QUERO SER O RANGEr ROSA: F R AG M EN T O S
D E
V I DA S
DA
R EAI S
F O R A
NO R M A .
Belo Horizonte, 01 de outubro de 2016 Olá Daniel e Filipe, como vocês estão? Esta carta é mais do que especial para nós. Ela é a porta de entrada para o nosso projeto. Hoje nós viemos apresentar a vocês o nosso livro. Este mesmo que vocês também ajudaram a construir. Dá pra acreditar que ele finalmente ganhou vida? Em todos os lugares que íamos, por todos os corredores que passávamos, sempre havia alguém para nos questionar quando ele iria ficar pronto. E ele finalmente ficou! Estão ansiosos para ver o resultado? O projeto no qual esta carta faz parte, Daniel e Filipe, foi feito a várias mãos com muito carinho. O livro é o resultado de tudo isso e contém em si um pouquinho da alma de 17 pessoas. Ainda não citaremos o nome de todas, mas queremos que vocês leiam tudo até o final e conheçam cada uma delas com o coração aberto e pronto para transformá-las em suas melhores amigas. Cada carta escrita e enviada faz parte de algo muito maior, construído à base de muito esforço, tempo, lágrimas, segredos e cumplicidade. Nossa, mas tudo isso? Sim, tudo isso! O nosso projeto é um emaranhado de todas essas coisas. Além de vocês dois, Daniel e Filipe, nós entrevistamos outras 13 pessoas da comunidade LGBTQ, para tentarmos entender como foi o processo de descoberta e vivência dessas sexualidades e gêneros desviantes da norma.
São histórias de amigos próximos, conhecidos, desconhecidos, colegas de trabalho e familiares. Todos possuem idades e referências culturais muito próximas. Essa escolha foi proposital: queríamos entrevistar pessoas da nossa geração e com experiências de vida similares para conseguir enxergar as semelhanças e diferenças em cada uma delas. Não pretendemos de forma alguma, Daniel e Filipe, representar a comunidade LGBTQ por inteiro. Ela é tão diversa que tentar fazer isso seria uma missão impossível. Queríamos buscar um outro olhar sobre as histórias de vida dessas pessoas, queríamos cutucar aquele cantinho secreto que vive bem escondido em algum armário por aí. É até difícil descrever tudo que os nossos olhos, ouvidos, câmera e gravadores presenciaram. O que vimos, Daniel e Filipe, foi uma total e completa abertura de alma. Nossos entrevistados (vocês dois inclusos!) nos contaram cada pedacinho da descoberta e das dificuldades de ser uma pessoa LGBTQ em nosso país. Ouvimos histórias incríveis, surpreendentes, tristes, assustadoras. Mas, acima de tudo, vimos superação e muita, mas muita força. Vocês dois sabem muito bem que ser “diferente” é quase um crime no Brasil. Pessoas como vocês morrem todos os dias apenas por serem quem são e por ousarem existir em uma sociedade que os extermina a cada minuto que passa. Sua existência, seu desejo, ter a coragem de contar a história de vocês como homens gays: tudo isso é um ato de luta. As histórias que vocês lerão em nosso livro são exatamente isso, meninos: uma constante luta.
O nome do livro não foi escolhido por acaso. O nosso projeto é um compilado de fragmentos de várias histórias de vida. Todas vividas fora da norma. São várias crianças que cresceram querendo ser os Power Rangers rosas, vermelhos, azuis, amarelos, pretos, sem se importarem com o gênero ou a sexualidade de quem vestia aquele uniforme. O importante era serem heroínas e heróis de suas próprias vidas. E isso elas são. Sentem-se em suas cadeiras mais confortáveis, respirem bem fundo e peguem xícaras de chá antes de começar. Esta jornada não será a mais fácil, a mais tranquila ou a mais bonita de se ler. Mas podem ter certeza de que será uma das mais emocionantes. Esperamos, do fundo dos nossos corações, que vocês se vejam nas vivências de cada um dos nossos entrevistados. A história de vocês nos tocou profundamente, Daniel e Filipe. Queremos que vocês se sintam da mesma forma que nós nos sentimos ao lhes entrevistar: com essa sensação de que as pessoas nesse mundo são muito mais incríveis do que conseguimos imaginar. Não se esqueçam de depois contar pra gente o que vocês acharam disso tudo, hein? Queremos muito ouvir as opiniões de vocês. Afinal, vocês não são apenas entrevistados desse projeto, vocês também são nossos leitores e inspiração. Boa jornada! __ Com carinho, João & Liz.
Belo Horizonte, 03 de Outubro de 2016 Olá Marcelo, como vai? Esperamos que bem. Por aqui as coisas vão apressadas. Estamos em um vai e vem de afazeres e andanças que nunca tem fim, mas fizemos questão de tirar um tempinho desse nosso dia para te contar uma breve história. Sabemos que, nesse momento, podem haver muitas questões na sua cabeça sobre as razões por trás dessa carta, mas pedimos que a leia até o final, pois com certeza suas dúvidas serão respondidas. A história que nós vamos te contar é a história de um homem gay igual a você. Mas não é a de um homem gay qualquer, é a história do Diogo. Assim como você, o Diogo foi uma das pessoas entrevistadas para o nosso projeto. A história do Diogo se assemelha em muitas partes com a de vários outros homens gays, inclusive a sua. Porém, como um ser único que é, ela também tem suas particularidades, e são esses detalhes singulares que fazem a história dele especial a ponto de querermos compartilhá-la com você. Esperamos que goste da história do Diogo tanto quanto nós gostamos. O Diogo foi a primeira das 15 pessoas que entrevistamos para o nosso projeto. Ele abriu as portas do seu apartamento e nos recebeu com muita simpatia. Sua história é dessas que faz a gente pensar sobre como as noções de tempo e de experiência são bem mais complexas
do que imaginamos. Naturalmente, é de se pensar que quanto mais tempo vivemos, mais experiências adquirimos. Porém, o Diogo não seguiu o curso natural das coisas. Aos vinte e dois anos, ele, que é um bailarino profissional, nos contou uma enxurrada de histórias acumuladas em pouquíssimo tempo de vida, com uma trajetória conduzida, sobretudo, pelo seu amor à dança. Nascido em Natal, no Rio Grande do Norte, o Diogo vem de um berço familiar rígido, desses tipicamente nordestinos. Consegue imaginar, Marcelo? Ele tem o cabelo bem ruivo, aquele típico porte de bailarino e um sorriso bem decidido estampado no rosto. Quando começamos a sua entrevista, ele foi logo nos contando como era na infância: uma criança sensível, criada sem muita liberdade e de um jeito super protegido pela mãe. Branquinho e de trejeitos considerados afeminados, aos oito anos ele enfrentou o seu primeiro embate frente à homofobia. Sem saber o que era ser gay ou ter qualquer noção sobre sua sexualidade, o Diogo ouviu de sua tia que ele era um pecador, uma aberração, e que a família jamais o aceitaria. Sem entender, ele correu para os braços da mãe que o acolheu e repreendeu a cunhada. O resultado desse episódio: até hoje sobrinho e tia não se falam mais. Como em muitos outros casos de pessoas pertencentes à comunidade LGBTQ - inclusive no seu, com os puxões de orelha do seu pai ou as implicâncias de suas irmãs - este primeiro preconceito veio justamente de
sua própria família. O Diogo aprendeu cedo que não era somente fora de casa que ele iria sentir medo por ser quem ele era. Uma das paixões que o Diogo sempre teve foi pelo universo das artes. Se quando criança ele adorava desenhar e pintar, aos treze decidiu entrar para o balé. Foi amor à primeira vista, mas não foi um primeiro amor aceito de forma fácil pela família. Todo aquele jeito sensível de ser que o Diogo já tinha, ao se somar com a dança, fez com que ficasse difícil para a mãe entender e aceitá-lo enquanto bailarino. Nesse momento, a figura do irmão mais velho do Diogo foi fundamental. Foi ele quem mais ajudou e deu apoio em todas as decisões que o Diogo fez na vida. Infelizmente o irmão dele faleceu há quatro anos. Ver a forma emocionada de como o Diogo fala da relação entre os dois nos fez perceber a importância da presença de um na vida do outro. Nós bem sabemos que a dança, como qualquer outra arte, não define a sexualidade de ninguém, não é mesmo? Mas no caso do Diogo ela foi fundamental para que ele começasse a se enxergar como um homem gay. Pela primeira vez na vida, ele teve contato com outros homens abertamente gays. A observação e a convivência com estas pessoas contribuiu para o amadurecimento do Diogo, assim como o seu descobrimento e a sua aceitação. Não sabemos se você tem consciência disso, Marcelo, mas
a dança é uma profissão que acontece de forma muito rápida. Ela tem um prazo curto de validade, e se a pessoa tem o desejo e a habilidade para tal, ela deve se esforçar e sem medos aproveitar as oportunidades que surgem. O Diogo sempre teve um talento de sobra como bailarino, então o trajeto dele no balé não foi diferente. Aos quatorze anos, o Diogo foi morar em um conservatório nos Estados Unidos para estudar a dança. Certo de que a arte consegue abrigar melhor quem é gay, muito talvez pelos princípios de liberdade e de auto expressão que ela possui e incentiva, ele esperava que nesse período de sua vida pudesse conseguir se abrir e explorar melhor a sua sexualidade, mas não foi bem isso o que aconteceu. O Diogo se viu sob regras rígidas de um internato, com horários pré-definidos para todas as suas atividades e sem nenhum contato com o mundo lá fora. Ele permaneceu sem falar sobre ser gay ou sobre sua sexualidade pelos três anos em que se manteve no conservatório, onde permaneceu até os dezoito anos de idade. Na época, o Diogo já tinha certeza sobre a sua orientação sexual e sobre ser gay, mas ele ainda não havia dito isso para ninguém ou sequer tido algum tipo de experiência ou envolvimento com outro homem. Ele ainda não havia encontrado oportunidades de falar abertamente sobre o assunto, se sentia inseguro e sem pessoas por perto para apoiá-lo, algo pelo qual muitos outros homossexuais também passam, não é verdade? Depois de morar por um tempo em Nova Iorque, o Diogo decidiu
voltar para o Brasil ao perceber que ele não estava vivendo plenamente a própria vida, mas somente em função de sua profissão. Aos dezenove anos, já de volta ao país, o Diogo decidiu assumir a sua homossexualidade para a mãe. Ela era a primeira pessoa para quem ele desejava contar. Sentouse com ela e disse o quanto sentia sua vida presa a algo que não era o que ele queria ser e como isso o angustiava. A aceitação dela não foi fácil - bem diferente do seu caso, não é verdade, Marcelo? -, a falta de conhecimento sobre o assunto, somado ao recém falecimento do irmão do Diogo, acentuou a dificuldade. Porém, aos poucos, o relacionamento entre ambos e o acolhimento da mãe dele foi melhorando, e hoje, apesar do pouco contato que os dois possuem devido a distância, tudo se encontra bem. Um fato interessante, Marcelo, é que foi somente depois de contar para a mãe, que o Diogo teve as suas primeiras experiências com outros homens. Nesse ponto as histórias de vocês se assemelham um pouco, já que a experimentação da sexualidade para ambos foi um tanto quanto tardia, não é mesmo? Como um bom bailarino profissional que é, o Diogo vai onde o trabalho dele está e há quase três anos mora em Belo Horizonte, onde é contratado por uma companhia de dança. Nas paredes do apartamento em que ele nos recebeu, nós pudemos ver fotos de uma vida intensa, colorida e
performática. Achamos que você ia gostar bastante dessa faceta da vida do Diogo. Ela combina tanto com você! O sorriso que ele nos deu no começo da entrevista também permaneceu durante todo o momento em que conversamos, e, para nós, ficou bastante claro que um dos principais motivos dessa felicidade tão visível atende pelo nome de Victor, o seu marido. “Há seis meses atrás decidimos morar juntos. Sou uma pessoa completamente revelada. Sou casado com outro homem. Sou gay e não escondo isso de ninguém. Onde eu chego apresento ele como meu marido, porque quero que me aceitem o tempo todo, a mim e a ele. Em qualquer situação nós vamos estar juntos, e eu sempre desejo que as pessoas recebam isso de braços abertos, que aceitem isso, porque eu me aceito.”, foi o que o Diogo nos disse já no fim da nossa conversa. Foi nesse momento que o sorriso dele se espalhou pela sala e foi parar também nos lábios de quem o entrevistava. Outro dia estávamos pensando, Marcelo, sobre como a sensibilidade, que está no cerne do artista, funciona muitas vezes como um combustível para que ele coloque em prática a sua própria arte. Porém, essa mesma sensibilidade também é capaz de interferir no julgamento que as pessoas possuem umas sobre as outras. Por exemplo: para muitos, ser sensível é sinônimo de ser fraco. E nós sabemos que, para grande parte da sociedade, inclusive para a maioria dos homens héteros, ser fraco é sinônimo de não ser um homem. Bem, aos olhos deles, pelo menos não como um homem deveria ser, não é mesmo? Nós ficamos
felizes ao percebermos que o Diogo conseguiu ignorar toda essa contracorrente. Ele seguiu com a sua vida, não perdeu a sua sensibilidade e ainda se tornou uma pessoa forte e com convicção. Se você der uma olhada no dicionário, Marcelo, vai perceber que há diversos significados para a palavra arte. Ela é uma aplicação de um saber, uma habilidade. Ela é o uso de um conjunto de técnicas para se obter algo especial, um ofício que exige certo aprendizado. Ela é também a expressão de um ideal estético, uma performatividade. Assim como a criação de uma obra prima. Ela é uma capacidade, um jeito, um dom. Por definição, arte é tudo isso e muito mais. A dança é arte. Um substantivo feminino, mas que não exige do artista qualquer atestado de gênero ou sexualidade, assim como não o define e nunca definirá. E o Diogo, Marcelo, é um homem gay que se aceita, que se posiciona e que vive sua vida da mesma forma como vive sua própria arte: sem medo de se expor e de ser feliz. Nós esperamos que você tenha ficado feliz em conhecer um pouco o Diogo. Quem sabe vocês não acabam se esbarrando por aí nessa vida? Talvez ele possa te ensinar alguns passos de balé e, em troca, você poderá ensiná-lo alguns daqueles movimentos de pole-dance em que você é tão especialista. É claro que você também poderia compartilhar algumas outras particularidades da sua vida, assim como nós compartilhamos da vida dele com você. Temos certeza que o Diogo iria amar ter a oportunidade de ouvir o que você tem a dizer.
Desejamos que o seu dia seja lindo e feliz, Marcelo. Obrigado por ler essa carta até o fim. Quanto a nós, tudo que temos a dizer é que foi um enorme prazer apresentar o Diogo para você. Esperamos poder te ver em breve. Com carinho, João, Liz & Diogo.
Belo Horizonte, 05 de outubro de 2016 Oi Lila, como anda o seu dia? Esperamos que ele esteja sendo tão incrível quanto a sua própria pessoa. Esta carta foi pensada e escrita especialmente para você. Queremos te apresentar uma pessoa maravilhosa: o Marcelo. Assim como você, ele foi um dos entrevistados para o nosso projeto. Você e o Marcelo compartilham o fato de serem homossexuais, e, mais do que isso, compartilham uma história de vida marcada pela dificuldade da autoaceitação. Quem sabe ao conhecer um pouco sobre o Marcelo você também consiga conhecer um pouco melhor de si mesma? Para entrevistar o Marcelo nós fomos até o seu trabalho. Sempre muito simpático, ele não teve nenhum problema em expor sua trajetória de vida ao longo desses vinte e seis anos de idade. Com as unhas pintadas, ele se sentou à nossa frente e contou algumas histórias, experiências de vida, falou sobre sua relação com a família e, principalmente, sobre a dificuldade que teve de se aceitar enquanto um homem gay. O Marcelo era uma criança grudenta, Lila. Ao invés de dar beijos nas pessoas, ele criou o seu próprio afago. Uma lambida no rosto de quem gostava, que ele mesmo nomeou como “lembinho”. Uma dessas pessoas que sofria com as carícias do Marcelo era a sua babá, que também era a empregada da casa onde morava. Ele era muito próximo a ela, e para mantê-lo por perto, sem que aprontasse alguma
confusão, começou a colocá-lo para realizar tarefas domésticas desde pequeno. Cozinhar, costurar almofadas, fazer ponto cruz. O Marcelo aprendeu, ainda criança, todas estas atividades consideradas pela sociedade como de meninas. O crochê, em especial, lhe rendeu um puxão de orelha do pai, que o repreendeu dizendo que aquilo era algo de mulher e que, por isso, ele não poderia fazer. Este foi um momento aparentemente bobo na vida do Marcelo, Lila, mas que ele jamais esqueceu. A primeira coisa que Marcelo fez questão de nos dizer, Lila, é que, na infância, ele não chegou a sofrer preconceito ou bullying por parte das outras crianças como ocorre na maioria dos casos de quem é homossexual. Porém, ele afirma ter sofrido por parte de suas duas irmãs, a quem ele era bastante próximo e, de certa forma, influenciado. Uma história que o marcou se refere a uma fotografia tirada quando era criança. Nela, o Marcelo aparecia usando um vestido de festa junina da sua irmã, acompanhado de um chapéu com longas tranças. Sempre que os amigos da irmã iam para sua casa, ela pegava a fotografia e mostrava aos garotos, o que sempre acabava por desencadear gozações dessas pessoas com o Marcelo. Por serem mais velhos, o Marcelo sentia medo de que algo fosse feito contra ele por conta do seu comportamento naquela fotografia.
O seu ódio pela imagem foi crescendo com o tempo, até chegar ao ápice, quando ele simplesmente decidiu queimar o retrato. O ato de queimar aquela foto funcionou como uma tentativa de se livrar das ofensas gratuitas que tanto sofria. Hoje em dia, já maduro e seguro de si, o Marcelo afirma que se arrependeu de sua atitude, pois sente saudades da fotografia. Apesar do Marcelo se sentir um tanto quanto sortudo por ter sofrido pouco bullying enquanto crescia, Lila, é com certo pesar que ele nos contou que o maior preconceito que ele sofreu partiu de si mesmo. O Marcelo saiu do armário aos vinte e dois anos, Lila, para ele muito tardiamente. Até hoje é algo que ainda causa nele um certo arrependimento. Quando era criança, ele não queria ser gay. Para ele, essa era uma possibilidade que não poderia existir em sua vida e ele fazia questão de afirmar isso para si todos os dias. Quando percebeu que a sua homossexualidade era algo real e nada passageira, tentou buscar justificativas para ser assim. Cogitou que a razão por ser gay era porque ele se socializava muito com as meninas e pouco com os meninos, e até mesmo pensou que a explicação estava no fato de nunca ter tido jeito para jogar futebol. Demorou um tempo até ele entender que simplesmente não havia justificativas. Ele era o que era e ponto final. Em alguns momentos da nossa existência, Lila, a pressão externa que sofremos por parte da sociedade, sobre
diversos aspectos da nossa vida, não é nada se comparada à pressão que fazemos contra nós mesmos. Quando se é homossexual, o indivíduo geralmente passa antes por todo um processo de autoaceitação, para somente depois se preocupar efetivamente com o que o resto da sociedade vai pensar. É claro que às vezes acontece de não haver nenhuma preocupação. Em alguns casos essa ordem se inverte e em outros é possível que tudo isso aconteça ao mesmo tempo, mas o fato é que nem sempre ser aceito pelos outros é suficiente. Não se antes não formos aceitos por nós mesmos. Nós sabemos que você também teve muita dificuldade em se aceitar enquanto lésbica, não é verdade, Lila? É triste pensar que tantas pessoas LGBTQ ainda se angustiam por não se aceitarem da forma como são. Quando decidiu se assumir, o Marcelo fez isso de uma maneira direta e não muito convencional, Lila. Até então, todas as experiências que ele havia vivenciado sobre a sua sexualidade eram feitas de forma escondida. Ele inventava desculpas para sair mais cedo dos eventos com os amigos, ia sozinho para as festas gays da cidade e foi assim que acabou conhecendo o seu primeiro namorado. Um dia, enquanto lavava o carro junto com a mãe, o Marcelo decidiu que aquela era a hora de dar a notícia, assim, da forma mais simples possível, ele disse: “Mãe, amanhã eu queria trazer o menino com quem eu estou ficando para almoçar. Você pode fazer uma
comida especial? “. De acordo com o Marcelo, a mãe dele respondeu de forma muito tranquila: “Claro! O que você quer que eu faça?”. Ele ainda nos contou que enquanto terminavam de fazer aquela tarefa, considerada por muitos até como masculina, sua mãe ia lhe fazendo algumas indagações sobre como funcionava aquele relacionamento em que ele se encontrava. Apesar de ter aceitado bem a homossexualidade do filho, no dia seguinte a mãe do Marcelo enviou para ele um e-mail cujo o assunto estava escrito “DESABAFO”, assim, em caixa alta. O Marcelo se assustou um pouco em um primeiro momento, mas ao abrir e ler o conteúdo, entendeu que sua mãe estava somente chateada com o fato dele ter escondido essa informação por tanto tempo, mesmo com ela lhe fazendo contínuas perguntas sobre os garotos com quem ele andava e que, de forma escondida, se relacionava. O desabafo da mãe do Marcelo era por ele não ter a procurado antes, quando surgiu a primeira situação que o afligiu acerca de sua sexualidade. Depois de ter se desgastado tanto em sua autoaceitação, Lila, o Marcelo ainda não conseguiu se desprender dessa sensação de tempo perdido pela demora com que passou por esse processo. Isto é evidente pela maneira com que ele enfatizou o seu novo modo de ser e de agir. O salto, a maquiagem, as unhas feitas e até mesmo o pole dance que ele pratica — assim como você, olha que coincidência! —. Hoje ele consegue se afirmar enquanto homem gay. Hoje ele consegue fazer tudo que sempre quis fazer e que demorou a ter coragem para tal. Sem medo de ser julgado pelos
outros, mas, principalmente, sem medo de ser julgado por si mesmo. “A partir do momento que eu tirei esse peso das minhas costas, cada vez que eu me aceito mais, eu me sinto mais livre e isto é muito bom. Eu passei a abraçar as coisas. Falavam: você não pode passar esmalte porque é coisa de mulher, você não pode usar salto porque é coisa de mulher, você não pode passar maquiagem porque é coisa de mulher. Eu quero fazer isso tudo.”, foi o que ele nos disse trazendo à tona uma versão do Marcelo tão forte e determinada. Desprender dessas amarras que a sociedade impõe para nós desde o dia em que nascemos, ainda é uma das coisas mais lindas que podemos fazer com nossas próprias vidas, não é verdade Lila? Agora que você já conhece um pouco o Marcelo, que tal vocês se juntarem para uma apresentação de pole digna do talento que vocês dois possuem? Vamos adorar estar na plateia para aplaudir as pessoas que vocês se tornaram. Um abraço carinhoso, João, Liz & Marcelo.
Belo Horizonte, 12 de outubro de 2016 Oi Mariana, como vai? Para começarmos a escrever esta carta, nós tivemos que escolher um nome para você. Achamos Mariana bonito. Você gostou? Como você ainda não pode usar o seu nome verdadeiro para falar da sua identidade como pessoa LGBTQ, decidimos que o melhor a fazer seria inventar um novo nome para você. Hoje, em uma quarta feira onde comemoramos o Dia das Crianças, vamos te contar a história da Lila. Achamos esta data uma coincidência ruim do destino. A Lila, assim como você, sofreu muito quando era pequena. A Lila é lésbica e a descoberta disso mudou completamente os rumos da vida dela, mas pode ficar tranquila que vamos te explicar tudo isso com bastante calma. A Lila tem 24 anos, é publicitária, e precisa viver sua lesbianidade com muito cuidado, Mariana. Ela mora com os pais e essa é uma das principais razões para a Lila precisar se esconder. E quando o assunto é precisar se esconder, nós sabemos que você, infelizmente, entende muito bem, não é verdade? Quando começamos a conversar, a Lila nos contou uma história muito divertida sobre a primeira lembrança que ela tem de ter sentido atração por mulheres. Aos 7 anos, ela rasgou uma página de uma revista que continha uma publicidade de perfume com uma modelo muito bonita
e a escondeu no banheiro de casa. Depois disso, ficava inventando desculpas para usar o banheiro e poder beijar a página da revista. Aquela modelo foi a sua primeira “namorada”. Conhecendo o seu senso de humor, Mariana, temos certeza que você riu bastante com este pequeno caso. Mas essa é a única parte engraçada de tudo que aconteceu com a Lila. Aos 10, em uma brincadeira inocente de descobrimento do seu corpo e das suas vontades com outras meninas, a Lila começou a perceber que era um pouco diferente. Este momento de materialização da falta de pertencimento é algo que muitos dos nossos entrevistados também passaram, Mariana, incluindo você. Depois desse dia, a culpa foi o principal sentimento a reinar na vida da Lila. Achamos que você entenderia muito bem como é se sentir assim, Mariana, como é se perguntar todos os dias porque você não nasceu como as outras pessoas. Se podemos te dar um conselho nesta altura da carta, Mariana, ele seria para você preparar um pouquinho o seu coração pois a história da Lila (infelizmente) fica mais triste a partir desse ponto. Tudo isso que te contamos fez da Lila uma criança muito solitária. Ela não tinha muitos amigos e era extremamente tímida e depressiva. Ela sentava no recreio e, literalmente, conversava com a árvore do jardim da escola. Nessa época, ela pensava muito em suicídio. Tentou de várias formas terminar com a própria vida. Por não se sentir pertencente a qualquer lugar, na sua mente a
sua existência era algo descartável. Tudo que ela sentia se baseava em culpa. A automutilação era seu escape. Ela sentia conforto em se machucar. “Sinto muita culpa com a minha família e de certa forma ainda não me aceito. Minha culpa pauta minha vida. Sempre acho que estou errada, que o que eu faço é errado. Até hoje estou num processo de me aceitar.”, ela nos confidenciou com um olhar que mostrava que a dor, causada pelas coisas que passou por ser lésbica, ainda estava ali, bem viva. Quando a Lila percebeu que amava mulheres o seu mundo caiu, Mariana. Sua família era católica e jamais iriam aceitar essa situação. Como ela pôde fazer isso com eles? Por que Deus a fez assim? Como ela faria isso parar? São perguntas que permearam a sua adolescência. Ela começou a se flagelar, Mariana. Em que sociedade vivemos em que uma menina acha que deve se machucar só porque sua orientação sexual foge da norma? Conhecendo sua personalidade intensa, Mariana, cremos que esse fato também te revoltaria. A Lila rezava, chorava e se prometia que nunca iria praticar sua lesbianidade. Mas nós sabemos que o desejo não funciona dessa forma. Ela se apaixonava pelas amigas. Pelas mulheres bonitas nas ruas. Esses olhares não passavam despercebidos pela sua família. A mãe, aos 15 anos, a confrontou: “Você é sapatão?”. A Lila, na época, negou. Mas ela não conseguiu
esconder por muito tempo.
quentes.
Até os 19, a Lila fingia para si mesma que nada estava acontecendo. Beijava apenas meninos e, nos olhos dos amigos, era hétero. Assim como você, Mariana, a Lila só conseguiu soltar um pouquinho dessas amarras sociais depois que entrou na faculdade. Não demorou muito para ela conhecer a menina que mudaria o jogo.
Ficamos surpresos com seu relato sobre sua infância. Quando ela fala do seu passado parece até que estava falando de uma desconhecida qualquer. Mas a Lila é contraditória e complexa. Como ela mesmo nos disse, ela ama ser lésbica. Ela ama amar mulheres. Porém, mesmo amando sua lesbianidade, ela não a aceita. Se pudesse escolher, ela agiria de outra forma, seria uma outra pessoa. Como isso não é possível, tudo que resta para ela é viver bem a sua vida como LGBTQ.
Ela se apaixonou perdidamente. Foi a primeira vez que sentiu desejo real. Agora já era tarde demais: não havia mais como fingir. A Lila sempre soube que era lésbica. O beijo da confirmação só a deixou mais assustada. O que ela faria dali para frente? A família, obviamente, não a aceitou. A Lila passou e ainda passa por muitas dificuldades dentro de casa. Sua liberdade é sempre podada e é bem claro para ela que, naquele lugar, ninguém quer uma filha lésbica. Mas não achamos muito necessário nos estender nesse assunto, Mariana. O que queremos é te contar como a Lila achou forças dentro de si para ficar bem e enfrentar a situação. “Se você quer ser feliz, precisa começar a sorrir.” Ela leu esta frase em um gibi da Turma da Mônica e foi algo que ficou na sua mente. Se você conhecesse a Lila hoje, Mariana, veria uma mulher muito diferente da criança e adolescente insegura e solitária que te apresentamos no início da carta. A Lila é expansiva, extrovertida, conquistadora. Tem um sorriso largo, uma voz grossa, gesticula muito com as mãos. Seu rosto e seu abraço são
E aparentemente ela vive. Pelo o que nos contou, a Lila é a alma de todas as festas. Imaginamos vocês duas juntas se divertindo por aí, Mariana. Seria um arraso! Ela adora ajudar qualquer pessoa que pede um pouquinho do seu tempo. Com tanto carinho pelos outros, ela gostaria de conseguir se sentir menos culpada por ser quem é. Ela ainda não chegou lá. Tudo que podemos fazer, Mariana, é torcer por ela. Para que sua sexualidade doa um pouco menos a cada dia. Para que ela entenda que não há nada de errado em seus desejos. Quer se juntar a nós nessa torcida, Mariana? Esperamos que você tenha gostado de ler um pouco sobre a história da Lila. Achamos que ela poderia ouvir bons conselhos de você, que lutou tanto para se aceitar. Que tal fazermos isso pessoalmente algum dia desses? Temos certeza de que ela iria adorar ouvir o que você tem a dizer. Com muito carinho, João, Liz & Lila.
Belo Horizonte, 13 de outubro de 2016 Ei Paulinha, tudo bem com você? Você foi a escolhida para receber a carta mais singela do nosso projeto. Hoje vamos te contar uma história que é difícil de ser escrita e um pouco complexa de ser entendida. Sabemos que você ama ler e contar histórias, então esperamos que você também goste de ler o que vamos compartilhar com você. Estamos falando da história da Mariana. Este não é o seu nome real. Seu nome real não podemos divulgar, mas caso você queira conhecer a Mariana, isso certamente será possível. A Mariana precisa ser anônima, como tantas pessoas LGBTQ no nosso país e como você sentiu a necessidade de ser, também, por um tempo. Mas o caso da Mariana é diferente. Ela não precisa esconder sua orientação sexual, como você precisou — ela precisa esconder sua identidade de gênero. O Brasil é o país que mais mata travestis e transsexuais no mundo. Se esconder, no caso da Mariana, é uma questão de sobrevivência. Sobrevivência por ter uma família que nunca a aceitaria como uma mulher trans. Por viver em uma sociedade que constantemente nega seus direitos e a sua própria existência. Por ter medo de perder seu trabalho, que muito depende de aparências. Te conhecendo, Paulinha, você deve estar afobada e ansiosa para descobrir logo tudo sobre a Mariana. Mas calma, vamos por partes.
A Mariana tem 22 anos e trabalha na área criativa. Sua aparência é masculina e ela se sente de várias formas, menos como um homem. Quando nasceu, ela foi designada enquanto homem por possuir um pênis. Mas nós sabemos muito bem, Paulinha, que a vida não é assim, 8 ou 80. Existem nuances que vão muito além da biologia. E a Mariana se encaixa nessa questão — ela cresceu presa em um corpo que nunca a pertenceu. Ela não pode construir sua representação da maneira que deseja. Pelo menos não agora, com tantas incertezas. Não é fácil ter vinte e poucos anos, ter medo do futuro e ter que se preocupar em ter uma casa para morar e comida na mesa. E este medo, que todos nós passamos, é ainda maior quando se é uma pessoa trans, Paulinha. Para a Mariana, assumir sua verdadeira identidade significaria perder seu emprego e qualquer apoio familiar. E esses são riscos que ela não pode correr. “Eu preciso me esconder o tempo todo. Eu vivo uma mentira. Olho no espelho e não me reconheço.”, é o que a Mariana nos confidenciou quando conversamos. A infância dela, Paulinha, foi cercada por violência. Ela sempre foi forçada a ficar perto dos meninos. O pai tinha medo dela virar “viado”. E como você deve estar imaginando, Paulinha, ela odiava tudo isso com todas as células do corpo. Ela gostava de brincar com as meninas, de ocupar os mesmos ambientes que as mulheres. Sua masculinidade não existia, e ela vivia se escondendo do pai para poder ser como gostaria de ser. O pai batia nela sempre que a encontrava brincando com as meninas. Era violência
física ou ficar trancada em casa. Mas a Mariana queria ser exatamente igual a mãe, com seus cabelos, roupas e acessórios. Agora imagine, Paulinha, apanhar por não querer participar das brincadeiras dos garotos? Quando entrou na faculdade, a Mariana teve muita dificuldade em fazer novos amigos. Ela se portava de uma forma agressiva e isso afastava as pessoas. A Mariana não sabia muito bem como lidar com a nova liberdade que ganhou ao sair da cidade no interior do estado e vir estudar na capital. Ela forçava uma masculinidade com medo de ser o “viadinho” da turma, como a chamavam na escola. Com o tempo, começou a ter amigos LGBTQ, e a entender que não havia nada de errado em ser daquele jeito. Começou a se ver naquela comunidade. Pensou que era gay. Mas ela não entendia porque seu melhor amigo, que também era gay, se sentia tão confortável no seu corpo, com o fato de ser homem, com sua masculinidade, enquanto nada disso acontecia com ela. Foi aí, Paulinha, que tudo começou a se enroscar na cabeça da Mariana. A Mariana não se identificava com os homens gays. Sofreu muito com essa falta de pertencimento, assim como aconteceu com você, que não se via como parte das suas amigas héteros. Ela passou por várias etapas: não queria de forma alguma ser uma travesti ou uma mulher trans. Não queria passar por essa violência, que ela sabia que é algo extremamente real. Mas como você sabe muito bem, Paulinha, isso se tornou impossível de ignorar: não havia como negar. Pelo menos para si mesma, ela precisava admitir — Mariana é uma mulher trans.
Só que a Mariana vive uma dualidade. O mundo a vê como um homem e ela se sente como uma mulher. Complicado, né, Paulinha? Viver uma vida dupla é muito difícil. A disforia está sempre presente em sua vida. O desconforto em seu corpo é visível. A Mariana ainda luta para entender como pode ser uma mulher sem precisar reforçar estereótipos impostos pela sociedade do que é ser mulher. Mas, por precisar estar na anonimidade, ela vive se perguntando: como ela pode se definir sem se expressar? Será que um dia ela vai conseguir se expressar e viver a vida dela exatamente como ela deseja viver? Essa é uma dor que a Mariana carrega todos os dias. Se pudesse voltar ao passado, ela disse que tentaria se adaptar, fugir e não ser trans. Tentaria ser diferente. Mas a vida não funciona assim. Não temos uma máquina do tempo e a Mariana precisa encarar o futuro. O que nos entristece, Paulinha, é pensar nas milhões de pessoas LGBTQ espalhadas pelo Brasil que precisam viver a vida como a Mariana. Como uma fachada, sempre se limitando, com medo do garoto que segura uma lâmpada na rua logo ali na esquina, pronto para te atacar. Ela representa todas as pessoas anônimas dessa comunidade. Caso alguém que nos lê seja como ela, só temos um recado — esperamos que as coisas melhorem. E vamos lutar para que elas melhorem. Enquanto as coisas continuarem assim tão violentas, Paulinha, o que podemos fazer é dar apoio para a Mariana e para todas as outras pessoas LGBTQ que precisarem. Sabemos que elas podem contar com você,
assim como podem contar com a gente! Espero que a história da Mariana tenha te inspirado a viver sua vida como mulher lésbica cada vez mais firme, com muita luta e força. Viva da forma que a Mariana agora não pode, Paulinha. Por ela e por todos os outros. Que o futuro seja mais leve. Com carinho, João, Liz & Mariana.
Belo Horizonte, 15 de outubro de 2016 Ei Felipy, como anda a sua vida? Esperamos que ela esteja indo tão bem quanto as nossas. Estamos escrevendo esta carta para lhe apresentar uma pessoa que, assim como você, participou do nosso projeto. Nós achamos que você vai gostar muito de conhecê-la. O nome dela é Paula, mas você pode chamá-la de Paulinha, assim como nós também a chamamos. Quem sabe você não consiga arranjar um tempinho para sentar no banco da praça — talvez o mesmo em que nós nos sentamos quando fizemos a sua entrevista —, para ler essa carta e assim descobrir quem realmente é a Paulinha. Para começar, Felipy, vamos te contar algumas características que facilmente percebemos sobre a Paulinha logo no primeiro contato que tivemos com ela: uma garota muito intensa, engraçada e que faz piadas a todo momento para disfarçar o seu nervosismo. Mas ela também sorri com um sorriso sincero e acolhedor. O seu olhar é o de alguém que há muito tempo está com algo guardado na garganta, esperando por uma oportunidade de deixar que tudo venha à tona. É o olhar de alguém que quer ver o mundo, e anseia por poder experimentar e sentir tudo lhe é de direito. Você, que sempre tem respostas inteligentes e sarcásticas prontas para sair, ia adorar conversar com a Paulinha. Nesse quesito, vocês são muito parecidos.
A primeira coisa que a Paulinha nos disse quando sentamos para conversar é que ela estava muito tensa com a nossa entrevista. Ela tinha medo de travar, de não saber o que dizer. Suas mãos se mexiam muito. Visivelmente nervosa e ansiosa, foi quase como se conseguíssemos ver os mil pensamentos por hora passando em sua cabeça. Você também estava um pouco nervoso e com os mesmos medos quando conversou com a gente, se lembra, Felipy? Felizmente, esse nervosismo da Paulinha não durou muito (assim como o seu!), e mais, ele não atrapalhou em nada a sua entrevista. Rapidamente ela compartilhou um pouco de sua história com a gente, e agora é a nossa vez de compartilhar um pouco dessa história com você. A Paulinha, Felipy, é lésbica. E ela demorou muito tempo para descobrir isso. Formada em Comunicação e fazendo mestrado na área, ela tem mil referência culturais na ponta da língua, assim como você! Com a sua lesbianidade não foi diferente — foi principalmente com a ajuda dos produtos culturais que a Paulinha conseguiu se encontrar. Na infância, a Paulinha só fazia coisas consideradas de “menino”. Via todo tipo de desenho animado. De Pókemon a Power Rangers. Ela queria sempre ser o ranger vermelho, ao contrário de você, que sempre queria ser a ranger rosa. Se vocês tivessem brincado juntos, não haveria nenhuma briga na hora de fazer essas escolhas.
A Paulinha também gostava de brincar sem camisa para ser igual o Tarzan. A mãe brigava, mandava ela colocar uma camiseta. Afinal, “meninas não podem ficar se exibindo dessa maneira”, dizia a mãe. E a Paulinha não se conformava. Ela queria poder fazer todas as coisas que os meninos faziam, sem julgamentos. Você passou pela mesma coisa, só que o inverso: tudo que você queria era poder brincar de Barbie e ouvir Britney Spears em paz, não é mesmo? Em todos os nossos entrevistados, percebemos como essa restrição de gêneros imposta pelo patriarcado afeta tanto as pessoas LGBTQ. Meninas não podem isso. Meninos não podem aquilo. E nessas amarras, aqueles que fogem desse padrão heteronormativo acabam por se tornarem diferentes, incompreendidos, minorias. O medo reina, não é verdade, Felipy? A Paulinha passou por experiências parecidas às suas e da maioria dos nossos entrevistados. A primeira vez que se lembra de querer beijar uma outra menina foi com uma amiga. O desejo estava lá. A coragem não. Como muitas mulheres lésbicas, Felipy, a Paulinha tinha medo de perder todas as suas amigas heterossexuais se contasse que sentia atração por mulheres. O que percebemos, Felipy, é que a aceitação — tanto interna, quanto externa — talvez seja a palavra mais importante quando falamos de ser queer. Luta-se por ela o tempo todo. Ela é tão essencial que a Paulinha preferia viver escondida, sem contar para as pessoas
próximas como se sentia, do que correr o risco de não a ter. Assim como você, que demorou anos até ter coragem de ser quem queria ser. A todo momento, a Paulinha se lembrava de várias ocasiões onde era óbvio perceber que ela amava mulheres — ela sempre soube que havia algo ali, mas era difícil admitir para si mesma, como acontece com tantas mulheres que percebem que sentem desejo por outras mulheres. Afinal, Felipy, como você sabe muito bem, o mundo não é nada fácil para quem é homossexual. “Tem uma menina que eu olho para trás e penso: como é que eu não sabia que eu era lésbica?”, a Paulinha nos disse com um sorriso no rosto. Uma forma que ela achou de lidar com a sua sexualidade é fazendo piadas. Um humor, Felipy, que permaneceu durante toda a nossa conversa. Ela sempre soube que tinha algo ali, mas não queria encarar toda a carga que ser lésbica representava. Ela achava que não era nada e deixava isso escondido no fundinho de sua cabeça. Brincava com uma possibilidade de não ser hétero, mas não considerava isso como uma realidade possível. O mundo da Paulinha só foi mudar quando assistiu pela primeira vez Carmilla, uma websérie baseada no primeiro livro de vampiros que existiu na história, com uma vampira lésbica como protagonista. Carmilla também é o objeto de estudo da Paulinha no mestrado. Com tantos personagens LGBT, a Paulinha percebeu algo impressionante: sentia coisas na série que não sentia
nem com o seu namorado na época. A representatividade a encantou e abriu seus olhos. Isso é algo que achamos incrível: você também procurava muito se encontrar nesses produtos culturais. E, quando isso aconteceu, foi como se um novo mundo de possibilidades se abrisse para ela e para você. Como você, Felipy, a Paulinha sempre soube que era “diferente”. “Acho que no fundo todo mundo sempre sabe, só escolheu não lidar com isso ainda”, foi uma das frases marcantes que ela nos disse. Quando uma de suas amigas começou a namorar uma menina, a Paulinha teve raiva e ciúmes. Mas ciúmes porquê? — você pode se perguntar. Ela teve ciúmes da amiga porque ela também tinha sentimentos pela garota, mas o maior motivo desse ciúmes era pelo fato da amiga estar vivendo uma vida que ela queria e não podia ter. Sabe, Felipy? Ciúmes da coragem da amiga em se assumir, em ser quem ela realmente era, em mostrar ao mundo que era lésbica. A Paulinha já percebia que era isso que ela queria também — só não sabia por onde começar. Foi na cultura pop novamente que ela começou a encarar sua lesbianidade. Em “The Runaways”, um filme que ela mesmo chama de meia-boca, que a Paulinha conseguiu ver algo ali: duas mulheres que se amavam sendo representadas. Ela ficou apaixonada por essa dinâmica. Foi a primeira vez que ela viu um relacionamento lésbico retratado sem fetiche ou alívios cômicos. Eram duas mulheres ali, que se desejavam e nada mais. Os filmes, as
séries, os livros… foi quando a Paulinha encontrou suas respostas, Felipy. Ela se questionava muito porque gostava tanto de ver casais lésbicos na ficção. Hoje ela olha para trás e pensa que era tudo muito óbvio. Estava tudo ali, bastava ela abrir os olhos e enxergar. Foi aí a materialização do momento que a Paulinha chama de “shit, i’m gay!”. Muito se fala na importância da representatividade de minorias na ficção, na publicidade e no mundo do entretenimento. A Paulinha é um dos maiores exemplos disso. Será que ela teria finalmente se assumido e vivido sua vida de mulher lésbica se não fosse por esses produtos culturais? O que você acha disso, Felipy? Nós achamos que a representatividade pode sim salvar vidas ou, pelo menos, deixar que elas sejam vividas como devem ser. Ver alguém como nós mesmos nos faz perceber que também podemos fazer isso. Ver aquela protagonista lésbica em uma websérie mostrou para a Paulinha que ela também conseguiria ser assim — ela só precisava tentar. E ela tentou, Felipy! Finalmente! A Paulinha se levantou e decidiu que era hora de mostrar ao mundo quem ela realmente era. O pior já tinha passado (ufa!). Ser lésbica, para a Paulinha, envolveu abrir mão de muitas coisas. Seu namoro de 3 anos com um de seus melhores amigos foi o maior sacrifício. O término foi algo que doeu, mas que precisava ser feito. Os pais e os amigos reagiram bem a tudo isso. Ela ainda sente um pouco de medo das amigas ressignificarem antigas memórias, um receio que
percebemos ser uma constante com pessoas LGBTQ. Mas isso vai passar, assim esperamos. Saímos da entrevista com uma certeza: com tanta determinação, em breve a Paulinha vai se tornar a heroína lésbica da sua própria história, igual à aquelas que ela sempre quis ver na televisão. E você, Felipy? Quais foram seus maiores heróis gays da ficção? Quem sabe você não possa compartilhar mais dessas suas histórias com a gente e com a Paulinha? Íamos adorar te ouvir. Esperamos que você tenha gostado de conhecer um pouco a Paulinha. Beijos curiosos, João, Liz & Paulinha.
Belo Horizonte, 17 de outubro de 2016 Olá Aline, como vai a vida? Esperamos que tudo esteja ótimo em todos os âmbitos. O objetivo principal desta carta é te apresentar o Felipy, um dos homens gays que também aceitou participar do nosso projeto. É claro que a partir do momento que te contarmos a história dele, essa correspondência provavelmente não vai se limitar à apenas uma apresentação. Esperamos que ela cause em você algum tipo de reflexão, assim como causou em nós. Escolhemos você para receber a carta sobre o Felipy pois achamos que vocês dois possuem alguns aspectos de vida e de descoberta muito parecidos, mas fique tranquila porque esta história está apenas começando. O Felipy tem 22 anos, Aline, uma idade muito próxima da sua. Ele tem um sorriso grande, suas respostas são rápidas e percebemos, ao entrevistá-lo, que o humor faz parte do seu ser. Ele é extrovertido, divertido, o que transformou o nosso diálogo com ele em em uma conversa simples, carregada de muita leveza. Talvez seja por isso que o seu passado nos surpreendeu tanto. O Felipy foi uma criança muito solitária, Aline. Na infância gostava de brincar sozinho, ver desenhos e sempre tentava achar alguma maneira de se divertir, mesmo sem ninguém por perto. A infância de vocês foi bem parecida, se olharmos por esse lado. O Felipy cresceu sem muitos questionamentos, Aline, assim como você. Ele não
se achava diferente. Na cabeça dele não havia confusão nenhuma: ele era o que era. Ele gostava de imitar a Britney Spears e sempre queria ser o Ranger Rosa nas brincadeiras. Atos inocentes de criança, mas que sempre são um prato cheio para quem gosta de propagar certos preconceitos. Não havia nada de errado nas atitudes do Felype, não é mesmo, Aline? Mas infelizmente a sociedade não pensa dessa maneira. Rapidamente, o Felipy percebeu que algo estava acontecendo. Ele recebia olhares maldosos, carregados de julgamento, que demonstravam claramente a desaprovação. Não era só isso. Os olhares também denunciavam um ódio por uma criança queer que, naquele momento, queria apenas se divertir. O Felipy sentiu medo. E você também percebeu muito nova, Aline, que o mundo não te aceitaria de qualquer forma. Você sabia que só seria aceita se você se encaixasse no que a sociedade heteronormativa acreditava ser o certo. E o Felipy entendeu isto também. Ele sabia que nunca iria conseguir a aprovação daquelas pessoas. Ao invés de tentar se adaptar ou fingir uma suposta heterossexualidade, o Felipy se isolou, Aline. Ele se lembra de seus tempos de colégio e de sua adolescência como uma época sombria. O Felipy se sentia muito sozinho, o tempo todo. Ele não tinha a quem recorrer. “Eu ia para a escola querendo morrer. Para não me isolar totalmente, eu conversava com algumas pessoas, mas eu conseguia ver no rosto delas que elas não me viam como um igual. Elas riam de mim nas minhas costas, faziam piadas. Na frente
delas, eu era o gay engraçado. Era só eu me virar para o bullying continuar”, o Felipy nos contou. Acordar todos os dias e ir para a escola era uma luta diária para o Felipy. O bullying ocasionado por seus trejeitos, por sua forma de andar e por seus gostos era constante. Não havia liberdade. Na mente dos colegas de turma, o Felipy não estava agindo como um homem. Sabemos muito bem, Aline, que mulheres são desrespeitadas desde o segundo que colocam os pés nesse mundo. E o Felipy estava sendo mulherzinha demais, precisava ser contido. Como se ele representasse alguma ameaça mortal à sociedade, a única escolha que o Felipy viu como possível foi se isolar. Isto é algo, Aline, que conseguimos perceber ao longo deste projeto: o isolamento das pessoas LGBTQ. Muitos dos nossos entrevistados citaram a solidão como um sentimento comum em sua infância e adolescência. Não é nada fácil ser uma criança diferente. Quem defende essa criança? Quem se levanta e briga por ela? Você sabe muito bem, Aline, que crianças podem ser extremamente maldosas. E isso deixa marcas para a vida inteira. O Felipy seguiu achando que ele nunca teria amigos. Que ele era errado. Que nunca seria aceito. Um momento que marcou a vida do Felipy, Aline, está ligado à algumas ações de um dos seus vizinhos em direção à ele, quando era criança. Hoje, já adulto, o Felipy olha para trás e reconhece essas atitudes como um caso de abuso. Algo inesperado para nós, Aline, é que em
um universo de 15 entrevistados escolhidos ao acaso para o nosso projeto, um total de 20% mencionou ter sofrido algum tipo de abuso na infância. Infelizmente, você também faz parte dessa estatística, Aline, e esse número nos fez pensar que isto é algo bastante sintomático da sociedade em que vivemos. Abusos infantis são muito mais comuns do que imaginamos e tanto eles quanto a solidão que muitas crianças sofrem são capazes de causarem dor. E pode ter certeza que doeu demais no Felipy, Aline. Mas como toda boa história, a do Felipy também tem seu momento de superação. Quando ele entrou na faculdade, foi pego de surpresa. De repente, ele começou a conhecer e ficar amigo de pessoas como ele. Homens gays e mulheres lésbicas. Eles existiam e estavam ali, de braços abertos para acolher o Felipy. Ele percebeu algo inédito — ele não precisava mudar quem ele era. Ele podia amar homens, gostar de dançar as músicas que quisesse, amar drag queens. Nada disso fazia dele uma pessoa menor. Aqueles amigos viraram sua família. Eles o amavam independentemente de qualquer coisa. Ser gay não era anormal, era apenas mais uma parte do que é ser Felipy, e ele encontrou pessoas que puderam o amar por inteiro dessa forma. Assim como deveria ser para qualquer pessoa LGBTQ por aí, Aline, inclusive para você. É importante que essas pessoas saibam que sempre haverão iguais, uma comunidade inteira, pronta para te amar, te aceitar e te proteger. De certo modo, o Felipy está aqui para isso, e nós sabemos que você também está aqui para apoiar o
Felipy. Temos certeza que se o Felype tivesse conhecido você quando era adolescente, Aline, sempre com um grande sorriso no rosto, ele iria adorar tê-la por perto. Não podemos voltar no tempo, mas podemos lutar todos os dias para fazer desse mundo um lugar melhor para as crianças como o Felipy. Para que elas se sintam menos sozinhas. O que você acha, Aline? Será que algum dia conseguiremos mudar isso? Nós esperamos que sim. A luta nunca pára e o Felipy não vai parar também. Ai de quem se colocar na sua frente ou machucar algum de seus amigos: hoje o Felipy se defende, com todas as garras. Ele é feroz, forte, para compensar todos os anos de silêncio e dor. O que podemos esperar, Aline, é que cada vez menos existam histórias como a sua e a do Felipy. Continuamos caminhando. Com enorme carinho, João, Liz & Felipy.
Belo Horizonte, 18 de Outubro de 2016 Ei Fernanda, como vai você? Talvez você se pergunte porque escolhemos te mandar essa carta. A resposta é muito simples: queremos te contar a história da Aline. Pode ser que no decorrer da leitura, você passe a questionar a razão de querermos contar justamente a história da Aline, afinal, aparentemente vocês são pessoas muito diferentes e possuem uma trajetória de vida bem opostas. Mas não se engane, achamos que você vai ficar feliz em conhecê-la. E acredite em nós, vocês são bem mais parecidas do que imagina. A Aline tem 23 anos e é estudante de Letras. Se você batesse um papo com ela, como a gente fez, ia conseguir ver isso muito bem. Ela tem leveza nas palavras e escolhe muito bem o que dizer. A Aline é a única pessoa bissexual que entrevistamos para esse projeto. Sua história é única neste sentido — enquanto a maioria dos nossos entrevistados sempre soube quem era (como você!), a Aline passou por muitas etapas de entendimento e aceitação até finalmente compreender a manifestação da sua sexualidade. A bissexualidade — especialmente no Brasil, um país conservador que adora se retratar como sendo liberal — é vista na mente dos preconceituosos como promiscuidade, confusão e fase. Você sabe muito bem disso, Fernanda, porque o conservadorismo também afetou muito a sua
vida como mulher lésbica. Mas talvez você não saiba que algumas pessoas bissexuais sofrem para serem aceitas até dentro da comunidade LGBTQ, que não as vê como parte de tudo isso. Imagina, Fernanda, ser rejeitada e perder pessoas que você ama e que supostamente deveriam te entender? Você nos contou que isso era um de seus maiores medos ao se assumir como lésbica e, para alguns de nossos entrevistados, isso foi uma realidade. Pessoas bissexuais podem se encontrar em um abismo: não são aceitas pelo mundo heterossexual e nem pelo homossexual. Tentam se encaixar em um ou outro, sem sucesso, e isso pode gerar muita solidão. Nós temos algo triste para te contar, Fernanda: a Aline não foi uma exceção dessa história. Quando mais nova, ela recebia comentários julgadores das amigas que a chamavam de lésbica. A Aline era diferente delas em um aspecto: ela prestava mais atenção e direcionava sua energia às outras mulheres, enquanto as amigas apenas enxergavam essas mesmas garotas sem nenhum aprofundamento. A Aline as via com desejo, que é algo que você também sentiu, Fernanda. Porém, ser lésbica ou bi não passava pela cabeça da Aline. Não era uma possibilidade. Ser hétero, naquele momento, era a sua única opção. Ao nos contar sobre o seu passado, vimos nos olhos da Aline um alívio de alguém que finalmente entendeu seu próprio desejo. Achamos que você ia se ver muito na Aline,
Fernanda. Mulheres sempre a cativaram. Ela se pegava reparando nos seus cabelos, no cheiro, no modo que elas andavam. Pensava nelas quando se tocava. Queria estar do lado delas. Mas a Aline não entendia muito bem esse lado de si mesma. A confusão reinou em sua cabeça durante sua adolescência e entender a sua sexualidade foi um processo, assim como aconteceu com você também. Você pode até se questionar: mas esta vontade não deveria ter sido suficiente para ela entender quem ela era, mesmo que ela não aceitasse isso? Mas a Aline passou por algo que você também passou (e que a maioria das pessoas LGBTQ passam todos os dias): a impossibilidade de expressar, sentir e amar uma pessoa do mesmo sexo. E o medo. Aquele medo que vem quando sua cabeça passeia pelos cantos mais íntimos do desejo. Sabe, Fernanda? Aquela dor no peito de ser quem você é? A Aline tem um rosto muito doce e carinhoso. Olhos grandes e expressivos. Mas não confunda essa doçura com passividade: a Aline é forte. Decidida. Depois de tudo que ela passou ela já sabe o que quer e não vai deixar ninguém entrar no seu caminho. Achamos que você se identificaria muito com essa parte dela. Você que também é tão forte, dona de si e segura. A Aline também passou por alguns tropeços na sua jornada como qualquer outra pessoa. Muito tímida na infância (diferente de você, que adorava correr, brincar e jogar futebol), ela teve primeiras experiências amorosas e sexuais bem ruins, e até traumatizantes. A Aline passou
por um abuso quando criança. Um dos seus tios encontrava desculpas para tocá-la em meio às brincadeiras. Isso ainda a marca e de vez em quando passeia pela sua mente como uma lembrança assustadora. Além disso, ela teve um namorado que a fez acreditar que sua bissexualidade era suja, sem valor, coisa de “puta”. “Durante muito tempo eu reprimi meu lado bi. Tanto por uma pressão social, quanto por acabar namorando um homem que me fez sentir muito culpada por já ter tido experiência com outras mulheres. Ele falava que eu era ‘puta’, que era falta de caráter da minha parte ter tesão em mulheres. Comecei a acreditar nisso. Tinha nojo de mim mesma. Eu achava reconfortante falar que era hétero porque era mais fácil e menos confuso. Hoje estou me redescobrindo.” Essa foi uma das falas da Aline que mais nos impactou, se já não é fácil para uma pessoa se descobrir, imagina o quão difícil é ter de se redescobrir? Você também namorou homens, Fernanda, mas os homens com quem você se envolveu não te machucaram tanto assim (ainda bem!). As primeiras experiências da Aline com mulheres também não foram fáceis: seu coração foi partido, ela foi enganada, brincaram com seus sentimentos. E nós sabemos que de coração partido você entende, né, Fernanda? Com tudo isso, ela também passou por um momento que muitas pessoas bissexuais enfrentam: a invisibilidade. “É uma fase”. “Escolha um dos lados”. “Não dá pra jogar para os dois times”. São frases que muitas pessoas bi
estão cansadas de ouvir. A Aline — infelizmente — não foi uma exceção. Ela ainda se questiona muito se os dois desejos podem coexistir. Será que alguém consegue gostar de homens e mulheres ao mesmo tempo? Será que tem algo de errado com ela? Estes são pensamentos que invadem a cabeça de muitas pessoas bissexuais. O que você acha sobre isso, Fernanda? Suas opiniões costumam ser sempre tão certeiras. Quando a Aline contou para sua mãe, aos 15 anos, que beijou uma menina, não foi levada a sério. A mãe riu, não deu muita importância e a incentivou a continuar experimentando. Anos depois, a Aline tentou novamente conversar com ela sobre este assunto. Mas a mãe pensa que o desejo por mulheres vem de uma raiva por homens, uma opinião construída muito pelo fato da Aline abertamente se declarar como feminista, um erro comumente vinculado às adeptas do feminismo. Contudo, a Aline é categórica: “Quando estou com mulheres, homem nenhum passa pela minha cabeça”. Conseguimos imaginar você rindo com aquele seu sorriso largo enquanto lê esta frase, não é mesmo, Fernanda? A Aline teve sorte de ter ao seu lado um irmão companheiro que, por ser gay, a entendia e apoiava também. O irmão é sua noção de família. Quando mais nova, ela cuidava dele e fazia a função de pai e mãe. Ela teve que amadurecer cedo para cuidar bem dele. A criança Aline era muito responsável, quando ia pra casa da avó ela fazia uma lista de afazeres e incluía o item “ficar quietinha” como parte de suas responsabilidades. Agora
você deve ter entendido porque você foi a escolhida para receber a história da Aline. Poderíamos ter escrito esse parágrafo sobre você também (tirando a parte de ficar quietinha, claro). Viu como vocês duas são tão parecidas? Assim como você, a Aline não gaguejou em nenhum momento em que contou sua história para nós. Sua voz é firme, de quem já foi muito questionada e hoje não tem muita paciência para estas coisas. E nem deveria, né, Fernanda? A sexualidade é dela e de mais ninguém. O desejo da Aline, hoje, também é firme. Ela ama homens e mulheres. Ela se aceita, se afirma e levanta sua bandeira: a Aline é bi. B-I-S-S-E-X-U-A-L, assim, com todas as letras. E que pensem o que quiser — ela já sabe quem ela é. Da mesma forma que você, que é lésbica e já entendeu há muito tempo que nem sempre conseguimos agradar todo o mundo, não é verdade? Fernanda, esperamos que conhecer a história da Aline tenha feito você entender uma nova parte da sua própria história. Recomendamos que você conheça ela na “vida real”. Vocês seriam ótimas amigas! Que tal chamar todo mundo para tomar uma cerveja qualquer dia desses? Com amor, João, Liz & Aline.
Belo Horizonte, 20 de outubro de 2016 Ei Arthur, como vai você? Sabemos que muitas coisas aconteceram desde que nos encontramos para a sua entrevista, mas esperamos que tudo esteja indo bem na sua vida. Como você sabe, em nosso projeto entrevistamos pessoas de diferentes idades, raças, escolaridades e vivências, porém ficou claro para nós que sempre haveria algo semelhante nas histórias dessas pessoas. Por mais que suas vidas estivessem, aparentemente, longe de serem entrelaçadas, sempre haverá um fio condutor que tem o seu início lá nos primeiros questionamentos sobre seus gêneros e suas sexualidades. Nesta carta, queremos que a sua história se entrelace com a da Fernanda, uma educadora lésbica que, atualmente, se dedica ao seu mestrado. Vocês dois foram as duas pessoas mais velhas que entrevistamos. Não que com 26 anos vocês possam ser considerados velhos, mas maturidade, inteligência e o controle sobre suas próprias vidas foram algo que ambos demonstraram ter. Sendo assim, tudo o que podemos te dizer antes de começarmos a contar a história da Fernanda, é que esperamos de coração que você goste de lê-la tanto quanto nós gostamos de ouvi-la. A Fernanda foi a última pessoa que entrevistamos para o nosso projeto. Extremamente falante, ela não teve nenhuma dificuldade de se expressar e conduziu a entrevista como se estivesse em uma sessão de
análise, fazendo perguntas para si mesma e em seguida respondendo-as, logo após uma breve pausa para reflexão. Quando questionada sobre as suas memórias de infância, a primeira coisa que a Fernanda fez questão de pontuar foi o seu relacionamento com o pai. Desde pequena, ela se tornou uma filha muito grudada a ele. A ligação entre os dois era tão forte que ela não o abandonava em nenhuma situação. O acompanhava desde ao bar da esquina até ao jogo de futebol. Para ela, essas memórias ao lado do pai são as mais preciosas de quando era criança. E a Fernanda não era uma criança qualquer. Ela era daquelas arteiras, que ralava os joelhos e quebrava o braço. A Fernanda sempre gostou das brincadeiras tidas como de meninos: corrida, lutinha, soltar pipa. Era a melhor da sua rua no futebol. Ela também não gostava de usar saias ou vestidos, o que ela gostava mesmo era de colocar um short, uma camiseta, calçar o tênis e correr atrás de seu pai. Porém, aos 13 anos, tudo mudou. Com aquela idade, a sociedade não permitiu mais que a Fernanda acompanhasse os passos do pai. Agora ela era mocinha e, portanto, não poderia mais ir à qualquer lugar. Boteco? Jamais. Estádio de futebol? Nem pensar. Esse rompimento da ligação com o pai foi muito difícil para a Fernanda. Foi complicado para ela entender o afastamento daquele que sempre esteve ao seu lado. Ela se sentiu abandonada. Hoje, já mais madura, ela sabe que o pai estava apenas agindo como alguém que sempre esteve imerso numa
sociedade que é machista. Ele queria afastar a filha de certas situações com o intuito de protegê-la. Apesar de ser homem, Arthur, você nos contou que teve bastante dificuldade para construir um bom relacionamento com o seu pai, mesmo querendo muito isso. Você não acha triste e injusto que uma filha seja forçada a não ser mais tão próxima do próprio pai, por regras impostas arbitrariamente pela sociedade? Nós achamos que sim. Apesar dos gostos considerados pela sociedade como mais masculinos, a Fernanda sempre teve mais amigas mulheres do que amigos homens, porém a identificação que ela tinha com essas garotas era de um querer ter e não de um querer ser. Ela sabia que era diferente e isso bloqueou a sua capacidade de fazer amizades. A Fernanda nunca teve uma melhor amiga, Arthur, dessas em que você dorme uma na casa da outra e faz tudo junto. Ela não entendia porque não conseguia interagir da mesma forma que as outras garotas interagiam. Ela sentia ciúmes, mas achava que era coisa de amiga. Esta dificuldade em construir relações mais profundas de amizade fez com que a Fernanda se tornasse uma criança mais solitária. Ela criou para si um modelo mais independente de ser e fazia tudo sozinha. A solidão na infância foi um tema recorrente entre os nossos entrevistados. Ela também te atingiu, Arthur. É triste pensar que em uma época de constante construção de personalidade, em que precisamos estar em contato com o outro e criar momentos de interação, tantas crianças se sintam sozinhas e perdidas em relação a si mesmas.
O processo de autoaceitação da Fernanda como lésbica também foi algo muito difícil, Arthur. Talvez tanto quanto o seu. No início da adolescência, a Fernanda ficava com todos os meninos que as amigas queriam ficar e não entendia porque elas achavam aquilo legal. Aos 14 anos, ela se viu gostando da primeira garota. Ela tinha um entendimento sobre o que sentia, mas sabia que devia esconder. Porém, em um certo momento, ela deixou esse sentimento escapar e acabou sendo rejeitada. Isto fez com que a Fernanda excluísse da sua cabeça a possibilidade de tentar algo com alguma garota novamente. A Fernanda seguiu em frente com a sua vida e aos 16 anos começou a namorar com um garoto. Ela o levou em casa, apresentou aos pais, se esforçou para fazer com que a relação desse certo, mas o namoro durou apenas três meses. Hoje em dia, seu ex-namorado é o marido da sua melhor amiga. A vida é cheia de surpresas, não é verdade, Arthur? As razões para o fim precoce daquele relacionamento eram claras para a Fernanda. O desejo por mulheres já existia, então ela passou a considerar a ideia da experiência. O problema, Arthur, é que a Fernanda tinha muito medo de assumir quem ela era e ser rejeitada pelas pessoas com quem convivia. Primeiro, ela decidiu contar para uma amiga que, para o seu espanto, a acolheu. Aos poucos elas foram ficando cada vez mais próximas, o suficiente para fazer com que a Fernanda se apaixonasse pela primeira vez. Como já esperava, ela não conseguiu guardar aquele sentimento para si por muito tempo e confidenciou o seu
amor para a amiga que, novamente para a sua surpresa, não se afastou. Elas continuaram sendo apenas amigas por um ano, até perceberem que o amor entre elas existia de forma igual. A partir desse momento a amiga se transformou em sua primeira namorada. Apesar da paixão, esse foi um relacionamento conturbado na vida da Fernanda. No fim, as duas tomaram caminhos opostos na vida: “Eu decidi assumir a Fernanda que eu era e ela decidiu fugir da pessoa que ela era.”. Pelo modo como a Fernanda nos contou sobre este relacionamento, Arthur, nós percebemos que o seu primeiro coração partido deixou marcas profundas que ainda persistem. Mas a Fernanda seguiu em frente, Arthur. Mesmo com as coisas não saindo como o planejado, aquele primeiro namoro com uma menina fez com que a Fernanda tomasse a decisão de não mais esconder quem ela realmente era. Apesar do medo que sentia de ver todos se afastando, a Fernanda decidiu contar para as amigas mais próximas que ela gostava de meninas. “Neste momento, eu entendi que eu precisava dividir isso com as pessoas. Aquilo era o que eu era e eu não podia e nem queria continuar me escondendo pelo resto da vida. Todas as pessoas para quem eu contei hoje são minhas melhores amigas. Elas não se importaram e me incentivaram para que eu vivesse a minha vida. Eu comecei a ver que existia uma outra possibilidade onde eventualmente algumas pessoas iriam me rejeitar, mas
outras não. E era fundamental pra mim que as pessoas que eram importantes na minha vida não me rejeitassem.” — nos disse a Fernanda com os olhos marejados. Se para alguns este momento de aceitação e de exposição pode significar liberdade, para a Fernanda o processo ainda estava incompleto. Apesar de já ter contado para os amigos, ela continuava sem se sentir bem. Tudo a consumia, Arthur, e a Fernanda entrou em um estado de depressão profunda, muito motivado pelo medo que ainda tinha da rejeição de sua família. Neste caminho, ela tentou namorar um outro homem, mas novamente as coisas não deram certo. Foi então que uma amiga a chamou para conversar. Sentou-se ao seu lado e a fez perceber que ela não precisava se forçar àquelas situações, que ela precisava parar e, finalmente, ir viver a sua vida. O sacolejo funcionou. A Fernanda decidiu assumir a sua lesbianidade para todos, inclusive a família. Ela contou primeiro para o irmão mais novo, que não demonstrou surpresas e a prometeu um apoio incondicional. Pouco tempo depois, ela chamou os pais para uma conversa e fez a revelação. Nas palavras da Fernanda, este foi um momento aterrorizante, uma das piores coisas pelas quais ela já passou. Eles não aceitaram a sua sexualidade. “O momento em que eu me assumi foi o destruidor da minha relação com os meus pais. Foi muito difícil pra mim perceber que, da mesma forma que eu não era a filha que eles esperavam, eles também não eram os pais que eu esperava.”. Quando você se assumiu, Arthur, também passou
por maus bocados. Temos certeza de que você é capaz de se solidarizar com esse momento na vida da Fernanda. Para a Fernanda, o que fez com que ela não caísse em um poço de mágoas com os seus pais foi a sua espiritualidade. A Fernanda é umbandista e encontrou em sua fé a aceitação que sempre buscou da sociedade. Os pais, católicos praticantes, também não aceitaram a nova religião da filha. “O que mais me chateia na vida é meus pais olharem pra mim e só verem a Fernanda que é lésbica e “macumbeira”. Me dói ter a sensação de que pra eles eu não sou mais nada. Que isto é o que mais importa em mim. Eu trabalho com o que eu gosto, estou fazendo o meu mestrado, tenho reconhecimento na minha área, mas pra eles nada disso importa.”. Foi com essas palavras que as lágrimas ganharam vida no semblante da Fernanda. Ela completou sua fala dizendo para nós o quanto se sente sozinha e que, hoje em dia, a única noção de família que ela tem é o seu irmão, que, depois que a irmã assumiu a lesbianidade, também se assumiu enquanto gay. Ficou bastante visível para nós, Arthur, que ainda fere muito na Fernanda o fato de que o preconceito e a rejeição que ela tanto temia não vieram de fora, mas do lugar que ela menos esperava que viria, da sua própria casa. Temos a impressão que isso também te feriu muito quando você se assumiu, Arthur, não é verdade?
Mas a Fernanda é uma mulher muito forte, Arthur. Ela sempre teve muita valentia para assumir as suas convicções e nós temos certeza de que ela continuará sendo assim. Desejamos que você também nunca abandone as suas. Esperamos que você tenha gostado de conhecer um pouco a Fernanda. Quem sabe um dia a gente não possa se reunir pra batermos um papo sobre a vida e nossas experiências? Seria bastante prazeroso. Com carinho, João, Liz & Fernanda.
Belo Horizonte, 22 de outubro de 2016 Oi Ingrid, como anda a vida? Esperamos que tudo esteja tranquilo e bem. Estamos lhe escrevendo esta carta para contar a história do Arthur. Assim como você, ele foi uma das pessoas que aceitaram participar do nosso projeto. O Arthur é gay e tem 26 anos. Apesar de ter nascido em BH, ele viveu a maior parte da sua vida em Brasília, para onde se mudou quando tinha dez anos de idade. O Arthur é graduado e recém mestre em comunicação. A história dele talvez tenha sido a que mais nos impactou. Isto se deve muito pela forma com que o Arthur é capaz de expressar o que vive e sente de uma maneira tão clara e sincera. Você iria amar poder conversar pessoalmente com ele. Enquanto isto não acontece, nós iremos te contar um pouco mais sobre quem realmente é o Arthur. A infância do Arthur não foi nada fácil. Desde que se entende por gente, ele já sabia que era diferente. Ele só não sabia o porquê. E não era porque ele se sentia diferente, mas porque as pessoas costumavam o colocar em um lugar de diferença. Aos 4 anos, o Arthur já ouvia do pai que ele precisava ser um homem e que não o havia criado para ser uma bichinha. O Arthur não sabia o que aquilo significava, a única coisa que ele sabia é que era algo ruim. Haviam várias razões para que o pai do Arthur dissesse aquelas coisas para ele. Quando criança, o Arthur se
encaixava perfeitamente no estereótipo criado de uma pessoa gay. Ele não se dava bem com os esportes, só andava com as meninas e adorava dançar. Infelizmente foram essas atitudes que fizeram o Arthur ter de enfrentar o seu primeiro preconceito dentro de sua própria casa. Aos 10 anos, quando mudou de cidade, o Arthur caiu de paraquedas em uma nova escola. Foi lá que ele sofreu o episódio de bullying que mais o marcou na infância. No recreio, enquanto esperava na fila a sua vez de comprar o lanche, o Arthur percebeu que algo de errado estava para acontecer. Um menino mais velho estava parado ao lado do caixa e o olhava fixamente. Quando chegou a vez do Arthur fazer o seu pedido, o garoto se abaixou e gritou alto, no ouvido dele, para toda a escola ouvir: “Engrossa essa voz, viadinho!”. O Arthur não entendeu muito bem o que aconteceu, a única coisa que ele entendeu é que ele precisava se retirar daquele lugar. Depois deste dia, ou o Arthur pedia pra ir ao banheiro antes do intervalo começar para comprar o seu lanche ou ele simplesmente deixava de comer para ficar dentro da sala. Foi nesta época que ele começou a ter desmaios e desenvolveu um quadro de hipoglicemia. A partir daquele episódio, o Arthur virou piada na escola. Todos os dias ele chegava em casa triste e deprimido. Os pais perceberam o estado do Arthur e questionaram a razão. O Arthur achou que, ao contar, teria o apoio da família, mas o que aconteceu foi
exatamente o contrário. O seu pai lhe bateu enquanto dizia que filho dele deveria saber se defender e não ser covarde. Foi neste momento que o Arthur começou a sentir que não existia um lugar para si no mundo, que ele não pertencia a lugar algum. O Arthur nunca teve amigos gays. Isto era algo distante para ele, pois antes de ter interesse, antes de se ver e se entender como um homem gay, ele já era categorizado como tal. Para o Arthur, se eles falavam que ele era, e o tratavam dessa forma, então aquilo deveria ser algo errado e, portanto, ele não queria ser. O que o Arthur começou a fazer, Ingrid, foi imitar os outros homens com atitudes babacas, como fazer piadinhas, ser agressivo, agir com as meninas de um jeito desrespeitoso, e até ridicularizar quem tinha coragem de se assumir. Esse período da vida do Arthur infelizmente durou muitos anos. Quando tinha dezessete anos, o Arthur se apaixonou pelo primeiro garoto. Ele começou a namorar escondido, mas nem por isto mudou o seu comportamento. O Arthur pensava que aquilo era algo passageiro e se irritava quando insinuavam que ele e o namorado estavam juntos. O namorado do Arthur ia dormir todo final de semana na casa dele. A mãe começou a desconfiar e a fazer perguntas, mas o Arthur mentia e dizia que ele e o namorado eram somente amigos. No dia em que estavam comemorando 1 ano de namoro, o Arthur recebeu uma ligação de sua mãe. Ela o pressionou via telefone até ele admitir que o amigo na verdade era o namorado. Foi aí
que tudo mudou. Ao chegar em casa, o Arthur ouviu diversas ofensas, sua mãe lhe tirou a chave do carro e o colocou de castigo, o acusando de “estar de gracinha com outros homens”. Ao ir para o quarto, o Arthur chorou todas as lágrimas que havia para chorar. A irmã foi até ele, sentou em sua cama, falou que ele não estava sozinho e que ela não iria abandoná-lo. Como em muitos casos dos nossos entrevistados, Ingrid, inclusive o seu, foi essa figura fraterna quem deu um sopro de esperança no coração do Arthur, justo em um momento em que tudo o que ele via era desespero. O padrasto do Arthur também foi ao seu quarto, ele olhou em seus olhos e disse que não tinha nenhum problema com o fato dele ser o que ele era, assim, sem dizer a palavra gay, mas completou dizendo que foi desrespeitoso trazer uma pessoa pra debaixo daquele teto e não ter sido sincero com a família. No mesmo dia, um pouco mais calmo, o Arthur ligou para o seu namorado, contou que a mãe havia descoberto sobre o relacionamento dos dois e marcou de encontrálo em uma esquina perto de sua casa. Quando o Arthur chegou no local combinado, deu de cara com o namorado chorando aterrorizado. A mãe do Arthur havia ligado para ele e ameaçado contar para os seus pais sobre a sua homossexualidade, caso ele não se afastasse do Arthur. Não havia outra alternativa. O namoro acabava ali. E aquele se tornou, até então, o pior dia da vida do Arthur.
O maior problema do Arthur é que ele e o agora exnamorado estudavam na mesma turma. No dia seguinte do ocorrido, o Arthur já se via sendo ignorado pelo ex. Mas o Arthur persistiu e insistiu até conseguir fazê-lo mudar de ideia e voltarem a namorar. Eles continuaram namorando escondido por mais 5 anos e enfrentaram dificuldades de um relacionamento à distância após o Arthur voltar a morar em Belo Horizonte. O Arthur nunca mais tocou sobre o assunto da sua sexualidade com a família, ele preferiu seguir em frente como se nada tivesse acontecido. Por tudo que enfrentaram juntos, Ingrid, pelas idas e vindas e pela intensidade que um primeiro amor é capaz de ter, este relacionamento foi um divisor de águas na vida do Arthur. O lado mais triste dessa história está no fato de que o seu ex-namorado acabou por falecer tempos depois do término da relação. “Ter uma pessoa como ele na minha vida foi muito importante para o meu processo porque nós descobrimos tudo juntos. A gente descobriu o que era se apaixonar, a gente descobriu sobre o que era ser gay, a gente enfrentou o mundo. Ele faleceu no ano passado vítima de leucemia, mas no último ano de vida dele, ele estava vivendo a vida que ele sempre quis ter, e eu nunca tinha visto ele tão bonito como naquele ano. Quando eu voltei do enterro dele, eu disse pra mim mesmo: foda-se! Foda-se esse mundo! Eu não quero que a minha vida acabe sem eu poder vivê-la. Desde então, minha vida é um livro aberto. Não tenho vergonha de falar que eu sou gay. Não tenho vergonha de ser afeminado na hora que eu quiser ser. Não tenho vergonha de pintar a unha. Eu não tenho vergonha.
Mas é um trabalho diário. Eu preciso olhar todos os dias no espelho e falar pra mim mesmo: você não vale menos. Você é isso tudo. Você tem que ocupar o seu espaço. E é por isso que eu acho importante a gente falar sobre isto e se apoiar porque ninguém mais apoia. E só quem entende o que é passar por isto, o que é ter uma vida reclusa, limitada, uma vida com medo, é que consegue empurrar as coisas para frente e dizer “vamos juntos”.” Este relato do Arthur veio cheio de lágrimas no rosto. Posso te garantir, Ingrid, que foi impossível para nós ouvirmos essas palavras e não nos emocionarmos juntos com ele. Quando o ex-namorado do Arthur faleceu, ele já havia se assumido para os seus pais. A conversa com a mãe aconteceu dentro do carro, a caminho do aeroporto. A reação dela foi bem diferente daquela conversa que eles tiveram quando ele ainda morava em Brasília. Dessa vez ela chorou bastante, de certa forma ficou feliz por ele novamente ter tido coragem de dizer à ela e reconheceu que, na primeira vez, ela havia feito tudo errado. No fim, as coisas se acertaram. Hoje, o Arthur faz questão de sempre estar envolvido com a causa LGBTQ e vê como resultado disso — e das batalhas que enfrentou na vida — o fato de poder servir de exemplo para os primos mais novos que já se assumiram. Ele se sente feliz de ver que essas pequenas questões são capazes de influenciar as novas gerações. Ainda tem feridas que de vez em quando surgem e fazem o Arthur chorar, Ingrid, mas elas são sempre de aprendizado. Ele retira o melhor que pode destas
experiências negativas. Elas fazem parte de quem ele é. O Arthur tem muito orgulho de ter passado por tudo isto, Ingrid, porque ele se tornou uma pessoa mais empática e humana. Hoje ele consegue olhar pelo olho do outro e compartilhar tudo de bom que possui dentro de si. Agora você já conhece um pouquinho melhor o Arthur, Ingrid. Este ser humano forte e que não mais se esconde de quem é, igual a você. Seria ótimo se um dia conseguíssemos encontrar todos nós para batermos um papo ao vivo, não é verdade? Vamos tentar providenciar isso? Um abraço apertado, João, Liz & Arthur.
Belo Horizonte, 24 de outubro 2016 Olá Maria Tereza, como anda a vida? Esperamos que tudo esteja na mais perfeita harmonia. Hoje decidimos te contar uma história especial através desta carta. Algo nos diz que você vai achar muito interessante o que temos para lhe dizer. A história que vamos te contar é a da Ingrid. Você ainda não sabe, mas a Ingrid é bem parecida com a Maria Tereza que também conhecemos por meio deste projeto. Vocês duas têm aquele sorriso leve, um tanto quanto tímido, mas que preenche qualquer vazio e que é capaz de receber qualquer pessoa com muito carinho. Vamos conhecer a Ingrid? A Ingrid tem 21 anos e é lésbica. Ela ama atuar, escrever, dançar. A arte está no seu sangue. Algo que nos ficou bem claro é que a Ingrid é o tipo de pessoa que sempre tenta fazer coisas boas e ser legal com todo mundo, assim como você. A Ingrid tem um irmão gêmeo e eles são muito próximos. O amor e apoio entre irmãos foi um tema tão recorrente em nosso projeto que poderíamos render uma carta inteira só sobre o assunto. Você também teve em seu irmão a sua maior base de apoio, não é verdade, Maria? Por serem muito grudados, a Ingrid nunca dividiu as brincadeiras entre coisas de menino e de menina. Eles viviam juntos e ela sempre gostou de carrinho, pipa e futebol. A Ingrid sempre foi muito extrovertida, já o seu irmão era o oposto, sempre muito tímido. Viu como vocês são parecidas,
Maria Tereza? Você também é dessas que reluz alegria por onde passa. Uma coisa que a Ingrid sempre escutou desde pequena, Maria Tereza, é que ela e o irmão “inverteram os papéis” no nascimento. Assim como você, ela cresceu em uma família preconceituosa e extremamente religiosa. Sua sexualidade nunca foi uma dúvida em sua mente, de alguma forma ela sempre soube que gostava de mulheres. Porém, como você bem sabe, o saber e o fazer são coisas bem distintas. A família, na época católica, vivia falando de forma pejorativa de pessoas LGBTQ, propagando para a Ingrid que aquilo era algo errado. A Ingrid assimilava essas pequenas agressões e sentia muita culpa. Aos 7 anos, ela passou por uma situação que nunca esqueceu. Um dia, enquanto brincava com sua prima, elas se sujaram e decidiram tomar banho. O pai da menina invadiu o banheiro e se masturbou enquanto as observava. Você pode se perguntar o que este caso tem a ver com a história que estamos contando sobre a Ingrid, mas isso mostra que o corpo e as escolhas dela sempre foram violadas e controladas. Ela não podia decidir o que fazer com ele. Sua vida não era dela. Infelizmente o abuso infantil também foi algo recorrente e inesperado em nosso projeto. A censura rodeou sua adolescência, vinda por todos os lados. Dos pais, que se tornaram evangélicos fortemente praticantes. Dos amigos, que diziam à Ingrid que ela precisava arranjar um namorado. Dos colegas de escola,
que tentavam a ofender e a chamavam com apelidos maldosos, como “maria homem” e “macho”. A Ingrid, então, se viu diante de um conflito gigantesco: ela tinha certeza que gostava de mulheres, assim como você também teve, Maria Tereza, mas todas as pessoas ao redor dela diziam que ela precisava gostar de homens. O que ela podia fazer? Ela não podia simplesmente ir até os pais e conversar sobre sua sexualidade, pois sabia que as reações não seriam as mais apropriadas. Aos amigos homossexuais, a Ingrid gostava de dizer que era bi. Ela sentia que precisava gostar de homens e se forçava a isso. Para a família e a igreja, ser homossexual era a pior coisa que ela poderia ser. Não havia como escapar desse julgamento. Esta heterosseuxalidade imposta deu as caras aos 15 anos, quando um garoto forçou o primeiro beijo de Ingrid. Ela odiou. Não teve mais contato físico com homens desde então. Ao invés disso, Maria Tereza, para conseguir se enturmar, a Ingrid se fazia de cupido entre seus amigos homens e suas amigas. Tudo o que a Ingrid queria, nesta época, era evitar suspeitas. Foi também aos 15 anos que a Ingrid teve sua primeira experiência homossexual e beijou uma outra garota. Ao entender que esse desejo seria algo permanente, a Ingrid teve muito medo. Um medo que você também teve e que muitas pessoas LGBTQ têm todos os dias: o medo de não ser aceita e perder as pessoas que você ama. Mas a coragem e a vontade de ser livre gritavam dentro da Ingrid. Isto te lembra alguém, Maria Tereza?
A Ingrid fez como você e primeiro confrontou a mãe, que não gostava do fato da Ingrid ter amigos LGBTQ. O pavor da mãe era que eles levassem a Ingrid para o famoso “mau caminho”. Um dia a Ingrid cansou e lançou o questionamento. “Mãe, se eu te falar hoje que eu gosto de mulher, qual seria a sua reação?”. Naquele mesmo dia, ela tinha visto na TV uma reportagem de uma mãe evangélica que havia matado a filha lésbica. Isto ficou na sua cabeça enquanto se assumia. A mãe, como era de se imaginar, chorou muito. Parecia que seu mundo havia acabado quando o medo de ter uma filha lésbica se concretizou. A mãe se recolheu por 4 dias sem falar com a Ingrid. Teve depressão. Culpou a filha. Imaginamos que você deve estar se identificando demais com a história da Ingrid nesse ponto, não é verdade, Maria Tereza? Mas, infelizmente, ainda temos muita coisa triste para te contar sobre esta história. Três meses depois depois de conversar com a mãe, chegou o momento da Ingrid contar para o seu pai. A Ingrid tremeu. O pai a olhou nos olhos e perguntou se era isto mesmo que ela queria. Ele foi direto: não achava natural. Era uma aberração. “Natural pra mim é o que eu sinto. O que eu sempre senti. Cansei de me reprimir, me segurar, porque vocês acham isto errado. Sempre gostei de mulher. Não vou deixar de gostar. Isto é apenas um aviso”. “, respondeu a Ingrid em um grande momento de coragem e autoafirmação. Você sabe como ninguém que não é fácil enfrentar os pais em uma situação como esta, Maria Tereza. Depois que ela se assumiu, as pessoas na igreja reagiram mal.
Alguns, que ela considerava como melhores amigos, se afastaram. Na colônia de férias, ela não podia mais dormir no mesmo quarto que a melhor amiga. Chegaram a espalhar uma notícia de que ela podia atacar as outras meninas caso dormissem ao seu lado. A Ingrid se sentiu como muitas pessoas homossexuais se sentem ao decidirem dar a cara à tapa: estranha, excluída, como um animal no zoológico, e isso doeu muito nela, Maria Tereza. Pouco tempo depois, o irmão da Ingrid também se assumiu como gay, o que foi menos complicado pelo fato dela já ter aberto o caminho. Assim como a irmã, ele também se cansou: lutou muito, se escondeu muito, até perceber que não valia mais a pena, era hora de se descobrir. Os dois decidiram sair juntos da igreja. Para a Ingrid, o próximo passo é sair de casa. Com os pais, eles não podem conversar sobre os assuntos que realmente desejam conversar ou sequer ouvir as músicas que gostam de ouvir. Em sua própria casa, ambos não podem mais ser quem eles realmente são. Eles precisam de uma liberdade que nunca tiveram. Antigamente, tudo o que a ingrid queria era se entender e fazer com que o mundo também a entendesse. Em algum momento de sua trajetória, ela percebeu que o mundo nunca faria isso. Os ataques a ela continuam, os mais religiosos a perseguem, ela ainda é chamada de pecadora. Uma notícia boa é que a Ingrid não liga muito para nada disso, Maria Tereza. Como você, ela é uma mulher lésbica e livre. Se os outros não gostam disso é problema deles. Ela quer apenas três coisas: ser, viver e acontecer. E nós
esperamos que ela consiga alcançar todos os seus objetivos. Deveríamos nos juntar um dia desses a ela e brindarmos em nome da liberdade das mulheres desse mundo, você não acha, Maria Tereza? Esta liberdade tão árdua de conquistar e ao mesmo tempo tão merecida. O fim desta carta acontece aqui e agora, Maria Tereza, mas quem sabe ela também não possa ser o início de uma bela amizade entre você e a Ingrid? Nós ficaríamos muito felizes se isso acontecesse. Com amor e um bocado de esperança, João, Liz & Ingrid.
Belo Horizonte, 26 de outubro de 2016 Olá Ramon, como vai o seu dia? Esperamos que ele esteja tão bonito como aquele em que te entrevistamos para o nosso projeto. Essa carta, escrita com tanto zelo e carinho, é para te apresentar uma pessoa especial: a Maria Tereza. Escolhemos te contar a história dela, Ramon, porque vocês dois têm em comum duas palavrinhas de grande importância: determinação e confiança. A Maria Tereza tem 25 anos e a primeira coisa que você precisa saber é que ela é lésbica. Digo isso, Ramon, não por a Maria Tereza ser uma pessoa definível apenas por sua sexualidade, mas sim pela evidência com que a lesbianidade dela se tornou uma parte muito grande e relevante sobre quem ela é. Assim como ser gay é uma parte importante sobre você. Alguns fatos sobre a Maria Tereza, ditos por ela mesma durante a nossa entrevista, fez com que criássemos em nossa cabeça a imagem de uma garota tranquila, que prefere ficar em casa, vendo suas séries ou filmes, do que sair. Ela gosta de passar algum tempo se divertindo com os seus amigos, mas não gosta de muita agitação. Neste aspecto vocês são tão diferentes, não é mesmo, Ramon? Você adora dançar e se conectar com a arte. Ama sair. Já a Maria Tereza tem uma fala mansa, tranquila, como quem tem uma sabedoria amadurecida por já ter vivido muita coisa, mesmo com seus poucos anos de idade.
Da infância ela não traz consigo muitas memórias. Porém, algumas lembranças sempre voltam, principalmente aquelas direcionadas a momentos difíceis que muitas crianças queers enfrentam: o bullying. Por muitas serem diferentes do padrão — seja ele o heteronormativo ou o estético — viram alvos de crianças e adolescentes que repetem por aí o comportamento de uma sociedade maldosa e preconceituosa. A infância de uma criança LGBTQ pode ser muito difícil e assustadora, por inúmeras razões. Não precisamos nem citá-las para você, Ramon, porque sabemos que de bullying, você (e muitos dos nossos entrevistados) também entende. A Maria Tereza sofreu bastante bullying na escola. E seus opressores eram, em sua maioria, homens héteros. Por essa razão, desde cedo, uma rejeição muito grande começou a brotar na cabeça da Maria Tereza. Como você pode imaginar, Ramon, ela nunca teve amigos homens héteros. Isto se assemelha muito ao que você também nos contou em sua entrevista, sobre se sentir desconfortável na companhia de outros homens que não sejam gays, não é verdade, Ramon? O que acontece é que esses homens riam do corpo da Maria, apontavam e faziam piadas. Eles não faziam parte da vida dela e nem ela queria que eles fizessem. Como ela poderia querer, Ramon? Você com certeza entende esse afastamento. Mas a Maria Tereza não associava isto com o fato de amar garotas — só hoje, anos depois, que ela consegue perceber essa peculiaridade e como isto mostra bem a sua preferência por ter apenas mulheres e homens gays ao seu lado.
A primeira lembrança da Maria Tereza com sua sexualidade vem de uma amiga muito diferente dela, que se relacionava com vários garotos na escola. Na época, ela achava que a raiva que sentia da menina era inveja por ela não conseguir fazer o mesmo. Mas hoje ela percebe que não era nada disto, a raiva, na verdade, era um ciúme que sentia por alguém pelo qual ela nutria uma admiração. Ela não queria beijar os mesmos meninos que a amiga, mas sim estar ao lado dela. Pode imaginar esta confusão, Ramon? Ela percebeu que sua relação com mulheres era diferente da de suas amigas héteros — ela não comentava sobre os cabelos, as roupas ou as unhas de mulheres, como suas amigas faziam. Ela gostava delas, as admirava, queria encostar, se aproximar, experimentar gostos e cheiros. A Maria Tereza, Ramon, como muitas outras pessoas LGBTQ, não deixou que este pensamento ocupasse por muito tempo a sua mente, ao perceber seus reais desejos. Ela ficou com homens até os 18 anos. Sua primeira grande paixão foi um garoto vizinho, que ela cortou de todas as suas fotos depois de sofrer uma decepção ainda na pré-adolescência. A Maria Tereza fez parte de uma geração de fakes na internet. Ela gostava de se passar por homens no mundo online para se envolver com outras meninas, já que na vida real essa possibilidade ainda não existia. Ela ainda precisava se esconder, como você também já precisou. Logo depois, a Maria Tereza conheceu uma garota por meio de um desses seus perfis fakes no Orkut, e aos poucos elas foram ficando cada vez mais próximas. Quando conheceu a menina tudo mudou. Ela achava que a
garota seria uma exceção, uma fase. A menina, que morava em outro estado, a pediu em namoro e acabou se tornando a sua primeira namorada. Foi um namoro à distância que durou um ano e meio, e elas somente se conheceram pessoalmente depois de um ano de relacionamento. Ela não considera seu processo de se afirmar como lésbica muito difícil, Ramon. Seu processo de aceitação, depois disso, foi rápido. Quando finalmente viu a namorada distante pela primeira vez, todas as suas dúvidas, questões e medos foram embora. Não havia mais como e nem o que esconder. A Maria Tereza era lésbica e depois deste encontro ela nunca mais duvidou disso, Ramon. Foi paixão, descoberta e aceitação. Ela passou em instantes por etapas que muitas pessoas LGBTQ demoram anos para concluir. Conhecer pessoas semelhantes à ela também foi um grande diferencial: quando nos vemos nos outros, podemos nos reconhecer como inteiros. Você teve alguém assim em sua vida, Ramon? Você deve estar pensando que tudo funcionou muito bem na vida amorosa da Maria Tereza. Mas a história foi bem diferente no que diz respeito à família dela. A mãe teve muitos problemas quando descobriu a lesbianidade da filha, através de uma foto de um momento de intimidade com a namorada esquecida em cima da escrivaninha. A mãe explodiu. “Se seu medo era ter uma filha lésbica, você tem”, a Maria Tereza gritava enquanto sua mãe lhe batia. Os pais, muito religiosos, viam a filha como uma pecadora. Você sabe a dor que é ser rejeitado pela própria família, Ramon. Imagina a dor da Maria Tereza?
A pessoa que mais a apoiou neste caos foi o irmão. Mesmo sendo mais novo, ele sempre a ajudou. Ele mal sabia o que estava acontecendo, só sabia que precisava estar ao lado da irmã. Quando fala do irmão, os olhos da Maria Tereza se enchem de lágrimas. Achamos que você ficaria muito emocionado se estivesse lá, Ramon. É interessante ver como muitos dos nossos entrevistados tiveram seus irmãos como principal apoio nos momentos mais difíceis. Isto tudo aconteceu há 6 anos, Ramon, mas a família ainda não aceita que a Maria Tereza é lésbica. Ela nunca apresentou uma namorada para os pais e sabe que isto é um sonho distante. O pai já pediu para que ela faça a escolha entre ser lésbica e ter uma família, como se sua sexualidade fosse um castigo. A mãe está cedendo aos poucos, mas ainda tem vergonha de que as pessoas da vizinhança fiquem sabendo sobre a homossexualidade de sua filha. A Maria Tereza é mais uma mulher lésbica afetada pelo pensamento conservador e religioso, que atinge tantas outras famílias no Brasil. Todos os dias alguma pessoa LGBTQ passa por algum momento difícil por causa desse conservadorismo, Ramon. É triste ver que histórias como esta se repetem constantemente. Para você e para a Maria Tereza, só basta resistir. E vocês resistem. A Maria Tereza não tem vergonha de amar quem ela quiser amar. “Hoje eu não escondo e não tenho vergonha nenhuma de quem eu sou. É claro que não saio gritando por aí que sou lésbica, mas sou 100% segura comigo mesma. Não tenho vergonha de andar na rua de mãos dadas com uma mulher. Não me importo com os olhares
feios, os comentários. Eu sou lésbica e é isso.”, ela nos disse com uma confiança na voz, assim como a que você demonstrou quando conversamos contigo. A Maria Tereza aguenta os comentários na rua. Os olhares de reprovação. Ela já passou por tudo isto e não precisa agradar ninguém mais além de si mesma. Viu como vocês são parecidos? Se ela pudesse voltar atrás, a única coisa que ela diria para a pequena Maria seria para não deixar a família a afetar tanto. Falaria para não desistir, para não se machucar. Para seguir em frente. E isto ela já está fazendo muito bem. E você também está, Ramon, todos os dias. Você e a Maria Tereza são exemplos de superação. De luta. Quem sabe um dia vocês não possam se esbarrar por aí para lutarem juntos? A vida é longa e o mundo é pequeno, afinal. Um abraço apertado, João, Liz & Maria Tereza.
Belo Horizonte, 21 de outubro de 2016 Oi Mauro, como você está? Esperamos que esteja exalando alegria e simpatia como sempre. Nós sabemos que você adora fazer amizades e conhecer gente nova, e é por isto que estamos lhe enviando essa carta, para lhe contar um pouco sobre o Ramon. Assim como você, ele foi um dos homens gays entrevistados para o nosso projeto. Algo nos diz que você vai adorar conhecêlo. Esperamos que isto realmente aconteça. O Ramon nasceu e cresceu em Belo Horizonte. Ele mora em um aglomerado na região central da cidade. O cenário que escolhemos para entrevistá-lo foi a Praça da Liberdade. Um lugar palco da resistência LGBTQ mineira, que sempre recebeu, e ainda recebe, jovens gays e lésbicas em seus primeiros, segundos, terceiros, enésimos encontros amorosos. Nós apostamos que este lugar também já serviu como palco para que você pudesse exercer e expressar a sua sexualidade, Mauro, estamos corretos? Em um fim de tarde ensolarado, nós sentamos com o Ramon em um dos bancos da praça e ouvimos alguns fragmentos de sua história. São estes fragmentos e reflexões que agora compartilhamos com você, Mauro. Então sinta-se à vontade para ler o que temos para lhe contar sobre o Ramon. A primeira coisa que o Ramon fez questão de nos dizer é que a sua infância não foi um período fácil de vida. Apesar de sua família sempre ter o apoiado no que diz respeito à sua estrutura emocional, eles não tinham
preparo para lidar com a sua homossexualidade e, junto com o resto da sociedade, ajudaram a podar aquela criança delicada que, mesmo cedo, já se sentia diferente dos demais garotos. Diferente não em termos de sexualidade, afinal não é comum que as crianças entendam estas questões de forma tão fácil e precoce, mas o Ramon se sentia diferente ao ver seus gostos e ações serem julgados como errados. Passar mais tempo com as meninas era errado. Brincar com bonecas era errado. Preferir rosa a azul era errado. Comparado aos demais garotos da sua idade, o Ramon simplesmente sempre se sentiu como uma pessoa errada. Você também foi uma criança que se enxergava como diferente, Mauro, mas felizmente, ao contrário do Ramon, em nenhum momento você foi julgado pela sua família por ser do jeito que era. Dever ser por isto também, Mauro, que você nunca se sentiu errado por agir da forma como sempre agiu. De memórias boas da infância, o Ramon trouxe à tona o seu gosto pela dança. Aquele jeito de se manifestar, que começou nas festas de família, o acompanhou e perdura até hoje. Das ruins, ele se lembra das repreensões do pai com coisas simples e aparentemente banais, como o uso excessivo de glitter nos trabalhos da escola, ou de quando o pai o usou como exemplo de “caso perdido”, ao dizer, apontando para o Ramon, que não adiantava ter um filho homem, se ao crescer eles ficavam daquele jeito. Às vezes, por mais pequenas que as ofensas possam ser, de onde elas vêm e o modo como são ditas, pode influenciar
a ponto de fazer com que jamais sejam esquecidas, não é verdade Mauro? De tempos em tempos estas memórias podem ressurgir e, na maioria das vezes, elas são capazes de provocar sensações nada agradáveis. O Ramon crê que foram essas pequenas coisas acumuladas ao longo da sua vida que o fizeram ter uma certa aversão aos homens heterossexuais. Quando o Ramon contou sua história para nós, foi bem fácil notar o desconforto e a dificuldade que ele tem de se aproximar destas pessoas. Porém, ao mesmo tempo, o Ramon demonstrou convicção em sua tentativa de transpor esse sentimento, de se impor e pedir respeito enquanto homem gay, e de mostrar que não há motivos para se temer, que existem pessoas que querem o seu bem, inclusive homens heterossexuais. Nós sabemos que, em via de regra, opressores costumam ser pessoas em situação de vivência oposta ao de quem é oprimido. Isto não significa que todos que são diferentes e opostos aos oprimidos são, necessariamente, opressores. Porém, é justificável uma ausência de empatia com semelhantes a aqueles que te oprimem e te fazem algum tipo de mal. A relação de convivência entre heterossexuais e homossexuais, permeada por elementos de preconceito, injúrias e desconhecimento, fez com que a segregação dos grupos fosse um caminho muitas vezes adotado, ainda que, para nós, essa não pareça, nem de longe, ser a melhor solução. O que você pensa sobre isto, Mauro?
“Eu não consigo lidar bem com homens héteros. É algo parecido com aquela questão de mulher que é abusada e não consegue mais lidar com homens. No dia a dia eu vou tentando melhorar isso, internalizar e dizer para mim mesmo que passou, que eu tenho capacidade de me firmar como pessoa e de impor respeito, mas é um trabalho diário.” foi o que o Ramon nos disse ao tocar no assunto. Ainda que hoje em dia o Ramon se sinta mais confortável tendo por perto companhias femininas e da comunidade LGBTQ, ele está feliz pelos passos dados e mudanças já conquistadas. O Ramon já não é mais um garoto tímido e fechado como antigamente. Agora ele diz não ter mais vergonha de se expressar e de ser quem ele realmente é perante qualquer pessoa, seja ela heterossexual ou não. Isto é algo que muitos homossexuais ainda almejam na vida, não é mesmo, Mauro? Quem dera se todos fossem iguais a você e soubessem ignorar o medo de ser exatamente do jeitinho que são, sem distinções. O Ramon se assumiu aos dezesseis anos de idade, Mauro, e viu este processo acontecer de um jeito melhor do que imaginava. Atualmente, o relacionamento dele com a família é bastante agradável, e ele nos contou que este é um processo construído diariamente na base do respeito de ambas as partes. Mesmo crendo que seus pais e familiares ainda não possuem um esclarecimento completo do que é sexualidade ou acerca de questões de gênero, hoje em dia ele sabe
que eles o aceitam e ainda são capazes de conviver em harmonia com o seu namorado. Existem certas feridas que se acumulam e são capazes de aprofundar buracos de sofrimento, e de trazer amargura às memórias do passado. Mas elas também podem servir como fontes de inspiração para fazer com que o ser humano siga em frente e supere qualquer nova adversidade que por ventura possa surgir na vida. Sentir medo de quem nos oprime não é um caminho justo com nós mesmos, muito menos um jeito eficiente de fazer com que mudanças aconteçam e de que estas pessoas deixem de serem nossas opressoras, você não acha, Mauro? Talvez a melhor solução seja exatamente a união entre os seus iguais, para que juntos seja mais fácil levantar a cabeça e mostrar que errado é aquele que não consegue aceitar as diferenças. Mal sabe a sociedade que o Ramon nunca foi o errado, Mauro. Ele sempre esteve certo, principalmente em ser quem ele realmente é. Esperamos que conhecer um pouco a história do Ramon tenha acrescentado à sua vida algum pensamento positivo, Mauro. Esperamos que em breve todos nós possamos nos reunir para conversar, rir, dançar, lutar por nossos ideais e sermos felizes juntos.
Um abraço carinhoso, João, Liz & Ramon.
Belo Horizonte, 29 de outubro de 2016 Ei Diogo, como vai? Esperamos que a sua vida esteja tão ótima quanto em nosso último encontro. Como andam os espetáculos? Tem vivido sua arte com a mesma intensidade e felicidade de sempre? Esperamos que sim. Diogo, você foi a primeira pessoa que entrevistamos para o nosso projeto. Desde então, muito tempo se passou e com ele vieram algumas mudanças em nossas vidas. Mas não são sobre as nossas mudanças que esta carta se trata. Nós queremos te contar as mudanças na vida de uma outra pessoa, de um homem gay, assim como você. Queremos te contar as mudanças na história de vida do Mauro e, acredite na gente, você vai gostar de ler sobre isto. Algumas pessoas dizem que mudar é um instinto do ser humano, Diogo. Algo que sempre acontece, mas que quase nunca a gente planeja ou sequer percebemos. Passamos por diversas mudanças ao longo da vida, isto é um fato. Algumas são mais sutis, outras são mais bruscas. Existem aquelas mudanças que são marcadas por datas e eventos. A gente sabe exatamente quando foi que a nossa vida deu uma virada, seja ela boa ou ruim, não é mesmo? Se mudar é algo inerente a quem somos, Diogo, talvez a única coisa que caiba a nós é reconhecer o aprendizado que cada mudança é capaz de trazer para as nossas vidas, e assim seguirmos em frente da melhor forma possível.
O Mauro mudou, Diogo. Ele mudou de opinião, de casa, de cidade e de vida. Assim como você, ele nos recebeu em seu apartamento com um sorriso amigável no rosto e nos conduziu para o seu quarto, onde tivemos a nossa conversa de um jeito tranquilo e ao mesmo tempo íntimo. O Mauro nos contou suas histórias de vida desde a infância até os dias atuais, e fez uma autoanálise sobre as próprias mudanças pelas quais ele passou ao longo dos anos e sobre como ele pôde aprender com cada uma delas. E são estas histórias que queremos compartilhar com você agora, Diogo, já que você sabe como ninguém como mudanças podem afetar a vida das pessoas. O Mauro é um publicitário de 23 anos apaixonado por tudo que envolva a cultura pop. Quando começou a sua entrevista, ele foi nos contando que, desde pequeno, sempre esteve muito próximo dos livros, filmes e novelas. Ele sabia as coreografias de Chiquititas e das girlbands da época. Para resumir o seu comportamento infantil, ele usou um termo que muitos dos nossos entrevistados também utilizaram, inclusive você: uma “criança viada”. Foi justamente por se enquadrar nessas características e trejeitos considerados mais femininos que o bullyng e o preconceito chegaram bem cedo na vida do Mauro. Um dos episódios mais marcantes para ele, foi quando alguns pré-adolescentes que moravam em sua rua o encurralaram e o atacaram com xingamentos homofóbicos. A criança Mauro teve medo de apanhar, saiu correndo, tropeçou, caiu e levou ao chão consigo os picolés que fora comprar para a família. Neste dia, o Mauro chegou
em casa chorando e foi questionado pela irmã da razão daquelas lágrimas. Depois de ouvir do irmão o que havia acontecido, ela contou para o namorado, que, por sua vez, foi até os adolescentes e os ameaçou dizendo que não era para repetirem aquelas ações contra o Mauro. “Um homem lutando contra outro homem por causa da masculinidade de um terceiro homem” foram as palavras ditas pelo Mauro para resumir a atitude do seu cunhado. Se você batesse um papo com o Mauro, Diogo, mesmo que fosse por apenas dez minutinhos, conseguiria perceber que ele possui uma personalidade muito forte e marcante. Destas que não deixa nada passar batido. E parece que desde pequeno ele é assim. Apesar de ter sofrido preconceitos e bullyings, ele não chorava por eles, não se deixava machucar com os comentários e nem carregou isto consigo pela vida. O Mauro nos disse que sabia que se expressava com uma performance sexual gay muito óbvia, mas que preferia não absorver isto enquanto criança e na adolescência. Quase nunca ele externalizava suas emoções afetivas e nunca teve impulso de tentar algo com qualquer pessoa com que sentisse algum interesse ou desejo. Em sua cabeça, a sensação que os outros homens causavam nele era mais por um querer ser, do que por um querer ter, e, por mais que ele tivesse consciência de que ele estava apenas se enganando com aquele pensamento, naquele momento de sua vida era mais fácil continuar com tal raciocínio. O relacionamento do Mauro com seus pais sempre foi de muita proximidade e respeito, talvez seja por isto
que ele nunca se sentiu sendo tolhido por eles. Mesmo com um pai considerado por ele rude e bravo, o Mauro nunca sentiu este preconceito vindo de sua própria família, algo diferente de você, Diogo, que enfrentou a homofobia familiar ainda tão cedo, não é mesmo? O Mauro aprendia as coreografias de suas cantoras favoritas e performava diante do espelho. Se o seu pai ou outra pessoa da família o flagrasse, ele sentia vergonha, mas não parava. Mais do que respeitar a sua família, o Mauro sempre respeitou a si mesmo. Ele sempre foi daquele jeito, não havia nada de errado com ele, então não havia nenhum motivo para que ele mudasse de comportamento apenas pela presença de um familiar por perto. Ninguém da família do Mauro jamais o cobrou a ser isso ou aquilo, a ter x ou y atitude. A única pessoa que cobrou dele foi ele mesmo. O Mauro sempre se cobrou no sentido de ser melhor do que as outras pessoas, já que em outros sentidos ele era tão diferente. “Existe uma coisa em ser uma pessoa gay que é você já começar a entender, desde cedo, que você é diferente da maioria das pessoas que te rodeiam, então, por isto, você tem que ser melhor do que elas. Eu sentia que eu tinha que ser melhor desde na escola até no jogo de vídeo game.” Esta fala do Mauro nos fez questionar: você também se sentia assim em relação ao balé, Diogo? Você sentia que precisava se tornar o melhor bailarino de todos? Quando decidiu contar para a mãe que era gay, o Mauro fez questão de dizer que ele continuaria sendo do mesmo jeito, agindo do mesmo jeito, andando como sempre andou,
falando da mesma forma e se mexendo de modo igual a antes de se assumir. E por mais que sua mãe tivesse se espantado com a notícia e não entendido a relação das atitudes que o filho sempre teve com o fato dele ser gay, o Mauro sabia que todas aquelas ações sempre estiveram diretamente ligadas a sua bagagem performativa de um homem homossexual. Quando começamos a escrever esta carta para você Diogo, mencionamos como as mudanças na vida do Mauro foram importantes, mas há uma em especial que o transformou completamente. O Mauro nasceu no interior, e quando passou no vestibular mudou-se para Belo Horizonte e passou a viver à quilômetros de distância da família a qual sempre foi tão ligado. Por mais que o Mauro fosse gay em sua cidade natal, foi somente com essa mudança que ele conseguiu realmente exercer a sua sexualidade e a sua liberdade enquanto indivíduo gay. E este pensamento inclusive foi construído previamente, antes dele vir para Belo Horizonte. Assim como você, Diogo, que queria usar a sua mudança para os Estados Unidos como um artifício para ser o homem gay que você é, o Mauro também queria usar essa mudança para Belo Horizonte para ser o gay que ele é. O mais bonito no Mauro, Diogo, é o afeto que ele é capaz de demonstrar num simples olhar ao falar das pessoas que são importantes pra ele. Seus pais, sua irmã, seus amigos. As lágrimas chegaram no final da sua entrevista, quando ele começou a dizer sobre como queria ter confiado mais nas pessoas que sempre estiveram ao
seu lado na vida. Seja pra poder desabafar ou para compartilhar todas as aflições que um homem gay pode ter durante a sua existência. Para o Mauro, ter sido uma pessoa mais aberta poderia ter feito seus pais entenderem melhor sua sexualidade, poderia ter feito ele sentir menos medo de ser quem ele é e assim se tornado uma pessoa mais feliz. “A gente precisa muito confiar nas pessoas. Eu aprendi isto vindo pra BH e confiando nos meus amigos. Eu percebi o tanto que eu amo e posso confiar na minha família, quando eu vi o tanto que eu conseguiria amar e confiar nas pessoas que não são dela. Eu precisei sair 100 Km da minha casa para outras pessoas me mostrarem isto, algo que talvez alguém da minha família poderia ter me mostrado antes.” Foi com esses dizeres que o Mauro encerrou a sua entrevista, Diogo, fazendo com que nós nos sentíssemos pequenos, mas ao mesmo tempo tão agraciados por termos tido a oportunidade de escutar tudo aquilo que ele nos disse. Esperamos que conhecer o Mauro tenha sido tão prazeroso pra você, quanto foi para nós, Diogo. Quem sabe vocês não se encontrem por aí qualquer dia desses em uma destas festas regadas à muita dança, música e brilho. Temos certeza de que vocês dois juntos são capazes de iluminar um palco inteiro. Um abraço apertado, João, Liz & Mauro.
Belo Horizonte, 31 de Outubro de 2016 Caro leitor, Até aqui você nos acompanhou fielmente. Leu cada carta. Conheceu cada pessoa e cada história. Foram horas dedicadas a esse projeto e é a você que queremos nos dirigir nesta última correspondência. A história que escolhemos para fechar o nosso projeto é a do Daniel e do Filipe. Dois irmãos gêmeos, estudantes de engenharia, de 23 anos e que são gays. A história deles não foi escolhida ao acaso para encerrar este livro. A sintonia que eles possuem entre si é a mesma que nós queríamos criar com você, leitor, desde o início do nosso projeto. Esperamos que tenhamos conseguido alcançar esse objetivo. Agora, sem mais delongas, te apresentamos o Daniel e o Filipe. A nossa entrevista com os meninos correu de forma bastante fluida e agradável. Parecíamos que éramos quatro amigos sentados em uma mesa de bar, tomando uma cerveja e discorrendo sobre a vida. Na realidade, não havia bar e muito menos cerveja. Mas as histórias estavam lá. Apesar de serem praticamente iguais na fisionomia, o Daniel e o Filipe são pessoas bem diferentes na hora de se expressarem. Em alguns momentos, enquanto um falava, o outro chorava. Em outros, enquanto um não se atinha aos detalhes, o outro gostava de mencionar cada singularidade dos momentos vivenciados. Mas a sintonia
entre ambos foi algo muito evidente para nós. Suas falas, suas ações e suas histórias se completam. E mais do que o amor fraternal, que foi tão relevante e mencionado em várias das histórias contadas neste livro, a amizade entre os dois nos pareceu ser eterna. Quando crianças, ambos queriam se envolver com a arte. Gostavam de cantar, dançar, faziam teatro. Eram fãs de High School Music. Tinham o sonho de serem artistas. Além disso, os dois sempre foram muito próximos, ligados, inclusive de terem bastante contato físico, desses que ocasiona abraços a todo momento. Ao questionarmos as suas memórias infantis de fatos que estivessem ligados às suas sexualidades, cada um lembrou de alguma história. O Filipe nos contou sobre as idas ao clube e as sensações que surgiam quando ambos frequentavam a sauna ou o vestiário com os outros homens. Era difícil para eles não olharem para aqueles corpos. Já o Daniel se recordou de um episódio um pouco mais delicado de quando tinha 12 anos. Um dia a sua mãe fez o famoso questionamento sobre as namoradinhas do filho e, após o silêncio do Daniel, perguntou se ele gostava de menininhos e completou dizendo que quem gostava de menininhos tinha uma vida muito difícil. Escutar aquelas palavras da mãe, que sempre fora a sua heroína, com a mentalidade que ele tinha na época, marcou com dor a vida do Daniel. Os meninos demoraram para confidenciar um ao outro as suas sexualidades. A primeira vez que o Daniel tentou
contar para o Filipe foi aos 16 anos. Repleto de ansiedade, ele foi à porta do quarto do irmão por diversas vezes, mas voltou em todas. Por mais que quisesse, não conseguiu juntar coragem o suficiente para derrubar aquele medo da rejeição. Nessa noite, o Daniel foi dormir com um nó na garganta. Apesar de não ter conseguido contar para o irmão, ele contou para uma amiga próxima sobre a sua homossexualidade. Foi o suficiente para que se sentisse melhor e mais aliviado. Pouco tempo depois, com a ajuda da amiga, ele chamou o irmão para caminhar e finalmente reuniu a coragem necessária para dizer a ele que era gay. Para o alívio do Daniel, o Filipe também revelou a sua homossexualidade. A verdade é que ambos já desconfiavam um do outro, mas eles estavam tão focados em enfrentarem seus medos e dores que, por isto, acabaram demorando tanto para contar um para o outro. Apesar de tudo, eles trataram aquele momento com muita naturalidade. O que não foi natural é o falecimento do primeiro garoto com quem o Daniel se relacionou na vida, aos 19 anos. O Filipe até tentou nos contar sobre a cena que presenciou no velório, mas as
lágrimas vieram e foi o seu irmão quem teve de concluir a história. Nesta época, apenas o Filipe sabia sobre a sexualidade do irmão, e vice versa. Juntos com a mãe, eles foram ao enterro do garoto. “Eu cheguei ao enterro e comecei a chorar ao ver ele e não poder dar um abraço, um beijo, ou sequer dizer o porquê de estar tão triste. Eu estava muito abalado, foi uma pessoa que eu gostei muito, foi o primeiro homem com quem eu me relacionei. Foi uma cena muito triste ver ele falecido, querer ter um contato maior, lembrar de toda a história que eu tive com ele e não poder me manifestar como eu gostaria. Eu queria gritar, mas sentia que tinha algo amarrado na minha boca me impedindo de fazer isso.”. Com toda a certeza, esse foi um dos momentos mais marcantes dentre as 14 entrevistas que fizemos para o nosso projeto. O relacionamento do Daniel e do Filipe com pessoas héteros sempre foi bastante tranquilo. A maioria dos amigos dos dois eram e continuam sendo homens héteros. Durante a vida, o Daniel e o Filipe nunca sofreram preconceitos na rua, escola ou nos lugares que frequentavam. Para eles, este fato se deve muito por não aparentarem ser tão afeminados quanto outros gays. Apesar disso, eles nos disseram terem sofrido muitas agressões psicológicas dentro da própria família. Foi o Filipe quem contou para a mãe que ele e o Daniel eram gays. Ele a chamou para ir ao shopping e, entre lágrimas, contou sobre a sua sexualidade. Ela era a
pessoa que os irmãos tinham mais medo da reação. Muito religiosa, a mãe dizia aos filhos que eles deveriam domar as tendências homossexuais, o que sempre fez com que eles se sentissem muito culpados. A reação da mãe não foi das piores, ela prometeu buscar ajuda para o filho e o colocou para fazer análise. Ela questionou ao Filipe se o Daniel também era gay, ele disse que sim, mas pediu pra que ela não tocasse no assunto e deixasse o irmão ter o seu tempo para lhe contar. O primeiro ano em que esteve assumido foi o mais difícil. Sua mãe, muito preocupada, recortava notícias de homossexuais agredidos em diversos lugares e situações e mandava pra ele. Além disso, ela pedia para que eles omitissem para os amigos mais próximos o fato de serem homossexuais. Hoje em dia a relação familiar dos meninos é ótima. Foi a mãe quem contou para o pai, e os irmãos mais velhos descobriram na terapia em família que todos fizeram. As reações foram bem tranquilas, a ponto de namorados começarem a frequentar a casa deles e até a dormirem nos mesmos quartos. Uma das coisas que aprendemos com este projeto, leitor, é que nem todo mundo sofre dos mesmos problemas por ser gay, lésbica, bi ou trans. Sempre haverá uma porção de razões, de escolhas, de sentidos que trazem particularidades para a história de vida de cada um. Mas é claro que coincidências também ocorrem. Algumas boas e outras ruins. Viver em uma sociedade envolvida sob regras, preconceitos e enquadramentos é uma tarefa difícil. Para aqueles que estão fora da norma é
necessário um esforço que, muitas vezes, faz com que estas pessoas rompam a barreira do viver para o sobreviver. Esperamos que um dia, leitor, você possa se encontrar com o Filipe, com o Daniel, com o Diogo, com o Marcelo, com a Lila, com a Mariana, com a Paulinha, com o Felipy, com a Aline, com a Fernanda, com o Arthur, com a Ingrid, com a Maria Tereza, com o Ramon, com o Mauro, com o João e com a Lizandra. Esperamos que este encontro seja terno. Sem medos e preconceitos. Apenas com uma vontade de desfrutar as suas vidas com imensa alegria. No mais, leitor, saiba que você sempre poderá ser o ranger que quiser. Com afeto, João, Liz & Daniel & Filipe.
QUERO SER O RANGEr ROSA: F R AG M EN T O S
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