Revista Argumento nº 12

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Aos leitores

Imagine não existirem países... A imagem do menino sírio Aylan morto numa praia da Turquia, em setembro de 2015, virou símbolo da crise migratória que já matou milhares de pessoas do Oriente Médio e da África, que tentam chegar principalmente à Europa para escapar de guerras, perseguições e da pobreza. Estatísticas do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), conhecido como a Agência da ONU para Refugiados, mostram que os deslocamentos forçados afetavam 59,5 milhões de pessoas, o número mais alto desde a Segunda Guerra Mundial. Sírios, afegãos, eritreus, somalis e nigerianos, sobretudo, arriscam suas vidas para tentar encontrar refúgio em outros lugares do mundo, entre eles, o Brasil. Isso mesmo. Caso você, leitor, não saiba, senegaleses, congoleses, sírios, angolanos, colombianos e haitianos, entre outros ainda não contabilizados, estão entre nós na condição de refugiados. Dados do Comitê Nacional para Refugiados (Conare), do Ministério da Justiça, dão conta de que o Brasil reconhece 8.530 refugiados. É a essa realidade nacional, ainda que nova, que a equipe da Argumento dedica suas páginas principais, visto que decisões que têm refugiados como partes interessadas já chegaram à Justiça Federal. A edição nº 12 da Argumento também traz uma matéria sobre extração mineral ilegal, com foco no caso da pedra preciosa Turmalina Paraíba, mostrando que o Brasil ainda não aprendeu a equacionar a extração com a distribuição de riquezas. Por falar em riquezas, agora culturais, a seção Cultura e Direitos é sobre a salvaguarda dos patrimônios imateriais do Brasil, feita por lei, tanto federais quanto estaduais e municipais. Esta edição da Argumento também traz outras preciosidades: na seção Extra-Autos, o projeto de educação musical “Com notas e cordas: crescendo na harmonia”, voltado para crianças em situação de vulnerabilidade da comunidade do Pilar e de escolas públicas adjacentes, realizado por meio de uma parceria entre o TRF5, a Faculdade Frassinetti do Recife (Fafire) e a ONG Moradia e Cidadania; na seção Memória, a história da Justiça Federal contada, recontada e eternizada nas páginas do livro “Por causa do Tempo: memória da Justiça Federal em Pernambuco”, produzido e editado pela Seção Judiciária de Pernambuco (SJPE); o perfil do desembargador federal Manoel Erhardt, considerado um “monge” pelos seus pares; e um artigo do desembargador federal do TRF da 2ª Região e doutor em direito público Reis Friede, sobre a Lei da Anistia. Por fim, mas não menos importante, o poema “O Fim”, do juiz federal Marcos Mairton, na seção Sentir, e o ensaio fotográfico de Juliana Galvão, com textos de Márcia Marinho, sobre a região das Espinharas, no sertão da Paraíba, que revela a beleza, a força e a fé do povo que habita a localidade. Desejamos uma boa leitura! Isabelle Câmara Editora


Expediente Presidente Des Fed Rogério Fialho Moreira Vice-Presidente Des Fed Roberto Machado Corregedor-Regional Des Fed Fernando Braga Desembargadores Federais Lázaro Guimarães Paulo Roberto de Oliveira Lima Manoel Erhardt Vladimir Carvalho Edilson Pereira Nobre Júnior Paulo Cordeiro Cid Marconi Carlos Rebêlo Júnior Rubens Canuto Alexandre Luna Ivan Lira (convocado) Manuel Maia (convocado)

Edição Isabelle Câmara Projeto gráfico André Garcia Textos Isabelle Câmara, Christine Matos, Wolney Mororó, Ana Clara Reis, Elizabeth Lins, Felipe de Oliveira, Cesar Castanha e Marina Afonso Capa André Garcia e Rachel Hopper Revisão Nivaldo Vasco Fotografias Juliana Galvão e Roberta Mariz Ilustrações Anderson Acioli Editoração André Garcia e Rachel Hopper Apoio Francisco Macena e Rafaela Pereira @TRF5 Portal TRF5: www.trf5.jus.br Twitter: http://twitter.com/trf5 Curta nossa fanpage: https://www.facebook.com/TRF5a Fale conosco: argumento@trf5.jus.br

Jornalista Responsável Isabelle Câmara DRT/PE 2528


Sumário

À Luz dos Direitos

Fé, força e beleza no sertão das Espinharas, na Paraíba, sob as lentes de Juliana Galvão

12

Perfil

8

Dono de decisões qualificadas como humanistas e conhecido como pacifista, Manoel Erhardt é o perfilado desta edição FOTO: ARQUIVO POLÍCIA FEDERAL

Ambiente Inteiro

26

Extração mineral e distribuição das riquezas: a conta que nunca fecha no Brasil

22 Memória

Extra-Autos

4

Onde toca um violino, vibra uma esperança: projeto musical incentivado pelo TRF5 visa à formação de uma orquestra infantil

A história da Justiça Federal nas páginas do livro “Por causa do tempo: memória da Justiça Federal em Pernambuco”

30 Capa

Refugiados: o drama de milhões de pessoas que abandonaram seus países por medo de perseguições raciais, religiosas ou políticas

40 Cultura e Direitos

Tombados por lei, patrimônios imateriais do Brasil ganham mais que preservação; ganham redimensão cultural e histórica

46 Veredicto

A dimensão jurídica da Lei da Anistia, sob a ótica de Reis Friede, desembargador federal do TRF da 2ª Região e doutor em direito público

51 Em dia com a Lei

Panorama das decisões judiciais do TRF5

52 Sentir

Quando começa o fim? Poema do juiz federal Marcos Mairton, da Seção Judiciária do Ceará (SJCE)


Extra-autos

Onde toca um violino, vibra uma esperança Projeto incentivado pelo TRF5 visa à formação de uma orquestra composta por 72 crianças da Comunidade do Pilar e da Escola Pedro Augusto Elizabeth Lins de Carvalho Na Grécia antiga, a música ocu-

Acreditando no potencial transformador da mú-

pava um lugar de destaque na for-

sica, em dezembro do ano passado, o Tribunal Regio-

mação dos jovens atenienses. Platão

nal Federal da 5ª Região – TRF5 realizou a doação de

definia a arte dos sons como uma lei

15 violinos do tipo ¾, tamanho ideal para crianças, à

moral e dizia “que dava alma ao cora-

orquestra infantil formada por meninos e meninas da

ção, asas ao pensamento e impulso

Comunidade do Pilar e das Escolas do Pilar e Pedro

à imaginação”. Troquemos, então,

Augusto. A ação cidadã, desenvolvida em harmonia

a lira pelo violino e a Acrópole pela

com a ONG Moradia e Cidadania e a Faculdade Fras-

Comunidade do Pilar. Teremos aí a

sinetti do Recife (Fafire), visa a contribuir com a trans-

reinvenção do projeto grego da mú-

formação de jovens em situação de risco pessoal e

sica como instrumento de educação,

social em músicos.

ou, como diríamos em linguagem

Foi mais que um acorde para a inclusão social. É

contemporânea, a música como ca-

a música a serviço da paz e da arte. Na alquimia da

minho de cidadania e emancipação

vida, tudo conspira para o bem: a compra dos violinos

cultural. A iniciativa encontra sua

foi feita com recursos advindos da venda de papel

metáfora no próprio instrumento,

fragmentado e prensado para reciclagem, que é do-

o violino, dotado de apenas quatro

ado, há mais de 10 anos, pelo TRF5 à ONG Moradia e

cordas, mas capaz de executar qual-

Cidadania, por meio do setor de Reprografia, ligado ao

quer sinfonia, gerando novos sons.

Núcleo de Gestão Documental. Trata-se de processos


e documentos findos, que já cumpriram a sua função e temporalidade legal. Estatísticas da Reprografia dão conta de que, somente em 2015, foram doadas 50 toneladas de papel. Incentivador entusiasta do programa, o presidente do TRF5, desembargador federal Rogério Fialho Moreira, destacou a iniciativa como uma das mais relevantes em sua presidência. “Eu sabia que uma das coisas mais importantes da minha gestão seria este projeto, que transforma lixo em cultura. É tocante saber que, por meio da música, essas crianças poderão ter melhores oportunidades”. A diretora da Gestão Documental, Lúcia Carvalho, compartilha do mesmo pensamento. “Um documento que seria jogado fora, poderia virar lixo, vira violino; se transforma em música e cidadania”. Esta relação colaborativa, em que o Tribunal se envolve para promover o desenvolvimento social, já rendeu, entre outras ações, a construção da quadra da Escola do Pilar. Fialho participou, ainda no ano passado, da primeira aula de violino para os estudantes, realizada na Escola Nossa Senhora do Pilar, localizada no Recife Antigo. Ministrada pelo maestro Deoclécio dos Reis, o momento simbolizou a “primeira nota musical” do projeto. Naquele dia ficou acertado que os futuros violinistas se encontrariam com o maestro Deoclécio dos Reis duas vezes por semana, nas segundas e terças-feiras, das 14h às 15h30. Na ocasião, o presidente do TRF5 ressaltou os aspectos socioambiental e cultural da proposta, nascida de uma cooperação antiga do Tribunal com a ONG. Emocionado, ele disse, diretamente para as crianças: “tomara que esses violinos consigam transformar a vida de vocês. Que, com eles, vocês possam levar mais alegria, não só às vidas das pessoas, mas, principalmente, à de vocês”. E, ao ouvir “Noite Feliz”, tocada pelo maestro, fez um acordo com os pequenos: “no Natal do ano que vem, eu venho aqui e quero ouvir essa música tocada por vocês”. Com tantas mãos envolvidas nessa causa, o primeiro acorde não tardaria para acontecer. Em 11 de março deste ano, as crianças se apresentaram, pela primeira vez, na Fafire, para comemorar os 75 anos de funcionamento daquela instituição de ensino superior.

Crescendo com harmonia A orquestra infantil da Comunidade do Pilar pode parecer uma iniciativa recente, mas, na verdade, caminhou cerca de 10 anos para chegar


onde está. Diversas pessoas se mobilizaram em suas

pessoa que pudesse ministrar as aulas e reger a or-

áreas de atuação, cada qual com o desejo de criar

questra.

novas parcerias e redes solidárias. Como o servidor

O músico escolhido foi o maestro Parrot, profes-

Clóvis Araújo, supervisor da Reprografia do TRF5, mú-

sor de didática musical formado pela Universidade Fe-

sico, compositor e produtor musical, que teve a ideia

deral de Pernambuco (UFPE) e um dos fundadores da

em 2005. “Imaginei a criação de uma orquestra infan-

Orquestra da Bomba do Hemetério, que possui larga

til no Pilar, algo que beneficiasse diretamente essas

experiência na chamada linha social da música. Par-

crianças, pois a música é um fator de inclusão social,

rot, codinome de Paulo Sérgio Albuquerque de Mello,

além de exercício de desenvolvimento humano”, re-

elaborou o primeiro projeto de criação da orquestra

cordou.

infantil do Pilar, com apoio da direção geral e adminis-

Para ele, o maior desafio, no início, consistia em

trativa do TRF5. De acordo com ele, a relevância deste

articular as condições que viabilizassem o projeto, a

trabalho é dar às crianças e adolescentes da Comuni-

ação que garantisse a tradução da ideia para a rea-

dade do Pilar, no Recife Antigo, a oportunidade de um

lidade. A solução, no entanto, estava ali mesmo, no

estudo musical teórico e prático. “É do conhecimento

Núcleo de Gestão Documental do TRF, sob a forma

de todos que a música auxilia tanto o intelecto quan-

de toneladas de papel fragmentado que, repassado

to a disciplina, oferecendo às famílias outra maneira

e vendido pela ONG Moradia e Cidadania, poderia

de vencer os obstáculos financeiros, ao formar novos

levantar recursos para a compra dos instrumentos.

profissionais da música. A falta de ambientes de lazer

Clóvis percebeu isso e, juntamente com a diretora do

na comunidade, por exemplo, gera tempo ocioso que

referido Núcleo, Lúcia Carvalho, levou a proposta à

deixa as crianças à mercê das drogas e da violência”,

apreciação da direção do TRF5, que não só abraçou

lembrou.

a ideia, como também autorizou a procura de uma

Embora Parrot não tenha chegado a ministrar as aulas, era conhecedor da realidade dos meninos que seriam atendidos pelo projeto. “Há também grande evasão escolar, devido à falta de interesse dos alunos. As dificuldades, sobretudo de ordem financeira, tornam necessária a intervenção dos poderes públicos em torno da comunidade marginalizada, oferecendo aos jovens uma oportunidade através do aprendizado musical, que prepara cidadãos úteis e afastados da marginalidade.”, acrescentou. A formação da orquestra infantil ficou à espera de

A postura de Wanderson Arruda, 11, ao segurar o violino, impressionou o maestro Deoclécio Reis, coordenador do projeto

uma nova chance. Ao assumir a Presidência do TRF5 e tomar conhecimento da proposta, Rogério Fialho ex-


clamou: o projeto é esse!, pondo em movimento as

lino impressionou o maestro. “A postura, ao segurar o

iniciativas necessárias. Dessa maneira, Selda Cabral,

instrumento, é perfeita. Ele aprende com grande rapi-

gestora da ONG Moradia e Cidadania, numa sincronia

dez e já começa a tocar as primeiras notas, extrain-

afinada, trouxe à baila o projeto “Com Notas e Cor-

do do instrumento um som puro e cristalino”, contou

das: Crescendo na Harmonia”, elaborado por um de

Deoclécio. Ao ser questionado sobre a importância do

seus alunos, o maestro Deoclécio Francisco dos Reis.

aprendizado musical em sua vida, Wanderson, cujo

Gerido pelo Núcleo de Extensão da Fafire, a proposta

pai está desempregado e faz pequenos serviços, res-

tem como objetivo social ensinar alunos de escolas

pondeu: “É muito bom, porque faz bem para mim e

públicas do Recife a tocar instrumentos musicais. Foi

para meu futuro. Eu vou pela música. Também gosto

o encontro das mãos com as cordas. A ponte entre o

de desenhar, mas a música liga a Deus”.

sonho e a realidade estava construída.

Já Henrique Castro Gomes, 11, disse que, an-

Para descrever o seu esquema, o também profes-

teriormente, frequentava aulas de flauta, mas ficou

sor Deoclécio destacou a força da educação na mu-

muito grato pela oportunidade de aprender violino

dança do indivíduo e, sobretudo, da sociedade. “Foi

também. Agora, o seu desejo é aprender os dois ins-

acreditando nisso que o projeto musical Crescendo na Harmonia surgiu, em atendimento às crianças e adolescentes de escolas da rede pública, dando-lhes a oportunidade de uma formação mais ampla no que diz respeito à sensibilidade, estética e criatividade, sem deixar de mencionar, principalmente, a possibilidade de mudança em seu contexto sociocultural, dada a oportunidade de profissionalização. Um projeto musical, em princípio, com instrumentos de cordas, o qual possibilitasse a transformação na vida de crianças e adolescentes”, compartilhou. Inicialmente, o projeto musical procurou atender a 18 alunos do ensino fundamental da Escola Muni-

Presidente do TRF5, Rogério Fialho Moreira (de terno cinza) entrega oficialmente os violinos aos coordenadores do projeto. Instrumentos foram adquiridos com dinheiro arrecadado com a venda de papel reciclável doado pelo Tribunal

cipal Pedro Augusto. No entanto, a ideia cresceu e tomou novos rumos. Com a participação e colabora-

trumentos, a flauta e o violino. Ana Carolina, mãe de

ção do TRF5, os alunos do 3º ao 5º ano do ensino

um dos alunos, declarou: “gostei da ideia, as crianças

fundamental da Escola Nossa Senhora do Pilar tam-

vão aprender hoje o que mais tarde vai ser o futuro de-

bém foram contemplados. Entre eles, encontra-se

les”. Sim, no Pilar existem pobreza e panelas vazias,

um talento musical. Trata-se de Wanderson Cristiano

mas também violinos, que entoam a canção da vida e

Santos de Arruda, 11, cuja facilidade de aprender vio-

abafam a tristeza da situação de vulnerabilidade.


Perfil

Um monge de toga Manoel Erhardt Dono de decisões reconhecidamente humanas, o desembargador federal Manoel Erhardt também é reconhecido pelos seus pares como um dos magistrados mais pacifistas da 5ª Região

Wolney Mororó e Isabelle Câmara Um vibrante torcedor do Sport

terlocutores muito à vontade. Conta que, certa vez, re-

Clube do Recife, que já exerceu vá-

alizando uma audiência em que se cuidava de saques

rias funções no serviço público, mas

indevidos de benefício do Programa de Formação de

que nasceu mesmo para ser juiz,

Patrimônio do Servidor Público – PASEP, interrogava

como costuma dizer. Sentiu suas

uma cobradora de ônibus, na presença da acusada,

vocações muito cedo. Este é o nos-

cujo semblante revelava uma pessoa em estado bem

so personagem: Manoel de Oliveira

sonolento e disperso. Ao término da audiência, a acusa-

Erhardt, homem de origem humilde,

da o cumprimentou, se despedindo como se estivesse

fala mansa e pausada, que alcançou

falando com alguém que já conhecia há bastante tem-

um dos mais altos postos da magis-

po e tinha alguma relação de intimidade: “Xau, bem!”.

tratura federal, mas que não perdeu

Não à toa, entre os seus pares, há quem diga

a simplicidade e o dom de ouvir com

que ele é um monge. “Manoel Erhardt é um colega

atenção e respeito, deixando os in-

especial. Ele é uma pessoa extremamente polida, bem


9

educada, com raciocínio jurídico que beira à

em razão de ter sido gráfico na antiga Gráfica Ramiro

perfeição. É um homem que passou em 1º lugar

Costa. Conta que Seu Epifânio apreciava ler os livros

em todos os concursos que fez, demonstrando

antes de encaderná-los. Da mãe, o orgulho de ter

sua capacidade imensa. Ele é referência em di-

ensinado a tantos em escolas do interior, onde mais

reito administrativo, daí o Tribunal não decide

carecia de professores. De ambos, a dignidade com

praticamente nada nessa matéria sem ouvir a

que se houveram.

opinião dele, e tem a característica de conviver

Ainda pequeno, perdeu o pai, ficando mais pró-

da melhor maneira possível com os colegas. En-

ximo, a partir daí, da avó materna, Celina Heloísa.

tão, às vezes, ele é até meio tímido na defesa

Contam familiares que o menino adorava ler jornal,

das suas posições, porque enquanto outros que

atividade que praticava matinal e vespertinamente.

têm a consciência de que estão corretos dis-

Um dia, negaram-lhe o direito à sua leitura costumei-

cutem, reafirmam, voltam às suas posições ori-

ra, o que o deixou muito triste e zangado. A zanga foi

ginais quando são contestados, Manoel quase

canalizada para os livros: obras de Guimarães Rosa,

sempre tem um estilo mais doce, mais tranqui-

José Lins do Rêgo e Ariano Suassuna, por exemplo,

lo, dificilmente vai à réplica, à tréplica. Ele tem

passaram a povoar o universo literário de Erhardt. Em

um espírito pacifista que o inibe desse debate,

paralelo, aprendeu a gostar das coisas da sua terra,

mas é alguém essencial dentro da composição

dos símbolos pernambucanos, a exemplo do frevo.

do Tribunal, por essa visão madura, lúcida; vi-

“Evocação nº 01”, do compositor pernambucano Nel-

são de alguém que já não é mais tão criança

son Ferreira, por exemplo, é capaz de alterar seu hu-

e que já viveu todas as situações, portanto, tem uma

mor para um estado de espírito mais elevado.

compreensão da alma humana bem maior que os que

Graduado em Direito pela Faculdade de Direito

estão no início de carreira, compatível com quem já

do Recife da Universidade Federal de Pernambuco –

tem muitos anos de estrada”, avalia o desembargador

FDR/UFPE, em 1976, foi auxiliar administrativo do Ins-

federal Paulo Roberto de Oliveira Lima. O desembarga-

tituto de Previdência dos Servidores do Estado - IPASE

dor federal Fernando Braga concorda com essa capa-

(1974 a 1978) e técnico judiciário da Justiça Militar

cidade e afirma, em tom de brincadeira: “se não quiser

Federal (1978 a 1980). Em seguida, assumiu o car-

errar, vote com o Erhardt!”.

go de juiz de Direito no Estado de Pernambuco, entre

Filho único do agente de estatística Epifânio

1981 a 1982, e exerceu o cargo de juiz auditor subs-

dos Reis Erhardt e da professora Heloisa de Oliveira

tituto da Justiça Militar Federal da 7ª Circunscrição

Erhardt, que trabalharam nos municípios de Tacaratu,

Judiciária Militar, no período de 1982 a 1984. Tomou

Palmeirina e Angelim, até chegarem a Gravatá (todos

posse no cargo de procurador da República, no Estado

em Pernambuco), onde Manoel nasceu, em 30 de

de Pernambuco, no período de 1984 a 1987. Na área

maio de 1953. Confessa uma admiração especial pelo

acadêmica, ensinou Direito Administrativo na Facul-

pai, que adquiriu significativos conhecimentos gerais,

dade de Direito de Olinda, em 1979, na Universidade


10

a esposa Vera Lúcia e os filhos Ana Carolina, André e

1987 a 1990, e na Escola Superior da Magistratura

Tiago, todos bacharéis e atuantes na área do direito.

de Pernambuco – ESMAPE, durante os anos de 1987

“Talvez por ter perdido o pai muito cedo, ele é um pai

a 1993. Assumiu, cumulativamente, em 1990, o car-

extremamente amoroso, presente, de modo que tem

go de professor auxiliar de Direito Comercial, na FDR/

uma família muito bem constituída e tem um relacio-

UFPE, onde permane-

namento espetacular com os filhos de quem ele sem-

ce até os dias atuais.

pre se cerca, da esposa que é a primeira e com quem

FOTO: ARQUIVO PESSOAL

Católica de Pernambuco – UNICAP, entre os anos de

Em novembro de 1987, tomou posse

ele mantém um casamento duradouro e harmônico”, revela Paulo Roberto.

no cargo de juiz fe-

Ana Carolina é defensora pública concursada da

deral, em Brasília-DF.

Defensoria Pública da União – DPU, coordenadora de

Assumiu a titularida-

curso de pós-graduação e colaboradora da Escola de

de da 1ª Vara Federal

Ensino Superior de Advocacia (ESA) da Ordem dos

de Teresina (PI), onde

Advogados do Brasil, Secção de Pernambuco OAB/PE;

exerceu a magistra-

André é procurador federal concursado da Advocacia

tura durante o perío-

Geral da União – AGU; e Tiago, proprietário e gestor de

do de 10/11/1987 a

um curso preparatório para concursos públicos, junta-

24/01/1988. Foi re-

mente com a mãe, dona Vera Lúcia. Mas o direito não

movido para a 3ª Vara

é a única herança dada pelos pais. Segundo Erhardt,

Federal da Seção Ju-

os filhos herdaram da família materna o interesse pela

diciária de Pernambu-

música, visto que Vera Lúcia é bisneta de Bombardino,

co, onde permaneceu de 25/01/1988 a 07/08/2007.

popular maestro de Gravatá. André, o primogênito, fez

Exerceu a direção do Foro da Seção Judiciária de

aulas de canto, Tiago toca bandolim e guitarra, e Carol,

Pernambuco nos anos de 1991, 1992, 2000, 2001,

a caçula, canta e fez aulas de piano.

Erhardt é torcedor fervoroso do Sport Clube do Recife

2002 e 2003. Foi promovido a desembargador federal

O magistrado também tem uma terceira paixão:

do Tribunal Regional Federal da 5ª Região – TRF5 em

o time de futebol Sport Clube do Recife. À medida

agosto de 2007, onde está até os dias atuais. Atual-

em que foi deixando de ir aos estádios de futebol

mente, é diretor da Escola de Magistratura Federal

para assistir aos jogos do time, passou a frequentar

da 5ª Região (Esmafe) e foi eleito, em junho de 2015,

com mais assiduidade as reuniões da Igreja Católica,

desembargador eleitoral do Tribunal Regional Eleitoral

o que o fez desenvolver grande admiração pelo Papa

de Pernambuco (TRE-PE), para o biênio 2015-2017,

Francisco. Conta que, aos oito anos de idade, viu o

representando o TRF5.

Sport ser campeão estadual e, no ano seguinte, con-

Erhardt é confessadamente apaixonado pelo tra-

quistar o bicampeonato. Daí por diante, nem o jejum,

balho, mas admite que sua primeira paixão é a família:

que durou de 1963 a 1973, período em que o Náutico


Família: a maior das paixões de Manoel Erhardt

fizeram desistir do Leão da Ilha. Dono de decisões reconhecidamente humanistas, é dele o voto oral que decidiu, em 2012, portanto, antecipando-se ao posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF), pela constitucionalidade do

FOTO: ARQUIVO PESSOAL

foi hexacampeão e o Santa Cruz foi pentacampeão, o

sistema de cotas para negros na Universidade Federal

contido dentro do sistema jurídico, por vezes, quando

de Alagoas (UFAL), em processo da relatoria do de-

isso se mostra necessário, faz o que ele mesmo cha-

sembargador federal emérito José Maria Lucena, na

ma de ‘ativismo judiciário’ e defende teses que estão

Apelação Cível nº 562744 (AL).

longe de estar dentro do sistema jurídico, mas que

“Essa era uma questão extremamente difícil,

sempre são a favor dos mais fracos, do hipossuficien-

que comportava mais de uma visão”, reconhece Pau-

te, daquele que está numa situação de necessidade,

lo Roberto. “Ele deu um voto de improviso e longo

que demonstra uma compreensão muito grande com

que praticamente eliminou todas as dúvidas. Quem

a alma humana”.

defendia uma tese, quem defendia outra, quase to-

A admiração, o carinho e o respeito revelados

dos nos quedamos e acompanhamos a opinião dele

na fala de Paulo Roberto ecoam em Manoel Erhardt.

nessa matéria. Ele é dono de alguns votos que são

Ele nutre pelo Tribunal um forte sentimento de bem

emblemáticos dentro desse tribunal. A despeito de

estar, seja pela fraternidade dos relacionamentos pes-

ser extremamente legalista, o que significa dizer que

soais que encontrou na Corte, seja pela proficiência

se coloca dentro daquela moldura da lei, ele não é um

do trabalho aqui realizado, haja vista a qualidade e

defensor de um direito alternativo, não é defensor de

a operosidade da Corte, frente aos demais em todo

um Judiciário que cria regras, ao contrário, é muito

Brasil. “Aqui me senti muito bem, primeiro pelo clima de amizade e cordialidade entre magistrados e servidores. Depois, pela preocupação que existe com a produtividade e a excelência do trabalho, um bom exemplo para o Brasil de destaque no desempenho da prestação jurisdicional”, afirmou Manoel Erhardt. Erhardt revela que o que o norteia é o ideal de servir, de desenvolver uma atividade que venha a contribuir para o bem da sociedade. Posse de Erhardt no TRF5 foi bastante prestigiada pela comunidade jurídica


À Luz dos Direitos ENSAIO FOTOGRÁFICO


Ser(tão) de luz Um olhar sobre a região das Espinharas, na Paraíba

Fotos: Juliana Galvão Textos: Márcia Marinho


Abra os olhos, e faça o que é direito. Não deixe escurecer o seu juízo perfeito.

Tempo que se mede na espera; Espera que se mede com calma; o acender do fogão a lenha; até que a lenha seja brasa.


Olhos que se arregalam, nutridos de esperança; Um punhado de alegria, No colo de uma criança.


Nem mesmo a idade gasta, nem mesmo o sol a pino, faz Seu José descansar, Abandonar seu destino. A água ali é sagrada, alimento cristalino.




Pode até faltar comida, mas prece não pode faltar. Na casa do sertanejo, Sempre haverá um altar. É devoção a Maria, Confiança em São José, Dezenove de março, É festejado com fé. A reza tem endereço De proteção e clamor, Que venha chuva abundante, Para plantar sem temor.



Naquele Sertão ardente, A vida segue seu passo. O homem na sua lida, O gado cevando no pasto. A prosa ao cair da tarde, Faz esquecer o cansaço.


Memória

A eternização da memória “Por causa do tempo: memória da Justiça Federal em Pernambuco” lança mão de fotos e fac-símiles de jornais para contar a história da Justiça Federal Marina Afonso e César Castanha “Ao admirarmos a obra que

acervo de informações muito bem distribuídas nas

está a ser lançada, vem-nos à men-

150 páginas de “Por causa do tempo”. A obra revisita

te o questionamento: por que de-

dados históricos e a estrutura da Justiça Federal no

moramos 125 anos para fazê-la?”,

Brasil, apresentando a importância do Poder Judiciá-

declarou a atual diretora do Foro

rio para a construção da democracia no País; além de

da Justiça Federal de Pernambuco,

trazer informações daqueles que foram os arquitetos

juíza federal Joana Carolina Lins Pe-

que contribuíram para a consolidação da SJPE.

reira, sobre a importância do livro

Idealizado pelo juiz federal Frederico José Pinto

“Por causa do tempo: memória da

de Azevedo, em 2014, quando exercia a direção do

Justiça Federal em Pernambuco”. O

Foro da SJPE, “Por causa do tempo” é resultado do

fato é que, após o empenho de ser-

empenho coletivo da Comissão do Espaço Memória,

vidores e juízes da Seção Judiciária

composta pelo coordenador da comissão, juiz federal

de Pernambuco (SJPE), a memória

Ubiratan de Couto Maurício, pelo juiz federal Frederico

da JFPE está eternizada nas páginas

José Pinto de Azevedo e pelos servidores Alexandre

laboriosamente produzidas do livro

de Souza Albuquerque e Maria de Lourdes Castelo

comemorativo, lançado em 2015.

Branco de Oliveira. A obra, contou o ex-diretor do Foro

Quem gosta da história da democracia brasileira e procura

durante discurso de lançamento, “tem como mote construir o futuro olhando o passado”.

informações sobre o judiciário per-

O livro se subdivide em capítulos que contem-

nambucano, hoje, já pode achar um

plam, primeiro, a história da Justiça Federal, seguida


23

pela história da Justiça Federal em Pernambuco e,

Brasil. O País, em 15 de novembro de 1889, deixava

mais adiante, pela história de cada subseção judiciá-

de ser uma Monarquia Unitária e passava à condição

ria, começando por Recife e terminando em Serra Ta-

de Estado Federativo, acompanhando o movimento

lhada, no interior do Estado. Relata desde a instalação

republicano que já havia se consolidado nos Estados

da 1ª Vara e da Diretoria do Foro, no primeiro edifício

Unidos e na Argentina, por exemplo.

sede, Edifício Bitury, na Rua Diário de Pernambuco,

Instituído o federalismo como novo sistema

no bairro de Santo Antônio, até o atual endereço da

político, a autonomia dos estados da federação é

JFPE, na Avenida Recife, no Jiquiá, passando pela es-

conquistada, e a união entre eles, garantida. Fez-

trutura que construiu e, atualmente, integra o judiciá-

-se necessário, portanto, um poder judiciário que

rio pernambucano, com fotos e dados profissionais de

respondesse ao sistema federalista. A Constituição

todos os juízes federais e diretores de Foro.

Provisória da República, publicada com o Decreto nº

Em seu discurso no lançamento do livro, que foi

510, de 22 de junho de 1890, então, adota o dualismo

realizado no Espaço Memória da SJPE, situado na

judiciário, fazendo o Judiciário Federal independente

sede da JFPE, a juíza federal Joana Carolina destacou

do Judiciário Estadual, como nos modelos da Justiça

o trabalho ilustrativo do livro: “chamo atenção para

norte-americana, suíça e argentina.

as fotografias belíssimas, que não escondem o nosso

Com o Decreto nº 510, de 22 de junho de 1890,

orgulho pelas riquezas do nosso Estado”. Por meio de

oficializavam-se, assim, as responsabilidades da Justi-

fac-símiles de jornais e fotos dos principais fatos, a

ça Federal na República em que nascia. A Constituição

memória da JFPE é contextualizada nos acontecimen-

Federal de 1891 trouxe poucas mudanças em relação

tos nacionais e na geografia dos lugares que abrigam

ao Decreto, sendo a principal delas a criação dos Tri-

a seção e as subseções judiciárias.

bunais Federais, sem delimitação do seu campo de

Como disse o escritor e bibliotecário Jorge Luis Borges, oportunamente lembrado no discurso da atual diretora do Foro pernambucano, “o livro é a grande memória dos séculos. Se os livros desaparecessem, desapareceria também a história e, seguramente, o homem”. A partir dessa obra, considerada um marco literário na vida da JFPE, a memória da Justiça Federal está eternizada.

A história, segundo Por Causa do Tempo A Justiça Federal brasileira é uma instituição irmã da República, as duas nasceram juntas em um novo

Ubiratan de Couto Maurício, Joana Carolina Lins Pereira, Lourdes Castelo Branco de Oliveira e Frederico Azevedo, idealizadores e realizadores do livro


Getúlio Vargas anuncia pelo rádio a nova constituição, Estado Novo, 10 de novembro de 1937

FOTO: ACERVO ICONOGRAPHIA

atuação. Em novembro de

redemocratização do Brasil após uma longa ditadura

1894, a Lei nº 221 com-

(21 anos), estabelece profundas modificações na es-

plementa a organização

trutura do Poder Judiciário. O TFR foi extinto, dando

da Justiça Federal, am-

lugar ao Superior Tribunal de Justiça e aos Tribunais

pliando a competência do

Regionais Federais (TRFs), divididos por cinco regiões.

Supremo Tribunal Federal,

O STJ ficou responsável por algumas atribuições an-

dos juízes seccionais e do

teriormente designadas ao STF e por outras do TFR.

Júri Federal.

Como órgão superior acima dos Tribunais Federais e

A chamada Constituição “Polaca”, posta

dos Tribunais dos Estados, o STJ serve de instância recursal para ambos.

em vigor na Ditadura de

Com a chegada do séc. XXI, o Brasil experimenta

Getúlio Vargas, em 1937,

um intenso processo de interiorização da Justiça Fe-

extinguiu a Justiça Federal, estabelecendo que “As

deral, quando são instaladas 48 novas varas federais,

causas propostas pela União ou contra Ella serão afo-

a partir de 2010, apenas na 5ª Região, beneficiando

radas em um dos juízes da Capital do estado em que

mais de 2 milhões de pessoas nos estados jurisdi-

fôr domiciliado o réo ou o autor”. O Supremo Tribu-

cionados (Ceará, Rio Grande do

nal Federal foi mantido como Corte de Apelação para

Norte,

essas demandas. É apenas na Constituição de 1946,

Alagoas e Sergipe). Em 1995, é

após a queda do Estado Novo, que a Justiça Federal

inaugurada a nova sede da Se-

é, em parte, restaurada, com a criação do Tribunal Fe-

ção Judiciária de Pernambuco, no

deral de Recursos.

Jiquiá. Desde então, 413 outras

Paraíba,

Pernambuco,

A Justiça Federal só volta a funcionar de fato, e

varas federais foram criadas no

com nova organização, durante o período da Ditadura

Brasil, distribuídas entre as cinco

Militar, pela Lei nº 5.010, que também cria o Conselho

regiões.

da Justiça Federal (CJF), composto pelo presidente, vice-presidente e três ministros do Tribunal Federal de Recursos, e 44 cargos de Juiz Federal e Juiz Federal Substituto, a serem nomeados pelo Presidente da República dentre os nomes indicados, em lista quíntupla, pelo STF. Segundo a mesma Lei, a Justiça Federal de primeira instância passa a ser dividida em cinco regiões, e em cada Estado, Território e no Distrito Federal seria instalada uma seção judiciária. A Constituição de 1988, que marca o processo de

FOTO: AGÊNCIA O GLOBO/LUIZ ANTONIO

JUSTIÇA FEDERAL NA SOCIEDADE “Penso que o papel da Justiça Federal está intimamente relacionado ao exercício da cidadania. Demandar o respeito aos seus direitos, enfrentando o governo federal ou ente a ele vinculado, é um ato de dignidade. O Judiciário significa, para o cidadão, proteção contra o arbítrio e o abuso de poder”. Diretora do Foro SJPE, juíza federal Joana Carolina Lins Pereira


Detalhe da obra “A Patria”, de Pedro Bruno, 1919

ARQUIVO NACIONAL

Tancredo Neves e Ulysses Guimarães. Emenda Dante de Oliveira, em Brasília. Rio de Janeiro, 25 de abril de 1984

“O papel da Justiça Federal é imenso. Existem diversas demandas de natureza previdenciária, por exemplo, onde o contato com a sociedade é direto. São, em geral, pessoas socialmente menos aquinhoadas e que, por meio da Justiça Federal, conseguem garantir suas aposentadorias, pensões ou outros benefícios previdenciários”. Diretor do Foro SJCE, juiz federal Bruno Leonardo Câmara Carrá

“O Estado brasileiro, infelizmente, tem um histórico autoritário ou de desapego ao cumprimento das normas jurídicas. O tema é complexo e merece um debate mais profundo, mas é certo que a Justiça Federal tem se destacado no curso da sua história por inverter esse dado cultural, a fim de promover o paradigma da juridicidade como referencial legítimo de regulação da sociedade brasileira. Esse tem sido, a meu ver, o principal papel da Justiça Federal desde sua criação: fazer com que o Estado e a sociedade sejam pautados pelo direito”. Diretor do Foro SJRN, juiz federal Marco Bruno Miranda


FOTO: ARQUIVO POLÍCIA FEDERAL

Ambiente inteiro

Em busca do tesouro escondido País rico em minérios explorados há séculos, o Brasil ainda não equacionou extração com legalidade e distribuição de riquezas Christine Matos País com imenso território, com

ma na construção civil ou até mesmo para embelezar

uma formação rochosa antiga, o Bra-

acabamento em moradias, como é o caso do granito.

sil possui grande quantidade de mi-

Outra fonte de disputa pela propriedade são as pedras

nerais. Rico em minérios como ferro,

preciosas, produzidas, em grande parte, por garimpei-

manganês, nióbio e alumínio, o Brasil

ros, que atuam, muitas vezes, de modo informal.

possui riquezas cobiçadas por mui-

Menos valiosas, mas que ao serem extraídas sem

tos, seja para uso como matéria-pri-

autorização do órgão competente, a retirada de pedras


27

pode ser enquadrada também como uma transgressão

nome porque é encontrada em apenas cinco minas em

da Lei dos Crimes Contra a Ordem Econômica (Lei nº

todo o mundo. Destas, três estão localizadas no Bra-

8.176/91). Em novembro do ano passado, o Tribunal

sil: uma na Paraíba, descoberta em 1989, e duas no

Regional Federal da 5ª Região – TRF5 julgou uma ape-

Rio Grande do Norte. De uma tonalidade rara de azul, a

lação criminal, mantendo a decisão do Juízo da 8ª Vara

Turmalina Paraíba é hipnotizante, e uma joia com essa

Federal de Sergipe, que condenou um lavrador à pena

pedra pode custar alguns milhões de reais.

de dois anos de reclusão, além de multa, pela extração

Mas o que faz a gema encontrada na Paraíba ter

irregular de pedras no Povoado Burlão, no município de

tanto valor monetário, despertando desejos e cobiça?

São Domingos (SE). O lavrador e dois proprietários do

Embora as turmalinas sejam encontradas em várias

terreno onde ocorria a extração das pedras tinham sido

localidades, a Paraíba possui traços de cobre, manga-

presos em flagrante pela Polícia Militar. Denunciados

nês e ouro em percentuais únicos, o que proporciona

pelo Ministério Público Federal (MPF), afirmaram que a

um efeito de fluorescência que não se encontra em

atividade ilegal tinha sido interrompida. A perícia reali-

nenhuma outra pedra. As encontradas no distrito de

zada no local constatou que a lavra ainda era executa-

São José da Batalha, no município de Salgadinho (PB),

da, pois foram encontradas várias ferramentas utiliza-

conseguem alcançar teores de cobre acima de 2%. Já

das para a extração do minério, a exemplo de marretas,

para as que são exploradas no Rio Grande do Norte e

uma vara de ferro em forma de lança pontiaguda, uma

na África, esse teor é inferior a 0,80%. E isso faz muita

pá e uma taiadeira. Havia pilhas de pedras prontas para

diferença, segundo os especialistas.

serem transportadas e comercializadas.

Outro fato que desperta a atenção é o contraste

De acordo com o relator da apelação no TRF5,

entre a riqueza representada pelo que é encontrado

desembargador federal Lázaro Guimarães, a defesa do

no subsolo paraibano e as condições de vida da po-

acusado trouxe mais de uma vez a debate questões

pulação do município de Salgadinho, onde a Turmali-

sociais acerca da figura do réu, tais como o fato de ter

na Paraíba é encontrada. Segundo dados do IBGE, em

estudado apenas até a 5ª série do Ensino Fundamental,

2015, o município de Salgadinho possuía uma popula-

ser humilde e ter nascido em cidade do interior. “É sa-

ção estimada em 3.871 pessoas. Com um Índice de

bido que tais fatores antropológicos não servem como

Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), em 2010,

excludentes de culpabilidade, porquanto a falta de re-

de 0,563, Salgadinho ocupa a 4984ª posição entre os

cursos e a baixa instrução pedagógica não geram um

5.565 municípios brasileiros, segundo o IDHM. Com re-

sofisma lógico que leve obrigatoriamente a pessoa a

lação à escolaridade da população de 25 anos ou mais,

adentrar na criminalidade”, afirmou.

em 2010, 42,4% não concluíram o Ensino Fundamental

Mas nenhum mineral explorado de forma irregular

ou são analfabetos.

chamou tanta atenção, principalmente da imprensa,

Mais: de acordo com o Plano Brasil Sem Miséria,

quanto a Turmalina Paraíba, considerada uma das 10

do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate

pedras mais valiosas do mundo. A gema ganhou esse

à Fome, criado pelo Governo Federal, dos domicílios


28

particulares permanentes de Salgadinho, 63% têm sa-

um inquérito policial para investigar a extração irregular

neamento inadequado, e outros 22,2% possuem sane-

da Turmalina Paraíba. No curso das investigações, foi

amento semiadequado. Dados sobre Identificação de

constatada que a empresa Parazul Mineração não pos-

Localidades e Famílias em Situação de Vulnerabilidade

suía guia de utilização nem portaria de lavra, apenas

(IDV) apontam que 26,3% das pessoas residentes em

um alvará de pesquisa, com data vencida.

domicílios particulares permanentes possuem renda

De acordo com informações da Procuradoria da

de até R$ 70, e 42,6% dos habitantes permanentes de

República na Paraíba, em junho de 2015, o MPF de-

Salgadinho possuem renda de até 1/4 do salário míni-

nunciou sete pessoas envolvidas na exploração ilegal

mo. Segundo o Programa das Nações Unidas para o

da Turmalina Paraíba, no distrito de São José da Bata-

Desenvolvimento (PNUD) e o Instituto de Pesquisa Eco-

lha, município de Salgadinho (PB), no Cariri paraibano,

nômica Aplicada (IPEA), em 2010, apenas 39,12% da

a 170 km da capital João Pessoa. Sobre os réus pesa

população do município moravam em domicílios com

a acusação de crimes de usurpação de matéria-prima

banheiro e água encanada. Cerca de 70% da população

pertencente à União, exploração de minério sem licen-

são vulneráveis à pobreza.

ça ambiental, organização criminosa com emprego de

Então, para onde vai o dinheiro? “As pedras que

arma de fogo e por tentáculos internacionais. O esque-

são exibidas em eventos luxuosos por celebridades e

ma criminoso foi desarticulado durante a Operação

magnatas internacionais, e que são alugadas por atrizes

Sete Chaves, deflagrada pela Polícia Federal em 27 de

de Hollywood para desfilarem no tapete vermelho do

maio de 2015, após intenso trabalho investigativo.

Oscar, deveriam também proporcionar aos habitantes

No dia 25 de fevereiro, a Primeira Turma de jul-

de São José da Batalha e Salgadinho o progresso so-

gamento do Tribunal Regional Federal da 5ª Região –

cial, possibilitando melhores condições de vida, direitos

TRF5 julgou um habeas corpus de J.S.M.V., um dos in-

fundamentais básicos para o desenvolvimento do ser

vestigados na Operação Sete Chaves. O

humano, como proclamado pela Constituição Federal e

objetivo era revogar a decisão

pelos tratados internacionais”, propõe o procurador da

do juízo de 1º Grau,

República João Raphael Lima.

que aplicou ao denunciado

Operação Sete Chaves

uma medi-

da Operação Sete Chaves. Em 2 de março de 2009, o Ministério Público Federal (MPF) instaurou Procedimento Investigativo para apurar denúncias da imprensa sobre a exploração irregular da pedra preciosa na Paraíba. O MPF requisitou diligências preliminares à unidade da Polícia Federal em Patos (PB) e, em 2010, foi instaurado

FOTO: ARQUIVO POLÍCIA FEDERAL

A exploração irregular da Turmalina Paraíba é alvo


29

da cautelar de recolhimento domiciliar noturno e aos

va, até o fechamento desta matéria, na Procuradoria

finais de semana. A defesa alegou constrangimento

da República na Paraíba/Ministério Público Federal.

ilegal representado pelo excesso de prazo da medida

Ambos correm em segredo de justiça. O final dessa

constritiva. A Primeira Turma negou a ordem do habeas

Operação ainda promete muitos capítulos e, entre uma

corpus, mantendo o recolhimento domiciliar do acusa-

cena e outra, a população do distrito de São José da

do. “Tenho, neste momento de estreita cognição, como

Batalha segue a vida sem muita esperança de que a

não demonstrada qualquer das hipóteses de constran-

riqueza do seu subsolo possa vir à tona e transformar

gimento ilegal a exigir reparo imediato, mormente

a realidade local.

dentre aquelas previstas nos arts. 647 e seguintes do Código de Processo Penal. Impõe-se, pois, a manuten-

Pedra sobre pedra

ção da medida substitutiva ao encarceramento, nos

A exploração mineral no Brasil é regulamentada

moldes em que ultimamente estabelecida”, afirmou o

pela Lei 7.805, de 18/07/1989. E a permissão da lavra

relator em seu voto, desembargador federal convocado

é concedida pelo Departamento Nacional de Produção

Manuel Maia.

Mineral (DNPM), vinculado ao Ministério de Minas e

De acordo com o delegado da Polícia Federal na

Energia. A autarquia federal é responsável também

Paraíba, Fabiano Emílio, que conduz as investigações,

pela fiscalização das atividades de mineração em todo

J.S.M.V. praticou estelionato internacional, pois trazia

o território nacional. Executar atividade garimpeira sem

as turmalinas da África e as vendia como se fossem

permissão ou licenciamento é crime. Os trabalhos de

a Turmalina Paraíba, que possui um valor altíssimo. As

pesquisa ou lavra que causarem danos ao meio am-

investigações prosseguem, enquanto o TRF5 vem, des-

biente são passíveis de suspensão, sendo o titular da

de o ano passado, julgando as demandas da Operação

autorização de exploração dos minérios responsável

Sete Chaves. Dos dois inquéri-

pelos danos ambientais. A licença ambiental prévia é

tos sobre a Operação

obrigatória, concedida pelo órgão ambiental compe-

Sete Chaves, um

tente. Vale ressaltar que a realização de trabalhos de

deles está no

extração de substâncias minerais, sem a competente

TRF5. O ou-

permissão, concessão ou licença, constitui crime, su-

tro

esta-

jeito a pena de reclusão, que vai de três meses a três anos, e multa. Além disso, acarretará a apreensão do produto mineral, das máquinas, veículos e equipamentos utilizados, os quais, após transitada em julgado a sentença que condenar o infrator, serão vendidos em hasta pública e o produto da venda recolhido à conta do Fundo Nacional de Mineração, instituído pela

Valiosíssima, a Turmalina Paraíba é alvo de cobiça

Lei nº 4.425, de 8 de outubro de 1964.


Capa #SomosTodosHumanos Crises humanitárias em diversos países do mundo fizeram 59,5 milhões de pessoas fugirem de suas terras natais, em busca de refúgio em outros lugares. Imagine um mundo sem fronteiras, onde todos pudessem viver em paz... Ana Clara Reis e Felipe de Oliveira


31

Apenas dificuldades e adversidades no caminho.

negaleses e não sabe se um dia voltará para a África.

Abandonar sua terra de origem, seu povo, suas tradi-

“Sempre tive vontade de vir para o Brasil por causa

ções, e, muitas vezes, até a própria família em busca

do futebol, via os jogos na televisão. Eu gosto de ser

da sobrevivência. Depois, em um novo e desconheci-

goleiro. Lá no Senegal eu trabalhava como... (esquece

do lugar, enfrentar o preconceito e lutar para ter a sor-

como é a palavra em português e pergunta ao seu

te de conseguir uma ocupação que pague o básico,

conterrâneo, no dialeto Wolof, o que quer falar) ... Eu

como um prato de comida.

costurava. Conseguir trabalho aqui em Pernambuco

Esta não é uma realidade nova para o povo nor-

não é fácil. Também não foi fácil aprender a língua. Fui

destino. Na verdade, poderia ser a descrição da situ-

aprendendo sozinho – uma palavra nova a cada dia”,

ação vivida por muitos que, durante anos, migraram,

relembrou .

principalmente para a Região Sudeste do Brasil, em

Apesar do Senegal não ter conflitos internos

busca de novas perspectivas de vida, entre os anos

como outros países do continente africano, ainda é

de 1930 e 1990. Contudo, esta condição não é mais

um dos lugares mais pobres do mundo, motivando a

restrita ao fenômeno brasileiro; é compartilhada por

saída de muitos em busca de uma vida melhor. O fran-

outro grupo cada vez mais crescente e citado na mí-

cês é o idioma oficial, e o Islã, a religião dominante.

dia mundial: os refugiados.

Ndiogou renovou seu protocolo por três vezes e só

Ao contrário dos Emigrantes no inicio do século

teve sua situação como refugiado totalmente legali-

passado, que daqui partiam, eles enxergam o Nordes-

zada no Brasil após dois anos de espera. Assim como

te como um local onde podem chegar e recomeçar

muitos outros imigrantes, ele adotou a estratégia de

sua história. Esta foi a opção feita pelo senegalês

pedir o refúgio e, enquanto o processo não era julgado

Ndiogou Thiam, 30, que veio sozinho para o Brasil há

pelo Comitê Nacional para Refugiados (Conare), ficou

cerca de cinco anos e, hoje, vive no Recife, trabalhan-

livre de ser deportado.

do como camelô na movimentada Avenida Conde da

O presidente da Associação Senegalesa de Per-

Boa Vista, no “vuco-vuco”do Centro da cidade. Muito

nambuco, Amadou Touré, que também é senegalês,

alto, magro e dono de uma simpatia característica de

afirma existirem, hoje, 79 senegaleses oficialmente

quem trabalha como comerciante, Ndiogou contou

cadastrados no Estado. Mas, segundo ele, no Nordes-

que chegou ao País de avião, portando visto de turista

te, o número real é muito difícil quantificar, pelo fato

e, logo depois, solicitou o refúgio em São Paulo. Com

desta população não permanecer somente no Recife,

carteira de trabalho nas mãos, passou oito meses lim-

mas também em Fortaleza (CE), Maceió (AL) e Ara-

pando janelas de vidro. “A vida em ‘San Paolo’ é muito

caju (SE). “Viajam sempre pelo interior, para as festas

cara. Pagava o aluguel e quase não tinha mais nada”.

religiosas, tentando vender seu artesanato e suas bi-

Por este motivo, Ndiogou acabou se mudando para o

juterias, já que, nas capitais, há muito mais fiscaliza-

Recife, onde sobrevive vendendo bijuterias.

ção da Prefeitura, que apreende suas mercadorias. O

Atualmente, divide apartamento com outros se-

senegalês tem a veia para ser comerciante, empreen-


32

dedor individual. Grande parte já possui o visto permanente e está legalizada”. Amadou relata que o perfil destes imigrantes é de homens entre 20 e 35 anos, e crê na tendência crescente deste fluxo. Altino Mulungu, gestor do Escritório de Assistência à Cidadania Africana em Pernambuco (Eacape), instituição prestadora de assistência jurídica aos recém-chegados, acredita que, na época de sua elaboração, o Estatuto do Estrangeiro enfatizou os interesses do estado brasileiro em detrimento dos direitos humanos. Assim, os instrumentos legais disponíveis não fornecem muitas

O refugiado Ndiogou Thiam (esquerda) e o presidente da Associação Senegalesa de Pernambuco, Amadou Touré, ambos senegaleses, afirmam que os instrumentos legais disponíveis no Brasil ainda não oferecem muita segurança jurídica aos refugiados

opções relativas à segurança jurídica do imigrante.

nunca houve uma adaptação dentro dos princípios

“Porém, nos serve como artifício jurídico, para que

internacionais, humanitários”, elucida.

possamos ganhar tempo. O imigrante solicita o refú-

No ano passado, a estudante Maeli Farias e o

gio e, temporariamente, resolve a situação dele em

recém-formado Carlos Gomes, ambos da área de Re-

termos de trabalho e atividade econômica, para so-

lações Internacionais da Faculdade Damas, acompa-

breviver”, explica.

nharam de perto outro caso: o da congolesa Jael As-

Esta opinião é compartilhada pela desembar-

fine Mungo, 28. No início de 2015, a estrangeira, que

gadora federal emérita do Tribunal Regional Federal

fala francês, teria pagado a funcionários de um navio

da 5ª Região – TRF5, Margarida Cantarelli, também

atracado no porto da República do Congo para chegar

professora das disciplinas Direito Internacional e Di-

ao Canadá. No entanto, foi enganada e aportou no Re-

reito Penal Internacional no mestrado em Direito da

cife, onde foi orientada pela Polícia Federal a solicitar

Faculdade Damas. “Este pessoal burla o Estatuto do

a condição de refugiada. Sem um local especializado

Estrangeiro para buscar, pelo menos, uma regulari-

para abrigar estrangeiros, ela acabou sendo encami-

zação do trabalho, ou ficam em condição quase que

nhada para a Comunidade Obra de Maria, localizada

de escravo. Juridicamente, o apoio é muito tênue. A

em São Lourenço da Mata, Região Metropolitana do

Constituição de 1988 recepcionou o Estatuto, mas

Recife.


Jael tinha ânsia para reconstruir sua vida, mas o Nordeste não ofereceu estrutura para seu desenvolvimento, fazendo com que a possibilidade de conseguir um emprego fosse muito baixa. Acabou indo para São Paulo.

Por três meses, Jael aprendeu português com

toridade migratória na fronteira ou uma delegacia da

Carlos. “Ela se sentia muito sozinha, pois era impe-

Polícia Federal e pedir o refúgio. A solicitação é gra-

dida de sair da instituição. Sempre falava dos três

tuita, não exige a presença de um advogado e pode

filhos que havia deixado em seu País. Relatava que

ser feita fora de Brasília, cidade-sede do Conare. Com

tinha se arriscado para ajudar a família”. Maeli com-

esse documento, é possível obter a Carteira de Tra-

pleta dizendo que o Congo está em guerra civil e que

balho e o Cadastro de Pessoa Física (CPF), bem como

as mulheres sofrem bastante com a violência sexual,

acessar os serviços públicos disponíveis no País.

praticada pelas milícias como instrumento de domina-

De acordo com o Conare, presidido pelo Ministé-

ção. “Jael tinha ânsia para reconstruir sua vida, mas o

rio da Justiça, o Brasil tem hoje 8.530 refugiados re-

Nordeste não ofereceu estrutura para seu desenvolvi-

conhecidos. A maioria proveniente da Síria, Senegal,

mento, fazendo com que a possibilidade de conseguir

Angola e Colômbia. Os haitianos não entram nesta

um emprego fosse muito baixa. Acabou indo para São

conta, pois, até outubro de 2016, têm direito a uma

Paulo”.

modalidade específica de visto – o humanitário. A

Ndiogou e Jael são apenas dois exemplos que

reportagem da Argumento solicitou também a quan-

atestam quão difícil é para um estrangeiro ter a situ-

tidade de refugiados presentes por estados que com-

ação legalizada no Brasil. Para começar, só é possível

põem a 5ª Região da Justiça Federal: Alagoas, Ceará,

solicitar a proteção do governo brasileiro em território

Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe,

nacional. Assim, o interessado deve procurar uma au-

contudo, o órgão não possui esta informação.


34 Altino Mulungu acredita que o Estatuto do Estrangeiro enfatizou o estado brasileiro, em detrimento dos direitos humanos

Não é à toa, portanto, que a chegada do primeiro casal sírio de refugiados ao Recife, em outubro de 2015,

onde moraram até dezembro.

repercutiu tanto na imprensa.

Ela disse, ainda, que a família

Mouammar, 45, Nermim, 25, e

não mais aceitaria conceder

o filho deles, Ameer, à época

entrevistas ou divulgar seu

com cinco meses de vida, fo-

paradeiro. “Tudo está cada

ram personagens de diversas

vez mais arriscado e perigoso.

matérias jornalísticas.

Uma palavra pode ser motivo

Além da curiosidade la-

para mais uma morte absurda.

tente, outro fator que desper-

Eles têm muitos parentes lá.

tou o interesse do público foi

Não participar daquele horror

a maneira como foram recebidos. A família foi morar

e fugir significa ser inimigo”, complementou a per-

na residência da pernambucana Bruna Guedes, 26, no

nambucana.

município de Igarassu, Região Metropolitana do Recife, que adaptou um quarto para abrigá-los.

Em setembro do ano passado, a Prefeitura de Fortaleza/CE manifestou o interesse em abrigar 50 fa-

Para a casa de Bruna, a família síria levou o que

mílias de refugiados oriundos do conflito na Síria. A ini-

ela descreveu como “a maior aula de Sociologia que

ciativa pretende formar uma comissão com a Ordem

ela e os seus hóspedes já vivenciaram”. Ao contrá-

dos Advogados do Brasil, Forças Armadas, Federação

rio do que muitos podem pensar, ela relatou não ter

das Indústrias do Ceará e Câmara dos Dirigentes Lo-

sentido medo, mas angústia, por ver tão de perto a

jistas, no intuito de levar a proposta ao MJ, já que

situação deles. Bruna afirma também ter enfrentado

este é responsável pela concessão de asilo e emissão

resistência por parte da própria família, principalmen-

de vistos para os refugiados. Até o fechamento desta

te pelo fato de ter um filho de dois anos.

edição, a assessoria de imprensa da Prefeitura infor-

Passado o primeiro momento de euforia midiá-

mou que a proposta estava em análise no MJ.

tica, a imprensa ainda chegou a publicar outras ma-

O anúncio do prefeito veio um dia após a presi-

térias sobre o casal. Em novembro, foi noticiado que

dente Dilma Rousseff declarar, em mensagem libera-

Mouammar ministrava aulas de violão na Escola de

da pelo Palácio do Planalto, a disposição do governo

Arte Casa Mecane, e que Nermim estaria fazendo

brasileiro em receber refugiados. O jornal O POVO (CE)

contatos na área de Gastronomia. A reportagem da

anunciou na internet, então, a notícia: “Prefeitura quer

Argumento tentou entrevistar Mouammar, mas ele

abrigar sírios que fogem da guerra”. A matéria rece-

já não trabalha como professor de música. Segundo

beu cerca de 30 comentários, a maioria deles inda-

Bruna Guedes, eles se mudaram de sua residência,

gando se a medida tinha por objetivo trazer terroristas


35

para Fortaleza ou questionando se a preocupação da

rado ao do país de origem. Segundo ele, muitos aqui

prefeitura não deveria ser as famílias cearenses mo-

permanecem até que a situação melhore. “Na verda-

rando nas ruas, bem como a crescente violência local.

de, quando eles vêm para cá é porque não consegui-

“Sair da guerra, vir para Fortaleza e ser morto nas ruas

ram ir para a Europa. Ao se reestruturarem, saindo

pelos bandidos?”, indagaram alguns internautas.

do medo imediato, muitos seguem para outros países

Números divulgados pela Organização Mundial

da América do Sul. O Brasil acaba funcionando como

da Saúde – OMS parecem justificar esses questiona-

uma primeira alternativa para resolução de uma situa-

mentos. Segundo a OMS, no Brasil, de 2008 a 2011,

ção crítica momentânea”.

mais de 200 mil pessoas perderam a vida, vítimas de

Um estudo realizado pela agência especializada

assassinato. Em outro dado comparativo, os 12 maio-

em pesquisa de mercado Hello Research, que ouviu mais de duas mil pessoas de 16 a 70 anos, por todo o território, e publicado pela revista Exame, em novembro de 2015, aponta que 40% dos brasileiros acreditam que estes estrangeiros atrapalham o crescimento econômico e faz aumentar a quantidade de pobres. O Nordeste, por sua vez, é a região que mais rejeita os refugiados: 48% não querem a presença deste grupo no país. Para 38% dos ouvidos, eles são uma ameaça, por ocuparem vagas que poderiam ser

Para Thales Castro, os refugiados podem incrementar a economia e contribuir com a diversidade e a integração cultural

de brasileiros. O professor-doutor em Relações Internacionais e cônsul de Malta, Thales Castro, analisa esses dados com preocupação e estarrecimento. “Historicamente,

res conflitos no globo entre 2004 e 2007 mataram,

nós, nordestinos, sofremos com a rejeição do Centro

juntos, 170 mil pessoas.

Sul do Brasil e, agora, estamos reproduzindo estas

Na opinião do professor de Relações Internacio-

práticas absurdas de não integração, de não acolhi-

nais da Faculdade Damas do Recife, Luís Emmanuel

mento dos estrangeiros na nossa região. É um ab-

Cunha, os imigrantes não observam estes números,

surdo, um paradoxo. Lastimável; 48% é uma rejeição

mas o contexto geral, ainda menos crítico, se compa-

altíssima”.


36

Estudantes de Relações Internacionais, da Faculdade Damas (Recife/PE), que integram a Clínica de Direitos Humanos da instituição e apoiam refugiados em Pernambuco

Para Castro, este medo em relação à possível

pela capital pernambucana, com o objetivo de prestar

perda de uma fatia do mercado de trabalho para os

assistência jurídica. As ações de coletas de dados,

estrangeiros é típico de uma primeira onda de choque

entrevistas e contato com as instituições parceiras

de internacionalização. “O refugiado pode contribuir

são desenvolvidas com a participação dos alunos do

de maneira muito positiva para a economia porque

curso de Relações Internacionais. É por meio desta

renova parte da mão de obra, traz diversidade e inte-

interação que as partes criam um vínculo de confian-

gração cultural, o que é importante para a cidadania”.

ça. Muitas vezes, o que se oferece é o básico, como apresentar os direitos fundamentais dos refugiados e

Os “sem papel”

as autoridades competentes para ajudá-los.

Luís Emmanuel Cunha é responsável, junto

Os esforços da Clínica agora estão voltados

com a professora Artemis Holmes,

para a concretização de um mapeamento capaz de

pela coordenação da Clínica de

informar o número e a nacionalidade dos imigrantes.

Direitos Humanos da Facul-

“Nossos sistemas de educação e saúde não estão

dade Damas, cujo tra-

preparados para dar conta de uma pessoa em situ-

balho se concentra

ação irregular. Se esta pessoa for para uma escola

em

encontrar

pedir uma vaga, exigirão documento, se for para uma

os refugiados

UPA, pedirão o cartão do SUS. O direito fundamental

espalhados

acaba condicionado a um documento burocrático”, resume o professor Cunha. Muitos estrangeiros não têm como provar materialmente a condição a que estavam submetidos, tornando todo o processo de legalização muito mais lento e difícil. “O Conare considera importante qual-


37

quer informação ou documentação que você traga

culdades de refugiado no Brasil pelas vias legais. Não

para explicar as razões pelas quais você saiu do seu

obstante, seria ingenuidade ignorar a dura realidade

país”, esclarece o professor.

dos imigrantes no País, quando a obtenção de infor-

Além disso, diferente do que ocorre na Europa, os que aqui chegam não recebem uma casa ou auxílio financeiro até reorganizarem a vida. Sem documen-

tos, emprego ou domínio da língua portuguesa, tudo fica

mações e serviços públicos já é tão difícil mesmo para os brasileiros. Mais que inge-

(...) mais cedo ou mais tarde, seria chamado a lutar no conflito, seja pelo regime ditatorial em vigor na Síria, seja pelos rebeldes.

por conta do refugiado. O

nuidade, seria, no caso dos refugiados sírios devastados pela guerra civil, verdadeira desumanidade”, acrescentou o juiz federal. Contudo, em março de

governo brasileiro não dispõe de um programa espe-

2016, a Justiça Federal entendeu que o status de re-

cífico para estas pessoas, como casas de referências

fugiado a estrangeiro não dá o direito de familiares en-

ou atendimento jurídico especializado para estrangei-

trarem no país sem visto. O Tribunal Regional Federal

ros.

da 4ª Região (TRF4) negou liminar para que a esposa Foi justamente com esta visão que, em dezem-

e os cinco filhos de um migrante haitiano ingressas-

bro do ano passado, o juiz federal Paulo Marcos Ro-

sem no Brasil. Depois do terremoto que devastou o

drigues de Almeida, da Justiça Federal em Guarulhos/

Haiti em 2010, Jasnave Francique e sua mulher parti-

SP, absolveu o refugiado sírio Ali Mutlak, encontrado

ram para a República Dominicana. Depois, com a aju-

com passaporte brasileiro falso no embarque para a

da de atravessadores (coiotes), ele entrou no territó-

Inglaterra, onde vive uma irmã dele.

rio brasileiro pela fronteira do Acre com a Bolívia. Em

Para a absolvição, consta nos autos que o magistrado reconheceu os horrores da guerra civil na Síria e

Florianópolis, foi abrigado por uma igreja e, em 2013, conseguiu se legalizar.

o drama do refugiado, que teve sua família espalhada

Ano passado, depois da família dele ter tido a so-

por diversos países. Além disso, o aspecto jovial de

licitação de visto negada pelo consulado brasileiro na

Ali Mutlak foi considerado. “Dada a sua juventude,

República Dominicana, Jasnave recorreu à Defensoria

resta suficientemente demonstrada a alegação de

Pública da União (DPU). O Órgão então moveu ação

que, mais cedo ou mais tarde, seria chamado a lutar

contra a União, alegando que a negativa à do refugia-

no conflito, seja pelo regime ditatorial em vigor na Sí-

do feriu a dignidade da pessoa, a unidade familiar e

ria, seja pelos rebeldes”.

os Tratados Internacionais de Direitos Humanos, dos

Depois desse entendimento, a sentença que ab-

quais o Brasil é signatário. A DPU alegou ainda que a

solveu o refugiado ainda traz a problemática produzida

família ficaria submetida aos riscos de uma travessia

pelo entrave burocrático brasileiro. “Seria desejável,

ilegal.

evidentemente, que o réu buscasse superar as difi-

Em primeiro grau, o pedido foi negado e a DPU


38

se lançam ao mar. “No ano passado, houve casos de alguns que foram jogados em Suape e chegaram nadando. Como uma pessoa que mergulhou em alto mar terá papéis comprobatórios ou passaporte? Na França, eles são conhecidos como os “sans papiers”, ou seja, “os sem papel”. Margarida Cantarelli, quando presidente do TRF5, em 2004, também enfrentou uma situação delicada relacionada a imigrantes aspirantes à condição de refugiados. Cerca de 20 africanos viajaram clandestinamente no navio de banDe acordo com a desembargadora federal emérita e professora de Direito Internacional, Margarida Cantarelli, a Constituição Federal de 1988 recepcionou o Estatuto do Estrangeiro, mas nunca houve uma adaptação dentro dos princípios humanitários internacionais

deira chinesa Tu King. Ao chegarem perto da costa do Recife, a tripulação os atirou ao mar. Eles foram salvos por pescadores brasileiros e alojados em um hotel. No entanto, o estabelecimento

apelou ao TRF4. A desembargadora federal Marga

alegou não ter condição de permanecer com os hós-

Inge Barth Tessler, relatora do processo na 3ª Turma

pedes, o que fez com que o juiz decretasse a prisão

do tribunal, negou o recurso. Conforme a magistrada,

dos estrangeiros. “Na véspera de Natal, você mandar

“a concessão do visto é manifestação da soberania

prender 20 pessoas que tinham sido jogadas ao mar

nacional, sendo defeso ao Judiciário imiscuir-se na

repercutiu muito negativamente. Os movimentos so-

matéria, salvo para o exame de alguma irregularidade

ciais, então, se responsabilizaram por abrigá-los. Eu

formal”.

concedi o habeas corpus para que eles deixassem o

Thales Castro explica que são diversas as ma-

presídio Aníbal Bruno. Posteriormente, o pedido de

neiras como estes imigrantes conseguem chegar ao

asilo deles foi examinado e concedido a apenas dois

Nordeste brasileiro. Assim como o caso da congolesa

deles, vindos da Costa do Marfim, e registrados na

Jael, ele relata que muitos se escondem em porões

Cruz Vermelha”, relembrou a desembargadora emé-

de navio de transbordo, principalmente em países

rita.

do Oriente Médio ou da África, ficando ali por dias e,

Para Cantarelli, este fluxo migratório é um pedido

quando percebem que estão próximos de algum país,

implícito de asilo territorial. Segundo ela, os juristas


Conheça os direitos e deveres dos solicitantes de refúgio no Brasil

DIREITOS Não devolução Os solicitantes de refúgio não podem ser devolvidos ou expulsos para um país onde a sua vida ou integridade física estejam em risco. A proteção contra a devolução impõe, inclusive, o dever das autoridades brasileiras de garantirem que qualquer estrangeiro terá acesso ao mecanismo de refúgio, sobretudo nos controles migratórios nas fronteiras, portos e aeroportos. Não penalização pela entrada irregular Enquanto o pedido de refúgio estiver sendo analisado, os solicitantes de refúgio têm o direito de não serem investigados ou multados pelo ingresso irregular no território brasileiro. Documentação Os solicitantes de refúgio têm direito a documentos de identidade (Protocolo Provisório) e carteira de trabalho provisória, os quais servirão de prova do seu direito de permanecer em território brasileiro até decisão final do processo de solicitação de refúgio.

Trabalho Os solicitantes de refúgio têm direito a carteira de trabalho, podem trabalhar formalmente e são titulares dos mesmos direitos inerentes a qualquer outro trabalhador no Brasil. O Brasil proíbe o trabalho de menores de 14 anos, o trabalho em condições análogas à de escravo e a exploração sexual.

Não ser discriminado(a) Ninguém pode ter seus direitos restringidos em razão da cor da sua pele, pelo fato de ser mulher ou criança, por sua orientação sexual, por sua situação social, por suas condições econômicas ou por suas crenças religiosas. O racismo é considerado crime no Brasil.

Livre trânsito pelo território brasileiro

Não sofrer violência sexual ou de gênero No Brasil, homens e mulheres têm os mesmos direitos, e toda forma de violência contra a mulher, em razão do gênero ou da orientação sexual, é crime. A mulher vítima de violência tem o direito a receber assistência médica e formalizar sua denúncia através do telefone 180 ou em delegacias de polícia especializadas em atendimento à mulher.

Educação Os solicitantes de refúgio têm o direito de frequentar as escolas públicas de ensino fundamental e médio, bem como de participar de programas públicos de capacitação técnica e profissional. Saúde Os solicitantes de refúgio podem e devem ser atendidos em quaisquer hospitais e postos de saúde públicos no território nacional.

FONTE: Cartilha para Solicitantes de Refúgio no Brasil

Praticar livremente sua religião O Brasil é um país laico que assegura a plena liberdade de culto, religião e crença.

DEVERES « Respeitar todas as leis. « Respeitar as pessoas, entidades e organismos públicos e privados. « Renovar seu Protocolo provisório de solicitação de refúgio nas

Delegacias de Polícia Federal e mantê-lo sempre atualizado.

« Informar seu domicílio e mantê-lo atualizado nas Delegacias de

Polícia Federal e junto ao Conare.

tendem a encarar o fato por dois ângulos. Uma parte,

integridade, para mim e para minha família. Eu vejo

afirma ser um direito do Estado, o qual determinaria

nesse sentido humanitário. Essas pessoas vão tentar

a permanência ou não em seu território. Para outros,

requerer uma garantia internacional individual”, defi-

à luz da Declaração Universal dos Direitos Humanos,

ne. Por este motivo, Cantarelli faz uma conexão bas-

este asilo seria um direito da pessoa, do indivíduo.

tante apropriada ao tema: lembra que o salvo-con-

“Se você nasceu, tem direito à vida. Agora, é mais

duto tanto é o documento emitido com a finalidade

profundo lutar pelo direito de continuar vivendo. Por

de permitir ao seu portador transitar por um território

isso, eu vejo, pessoalmente, esse pedido como um

(normalmente em guerra) quanto o meio de se obter

habeas corpus. Vou pedir isso porque quero liberdade,

um habeas corpus.


Cultura e Direitos

Brasil de sabores, saberes e fazeres Registrar, tombar, proteger por lei e preservar um bem material ou imaterial é falar diretamente à identidade cultural de um povo Wolney Mororó e Isabelle Câmara O acarajé da Bahia, o bolo de

terial é composto pelas práticas, representações, ex-

rolo de Pernambuco, o queijo de

pressões, conhecimentos e técnicas, bem como os

Minas, o jongo no Rio de Janeiro.

instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que

O samba de roda no Recôncavo

lhes são associados, que as comunidades, os grupos e

Baiano, o Círio de Nazaré em

indivíduos reconhecem como parte integrante de seu

Belém do Pará, o modo de fazer

acervo cultural; aquilo que é transmitido de geração a

renda em Sergipe, a capoeira no

geração, sendo constantemente recriado pelas comu-

Brasil. Patrimônios imateriais do

nidades e grupos em função de seu ambiente, de sua

povo brasileiro, esses sabores,

interação com a natureza e de sua história. Essa recria-

saberes e fazeres certificam a

ção e manutenção geram um sentimento de identida-

riqueza cultural do País.

de e continuidade, contribuindo para a promoção do

O patrimônio cultural ima-

respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.


41

A instauração do processo de registro de uma

luta e jogo. Em todas as práticas atuais de capoeira,

tradição cultural pode ser provocada pelo ministro da

permanecem coexistindo a orquestração musical, a

Cultura, por instituições vinculadas ao Ministério da

dança, os golpes, o jogo, embora o enfoque dado se

Cultura, por secretarias de estado, de municípios e do

diferencie de acordo com a singularidade de cada ver-

Distrito Federal, bem como por sociedades ou asso-

tente, mestre ou grupo”.

ciações civis. A instrução do processo é supervisio-

Já o samba de roda, o frevo e a cidade de Ouro

nada pelo Iphan – Instituto do Patrimônio Histórico e

Preto, antiga Vila Rica, também foram reconhecidos

Artístico Nacional e deve conter descrição detalhada

pela Unesco, devido às suas relevâncias históricas

do bem a ser registrado, acompanhada da documen-

em âmbito internacional. Hoje, são reconhecidos

tação que a comprove, com informações sobre os

como Patrimônio Cultural da Humanidade, sendo que

elementos que lhe sejam culturalmente relevantes.

o samba de roda foi proclamado como Obra Prima do

tombadas como Patrimônio Histórico Cultural, seja pela abrangência local, estadual, regional ou nacional. A roda de capoeira e o ofício de mestres capoeiristas, que existe em todo Brasil, o samba de roda do Recôncavo

Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade pela Unes-

FOTO: HEITOR REALI/IPHAN

Atualmente, são 38 as atividades registradas e

baiano, o frevo, em Pernambuco, e a pintura corporal arte kusiwa e arte gráfica dos índios Wajãpi, no Amapá, são alguns exemplos de patrimônios históricos nacionais, tombados pelo Iphan. Apenas a roda de capoeira e o ofício de mestres capoeiristas são da categoria de abrangência nacional. Em razão disso, a Diretoria de Patrimônio Imaterial do Iphan coordenou um trabalho que resultou em um dossiê, com a finalidade

Presentes em todo território nacional, a roda de capoeira e o ofício de mestre capoeirista foram registrados como forma de expressão e saberes de todo povo brasileiro

de formar um inventário para registro e salvaguarda da capoeira, em todo território nacional, pois a essa

co. A denominação designa uma mistura de música,

manifestação tradicional foi registrada como forma

dança, poesia e festa.

de expressão e saberes de todo povo brasileiro. O

O samba se faz presente em todo Estado da

dossiê revela, entre outras coisas, que “A capoeira é

Bahia, principalmente na região do Recôncavo Baia-

uma manifestação cultural que se caracteriza por sua

no, onde se concentrou a maior parte dos escravos

multidimensionalidade – é, ao mesmo tempo, dança,

trazidos da África, sobretudo para a mão de obra na


A Festa do Pau da Bandeira, em Santo Antônio de Barbalha (CE) é uma demonstração de força e fé

42

produção de cana-de-açúcar. A região é reconhecida

entendimento, a globalização que se verificava em

como o berço do samba brasileiro, onde, por volta de

fins do século XX tenderia a uniformizar os grupos cul-

1860, teriam surgido as primeiras manifestações do

turais, tendo por resultado o fim da produção cultural,

samba de roda. O ritmo se espalhou naquele período

enquanto gerador de novas técnicas e sua geração

por várias regiões do Brasil, em especial nos Estados

original. Disse, ainda, que esse fenômeno refletiria,

do Rio de Janeiro e de Pernambuco, onde surgiram,

também, na perda da identidade, inicialmente das

no século seguinte, em vertentes do original, compo-

coletividades, dos grupos sociais, podendo atingir o

sitores de samba da estirpe de Noel Rosa, Cartola,

plano individual.

Paulinho da viola, Nelson Sargento e tantos outros.

Nordeste de muitas cores

limas de cheiro, costume português trazido para o

A exemplo da União, os estados da federação e

Brasil Colonial, tornando-se brincadeira do entrudo. É

os municípios também podem decretar o tombamen-

do bairro portuário do Recife, do final do século XVIII,

to de um bem imaterial, com a finalidade de salva-

o registro desses primeiros entrudos, em nossa socie-

guardar sua preservação, seja por iniciativa do Poder

dade. Integrantes das Companhias Carregadoras de

Executivo ou por votação, nas Casas Legislativas.

Mercadorias, negros dirigidos por capatazes, se reu-

A pesquisadora e historiadora Carmem Lélis,

niam para os festejos dos Ternos de Reis. Em cortejo,

da Secretaria de Cultura da Prefeitura da Cidade do

conduziam um caixão de madeira e uma bandeira, ao

Recife, explica que nós temos, enquanto sociedade,

som de marchas e músicas improvisadas, além das

uma relação com o Patrimônio Histórico Cultural,

brincadeiras e dos fogos de artifícios. O geógrafo Milton Santos é autor da tese de que o conhecimento e o saber se renovam do choque de culturas, sendo a produção de novos conhecimentos e técnicas produto direto da interposição de culturas diferenciadas – com o somatório daquilo que anteriormente existia. No seu

Para Carmem Lélis, pesquisadora, Patrimônio Cultural é tudo aquilo que é construído, repassado e deixado para um povo, como as formas de expressão, de vida e sociabilidade

FOTO: MAURICIO ALBANO

O frevo tem origem, enquanto festa, no jogo de


cujo sentido etimológico significa herança, legado.

Pernambuco é o quarto estado da federação em

A pesquisadora prossegue afirmando que Patrimônio

número de registros do Patrimônio Cultural. Além do

Histórico Cultural é tudo aquilo que é construído, re-

frevo, estão registrados também o cavalo marinho, o

passado e que é deixado para um povo, como suas

maracatu de baque solto e o maracatu de baque virado.

formas de expressão, de vida, de sociabilidade, de re-

Considerada a maior feira ao ar livre do mundo, a feira

conhecimento enquanto povo. “Já o Patrimônio Ima-

de Caruaru encontra-se registrada no Livro dos Lugares.

terial, abrangido pelo Patrimônio Histórico Cultural, diz

Segundo dados do Iphan, Alagoas, o segundo

respeito diretamente às culturas, não apenas a parte

menor estado da Federação, é detentor de um rico

artística, mas o conjunto de valores sociais que são

patrimônio imaterial derivado das suas miscigena-

formados e desenvolvidos dentro dos pequenos e dos

ções étnicas: colonizadores europeus, indígenas e

grandes grupos, ou seja, aquilo que você pode tratar

negros trazidos da África. Seu folclore reúne mais de

no nível do simbólico, o que faz o Brasil ser o que é”,

30 manifestações, tais como pastoril, guerreiro, taiei-

finaliza Carmem.

ra, baianas, reisados, marujada, presépio, cavalhada,


bandos dos carnavalescos, cambindas, negras da cos-

Santo Antônio de Barbalha (CE), por ocasião dos fes-

ta, samba do matuto, caboclinhos, torés de índio e de

tejos do santo padroeiro, que duram 13 dias. A tradi-

xangô, as danças de São Gonçalo, o coco alagoano e

ção da Festa do Pau da Bandeira teria começado em

rodas de adulto. As manifestações mais importantes

1928, mas teve origem no incentivo do padre Ibiapina.

em termos de canto e dança são a quadrilha, o coco

Os fiéis escolhem uma grande árvore, cortam-na, e a

de roda, a banda de pífanos, os violeiros e repentistas.

carregam por 7 km, até a frente da Igreja Matriz de

O Estado também abriga diversos museus, entidades

Barbalha, onde é hasteado com a bandeira de Santo

culturais e igrejas.

Antônio, numa demonstração de força e fé.

No Rio Grande do Norte tem a festa da padroeira

As mãos das mulheres sergipanas que bordam

de Sant’Ana de Caicó, que deixou de ser apenas uma

e tecem a renda irlandesa também fazem parte do

celebração religiosa para se tornar um grande evento

patrimônio cultural naquele estado. Mais de uma

no calendário turístico local. Durante os festejos, que

centena de mulheres se dedica a esse ofício, um dos

duram dez dias, acontecem missas, novenas, bên-

mais belos e sofisticados produtos do artesanato bra-

çãos, peregrinação, marcha, confissões individuais,

sileiro. São blusas, coletes, bolsas, passadeiras, pa-

batizado, carreata, recitação e procissão, dentro da

nos de bandeja, porta copos, sapatinhos para recém-

programação religiosa.

-nascidos, colares, golas, vestidos, cintos, brincos

E no Ceará também tem disso, sim: a Festa do

etc. Esses saber e fazer ocorrem principalmente no

Pau da Bandeira ocorre todos os anos, na cidade de

município de Divina Pastora, localizado na antiga zona


As mãos das mulheres sergipanas tecem a renda irlandesa, um dos mais belos e sofisticados artesanatos do País

açucareira de Sergipe, a 39 km de Aracaju (SE). Outro registro significativo da região Nordeste é o teatro de bonecos popular, que cataloga o teatro de mamulengos, de Pernambuco; o babau, da Paraíba; o Casimiro Coco do Maranhão e do Ceará; e os teatros de bonecos João Redondo e calunga, do Rio Grande do Norte. O teatro de bonecos, de fantoches ou marionetes, como é a expressão teatral que caracteriza cos, manobrados por pessoas.

Sabores do Brasil E a culinária brasileira também tem seus bens. Minas Gerais, por exemplo, tem o queijo de minas, um sabor já incorporado pelo paladar nacional. Tam-

FOTO: HEITOR REALI/IPHAN

as encenações realizadas com esses elementos lúdi-

bém patrimônio imaterial tombado pelo Iphan, o fazer

zindo um dos doces mais saborosos da terra dos al-

artesanal e o comer queijo são parte do modo de ser

tos coqueiros, que, indubitavelmente, foi reconhecido

mineiro. A produção de queijos de leite cru é uma ati-

como patrimônio imaterial de Pernambuco, pela Lei

vidade tradicional, enraizada no cotidiano de fazendas

13.436/2008.

FOTO: ACERVO IPHAN

e sítios de Minas Gerais, e remete ao processo de

Outro sabor forte, mas apreciado nacionalmente,

ocupação desse território, durante os séculos XVII e

é o acarajé. E o ofício das baianas de acarajé, tomba-

XVIII. O fazer queijo contém, em si mesmo, um vasto

do pelo Iphan em 2004, é um bem cultural de nature-

repertório de conhecimentos tradicionais, que inclui

za imaterial, inscrito no Livro dos Saberes em 2005,

as formas de comercialização e consumo desses

consiste em uma prática tradicional de produção

queijos artesanais.

e venda, em tabuleiro, das chamadas co-

Agora, quer arrumar uma briga? Diga a um per-

midas de baiana, feitas com azeite

nambucano que bolo de rolo é rocambole. Um dos

de dendê e ligadas ao culto dos

símbolos de Pernambuco, a massa do bolo de rolo é

orixás, amplamente dissemi-

feita com farinha de trigo, ovos, manteiga e açúcar.

nadas na cidade

Já o recheio tradicional, com goiabada. Massa e re-

de

cheio são enrolados em camadas finíssimas, produ-

Bahia.

Também presente em todo território brasileiro, o teatro de bonecos muda de nome nos diferentes estados do País, ainda que a tradição seja praticamente a mesma: encenar com elementos manipulados por pessoas

O tradicional bolo de rolo pernambucano

Salvador,


A Dimensão Jurídica da Lei de Anistia

Veredicto

Reis Friede Reis Friede é desembargador federal e vice-presidente do TRF2, mestre em Direito do Estado pela Universidade Gama Filho (UGF) e mestre e doutor em Direito Público (UFRJ), professor adjunto da Escola de Direito da UFRJ e professor de Direito Constitucional da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) O passado não se apaga e não se esquece. Tal afirmação objetiva esclarecer o trajeto a ser percorrido na digressão que se fará sobre tão delicado tema, o qual, durante mais de três décadas, permaneceu no limbo dos debates, ostentando, no momento atual, quase que uma visão unilateral, prejudicando a verdadeira compreensão

histórico-

-jurídica do fenômeno e inviabilizando, em última análise, a definitiva superação da al-

Não obstante o princípio basilar da segurança

tercação que, volta e meia, retorna

jurídica como elemento fundamental da axiologia

à mídia nacional, ressuscitando as

jurídica, começaram a surgir, no cenário político bra-

mais profundas paixões.

sileiro da atualidade, algumas vozes dissonantes em


47

relação à validade, até então incontestável, da Lei

Janeiro, relativo ao Caso Riocentro (1981). A partir

nº 6.683, de 28 de agosto de 1979 - Lei de Anistia.

de denúncia formulada pelo Ministério Público Fe-

A discussão jurídica a respeito da constitucio-

deral (MPF), o juízo federal, analisando questão ine-

nalidade da Lei de Anistia, notadamente da previsão

rente à prescrição, asseverou a sua não ocorrência,

contida no seu art. 1º, § 1º, não é nova. O assunto

fundando-se em duas premissas. Na primeira, aco-

volta e meia é retomado, mesmo diante da existên-

lheu a tese esboçada pelo MPF, e já rejeitada pelo

cia de uma decisão proferida pelo Supremo Tribunal

STF quando da ADPF, afirmando que: “o atentado

Federal (STF). Em 28 e 29/04/2010, o Plenário do

[...] descrito fazia parte de uma série de outros qua-

STF debateu sobre o pedido formulado pelo Conse-

renta atentados a bomba semelhantes ocorridos no

lho Federal da OAB na ADPF nº 153/DF, a qual, em

período de um ano e meio, direcionados à população

síntese, objetivava que a Corte Suprema declarasse

civil, com o objetivo de retardar a reabertura políti-

o não recebimento, pela Constituição de 1988, da

ca que naquele momento já se desenhava” (Justiça

regra contida no art. 1º, § 1º, da Lei nº 6.683/79.

Federal do Rio de Janeiro, 2014). Uma vez fincada a

Pretendia a OAB que a aludida norma fosse interpre-

primeira premissa, afirmou que a imprescritibilidade

tada de modo a não abarcar os crimes comuns prati-

dos crimes contra a humanidade seria um princípio

cados pelos agentes da repressão contra opositores

geral de Direito Internacional aceito pelos Estados, e

políticos, concluindo, assim, não terem eles sido

devidamente incorporado aos costumes internacio-

anistiados. O STF, na ocasião, tendo como relator

nais. Em síntese, a decisão que recebeu a denúncia

o ministro Eros Grau, entendeu pela improcedência

enquadrou os fatos ocorridos em 1981 como crimes

(sete votos a dois) da ADPF.

contra a humanidade, tendo em vista que as condu-

Nada obstante o que restou firmado na ADPF

tas perpetradas fariam parte, em tese, de um ataque

nº 153, o debate sobre a constitucionalidade da Lei

sistemático de agentes do Estado brasileiro contra

de Anistia é incrivelmente retomado - ao arrepio do

a população civil. E concluiu, por fim, que os fatos

próprio efeito vinculante expressamente previsto na

narrados, enquanto crimes contra a humanidade,

hipótese e, igualmente, em inconteste afronta aos

seriam imprescritíveis.

ditames do Estado de Direito, que preconiza a in-

Conceitualmente, conforme leciona René Ariel

discutibilidade das decisões terminativas proferidas

Dotti, anistia, palavra que deriva do grego amnistia,

pela Suprema Corte -, sendo certo afirmar que todas

é o ato pelo qual o Estado renuncia ao poder-dever

as teses apresentadas no momento atual já foram

de punir o autor de um delito, o que se dá a partir de

amplamente discutidas.

razões de necessidade ou conveniência política, sen-

Como exemplo dessa iniciativa de se retomar

do sua concessão atribuição exclusiva do Congres-

o debate em torno da Lei de Anistia, cumpre men-

so Nacional (art. 48, VIII, da CF). Trata-se de causa

cionar o Processo nº 0017766-09.2014.4.02.5101,

extintiva da punibilidade (art. 107, II, 1ª figura, do

que tramitava na 6ª Vara Federal Criminal do Rio de

CP), sendo destinada a “fazer desaparecer o caráter


48

reprovável do fato e a perdoar os seus autores”.

mes contra a administração da justiça do Tribunal

Paulo César Busato recorda que a anistia dirige-

Penal Internacional, institui normas processuais es-

-se a tipos determinados, operando, assim, um du-

pecíficas, dispõe sobre a cooperação com o Tribunal

plo efeito, tanto para os casos passados que foram

Penal Internacional, e dá outras providências.

apurados, quanto para os que não o foram, objeti-

O artigo I da Convenção sobre a Imprescritibi-

vando alcançar a “pacificação e a cessação de hos-

lidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa-

tilidades entre grupos de pessoas, como aconteceu

-Humanidade, de 1968, considera imprescritíveis,

com a superação do golpe militar de 1964 no Brasil”.

independentemente da data em que tenham sido

Nesse diapasão analítico, questão interessante,

cometidos, os crimes de guerra, como tal definidos

e que também está sendo ventilada na quadra atual,

no Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nu-

refere-se à possibilidade de haver revogação da Lei

remberg, de 1945, e confirmados pelas Resoluções

de Anistia e, por conseguinte, tornar viável a perse-

nº 3, de 1946, e nº 95, de 1946, da Assembleia

cutio criminis. No caso, ainda que haja revogação da

Geral das Nações Unidas, nomeadamente as infra-

Lei nº 6.683/79, a regra revogadora ostentará conte-

ções graves enumeradas na Convenção de Genebra,

údo gravoso, não podendo retroagir (art. 5º, XL, da

de 1949, para a proteção às vítimas da guerra. Da

CF). No mesmo sentido, a posição de André Este-

mesma forma, são considerados imprescritíveis os

fam. Da mesma forma, segundo a lição de Fernando

crimes contra a humanidade, sejam cometidos em

Capez, a anistia, uma vez concedida, não pode ser

tempo de guerra ou de paz, como tal definidos no

revogada, posto que a lei revogadora seria prejudi-

Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nurem-

cial aos anistiados. Igualmente, a Advocacia-Geral

berg, bem como nas referidas resoluções, assim

da União, quando de sua manifestação no bojo da

como a expulsão por um ataque armado ou ocupa-

ADPF nº 153, aduziu que o desfazimento da situação

ção e os atos desumanos resultantes da política de

consumada por força do exaurimento dos efeitos da

apartheid; e, ainda, o crime de genocídio, como tal

Lei de Anistia “colidiria com o princípio da irretroati-

definido na Convenção de 1948 para a prevenção e

vidade da lei penal”.

repressão do delito de genocídio, mesmo que estes

Tendo em vista que o Estatuto de Roma (art.

atos não constituam violação do Direito Interno do

7º) faz referência à expressão crime contra a huma-

país onde foram cometidos. Cumpre registrar, desde

nidade, o Poder Executivo Federal, através da Men-

logo, que pesadas críticas foram lançadas em rela-

sagem nº 700/2008, e objetivando dar cumprimento

ção à Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Cri-

ao compromisso assumido pelo Estado brasileiro

mes de Guerra e dos Crimes de Lesa-Humanidade,

junto à comunidade internacional, encaminhou ao

razão pela qual não foi até hoje ratificada por inúme-

Parlamento Federal projeto de lei cuja ementa dis-

ros Estados, dentre os quais o Brasil, notadamente

põe sobre o crime de genocídio, define os crimes

por prever a incidência retroativa sobre fatos delitu-

contra a humanidade, os crimes de guerra e os cri-

osos ocorridos antes de sua entrada em vigor (artigo


49

I), em nítida afronta ao princípio da irretroatividade

o tema em discussão, duas questões surgem e de-

da lei penal mais severa.

vem ser debatidas, posto que fundamentais para o

Ainda no âmbito das Nações Unidas, já nos idos

deslinde da vexata quaestio: a) de início, é preciso

de 1974, elaborou-se a Convenção Europeia sobre

considerar se o cenário internacional atual permite

a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos

mesmo inferir que os Estados concebem a imprescri-

Crimes contra a Humanidade, mas sem a referida

tibilidade dos crimes contra a humanidade enquanto

previsão de incidência retroativa, instrumento este

verdadeiro costume jurídico; b) ultrapassada tal aná-

que foi ratificado por alguns poucos países, dado que torna evidente a completa ausência de consenso sobre tão delicada questão (imprescritibilidade). Vinte anos depois, surgiu

lise, há que se discutir

(...) segundo a lição de Fernando Capez, a anistia, uma vez concedida, não pode ser revogada, posto que a lei revogadora seria prejudicial aos anistiados.

a Convenção Interamericana sobre os Desaparecimentos

se o fato de o Direito Constitucional brasileiro restringir os casos de imprescritibilidade

ao

delito de racismo (art. 5º, XLII, da CF) e à ação de grupos armados, civis ou militares, contra

Forçados, de 1994, aprovada, no Brasil, pelo Decreto

a ordem constitucional e o Estado Democrático (art.

Legislativo nº 127/2011, mas ainda não promulgada

5º, XLIV, da CF) funciona como óbice à adoção, por

por decreto do Executivo, cujo artigo VII considera

parte do Brasil, de um suposto costume jurídico in-

o desaparecimento forçado de pessoas como crime

ternacional.

contra a humanidade e, por isso, imprescritível, estabelecendo, no entanto, uma ressalva:

Quanto à primeira questão, cabe mencionar que a doutrina internacionalista diverge a respeito

A ação penal decorrente do desaparecimento forçado de pessoas e a pena que for imposta judicialmente ao responsável por ela não estarão sujeitas a prescrição. No entanto, quando existir uma norma de caráter fundamental que impeça a aplicação do estipulado no parágrafo anterior, o prazo da prescrição deverá ser igual ao do delito mais grave na legislação interna do respectivo Estado Parte. (BRASIL, 2011)

da efetiva existência, na cena internacional, de tal

Por fim, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal

tra a Humanidade, bem como à Convenção Europeia

Internacional, de 1998, igualmente versou sobre a

sobre os Crimes contra a Humanidade e os Crimes

questão da imprescritibilidade de determinados deli-

de Guerra, militaria em prol da tese que pugna pela

tos internacionais, conforme prevê o artigo 29.

inconsistência de uma norma consuetudinária.

costume. Ratner E Abrams aludem que o fato de ter havido pouca adesão à Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes con-

Tendo em vista que o Brasil não ratificou a Con-

Assim, ao se basear num suposto costume ju-

venção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de

rídico internacional, a sentença prolatada pela Corte

Guerra e dos Crimes de Lesa-Humanidade, e trans-

fez letra morta do princípio da legalidade, considera-

portando a ideia inerente à norma costumeira para

do por todos os penalistas modernos como o postu-


50

lado mais sagrado do Direito Penal, verdadeiro dogma cuja observância irrestrita é fundamental para o legítimo aviamento do jus puniendi, decisão que se apresenta incoerente, já que tal proceder representa um retrocesso e nega um dos mais sólidos avanços democráticos obtidos ao longo dos séculos em ma-

c)

téria de Direito Penal. Por força do aludido princípio, previsto não somente no Direito brasileiro (art. 5º, XXXIX, da CF; art. 1º do CP), mas com igual previsão no artigo 9 do Pacto de San José da Costa Rica (promulgado pelo Decreto nº 678/92), é impossível

d)

valer-se de um conceito consagrado pelo Direito Internacional, e não acolhido pelo Direito Interno através da sistemática vigente para a incorporação de

e)

tratados, a fim de se descortinar o jus puniendi. Com efeito, por conta do dogma da legalidade, não se admite o emprego do Direito Consuetudinário como forma de ampliar a esfera punitiva estatal, justamente o que a sentença da Corte Interamericana, de certo modo, pretende fazer. Analisada sob o prisma jurídico, não obstante todas as considerações identificadas e apontadas nas principais teses jurídicas abordadas, a Lei de

f)

dentre os quais se pode citar o fenômeno da prescrição, cuja essência deve ser interpretada de modo a se evitar a ampliação das hipóteses que conduzem a casos de imprescritibilidade, justamente por ser aquela uma causa que extingue, elimina e afasta a sanção penal do Estado. O tema prescrição, justamente por interferir diretamente no jus puniendi do Estado, não pode ser contornado sob o argumento de que o costume jurídico internacional considera a tortura e o terrorismo, quando cometidos por agentes do Estado como forma de perseguição política, como crimes contra a humanidade. Invocar um costume jurídico internacional, cuja existência é absolutamente controvertida, revela um descompromisso com o princípio da legalidade penal. Nem mesmo a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes de Lesa-Humanidade pode ser invocada como argumento para conferir tal imprescritibilidade aos crimes então praticados. Mostra-se extremamente perigoso alargar, sem lastro jurídico e por meio de simples falácias, o campo de incidência do Direito Penal. Nesse sentido, cumpre lembrar o notável CLAUS ROXIN (2006, p. 138), para quem um Estado de Direito deve proteger o indivíduo não apenas através do Direito Penal, mas também do próprio Direito Penal.

Anistia permanece válida, inclusive por expresso re-

Registre-se, ainda, que tal contestação quan-

conhecimento pela Suprema Corte brasileira, razão

to à Lei de Anistia reflete, em última análise, não

pela qual o jus puniendi, nas hipóteses acima, es-

uma discussão meritória e jurídica acerca de seus

barra em óbices constitucionais incontornáveis, que

comandos normativos, mas, sim, uma grave e indis-

podem ser resumidos através dos seguintes enun-

cutível negação à própria democracia, considerando

ciados:

o flagrante desrespeito à autoridade de uma deci-

a) Embora presente no Direito Internacional, inexiste, no Direito Interno, qualquer definição de crime contra a humanidade. b) A impossibilidade de punição dos autores de crimes perpetrados nas ocasiões referidas decorre de marcos limitadores do poder punitivo estatal,

são proferida pelo STF, órgão de cúpula do Judiciário brasileiro, moderno e poderoso instrumento de estabilização política, o que, a toda evidência, não se coaduna com o espírito democrático enraizado na Constituição de 1988.


Em dia com a Lei

Cais José Estelita

Promotor Thiago Soares

A Quarta Turma do TRF5, em dezembro, suspendeu, por unanimidade, a sentença que anulava o leilão do terreno do Cais José Estelita. Em seu voto, o relator, desembargador federal Edilson Nobre, destacou a existência de estudo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que conclui que a área não operacional do Pátio Ferroviário das Cinco Pontas não detém valor histórico. A área, onde está planejada a construção do projeto imobiliário “Novo Recife”, é alvo de disputa entre empreiteiras e grupos que defendem o direito à cidade.

Um dos casos de maior repercussão em Pernambuco voltou à pauta do TRF da 5ª Região em dezembro de 2015. A Quarta Turma do Tribunal negou provimento aos recursos de J.M.P.R.B., J.M.D.C., A.F.S. e J.M.V.S., acusados de serem autores do crime de morte do promotor público Thiago Faria Soares. O crime aconteceu em outubro de 2013, no Km 19 da Rodovia PE-300, no município de Águas Belas (PE). Os acusados ajuizaram Recurso em Sentido Estrito para impedir que fossem a julgamento pelo Tribunal do Júri. O caso ganhou maior repercussão após ter sido federalizado, em razão de requerimento do Ministério Público de Pernambuco (MPPE) ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Doença rara No mês de fevereiro, o TRF5 negou provimento às apelações da União e do Estado de Pernambuco e manteve a sentença proferida pelo juízo da 6ª Vara Federal de Pernambuco, que havia determinado às apelantes e ao município de Araçoiaba o fornecimento do medicamento Elaprase ao menor D.F.S. A ação judicial teve a finalidade de obtenção de tratamento médico para menor, que é portador de Síndrome de Hunter. O único tratamento para a doença rara tem o custo aproximado de R$ 3,6 mil para cada frasco de 6 mg da enzima.

Prefeito condenado por corrupção O TRF5 negou, em dezembro do ano passado, pedido de habeas corpus a B.A.M., ex-prefeito de Cupira (PE), condenado a três anos e três meses de reclusão, por desvio de verbas públicas e fraude à licitação. A Controladoria Geral da União (CGU) constatou, em fiscalização realizada em 2006, que havia irregularidades na execução de verbas do Programa de Educação de Jovens e Adultos (PEJA) repassadas ao município pelo Ministério da Educação. Segundo o relatório da fiscalização, teria ocorrido fraude em procedimento licitatório, apropriação de verbas do programa e prestação de falsas informações. O ex-gestor ajuizou habeas corpus junto ao TRF da 5ª Região, sob alegação de nulidade da sentença, em razão da suposta ausência de fundamentação na dosimetria da pena. B.A.M. teve a pena substituída por duas penas restritivas de direitos.


Sentir

O FIM

Marcos Mairton

Quando a terra começa a tremer, E as paredes começam a ruir, Quando não há lugar para fugir, E não há mais aonde se esconder. Quando espaço não há para correr, E se vê que é inútil reagir, Sem espada capaz de agredir, Nem escudo que possa defender. É preciso, talvez, ter humildade, Ou, quem sabe, até serenidade, Para ver que as coisas são assim: Muitas vezes, buscando uma vitória, Construímos nós mesmos uma história Cujo epílogo é o nosso próprio fim.


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