Solidão em alto mar

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Especial

notícias do dia

Florianópolis, sábado e domingo, 9 e 10 de março DE 2013

Serviço. Marinheiros vivem isolamento para manter aceso o farol do Arvoredo repORTAGEM/EDIÇÃO: eDSON rOSA redacao@noticiasdodia.com.br @ND_online

A missão é essencial para quem navega. Além disso, a beleza da ilha e os momentos de reflexão ao som do mar nos ajudam a ficar longe da família. Sub-tenente Domingos, faroleiro

A cadela Tetê é a primeira a descer a trilha entre a Casa da Guarnição e o cais de ferro sobre a costa rochosa, onde o desembarque bem sucedido depende das condições do vento e da habilidade da tripulação. Brincalhona, a viralata de dois anos é a mascote dos três marinheiros responsáveis pela manutenção do farol e das demais instalações militares na ilha, tombo da Marinha na área de amortecimento da Reserva Biológica do Arvoredo. A 40 quilômetros ao Norte de Florianópolis, a ilha é lugar de raras visitas. Servir na guarnição do Arvoredo exige força física e psicológica para enfrentar 85 dias de isolamento no meio do mar, onde a rotina não se resume a acender o farol ao anoitecer e desligá-lo ao amanhecer. Além do funcionamento adequado dos equipamentos, os militares mantêm limpas as trilhas da área ocupada, inclusive as de acesso aos pontos de captação de água nas cachoeiras locais. Também fazem a conservação periódica das instalações militares, mesmo as desocupadas, para evitar a deterioração. “Mas já foi pior”, resume o sub-tenente Domingos Ribeiro da Silva Neto, 42, de Terezinha (PI), que serve pela quarta vez serve na ilha.

“Hoje, além do sistema de comunicação via rádio, temos telefone celular e internet para contatos diários com nossos familiares no Continente”, explica. Ele é o mais antigo e graduado da atual guarnição, formada também pelo 3º sargento Marcelo Pereira, 45, pernambucano de Jaboatão dos Guararapes; e pelo cabo Daniel Lima, 29, de Belém (PA). A rotina diária de serviço inclui revezamento na cozinha. “Assim, conseguimos um cardápio bem variado”, completa Domingos, que em fevereiro comemorou aniversário ao lado somente dos colegas de farda e da cachorra Tetê. “Fiz um bolinho para não passar em branco”, diz. A aventura de servir em posto inóspito no meio do mar e distante da vida urbana tem como vantagem a gratificação de 20% no soldo dos militares, que durante os 85 dias de solidão não têm despesas pessoais. “No meu caso, estou juntando economias para construir a casa própria, provavelmente em Palhoça, explica o sargento Pereira, pai de três filhas. Mais jovem dos marinheiros da atual guarnição, o cabo Daniel está encantado com o nascer do sol no meio do Atlântico. “A paisagem é exuberante. Para cada canto que se olha, é impossível não se emocionar com a força da natureza”, diz. Mesmo assim, ele usa o Facebook para registrar a contagem regressiva de sua primeira passagem por Arvoredo, enviando fotos diárias de pontos distintos da ilha para a mulher e demais parentes que o esperam no Continente. Faltam duas semanas para o marinheiro completar seus 85 dias em alto-mar. Nas horas de folga, Daniel e os colegas brincam de futebol em um dos dois helipontos. Também mergulham e pescam na área fora da

reserva, sempre seguidos pela cadela. “É nossa segurança contra as jararacas”, explica o cabo. À noite quando está sozinho, Daniel sentase em uma das pedras, olha para as luzes no Continente ou do Norte da Ilha e imagina o que acontece lá fora. Foi numa destas ocasiões que reviveu a clássica cena do filme “O Náufrago”, onde o ator Tom Hanks localiza uma bola de futebol boiando no mar azul e cria o personagem “Sr. Wilson”, com quem passa a conversar para amenizar a solidão. “É uma forma humorada de enfrentar a saudade da família”, sorri.

fotos luiz evangelista/nd

Solidão em alto-mar

Energia do sol guia navegadores Desde 2007, vem do sol a eletricidade que abastece a estrutura da Marinha e mantém acesa a chama rotativa do farol. O feixe de luz branca é acionado por sistema composto de 175 placas de células fotovoltaicas, que captam a energia depois armazenada em conjunto de 100 baterias. São 13,2 quilowatts de potência, com autonomia de cinco dias e produção suficiente para abastecer cinco casas urbanas, ou 20 pessoas. Os painéis espelhados estão instalados ao lado da trilha de acesso ao farol, proporcionando um aspecto futurista à ilha quase deserta. Segundo o capitão de corveta Etevaldo Rodrigues, 50, chefe do departamento de apoio da Capitania dos Portos de Santa Catarina, a introdução da energia solar reduziu em 90% o volume mensal de óleo diesel transportado até a Ilha pela Marinha. “O consumo de óleo caiu de 1.500 mil para 150 litros por mês, o que reduz as probabilidades de acidentes com incêndios de grandes proporções ou desastres ambientais”, explica. Além da economia e das vantagens ecológicas, a diminuição do volume

de diesel utilizado na ilha facilitou as operações de descarga dos víveres transportados mensalmente do Continente pela Marinha. O sistema fornece luz à Casa da Guarnição, ocupada pelos três marinheiros substituídos a cada 85 dias nos serviços de manutenção do farol e demais instalações militares. Lá, eles dispõem de rádio comunicador em VHF e HF, televisão a cabo, aparelho de vídeo e geladeira, além de internet em três gigas. Também abastece o casarão de apoio. Trata-se de alojamento coletivo utilizado por alunos e professores da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e demais instituições conveniadas com o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Biodiversidade), para realização de pesquisas no mar ou em terra.

Tecnologia trazida da Inglaterra Um pêndulo eletrônico, antes movido a manivela, controla a rotação da lente, que completa 360 graus com quatro ocultações a cada minuto. O sistema dióptrico, formado por lentes de cristal para emitir luminosidade por refração, não por reflexão, foi fabricado pela indústria Chance Brothers, da Inglaterra. É inglesa também a origem da torre de ferro fundido, de 15 metros de altura, trazida em placas blindadas e montada sobre elevação

Guarnição. Sargento Pereira (E), cabo Daniel e sub Domingos (abaixo) contam com o faro da cadela Tetê para evitar acidentes com cobras no Arvoredo

Ilha. Montado com placas de ferro trazidas da Inglaterra, farol é principal estrutura da Marinha no Arvoredo

Monge italiano vira ermitão e curandeiro Entre pescadores mais antigos de Ponta das Canas, Cachoeira e Canasvieiras, que cresceram de frente para a ilha, o que ouviam dos avós na infância ainda faz parte das histórias repetidas nos ranchos enquanto consertam redes e canoas. Contam que no fim de novembro de 1848, aborrecido com a convivência humana, um velho monge preso no Rio Grande do Sul teria se refugiado numa das grutas de Arvoredo. Lá teria descoberto fonte de água milagrosa e capaz de curar todos os tipos de enfermidades. A fama se espalhou e, conforme relata Virgílio Várzea na primeira edição do livro “A Ilha”, de 1900, pescadores passaram a seguir em romaria embarcada ao ponto mais alto do Arvoredo. O ermitão, segundo o

historiador José Fraga Fachel no livro “Monge João Maria – Recusa dos Excluídos”, era o migrante italiano João Maria d’Agostini, preso pelo general Francisco José Andréa, o Barão de Caçapava, para evitar levantes e revoltas populares no Rio Grande do Sul, comuns naquela época. A descoberta de seus poderes levou muita gente ao Arvoredo. Sem o isolamento pretendido, João Maria desapareceu misteriosamente da ilha. Ele teria sido o inspirador de João Maria, o monge que em 1911 surgiu na região de Campos Novos, e comandou os camponeses na Guerra do Contestado, entre outubro de 1912 e agosto de 1016.

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Especificações P rojeto: Barão do Cotegipe, Ministro da Marinha, 1867 I nício da construção: 1878 C oordenação: Capitão de Fragata José Marques Guimarães I nauguração: 14 de março de 1883 T orre: 15 metros de altura B ase: 90 metros acima do nível do mar L ocalização: Quatro milhas ao Norte de Florianópolis, na costa Sul de Arvoredo A lcance: 24 milhas náuticas (44 quilômetros) F abricante: Chance Brothers, Inglaterra.

com 90 metros acima do nível do mar. Antes do diesel, os lampejos avistados a 24 milhas (44 quilômetros) de distância eram produzidos a querosene. Hoje, a reserva de óleo é mantida apenas para suprir eventuais desabastecimentos do sistema solar, durante longos períodos de chuva ou céu nublado. Três geradores permanecem sempre pronto para entrar em funcionamento. Mesmo assim, um liquinho ligado a um botijão de gás caseiro permanece instalado ao lado da lâmpada de cristal, de sobreaviso para imprevistos.


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