por outro lado, o emprego das falas dos autores procurou marcar o tom de radicalidade em seus discursos. É por essa radicalidade, acredito, que o jornalismo deve buscar o aperfeiçoamento para sobreviver como instrumento democrático no mundo contemporâneo. Denunciar a velocidade como o grande fetiche da pós-modernidade (Moretzsohn); dar condições ao sujeito para buscar sua autonomia (Freire), sem com isso promover o individualismo, mas sim a politização que leva à emancipação social (Bauman); procurar o equilíbrio intrínseco à profissão do jornalista em relação aos seus contrapesos técnicos e éticos (Kunczik e Bucci); substituir a dominação patrocinada pelas elites pela cooperação com os ideais do jornalismo e, por conseguinte, do estado democrático e, entre outras ações, submeter os discursos das instituições sociais a uma condição de comprometimento e responsabilidade (Karam), representaram aqui apenas um ponto de partida em termos de propostas, teóricas ou filosóficas que sejam. Poderia ser acrescida a esse conjunto, a idéia de reinvenção da democracia
explícita na obra de Boaventura de Sousa Santos, que se
inaugura a partir da formação de um novo senso comum que contribuiria para a tarefa de emancipação cultural e social. Essa formação se daria através do processo de transição paradigmática colocado por Santos e prescreve um trabalho de transformação tanto do senso comum quanto da ciência para a criação de uma forma de conhecimento que, sendo prática (caráter do senso comum), não deixe de ser esclarecida (caráter da ciência) e, sendo sábia, não deixe de estar democraticamente distribuída. No que tange ao jornalismo de forma imediata, é Arbex Júnior quem sugere medidas práticas: criar um índice de programas de conteúdo que atentem contra a dignidade humana, a exemplo da campanha Quem financia a baixaria é contra a cidadania; elaborar um Código de Ética
que já existe mas não tem força de lei
e formar um Conselho para fiscalizar seu 92
cumprimento; desburocratizar o processo de concessão de rádios comunitárias; fazer a inclusão de um programa de leitura crítica da mídia na grade curricular da educação formal; entre outras.1 Ações como essas, porém, terão efeitos limitados se não estiverem dentro de um projeto político, pedagógico e teórico consistente e em permanente aperfeiçoamento. Então,
Para o jornalismo, restará, de todo modo, saber a maneira pela qual trabalha com seu objeto efêmero. (...) E, se a matéria-prima do jornalismo é a realidade cotidiana, domínio do movediço, do impreciso , um discurso não mistificador precisaria expor as limitações do trabalho de apuração e aceitar a dúvida como componente desse trabalho. (...) A dúvida que permite outras interpretações, que está na origem de toda possibilidade de transformação social.2
Ademais, esse trabalho trouxe uma fala que é própria da cidadania. Apenas tratou-se de conferir-lhe atualidade e contexto. Acredito que o agir dos indivíduos em relação à informação e ao conhecimento pode ser determinante às suas chances de felicidade. De modo correlato, a posição do jornalista e da instituição jornalismo informação e do conhecimento
protagonistas do campo da
pode determinar os níveis de sua legitimidade, tão altos
quanto maiores forem as oportunidades de atuação dadas aos seus legitimadores. A cidadania, na modernidade sólida , estava ligada à ação do Estado. Agora, na pós-modernidade ou na modernidade líquida, depende do direito de acesso às estruturas de informação, ou seja, está ligada diretamente a um processo democratizante dos meios de comunicação. Muitas iniciativas nascidas no âmbito acadêmico, em instituições políticas ou nas empresas jornalísticas, mesmo a passos lentos e isolados, estão contribuindo para o andar desse processo. A modo de ilustração, cito as pesquisas do grupo Doxa, ligado ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), os trabalhos do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (Nemp), ligado à Universidade de Brasília (UnB) e as ações do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), ligado a diversas entidades sociais. Tratar de temas tão atuais, de coisas que estão a se mover sob os pés, foi um risco que somou-se aos de escolher um formato não convencional de monografia e do uso de recursos da linguagem, dentre outros. Durante a fase final do trabalho, me deparei com pesquisas sobre a mídia que estavam sendo atualizadas naquele momento. Estatísticas sobre blogues e televisão, por exemplo, foram mudadas conforme essa atualização. Se em 2007 havia poucas fontes relacionando a temática da pós-modernidade com algum campo específico da 1
Cf. em ARBEX JÚNIOR, José. Uma outra comunicação é possível (e necessária), in: Por uma outra comunicação/Dênis de Moraes (org.), p. 395-396 2 MORETZSOHN, Sylvia. Jornalismo em tempo real: o fetiche da velocidade, p. 180
93
comunicação, no último semestre, talvez pelo meu olhar mais atento sobre o assunto, tal relação estava presente em diversos artigos e matérias que encontrei, inclusive trabalhos acadêmicos do campo do direito e da engenharia com abordagens sociológicas em teóricos da pós-modernidade e em autores da literatura sobre mídia e jornalismo. Além disso, da análise sociológica de Bauman, o autor mais referenciado nesse trabalho, já estão nas prateleiras três novas obras que setorizam abordagens sobre o individualismo, a insegurança e a conduta consumista no âmbito da modernidade líquida. Parece que o projeto já termina, assim, com uma necessidade de revisão. A cada revisão, um nível maior de profundidade pode ser alcançado. Em todo caso a pescaria foi boa. No retorno à praia, quero aqui marcar meu relato sobre o que trouxe no barco. Os dois capítulos inaugurais foram dois peixes graúdos, alimentados com boas doses de teoria e conceitos. O primeiro ganharia mais rigidez se a discussão sobre a verdade mergulhasse nas profundezas da filosofia, mas firmou-se pelos recifes do jornalismo, como era mesmo seu destino. O segundo teve praticamente a espinha dorsal de um possível projeto de emancipação do ser humano, visto a sinergia produtiva entre Bauman e Freire. Foi um encaixe perfeito, tal qual o peixe que fisga em cheio o gancho do anzol. O terceiro capítulo é um peixe à venda. Não conseguiu sobressair-se aos outros mas ficou consistente: mata a fome. Se fosse criado em açude, numa melhor ambientação às águas próprias do jornalismo, provavelmente ficaria mais vistoso. Mas posto à mesa, bem fritinho, ninguém fica versando muito sobre a origem do pescado
trata de comê-lo. O quarto peixe
ficou pequeno em meio aos outros no cesto monográfico, denunciando seu aspecto franzino. Faltou-lhe a gordura de uma maior problematização do tema que traz à boca, carência aliviada pelo incremento na linguagem que o expõe. É o típico peixe que não banca uma refeição, mas serve para engrossar um bom caldo. O último capítulo, por ser o prato de saída, ficou com um estilo próprio mas terminou sem dever nada aos demais. Encarnou um peixe pintado, no sentido de ilustrar através de números, estatísticas e cenários, mais do que em conceitos, o quadro midiático atual. É do tipo que precisa ser comido lentamente para se perceber bem o sabor. Assim, juntando esses frutos do mar com os pães vindos da terra numa mesma bandeja, acho que o almoço ficou garantido. Em termos gerais, de toda a experiência aqui inscrita e escrita, esse trabalho representou uma pequena travessia de grande valor pessoal. Um escavar em busca de pequenas e grandes descobertas, mais a modo de quem esburaca para os lados, como um garimpeiro, do que a quem perfura um poço de petróleo ou de água. Esse foi, pois, meu grito 94
de torcedor ao jogo democrático. O 12º jogador, o quarto sábio que visita a manjedoura, o 13º apóstolo da trupe de Jesus, o 11º mandamento hebraico, a quinta estação do ano, o sexto sentido, a oitava nota musical, a quinta folha do trevo de Cortázar, a 25ª hora... Longe de tais aforismos, simplesmente um remar, um distanciar-se pelas palavras e pelo silêncio, em busca da terceira margem do rio .
95
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003. AMB
Associação dos Magistrados do Brasil. Barômentro AMB de confiança nas
instituições brasileiras. Disponível em: <http://www.amb.com.br/portal/docs/pesquisa/barometro.pdf>. Acesso em: 20 out. 2008. ANER
Associação Nacional dos Editores de Revistas. Circulação
evolução dos títulos.
Disponível em: <http://www.aner.org.br/Conteudo/1/artigo1861-1.asp>. Acesso em: 04 set. 2008. ANJ
Associação Nacional de Jornais. A indústria jornalística. Disponível em:
<http://www.anj.org.br/a-industria-jornalistica/jornais-no-brasil>. Acesso em: 04 set. 2008. ARBEX JÚNIOR, José. Uma outra comunicação é possível (e necessária). In: Por uma outra comunicação: mídia, mundialiazação cultural e poder/Dênis de Moraes (org.), Rio de Janeiro: Record, 2005. BATISTA,
Cristiana.
A
dor
de
nunca
saber
o
bastante.
Disponível
em:
<http://veja.abril.com.br/050901/p_062.html>. Acesso em: 14 set. 2008. BAUMAN, Zygmunt. Comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. __________. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. __________. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. __________. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. __________. Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007. BUCCI, Eugênio. Sobre ética e imprensa. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. BUENO, Eduardo. A viagem do descobrimento: a verdadeira história da expedição de Cabral. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. __________. Náufragos, traficantes e degredados: as primeiras expedições ao Brasil, 15001531. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998. BURCH, Sally. Sociedade da informação/Sociedade do conhecimento, in: Desafios de Palavras: Enfoques Multiculturais sobre as Sociedades da Informação. Alain Ambrosi, Valérie Peugeot e Daniel Pimienta (org.). Disponível em: <http://www.insme.org/documenti/ wordmatters-en.pdf>. Acesso em: 03 nov. 2008.
CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a el rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil. Conforme texto base da edição Carta a El Rei D. Manuel, São Paulo: Dominus, 1963. Disponível em: <http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/carta.html>. Acesso em: 21 dez. 2006. CASTILHO, Carlos. Jornalismo local na Web cresce mas sustentabilidade ainda é uma incógnita. Disponível em: <http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/blogs.asp?id_blog=2 &id={88539C7C-FF01-4D7F-B15C-6C3BC5C35762}>. Acesso em: 14 set. 2008. CHAUÍ, Marilena. Simulacro e poder: uma análise da mídia. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006. COSTA, Caio Túlio. Modernidade líquida, comunicação concentrada, p. 2-3. Disponível em: <http://www.dnabrasil.org.br/site/publique/media/Midia%20Paper%201.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2007. Clipmarks. Brasil vende mais computador que TV. Disponível em: <http://clipmarks.com/clip mark/430FFDE1-B6C5-4C64-9175-12E5F6235EB4/>. Acesso em: 14 set. 2008. Domínio Público. A carta de mestre João Faras. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000010.pdf>. Acesso em: 02 set. 2008. __________. Relação do piloto anônimo. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bn000147.pdf>. Acesso em: 02 set. 2008. Donos da Mídia. As redes de TV. Disponível em: <http://donosdamidia.com.br/redes>. Acesso em: 01 out. 2008. ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. FENAJ - Federação Nacional dos Jornalistas. Se não houver mudanças, TV digital só favorecerá interesses dos empresários. Disponível em: <http://www.fenaj.org.br/materia.php? id=947>. Acesso em: 04 set. 2008. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. IDG Now. Índices. Disponível em: <http://idgnow.uol.com.br/indices/paginador/pagina_2>. Acesso em: 14 set. 2008. KARAM, Francisco José. A ética jornalística e o interesse público. São Paulo: Summus Editorial, 2004. KUNCZIK, Michael. Conceitos de jornalismo: manual de comunicação. São Paulo: Edusp, 2002. LIMA, Maurício. O avanço de Nelson Tanure. Revista Exame. Disponível em: <http://portalexame.abril.com.br/revista/exame/edicoes/0889/negocios/m0125029.html>. 97
Acesso em: 18 out. 2008. LIMA, Venício A. de. Mídia: crise política e poder no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006. __________.
Pesquisa
revela
a
(des)confiança
na
mídia.
Disponível
em:
<http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=380IMQ002>. Acesso em: 04 set. 2008. MARINI,
Ana
Rita.
MídiaComDemocracia
O
caminho
da
autonomia
passa
pela
convergência.
Revista do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação,
nº 2, p. 4-9, junho de 2006. __________. Cresce o número de políticos donos de meios de comunicação. Disponível em: <http://www.fndc.org.br/internas.php?p=noticias&cont_key=236850>. Acesso em: 01 out. 2008. MARSHALL, Leandro.
A notícia é quem escreve o jornalista. Disponível em:
<http://leandromarshall.wordpress.com/2007/12/>. Acesso em: 18 set. 2008 McCHESNEY, Robert W. Mídia global, neoliberalismo e imperialismo. In: Por uma outra comunicação: mídia, mundialiazação cultural e poder/Dênis de Moraes (org.), Rio de Janeiro: Record, 2005. MEDINA, Cremilda. Notícia: um produto à venda
jornalismo na sociedade urbana e
industrial. São Paulo: Summus Editorial, 1988. MELO, José Marques de Melo. Comunicação e libertação. Petrópolis: Vozes, 1981. MORETZSOHN, Sylvia. Jornalismo em tempo real: o fetiche da velocidade. Rio de Janeiro: Revan, 2002. __________. Pensando contra os fatos: jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico. Rio de Janeiro: Revan, 2007. PADILHA, Sônia. Uma visão além do pragmatismo. In: Jornalismo Investigativo/Dirceu Fernandes Lopes e José Luiz Proença (org.). São Paulo: Publisher Brasil, 2003. SBA
Sistema Brasil Alfabetizado. Dados estatísticos do analfabetismo
IBGE
Censo
2000. Disponível em: <http://mecsrv04.mec.gov.br/secad/sba/inicio.asp>. Acesso em: 03 set. 2008. SIFRY, David. State of the live web. Disponível em: <http://www.sifry.com/stateoftheliveweb>. Acesso em: 02 set. 2008. SODRÉ, Muniz. O globalismo como neobarbárie. In: Por uma outra comunicação: mídia, mundialiazação cultural e poder/Dênis de Moraes (org.). Rio de Janeiro: Record, 2005. 98
Technorati. State of the blogosphere. Disponível em: <http://technorati.com/blogging/state-ofthe-blogosphere/>. Acesso em: 27 out. 2008. TOGNOLLI, Claudio Julio. Mídias, máfias e rock n roll. Bastidores do jornalismo e outros segredos indispensáveis para estudantes, profissionais e leitores. São Paulo: Editora do Bispo, 2007. TV digital no Brasil. Disponível em: <http://tvdigitalnobrasil.wordpress.com>. Acesso em: 04 set. 2008. WIKIPEDIA. Televisão digital no Brasil. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Televi s%C3%A3o_digital_no_Brasil>. Acesso em: 04 set. 2008.
99
A verdadeira viagem de descobrimento n達o consiste em procurar novas paragens, mas em ter novos olhos. MARCEL PROUST