Cinzas

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Jo達o Werner

Cinzas


Cinzas Série de pinturas à óleo de João Werner, Com textos do Artista seguidos de ensaio crítico de Oscar D’Ambrosio



“Gauguin” Óleo sobre tela, 70x105 cm. Sete de maio de 2005



“Gauguin”

Essa é uma cena que vi em São Paulo, próximo da Cardeal Arco-Verde, por volta do anoitecer. Um grupo de crianças com os indefectíveis saquinhos de "iogurte" à boca, rodeando um rapaz sentado ao chão. Intenso congestionamento da hora do rush na capital do país (Brasília, que Brasília? Brasília, na verdade é um esconderijo... mas esta é outra história....).

A primeira vez que vi uma criança pequena se drogando, estava eu também totalmente drogado, andando pelo calçadão em Curitiba atrás das fogosas "roxinhas" da capital paranaense. A criança era um menino de no máximo uns 10 anos, descendo com um saquinho de cola na mão, totalmente despirocado.


Não tenho nenhuma intenção de fazer arte de cunho social, de denúncia ou qualquer outra coisa do gênero. Porém estas são cenas trágicas, que marcaram minha imaginação. Gauguin, entre os artistas que admiro, foi aquele que mais intentou encontrar a civilização além (ou aquém) da civilização ocidental. Chamar tais culturas de bárbarie seria apenas reproduzir um preconceito. Será que em uma outra instância de cultura - lá no Ta Matete, por exemplo - cenas selvagens como aquelas que descrevi acima fariam algum sentido?

Neste meu quadro não quis expressar nenhum tipo de constrangimento ou julgamento ético. Quis que parecesse uma cena normal e neutra, cotidiana e comum. Afinal, não é com uma indiferença assim que nossa sociedade trata tais situações na realidade?


“Ícaro” Óleo sobre tela, 70x105 cm. 20 de maio de 2005



“Ícaro” No mito grego, Ícaro morreu tentando alcançar o sol.

A versão de que morreu pagando por sua arrogância é meramente uma interpretação cristã pervertida.

A interpretação que julgo a mais correta do mito é a de que qualquer busca por um deus leva à destruição. Ícaro representa todo ser humano buscador de divindades, isto é, aquele que vair MORRER fascinado por algo inalcançável.

Quando criei este quadro, inicialmente queria representar a dor da ação de pendurar-se por ganchos.


É um tipo de ação penitente. Associei depois ao mito de Ícaro por que, para mim, buscar uma relação com o "divino" é, especialmente, uma ação dolorosa e auto-destrutiva.

O nirvana é o suicídio do Eu.


“Tio Hamilton” Óleo sobre tela, 70x105 cm. 2004



“Tio Hamilton” A arma que ele usou foi uma "garruchinha", calibre inferior a uma 22. Disparo que, surpreendentemente, não o matou. Lembro-me de ter visto uma radiografia do crânio dele com a bala alojada. Morreu somente dez anos depois, alcoólatra.

Convivi com ele até por volta dos meus 8 anos. Lembro-me dele pela atenção que me dedicava e por ensinar-me a jogar xadrez. Nunca soube, nem por ele e nem por ninguém, o motivo de sua autodestruição.


Ficou para mim como um símbolo das vítimas que desaparecem sem deixar vestígios. Como disse o mestre Walter Benjamin, os vencedores carregam em cortejo triunfal até mesmo a história dos vencidos. Pintei este quadro como um modo de purgar a minha imaginação.


“Clube de levitação” Óleo sobre tela, 100x161 cm. 2004



“Clube de levitação”

Esta é uma segunda versão de uma pintura da década de '80. A primeira pintura tinha mais ou menos o mesmo tamanho, porém era colorida, com um fundo azul, se bem me lembro.

O tema original era do poeta José Júlio Azevedo. Não sei bem qual era o contexto em que ele criou o clube, porém a idéia me cativou. Quem eram os membros deste clube? Como eles levitavam? Era pelo uso de drogas?

Fiz o grupo praticando sua arte misteriosa dentro de uma caixa, mas não sei bem porquê. Penso, às


vezes, que pode ser uma metåfora de como a sociedade trata os imaginativos, mas não pensei nisso enquanto esboçava o quadro.


“Anjo caído” Óleo sobre tela, 50x70 cm. 2003



“O Faraó vai para Orion, Nightwish” Óleo sobre tela, 74x105 cm. 07 de junho de 2005



“Orfeu” Óleo sobre tela, 50x70 cm. 09 de maio de 2004



“Mergulho” Óleo sobre tela, 70x100 cm. 2004



“Cortando as asas de um anjo” Óleo sobre tela, 72x100 cm. 20 de maio de 2005



“Ninfa correndo” Óleo sobre tela, 70x100 cm. 2003



“Gaiola” Óleo sobre tela, 50x70 cm. 2003



"Entre a cisterna e a fonte" Oscar D'Ambrosio Crítico de Arte

“A cisterna contém, a fonte transborda”. A frase do poeta inglês Willliam Blake (1757-1827), em O casamento do céu e do inferno, permite um mergulho mais profundo nas pinturas da série Cinza de João Werner. Entre o negro do desespero e o branco da paz, existe um meio tom. Ali, reside a obra do artista paranaense.

Nascido em Bela Vista do Paraíso, PR, em 27 de outubro de 1962, teve seus primeiros passos no universo da criação com o artista sacro Henrique Aragão, em Ibiporã, PR. Graduado em Artes Plásticas na Faculdade Santa Marcelina (SP) e mestre em Comunicação Semiótica (PUC-SP), lecionou em São José dos Campos, SP, e Londrina, PR, onde está radicado.


Ao retomar a sua obra plástica, em 2002, dá vazão a pinturas de temática rural, urbana, mitológica, nus, eróticos e abstratos, além de esculturas e painéis em relevo. Nas obras em cinza, porém, encontra a plenitude de uma expressão pessoal, entre a agonia e a espiritualidade.

Os óleos sobre tela realizados por Werner têm, tanto na temática, como nas imagens escolhidas, a possibilidade de despertar no observador o mesmo sentimento: inquietação. Isso ocorre, em boa parte, por ele dar uma visão muito pessoal de diversos temas mitológicos.

A imagem de Ícaro, por exemplo, um dos melhores resultados do artista, mostra bem como o espaço vazio da tela pode ser de grande valia para a composição. Este célebre personagem, por não ter seguido o conselho do pai Dédalo de voar entre o céu e a terra, termina caindo sobre o mar que hoje leva o seu nome.


Ícaro é a imagem plástica que transmite com mais vigor a arte de Werner. Dédalo fora claro: ele não devia se aproximar da água do mar, pois o sal grudaria em suas asas de penas, mas também não poderia tentar atingir o sol, já que a cera que grudava as penas derreteria.

Os trabalhos do artista paranaense não são nem muito humanos nem muito divinos. Estão nesse cinza que fascina por ser difícil de definir. A imagem de um anjo de asas cortadas conduz a um raciocínio análogo, pois o ser divino sem seu instrumento para voar se humaniza.

Anjo caído compõe essa mesma idéia, reforçando a pintura cinza de Werner como a criação de seres limítrofes entre o divino e o humano. Surge assim Orfeu, um dos deuses mais próximos dos homens, com sua paixão pelas artes, simbolizados na lira, religião e filosofia, sendo considerado um educador de homens, levando-os da barbárie à civilização. E se o limite entre a barbárie e a civilização é uma característica das pinturas em cinza, nada mais


apropriado que a homenagem de Werner ao pintor Gauguin, que abandonou uma posição estável na França para se aventurar pelos mares do sul, redescobrindo-se pintor com cores quentes e uma sensualidade que chocou os europeus.

Werner oferece em seus cinzas imagens que levitam, faraós em busca da imortalidade, mergulhos no vazio e ninfas nuas em carreira. São seres sempre entre uma coisa e outra: o solo e o ar, a vida e a morte, o apoio e o nada, a doçura e os músculos retesados.

Se a cor cinza remete ao resíduo de uma combustão, aponta então para uma destruição interna, marcada pelo aniquilamento, luto e destruição. Paralelamente, esse sentimento caminha junto ao desejo de reconstrução. Nesse vai-e-vem, a arte de Werner revela toda a força.

Assim como Ícaro cai, mas se imortaliza no nome de mar, as telas da série Cinza de João Werner


machucam numa primeira observação, mas maravilham porque apontam para um novo mundo: aquele em que não há verdades ou mentiras, brancos ou negros, mas restos de cinzas da humanidade a serem rejuntadas com talento artístico, como cacos de vidro a serem reciclados em nome de algo maior: o poder que a arte dá a cada criador de se reinventar constantemente, com a capacidade de interiorizar a energia vital da cisterna e o vigor explosivo da fonte.

Oscar D’Ambrosio, jornalista, é mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes (IA) da UNESP, campus de São Paulo e integra a Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA-Seção Brasil). É autor, entre outros, de Contando a arte de Cláudio Tozzi (Noovha América) e Os pincéis de Deus: vida e obra do pintor naïf Waldomiro de Deus (Editora Unesp e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo).


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