Educação dentro do armário: relatos sobre a homofobia na escola

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Educação dentro do

armário

Relatos sobre a homofobia na escola

João Paulo Freire


Educação dentro do

armário

Relatos sobre a homofobia na escola

João Paulo Freire


Imagem de Capa Ricardo Kuraoka Diagramação Ricardo Kuraoka


Educação dentro do

armário

Relatos sobre a homofobia na escola

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo (USP), como pré-requisito para obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo. Orientador: Dennis de Oliveira São Paulo 2016



Aos viadinhos da sala – de todas as escolas; Aos meninos que nunca viraram “homem de verdade”, porque este ideal é uma mentira; Às meninas que não são belas, nem recatadas, nem do lar; A quem já foi expulso de casa e encontrou na rua o único lugar de trabalho possível; Às irmãs travestis que desistiram da escola, e nunca mais voltaram.



Agradecimentos Este livro não seria possível sem as histórias que o compõem. Aos jovens que generosamente falaram de suas angústias, medos e inseguranças, meu mais sincero agradecimento. Este livro é, primordialmente, sobre vocês e para vocês. Aos especialistas que dedicaram seu tempo e paciência para me esclarecer as questões em disputa no debate sobre gênero e sexualidade na educação brasileira, muito obrigado por sua disposição. Ao meu orientador, o professor Dennis de Oliveira, pelo olhar criterioso e sugestões preciosas. Aos membros da banca, Dennis de Oliveira, Sylvia Cavasin e Vitor Blotta, pelo respeito e confiança que depositaram neste trabalho. Às pessoas que me precederam neste Departamento e produziram outros trabalhos sobre diversidade sexual – sua coragem é inspiradora. Aos LGBT desta geração que têm erguido sua voz contra o preconceito e ajudado a transformar a vida de inúmeros jovens em conflito com sua sexualidade e identidade de gênero. Afinal de contas, um dia eu próprio já fui este adolescente em crise. Gostaria de citar nominalmente dois projetos que foram preponderantes em minha trajetória pessoal: o site “Os Entendidos”, que me proporcionou algumas das melhores leituras transviadas pela coluna “Dando Pinta”, de Fabrício Longo, e o Canal das Bee, no Youtube.


Antes mesmo desta geração, várias outras pessoas fizeram de sua identidade de gênero e desejo sexual duas poderosas ferramentas de disputa política por maior espaço de representação. De certa forma, este trabalho é fruto desta luta e não seria possível sem o empenho de muitos. À minha mãe, que tem feito deste mundo, o meu em específico, um lugar mais cheio de esperanças.


Não me sinto confortável para ser quem eu sou na minha própria escola. Isso sim atrapalha meus estudos, minhas notas e presença. Tenho muito medo de me expor para todos, tenho medo de sofrer agressões diferentes da que já sofro, tenho medo de ela deixar de ser somente verbal. (Depoimento de um estudante gay, 16 anos, do estado de São Paulo, à Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil, 2016) Historicamente, os sujeitos tornam-se conscientes de seus corpos na medida em que há um investimento disciplinar sobre eles. Quando o poder é exercido sobre nosso corpo, emerge inevitavelmente a reivindicação do corpo sobre o próprio poder. (Foucault, 1993)



Sumário Introdução Tem uma escola no meu armário!................................................. 13 Meça suas palavras, professor........................................................ 21 Por ser menina.................................................................................. 33 A violência do agredido.................................................................. 47 Como fabricar um homem............................................................. 59 O batom vermelho de Vita............................................................. 69 A história do clube feminista......................................................... 83 Conclusão Um livro das não-histórias.............................................................. 91 Bibliografia........................................................................................ 95



Introdução Tem uma escola no meu armário! Desde muito cedo eu sempre apresentei trejeitos afeminados, o que me fazia ser bastante criticado. Os meninos da minha sala me mandavam andar que nem homem, tomar jeito de homem, falar que nem homem e até mesmo virar homem. Eu sempre fui chamado de “viado”, “bicha”, “boiola”, “baitola” e todos esses nomes pejorativos referentes à homossexualidade. Em desrespeito ao meu gênero, eu era chamado de “mocinha”, de “mulherzinha” e fui apelidado de Rafagirl. Se tinha uma atividade na classe que de certo modo dividisse a turma em meninos de um lado e meninas de outro, sempre alguém falava que eu estava no lado errado, que meu lado era junto às meninas. (Relato pessoal enviado por email). Rafael nasceu em Canavieiras, no litoral sul da Bahia. Porque não se enquadrava no comportamento esperado para um menino de sua idade, foi hostilizado pelos colegas de classe. Nesse processo, ao invés de descobrir no ambiente escolar um lugar de apoio e acolhimento, ouviu inúmeras críticas pelos seus trejeitos afeminados e se acostumou com os vários xingamentos que recebeu. Rafael foi vítima de homofobia na escola. 13


Quando se descobriu homossexual, logo se deu conta de que, na verdade, não eram apenas os meninos da sua sala que tinham certa resistência em respeitá-lo, mas a escola como um todo. Rafael teve medo de assumir sua identidade por causa das piadinhas dos colegas, da forma como os professores se referiam à homossexualidade – quase sempre de maneira desdenhosa – e do fato de que esse assunto era evitado com frequência durante as aulas. Na escola, Rafael aprendeu que ser menina ou menino eram duas coisas muito diferentes, e que não existia no mundo uma divisão tão brutal como esta. Na escola de Rafael, meninos e meninas eram separados por filas diferentes, por uniformes diferentes, pela forma como eram tratados pelos professores, pelas liberdades que eram dadas a cada um. Neste ambiente, seu corpo era alvo de investimentos, tecnologias, disciplinas e disputas. Na escola, o corpo é educado (LOURO, 2000). Para Rafael, estava mais do que claro que a escola exigia seu silêncio. Essa era a única maneira de permanecer em segurança, sem ser ainda mais xingado ou agredido. Ele sabia do nível de violência que o aguardava caso desse um fim a todo aquele fingimento imposto pela escola.

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Eu temia encontrar os garotos da minha sala nos corredores do colégio, pois sempre que isso acontecia, eu era recebido com empurrões, eles colocavam o pé pra eu cair, me derrubavam, me davam cascudos, às vezes socos e chutes. Enquanto me agrediam fisicamente, eles riam e diziam que não gostavam de viado e que gays tinham que morrer. Eu também tinha medo de


envolverem minha mãe e ela ficasse sabendo que eu sou gay, já que na época eu ainda não havia contado. (Relato pessoal enviado por email). Situações como esta são mais comuns do que se pode imaginar. Todos os dias, estudantes são agredidos verbal, psicológica ou fisicamente dentro da escola devido a sua orientação sexual e/ou identidade de gênero. Porque não se enquadram nos padrões de comportamento esperados de acordo com seu sexo biológico, tornam-se alvos preferenciais das chacotas, das risadinhas, do escárnio e de um ostracismo cruel. A escola, composta de indivíduos com formações variadas, é um ambiente de intensas trocas simbólicas e negociações implícitas, um espaço privilegiado para a formação de saberes. No entanto, por fazer parte da sociedade, ela acaba absorvendo e reproduzindo em suas práticas uma série de preconceitos que são correntes na sociedade, como a homofobia. Rogério Diniz Junqueira, cientista social e pesquisador permanente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), desenvolveu em seus estudos o conceito de pedagogia do armário, definido como o “conjunto de práticas, relações de poder, classificações, construções de saberes, sujeitos, e diferenças que o currículo constrói sob a égide das normas de gênero e da matriz heterossexual” (JUNQUEIRA, 2013, p. 481). Não apenas no currículo formal, mas também no currículo em ação, que “se refere à pluralidade de situações formais ou informais de aprendizagens

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vivenciadas por toda a comunidade escolar (planejadas ou não, dentro ou fora da sala de aula), sob a responsabilidade da escola”, a heterossexualidade é “instituída, ensinada, naturalizada, presumida, reforçada e encorajada, como se fosse o único padrão de comportamento possível e aceitável”. Como resultado, os estudantes que não se encaixam nesses padrões tornam-se alvos preferenciais de preconceito e de investimentos de disciplina e correção de seu comportamento, assim como aconteceu com Rafael. Esses mesmos alunos, por fugirem da norma, são colocados num regime de invisibilidade e tratados como menos importantes. A eles não é dada a mesma liberdade de falar sobre si, de criar e expressar vínculos afetivos com outros colegas da escola, ou de construir saberes sem que sua orientação sexual ou identidade de gênero sejam motivo para que sofram violência no ambiente escolar. Esta violência acontece antes mesmo de eles se identificarem abertamente como gay, lésbica, bissexual, homem ou mulher trans, ou travesti. A fim de não reproduzir os mesmos equívocos que circulam no ambiente escolar, é necessário distinguir as noções de sexo, gênero e orientação sexual. O sexo é definido pelas marcas anatômicas formadas biologicamente a partir de informações genéticas. No entanto, “gênero é o conceito formulado nos anos 1970 com profunda influência do movimento feminista para distinguir a dimensão biológica da dimensão social, baseando-se no raciocínio de que há machos e fêmeas na espécie humana, no entanto, a maneira de ser homem e de ser mulher é realizada pela cultura. Assim, gênero significa que homens e mulheres são produtos da


realidade social e não decorrência da anatomia de seus corpos” (GÊNERO, 2009, p. 43). Por sua vez, a orientação sexual “refere-se à capacidade de cada pessoa de ter uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas” (PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA, 2006, p.7). Sendo assim, Rafael, o aluno baiano citado desde o início do capítulo, é do gênero masculino porque se vê contemplado pela identidade masculina, e também é homossexual, pois se sente atraído por outros homens. Em suas pesquisas, Rogério Diniz defende que a pedagogia do armário estabelece um regime de vigilância sobre todos os corpos, regulando também as expressões de gênero das pessoas. Essa vigilância acontece de forma capilar, todos vigiam todos, e a escola coopera com isso distinguindo as filas de meninos e meninas, os banheiros, as brincadeiras, as letras dos cadernos, as expectativas de desempenho escolar, as cores preferidas, o que é “coisa de menina” e o que é “coisa de menino”. Isso revela uma lógica binária diminuidora das identidades do ser humano. Dessa forma, o conceito de pedagogia do armário não deve ser entendido como um conjunto de práticas que ocorrem dentro do ambiente escolar e estimulam exclusivamente alunos LGBT a não se assumirem publicamente ou a entrarem para cada vez mais dentro do armário. Na verdade, a pedagogia do armário regula o comportamento de todos os alunos e alunas, sejam eles homossexuais ou não. Por exemplo, um menino de

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trejeitos afeminados e que gosta de dançar balé ou uma menina que prefere jogar futebol terão sua sexualidade questionada e podem ambos ser alvos de preconceito homofóbico, ainda que sejam heterossexuais. Isso porque o futebol é um esporte ligado à identidade masculina, ao passo que o balé é uma atividade entendida como apenas para as meninas. Neste livro, a homofobia não é compreendida apenas como um sentimento negativo de repulsa e aversão por pessoas homossexuais, uma vez que “a matriz heterossexual controla também as manifestações de gênero, abrangendo muito mais do que apenas a orientação sexual das pessoas”, mas também como “fenômeno social relacionado a preconceitos, discriminação e violência contra quaisquer sujeitos, expressões e estilos de vida que indiquem transgressão ou dissintonia em relação às normas de gênero, à matriz heterossexual, à heteronormatividade”, como explica Diniz. Desta maneira, é muito importante compreender este conceito mais amplo de homofobia, que também atinge sujeitos heterossexuais. A partir disso, tal violência torna-se num assunto de interesse de todas as pessoas, pois pode ser uma realidade para qualquer personagem da comunidade escolar, independentemente de sua orientação sexual. Aqui, a qualidade da educação está sendo posta no centro da discussão, tendo em vista que experiências, ou tipos de educação diferentes, estão sendo oferecidas aos alunos com base em sua própria identidade – o que, em teoria, não deveria acontecer. Assim sendo, é urgente que essas vivências baseadas em agressões homofóbicas – físicas ou não – sejam visibilizadas a fim de produzir uma maior empatia na sociedade e com o


intuito de alcançar um nível de qualidade na educação que seja igualitária com todos os sujeitos, sem produzir neles qualquer vestígio de trauma ou desencanto com o ambiente escolar. Na verdade, a escola deve se valer do fato de ser um ambiente de (des)construções e desestabilizar hierarquias, relações desiguais de poder e os preconceitos em que a sociedade está baseada. Para Paulo Freire (2003), “educar é construir, libertar homens e mulheres do determinismo, passando a reconhecer seu papel na história, considerando a sua identidade cultural na sua dimensão individual e coletiva”. No entanto, quando a escola não respeita essa identidade, ela deixa de valorizar as experiências individuais dos alunos e lhes rapta a possibilidade de se construir como sujeitos autônomos. O resultado é que o ambiente escolar acaba por produzir um cenário de desistências, evasão, desprezo e desilusões. Este é um livro sobre vivências. O objetivo maior é retratar a experiência escolar de jovens LGBT de diferentes cidades do país e seus processos de descoberta, enfrentamento e empoderamento, dando visibilidade a um contexto de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero no Brasil, reforçado inclusive por esforços políticos nos últimos anos. No decorrer das entrevistas, falamos com jovens de idades diferentes, que ainda estão na escola ou acabaram de concluir os estudos. Porque nem todos são maiores de idade ou têm sua sexualidade assumida publicamente, preferimos por trocar alguns dos nomes e preservar seu anonimato. Ao longo do livro, estes casos serão sinalizados com uma nota de rodapé quando da primeira citação do nome dos personagens em cada capítulo.

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A decisão é resultado de um sentimento de profundo respeito às pessoas ouvidas para a elaboração deste livrorreportagem e não desqualifica a verdade das experiências retratadas. Ao contrário disso, é imperativo reconhecer a coragem de tais personagens ao voltar às suas experiências passadas e resgatar, através da memória, acontecimentos por vezes traumáticos. Ressaltamos a generosidade dessas pessoas ao aceitarem falar sobre questões íntimas de sua identidade e assinalamos a empatia que se estabeleceu a partir disso. Também destacamos nosso cuidado para não recorrer a vitimizações ao relatar tais histórias, uma vez que, mesmo num contexto de vulnerabilidades, as personagens deste livro não foram agentes passivos, mas sujeitos protagonistas de suas vivências, e que também participaram de outras tantas trocas valiosas e enriquecedoras no ambiente escolar. Este é também um livro sobre o orgulho que venceu a vergonha e o preconceito. Sim, se assumir é um ato político, porque vivemos em uma sociedade que nós LGBTs temos menos direito, que somos cercados de ódio e muitos nos querem mortos. A gente precisa mudar isso. Temos que enfrentar, cobrar o que é nosso por direito. Temos que mostrar que existimos, que somos muitos. Se assumir não é só um ato político, mas também um ato revolucionário. (Relato pessoal enviado por email).

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Meça suas palavras, professor – Pras meninas, digam boa noite querido professor! Os meninos, digam e aí professor! Agora, como não tenho preconceito com as gays, todas as bichinhas podem gritar UHHH. Essa poderia ter sido apenas mais uma das piadas machistas e homofóbicas que tanto ouvimos nos cursinhos pré-vestibular. Mas como Lucas já sabia que elas se tornariam frequentes – e essa era a segunda vez que o professor fazia a mesma piada – ele não quis deixar passar. Levantou da cadeira e o questionou, em voz alta o suficiente para que todos da sala o ouvissem: – Professor, eu e meus amigos somos sim da comunidade [LGBT], mas a gente não se reconhece como bichinha. Como a gente faz pra te dar um boa noite? O professor, que queria descontrair os alunos desde o momento de sua entrada em sala, não havia se dado conta da violência de suas palavras. Faltava a ele, através de sua carreira de educador, refletir sobre esta pedagogia do insulto a que ele insistia em recorrer e em quão constrangedora ela podia ser. Questionado sobre a forma como gostaria de ser chamado, Lucas respondeu que “não quero que me chame de nada. Você é um desatualizado; hoje nos cumprimentamos com um inhaí, viado?”. Foi aplaudido pela sala toda. Ainda que a situação pareça pitoresca, Lucas, 20 anos, não estava tendo sua sexualidade ridicularizada por um professor pela primeira vez. As inúmeras experiências com piadas

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homofóbicas que já tinha ouvido anteriormente o ensinaram que sim, um professor pode ser muito preconceituoso. Campanha #VaiTerGêneronoPMESim

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Algo parecido aconteceu quando ele decidiu se envolver na campanha que pedia pela permanência dos termos “gênero” e “diversidade” no Plano Municipal de Educação de São Paulo, em junho de 2015. Organizada pelo Canal das Bee, um canal do YouTube que discute temáticas LGBT em seus vídeos – e um dos mais conhecidos, com mais de 282 mil seguidores – a campanha encorajava os seguidores do canal a usar a #VaiTerGeneroNoPMESim em suas redes sociais. Era uma forma de pressionar os políticos a reconhecerem o interesse da juventude em debater sobre o assunto na sala de aula. Lucas postou em seu Facebook uma foto sua segurando um cartaz com os dizeres “Em cada censura existe um pouco de verdade”, de Anne Frank, e as hashtags #VaiTerGeneroNoPMESim e #VetaHaddad. Ele, aluno gay, sabia que a motivação em censurar o debate sobre gênero na escola escondia a verdade sobre uma interferência de valores religiosos que ainda ditam o que de fato é discutido em sala de aula ou não. Um de seus antigos professores, da época que em estudava numa escola católica que preparava jovens do ensino fundamental para cursos profissionalizantes, decidiu intervir. Para o professor, que respondeu a provocação com um comentário sobre a foto, debater gênero na escola não é solução para o fim da discriminação. O que ele chamou de “ideologia


de gênero” estaria baseada no erro de interpretar a sexualidade como construção social. “Ninguém quer que seu filho aprenda que sua sexualidade é uma construção social, que ele/ela seja educado de uma maneira neutra, que ele deve ser o que quiser e quando quiser”. A posição de seu antigo professor reverberava a polêmica em torno de decisões políticas baseadas no retrocesso e conservadorismo para a área da educação. A ideologia de gênero é exorcizada do PME No dia da votação do texto final do PME, em 25 de agosto do ano passado, a ala católica, apoiada pela presença de denominações neopentecostais, organizou um comício religioso com discursos fervorosos e louvores a Jesus Cristo em frente à Câmara de Vereadores de São Paulo. Estiveram presentes lideranças como o Instituto Plínio Corrêa de Oliveira, formado por seguidores do fundador da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP). Aos gritos de “fora, gênero!”, grupos religiosos articularam forte resistência contra a inclusão de um debate antidiscriminatório no ambiente escolar, como previsto no texto original do PME. Apesar de numericamente menor, lideranças do movimento LGBT também compareceram com um trio elétrico, e o embate se deu início, dentro e fora do plenário. O apoio da igreja católica a uma versão alterada do texto original já era algo esperado. Dois meses antes da primeira votação, o cardeal-arcebispo de São Paulo, Dom Odilo P. Scherer, publicou um artigo de opinião no jornal O Estado de

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S. Paulo em que reconhecia a importância da educação para a formação do ser humano, mas alertava sobre os perigos do que chamou de “ideologia de gênero”, que segundo ele, “pressupõe o esvaziamento dos conceitos de homem e mulher, masculino e feminino, ao veicular a ideia de que o sexo biológico e físico seria um dado irrelevante, do qual seria necessário libertar-se para construir uma ‘identidade de gênero’ livre e arbitrária. A identidade sexual e de gênero seria, pois, fruto de uma elaboração subjetiva e voluntarista de cada pessoa”. Para o arcebispo, a distinção entre identidade sexual e de gênero seria “insustentável do ponto de vista filosófico” e “uma falsidade evidente do ponto de vista científico, uma vez que contradiz os fatos observáveis da realidade”. O religioso ainda defendeu que a introdução de tal ideologia geraria uma confusão entre as crianças e adolescentes na formação de sua identidade pessoal, despertaria neles uma “sexualização precoce e promíscua”, e “poderia abrir um caminho perigoso para a legitimação da pedofilia, uma vez que a orientação pedófila também poderia ser considerada um tipo de gênero”. O cardeal-arcebispo endossou ampla campanha organizada por setores religiosos da sociedade e contrários à aprovação de propostas inclusivas no currículo escolar. Para eles, o gênero seria uma ideologia criada a fim de doutrinar os alunos a acreditarem que seus traços biológicos não são preponderantes na formação de suas identidades pessoais. Pensar que uma pessoa nascida com uma genitália feminina não se torna necessariamente numa mulher é, para ele, uma heresia a ser combatida. O movimento religioso com amplo apoio da sociedade civil e grande poder de barganha política que insistiu na


existência de uma “ideologia de gênero” reclama pelo direito exclusivo dos pais em educar seus filhos em assuntos relacionados à sexualidade. A instituição familiar cumpre um papel de educadora sexual por excelência, segundo eles próprios. Por meio de uma visão passiva sobre a mentalidade das crianças e adolescentes, ambos religiosos e políticos acreditam que o aluno pode se influenciar de acordo com o conteúdo abordado nas escolas e, por exemplo, encarar a homossexualidade como algo normal ao invés de um pecado, caso ela seja debatida em sala de aula. A vereadora Juliana Cardoso (PT-SP) criou emendas favoráveis à inclusão do debate sobre gênero nas escolas e organizou um abaixo-assinado para apresentá-las em plenário. Durante seu voto, ela se colocou contra a versão final do texto do PME: Pela mentira que foi colocada e sustentada sobre ideologia de gênero, que não existe; por viver em um país republicano, laico, e por respeito principalmente ao artigo 5º da Constituição Federal; em respeito a todas as mulheres que ainda hoje são violentadas, agredidas e estupradas; pelas crianças, jovens e adolescentes discriminados no ambiente escolar; em respeito e solidariedade aos seres humanos e às pessoas e, principalmente à população LGBT que é discriminada, agredida e excluída do ambiente escolar… Meu voto é não!1 1 O jornalista Leo Moreira Sá, ele próprio um ativista transexual, fez uma cobertura sobre a votação do PME-SP, que pode ser conferida pelo link <http://bit.ly/2eU2z5C>.

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Como resultado da votação na Câmara de Vereadores de São Paulo, o texto original do PME foi alterado, e os termos “gênero” e “diversidade sexual” ficaram de fora. O texto inicial, aprovado pela Comissão de Educação, tratava da questão da diversidade e foi coordenado pelos vereadores Toninho Vespoli (PSOL) e Paulo Fiorilo (PT), mas sofreu ajustes significativos depois da enorme pressão da ala católica. Também foram retiradas do texto as partes do PME que ressaltavam a necessidade de respeito a um artigo da Lei Orgânica do Município, que garante a “educação igualitária, desenvolvendo espírito crítico em relação a estereótipos sexuais, raciais e sociais das aulas”, além das referências ao Plano Nacional de Direitos Humanos, que propõe medidas para a igualdade de gênero. O texto do PME foi aprovado sem menções ao debate de gênero e diversidade sexual nas escolas por 43 votos a favor e 4 contra. Além de Juliana Cardoso (PT), os vereadores Claudio Fonseca (PPS), Toninho Vespoli (PSOL) e Netinho de Paula (então no PCdoB) também votaram contra. A prefeitura sancionou sem vetos a versão final do PME, com diretrizes da educação para os próximos dez anos no município. De acordo com o texto, foi estabelecido um aumento do orçamento destinado à educação, de 31% para 33% da receita municipal, e traçadas metas para a diminuição de 29 para 25 alunos por professor na educação infantil e para a extinção de filas para vagas em creches. Pelos próximos dez anos, questões de gênero e sexualidade não estarão proibidas de ser abordadas em sala, mas continuarão sendo invisibilizadas no currículo formal da educação básica, dificultando a transformação de uma realidade opressora e reforçando um


contexto de violências físicas e psicológicas. Apesar de a liberdade de ensino e aprendizagem prevalecer sobre a ausência de tais questões no PME, contar com o apoio de políticas públicas que reconheçam a necessidade deste debate seria importante para produzir um contexto geral de melhora na qualidade da educação e de emancipação de sujeitos. A invisibilização de referências à sexualidade no PME de São Paulo seguiu o mesmo rumo que as negociações em torno do Plano Nacional de Educação, em que também por forte pressão religiosa, as propostas de debater assuntos como gênero, discriminação e orientação sexual foram excluídas do texto final. Na prática, professores e professoras continuam com o direito de abordar esses temas e tantos outros, mas a sua não menção no PME retrata, além de uma falta de vontade política, uma séria perpetuação do regime de invisibilidade e falta de empatia com a diversidade no ambiente escolar. O currículo se revela claramente como objeto de disputa política, e ao menos pelos próximos dez anos, ele estará sujeito a concepções religiosas e discriminatórias contra a população LGBT, ao invés de se alinhar à laicidade da educação pública e do Estado. A escola regular Ainda que Lucas tenha se surpreendido com a disposição deste antigo professor em responder ao seu comentário e foto, tal opinião conservadora sobre o debate de gênero na escola não foi nada novo para ele. A mensagem, na verdade, remeteu Lucas ao tempo em que estudou na escola em que tal

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professor lecionava, uma instituição católica composta apenas de alunos meninos. Lucas havia ingressado aos 12 anos nesta escola por muita insistência da mãe, pois apesar de não oferecer as séries de educação básica aos alunos, a instituição oferecia cursos profissionalizantes que garantiriam a entrada no mercado de trabalho. A presença dele nesta escola significava a segurança de conseguir um bom emprego para poder ajudar nas despesas de casa. Mal a mãe podia imaginar o tipo de constrangimentos a que o filho seria submetido. O fato de ser o único aluno gay da escola poderia por si só já representar uma enorme ameaça a Lucas. No entanto, além de gay, ele também é negro e umbandista. Este filho de Oxum, orixá feminino marcado pela sensibilidade e beleza, precisou aprender desde cedo que a escola era um lugar onde ele deveria esconder seus trejeitos de menina, que ele não poderia demonstrar interesse ou afeto por qualquer outro menino – e, mais do que isso, que deveria conviver com uma vigilância absurda sobre seu corpo por parte de seus colegas e professores. No vestiário, era impossível não olhar os corpos dos outros meninos. Por isso, Lucas esperava todos saírem para só depois entrar. A ideia de ser descoberto ou apanhar lá dentro era simplesmente angustiante. Ele não entendia como ou por que isso acontecia, mas seu desejo era estar sempre perto dos meninos que achava bonitos. Era visto como filho de uma família disfuncional. Além de ele não ser católico – começou a frequentar os terreiros de umbanda aos 7 anos, com uma tia, a contragosto da mãe


–, os pais eram retirantes analfabetos, o pai alcoólatra, com outros filhos anteriores ao último casamento. A escola insistia em ensinar a Lucas, com a benção redentora de Cristo, que a família tinha uma função e formato específicos: deveria ser composta por pai e mãe casados, com filhos sendo criados no evangelho. Cabia aos pais a tarefa de ensinar os filhos a sempre confessar seus pecados, inclusive através do padre disponível na escola, tanto para alunos quanto para professores. Na escola regular, que frequentava durante a tarde, Lucas tinha amigos gays que não se entendiam como tal, mas se acolhiam mutuamente. “A gente conversava sobre meninos, mas a gente nunca se reconheceu como gay. Era uma coisa estranha, não entendo até hoje”. E foi lá que Lucas começou a entender quem ele era de verdade, e de que forma sua sexualidade seria alvo de escárnio por parte dos colegas na escola. Ele lembra da experiência de um colega da escola, que era muito afeminado e vivia ouvindo chacotas sobre seu comportamento. Ao entrar no banheiro masculino, este aluno – que também era o “engraçadão da turma” – viu os meninos maiores se reunirem e abaixarem as calças para exibir seus pênis a ele, numa clara postura de assédio. Todos aqueles adolescentes estudavam numa série mais avançada que o colega de Lucas e se dispuseram a lhe dar uma lição. Mostrar suas genitálias ao “viadinho da turma”, escondidos no banheiro masculino, era uma forma de ensiná-lo a virar homem. Toda a virilidade desses alunos estava demonstrada no tamanho dos pintos – e a coragem do assédio veio pela certeza que nada poderia ser feito contra eles. E não foi feito mesmo. O colega gay de Lucas foi até chamado à direção para contar

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sobre o que havia acontecido, mas a escola nunca se dispôs a intermediar este conflito. A postura foi a de jogar panos quentes na situação e tratar disso como um caso isolado. Em meio a toda a confusão própria da adolescência, e numa época em que Lucas procurava coragem para se assumir para os pais, ele foi marcado pelo trabalho de uma professora de português, que usou o livro “Carandiru”, de Drauzio Varella, para abordar assuntos como gênero e sexualidade em sala de aula. A proposta era ousada: através da leitura e debate de passagens do livro, os alunos conheceriam a realidade deste presídio e a forma com que os detentos expressavam sua sexualidade. A professora aproveitou a oportunidade para discutir sobre métodos de contracepção, o surto de HIV, a história das travestis e, claro, dos homens que transam com outros homens. Falar sobre a sexualidade dos detentos foi uma forma criativa de incentivar os alunos a pensarem sobre suas próprias vivências, inclusive aquelas consideradas “desviantes”. No caso de Lucas, serviu também como incentivo para que ele se reconhecesse em parte na história de alguns personagens, e se libertasse daquela prisão que o encurralava dentro de si mesmo. Mãe, eu gosto de meninos

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Durante uma viagem a Palmeira dos Índios, terra natal dos pais, Lucas tomou coragem e se assumiu gay para sua mãe: “Eu gosto de meninos”. Para a mãe de Lucas, era difícil lidar com a situação. Ainda que ela já morasse em São Paulo


há mais de 20 anos, seu mundo ainda estava ligado ao interior de Alagoas. A expectativa era de que o filho estudasse para se livrar do ranço de ser negro e filho de retirantes nordestinos, o que São Paulo fazia questão de lhe lembrar. A mãe de Lucas foi criada na cultura de uma cidade em que os homens, apesar de assumir o posto de provedores da casa, não têm muitas oportunidades de emprego ou estudo. Ou têm um bar, ou quebram pedra na pedreira. Palmeira dos Índios é também uma cidade com grande histórico de violência doméstica. O pai, já falecido, nunca soube da sexualidade do filho. A verdade é que até hoje Lucas enfrenta alguma resistência de sua mãe pelo fato de ser gay. No entanto, tal oposição não é quase nada se comparada com aquela que sofre fora de casa. Para Lucas, se assumir foi um ato político que mudou a sua vida. Foi só a partir de quando se assumiu que começou, por exemplo, a confiar em sua autoestima e usar as roupas de que mais gosta – como a calça jeans preta apertada, as alpargatas e a blusa de lã verde musgo entalhada e bem feminina com que se vestia no dia da entrevista. Depois de se assumir para a mãe, foi à Parada LGBT de São Paulo para celebrar sua descoberta e a possibilidade de estar lá. Fez amizades com pessoas que o aceitassem, como a Patrícia e a Kátia, que conheceu nas aulas de dança da academia de um dos irmãos. Aprendeu a ter orgulho de si, de ser jovem, negro, gay e periférico. Viver, para ele, tornou-se algo mais perigoso. Resistir se provou necessário. No terceiro ano, mudou de escola porque precisava trabalhar. Encontrou um professor incrível, que o ensinou que

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a arte pode transformar as pessoas e fazer com que elas encontrem suas raízes. Daí veio a escolha profissional, que traz consigo uma ironia de estar relacionada a um ambiente em que ele sempre se sentira excluído: Lucas quer ser professor de artes. “Quero que meus alunos se identifiquem comigo tanto quanto eu me identifiquei com meu professor. Quero ser se não igual, melhor que ele”. Jackson, o professor de artes, nordestino e bem afeminado, mobilizou toda a comunidade escolar na organização de uma festa de fim de ano. Mas a maior transformação foi a que ele provocou na vida de Lucas, que entendeu que ele pode desenhar sua própria história, e que ela pode ser cada vez mais colorida.

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Por ser menina A população de Florianópolis, estimada em cerca de 477 mil habitantes pelo IBGE em 2016, chega a quase triplicar durante a alta temporada. Entre os meses de dezembro e fevereiro, turistas vindos de toda a parte do Brasil e de países vizinhos como Uruguai, Argentina e Chile, procuram pelas praias paradisíacas e festas movimentadas da região. Na Beira Mar, euforia. Na escola, homofobia Em meio ao sol escaldante do verão, a ilha oferece a seus visitantes LGBT uma segurança difícil de se encontrar em outras cidades brasileiras. Isso porque Florianópolis tem uma lei anti-homofobia em vigor desde 2009, que prevê punição a comportamentos de discriminação contra qualquer pessoa devido a sua orientação sexual ou identidade de gênero. O autor da lei, Tiago Silva, assumidamente gay, foi o vereador mais bem votado nas eleições de 2012. Na cidade, a Parada da Diversidade de Floripa é o segundo evento que mais atrai turistas – atrás apenas da queima de fogos no Réveillon – e que em 2016 completou a sua décima edição. Neste ano, o evento teve seu nome mudado para Parada do Orgulho LGBT de Florianópolis a fim de dar mais visibilidade à cidadania deste segmento. 33


No entanto, se no verão a cidade fica cheia, inclusive com eventos voltados especificamente para o público LGBT, como na Avenida Beira Mar Norte, na famosa Praia do Mole e na região da Lagoa da Conceição, o clima de respeito às diferenças muda muito na baixa temporada. Marina2 sempre desconfiou de toda a liberdade dada aos turistas LGBT em Florianópolis. Ela nasceu na ilha e sentiu na pele a contradição que é morar numa cidade turística, com fama de ser acolhedora da diversidade, e sofrer homofobia em seu dia a dia, sobretudo na escola. Apesar da lei anti-homofobia (7961/2009), que prevê advertências e até o cancelamento de contratos comerciais com a Prefeitura, a realidade de quem vive ali é bem outra, muito diferente da euforia encontrada na praia de Jurerê Internacional ou nos megaeventos do Bar do Deca, onde os corpos de homens bronzeados desfilam seminus sem se preocupar com um possível ataque homofóbico. É como se os turistas, que fazem a economia da cidade girar, pudessem ter uma outra vivência, sem tantos pudores e limitações. Quando mudou de escola para estudar o Ensino Médio, Marina já havia se assumido lésbica para os colegas mais próximos, mas não para os da nova escola, porque estes nunca existiram de verdade. Ainda assim, ela não hesitaria tanto em falar sobre sua sexualidade neste novo ambiente, caso fosse diretamente questionada. Marina se sentia sozinha num lugar

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2 O nome original da personagem foi modificado para preservar seu anonimato.


desconhecido, ninguém falava com ela ou a convidava para fazer trabalhos em grupo. Garota tímida, foi estudar numa escola famosa na cidade por já ter aparecido em diversas séries de televisão. Aquela parecia a chance ideal para que ela finalmente fosse para um lugar em que seria aceita, onde encontraria o seu próprio espaço e seria respeitada por ser quem ela é. Mas não foi bem assim. Como não tinha tantos amigos, e nunca fora de falar muito, com frequência era vista sozinha durante o intervalo. Ela era uma novata na escola, de quem pouco se ouvia, mas muito se falava. Se, por um lado, os meninos a achavam uma estranha, ou “nojenta”, como ouviu algumas vezes, por outro, as meninas preferiam não se misturar. Ser vista ao lado de uma garota lésbica poderia levantar especulações horrendas sobre sua própria sexualidade. Não parecia ser uma boa ideia andar ao lado de Marina, ainda que ela tivesse todo um jeito dócil de ser. Uma vez que se especulava muito sobre sua personalidade, e ela nunca esboçava uma reação altiva aos xingamentos que recebia, Marina parecia ser um alvo ideal de bullying na escola. Quando falava em sala de aula, apesar de raro, era como se estivesse pedindo desculpas por lembrar aos colegas que ela estava lá, que também existia. Certo dia, Marina foi empurrada da escada por uma outra menina da escola. No fim das contas, quem se importaria caso algo grave tivesse acontecido? Quem se daria conta de que aquele empurrão colocaria em risco não apenas sua integridade física, mas também suas expectativas em relação à escola? Marina não conhecia bem a garota que a

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empurrara, mas sabia que ela era uma das tantas meninas que a olhavam de atravessado, sempre que se esbarravam pelos corredores. Não era apenas ela que estava sendo empurrada, mas também a sua autoestima, que desceu até o último degrau. Hoje, ela ainda é uma aluna introspectiva e com dificuldades em falar sobre si. Quando entrava no banheiro, as conversas acabavam repentinamente e o silêncio tomava conta do ambiente. Para Marina, era claro que sua presença era um tanto constrangedora e às vezes tóxica. Por ser menina no Brasil: crescendo entre direitos e violências

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A fim de se livrar dos assédios que ouvia dos meninos, Marina teve a ideia de fingir um namoro com uma garota bissexual, que também era alvo de bullying na escola. Mas isso atiçou ainda mais a curiosidade dos rapazes. Mesmo proibidas pela escola de andar de mãos dadas, porque isso podia “influenciar as outras crianças”, as duas enfrentaram as determinações da diretora e investiram na farsa. Foi quando os meninos passaram a convidar as duas para transarem com eles. Ao fazer tais propostas, os meninos colocavam em prática o papel para o qual haviam sido ensinados, de homens destemidos, a quem é dada uma liberdade bem maior do que a das meninas. E exatamente por terem nascido homens é que tinham a liberdade para assediar Marina e sua namorada, mesmo sabendo que elas não queriam nada deles. Ter nascido


homem também deu liberdade a um outro garoto, desconfiado de que Marina estaria interessada em sua namorada, para que ele ameaçasse bater nela. “Sapatão do caralho, nojenta”, foi o que lhe disse. Para esses garotos, era impossível entender que a mulher pode ter autonomia do seu próprio corpo, sem precisar de qualquer homem para satisfazê-la. De certa forma, a escola era conivente com tudo aquilo, pois, no máximo, eles eram repreendidos pela direção, que julgava a situação como “coisas de garoto”. Marina, por ser menina, foi colocada em várias situações de vulnerabilidade, como os assédios dos meninos, e via que sua liberdade na escola era bem menor do que a deles. Uma pesquisa inédita realizada pelo Instituto Plan, organização internacional que atua na defesa de direitos da criança, analisou as desigualdades de gênero no Brasil a partir de entrevistas com 1.771 meninas de 6 a 14 anos em 58 escolas-amostra e outras 9 escolas quilombolas dos estados do Pará, Maranhão, Mato Grosso, São Paulo, e Rio Grande do Sul. O estudo “Por ser menina no Brasil: crescendo entre direitos e violências” mostra a realidade das meninas no país e faz uma relação com suas perspectivas de trabalho, lazer e estudo. Em cada 5 meninas, uma delas conhece outra menina que já sofreu violência, sendo que 37,7% das meninas acham que meninas e meninos na prática não têm os mesmos direitos (porcentagem praticamente igual para as meninas quilombolas). Quando questionadas sobre o que é importante para ser feliz, grande parte delas (89,2%) disse que é necessário estudar. No entanto, as meninas têm de lidar com uma realidade de trabalho doméstico desde cedo, o que não acontece entre

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os meninos, e elas acabam perdendo o tempo que seria dedicado ao estudo e lazer. “Enquanto 81,4% das meninas arrumam sua própria cama, 76,8% lavam louça e 65,6% limpam a casa, apenas 11,6% dos seus irmãos homens arrumam a sua própria cama, 12,5% dos seus irmãos homens lavam a louça e 11,4% dos seus irmãos homens limpam a casa”, como o estudo revela. Cerca de um terço (30,3%) das meninas costumam faltar muito às aulas. Apenas 3,2% das meninas em escolas urbanas particulares já foram reprovadas, contra 12,7% nas escolas públicas urbanas, 19,3% nas escolas públicas rurais e 19,5% nas escolas quilombolas. A pesquisa também aponta que um total de 13,7% das meninas de 6 a 14 anos no Brasil trabalham ou já tiveram experiência de trabalho, quando, por determinação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o trabalho para menores de 16 anos é proibido, com exceção da condição de jovem aprendiz (a partir dos 14 anos). Entre as meninas que trabalham, a maior parte delas (37,4%) afirmou estar realizando trabalho doméstico na casa de outras pessoas. Outro achado importante foi a naturalização do cuidado pelas crianças como algo feminino. São as mães (73,6%) que mais cuidam das meninas no dia a dia, e quando a mãe tem jornada dupla de trabalho, a situação para as meninas é ainda mais alarmante, uma vez que elas serão responsabilizadas tanto pelas tarefas de casa quanto pelo cuidado dos irmãos pequenos. Uma curiosidade a ser destacada é que mais da metade das entrevistadas (65,5%) discordaram da afirmação de que “meninas só devem brincar de boneca e meninos de


carrinho”. Nota-se que, deste percentual mencionado, 42,1% foram enfáticas ao declararem que “discordam totalmente” desse enunciado e que “a linha que divide as brincadeiras tipicamente femininas e masculinas parece se tornar cada vez mais tênue”. Todavia, um terço das meninas disse que o tempo para brincar durante a semana é insuficiente. A campanha mundial do Instituto Plan “Por Ser Menina” acontece em mais de 50 países, e culmina a cada ano no dia 11 de outubro, dia instituído pela ONU como Dia Internacional da Menina. A proposta é chamar “a atenção para a necessidade de efetivar políticas públicas na busca de garantir os direitos das meninas dentro da igualdade e da justiça de gênero”. Ainda por ocasião do Dia Internacional da Menina, a ONG “Save The Children” publicou um relatório em que o Brasil foi classificado como o 102o pior país do mundo, entre 144, para ser menina, ficando atrás de nações como o Sudão, Iraque, Índia e Síria. De acordo com a “Save The Children”, “o Brasil, apesar de ser um país de classe média, convive com elevadas taxas de casamento e fertilidade infanto-juvenis, contribuindo para sua colocação no ranking. Além disso, a maior economia da América Latina registra baixos índices de escolaridade secundária entre as meninas”. A situação da mulher brasileira Apesar de as meninas ainda terem dificuldades de permanecer na escola, como retratado nas experiências de Marina, há diversos dados que mostram que, hoje, elas têm maior

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acesso à educação que os homens e, historicamente, estão ocupando cada vez mais espaço no mercado de trabalho. Estimativas do Censo Demográfico de 2010 apontam que, entre a população de 15 a 29 anos, 3,6% dos homens eram analfabetos, contra 1,9% das mulheres. Marcadores como gênero e raça ainda atravessam a experiência escolar de forma preponderante no Brasil, isso porque, segundo o Censo Demográfico de 2010, entre os jovens de 15 a 17 anos da região Sudeste, a taxa líquida de matrícula das meninas brancas era de 64,4%, dos meninos brancos 57,9%, das meninas negras 52,8% e dos meninos negros, 43,2%. Em consequência disso, a presença feminina no ensino médio regular é maior (52,2%) que a dos homens (42,4%), considerando a faixa etária entre 15 e 17 anos. Elas também são maioria (60%) entre os concluintes da educação superior no Brasil, de acordo com o Censo de Educação Superior de 2014. No entanto, apesar de serem maioria nos cursos de graduação, as mulheres ocupam mais vagas nas carreiras de Educação (83%) e Humanidades e Artes (74,2%), as duas áreas com os menores rendimentos médios (R$ 1.810,50 e 2.223,90, respectivamente), segundo o estudo “Estatísticas de Gênero: uma análise dos resultados do Censo Demográfico de 2010”. Portanto, mesmo tendo maior acesso a oportunidades de formação, as mulheres ainda estão fora de profissões consideradas masculinas – como engenharia e direito – e têm maiores dificuldades para alcançar cargos de prestígio, que oferecem maiores salários. Elas podem até estudar mais e trabalhar fora de casa, mas ainda ocupam posições hierárquicas menos favorecidas que os homens.


Por isso mesmo, a conquista feminina de maior espaço na educação e no mercado de trabalho ainda não foi suficiente para extinguir o machismo, a homofobia e a misoginia do ambiente escolar e da sociedade de forma geral. Casos como o de Marina mostram quão urgente é debater sobre temas como gênero e sexualidade na escola. As mulheres no Brasil ainda são expostas a agressões específicas exatamente por serem mulher. Em 2011, foram notificados 12.087 casos de estupro no Brasil ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, o que equivale a cerca de 23% do total registrado na polícia em 2012, conforme dados do Anuário 2013 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Dos 4.762 homicídios de mulheres registrados em 2013, 50,3% foram cometidos por familiares, sendo que grande parte desses crimes (33,2%) foram cometidos por parceiros ou ex-parceiros. Isso significa que a cada sete feminicídios, quatro foram praticados por pessoas que tiveram ou tinham relações íntimas de afeto com a mulher. A estimativa feita pelo “Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil”, com base em dados de 2013 do Ministério da Saúde, alerta para o fato de a principal forma de violência letal praticada contra as mulheres no Brasil ser a violência doméstica e familiar. O Mapa da Violência 2015 também mostra que o número de mortes violentas de mulheres negras aumentou 54% em dez anos, passando de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013. No mesmo período, a quantidade anual de homicídios de mulheres brancas diminuiu 9,8%, caindo de 1.747, em 2003, para 1.576, em 2013.

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De acordo a última pesquisa DataSenado sobre violência doméstica e familiar (2015), uma em cada cinco mulheres já foi espancada pelo marido, companheiro, namorado ou ex. Uma informação importante, mas ainda com efeitos questionáveis, é que 100% das brasileiras conhecem a Lei Maria da Penha, criada para proteger as mulheres da violência praticada não apenas por parte do marido, mas também do namorado, ex-companheiro, pai, padrasto, primo, sobrinho etc., ainda que sequer morem juntos. Segundo estatísticas do IBGE de 2013, 31% de partos realizados pelo SUS são de mães adolescentes, ao passo que, conforme estudo realizado pelo Instituto Guttmacher e publicado em 2015 no “Journal of Obstetrics & Gynaecology” (BJOG), 113.164 brasileiras foram internadas em 2012 por problemas de saúde provocados por abortos clandestinos. O Brasil ainda vê o direito de aborto como um crime. A Énois Inteligência Jovem realizou um estudo, em parceria com os institutos Vladimir Herzog e Patrícia Galvão, com mais de 2.300 mulheres de 14 a 24 anos, das classes C, D e E, que envolveu a aplicação de questionário online e entrevistas em profundidade visando compreender como a violência contra as mulheres e o machismo atingem as jovens de periferia. Os resultados mostram que 74% das entrevistadas afirmam ter recebido um tratamento diferente em sua criação, por serem mulheres; 90% dizem que deixaram de fazer alguma coisa por medo da violência, como usar determinadas roupas e frequentar espaços públicos; e 77% acham que o machismo afetou seu desenvolvimento. 42


Discutir essas violências dentro do ambiente escolar é uma forma de alterar este cenário de desigualdades, levando em conta que a escola é um espaço privilegiado de transformação de comportamentos e desconstrução de preconceitos. O preconceito dos pais Além de enfrentar o preconceito na escola, que nunca se mostrou muito aberta a falar sobre sexualidade, Marina também sofre com o conservadorismo dos pais. Extremamente religiosos, eles a obrigam a ir à igreja para participar dos cultos e das atividades desenvolvidas com os jovens. Desde muito pequena, Marina habituou-se a ouvir as pregações religiosas, que a afligem especialmente quando o pastor – seu pai – decide falar sobre homossexualidade. Foi na Igreja que Marina aprendeu que se sentir atraída por uma pessoa do mesmo sexo é um pecado abominável aos olhos de Deus, que este tipo de comportamento não está na Bíblia e que há um “lugar reservado no calor do inferno para as lésbicas e homossexuais”. Ouvir tais sermões fez com que Marina se sentisse cada vez menos preparada para falar sobre sua orientação sexual para os pais, que até hoje não sabem de nada, ou fingem não saber. A mãe, por exemplo, vez ou outra toca no assunto para lembrá-la de que, se um dia ela tiver uma filha lésbica, não hesitará em deserdá-la. “Eu tenho medo de que eles nunca mais falem comigo, de que não olhem mais na minha cara. 43


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Sou muito família e vou me assumir só depois de sair de casa”, Marina lembra. Quando estava na sétima série, ia para a escola, mas ficava vagando pelo pátio, sem entrar para a aula. Sofreu de depressão e, depois de casos consecutivos de bullying, repetiu de ano. Os pais, que raramente aparecem nas reuniões, até a levaram para se consultar com o psiquiatra, mas depois de um ano sob tratamento, interromperam a medicação da filha por acreditar que “só Deus pode curar”. Neste período em que estava doente, não tinha vontade de ir para a escola ou até mesmo de sair do quarto. No abismo da solidão, sentiu que estava sendo empurrada cada vez mais para dentro do armário: “é horrível e triste, você não pode ser quem você é; o armário é escuro, cheio de pó, parece que te sufoca”. À época, Marina pensou várias vezes em se matar. Ano passado, foi à sua primeira – e até aqui, única – Parada da Diversidade de Floripa. O evento teve como tema “Amar é um direito de todos” e reuniu, segundo a organização, aproximadamente 30 mil pessoas. A Polícia Militar calculou 10 mil pessoas. Depois de dizer aos pais que ia para a Beira Mar, seguiu sozinha os trios elétricos do evento, que percorreram a cidade enquanto uma chuva de fim de tarde apagava de Marina qualquer ressentimento contra sua sexualidade. Ela descreve a euforia do evento com a felicidade de uma criança. “Eu ouvi as músicas que queria ouvir em casa [mas não ouve porque os pais religiosos não permitem], podia ser eu mesma ali, e dançar sem ninguém falar nada”. Hoje com 18 anos, Marina estuda o segundo ano da Educação para Jovens e Adultos. Ela deseja terminar os


estudos o quanto antes e se livrar de um ambiente que, já menos hostil atualmente, nunca a recebeu muito bem. Na escola – e em casa – não encontrou espaço para mostrar às pessoas quem ela é. Nessa empreitada, o silêncio constrangedor no olhar atravessado dos pais e a ameaça constante de violência na escola foram suas duas maiores companhias. Por ser menina, foi submetida a uma série de violências naturalizadas por uma cultura machista. Mas, também por ser menina, ela sabe que um mundo com liberdades iguais pode ser bem melhor para todas as pessoas.

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A violência do agredido A única referência que Bernardo3 tinha de outro aluno da escola que também fosse gay era de um garoto que vivia brigando com todo mundo, principalmente com as meninas. Mas Ícaro4, que poderia muito bem se tornar seu amigo, alguém para dividir as descobertas do início da adolescência, acabou se transformando num pesadelo para Bernardo. Além de agredir as meninas, Ícaro era conhecido por toda a escola porque “queria ser melhor que todo mundo”. A gota d’água foi quando ele desferiu um tapa na cara de Bernardo. A direção interferiu na situação, e achou por bem expulsá-lo da escola, localizada no Campo Limpo, zona sul da capital paulista. A melhor solução encontrada para a circunstância foi transferir para uma outra instituição a responsabilidade de enfrentar aquele mundo de violência e incompreensão que girava em torno de Ícaro. No entanto, a situação era ainda mais complicada. Bernardo, que continuou na mesma escola, estava aprendendo de uma forma muito ingrata que a escola não era exatamente um ambiente seguro para si. O lugar em que ele passava boa parte do tempo, e onde desejava fazer as melhores amizades, ia aos poucos se revelando como um espaço perigoso, onde teria 3 O nome original da personagem foi modificado para preservar seu anonimato. 4 Idem.

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de se acostumar a ouvir os xingamentos de sempre e a sofrer com o ostracismo dos colegas de classe. A escola lhe dizia discretamente que sua presença não era bem-vinda. Depois da expulsão de Ícaro, quando teoricamente descansaria das brigas repetidas com o colega, Bernardo se deu conta de que, a partir de então, era o único aluno gay da escola. E apesar da insegurança gigantesca que sentia ao se imaginar como alvo preferido – porque único – das piadinhas da sala, preferiu encarar a situação como uma oportunidade de passar uma borracha nas agressões do passado e esperar por um recomeço, em que teria mais liberdade para fazer outras amizades, sem medo de ser hostilizado por ninguém. Ele estava enganado. Amigo apenas das meninas – de poucas – e sempre reunido com seu grupo no fundo da sala, Bernardo continuou a ouvir pelos corredores que ele era um “viadinho”, antes mesmo de saber o que isso significava. Quando novos alunos chegaram na escola naquele ano, eles logo ficaram sabendo quem era Bernardo e foram avisados para que nenhum deles se juntasse àquele menino de trejeitos estranhos. Os novatos foram blindados para que não “andassem de conversa com aquele ali, o gayzinho da escola”. O esquema era infalível: era gente nova chegar, para logo ser avisada sobre aquele menino esguio e o mais absolutamente afeminado da turma, aquele mesmo que andava apenas com as meninas. Era impossível não notá-lo, até mesmo de muito longe. Os meninos de sua sala, os mesmos que tremiam de medo pela possibilidade de falar com Bernardo e virar gay,


ainda seriam surpreendidos com a reação da “bichinha da turma”. Levou muito tempo até que Bernardo esboçasse qualquer atitude contra toda aquela humilhação. Também foi longo o caminho até que ele entendesse de uma vez por todas que a rejeição que sofria era, definitivamente, por sua orientação sexual. Bernardo não tinha ninguém para defendê-lo, tampouco um professor de sua confiança para intermediar a situação. Embora não conseguisse imaginar uma maneira de se impor, ou até mesmo de reclamar sobre tudo aquilo, pois julgava que sua opinião era algo mais absolutamente desprezível para os outros, Bernardo acreditava que a chance de fugir de tal violência dependia apenas dele. Foi então na atitude dos seus colegas de classe, os mesmos meninos que o colocavam para baixo, que encontrou uma resposta sobre como poderia se defender: Bernardo deveria ser violento exatamente como eram com ele. Apesar das tentativas dos gestores da escola em reverter a situação, a sua atitude era sempre pontual. Eles esperavam algo de mais grave acontecer para, só a partir disso, passar nas salas e advertir os alunos sobre a importância de se respeitar a diversidade. Cansado de ser rebaixado por algo que estava além de sua escolha, afinal de contas ele nunca decidiu ser gay, Bernardo entendeu que o mundo era perverso mesmo e que a escola, esse microcosmo que diz nos preparar para a vida lá fora, reproduz quase que perfeitamente a sequência de vexames a que ele também era exposto fora daquele ambiente. Antes vítima, Bernardo aprendeu na escola que a única maneira de virar o jogo era se transformar no agressor. Passou

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a enfrentar os colegas, discutiu com vários deles e os agrediu fisicamente, da mesma forma como via acontecer com os outros e com ele próprio: dentro do banheiro, escondido de todo mundo, e com a ameaça de costume – “se você me dedar para a diretora, vai levar outra”. Sem perceber, estava se tornando em alguém muito parecido com aquele mesmo colega gay que lhe dera um tapa na cara tempos atrás. Descobriu-se um aluno “preguiçoso”, sem saber de onde vinha toda a preguiça de ir para a escola, de se dedicar aos estudos e frequentar as aulas. Faltou várias vezes. Desencantou-se com a escola. Repetiu a terceira, quinta e sexta séries. Programa Brasil Sem Homofobia

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Casos como o de Bernardo acontecem em todo o Brasil. Por não encontrarem o apoio e compreensão de que necessitam na escola, alunos que sofrem homofobia se decepcionam com a realidade do ambiente escolar e deixam de frequentar as aulas, repetem de ano ou, como tantos casos, nunca mais voltam para a escola. Em 2004, o governo federal lançou um programa de âmbito nacional para combater essa situação. O Brasil Sem Homofobia englobava ações conjuntas de uma série de ministérios – o da educação, inclusive – a fim de combater a discriminação contra a população LGBT no país. Parte do projeto também previa a formação de professores e a distribuição nacional de cartilhas que poderiam ser usadas como


material pedagógico para trabalhar em sala de aula com questões relacionadas à sexualidade, gênero, discriminação e conquista de direitos civis igualitários. Sob responsabilidade do Ministério de Educação, o Programa Escola Sem Homofobia, um apêndice daquele primeiro, distribuiria esse material organizado com a ajuda da ECOS Comunicação em Sexualidade e da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), dando início a uma ação inédita e corajosa para transformar o ambiente escolar e reverter situações como a de Bernardo. Entretanto, em 2011, quando o material pedagógico estava prestes a ser impresso e distribuído, o governo enfrentou forte oposição de políticos do Congresso Nacional, que promoveram uma campanha intelectualmente desonesta e retrógrada para barrar o Programa Escola Sem Homofobia. Em entrevista à Revista Época, o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), um dos líderes da campanha, esclareceu seu posicionamento: O primeiro passo para desgraçar um país é mexer na célula da família. Eles vão atacar agora o ensino fundamental, com o ‘kit gay’, que estimula o ‘homossexualismo’ (sic) e a promiscuidade. Tem muito mais violência no país contra o professor do que contra homossexuais. Quando eles falam em agressões, é em horário avançado, quando as pessoas que têm vergonha na cara estão dormindo. A regra deles é a porrada e querem acusar nós, os normais, os héteros. 51


Em contrapartida, Toni Reis, atual secretário de educação da ABGLT, comenta que (...) a divergência intelectual com argumentos honestos é de fundamental importância para a evolução da ciência. A oposição ao programa Escola Sem Homofobia, bem como o surgimento da falácia da ‘ideologia de gênero’, foi fundamentada em desonestidade intelectual, assim como outros argumentos, [como o] de que nós queríamos legalizar a pedofilia, o que é um absurdo. As organizações LGBT são totalmente contra a exploração sexual de crianças e adolescentes. (Entrevista por email).

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Depois de forte oposição, inclusive de parte de sua base governista, o governo federal vetou a distribuição do material, no qual já havia sido investido cerca de R$1,9 milhão. O “kit”, como ficou conhecido, era composto de um caderno, uma série de seis boletins (boleshs), três audiovisuais com seus respectivos guias, um cartaz e uma carta de apresentação. Dentre seus vários objetivos, o material propunha “desenvolver a criticidade juvenil com relação a posturas e atos que transgridam o artigo V do Estatuto da Criança e do Adolescente, segundo o qual: ‘Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais’” através de textos que “combinam, ao pensar a educação, o conhecimento, a escola e o currículo a serviço de um projeto de sociedade democrática, justa e


igualitária – uma sociedade regida pelo imperativo ético da garantia dos direitos humanos para todas e todos”. O material poderia ser usado tanto através de um programa de médio ou longo prazo, ou em oficinas temáticas. Como foi barrado e nunca chegou às escolas públicas para as quais seria destinado, a ABGLT disponibilizou o caderno na internet através da Revista Nova Escola por ocasião de uma corajosa reportagem sobre a educação sexual e diversidade de gênero, de autoria de Wellington Rafael Soares. Sylvia Cavasin, cientista social e então coordenadora da ECOS - Comunicação em Sexualidade, avalia que a não-distribuição do kit anti-homofobia como um retrocesso. A ECOS foi a ONG responsável por produzir o material e, para isso, baseou-se numa larga experiência de formação de professores para a abordagem de temas como gênero e sexualidade na sala de aula. Cavasin defende o direito de saber sobre a sexualidade, mas ressalta toda uma resistência com relação ao assunto, que, segundo ela, “não entra pela porta da frente da escola”. Inclusão ou apenas acesso? Aos 15 anos, e pela segunda vez na sexta série, Bernardo hoje percebe que nunca teve muito êxito na escola, mas insiste em dizer que não foi a homofobia que o impediu de ser um bom aluno: “eu sou preguiçoso mesmo, é só isso”. Fernando Seffner, pesquisador do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, analisa que a universalidade do acesso

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à educação básica no Brasil, garantida pela Constituição apenas em 1988, produziu um novo cenário de diversidade e enfrentamentos no ambiente escolar. Para ele, a presença de crianças com variadas formações provocou um forte impacto nas estruturas escolares e contribuiu para uma discussão mais plena da cidadania através da educação. Todavia, permitir o acesso universal à educação, apesar de primordial, não é o bastante. O desafio que se coloca à frente é como promover uma inclusão efetiva dessas crianças no ambiente escolar, valorizando suas vivências plurais, abordando questões que dizem respeito ao seu cotidiano e oferecendo oportunidades iguais de experiência escolar a cada uma delas. Seffner critica a escola pública brasileira como um instrumento de exclusão de cidadania, uma vez que, frequentada por alunos de perfil socioeconômico mais desfavorecido, ela acaba por servir como “atestado para os mais pobres”, que não têm condições de seguir com os estudos. Mas ele também destaca que “o percurso escolar tanto pode marcar o aluno como um incapaz como pode servir como instrumento efetivo para melhoria, assegurando-lhe possibilidades de superação da exclusão”. No entanto, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) realizou uma pesquisa sobre a educação latino-americana em 2014 e revelou que a maior parte dos estudantes brasileiros que abandonam o ensino médio não acredita que a educação pode proporcionar uma melhor qualidade de vida. No Brasil, apenas 58% dos estudantes concluem o ensino médio – e as diferenças sociais são decisivas. Enquanto


85% dos alunos mais ricos no Brasil finalizam essa etapa, 28% dos jovens com menos recursos conseguem o mesmo. Ainda segundo o estudo, a maioria dos estudantes latino-americanos entre 13 e 15 anos que não frequentam a escola coloca a falta de interesse como a principal razão para o abandono. Nas camadas mais pobres, os jovens latinos não chegam a completar 9 anos de educação e a disparidade na aprendizagem é elevada entre escolas urbanas e rurais. A fim de se livrar do estigma de exclusão, a escola precisa se organizar para conhecer as diferentes realidades dos alunos. Por parte dos professores, eles precisam ser convencidos de que a inclusão é benéfica para todos e que há uma série de aprendizados possíveis entre todos os alunos. Como adulto de referência, é o professor que promove um diálogo produtivo – e respeitoso – entre valores, códigos morais e éticos entre diferentes gerações. Com um ambiente mais favorável à inclusão, a escola precisa abolir as piadas e manifestações sexistas comuns inclusive entre os próprios professores e assumir seu caráter público e laico, onde o estigma e a discriminação funcionam como barreiras à cidadania. Neste processo, a permanência da criança e do adolescente precisam ser vistas como uma prioridade absoluta. Fernando Seffner ainda propõe ações concretas de inclusão da diversidade sexual na educação, como a previsão da abordagem da diversidade nos documentos oficiais da escola (projeto político-pedagógico, regimento escolar, etc.) depois de ampla discussão como a comunidade escolar, parcerias com ONGs, instituições de saúde e universidades para abordar esses temas na escola, realização de atividades

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extracurriculares, a abordagem transversal e formação continuada de professores. A mãe chorou

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Bernardo lembra como foi se assumir gay para uma família um tanto conservadora. Em casa, cresceu ouvindo o pai, de 47 anos, dizer que “se um filho meu virar gay, eu mato com dois tiros na cara”. A mãe, 40, diarista, esforçou-se para criar os três filhos de igual maneira, mas, no fundo, sabia que um deles sairia diferente. Talvez por isso nunca tenha dado abertura a Bernardo para uma conversa muito profunda. Sabendo de toda a resistência dos pais, preferiu primeiro se abrir com uma amiga e deixar toda aquela história de fingimento de lado. Aos 13 anos, já era capaz de entender que não valia a pena se esconder de ninguém, muito menos fazer todo aquele teatro e sempre negar o fato de ser gay. Contou tudo o que tinha preso dentro de si para sua melhor amiga, admitiu que gostava mesmo era de meninos e que não estava mais a fim de participar desse jogo que cobrava dele um silêncio aterrorizante. Reuniu suas amigas da escola e confirmou a certeza que havia na mente de cada uma delas. Foi durante uma viagem a Vitória da Conquista (BA), sua cidade natal, que decidiu contar à mãe sobre sua sexualidade. Bernardo já havia namorado tanto uma menina quanto um menino para “saber o que queria da vida”, e estava certo de quem ele era. Quando pediu uma conversa com a mãe, fingindo toda despretensão que podia, ouviu um “depois a


gente conversa”. Teve de puxá-la de canto pelo braço para lhe contar algo de que, na verdade, ela já desconfiava, e relutava tanto em ouvir. Longe de casa, dos vizinhos e da escola, se sentia mais seguro para abrir o jogo. Contou sobre o namorado, a namorada, sobre o bullying na escola. Confessou que não queria se esconder sendo uma pessoa que ele não era, que não lhe dizia respeito. “Eu sou gay”. A mãe chorou. Ela sabia o que a sociedade reservava a seu filho, o nível de intolerância e desrespeito que estava se desenhando à sua frente. Temia que o filho levasse uma lampadada na cabeça ao andar de mãos dadas com outro rapaz nas ruas de São Paulo, e também temia que o filho fosse espancado ao sair de uma festa ao nascer do dia, qualquer dia que fosse. Por isso, chorou. Mas chorou também porque este filho de retirantes estava vencendo a violência que sofrera na escola. A mãe chorou de orgulho: Bernardo estava disposto a viver num mundo sabidamente cheio de exclusões, um mundo repleto de asperezas, mas a que, na verdade, ele já estava bem acostumado. A mãe disse que “aceitava o filho do jeito que ele era”, e o questionou se era “isso mesmo o que você quer”, referindo-se à decisão do filho de expor publicamente sua sexualidade. Ouviu um embargado “sim”. A duras penas, Bernardo havia aprendido a se impor frente às pessoas, a dizer ao mundo quem ele era de verdade. O pai só saberia do filho gay meses depois, durante um desentendimento com a esposa, que o surpreendeu com a notícia. Foi como um corte lancinante sobre sua garganta – ter um filho gay não era exatamente o que aquele pai esperava. Mas nem por isso ele teria coragem

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de cumprir com sua antiga promessa de matar o filho com dois tiros na cabeça. Nesse tempo, Bernardo passou a frequentar as reuniões da Família Stronger – uma entidade independente que ajuda jovens LGBT em São Paulo – e lá escolheu um segundo pai, Elvis Justino, um dos líderes da família. Conheceu a história de outras pessoas que também fazem parte da família – muitas das quais com um histórico semelhante ao seu – e lá encontrou os amigos que lhe faltavam na escola. Também encontrou na Stronger uma rede de apoio e compreensão que não cobravam nada em troca, e que, ao contrário de exigir seu silêncio, o incentivavam a falar sobre sua história, e a se fazer protagonista dela. A Família Stronger é até hoje um dos maiores referenciais de afeto e respeito que Bernardo já encontrou. Depois que os avós paternos adoeceram, precisou voltar para a Bahia e retomar os estudos de lá mesmo. Na escola nova, voltou a ouvir os mesmos xingamentos. Foi hostilizado pelas músicas que ouvia e pelas roupas que gosta de vestir. Envolveu-se outras vezes em brigas com colegas da escola. Hoje morando com uma de suas avós, Bernardo pretende continuar na Bahia até o fim do ano. A mãe, que está se separando do marido, logo voltará para São Paulo a fim de construir uma nova vida. Já divorciada, sua mãe terá outros desafios à frente. Ao seu lado estará Bernardo, ainda com um histórico de violência a ser resolvido, mas feliz por ter encontrado o apoio de que sempre precisou. 58


Como fabricar um homem Quando João Vitor mudou de escola e foi estudar numa instituição pública de Ensino Médio, ele mal podia imaginar o caminho de descobertas que estava sendo traçado à sua frente. Apesar de ter se acostumado com as frequentes chacotas que sofria na escola anterior, onde sempre ouvia um “viadinho” como insulto pelos seus trejeitos, até aquele momento de sua vida ele nunca havia sido questionado diretamente sobre sua sexualidade. A verdade é que morando numa periferia, mas até então estudando numa escola pública no centro de São Paulo, conhecida pela excelência na qualidade no ensino, João Vitor parecia estar ocupado demais em digerir outros tantos questionamentos que surgiam: como é ser um aluno periférico numa escola que, apesar de pública, é formadora de elites? Qual, de fato, é meu lugar em meio a essas pessoas e o que devo fazer para cativar a confiança e respeito dos meus colegas de classe? Até onde me será dada a liberdade de que eu preciso para mostrar que também posso ser um aluno excepcional, apesar de minhas origens humildes? Para sua mãe, estudar tão longe e numa escola “para poucos” fazia parte de um plano maior: o de ver João Vitor entrar na faculdade. Nele eram depositadas as expectativas de ser o primeiro membro da família a ingressar no ensino superior, de ascender socialmente por meio do estudo e 59


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garantir um senso de dignidade pessoal – e também familiar – através de tal conquista. “Numa escola da periferia você não vai conseguir nada, nem sequer vai ouvir falar de sua Universidade”, foi a dura afirmação que se habituou a ouvir da própria mãe. Ela aprendera desde cedo – através de sua exclusão – que chegar até a Universidade pública era um privilégio para poucas pessoas, e enxergava a escola como uma alavanca para que seu filho conquistasse a sonhada vaga na faculdade. Este, aliás, é o sonho de várias outras mães. Uma pesquisa realizada pelo Ministério da Educação, pela Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI) e pela Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais avaliou o papel da escola na vivência da juventude, o que ela representa e quais as suas funções. Com o objetivo de “conhecer quem são os jovens que frequentam a escola, a fim de identificar o lugar da escola na produção do conhecimento, o clima escolar, as relações com os professores e entre os alunos no horizonte de motivações”, o estudo “Juventudes na escola – sentidos e buscas” ouviu 8.283 alunos matriculados no Ensino Médio, na Educação de Jovens e Adultos e no ProJovem Urbano de dez cidades brasileiras. A pesquisa revelou que a principal motivação dos jovens para frequentar a escola é “ter uma vida melhor” (37%) e “ter um emprego melhor” (32,3%). Porém, o estudo também aponta que 14,2% dos jovens sentem-se inseguros ou desmotivados no ambiente escolar. E quando questionados sobre seus colegas de classe, um total de 19,3% dos jovens disseram que não gostariam de estudar ao lado de travestis, transexuais, transgêneros e homossexuais.


A escola é um espaço marcante de socialização, e por vezes, o lugar em que o aluno será exposto pela primeira vez a relacionamentos de outra natureza que não a familiar. Por isso, fazer amigos pode ser um motivo para permanecer na escola, ao passo que não tê-los pode fazer com que o aluno desista dos estudos. Homem de verdade 2.0 Apesar dos xingamentos a que era submetido na escola anterior, tudo parecia muito normal para João Vitor. Afinal de contas, a violência do insulto sempre fizera parte de seu cotidiano – era essa a única realidade que conhecia. Além disso, para ele, era muito difícil compreender que o motivo de todas aquelas agressões – verbais, até o momento – era pelo fato de ele ser lido como gay. Na mente de João Vitor, a ideia de que todos os garotos se interessassem por outros meninos parecia normal. Era, aliás, “o que acontecia com todo mundo, não é mesmo?”. Na realidade, porque ainda não havia se descoberto homossexual, não percebia que aquilo poderia torná-lo alvo de escárnio e deboche. Como a escola ensinava que havia apenas um desejo possível, aquele por pessoas do sexo oposto, João Vitor esteve numa circunstância de ignorância sobre sua própria sexualidade até o fim do Ensino Médio, quando já tinha seus 16 anos. Em casa, este não era o assunto predileto de seus pais. João Vitor se descobriu gay quando se apaixonou pela primeira vez. O sujeito era novo na escola, estava no primeiro

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ano, e, por isso, não era muito conhecido pelas pessoas. Ele, já no terceiro ano, entrou em pânico ao se dar conta da situação. Perceber que estava a fim de alguém do mesmo sexo o obrigava a levantar uma série de questões: se eu acho normal que os garotos se sintam atraídos uns pelos outros, por que não os vejo de mãos dadas pela escola? Por que o jeito de eles se cumprimentarem é tão mais agressivo do que entre as meninas? Se eu aparecer junto deste menino na escola, qual pode ser a reação dos outros garotos? Assumir-se gay na escola não fazia parte de seus planos, mesmo sentindo alguma pressão para que isso acontecesse uma hora ou outra. As pessoas especulavam sobre isso… Cheio de medo, e sem saber direito o que fazer, João Vitor teve a ajuda de uma amiga para sondar o rapaz. Quando ela o questionou sobre se beijaria outro menino, ele se esquivou com uma resposta incerta, mais negativa que positiva. Não valia a pena arriscar. E, no fim das contas, tudo ficou por isso mesmo. Até hoje, João Vitor não sabe se o rapaz é gay ou não. Esta foi a sua primeira desilusão. O medo que o cercou era pela possibilidade de o assunto se espalhar pela escola. O que aconteceria caso descobrissem que ele havia se apaixonado por outro menino? O que os machões da escola fariam contra ele? A forma como esses rapazes se comportavam na escola era simplesmente afrontosa. Eles faziam questão de se colocarem como os valentões, sempre destemidos, e demonstravam uma certeza inabalável sobre sua própria masculinidade. Porém, como João Vitor não se reconhecia como um deles, toda aquela convicção não fazia o menor sentido a seus olhos.


Fernando Seffner, membro do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero, pesquisa sobre a construção de masculinidades no ambiente social, inclusive na escola. Ao contrário de entender a masculinidade como um traço singular, naturalizado, e essencial, ele afirma que há várias formas de ser homem, ou múltiplas masculinidades – a homossexualidade é inclusive uma delas. Para ele, a masculinidade é uma construção cultural performática e, por isso, não pode ser entendida como essência, como se alguém já nascesse com traços sociais interpretados como masculinos. Ele resgata as pesquisas da filósofa americana Judith Butler para defender que “é na cultura que os indivíduos são produzidos como sujeitos de gênero e é a partir do conceito de gênero que nos permitimos pensar nas construções de masculinidades”. Nesta perspectiva, gênero é visto como um conceito que atua como organizador social e um elemento definidor de inteligibilidade em nossa cultura, uma vez que “não se pode dizer que os corpos tenham uma existência significável anterior à marca do seu gênero” (BUTLER, 2003, p. 27). Na escola, os alunos aprendem a exercer um gênero. E isso significa que os colegas de escola de João Vitor não nasceram os homens corajosos e tão seguros de sua identidade que afirmam ser. Através de processos subjetivos, eles foram feitos ou se tornaram em quem são. Parafraseando a filósofa francesa Simone de Beauvoir, “ninguém nasce homem: torna-se homem”. Seffner destaca que a construção de masculinidades também regula a preocupação entre os homens de manifestar afetos publicamente. Daí ser tão importante vigiar os próprios

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atos, precavendo para que nenhuma suspeita sobre sua sexualidade seja levantada. A homofobia, então, reforça a rejeição por troca de afetos com pessoas do mesmo sexo. E porque o ideal de masculinidade – marcado pela coragem, destemor, ousadia, honra e virilidade, é tão difícil de ser alcançado, ele precisa ser reafirmado com insistência e repetição incansáveis. Este, afinal, é um padrão de comportamento que ninguém consegue performar com perfeição. O pesquisador ainda defende a escola como local adequado para a discussão de gênero através de uma abordagem biológica, histórica, cultural e política, uma vez que “gênero e sexualidade são marcadores de estruturas e hierarquias das sociedades, e que estão presentes inclusive no ambiente escolar”. Seffner conduziu um estudo em conjunto com Yara de Paula Picchetti em que mostra a escola e a sala de aula como ambientes extremamente generificados, lugares em que as sexualidades se fazem presente e constroem diversas posições de sujeitos. Através da observação do comportamento de meninos durante aulas de ensino religioso em escolas públicas de Porto Alegre, Fernando Seffner traça um panorama da construção de masculinidades no ambiente escolar, compreendida como um processo não-natural e sem uma correspondência essencial entre nascer macho e ser homem. Em seu artigo “A quem tudo quer saber, nada se lhe diz – uma educação sem gênero e sem sexualiade é desejável?”, Seffner defende que os meninos equacionam o futuro profissional sem reconhecer a necessidade fundamental de estudar. Ainda que as mulheres sejam mais numerosas no ambiente


acadêmico e tenham uma gama maior de profissões, são os homens que ocupam os postos de chefia. A escola os ajuda a desenvolver uma noção de inteligência nata, uma vez que o mercado de trabalho oferece posições mais valorizadas a figuras masculinas. Em consequência disso, o alto desempenho escolar é visto como algo feminino. Se, por ventura, um menino vai muito bem nos estudos, ele pode ter sua sexualidade questionada, o que não acontece com as meninas. Ter companhias femininas, ser um aluno participativo nas aulas, e ter o material organizado são coisas de menina. Os meninos deixam de reconhecer a importância de sua própria participação nas atividades em sala e desvalorizam o universo de símbolos, códigos e comportamentos interpretados como femininos. Para se autoafirmarem, eles precisam desmerecer tudo aquilo que lhes seja alheio, que seja o “outro”, tais quais as meninas e os meninos que reproduzem um comportamento feminino. Medo todos os dias Porque João Vitor não era exatamente o aluno mais corajoso da escola, guardou para si o medo de ser rejeitado não apenas pelos valentões, mas também pelos seus amigos em específico. Não era um aluno popular, mas se esforçava para ser “gente fina”. Passava cola nas provas – era uma indulgência em troca de respeito. Em razão da disciplina do comportamento, a escola lhe exigia que esquecesse de sua individualidade. Via sua autonomia definhar.

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João Vitor fingia ignorar a situação, mas dentro de si, ele sabia que a dinâmica de conduta que a escola lhe impunha jamais o permitiria se descobrir por completo. Não encontrou o espaço suficiente para se expressar, mas apenas uma chantagem velada em tom de reprovação e muito preconceito. Ele precisava vigiar o seu corpo, que denunciava os sinais de um mundo em que o feminino poderia coexistir com o masculino, sem qualquer tipo de rejeição. Sentia-se coagido pelo olhar dos meninos: “eu tinha medo todos os dias”. Por “escapismo”, como ele mesmo julga, passou a se automutilar. Encontrou na dor uma forma de evasão, primeiro com uma arranhadura feita na escola, e depois com ferimentos mais sérios provocados em casa. Sobre quase certezas Com seus pais, existiam outros dilemas a enfrentar. Apesar de tudo o que se especulava sobre sua sexualidade, nunca houve um momento em que João Vitor precisou, ou sentiu necessidade, de lhes dizer que era gay. Isso, na verdade, está subentendido em sua relação familiar. O que antes era uma suspeita por parte dos pais, hoje João trata como se fosse uma certeza. No entanto, ao ser questionado sobre a possibilidade de os pais não saberem de sua orientação sexual, João Vitor demonstrar uma certeza inicial, mas acaba revelando que é apenas uma presunção: – Então eles sabem? 66


– Com certeza! Sabem sim. Acho. Espero... eu realmente espero. Talvez seja difícil se assumir gay para os pais porque João Vitor vê sua sexualidade como um processo contínuo de experiências e descobertas, e não exatamente como uma informação bruta ou definitiva. Dessa maneira, nunca houve um armário do qual ele precisou sair. Hoje na Universidade, esta já nem sequer é uma questão para ele. A masculinidade de João Vitor é singular, assim como é aquela de cada um dos meninos que um dia estudaram com ele. Sua identidade é este não-lugar, não-categoria, esse processo de transição infinita, de classificação impossível. E não é assim com todo mundo?

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O batom vermelho de Vita Nas horas de folga, no serviço, chovesse ou caísse fogo em brasa do céu, ninguém lhe tirava da imaginação o petiz: era uma perseguição de todos os instantes, uma idéia fixa e tenaz, um relaxamento da vontade irresistivelmente dominada pelo desejo de unir-se ao marujo como se ele fora o outro sexo, de possuí-lo, de tê-lo a si, de amá-lo, de gozá-lo. Ao pensar nisso, Bom-Crioulo transfigurava-se de um modo incrível, sentindo ferroar-lhe a carne, como a ponta de um aguilhão, como espinhos de urtiga brava, esse desejo veemente uma sede tantálica de gozo proibido, que parecia queimar-lhe por dentro as vísceras e os nervos5. (CAMINHA, 1895) Na infância, Vita gostava de usar as roupas da mãe, cruzar as pernas ao sentar e andar com a toalha de banho na cabeça. Distante do olhar do pai, ela adorava se maquiar e brincar de boneca. Porque morava num prédio cheio de crianças, aproveitava para estar com elas sempre que podia. Foi, assim, por exemplo, que teve seu primeiro relacionamento sexual com um menino, durante uma brincadeira de esconde-esconde. 5 A obra “Bom-Crioulo”, de Adolfo Caminha, baseia-se na história real da paixão mórbida de Amaro, o Bom-Crioulo, por Aleixo, um jovem grumete loiro de 15 anos. Bom-Crioulo é um escravo fugido que se alista como marujo na Marinha e cujas peripécias causaram grande escândalo no Rio de Janeiro do século XIX. O livro foi uma das leituras mais marcantes na vida de Vita, personagem central deste capítulo.

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No entanto, seu mundo era assombrado por um fantasma: ela havia nascido num corpo masculino, que – como aprenderia mais tarde – não lhe dizia respeito por completo. E, exatamente por isso, era alvo de uma atitude enérgica de seu pai, para quem deveria haver uma correção no comportamento do filho, que adorava andar rebolando e resistia em engrossar a voz. “Você precisa ser homem”, o pai cobrava. Diversas vezes, ele a forçou a ir pro futebol e a encontrar logo uma namorada: “Você não vai ficar com nenhuma menina?”, ele questionava. Por não ser o menino que o pai esperava, apanhou várias vezes, até perder a conta. Apenas na adolescência é que Vita começou a entender o que estava acontecendo. Ela não sentia que poderia se enquadrar nas expectativas que os pais nutriam sobre ela – de arranjar namoradas, ser um menino destemido de tudo, se casar e formar uma família tradicional, com pai, mãe e muitos filhos. Vita não se identificava completamente com o mundo masculino, pois se descobriu uma travesti6.

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6 Travesti é a pessoa que nasce do sexo masculino ou feminino, mas que tem sua identidade de gênero oposta ao seu sexo biológico, assumindo papéis de gênero diferentes daquele que foi imposto pela sociedade. No caso de pessoas travestis com identidade de gênero feminina, muitas modificam seus corpos por meio de hormonioterapias, aplicações de silicone e/ou cirurgias plásticas. Porém, vale ressaltar que isso não é regra para todas. Utiliza-se o artigo definido feminino “a” para falar da travesti, ao passo que é incorreto – e extremamente desrespeitoso – referir-se às travestis no masculino, e mais ainda com o termo “traveco” (o sufixo -eco forma diminutivos com valor pejorativo, como em “livreco”, “filmeco” e “pastoreco”). A definição é uma adaptação da Articulação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e foi utilizada na Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil 2016.


Devido à oposição que sofreu em casa, por meio do pai, trabalhador da construção civil, e da mãe, doméstica, era só na escola que se sentia à vontade para expressar sua identidade. Inicialmente, assumiu-se gay, mas logo entendeu sua identidade feminina. Nessa fase, viu crescer o boato mentiroso de que era portadora de HIV. “Foi horrível”, Vita lembra. Ela era conhecida pelos outros alunos por causa de seus trejeitos, e quando decidiu ir para a aula maquiada com um batom vermelho, virou o assunto da escola, inclusive entre os professores. Por que aquele corpo inicialmente lido como masculino causava tanto espanto e desconforto? Seria o batom de um vermelho mais reluzente? Ninguém sabia explicar! À época, Vita estudava numa escola técnica de Barueri, cidade da região metropolitana de São Paulo. Composta por uma maioria de alunos do sexo masculino, a escola oferecia cursos de formação profissional integrados ao Ensino Médio, como o de edificações, em que Vita estava matriculada. Meu nome no banheiro Certo dia, Vita viu seu nome escrito na porta do banheiro, com o número de celular e a frase “faço programa”. A partir dali, ficou claro que sua decisão de usar batom não agradara seus colegas de escola. No imaginário dos agressores, seu corpo havia se tornado num objeto sexual, passível de ser manipulado – e negociado – por pessoas estranhas ao seu convívio. Ao assumir traços femininos, Vita teve sua imagem automaticamente

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ligada à prostituição. A ela foi negada a liberdade de construir relacionamentos no ambiente escolar sem que sua identidade de gênero e orientação sexual fossem informações preponderantes. “Eu nunca desenvolvi afetos na escola”. Essas eram violências muito maiores às que ela já havia sofrido, como ser xingada de “moreninho” – ela é negra – ou de levar uma cusparada dos colegas. Por causa daquela inscrição na porta do banheiro, sentiu que seu corpo era algo público, mais barato e desqualificado. Aquele era um aviso para dissuadi-la de se maquiar. E o aviso fora dado num ambiente repleto de contradições: era ali mesmo, no banheiro, que Vita enfrentava a rejeição dos machões da escola e também onde esses mesmos garotos lhe ofereciam sexo. A Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil 20167 mapeou diversas vivências de jovens LGBT em idade escolar por todo o país. Um total de 60% deles disseram que se sentem inseguros/as na escola por causa de sua orientação sexual e 43% afirmaram se sentir inseguros/as por causa de sua identidade/expressão de gênero. O banheiro foi justamente destacado como o ambiente mais inseguro da escola, seguido das aulas de educação física. Ainda segundo a pesquisa, quase três quartos dos/das estudantes LGBT (72,6%) já foram verbalmente agredidos/as por causa de sua orientação sexual; e 68% foram agredidos/as verbalmente na escola por causa de sua identidade/expressão de gênero.

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7 Vale a pena a leitura da pesquisa na íntegra, que pode ser acessada pelo link <http://bit.ly/2dkBPqy>.


No total, 1016 estudantes responderam a um questionário online divulgado através de um esforço conjunto da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) e instituições parceiras. No entanto, por mais preocupantes que sejam os dados, eles refletem a realidade de adolescentes que se reconhecem e têm algum vínculo com a comunidade LGBT, a ponto de terem tido acesso ao questionário virtual. E embora a amostra tenha permitido a participação de estudantes que deixaram de frequentar a instituição educacional em algum momento no decorrer do ano de 2015, a pesquisa não retrata as experiências de jovens que talvez tenham desistido da escola em anos letivos anteriores. O relatório da pesquisa aponta a probabilidade de que “as experiências desses/dessas adolescentes e jovens difiram das dos/das estudantes que permaneceram na instituição educacional”. A pior de todas as noites A reação de Vita foi a de tirar fotos e escrever uma carta formal de reclamação pela exposição a que tinha sido submetida. Quando entregou o material para a coordenadora pedagógica, ouviu dela que “você é muito afeminado e espalhafatoso, por isso todo mundo te conhece”. Vita foi culpabilizada pela violência que acabara de sofrer. A gestão da escola a responsabilizou pela exposição e cobrou dela uma postura mais profissional, uma vez que aquela era uma escola técnica, onde os alunos deveriam ter uma postura mais comedida. Vita foi advertida de que, porque estudava edificações, jamais teria

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o respeito de seus colegas de trabalho caso usasse batom no ambiente de uma construção. A coordenadora insistiu em sua argumentação e propôs, a fim de evitar outros casos, de evitar inclusive que outros alunos se sentissem incomodados, que Vita deixasse de usar batom. Para a gestora da escola, preservar a aluna travesti de uma exposição mais séria era a solução mais adequada para toda a instituição. Mas o que era mais sério do que ser publicamente ridicularizada na escola, com seu nome escrito na porta do banheiro e seu corpo sendo vendido sem seu consentimento? Vita conta que foi ameaçada de ser suspensa caso insistisse em aparecer maquiada na escola; ameaça essa que, na realidade, jamais se cumpriu. Ela nunca concordou com a proposta de não mais se maquiar, e então a direção achou por bem chamar os seus pais à escola. No entanto, isso a colocou numa situação que, além de desconcertante, era também perigosa, uma vez que os pais não sabiam da filha travesti. Não havia um diálogo muito aberto em casa, os pais se demonstravam reticentes quanto à sexualidade de um filho que acreditavam ser gay. Vita, acuada, não se sentia segura para se abrir com os pais, só se maquiava no caminho quando ia às festas, dentro do metrô mesmo, e não falava muito sobre sua rotina na escola. Tempos antes, quando a mãe vasculhara suas conversas íntimas nas redes sociais, disse a ela: “Você pode até ser gay, mas não vire mulher. Essa é a única coisa que não quero que você seja”. O medo – ou preconceito – da mãe havia se tornado uma realidade.


Aquele foi um dia de desespero. Ter sua mãe na escola a obrigaria a contar sobre todas as violências a que era exposta, para muito além do nome escrito na porta do banheiro. Vita teria de contar sobre os xingamentos, sobre os olhares tortos, as piadinhas que ouvia e a oposição ao batom que gostava de usar. Mais do que isso, ela teria de explicar o porquê de tudo aquilo, qual a motivação das pessoas para ostracizá-la, apesar de ela ser uma excelente aluna. Vita pediu um tempo à direção, tempo suficiente para que ela encarasse a homofobia dos pais e lhes dissesse que eles não tinham propriamente um filho gay, mas uma filha travesti. É bem verdade que a direção até disse que consentia com o tempo pedido, mas logo no dia seguinte sua mãe estava na escola. E ela mesma só ficou sabendo disso quando, já pela noite, viu a mãe chegar em casa se debulhando em lágrimas. Não foi difícil para Vita entender o que estava acontecendo. A mãe foi chamada na escola sim, e ficou sabendo do caso pelas mesmas gestoras que dias antes tentaram culpabilizar a aluna pelo ocorrido. Nesta noite, depois de discutir com a mãe – por sorte, o pai dormia – Vita pensou em se matar. Ela temia a reação dos pais quando soubessem de sua travestilidade e planejava uma circunstância menos conturbada em que pudesse falar com eles sobre como se sentia, quem ela julgava ser. Mas a escola retirou seu direito de escolha, assim como o direito de falar por si sobre quem ela era. Acabar com a própria vida era uma forma de encurtar sua angústia. Vita supunha que, caso permanecesse viva, estaria se sujeitando a violências cada vez maiores. Se não fosse na escola, seria na rua e, agora, em casa. O que ela podia esperar

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da reação do pai, que até pouco tempo atrás a agredia com certa frequência? O que ele diria quando soubesse da filha travesti? Era apenas uma questão de tempo até que a notícia chegasse a seus ouvidos. Vita temia levar mais outra surra, e não tinha certeza sobre sua disposição para continuar vivendo nesses dois mundos. Na verdade, não queria mais estar em nenhum mundo; nem como travesti hostilizada, como era na escola, e muito menos fingindo ser um gay afeminado, como acontecia em casa. Na pior de todas as noites, foi aterrorizada pela solidão – sentiu-se desesperada por saber que a situação havia escapado de seu controle. Mandou uma mensagem por celular para a professora que era a única a lhe apoiar na escola, agradeceu por toda a ajuda e se despediu… A alternativa do suicídio

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A Organização Mundial de Saúde estima que o Brasil ocupa a 8ª posição com o maior índice de suicídio em seu ranking. A OMS aponta que a maioria dos casos ocorrem entre jovens de 15 a 29 anos, principalmente entre pessoas do gênero feminino, e vê a questão como um grave problema de saúde pública. Além disso, dados da ONG Transgender Europe (TGEU), rede europeia de organizações que apoiam os direitos da população transgênero, estimam que o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Entre janeiro de 2008 e setembro de 2016, foram registradas 900 mortes no país, sendo que 123 delas ocorreram nos últimos 12 meses.


A violência contra a população LGBT alcançou índices alarmantes e exigem das autoridades um esforço imediato de combate à discriminação. Segundo o Grupo Gay da Bahia, um LGBT é morto a cada 28 horas no Brasil. No entanto, o GGB faz a análise de acordo com o método hemerométrico, ou seja, aquele baseado em casos que ganharam repercussão na imprensa. Isso significa que o levantamento é subnotificado e que, com muita probabilidade, os casos de homicídio por motivação homofóbica sejam ainda mais frequentes no país. Era para ser uma despedida pra sempre, mas a professora a convenceu de que existia um mundo de descobertas que não podia ser desperdiçado. Existia um mundo possível de se viver e que ainda precisava ser construído, sem a violência da escola, e sem o preconceito dos pais. O relacionamento de Vita com a professora estava aos poucos extrapolando os muros da escola. Com o tempo, elas se tornariam amigas e apoiadoras uma da outra. Vita reconhece nesta amizade um valor inestimável, uma vez que essa mesma abertura não era oferecida pelos outros professores. Na verdade, era muito raro que eles demonstrassem qualquer preocupação genuína com a individualidade do aluno. E este, infelizmente, não é um caso isolado. A pesquisa “Perfil dos Professores Brasileiros”, realizada pela Unesco com 5 mil professores da rede pública e privada de todo o Brasil em 2002, constatou que para 59,7% deles é inadmissível que uma pessoa tenha relações homossexuais e que 21,2% deles tampouco gostariam de ter vizinhos homossexuais (UNESCO, 2004, pp. 144, 146). Um outro estudo, conduzido pelo mesmo órgão em 13 capitais brasileiras e no Distrito

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Federal, analisou o alcance da homofobia no espaço escolar (nos níveis fundamental e médio) e revelou um panorama assustador da educação no Brasil: são altas as taxas de professores que declaram não saber como abordar temas relativos à homossexualidade na sala de aula (vão de 30,5% em Belém a 40,7% em Vitória), mais de 20% dos professores de Manaus e Fortaleza acreditam que a homossexualidade é uma doença e 39% dos pais de estudantes do sexo masculino de São Paulo não gostariam que seus filhos tivessem colegas de classe homossexuais (ABRAMOVAY et al., 2004, pp. 277-304). Semana de Liberdade e Alteridade

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Ninguém nunca identificou quem escreveu o insulto sobre a porta do banheiro masculino; o caso, apesar de ter gerado a indignação de algumas pessoas na escola, não provocou uma discussão em sala de aula que a situação exigia. Na mesma época, Vita viu seis garotos da escola se organizarem em frente à sua sala para uma intervenção. Os meninos, todos de cabeça raspada e autointitulados neonazistas, montaram uma cena em que um deles, usando uma echarpe – o mesmo acessório que Vita gostava de vestir – era cercado e agredido pelos outros. Como não encontrou o respaldo que esperava da escola, com exceção de uma professora que se viu abismada com o caso e levou, sem sucesso, a questão para a direção – Vita realizou um “batonzasso” durante o intervalo. Todos os alunos, os meninos e as meninas, foram convidados a usar batom


naquele dia. A única pessoa a não aderir seria justamente Vita, uma manifestação à proposta da coordenadora para que ela deixasse de se maquiar. No ato, os alunos desafiavam as justificativas dadas pela escola com base no regimento escolar que, a propósito, não proibia em nenhum momento que alunos do sexo masculino usassem batom. Vita também organizou um jogral para denunciar a situação, distribuiu cartazes pelas paredes da escola e propôs uma reunião com a Coordenadoria da Diversidade da Prefeitura de Barueri, para a qual a gestão da escola foi convidada, mas preferiu não participar. O caso se tornou uma luta de muitos e ganhou repercussão política. Amparada por leis que protegem a identidade do aluno quanto à diversidade sexual, Vita denunciou a escola numa sessão pública da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e expôs o ocorrido nas redes sociais. De fato, há toda uma legislação que garante o direito de respeito à diversidade no ambiente escolar, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996), o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Resolução Federal número 12 de 2015, sobre o acesso e permanência de travestis e transexuais, entre outras8. 8 Outros marcos legais são os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), o parecer nº 8, de 6 de março de 2012, sobre as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos, a resolução nº 2, de 30 de janeiro de 2012, sobre as Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio, o Estatuto da Juventude (2013), a Lei 13.185-2015, que instituiu o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (bullying) e a própria Constituição Federal de 1988.

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A direção, que não esteve presente na reunião, permitiu a organização do primeiro Grêmio Estudantil da escola e aceitou a criação da Semana de Liberdade e Alteridade, evento que promove debates e intervenções artísticas sobre o preconceito e a diversidade no ambiente escolar. Rede Nacional de Adolescentes LGBT

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Desde que o caso ocorreu, em 2013, Vita tem retornado à escola todos os anos a fim de participar desse tipo de evento. Hoje com 19 anos, ela usa sua identidade feminina como ferramenta de luta política por maior igualdade de direitos para as travestis. Vita faz parte da Rede Nacional de Adolescentes LGBT, uma entidade apoiada pela Unicef que reúne lideranças juvenis ao redor do Brasil com o intuito de elevar o debate sobre a condição de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, homens e mulheres transexuais no país. O objetivo da Rede é promover encontros de formação política e incentivar os jovens a desenvolverem projetos ligados à identidade LGBT na região em que moram e em suas áreas de atuação. Vita decidiu ser professora e hoje estuda pedagogia no interior de São Paulo. Ela conta que suas brincadeiras na infância e as vivências negativas na escola a conduziram para tal escolha. Devido à sua participação na Rede, Vita desenvolve projetos que resgatam a memória de personagens LGBT nos livros didáticos e acredita que a invisibilidade de tais figuras no material pedagógico usado nas escolas é também uma ferramenta de exclusão e discriminação. Negra e moradora da periferia, ela ainda participa de debates que


reclamam por maior representatividade racial dentro do próprio movimento político LGBT. Vita faz parte de um reduzido grupo de travestis que, além de concluir a educação básica, puderam ingressar no ensino superior. Ela usa sua militância para exigir políticas inclusivas direcionadas a travestis e transexuais, a fim de que este grupo tenha acesso pleno a oportunidades de estudo: “Quando a gente é empurrada da escola, a gente é empurrada da sociedade. A gente não vai fazer parte do mercado de trabalho, de construir outros saberes. Essa exclusão só nos joga para as margens”. Quando for professora – sim, uma professora travesti – terá à sua frente o desafio de educar os alunos para viver de forma respeitosa a toda diversidade. E, por experiências próprias, isso ela sabe fazer como ninguém, com ou sem batom.

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A história do clube feminista9 Em 1917, houve muitas greves em nosso país. Os operários lutavam pelo fim do trabalho infantil, jornada de 8 horas, alimentos, água e transporte. Naquele ano, 30.000 trabalhadores estavam em greve, e todos os dias havia piquetes, manifestações, barricadas e ocupações de fábrica. Em meio a toda essa luta, a Brigada mata um operário. O enterro dele foi também um protesto, com centenas de operários e operárias em marcha, na avenida João Pessoa. Na frente da procissão, estava a operária Espertirina Martins, com apenas 15 anos, carregando um buquê de flores. Do lado contrário da avenida, vinha a Brigada Militar para reprimir os operários e operárias em marcha na avenida, onde hoje é o Parque da Redenção (em Porto Alegre). Espertirina, com seu buquê de flores, se aproxima dos brigadianos e joga seu buquê no meio deles. O buquê explode, matando metade da tropa e assustando os cavalos. Começa então uma verdadeira batalha. (Texto distribuído em sala de aula)

9 Os nomes de todas as alunas foram trocados a fim de garantir seu anonimato no texto.

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O trecho acima foi usado como material de apoio quando alunas de uma escola de tempo integral da zona norte de São Paulo estavam decidindo o nome de um dos clubes juvenis da instituição. A Batalha da Várzea, como o conflito ficou conhecido, marcou um importante passo na conquista de direitos trabalhistas a partir das greves de 1917. Espertirina Martins, filha de anarquistas, transformou-se numa figura importante depois de participar de um protesto contra a morte de um trabalhador em Porto Alegre. Ela teria lançado um buquê dentro do qual se escondiam armas letais contra a ofensiva da Brigada Militar, que sofreu uma baixa de metade de sua tropa. Inspiradas na história de Espertirina, as meninas elegeram “Buquê de Espertirina” como o nome do clube feminista de que fazem parte. O clube foi criado depois que algumas alunas passaram a ser seguidas por funcionárias da escola enquanto iam ao banheiro. Com o receio de que as meninas estivessem entrando em duplas nas cabines, a escola destacou uma funcionária – que às vezes era a inspetora, e, em outras, a “tia da limpeza” – para estar sempre atenta ao que acontecia lá dentro. Àquela época, a escola havia acabado de receber uma nova aluna, assumidamente lésbica, e que não se coagira com o nível de pudor exigido pela instituição. Sem constrangimentos, ela se sentia livre para andar de mãos dadas, abraçar e trocar alguns beijos publicamente com outras meninas, assim como qualquer outro casal de alunos heterossexuais. Foi um alvoroço. Rapidamente, outras meninas lésbicas e bissexuais se sentiram mais confortáveis para expressar sua


orientação sexual e o que era apenas um caso isolado – como a escola acreditava – virou o caso de muitos. Não adiantou implantar uma funcionária “à espreita” no banheiro feminino para ver se as meninas estavam “fazendo coisas” (!), não adiantou pedir para que elas não andassem de mãos dadas, e tampouco adiantou a inspetora constranger uma aluna lhe perguntando “eu sei que você gosta de meninas, os seus pais sabem disso?”. As meninas do clube Buquê de Espertirina são muito maiores do que isso. Apoiadas pela professora de Biologia, Carol Stefano, que também é a coordenadora pedagógica de área e tutora de algumas delas, o clube foi criado em agosto de 2015 como uma resposta à série de assédios a que as alunas estavam sendo submetidas. A aluna que foi advertida pela inspetora pelo fato de ser lésbica, por exemplo, conta que se viu amedrontada pela possibilidade de a escola contar sobre sua orientação sexual a seus pais, que até então não sabiam de nada. “Eu não queria falar nada, mas sabia que a escola poderia chamar minha mãe, daí preferi contar primeiro, mesmo sem ser minha intenção”, ela relata. Quando a professora Carol Stefano enxergou a necessidade de discutir sobre o clima de preconceito contra as meninas, ela lançou a proposta da criação de um clube, e as alunas logo aceitaram o desafio. Amanda, uma das integrantes do grupo, fala sobre o que a motivou a participar: “A mulher pode ser protagonista de sua própria luta”. Para combater a reprodução de uma cultura machista dentro de seus muros, a escola também ofereceu a disciplina eletiva de “Sexualidade, Natureza e Cultura”, o que serviu

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como pontapé inicial para o amadurecimento da ideia do clube. O objetivo era superar a abordagem técnica e rígida sobre a sexualidade, como a anatomia do corpo humano, as doenças sexualmente transmissíveis e métodos contraceptivos, tradicionalmente levantada nas aulas de biologia, e lidar com as questões que diziam respeito às experiências dos alunos. Inicialmente formado apenas por meninas, o clube acabou se espalhando por toda a escola e, hoje, também conta com a participação de meninos. A sugestão de incluir alunos do sexo masculino surgiu com a visibilidade que o clube foi ganhando na escola, mas também foi consequência da percepção das meninas de que o feminismo, ferramenta histórica de disputa política por direitos igualitários, é necessário a todas as pessoas. O clube se reúne duas vezes por semana, sendo que, em uma delas, os alunos são acompanhados por um professor para decidir a agenda de debates e atividades do grupo. Eles contam com a ajuda da Carol, como é carinhosamente chamada, ou do professor Chrystyan, que ensina filosofia e é padrinho do clube. A outra reunião é autogerida pelos alunos, que aproveitam para resolver pendências sobre o calendário de atividades e levantar debates sobre temas como machismo, homofobia e feminicídio. As meninas estão conduzindo uma mudança gigantesca na forma como o ambiente escolar as tem acolhido. Se antes elas eram vigiadas até mesmo quando iam ao banheiro, e tinham sua homossexualidade exposta de forma pejorativa, hoje são elas que contestam o comportamento dos professores. Está cada vez mais difícil, por exemplo, que as piadinhas


de teor homofóbico tenham graça ou que os comentários sexistas dos docentes sobre a posição da mulher na sociedade tenham o consentimento dos alunos. Em um dos encontros de outubro, o tema da conversa foi “o que é ser mulher?”. As meninas extrapolaram as definições convencionais e tomaram por base a célebre afirmação da filósofa francesa Simone de Beauvoir, para quem “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Elas concordam que o universo feminino ainda é representado através de estereótipos que reduzem as noções sobre o que é ser mulher hoje em dia, mas se demonstram otimistas com a ideia de liderar uma transformação feminista na sociedade, começando pelo ambiente escolar. Para organizar melhor os debates, as alunas criaram a “regra da vivência”, que funciona de uma maneira muito simples: a pessoa que é alvo da violência que está sendo debatida tem preferência para falar. Ou seja, quando o assunto é racismo contra mulheres, são as meninas negras que lideram o debate e têm o seu lugar de fala respeitado. Alana, que é negra, avalia as diferenças de oportunidades no mercado de trabalho para a mulher negra: “Se participássemos de uma entrevista de emprego, eu e você [ela falava com uma amiga branca], eu já sei de longe quem passaria, quem seria escolhida”. Alana também rebate a ideia de que existe um racismo reverso, segundo a qual pessoas brancas podem sofrer racismo justamente por serem brancas: “Eu, por exemplo, nunca serei morta por ser branca”. Além de organizar os encontros semanais, o clube promove atividades extracurriculares ao longo do ano. Alguns

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exemplos que deram muito certo são o saiaço com a participação de professores no Dia Internacional da Mulher, o “Cemitério da Ditadura”, que foi uma instalação de fotos de mulheres mortas no Regime Militar com informações de sua história dentro de uma sala da escola, o teatro sobre homofobia e o debate com as alunas secundaristas que ocuparam algumas escolas públicas de São Paulo em 2015 em protesto à reorganização escolar, anunciada pelo governo do Estado e suspensa depois de forte pressão dos alunos10. O próximo passo é produzir um fanzine, uma espécie de revista sem a qualidade profissional de grandes publicações, para contar a história do buquê de Espertirina, que dá nome ao grupo, e divulgar as últimas atividades do clube, como a participação num debate sobre gênero e educação na Faculdade de Educação da USP. No dia do evento, três dos alunos do clube falaram sobre as atividades que estavam desenvolvendo na escola para um grupo formado em sua maioria por professores e alunos de pedagogia da FE-USP. O projeto foi apresentado como uma das muitas formas de se debater a homofobia e o machismo dentro da escola, mas não como uma “receita pronta”. Como uma das participantes do debate avaliou, o empenho dos próprios alunos em levar a ideia do clube adiante representa “uma lufada de ar fresco”, tendo em vista as inúmeras dificuldades de se levantar um debate significativo sobre preconceito e diversidade no ambiente escolar.

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10 Para saber mais, acompanhe a cobertura completa feita pelo jornal El País através do link <http://bit.ly/2dxhIsP>.


No entanto, engana-se quem pensa que a existência do clube tem apoio irrestrito de toda a comunidade escolar. A professora Carol conta que muitos professores se queixam sobre a atitude contestadora de algumas alunas e atribuem este comportamento à sua participação no clube. As meninas também lembram que um aluno já saiu do grupo por ordem dos pais, que não concordaram com as atividades – e companhias – com que o filho estava se envolvendo na escola. Um outro episódio ingrato na experiência do clube foi quando um professor arrancou um cartaz do grupo do mural da escola. A professora Carol, que acompanha as discussões do “Buquê de Espertirina” mais de perto, avalia que a escola não deve disputar com os pais a função de educar seus filhos, uma vez que esta é uma tarefa conjunta. A diferença do papel da escola para o da família é que a primeira tem a tarefa de educar sujeitos para uma convivência respeitosa no espaço público, regido por outras regras que não as domésticas, ou do espaço de casa. As atividades do clube, e toda a proposta pedagógica por trás do projeto, são consequência de uma negociação entre os valores éticos e morais que os alunos trazem de casa com aqueles que orientam o espaço público da escola. O clube também tem se transformado numa ferramenta de integração entre alunos de várias séries, pois é composto por adolescentes do ensino fundamental e médio. Ao invés de dispersar as pessoas, como o artefato de Espertirina, o grupo está ganhando cada vez mais alunos. Desta vez, a batalha não é contra uma Brigada Militar, e sim contra o preconceito. 89



Conclusão Um livro das não-histórias Se a escola absorve a homofobia porque esta última está na ordem de nossas relações sociais, ela é também esse espaço privilegiado para falar sobre sexo, gênero e sexualidade e repensar as hierarquias normativas, produzindo novos saberes e testando outros tipos de vivências. De todas as possibilidades que se nos oferecem, certamente a educação é a ferramenta mais eficaz para desestabilizar o preconceito e construir uma sociedade mais justa e igualitária. Ao longo do texto, a homofobia não foi entendida apenas como um sentimento de aversão à figura do homossexual, mas um preconceito e violência contra qualquer pessoa, expressão ou estilo de vida que transgridam as normas de gênero, a matriz heterossexual e a heteronormatividade. A homofobia está sim na violência física que mata um LGBT a cada 28 horas no Brasil. Mas ela também está nas piadas discriminatórias dos professores, nos xingamentos dos alunos, na diferença brutal de expectativas sobre o desempenho escolar de meninas e meninos; ela está também na negação das escolas em debater o preconceito em sala de aula e na maneira transfóbica com que as alunas travestis são expurgadas da escola. A homofobia está no silêncio do olhar. Entender seu amplo significado é essencial para que possamos combatê-la.

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Este é um livro de vivências. As histórias aqui relatadas têm pontos em comum entre si e se relacionam com tantas outras vidas para muito além dos limites destas páginas. Sua matéria-prima é a coragem que as pessoas tiveram para relatar experiências violentas a que foram submetidas devido a sua orientação sexual ou identidade de gênero. Nesse processo, muitos dos jovens ouvidos não ganharam um capítulo exclusivo para suas histórias. Mas isso não significa que seus relatos não tenham significado ou importância. Este é também um livro sobre Jehan, um aluno gay que deixou a escola no ensino médio depois de um sério histórico de violência e discriminação. Ele já havia sido enforcado por um colega de classe dentro da sala de aula, anos antes. É também sobre histórias como a de Talita, uma travesti do interior da Bahia, que foi chamada de “a vergonha do Brasil” por um professor de geografia. Hoje, Talita está fora da escola. Este é um livro sobre Lorena, uma garota de Brasília que foi advertida várias vezes pela escola por causa de seu namoro com outra menina. Sobre Fernando, um garoto bissexual cujos colegas de escola insistem em dizer que ele é gay. Sobre Paulo Ricardo, que foi cruelmente espancado por colegas da escola e teve suas roupas jogadas para fora de casa pela mãe, quando esta descobriu ter um filho gay. E sobre Carlos, um jovem do Rio de Janeiro que foi ridicularizado durante toda a sua vida escolar, inclusive depois das aulas de educação física, quando todos os meninos iam tomar banho no vestiário. Carlos precisou lidar com um sentimento de cobrança excessiva sobre seu desempenho na escola simplesmente por ser gay.


Jehan, Talita, Lorena, Fernando, Paulo Ricardo e Carlos, este é um livro sobre suas histórias. Este é um livro das não-histórias, de relatos que não ganharam a devida atenção da escola, como se elas jamais tivessem acontecido. É também um trabalho baseado na indignação pelas vidas desperdiçadas em razão do ódio, do preconceito, e da homofobia. Durante a escrita do livro, cerca de 90 pessoas LGBT se foram... Por isso mesmo, este é um livro-manifesto pelas vozes silenciadas, pelos sonhos não realizados, pelas vidas interrompidas. Um trabalho fruto das dores de muitos jovens LGBT que sequer puderam contar as suas experiências na escola. Um dia, cada uma dessas 90 vidas estiveram na escola, bem como cada um de seus algozes. Apesar de insistirmos em retratar a escola como um espaço de violências, é importante destacar que este é sobretudo um ambiente de construção de trajetórias de vida, atravessada também por experiências positivas. Na história de cada personagem do livro, existiu algum professor responsável por oferecer apoio para enfrentar o preconceito. “Um educador é fundador de mundos, mediador de esperanças, pastor de projetos de vida” (FIGUEIRÓ, 2006). Que fique formalmente registrado meu mais sincero sentimento de admiração e agradecimento aos professores e professoras que veem cada aluno como um universo único e distinto. Aos professores que sabem encantar o aluno através do conhecimento e os ajudam a construir novas realidades, novos mundos. Àqueles professores que ajudam seus alunos a enfrentar seus medos, suas frustrações, seus fantasmas pessoais.

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A mudança que esses professores provocaram na vida de cada aluno é valiosa, mas ainda insuficiente. A sociedade como um todo deve se envolver em esforços para combater a homofobia. Um futuro mais justo e democrático depende disso – e a escola é o ambiente ideal para este novo início!

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